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59 58 Mil novecentos e cinquenta e três. Uma menina magricela adentra o palco do pro- grama dominical Calouros em desfile, co- mandado por Ary Barroso, na Rádio Tupi. Pesando poucos menos de 40Kg, a meni- na de 16 anos causou graça na plateia pela roupa que usava — muito pobre, teve que pegar um vestido da mãe e ajeitá-lo ao cor- po com alfinetes. O compositor de Aquarela do Brasil as- sustou-se com a figura da garota que queria ser cantora. A plateia gargalhava, com a cer- teza de que ali não era o lugar dela. Depois de uma breve conversa, Ary Barroso emen- dou: “Então me faz um favor e me diga de qual planeta você veio”. “Do mesmo planeta seu, seu Ary”, disse ela. “E qual é o meu pla- neta?” “Planeta Fome”, finalizou. Um silêncio estrondoso invadiu o estú- dio. Quem estava rindo parou de rir. Após a caloura cantar Lama, Ary Barroso tomou-a em seus braços e proclamou: “Senhoras e senhores, neste exato momento nasce uma estrela”. Nascia, então, Elza Soares. Era a Enfrentando os espinhos do destino, Elza tornou-se uma cantora brilhante, dona de uma voz marcante. Em meio século de carreira, mostrou porque a criança miserável que carregava uma lata d’água na cabeça foi coroada, em 2000, pela BBC de Londres, a cantora do século. Tema de um documentá- rio lançado em 2011, a trajetória da cantora será retratada agora num longa, que está sendo produzido pela cineasta Elizabete Martins. Aos 75 anos, com um pique inve- jável, Elza Soares continua usando a música para aliviar as dores da alma. primeira aparição pública da voz rouca que encantaria a todos. Desde então, Elza passou por muita coi- sa. Viúva aos 18 anos — casou-se aos 12 —, já havia visto dois de seus filhos mor- rerem de fome. Em 1962, começou o ro- mance com um anjo das pernas tortas, um tal Mané Garrincha. Por ele ser casado, Elza foi massacrada pela sociedade. Vista como persona non grata, chegou a ser expulsa do país pela ditadura. Entre alegrias e tragédias, ela parece equilibrar-se por uma linha tênue entre a desgraça e a felicidade. COM A VIDA MARCADA POR ALEGRIAS E TRAGÉDIAS, ELZA SOARES ENFRENTOU TUDO E TODOS PARA CHEGAR ONDE CHEGOU. TENDO A MÚSICA COMO SUA MAIOR PARCEIRA PARA CURAR AS FERIDAS DO PASSADO, ELA DÁ SINAIS DE QUE NÃO VAI PARAR TÃO CEDO POR BRUNO MATEUS FOTOS BRUNO SENNA PERFIL

Elza Soares

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Revista Ragga - Setembro 2012

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Page 1: Elza Soares

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Mil novecentos e cinquenta e três. Uma menina magricela adentra o palco do pro-grama dominical Calouros em desfile, co-mandado por Ary Barroso, na Rádio Tupi. Pesando poucos menos de 40Kg, a meni-na de 16 anos causou graça na plateia pela roupa que usava — muito pobre, teve que pegar um vestido da mãe e ajeitá-lo ao cor-po com alfinetes.

O compositor de Aquarela do Brasil as-sustou-se com a figura da garota que queria ser cantora. A plateia gargalhava, com a cer-teza de que ali não era o lugar dela. Depois de uma breve conversa, Ary Barroso emen-dou: “Então me faz um favor e me diga de qual planeta você veio”. “Do mesmo planeta seu, seu Ary”, disse ela. “E qual é o meu pla-neta?” “Planeta Fome”, finalizou.

Um silêncio estrondoso invadiu o estú-dio. Quem estava rindo parou de rir. Após a caloura cantar Lama, Ary Barroso tomou-a em seus braços e proclamou: “Senhoras e senhores, neste exato momento nasce uma estrela”. Nascia, então, Elza Soares. Era a

Enfrentando os espinhos do destino, Elza tornou-se uma cantora brilhante, dona de uma voz marcante. Em meio século de carreira, mostrou porque a criança miserável que carregava uma lata d’água na cabeça foi coroada, em 2000, pela BBC de Londres, a cantora do século. Tema de um documentá-rio lançado em 2011, a trajetória da cantora será retratada agora num longa, que está sendo produzido pela cineasta Elizabete Martins. Aos 75 anos, com um pique inve-jável, Elza Soares continua usando a música para aliviar as dores da alma.

primeira aparição pública da voz rouca que encantaria a todos.

Desde então, Elza passou por muita coi-sa. Viúva aos 18 anos — casou-se aos 12 —, já havia visto dois de seus filhos mor-rerem de fome. Em 1962, começou o ro-mance com um anjo das pernas tortas, um tal Mané Garrincha. Por ele ser casado, Elza foi massacrada pela sociedade. Vista como persona non grata, chegou a ser expulsa do país pela ditadura. Entre alegrias e tragédias, ela parece equilibrar-se por uma linha tênue entre a desgraça e a felicidade.

COM A VIDA MARCADA POR ALEGRIAS E TRAGÉDIAS, ELZA

SOARES ENFRENTOU TUDO E TODOS PARA

CHEGAR ONDE CHEGOU. TENDO A MÚSICA COMO

SUA MAIOR PARCEIRA PARA CURAR AS FERIDAS

DO PASSADO, ELA DÁ SINAIS DE QUE NÃO VAI

PARAR TÃO CEDO

POR BRUNO MATEUS

FOTOS BRUNO SENNA

PERFIL

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O pique que você tem é incrível.

O que faz para manter a forma?

MALHO, ME ALIMENTO BEM. Gosto um pouco de mim, costumo gostar mais dos outros do que de mim. Mas esse povo de quem gosto vale a pena também. Sou devota de São Jorge, converso com ele todos os dias, estou ao lado dele, ele está ao meu lado. Acho que isso me dá força. Acho que Deus tem sido muito bom para mim.

Você é religiosa?

GOSTO MAIS DO MEU ESPIRITISMO, sou mais espírita do que outra coisa. Acredito que todos nós pertencemos a um espírito. Essa matéria aqui é uma casa boba de tijolo de segunda classe, bate uma chuva daquelas, bate um vento e o tijolo cai. Somos uma casa fraca, mas o espírito tem que ser forte. Talvez seja por isso que trato muito bem da minha matéria — para poder fortalecer mais o meu espírito.

Sua relação com Belo Horizonte é

muito boa. De onde vem isso?

PARA FALAR A VERDADE, não sei bem. Mas tive um programa de rádio aqui, talvez possa ser isso. Era um programa muito exaustivo, eu saía daqui, fazia um programa de rádio no Uruguai... De Montevidéu, ia para o Chile. Então era um programa em Belo Horizonte, um em Montevidéu e outro no Chile. Do programa daqui me lembro muito bem, era um momento muito tumultuado da minha vida. Aliás, minha vida sempre foi muito tumultuada.

Pois é, sua vida sempre foi de altos

e baixos. Cantar sempre foi o seu

remédio?

AINDA É REMÉDIO BOM, é a medicina da alma. Minha vida é muito vida e morte. Já passei por muita coisa, acho que todo mundo passa. Não quero chegar aqui e dizer que sou a única, todo mundo passa por isso. Está aqui na Terra, está vivo, vai passar por problemas. Uns suportam mais, outros não. Acho que sou resistente, essa pele aqui é um couro danado.

Vou ficar curioso.

O MUNDO VAI FICAR CURIOSO. Aí eu não queria ir, não queria perturbar o Mané. Até um dia que o Paulo Amaral [preparador físico da Seleção] foi ao hotel e disse: “Vai visitar o Garrincha, ele quer ver você, sua visita vai ser boa para ele”. Já tinha visto ele uma vez na concentração, em Campos do Jordão, mas nada demais. Fui ver o Mané e ele disse: “Muito obrigado por você ter vindo e vou te oferecer a Copa. Vou ganhar a Copa para você”. E ganhou, cara. Quase sozinho. Por isso, eu digo: “Rei é o Mané, que me desculpem os outros”. Aí, começamos a namorar.

Depois da Copa?

SIM, mas eu tinha muito medo. Ele tinha uma amante, que era a Angelita Martins. Sabia que ia pagar um tributo muito caro por ser a Elza Soares, eu já era conhecida demais. E foi quando a coisa começou muito braba.

E foi braba mesmo, até ameaça de morte você

recebeu. Só faltou você ser apedrejada.

FUI APEDREJADA na Av. Nossa Senhora de Copacabana, a [rua] Barata Ribeiro fechou e todos os prédios me jogavam coisa em cima. Eu com as crianças, fiquei abraçada com elas e jogavam balde, água, lata...

Isso tudo por...

POR NADA. Era uma sociedade muito falsa, muito machista, todo mundo fazia por debaixo dos panos. Nunca precisei do dinheiro do Mané para viver, nem dele nem de ninguém. Preciso do meu e da minha voz, que até hoje Deus protege. Nunca tive namorado para me bancar, não preciso disso. É mais fácil eu ajudá-los do que me ajudarem. Paguei muito caro por esse tributo. Não me arrependo. Valeu a pena, fui feliz. Só não pude fazer dele mais porque ele não quis.

Ele tinha um problema sério com

álcool, né?

EU NÃO SABIA na época do alcoolismo.

É verdade que os amigos dele não

gostavam de você, porque você

tirava o Garrincha dos bares?

QUALQUER NAMORADO que eu venha a ter, se tiver um amigo do qual não gosto, que sei que vai prejudicá-lo, vou perder o namorado, mas aquele amigo vai sair do

Apesar dos seus 75 anos, me recuso a chamar você de senhora.

NEM ME LEMBRO DISSO, cara. Lembro que tenho 24 horas de vida.

Já pensou em atos mais extremos,

como suicídio?

CRUZ CREDO, NÃO. Posso até brincar de morrer, mas de verdade não, não é por aí. Eu seria muito ingrata com Deus. São Jorge não permitiria isso.

Na Copa de 1962, no Chile, você

foi madrinha da Seleção Brasileira.

Naquela ocasião, quando cantava

num clube em Santiago, alguém ficou

encantado com a sua voz. E esse cara

era o Louis Armstrong. Como foi

o encontro?

CARA, MUITA GAFE. Eu achava que ele me imitava. Agora você imagina, que criança idiota! Quando olhei para trás, aquele negão forte, grande, um sorriso muito bonito. E eu lá sabia quem era Louis Armstrong? Disseram: “Elza, vai lá, ele quer falar com você”. Fui toda entusiasmada falar com o negão, saber o que ele queria comigo, né? Cheguei lá e ele: “Oh, yeeeah!” [imita a voz característica do jazzista]. Quem é esse, meu Deus do céu? “Yeah, my daughter”. Pô, chego aqui e o cara ainda me chama de doutora! Virei para alguém e disse: “Vai lá, diz para ele que não sou doutora, diz a ele que me chamo Elza Soares”. Mas ninguém entendia, achavam que eu estava brincando. Eu não entendia nada de inglês. Aí me falaram que ele tinha me chamado de filha, mas eu disse que ele tinha me chamado de doutora. “Não, Elza, daughter em inglês quer dizer ‘filha’”. Depois chamei-o de “my father”, não sabia pronunciar nada direito, mas ele entendeu. Ficou aquela amizade linda, aquele homem me amando muito. Aí fui para o México [depois da Copa], fiz mais uma apresentação com ele, já sabendo quem era mais ou menos o cara. Ele queria me levar para Geórgia. Não fui por causa das crianças, já era mãe, tinha os meus filhos.

Durante a Copa de 1962, você

também conheceu uma pessoa que

marcaria sua vida para sempre.

ANTES DA COPA, na verdade. Foi no Brasil mesmo. Fui procurada pelo Nilton Santos [ex-jogador do Botafogo e da Seleção] para que fizesse uma campanha para o Mané ganhar um carro. Falaram que a vida dele era igual a minha, que também tinha uma porção de filhos, que queriam ajudá-lo a ganhar um carro. Recebi não sei quantos negócios de rifa para passar aos artistas comprarem para que ele fosse o ganhador do carro. Eu, com vergonha, comprei todas. E ele ganhou o carro. Aí fui convidada para ser a madrinha da Seleção, não por ele [Garrincha], mas por um empresário. E ganhei um presente, porque o Mané me deu a Copa de 1962.

Como foi o primeiro encontro?

FOI MUITO GOZADO. Ele queria que eu fosse onde eles estavam concentrados. Eu jamais faria isso, não tem cabimento e tinha um cara que me perturbava muito dentro da Seleção. Um babaca lá que estava querendo a Elza Soares para ele. Não vou citar nome, deixa ficar no ar.

Cantar ainda é remédio bom, é a medicina da alma

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proibida de voltar ao Brasil, eu e o Mané. Foi uma cena dantesca: o Mané, em Roma, de bermuda e camiseta. Ele não aceitava aquela selva de pedras, para ele era o fim da vida. Fui falar com o Dr Thompson Flores, que era embaixador. A resposta que tive foi: “O que você quer com um bêbado, um doente?”. “Vocês não podem fazer isso. A Copa do Mundo quem deu a vocês foi esse homem, foi esse bêbado que está aí. E vou segurar esse bêbado até o fim de minha vida”, eu disse. Mas é que não deu mais para segurar o Mané, cara. Ele fugia. Comprei um Mercedes para ele de presente – todos os jogadores tiveram direito de ganhar um depois da Copa [de 1962], ele não quis, preferiu um passarinho, o Mainá. Comprei um Mercedes para ele. Quando chegou em casa, foi a maior decepção: “Criola, pensei que você fosse diferente de todo mundo. Por que você quer que eu ande de Mercedes se o meu Fusca anda igual?”. No dia seguinte, ele encheu o carro de cachorro, de passarinho, levou para um hotel para dar banho nos cachorros na piscina. Um cara me ligou: “Pelo amor de Deus, vem buscar esse homem aqui. Ele está dando banho nos cachorros na piscina. Esse homem é louco”.

Faltou reconhecimento da imprensa e

dos próprios companheiros

ao Garrincha?

ACHO QUE FALTOU TUDO, cara. Sem citar nomes. Sou espírita, tem certas pessoas que vêm à Terra para isso. Uns vêm para ganhar ouro e largar tudo aí. Outros vêm com a missão de limpar a alma. Acho que o Mané veio para limpar a alma, para ser a alegria. Hoje, todo mundo bate no peito, “nós somos os reis [do futebol]”, e o homem que fez tudo isso não merecia nem o nome no estádio de futebol. Ainda bem que estou aqui para brigar por ele.

Você comentou sobre dinheiro, disse

que ganhou muita grana. Mas sua

infância foi paupérrima.

MUITO, de buscar comida no exército, de fi-lho morrer de fome, tive dois que morreram. Sempre tive pavor da lata d’água na cabeça, porque me machucava. Mas teve um mo-mento em que amei demais a lata d’água na cabeça. Foi quando soube que estava ga-nhando o prêmio de cantora do milênio pela BBC de Londres. Foi quando vi que a lata já era a minha coroa, que toda coroa de rei e rainha não é de ouro nem de prata, é feita de lata. Então, já nasci coroada.

Quando você começou a ganhar

dinheiro com a música?

EM 1962, eu já tinha dinheiro. Comecei a gravar justamente nessa época, já comecei ganhando dinheiro, graças a Deus. Pude dar uma casa decente para minha mãe morar, dar colégio decente para os meus filhos. Pude viver uma vida mais harmoniosa, continuei estudando. Depois de 1962, as coisas viraram para o bem e para o mal. Deus e o Diabo na Terra: era a Elza fazendo sucesso e Elza levando pedrada porque estava ao lado de Mané Garrincha.

O Mané faleceu em 1983, e o único

filho de vocês morreu três anos

depois. Li em uma entrevista você

falando que depois da morte do

Garrinchinha começou a usar drogas.

ENLOUQUECI. Só não bebia, mas cheirar cocaína, cheirei. Foi muito cruel, foi horrível. Eu mesma me dei conta que aquilo estava sendo o fim da minha vida, que não havia necessidade de fazer aquilo. Fiquei sozinha, mais uma vez. E sem meu filho. Fui muito usada. Quando você está sozinha, sem ninguém para te apoiar, você se sente muito vulnerável, enfraquecida, levada pelo vento. Mas estou aqui, forte, sadia. Tenho um grande mal na minha vida: às vezes vejo o caminho de alguém que não está bom e tento desviar. Mas tenho pedido a Deus que não me deixe fazer isso. Quem quiser quebrar a cabeça que quebre a cabeça.

Você se preocupa muito com as

pessoas ao seu redor?

SIM, QUEM ESTá COMIGO eu quero que seja feliz.

No fim dos anos 1980 que você

passou quase 10 anos morando fora

do país, fazendo turnês na Europa e

nos Estados Unidos.

MOREI EM PARIS. Foi bom, tinha um respeito muito grande. Mas depois não me senti bem. Aí, de repente, estava morando na Espanha, não me sentia bem lá e ia para a Itália. Depois eu voltava para o Brasil, e parecia que era um castigo. Toda vez que eu voltava para o Brasil passava em frente ao colégio do Juninho, aí comprava uma passagem e voltava, pelo mundo. Foram altos e baixos. A única coisa que não teve altos e baixos na minha vida, graças a Deus, foi a minha voz.

caminho. Ou sou companheira ou não sou nada. Então, fiz isso com o Mané. Tinham as pessoas que eu achava que eram o demônio na vida dele. Na época, era muito difícil, nunca bebi, nunca teve a ver com minha vida. Paguei muito caro por ser mulher, por ser essa criatura com tanta coragem de falar que sou. Hoje, defendo muito o mundo gay e as mulheres. Ainda quero ver mulher gostando de outra mulher, porque é difícil. Se ela puder tirar do caminho, destruir sua vida, ela vai destruir. Mulher é muito competitiva, infelizmente. Muito traiçoeira. Gostaria muito de mudar isso.

Imagino que a Dilma ter sido eleita presidente teve

um significado importante para você.

MUITO, MUITO... E precisamos de mais mulheres no poder. Agora vim de Brasília, fui brigar mais uma vez pelo Mané. Queriam tirar a única coisa que sobrou para ele, aquele estádio Mané Garrincha, em Brasília. Mesmo assim, com a reforma, queriam trocar o nome, ia ser banido o nome do Garrincha. Fui lá e pedi para que não fizessem isso. No dia seguinte, o governador decretou a não retirada do nome do estádio. Fiquei muito feliz, chorei de alegria. O que sobrou do Mané, meu Deus? Eu, para defendê-lo. Quem foi contra

Ainda quero ver mulher gostando de outra mulher, porque é difícil. Se ela puder tirar do caminho, destruir sua vida, ela vai destruir. Mulher é muito competitiva

a Elza Soares, não vejo ninguém defendendo o Mané. Nessa Copa que vem para o Brasil, não vejo nada abordando o nome do Mané. Vou lutar para que eu faça parte dessa Copa do Mundo, quero cantar o hino e quero ser uma representante, porque a única que pode falar de Garrincha sou eu e mais ninguém. Nunca briguei muito por mim não, mas pelo outros eu brigo.

Você gosta de futebol?

GOSTO. Sou flamenguista doente e sou cruzeirense. O Mané viria jogar no Cruzeiro, eu queria que ele encerrasse a carreira aqui. Acho que foi isso também que me trouxe muito para Belo Horizonte. Ninguém fez proposta boa para ele, só o Cruzeiro. Isso foi quando o Brasil já não estava respeitando o Mané. A gente foi para a Itália, ele ia jogar por um time de lá.

Vocês sofreram com a ditadura, tiveram de sair do

país, o Chico Buarque recebeu vocês lá na Itália.

Como foi isso?

AH, O CHICO É MEU AMIGO. Até hoje estou lutando para reaver uma casa que comprei no Jardim Botânico. Fui expulsa do Brasil com o Mané. Tomaram a minha casa, primeiro ela foi metralhada. Recebi um bilhete por debaixo da porta dizendo que tínhamos 24 horas para deixar o país. Nessa nossa saída para Roma, tomaram minha casa, meus filhos, minhas joias, tudo que comprei foi levado. Fiquei

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Você ficou um tempo sem gravar, na década de

1990.

SIM, MAS SUPORTEI BEM. Fazendo shows, viajando, não fiquei fora dos palcos, fiquei fora das gravadoras. Trabalhei muito, viajei, fiz turnê por aí. Agora, tenho um trabalho lindo, que é o Deixa a nega gingar. É um show fortíssimo, muito bonito.

Então ainda tem Elza Soares por um bom tempo

nos palcos?

CARA, enquanto Deus me der pernas e vida para caminhar e voz para cantar, vai ser difícil [parar de cantar]. E acho que comigo vai vir muita gente ainda. Quero trazer muita gente. Tenho um propósito na vida: dividir aquilo que Deus me deu. Vou continuar trabalhando, buscando meu ganha pão, minha vida. Ah, cara, eu sou feliz. Não tem perhaps. É a vida que Deus me deu, não posso mudar. É essa que eu tenho, é essa que tenho que encarar.

Você diz que sua voz é igual mulher

de malandro: quanto mais apanha,

melhor fica. Como assim?

NÃO PRECISO FAZER NADA. Estava falando para o Bruno [empresário e ex-marido de Elza] ontem: “Se eu tentar fazer alguma coisa pela minha voz, ela pode até fugir, porque ela não quer nada”. Ela é um presente de Deus, em time que está ganhando a gente não mexe.

Você já se envolveu com homens bem

mais novos que você. Chegou a sofrer

preconceito por isso?

EU NÃO, ACHO QUE ELES É QUE DEVEM

SOFRER, coitadinhos.

Mas sentia que isso de alguma

maneira mexia com as pessoas?

MAS E DAí, CARA? A minha conta quando chega em casa, eu tenho que pagar. Eles não vêm para me dar dinheiro, não. Quero nada disso deles não, quero nada de ninguém não.

Você é ciumenta?

MUITO, MAS MUITO. Grande erro da minha vida é ser ciumenta. Acho que sou fora do limite, sim. Já fiz um ovo virar omelete de 10. Sou muito ciumenta, mas estou mais controlada. Gozado, com o Mané não existia ciúmes, não. A gente se respeitava, o respeito faz tudo. Apesar dos pesares, continuo sendo eu, Elza.

O que você escuta?

JAZZ. Sou fanática pelo Chet Baker, amo. Gosto muito de ouvir Ella Fitzgerald e boa música popular brasileira. A música agora está numa transição meio estranha, então vou ouvir Jotapê [músico e diretor musical dos shows da cantora], Vander Lee, Jorge Aragão.

Depois de 1962, as coisas viraram para o bem e para o mal. Deus e o Diabo na Terra: era a Elza fazendo sucesso e Elza levando pedrada porque estava ao lado de Mané Garrincha

Três vezes Elza: madrinha da Seleção Brasileira na Copa do Chile, em 1962; dois anos depois, com Garrincha e, em 1969, cantora já consagrada