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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
PROGRAMA DE PS GRADUAO EM HISTRIA
Em Busca da Utopia As manifestaes estudantis em Pernambuco
(1964 1968)
SIMONE TENRIO ROCHA E SILVA
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao
em Histria da Universidade Federal de Pernambuco ,
como requisito para a obteno do grau de Mestre em
Histria, sob a orientao do Prof. Dr. Carlos Alberto
Miranda.
Recife PE
2002
SIMONE TENRIO ROCHA E SILVA
Em Busca da Utopia
As manifestaes estudantis em Pernambuco (1964 1968)
Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para a obteno do grau de Mestre em Histria, sob orientao do Prof. Dr. Carlos Alberto Miranda.
Recife PE
2002
A todos que sonham com um mundo melhor.
Ao construir suas histrias, os homens lhe atribuem
significados, buscam sentidos, inventam fantasias, superam
frustraes, retomam lembranas, equilibram-se entre a dor
e o prazer, criando espaos tambm mltiplos, onde o viver e
o conviver se relacionam. Nossa inteno registrar
momentos dessas histrias que, com certeza, sero como
instantneos de um certo tempo. Muitas histrias
continuaro, ainda, ocultas, para serem reveladas.
Antnio Paulo Rezende
AGRADECIMENTOS
Considero que a existncia humana uma existncia de muitos. Por isso,
sei que para chegar construo final deste trabalho contei com a preciosa
colaborao de inmeras pessoas. Muitos foram os que contriburam direta ou
indiretamente neste caminhar. Citar nomes sempre difcil, porque podemos
esquecer algum. Tentarei no ser injusta, mas, desde j, agradeo a todos que
me deram apoio e incentivo e peo desculpas por uma possvel omisso.
A concluso desta dissertao de imensa importncia para mim. As
incertezas sobre o tema, sobre os referenciais tericos, e at mesmo sobre a
minha capacidade em conclu-la, me acompanharam por toda a trajetria.
Felizmente pude contar com palavras amigas, que me incentivaram a prosseguir.
Uma delas foi a do meu orientador, professor Carlos Miranda, que acreditou no
meu trabalho e muito contribuiu para a sua realizao, dando sugestes e
corrigindo cuidadosamente meu texto, com o carinho de que s um grande amigo
capaz, e a quem sinceramente agradeo.
Agradeo ao corpo docente do Programa de Ps-Graduao em Histria,
pelo crescimento intelectual proporcionado. No posso deixar de destacar a
admirao que nutro pelos professores Antnio Paulo Rezende e Antnio Torres
Montenegro. Eles foram de fundamental importncia para que eu pudesse
construir uma nova imagem sobre a Histria. Percebo que, a partir das aulas
destes queridos mestres, meu olhar sobre nossa disciplina pde vislumbrar planos
antes imperceptveis. Sinto-me privilegiada por ter sido aluna destes doutores na
arte da poesia histrica.
Agradeo, tambm, coordenao do Programa de Ps-Graduao, na
pessoa de Socorro Ferraz, pelo rigoroso trabalho frente da instituio, zelando
para que ela continue com o excelente conceito que possui; s queridas Carmem,
Luciane e demais funcionrios do curso; e CAPES, que me concedeu bolsa de
estudos, sem a qual as dificuldades para realizar o presente trabalho teriam sido
praticamente intransponveis.
Quero expressar minha gratido aos colegas de turma, pela amizade,
sugestes e dicas preciosas em especial a Andr, Elizngela e George; a Lcia
e Jalson, pela maravilhosa experincia teatral que realizamos juntos; e turma
adotiva com a qual tive a sorte de conviver: Ana Alice, Lucas, Alex, Daniel,
pessoas maravilhosas, que com seus comentrios pertinentes muito me
auxiliaram sem contar com o ttulo de musa, que levantou o ego da jovem
colega.
Sou especialmente grata ao amigo Artur, pelas interminveis discusses
tericas. Foucault, Castoriadis foram esmiuados nas tardes ensolaradas de um
outono quente.
Marclia e Marivaldo, funcionrios do APEJE, foram extremamente
solidrios na busca de documentos do arquivo do DOPS que pudessem contribuir
para a minha pesquisa; sem sua preciosa ajuda meu estudo ficaria comprometido.
Desejo registrar um agradecimento especial a minha me e tia Socorro,
pelo amor que deu conforto e segurana nas horas difceis; a meu pai, que
participou intensamente de minhas pesquisas, colaborando com a filmagem dos
jornais; e aos meus irmos, pelo estmulo e preocupao com o andamento do
meu trabalho.
Finalmente, meu profundo reconhecimento a Thiago e Gustavo, amores
do corao, que souberam desculpar as ausncias e preencher minhas poucas
horas vagas com o carinho e o afeto que s os filhos podem nos oferecer; e ao
companheiro Alexandre, pela compreenso e pacincia com que soube escutar
minhas dificuldades, procurando ajudar sempre.
RESUMO
A dcada de 1960 foi palco de inmeras manifestaes estudantis contra
o establishment. Em vrios pases, os governantes foram surpreendidos por
ondas de protestos contra o autoritarismo vigente nas sociedades industriais. A
representao do mundo naquele momento era a de um mundo dividido entre
dois blocos antagnicos, numa rivalidade prestes a explodir a qualquer momento.
O clima era de engajamento em uma das duas frentes. E um segmento dos
universitrios preferiu o socialismo, mas no o socialismo real, que havia
transformado o sonho de autonomia em um regime totalitrio. Os jovens
envolvidos nos protestos queriam viver numa sociedade sem injustias, onde
fosse possvel ter prazer e ser livre.
As manifestaes estudantis ocorridas nos pases do Terceiro Mundo
tiveram como base a luta contra o imperialismo, que era, ento, responsabilizado
pelos graves problemas desses pases. Seduzidos pelas vitrias da Revoluo
Cubana e do povo vietnamita sobre os exrcitos norte-americanos, os jovens de
esquerda latino-americanos acreditaram que tambm poderiam lutar para derrotar
o imperialismo em seus pases e implantar o regime socialista. Este, no entanto,
no era o projeto de toda a sociedade. E, para defender o status quo, vrios
golpes militares foram desfechados na Amrica Latina. O sonho dos estudantes
de esquerda de implantar o socialismo em seus pases tinha agora um obstculo a
mais, a derrubada das ditaduras militares implantadas sob a aquiescncia dos
EUA.
No Brasil, aps o instalao do Regime Militar, em 1964, dois projetos
passaram a se defrontar pela conquista da massa estudantil: o dos jovens de
esquerda, interessados em derrubar a ditadura militar e implantar um regime
socialista no pas; e o dos universitrios de direita, que defendiam a Revoluo
de 31 de Maro. A atuao governamental, entretanto, levou ao
descontentamento de muitos setores da sociedade, favorecendo o predomnio do
projeto poltico dos estudantes de esquerda. O Movimento Estudantil passou a
coordenar a oposio ditadura, promovendo passeatas, comcios, greves etc.
Em Pernambuco, multiplicaram-se as manifestaes estudantis com
carter nitidamente contestador ao Regime Militar. A maioria das aes atraiu
violenta represso policial, o que repercutiu intensamente na imprensa. Parte da
sociedade pernambucana passou a apoiar e a aderir ao chamado estudantil para
novas manifestaes. Com esse apoio, houve um recrudescimento das
manifestaes no s no Recife, mas tambm em muitas outras cidades
brasileiras que passaram a ser encaradas como uma ameaa ao governo
institudo, que tomou uma srie de medidas para impedi-las, culminando com a
decretao do AI- 5, em 13 de dezembro de 1968.
SUMRIO
INTRODUO: Revoluo, a palavra de ordem................................................8
A construo do conceito.........................................................................................10 Prticas histricas quebrando dogmas................................. .................................13 Estudantes e revolucionrios................................................................................16
CAPTULO 1: Os desvairados anos sessenta..........................................................20
1.1. Um mundo polarizado............................................................................................21 A conjuntura econmica da dcada de 1960....................................................21
Os anos de sombra............................... .....................................................................24 1.2. Brasil anos 60: Deus e o diabo na terra do sol..................................................28 A ameaa comunista.................................................................................................28 Os militares e o poder..............................................................................................33
O governo Castelo Branco e o crescimento da oposio ...............................35 O perodo de governo de Costa e Silva ...............................................................40 A esquerda se reorganiza (1964-1968)...............................................................43
1.3. A cultura da revoluo.............................................................................................48
CAPTULO 2: Quem sabe faz a hora ........................................................................55 2.1. O Movimento Estudantil.....................................................................................57
2.2. A revoluo que tanto amamos............................................................................65 2.3. A poltica educacional do Governo Militar......................................................69
2.4. As manifestaes estudantis e a consolidao do discurso de esquerda..80 2.5. O mito do compl ....................................................................................................98
CAPTULO 3: Assim se lhe parece........................................................................103
3.1. E a aliana se desfez..........................................................................................109 3.2. Quando dois projetos se defrontam....................................................................120
3.3. O que fazer?..............................................................................................................143
Consideraes Finais......................................................................................................148
Referncias Bibliogrficas..........................................................................................152
Fontes......................................................................................................................................160
Anexos....................................................................................................................................162
8
INTRODUO
Revoluo, a palavra de ordem
A escolha do tema desta dissertao surgiu da leitura de depoimentos de
estudantes que participaram do Movimento Estudantil (ME) de oposio
Ditadura Militar, que se instalou no Brasil em 1964. medida que lamos os
textos, amos compondo as cenas dos protestos e nos encantando ante a imagem
produzida: jovens idealistas enfrentando as foras policiais num combate
desigual e, por isso mesmo, fascinante.
Seduzidas por esta representao, acalentamos o sonho de empreender
um estudo acerca dessas manifestaes. Questionvamos se somente os
problemas estruturais brasileiros poderiam ser responsabilizados pela
radicalizao alcanada pelo Movimento Estudantil. Fazendo um paralelo com
nossos dias, percebemos que grande parte dos problemas daquela poca
permanecem hoje sem soluo. Ainda assim, os universitrios no se dispem a
sair s ruas lutando para a instalao de um regime capaz de resolv-los.
Tomando de emprstimo a anlise de Foucault1, de que cada poca
define seus critrios de verdade com que seus contemporneos se armam para
conhecer o mundo em que vivem, iniciamos o estudo da conjuntura histrica do
perodo. Percebemos que, naqueles tempos, o desejo de revoluo era norteador
9
das prticas sociais. Tanto na cultura como na poltica este tema era constante.
As preocupaes giravam em torno de que revoluo deveria ser desencadeada,
quando, com que ttica e sob que paradigma.
Nesse contexto, os protestos dos estudantes aparecem fortemente
imbricados com este ideal, que nos parece ser a motivao maior das
manifestaes. Sendo filho de seu tempo, o Movimento Estudantil no poderia
deixar de ser institudo e de instituir2 o imaginrio social de seu momento
histrico.
A partir destas prvias observaes, pudemos definir o objetivo bsico
de nosso trabalho: estudar as manifestaes estudantis em Pernambuco, buscando
elucidar as motivaes que conduziram muitos estudantes a acreditar que
poderiam liderar o movimento que derrubaria o Regime Militar.
Nesses tempos de descrenas e desesperanas, o tema proposto
descortina anos de profundo encantamento com o futuro. Acreditava-se que este
seria paradisaco e o caminho para isso comeava a ser trilhado; que o
capitalismo amargava seus estertores, pois o perodo de estagnao que
atravessava parecia irreversvel. E os estudantes pensavam poder liderar o
processo de transformao social. A revoluo despertava as fantasias, os medos,
as (in) certezas e projetava os jovens fortes como tits.
No pretendemos que a revoluo fosse um conceito homogneo, nem
um consenso entre os que fizeram o Movimento Estudantil, entre os anos de
1964 a 1968. Os significados do termo eram mltiplos, por vezes contraditrios,
e acarretavam inmeras divises. Isto no diminui o fascnio que exercia sobre
seus partidrios. Em nossas reflexes, consideramos que esse fascnio empurrava
os estudantes para a ao. A tarefa imediata, segundo a crena da esquerda, era a
preparao da massa para lutar pelo socialismo, que estava prestes a ser
instalado. A teoria buscava subjugar o processo histrico para que ele ocorresse
tal qual imaginado.
1 Machado, Roberto. Cincia e saber: a trajetria da arqueologia de Michel Foucault. Rio de Janeiro, Graal, 1982, p. 157. 2 Conceitos baseados em Castoriadis, Cornelius. A instituio imaginria da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995.
10
Consideramos que essa utopia era fruto dos ideais da modernidade, da
crena no racionalismo, que previa que o desenvolvimento da cincia e da
tcnica conduziria ao bem estar da humanidade. Esta teoria foi fortalecida pelo
materialismo histrico, que descobrira a lei que fazia a histria se mover. De
posse desse trunfo, seria possvel guiar o destino da humanidade no sentido do
progresso. Conseguiriam construir uma sociedade inteiramente nova,
completamente distinta da anterior. Como prope Antnio Paulo Rezende, A
iluso do novo absoluto, totalmente desvinculado de qualquer referncia histrica
anterior faz parte das mistificaes do moderno. Na verdade, entre o desejo de
ruptura e a sua realizao existem dificuldades imensas.3 O encanto produzido
por essa iluso apagava as incertezas e alargava o desejo de engajamento nos
movimentos que projetavam transformaes.
Nessa conjuntura, o conceito marxista de revoluo recebeu muitas
adeses. Nos dedicaremos a seguir a estudar como este conceito foi elaborado.
1. A construo do conceito
Com a Revoluo Francesa de 1789, o Ocidente se deslumbrou com a
possibilidade de transformar o mundo. Nacionalistas, liberais, socialistas e
anarquistas sonharam durante todo o sculo XIX com a revoluo. Claro est que
cada grupo tinha um projeto prprio de sociedade a implantar, mas a via
revolucionria era comum a todos.
O termo revoluo emprestado da astronomia, onde significava
movimento regular, sistemtico e cclico das estrelas era utilizado inicialmente
com o sentido de restaurao. As revolues dos sculos XVII e XVIII que,
para ns, parecem mostrar todos os indcios de um novo esprito da Idade
Moderna, pretenderam ser apenas restauraes.4 O sentido que damos hoje ao
3 Rezende, Antonio Paulo. (Des) encantos modernos: histrias da cidade do Recife na dcada de vinte. Recife, FUNDARPE, 1997, p.119. 4 Arendt, Hannah. Da revoluo. So Paulo, tica, 1990, pp.34-35.
11
termo s seria elaborado em 1848, quando Marx e Engels publicaram o
Manifesto do Partido Comunista. A partir da o termo revoluo ganhou outro
significado, e acabou por tomar um sentido oposto ao inicial.
Marx e Engels empregam o conceito para denominar uma ruptura
violenta com a sociedade, que marcaria o incio de uma fase nova, desligada da
anterior. No Manifesto, afirmam que os objetivos comunistas de uma sociedade
igual s sero alcanados pela liquidao violenta de toda ordem social at aqui
existente.5 A revoluo transforma-se no meio pelo qual a classe operria
tomar o poder e redimir a humanidade.
No entanto, esta concepo sofreria um revs com a derrota da Comuna
de Paris e os sucessos eleitorais do proletariado alemo. Nas teses da II
Internacional (1889), constata-se uma defesa da idia de uma via reformista para
o socialismo. Esta tendncia tornou-se dominante, mas no era consensual. Logo
Rosa de Luxemburgo e Lnin radicalizaram o debate, reforando a
impossibilidade de se chegar ao socialismo via reforma.
Rosa insistia que o ponto de partida da revoluo seria uma crise geral e
catastrfica do capitalismo6, o que os socialdemocratas julgavam que no
aconteceria. Para eles, os velhos regimes sacudidos por grandes convulses
foram capazes de resistir s ofensivas revolucionrias.7 No entanto, Rosa
enfatizava que impossvel transformar as relaes fundamentais da sociedade
capitalista, que so as de dominao de uma coisa por outra, com reformas legais
que respeitaro o seu fundamento burgus.8
Seguindo este iderio, Lnin defendia a necessidade de uma ruptura
violenta com a sociedade para a implantao do socialismo. Ele combatia
veementemente os reformistas e afirmava que a emancipao da classe operria
impossvel, no s sem uma revoluo violenta, mas ainda sem a supresso do
aparelho do poder do Estado que foi criado pela classe dominante.9
5 Marx & Engels. Manifesto do Partido Comunista. Lisboa, Editorial Avante, 1975, p. 103. 6 Esta viso, cara aos comunistas, retira a fora revolucionria da teoria marxista, transformando-a em uma mera teoria de evoluo dos modos de produo. 7 Garcia, Marco Aurlio. Reforma e revoluo. Revista brasileira de histria. So Paulo, ANPUH/Marco Zero, 10(20): 31, mar-ago 1990. 8 Luxemburgo, Rosa. Reforma ou revoluo? Lisboa, Editorial Estampa, 1970, p. 99. 9 Lnin, Vladimir I. O Estado e a revoluo. Porto, Vale Formoso, 1970, p. 10.
12
Mesmo sendo minoria no cenrio socialdemocrata europeu, foram as
teses de Rosa e Lnin que se consagraram com a vitria da Revoluo Russa.
Isso levou ao descrdito a tese da reforma. As propostas de Lnin foram
legitimadas pela prtica histrica. A revoluo consiste nisto: o proletariado
destri o aparelho administrativo e o aparelho de Estado completo para o
substituir por um novo, que constitudo pelos operrios armados.10 Neste
sentido, afirmava que a revoluo essencialmente autoritria, pois ela um
ato pelo qual uma parte da populao impe a outra parte a sua vontade, com
golpes de baioneta (...) Foroso para o partido vencedor manter o seu domnio
pelo medo que suas armas inspiram. 11
Esta seria a frmula do sucesso! Se seguida nas doses e momentos
recomendados levaria, sem a menor dvida, ao socialismo. Temos estabelecida a
forma de tomar o poder e a maneira como mant-lo aps a vitria. A ditadura do
proletariado, durante o perodo de transio entre o capitalismo e o comunismo,
deveria ser democrtica para a maioria e repressora para a minoria. S quando os
opositores fossem vencidos e as pessoas tivessem se habituado a observar as
condies da vida em sociedade sem violncia e sem submisso12 que o
Estado poderia ser extinto e o comunismo efetivado.
Em seu trabalho, Marco A. Garcia afirma que o modelo de revoluo
paradigmtico do sculo XX resultou de um duplo e contraditrio movimento:
de uma derrota e de uma vitria. A derrota da socialdemocracia e a vitria da
Revoluo Russa.13 Lnin somou a este paradigma o da imperiosa necessidade
de um partido de vanguarda, que teria a misso de despertar o operariado para a
sua gloriosa funo de redimir a humanidade. Sem educao poltica, os
proletrios no conseguiriam superar a fase da luta sindical, da negociao por
reformas que s beneficiariam eles e seus filhos, mas no as remotas geraes
futuras. 14
10 Idem, ibidem, p. 131. 11 Id, ibid, p. 71. 12 Id., ibid., p. 94. 13 Garcia, Marco Aurlio. Op. cit., p. 13. 14 Lnin, Vladimir I. Que fazer? So Paulo, Hucitec, 1978, p. 29.
13
Esta concepo de uma revoluo liderada pelos operrios e iluminada
pela vanguarda do Partido se instituiu num verdadeiro dogma para a esquerda.
Era a sua profisso de f socialista.
2. Prticas histricas quebrando dogmas
A concepo dogmtica de revoluo, erigida sobre a base da vitria
bolchevique, se viu abalada pelas guerras chinesa e cubana, que se desenrolaram
sem seguir o modelo sovitico e at mesmo sem o seu apoio. O processo
histrico desencadeado nesses pases concorreu para que se acreditasse em outras
tticas revolucionrias possveis. Essas novas vias norteariam o surgimento de
muitas organizaes de esquerda nos anos 60.
Para implantar a Repblica Popular da China, em 1949, Mao-Ts-Tung
contou com a fora dos camponeses pobres e no dos operrios, como previa o
conceito clssico. Os chineses empreenderam uma guerra de longa durao,
cerco das cidades pelo campo, progresso lenta do poder local ao central.15
Surgia um novo modelo de revoluo, a agrria baseada no campesinato
utilizando como instrumento orgnico fundamental o Exrcito Popular de
Libertao (EPL) [ que ] no estava prevista em nenhum modelo ocidental .16
Em muitos pases subdesenvolvidos da sia, frica e Amrica Latina,
grupos de esquerda passaram a reverenciar o modelo chins, como o nico vivel
para a realidade dos pases em que a industrializao incipiente no teria criado
um proletariado forte, capaz de dirigir a guerra revolucionria com vistas
implantao do regime socialista. Conclua-se ser possvel vencer o capitalismo
via campo, no sendo necessrio esperar que a classe operria se fortalecesse e se
tornasse apta para assumir o seu lugar de comando.
15 Reis Filho, Daniel Aaro. A Revoluo Chinesa. So Paulo,Brasiliense,1982, p. 106. 16 Idem, p. 107.
14
Com a vitria da Revoluo Cubana, em 1959, se consolidou mais uma
via para o socialismo. Referindo-se a Cuba, De Decca observa que sua revoluo,
atravs de uma via no ortodoxa, acabou por exigir uma reinterpretao terica
das possibilidades revolucionrias em pases terceiro-mundistas.17 Ela
consagrou a teoria do foco guerrilheiro que ficou conhecida por foquismo
como meio eficaz para a tomada do poder. Che Guevara assim o explica:
A guerra de guerrilhas (...) deve iniciar-se como uma tarefa conspirativa, isolada
da ao do povo e reduzida a um pequeno ncleo de iniciados, (...) Se o
movimento guerrilheiro nasce pela ao espontnea de um grupo de indivduos
que reagem contra um mtodo de coero qualquer, possvel que no necessite
outra condio que a organizao posterior desse ncleo guerrilheiro para impedir
seu aniquilamento.18
Na avaliao de Che o exemplo cubano trouxera muitas lies, entre as
quais as de que as foras populares podiam ganhar uma guerra contra o exrcito;
que no era preciso esperar que se desenvolvessem todas as condies para a
revoluo, uma vez que o foco insurrecional poderia cri-las; e que na Amrica
subdesenvolvida o campo era o terreno ideal para o desencadeamento da luta
armada.19
A experincia cubana seduziu uma gerao que mitificou Fidel Castro e
Che Guevara. Muitos se desligaram dos partidos comunistas tradicionais, que
vinham adotando uma viso legalista da luta pelo poder, insistindo na via
pacfica para o socialismo. Esta tendncia dos PCs era, em parte, baseada no
momento poltico mundial, que consagrara a poltica de coexistncia pacfica
entre os EUA e a URSS. A Amrica Latina deveria permanecer como rea de
influncia norte-americana. A orientao sovitica para os comunistas da regio
17 De Decca, Edgar. A revoluo acabou. Revista brasileira de histria. So Paulo, ANPUH/Marco Zero, 10(20): 67, mar-ago 1990. 18 Guevara, Ernesto Che. A guerra de guerrilhas. Edies Populares, So Paulo, 1980, p. 97. 19 Idem, ibidem, p. 13.
15
era que se aliassem com a burguesia nacional, visando desenvolver o capitalismo
nacional, como uma primeira etapa para a implantao do socialismo.20
Uma parcela de jovens militantes de esquerda, descrente do reformismo,
abraou o foquismo, que consagrava o princpio que mais tarde Geraldo Vandr
sintetizaria em um refro: quem sabe faz a hora, no espera acontecer. Era
possvel vencer o imperialismo, pois Cuba o fizera. As palavras de Che Guevara,
de que era preciso criar muitos Vietns na Amrica Latina, ecoaram como uma
convocao entre a juventude. Nem mesmo seu assassinato nas serras bolivianas,
em 1967, desencantou os guerrilheiros que pegaram em armas para realizar a
revoluo continental.21
Outra fonte de inspirao para os revolucionrios do continente
americano, nos anos sessenta, foi a Guerra do Vietn. O povo vietnamita vinha
vencendo importantes batalhas contra o exrcito americano, considerado o mais
poderoso do mundo. Esta guerra contribua para sustentar a crena de que o
socialismo estava se espalhando, havia chegado a hora deste modo de produo
triunfar sobre o capitalismo.
Os lderes estudantis de esquerda no Brasil estavam fascinados por esses
exemplos revolucionrios. A julgar por seus discursos, a certeza de que um novo
tempo estava sendo gestado e por suas mos se efetivaria era generalizada. Essa
paixo pela revoluo contagiou muitos, que se convenceram da justeza da luta e
da certeza de sua vitria, o que fez crescer as fileiras do ME de esquerda no
Brasil, no perodo em questo.
O discurso dos lderes estudantis de direita, aliados ao governo militar,
no teve efeito entre a massa estudantil. Cada vez mais os militares eram
identificados como os representantes da opresso. Esses estudantes democratas,
como se autodenominavam, no estavam, como diria Foucault, no verdadeiro
do discurso de sua poca. Os acontecimentos colocavam o discurso dos lderes de
esquerda no verdadeiro e suas proposies pareciam exatas. 22
20 Valadares, Eduardo & Berbel, Mrcia. As revolues do sculo XX. So Paulo, Scipione, 1994, p. 82. 21 Paes, Maria Helena Simes. A dcada de 60: rebeldia, contestao e represso poltica. So Paulo, tica, 1995, p.28. 22 Foucault, Michel. A ordem do discurso. So Paulo, Edies Loyola, 1998, p.35.
16
3. Estudantes e Revolucionrios
Nos anos 60, Hebert Marcuse props um novo olhar sobre a sociedade
industrial moderna. Segundo ele, esta sociedade era extremamente autoritria e
pretendia justificar-se atravs de um discurso tcnico e cientfico, quando era
altamente ideolgica. Buscava imprimir na populao valores e crenas que lhes
retiravam a liberdade ntima, a ponto de formar um homem unidimensional. No
entanto, a classe mdia comeava a despertar e perceber que se encontrava
subjugada. Percebia-se completamente dominada pelos ideais consumistas e
passava a compreender a necessidade de libertar-se. Os sintomas desse processo
seriam as rebelies estudantis, o movimento hippie e a nova esquerda. Estes eram
sinais de que se formava o embrio de uma nova classe revolucionria.23
Essa procura por uma nova classe capaz de liderar a revoluo surgia
das avaliaes segundo as quais os trabalhadores estavam por demais integrados
ao sistema para contest-lo. A melhoria de seu nvel de vida tornara-os
acomodados. Para Marcuse, a fase mais alta do capitalismo, ao contrrio das
previses de Marx, correspondia a um declnio do potencial revolucionrio do
operariado:
O nvel de produtividade que Marx projetou para a construo da sociedade
socialista j foi h muito tempo atingido pelos pases capitalistas tecnicamente
mais avanados e precisamente essa realizao (a sociedade de consumo) que
serve para sustentar as relaes de produo capitalistas, para garantir o apoio
popular e desacreditar a lgica do socialismo.24
23 Marcuse, Hebert. Contra-revoluo e revolta. Rio de Janeiro, Zahar Editores,1973, pp. 18-19. 24 Idem, ibidem, p.13.
17
Portanto, as condies objetivas para o desencadeamento da revoluo
socialista estavam dadas, faltando as subjetivas. S um novo grupo
revolucionrio poderia desenvolv-las.
O advento das rebelies estudantis de 1968, ocorridas em vrios pases,
fez com que Marcuse passasse a considerar os estudantes como um dos
elementos decisivos do mundo atual; no uma fora imediatamente
revolucionria, (...) mas um fator entre aqueles que poderiam um dia, mais
facilmente, transformar-se numa fora revolucionria.25
Compactuando com esta teoria, Bresser Pereira escreveu um trabalho
intitulado A revoluo estudantil, com o objetivo de comprovar a tese segundo a
qual a revoluo de nosso tempo a revoluo estudantil, ou melhor, a
revoluo dos estudantes e dos intelectuais no-comprometidos.26 Considerava
que os estudantes eram um segmento notoriamente insatisfeito, na medida em
que tinham uma viso crtica da sociedade e sabiam que corriam o risco de no
serem aproveitados pelo sistema econmico aps a concluso de seus estudos.
Para o autor, isso os tornava ainda mais propensos revolta.
Propomos que as anlises que representavam o estudante como uma
camada que teria um papel fundamental dentro do processo revolucionrio, eram
institudas pelo momento histrico vivido. No Brasil, como em outros pases, o
Movimento Estudantil se radicalizou nos anos sessenta. A Ditadura Militar,
impedindo as vias legais de oposio, contribuiu para que setores descontentes da
populao aderissem ao ME, fortalecendo-o.
Dentro do propsito de estudar as motivaes dessa intensificao das
manifestaes estudantis, no captulo 1 pretendemos mostrar o contexto
polarizado do perodo, marcado pela Guerra Fria, que projetava a imagem de que
havia exclusivamente duas vias de desenvolvimento para as sociedades: a
capitalista e a socialista, as quais, sendo incompatveis, no poderiam coexistir.
Esta polarizao seria sentida inclusive no campo das artes, que como
25 Marcuse, Hebert. O Fim da Utopia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1969, p. 51. 26 Pereira, Lus Carlos Bresser. As revolues utpicas: A revoluo poltica na Igreja. A revoluo estudantil. Petrpolis, Vozes, 1979, p.84. Bresser define a categoria dos intelectuais no-comprometidos como artistas e estudantes recm formados desempregados ou semi-empregados, que ainda no se integraram ao processo de produo.
18
propunha o Centro de Cultura Popular (CPC) da Unio Nacional dos Estudantes
(UNE) deveriam ser instrumento de educao poltica do povo, despertando seu
senso crtico, para que seus opressores fossem desmascarados e alijados do
poder. As idias iluministas, instituintes da modernidade, so formadoras desse
discurso. As vanguardas iluminariam as massas para que estas retirassem os
dspotas do poder, inaugurando uma sociedade onde o progresso concorreria
para o bem comum da humanidade.
No captulo 2, sero estudadas as reivindicaes e aes estudantis,
enfocando-se que, na luta pelas reivindicaes de reformas na Universidade, as
aes e reaes do governo s manifestaes estudantis foram contribuindo para
fortalecer a esquerda do movimento e para despertar uma simpatia popular a ele.
Com o recrudescimento da represso, os protestos tenderam a uma radicalizao
e a simpatia cedeu lugar a uma adeso popular, em muitos dos atos de protesto
promovidos pelos universitrios. O prprio envolvimento nas aes num
momento em que o pas vivia num regime fechado, com a oposio legal
proibida contribuiu para a construo da imagem de que ao estudante caberia a
vanguarda da revoluo, como podem atestar alguns panfletos e jornais
estudantis. Observamos que esta viso no era compartilhada pelos partidos e
organizaes de esquerda que pretendiam conduzir o ME. Para estes os
estudantes eram uma fora auxiliar, no confivel, por seu carter de classe
mdia, cabendo a liderana da revoluo classe operria, vanguardeada pelo
partido.
O papel da imprensa na construo do imagtico revolucionrio
estudantil ser o objeto de discusso do terceiro captulo. A ser estudado como
a repercusso das aes estudantis na imprensa possibilitou o fortalecimento e
radicalizao do ME; a adeso popular a esse movimento; e o sentimento, entre
os militares, de que a ordem fugia ao controle das Foras Armadas, ento no
poder. Essa conjuntura conduziu as organizaes de esquerda a avaliarem
positivamente o momento para a deflagrao da luta armada contra o regime
militar. No bojo desses acontecimentos, a censura imprensa, que passou a
19
divulgar somente as notcias autorizadas pelo governo, facilitou a difuso do
discurso militar e a posterior decretao do AI-5.
Esperamos poder contribuir para incrementar o debate sobre esse
perodo da histria recente do pas, mantendo acesa a chama do debate e
evidenciando a necessidade de novos olhares sobre o tema proposto.
20
Captulo 1
Os desvairados anos sessenta 27
Desde o momento em que a palavra, mesmo no
pronunciada, abre uma brecha, o mundo e os outros
infiltram-se por todos os lados, a conscincia inundada
pela torrente das significaes, que vem, se assim podemos
dizer, no do exterior e sim do interior. (...) A existncia
humana uma existncia de muitos.28
Refletir sobre o momento vivido pelos estudantes de Pernambuco torna-
se tarefa importante para o nosso projeto. Entendemos que o contexto histrico
fundamental para a constituio do imaginrio social de uma poca, j que o
pensamento herdado se liga com o mundo que o produz e que ele ajuda a
produzir 29. Mas entendemos que a histria no determina os pensamentos e as
aes. Se assim fosse, nos assemelharamos a marionetes. Segundo Castoriadis, o
homem pode dar solues diferentes para as mesmas situaes. Neste sentido a
histria afigura-se como o reino da criao.
Sendo assim, pensamos que o social-histrico tem um peso fundamental,
mas no determinante, para a construo das mentalidades de um perodo. Da a
necessidade de estud-lo. S a partir da compreenso do ambiente em que os
27 Expresso utilizada por Eric Hobsbawm para denominar a dcada de 1960. In A era dos extremos. So Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 315. 28 Castoriadis, Cornelius. A instituio imaginria da sociedade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1995, pp. 128 e 130. 29 Os conceitos formulados neste pargrafo baseiam -se em Castoriadis. Ver op. cit., pp. 12- 68.
21
estudantes viveram acreditamos ser possvel ter algum entendimento sobre a sua
forma de pensar e de agir.
1.1. Um Mundo Polarizado
O inimigo o prprio sistema comunista implacvel,
insacivel, incessante em sua corrida para a dominao
mundial[. . .] No uma luta por supremacia de armas
apenas. tambm uma luta pela supremacia entre duas
ideologias conflitantes: a liberdade sob Deus versus a tirania
brutal e atia. Walker30
A conjuntura econmica da dcada de 1960
Tanto os pases capitalistas como os socialistas viveram na dcada de
sessenta uma fase de prosperidade econmica que havia se iniciado no ps-
guerra. Hobsbawm descreve esse perodo como a era de ouro do sculo XX31.
H um grande crescimento da produo agrcola e industrial acompanhado do
aumento de volume no comrcio mundial de produtos manufaturados.
Esse boom econmico foi possibilitado pela reforma nas economias
ocidentais empreendida aps a II Guerra Mundial. Para evitar o colapso que
sucedeu a I Guerra Mundial, os pases desenvolvidos empreenderam uma poltica
de economia mista, onde o Estado assumiu o papel de planejar e administrar a
modernizao econmica, copiando o modelo que resultara positivo nos pases
socialistas. Houve uma preocupao com o pleno emprego e um vultuoso
30 Apud Hobsbawm, Eric. Op. cit., p. 229. 31 Idem, ibidem, p. 255.
22
investimento na seguridade social e previdenciria, o que iria proporcionar o
chamado Estado de bem estar social, que visava esvaziar o discurso de
esquerda, possibilitando frear a expanso do poder da URSS.
De fato, a renda dos operrios nos pases desenvolvidos cresceu
bastante. Seu padro de vida tornou-se invejvel para os povos que viviam nos
pases de economia perifrica. Conquistar os mesmos benefcios alcanados
pelos trabalhadores do Primeiro Mundo passou a ser o objeto de desejo dos
habitantes dos Estados subdesenvolvidos. Visando atingir tal objetivo, foram
gestadas as teorias desenvolvimentistas, voltadas para a modernizao, como
meio de se conquistar o progresso. Acreditava-se que por esta via se alcanaria o
mesmo nvel de renda obtido pelos trabalhadores dos pases de capitalismo
avanado.32
Nesse perodo, as empresas baseadas num pas, mas operando em
vrios outros passaram a expandir suas atividades, realizando uma interligao
entre os pases. Esse fenmeno das multinacionais foi estimulado, em parte, pela
dificuldade de conciliar o crescimento econmico com os objetivos polticos de
pleno emprego, salrios altos e previdncia social. Assim, estas empresas se
transferiram para locais de mo-de-obra barata, sem as mesmas exigncias
protecionistas em relao aos operrios.
Essa ligao proporcionada pelas multinacionais alargou a distncia
entre os pases desenvolvidos e os pases do Terceiro Mundo, ao promover uma
concentrao e polarizao da renda. Embasados nas teorias desenvolvimentistas,
alguns dirigentes de pases perifricos acreditavam que com a implantao dessas
indstrias estariam fazendo decolar o progresso industrial em seus Estados.33
No entanto, longe de ser unanimidade, essa expanso das multinacionais
suscitou muita oposio. A bandeira do nacionalismo foi desfraldada.
Denunciava-se a perda da soberania dos Estados representada pela instalao
dessas empresas. Os nacionalistas almejavam o crescimento industrial como
forma de desenvolver o seu pas, desde que fosse fundado sobre base nacional.
32 Id, ibidem, p. 259 33 Paes, Maria Helena Simes . A dcada de 60: rebeldia, contestao e represso poltica. So Paulo, tica, 1995, pp. 12-13.
23
Segundo as interpretaes da poca, a dependncia econmica era responsvel
pelos problemas estruturais dos pases perifricos. A implantao das
transnacionais representaria a perpetuao do subdesenvolvimento.34
O clima de prosperidade atingido pelos pases ricos parecia demonstrar
que no havia mais espao para a difuso dos ideais da esquerda. No entanto, em
fins da dcada de 1960, houve uma exploso do radicalismo estudantil, o que
surpreendeu os governantes destes pases. Estes julgavam ter erradicado o germe
da oposio de seus domnios. Para eles, o boom tecnolgico do ps-guerra, que
disponibilizara bens e servios para o mercado de massa, traria consigo uma
satisfao social. Afinal, o que antes era considerado luxo tornara-se acessvel
pela expanso do crdito.35 Mas esses protestos ocorridos no mundo capitalista se
opunham, justamente, a esse Estado de bem estar social, que incultira no ser
humano o consumismo como um bem supremo, eliminando sua capacidade
crtica e instituindo a falta de liberdade confortvel.36 Embora os bens de
consumo estivessem acessveis a grande parcela da populao, a inquietao
permanecia. A explorao dos pases do Terceiro Mundo, a devastao do meio
ambiente e o uso do progresso cientfico para disseminar a opresso
desagradavam a muitos. 37
34 Idem, ibidem, pp. 31-39. 35 Essas anlises, de Hobsbawm, referem-se aos pases de economia estvel. 36 Como j visto na Introduo deste trabalho, essas crticas da Nova Esquerda baseavam -se nas teorias de Hebert Marcuse, conhecido, ento, como o guru dos jovens revolucionrios. 37 Matos, Olgria. Paris 1968: as barricadas do desejo. So Paulo, Brasiliense, 1981, pp. 49-55.
24
Os anos de sombra
Aps a Segunda Guerra Mundial, acordos de cpula entre Roosevelt,
Stalin e Churchil38 demarcaram os territrios europeus e americanos que
deveriam ser rea de influncia de cada um. Atravessando um processo de
descolonizao, a sia e a frica no puderam entrar nesses acordos, tornando-
se o local onde as duas superpotncias, EUA e URSS, continuaram a competir
por apoio e influncia, durante toda a Guerra Fria, o que determinou a ocorrncia
de conflitos armados, mesmo que indiretos, entre os dois pases.39
Segundo Hobsbawm, o tom apocalptico da Guerra Fria se originou
nos Estados Unidos. A questo no era bem a ameaa de dominao comunista,
mas a manuteno da supremacia norte-americana. Conclui-se que o que estava
em jogo era a disputa pela hegemonia mundial.
Aps o fim da Segunda Guerra, os dirigentes capitalistas acreditavam
que o futuro da sociedade liberal estava comprometido. Muitos esperavam
acontecer uma crise econmica semelhante ocorrida aps o fim da Primeira
Guerra Mundial, o que tornaria os povos mais propensos a aderir ao discurso da
revoluo social e mais sensveis ao apelo de polticas econmicas incompatveis
com o sistema de livre mercado. Consideravam que os comunistas haviam sado
da guerra fortalecidos, pois, apesar de terem sido arrasados na I Guerra,
recuperaram-se e conseguiram empreender uma das maiores derrotas ao exrcito
alemo.
Nessa conjuntura, houve toda uma preocupao com o fortalecimento
econmico no mundo capitalista, que resultou no boom do ps-guerra, como
visto anteriormente. Mas, para Hobsbawm, a URSS no demonstrava ter o
propsito expansionista, tendo desmobilizado sua tropa logo aps o trmino do
38 Respectivamente chefes de governo dos EUA, URSS e Inglaterra. 39 Hobsbawm, Eric. Op. cit., p. 225.
25
conflito. No podia representar perigo imediato, pois sua economia ficara
destruda com os esforos de guerra.40
No intuito de obter capital necessrio para manter a poltica norte-
americana, o presidente procurou tornar convincente o discurso do perigo
iminente de uma dominao do mundo pela tirania brutal e atia. Foi da
inteno dos EUA de se tornarem a nica potncia mundial que surgiu o tom
apocalptico da Guerra Fria, como analisa Hobsbawm.
Desde ento, representava-se o mundo a partir desta bipolarizao: o
Leste, sob o domnio sovitico, queria fazer avanar o socialismo; o Oeste, sob a
liderana norte-americana, tinha como misso combater esse avano. Nesse
clima de tenso, o equilbrio era mantido pela posse de armamentos nucleares. O
mundo poderia ser, a qualquer momento, devastado por estas perigosas armas.
Eram dias tensos, em que qualquer desentendimento entre as duas potncias
deixava as pessoas sobressaltadas. O caso da instalao de msseis soviticos em
Cuba, em 1962,por exemplo, trouxe ao mundo o temor de se ter chegado ao final
dos tempos.
A Guerra Fria teve seu auge nos anos 50, mas recrudesceu na Amrica
com a Revoluo Cubana. O grupo de revolucionrios, liderado por Fidel Castro,
expulsou o ditador Fulgncio Batista do poder e promoveu reformas que levaram
Cuba a estabelecer o regime socialista em seu pas. Nascia o socialismo na rea
determinada a ser liderada pela democracia crist.41
A Revoluo Cubana povoou o imaginrio da esquerda. Nesse contexto,
surgiram as anlises que responsabilizavam o imperialismo norte-americano pelo
subdesenvolvimento da Amrica Latina, tornando o exemplo cubano um modelo
a ser seguido.
Influenciados por esta nova leitura acerca das causas do
subdesenvolvimento dos pases latino -americanos, alguns dirigentes tentaram
promover um desenvolvimento autnomo e nacionalista. Esbarraram, entretanto,
nos interesses dos grupos multinacionais. Era o momento em que se processava a
internacionalizao da economia e o nacionalismo passou a ser percebido como
40 Idem, ibidem, pp. 228-244.
26
um desafio ao poderio norte-americano. Relacionado aos ideais comunistas
angariou forte oposio, em nome da preservao da liberdade sob Deus e os
Estados Unidos.
A dcada de 1960 seria marcada por inmeros conflitos na Amrica
Latina. Por um lado, a mobilizao nacionalista baseada na teoria de que s por
meio de uma economia nacional os pases poderiam chegar ao almejado Estado
de bem estar social, alcanado nos pases de capitalismo avanado. Por outro, a
organizao da esquerda firmada no exemplo cubano de que era possvel
vencer os EUA e implantar uma sociedade socialista. Ambas as lutas
representavam uma ameaa aos planos do capital multinacional, o que
possibilitou uma ampliao da propaganda contra o perigo vermelho, que j
conquistara Cuba e pretendia se espalhar no continente. O conflito de interesses
era representado como uma Guerra Santa entre o mundo cristo e o mundo ateu.
No continente africano, convulsionado pelas guerras de independncia, a
bipolaridade EUA versus URSS coloriu as lutas de libertao, chegando as duas
superpotncias a se enfrentar no Congo.42
Em todo o sudoeste asitico, a bipolaridade dividia internamente os
pases e a guerra civil tomou conta da regio. O conflito de maior proporo foi o
do Vietn. Em 1964, o pas estava dividido: o Norte socialista sob a liderana de
Ho-Chi-Minh e o Sul com um governo garantido pelos EUA. No Sul, vrias
oposies, reunidas na Frente de Libertao Nacional, impuseram uma srie de
derrotas ao governo de Saigon, com o objetivo de se unir ao governo do Norte.
Para reverter a situao, em 1964, os EUA atacaram o Vietn do Norte, que em
represlia desembarcou suas tropas no Sul, em 1965. A guerra recrudesceu e em
janeiro de 1968, na ofensiva do Tet (ano lunar), os vietnamitas imprimiram uma
grande derrota ao exrcito americano. Mas s em 1975 conseguiram a vitria. Do
episdio ficou a leitura de que uma pobre nao asitica conseguira derrotar a
mais rica do mundo.43
41 Gorender, Jacob. Combate nas trevas. So Paulo, tica, 1998, pp. 90-91. 42 Paes, Maria Helena Simes. Op. cit., 1995, p. 18. 43 Idem, ibidem, pp. 18-20.
27
Todas essas guerras na sia, frica e na Amrica Latina (surgiram
guerrilhas na Colmbia, Venezuela, Guatemala, Nicargua, Argentina e Peru,
inspiradas em parte no foquismo)44 deram um tom beligerante e extremamente
violento aos anos 1960, alm de terem possibilitado cises nos blocos capitalista
e socialista.
No Ocidente, a Frana contestou as posies dos EUA, que tambm
sofreram crticas entre seus cidados. Os norte-americanos promoveram protestos
violentos contra a interveno do seu pas no Vietn. Em todas as partes do
mundo surgiram protestos veementes contra essa guerra. A maior potncia
capitalista saa dos anos 60 com sua imagem arranhada.45
No Oriente, a China rompeu relaes com a URSS, buscando um
desenvolvimento autnomo. A Tchecoslovquia tambm tentou uma via
socialista independente, mas foi violentamente reprimida, em 1968, no episdio
conhecido como Primavera de Praga. A Unio Sovitica j no parecia digna de
ser a guardi das esperanas da efetivao do socialismo no mundo. Afigurava-se
to imperialista quanto os americanos. Fator ilustrativo deste pensamento
destacado por Hobsbawm. Segundo este autor, a partir da dcada de 1960, os
regimes dos pases socialistas passaram a ser denominados de socialismo
realmente existente, termo que sugeria que poderiam vir a existir outros e
melhores tipos de socialismo.46
44 Gorender, Jacob. Op. cit., p. 89. 45 Paes, Maria Helena Simes. Op. cit., p. 19. 46 Hobsbawm, Eric. Op. cit., p. 364.
28
1.2. Brasil 1960: Deus e o diabo na terra do sol 47
Sabido e provado est que tanto os pelegos, visando a Repblica Sindicalista, sob a gide do Sr. Joo Goulart, como os comunistas, objetivando a Repblica Socialista, uns e outros, para a conquista do fim colimado, conspiravam abertamente neste Pas, e chegariam a Revoluo, como indicava a agitao reinante, no tivessem as Foras Armadas, na defesa do regime democrtico, com o magnfico movimento de 31 de maro, posto fim anarquia, desordem e sublevao.48
A ameaa comunista
Integrando o continente americano, o Brasil dos anos 60 no poderia
estar imune aos ventos da polarizao, nem aos conflitos que marcaram a
Amrica Latina. As duas tendncias que se digladiavam contra o imperialismo
norte-americano estavam representadas em nosso cenrio poltico. De um lado, o
presidente Joo Goulart, representante do nacional reformismo, que propunha
reformas para que o capitalismo pudesse se desenvolver plena e
independentemente do capital multinacional 49. Do outro, o PCB, que, mesmo
sendo um partido comunista, apoiava as propostas do governo de Jango, visando
desencadear a primeira etapa da revoluo a antiimperialista para posterior
implantao do socialismo. E contra elas, os representantes do capital
multinacional, lutando para desacredit-las, o que possibilitaria sua consolidao
sem obstculos. Nesse conflito, tanto os partidrios do nacional reformismo
quanto os do socialismo seriam representados como aliados da tirania atia.
Em Pernambuco, o governador Miguel Arraes era considerado um
perigoso comunista pela oposio, porque procurava estender as leis trabalhistas
aos trabalhadores rurais e promover a participao popular em seu
47 Ttulo do filme de Glauber Rocha, cineasta cone do Cinema Novo. 48 Concluso de relatrio do inqurito da Polcia Militar de Pernambuco. In Pronturio de Relatrio da Delegacia Auxiliar, ano de 1964, Fundo SSP/DOPS APEJE, n 27593. 49 As reformas propostas por Joo Goulart, conhecidas como Reformas de Base, no encerravam um carter revolucionrio nem socialista. Enquadravam-se nos limites do regime burgus, mas num sentido progressista avanado. Pretendiam levar o Brasil a ser um pas de capitalismo desenvolvido e independente. Gorender, Jacob. Op. cit., p. 56.
29
governo.50Durante o perodo do seu governo, aconteceram freqentes greves no
campo. A radicalizao do movimento campons podia ser sentida pelos
incndios em canaviais e pelo lema Reforma agrria na lei ou na marra, com o
qual o presidente das Ligas Camponesas, Francisco Julio, buscava mobilizar os
trabalhadores rurais. A direita se alarmou e organizou-se em torno da campanha
contra o governador. Propagavam a imagem de que o Estado estava sem governo,
e que a subverso estava prestes a se sagrar vitoriosa em Pernambuco.
As reportagens na imprensa nos meses precedentes ao movimento
militar de 1964 representavam um Estado convulsionado, beira de uma guerra
civil. Os usineiros e deputados diziam estar se armando, no s para defender a
vida, mas para impedir a cubanizao do pas. Aconselhavam a populao a fazer
o mesmo51. Os jornais transmitiam uma imagem de insegurana ante o devir, a
populao parecia estar temerosa, apreensiva, a guerra psicolgica era intensa e
premeditada.52
Por outro lado, os adeptos do nacional-reformismo se entusiasmaram
com o governo Arraes. Projetavam a imagem de um Pernambuco revolucionrio,
que ensinava ao pas o que deveria ser feito para que seus problemas estruturais
fossem resolvidos. Na reportagem de Antnio Callado, realizada em fins de
1963, podemos testemunhar este deslumbramento:
O panorama que encontrei em Pernambuco em fins de 1963 era de infundir
esperana (...) De 1959 para c, e principalmente sob a liderana de Miguel
Arraes, Pernambuco se dedicara mais escassa das atividades deste pas: a de
fazer histria. (...) Crescia na Zona Canavieira uma safra de homens. Armados do
Estatuto do Trabalhador Rural e da Tabela do Campo, alm de suas foices,
50 Andrade, Manoel Correia de. 1964 e o Nordeste: golpe, revoluo ou contra-revoluo? So Paulo, Contexto, 1989, p. 40. 51 Dirio de Pernambuco (DP), 04/03/1968. 52 A imprensa fazia guerra psicolgica para garantir adeso ao golpe militar, conforme declaraes de Assis Chateaubriand, em editorial publicado no Dirio de Pernambuco, em 24/03/1968, quando se viu descontente com a Revoluo de 31 de Maro, conforme ser analisado no captulo 3.
30
naturalmente, e uma ou outra espingarda, os lavradores se sindicalizavam, iam s
usinas reclamar salrio.53
Para este autor, Pernambuco havia sado de um marasmo de
quatrocentos anos para uma marcha redentora. Era um Estado pobre que estava
buscando solues nos terrenos da educao, sade, moradia, das relaes
trabalhistas para proporcionar uma vida digna aos seus habitantes. E tudo se
processando sem que a elite local protestasse muito, pois estava consciente de
que era preciso mudar.54 Concluindo, ele afirmava: de grande importncia o
que acontece em Pernambuco e por isso considero piloto a revoluo que ali se
processa. Ela d uma idia do que vai acontecer ao Brasil em geral.55
Entretanto, a julgar pelas reportagens dos jornais de grande circulao na
poca, a elite local no estava cordata. Ao contrrio, reclamava providncias para
que o pas no se transformasse numa repblica socialista.56
Esse temor era reforado pela intensa participao popular no governo
do presidente Joo Goulart. A luta pelas reformas estruturais gerou a organizao
de inmeras manifestaes. Diante do clima bipolarizado da poca, setores das
classes dominante e mdia ficaram temerosos ao ver a presena do povo nas
ruas. Uma revoluo socialista parecia estar por se desenrolar no Brasil.
Os militantes do PCB, certos de que atravs do governo de Arraes e de
Joo Goulart poderiam dar incio primeira etapa para a revoluo, passaram a
apoi-los. O que sinalizava para a burguesia nacional e internacional, que o
discurso de Antnio Callado, de que a revoluo estava prestes a se realizar no
Brasil, era verdadeiro. Tornava-se imperioso conter o avano popular que
ameaava os interesses norte-americanos no pas e o status quo vigente.
Com este objetivo, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais57 (IPES) e
o Instituto Brasileiro de Ao Democrtica58(IBAD) apareceram na vida pblica
53 Callado, Antnio: Tempo de Arraes, a revoluo sem violncia. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980. 3a ed., p. 39. O ttulo do livro bastante sugestivo da idia que se fazia no Brasil sobre o que se processando em Pernambuco. 54 Idem, ibidem, p. 57. 55 Id, ibid, p. 113. 56 Relatrio sobre a contra revoluo. In Pronturio de Relatrio de Atividades da Delegacia Auxiliar, ano de 1964, Fundo SSP/DOPS APEJE, n 27593. 57 Criado em novembro de 1961.
31
brasileira. Definindo-se como um movimento de homens de negcios que
pretendiam contribuir para o debate sobre os destinos do pas, comearam a
coordenar uma campanha poltica e ideolgica contra o governo Goulart. O
IBAD recebia contribuies de industriais e banqueiros nacionais, proprietrios
rurais, grupos internacionais e da prpria CIA. 59 Este financiamento recebido
pelo IBAD vinha do temor do governo norte-americano de que um conflito
armado pudesse irromper no Brasil, transformando-o em um pas socialista 60. O
IPES-IBAD, diante dessa perspectiva, ligou-se aos oficiais da Escola Superior de
Guerra, responsveis pela elaborao da Doutrina de Segurana Nacional 61,
instituindo o estado-maior do movimento civil-militar que deflagrou o golpe de
1964.
A crise econmica que o Brasil atravessava com uma inflao na casa
dos 80%, uma queda no PIB e um aumento do dficit pblico e da dvida
externa62 tornava a massa mais predisposta s greves e a direita com mais
argumentos para atestar a incompetncia do Presidente em lidar com os
problemas do pas.
Sem apoio da elite, Joo Goulart iniciou campanha para fortalecer sua
base de apoio entre os setores populares. Num comcio, em 13 de maro de 1964,
que reuniu 200 mil pessoas no Rio de Janeiro, o Presidente anunciou a
nacionalizao das refinarias de petrleo e decretou a desapropriao de terras
para a Reforma Agrria.
A partir da se intensificou a campanha contra o comunismo, pela defesa
das tradies. Passeatas organizadas por mulheres, as Marchas da famlia com
Deus pela liberdade, reuniram milhares de pessoas em vrias capitais do Brasil.
Vrios discursos insistiam na tomada do poder pelas Foras Armadas, para salvar
58 Criado por empresrios e militares em fins dos anos 50. 59 Paes, Maria Helena Simes. Op. cit., p. 41. 60 Bandeira, Moniz. O governo Goulart: as lutas sociais no Brasil 1961 1964. Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira, 1978, p. 141. 61 A Doutrina de Segurana Nacional baseava-se na Guerra Fria e considerava a nao como um todo homogneo, sem classes com interesses opostos. Entendia toda oposio como subverso e as greves, conflitos sociais e mobilizaes de massa eram lidos como estratgias do comunismo internacional para se estabelecer no pas. Segundo a DSN vivia-se numa guerra e o Brasil era um aliado natural dos EUA. Por isso era preciso lutar internamente contra os agentes de Moscou. Ver Paes, Maria Helena Simes. Op. cit., p. 42. 62 Bandeira, Moniz. Op. cit., p. 145.
32
o pas da ameaa vermelha. Este apelo pode ser observado em vrios artigos de
jornais63e no seguinte manifesto entregue ao Coronel Justino Alves Bastos, ento
comandante do IV Exrcito, por representantes da Cruzada Feminina, que
organizou a marcha das mulheres em Recife, no dia 06/03/1964:
(...) Atravs da conquista de posies de dispositivos e de finanas, se arma um
esquema totalitrio, escondido sob o nome de nacionalismo, termo cuja
explicitao atual implica em s ser usado entre aspas ou sob o nome de
socialismo (...). Tudo conduzindo, enfim, a isso que uma e a mesma coisa a
democracia popular ou comunismo um sistema totalitrio de vida sem
definies ideolgicas, uma estrutura monoltica de poder, a ditadura de uma nova
classe. (...)
Assim sendo, e reconhecendo o papel das Foras Armadas, como garantidoras da
liberdade, das tradies crists e das instituies vigentes, seria natural que
comessemos por elas a comunicar a nossa existncia e os nossos desgnios.64
Pelo nmero de participantes que aderiram a essas passeatas e pelos
artigos publicados nos jornais de se concluir que grande parte da populao
achava-se impressionada com o avano comunista no pas e apoiaria uma
interveno militar para conter esse avano.
Certos de que Goulart estava levando o Brasil para um Estado
Socialista, que extinguiria os valores e as instituies tradicionais do pas, os
militares iniciaram seu movimento conspiratrio. Muitos oficiais legalistas no
estavam convencidos de que fosse necessria uma interveno que ferisse o
regime constitucional. Mas a indisciplina crescente dos cabos e sargentos das
Foras Armadas, apoiada por Joo Goulart, levou grande parte dos oficiais
legalistas a aderir ao movimento. Estes consideraram que a sobrevivncia da
instituio encontrava-se ameaada por essa insubordinao. 65
63 No captulo trs deste trabalho apresentamos alguns exemplos desse apelo s Foras Armadas. 64 DP, 01/04/1965, p. 9. O manifesto completo encontra-se nos anexos. 65 Os subalternos das Foras Armadas iniciaram um processo de politizao a partir da oposio que fizeram aos oficiais golpistas em 1961(episdio da posse de Joo Goulart aps a renncia de Jnio Quadros).Iniciaram campanha pblica contra o imperialismo, pelo nacionalismo e por reivindicaes profissionais, ignorando os regulamentos disciplinares. Em 1962, fundaram a Associao dos Marinheiros
33
O movimento militar, objetivando a tomada do poder, iniciou-se na
noite de 31 de maro, com o apoio de uma ampla frente, na qual estavam
presentes setores da imprensa, da Igreja Catlica, da burguesia nacional, do
capital internacional, dos proprietrios rurais, dos polticos e da populao. Nesta
frente encontravam-se propostas as mais dspares. O que a uniu foi, sem dvida,
o medo, um medo muito grande, de que gentes indistintas pudessem cobrar
fora e virar o pas e a sociedade de ponta-cabea.66
Os militares e o poder
importante considerar que entre os militares que desencadearam a
Revoluo de 31de Maro havia divises. Eles organizavam-se basicamente em
dois grupos, um denominado Sorbonne, do qual fazia parte o General Castelo
Branco, e o outro, Linha Dura, do qual fazia parte o General Costa e Silva. O
primeiro era mais moderado e defendia a livre iniciativa e a fidelidade
democracia. J o grupo Linha Dura propunha medidas mais fortes para
combater o comunismo e uma poltica econmica nacionalista.
No perodo abrangido por este estudo, os oficiais da linha dura
pressionaram sempre por um maior fechamento do regime.67 A partir do
recrudescimento dos movimentos de oposio, em 1968, muitos deles passaram a
agir por conta prpria para debelar a ameaa comunista. Desconfiados da
competncia de Costa e Silva para calar a oposio, promoveram vrios
atentados a bombas e aes terroristas. Pretendiam amedrontar aqueles que
participavam das manifestaes de oposio ao governo.68
e Fuzileiros Navais, no reconhecida pela Marinha, que reuniu milhares de associados. In Souza, Percival. Eu, cabo Anselmo: depoimento a Percival de Souza. So Paulo, Editora Globo, 1999, pp. 63-80. 66 Reis Filho, Daniel Aaro. 1968: o curto ano de todos os desejos. ACERVO . Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 11(1-2), dez.1998/jan.1999, p.26. 67 Drosdoff, Daniel. Linha Dura no Brasil: O governo Mdici(1969-1974). So Paulo, Global, 1986. 68 O coronel de artilharia Alberto Fortunato, participante do grupo de extrema direita denominado Grupo Secreto, analisando o atentado que este grupo promoveu no dia 23 de setembro de 1968 ao CACO ( Centra Acadmico Cndido de Oliveira, da Faculdade Nacional de Direito R J), afirmou: Os estragos foram insignificantes, mas o trauma nos estudantes e professores estendeu-se por muito tempo. Argolo, Jos A. et al. A Direita Explosiva no Brasil. Rio de Janeiro, Mauad, 1996, p. 240.
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importante ressaltar que no existia, entre os militares que assumiram
a direo do pas, um projeto poltico acabado e consistente, que indicasse que
permaneceriam por tanto tempo no comando da nao. As idias iniciais
consistiam em proposies de combate ao esquerdismo e corrupo. A
pretenso era devolver o poder aos civis to logo corrigissem os rumos da nao.
Nem mesmo os oficiais da linha dura se caracterizavam por defender uma fase
revolucionria que permanecesse indefinidamente.69 Tanto assim que o primeiro
ato institucional decretado pelos militares, o AI-1, com o propsito de fortalecer
o poder executivo, marcava eleies presidenciais para 1965.
No entanto, a tomada de medidas econmicas drsticas, seguindo a
receita do FMI, deixou o primeiro governo militar desgastado entre a populao.
Isso poderia resultar numa derrota eleitoral dos revolucionrios nas eleies
presidenciais marcadas para 1965. Objetivando evitar essa possvel derrota,
ampliou-se o mandato de Castelo Branco.70A anlise pareceu acertada, pois nas
eleies de outubro de 1965, para governador, os Estados de Minas Gerais e Rio
de Janeiro elegeram candidatos da oposio. O regime militar fora reprovado no
teste, o que gerou uma grave crise no governo Castelo Branco. Os oficiais da
linha dura queriam depor o Presidente e impedir a posse dos governadores de
oposio eleitos. Mas Castelo conseguiu acalmar seus opositores militares,
decretando um novo ato, em 27/10/1965, o AI-2, que abolia os partidos polticos
existentes, instituindo o bipartidarismo. Determinava, ainda, eleies indiretas
para os cargos de presidente da Repblica e governadores de Estado. A
democracia estava dando seus ltimos suspiros.
Com base no decreto foram criados dois partidos: a ARENA (Aliana
Renovadora Nacional), da situao; e o MDB (Movimento Democrtico
Brasileiro), da oposio. Essas reformas no abrandaram o sentimento de
oposio ao governo que se difundia entre a populao. Sentindo-se vulnerveis,
em fevereiro de 1966 os dirigentes militares decretaram o AI-3, determinando
69 Scalercio, Marcio. A Tmpera da Espada: os fundamentos do pensamento das lideranas do Exrcito em 1968. In, ACERVO, Revista do Arquivo Nacional, vol.11, n. 1-2 (jan./dez. 1998). Rio de Janeiro, Arquivo Nacional,1998. P. 101. 70 Skidmore, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1989, p.89
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que os prefeitos das capitais e de outras cidades consideradas de Segurana
Nacional seriam nomeados pelos governadores 71. Nenhuma medida parecia
eficaz para conter a oposio ao regime militar. Diante desta dificuldade, foi se
construindo a idia entre os militares de que era preciso permanecer. A brevidade
a que se propunham inicialmente no permitiria vencer os inimigos internos e
nem corrigir os rumos do pas.
O governo de Castelo Branco e o crescimento da oposio
Um dos propsitos de Castelo Branco ao assumir o governo era frustrar
o plano de implantao do comunismo no Brasil. Com este intuito, logo aps o
golpe, iniciou-se a operao limpeza, visando eliminar os corruptos e
subversivos da vida nacional. A represso foi particularmente severa no
Nordeste, onde se supunha estar abrigado o maior centro de atividade do PCB no
Brasil. Os militantes do movimento campons e os comunistas, que atuavam no
governo Arraes, sofreram com a represso.
Segundo Page, nas semanas seguintes ao golpe, o IV Exrcito e a polcia
prenderam todas as pessoas que consideravam subversivas em Pernambuco. As
Ligas Camponesas e as Associaes de Bairro foram especialmente visadas.
Dentro de pouco tempo as cadeias estavam superlotadas. 72
As cassaes atingiram muitos polticos. O governador de Pernambuco,
Miguel Arraes, foi preso e seu vice, Paulo Guerra, assumiu o governo do Estado.
O Prefeito do Recife, Pelpidas Silveira, foi cassado, sendo substitudo por
Augusto Lucena, que governou de 1964 a 1969. 73
O fato de ter apoiado o movimento militar no resultou,
necessariamente, em favorecimentos polticos no novo governo. O grupo que
71 Idem, ibidem, pp. 93-107. 72 Page, Joseph. A revoluo que no houve: o nordeste do Brasil (1955-1964). Rio de Janeiro, Record, 1972, pp. 248-250. 73 Informaes obtidas nos sites da Prefeitura e do Governo Estadual.
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estivera fora do poder no governo anterior imaginava que seria reconduzido a ele
por ter aderido conspirao golpista. Em Pernambuco, por exemplo, Cid
Sampaio (que fora governador do Estado entre 1959-1963) pleiteava a liderana
da SUDENE, mas para a direo do rgo foi nomeado um militar.74 A inteno
era afastar os polticos, pois estes no eram capacitados para conduzir o Brasil
para o progresso. Em seu lugar seriam colocados tcnicos com conhecimentos
cientficos especficos para o cargo que ocupariam. Esta prtica era determinada
pelo discurso tecnocrtico, com o qual os militares pretendiam se legitimar no
poder. Apresentavam-se as novas diretrizes nacionais como tcnicas e racionais,
apagando delas a poltica de dominao.75
So ilustrativas desse discurso as palavras de Delfim Neto, ministro da
Fazenda do presidente Costa e Silva: Raramente o Brasil conheceu em sua
histria um governo como este com absolutamente nenhum compromisso com
classes sociais ou grupos econmicos, e sem o mnimo interesse na defesa ou
preservao de instituies sociais nocivas atividade econmica.76
Apresentavam-se os planos econmicos como se eles no fossem permeados por
questes sociais, podendo ser desvinculados dos interesses de classe. Os
objetivos da burguesia eram identificados com os de toda nao.
Mas a propalada reforma administrativa, com a gesto de tcnicos
competentes, s se efetivou na administrao indireta, criando burocracias
estatais bem remuneradas. Os setores de educao e sade que atendiam
diretamente a populao ficaram intocados, permanecendo com os mesmos
problemas anteriores.
Roberto Campos e Octvio Bulhes foram os tcnicos escolhidos para
comandar os rumos da economia. Eles empreenderam uma poltica recessiva para
combater a inflao, o que resultou em falncias e desemprego. O arrocho
salarial foi institudo. A legislao trabalhista aumentou o controle sobre os
sindicatos e proibiu as greves. A criao do FGTS acabou com a estabilidade de
emprego, possibilitando uma rotatividade de mo-de-obra e a manuteno de
74 Page, Joseph. Op. cit., p. 252. 75 Paes, Maria Helena Simes. Op. cit., p. 47. 76 Apud Skidmore, Thomas. Op. cit., 1989, p. 147.
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baixos salrios. Esta receita agradou aos investidores estrangeiros e ao FMI. Em
contrapartida, angariou uma grande impopularidade para o governo, inclusive no
meio militar, onde a ideologia nacionalista tinha inmeros adeptos.77
A ampla frente heterognea que apoiara o governo comeava a se
desmanchar. A classe mdia e os trabalhadores sentiam-se sufocados com a
poltica econmica. Os polticos, alm de no terem sido agraciados com os
almejados cargos, viviam sob a ameaa de cassaes. O Parlamento tivera seu
poder diminudo pelo fortalecimento do Executivo e pela freqncia com que o
presidente legislava por decretos.
A imprensa, descontente com a excessiva proteo que o governo
federal concedeu Rede Globo, passou a atuar na oposio. Protestava contra a
infiltrao de empresas norte-americanas no setor. Os descontentamentos e os
movimentos de oposio ao governo comearam a freqentar, constantemente, as
primeiras pginas dos jornais.78 A Lei de Imprensa, de 1967, visando contornar a
situao, limitou a funo poltica dos meios de comunicao, controlando a
divulgao de informaes. Vrios reprteres foram vtimas de perseguies e
agresses policiais. A censura se abatia sobre os jornais. 79
Setores do Judicirio que haviam apoiado a Revoluo de 1964, alarmados
com a ameaa ao constitucionalismo vinda da esquerda, tambm retiraram o seu
apoio. O enfraquecimento deste poder acompanhado de um fortalecimento da
Justia Militar, estava levando-os oposio. Sobral Pinto, em palestra na
Faculdade de Direito do Recife, afirmou:
Os militares esto esmagando o poder civil, e deve se fazer alguma coisa urgente
para se derrubar a ditadura que aqui se implantou. (...)
Quando um militar sai do quartel, derruba um governo civil, e passa a dominar a
situao, cometendo atos injustos e infames, esse no merece o meu respeito nem
o de vocs.(...)
Pois o que acontece no Brasil. Estamos numa ditadura disfarada. Somos a todo
o momento vtimas dessa falta de liberdade de pensamento, de expresso e de
77 Idem, ibidem, pp. 121-127. 78 Este tema ser mais detalhado no captulo trs.
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reunio. As autoridades no so capazes de dialogar com o povo, porque se
julgam sbias. Pensam estar salvando o pas.80
O discurso tecnocrtico dos militares j no conseguia convencer muitos
grupos sociais. O descontentamento parecia generalizado.
Parte dos membros da Igreja, que se aliaram s Foras Armadas por
temer a instalao do totalitarismo ateu, tambm estava decepcionada. No
podiam ser coniventes com as violentas prticas repressivas empregadas pelos
chefes militares. Dom Hlder Cmara Arcebispo de Olinda e Recife liderou o
setor progressista da Igreja Catlica nas crticas s diretrizes polticas do governo
que reforavam e aprofundavam as injustias sociais. Por isso passou a ser
encarado pela ditadura como um inimigo. Representava uma ameaa. Com o
objetivo de silencia-lo, vrios atentados sua residncia foram promovidos pelo
grupo de extrema direita denominado Comando de Caa aos Comunistas
(CCC).81
Nessa escalada oposicionista ao governo, o Movimento Estudantil levou
seu protesto s ruas e conquistou a simpatia e adeso de vrios setores da
populao, o que ser analisado nos captulos seguintes.
Em 23 de maro de 1965, os nacionalistas de esquerda tentaram iniciar
um levante na cidade de Trs Passos, no Rio Grande do Sul. O coronel do
Exrcito Jefferson Cardim liderou um destacamento de 22 homens, que tomou a
cidade. Aps a leitura de um manifesto pelo rdio atravessaram Santa Catarina,
chegando ao Paran. Esperavam ver sua coluna engrossada por adeptos no
caminho, o que no ocorreu. No dia 27 foram derrotados no nico combate que
travaram com as tropas do Exrcito.
No ano de 1966, os movimentos de oposio Revoluo Militar
cresceram. Alguns atentados a bomba foram feitos, quatro s em Recife. O mais
importante deles foi o atentado ao Aeroporto dos Guararapes, em junho, que
79 Paes, Maria Helena Simes. Op. cit., p.57. 80 DP, 13/08/1967, p. 7. 81 Skidmore, Thomas. Op. cit., p.158.
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visava o futuro presidente da Repblica, General Costa e Silva. O general saiu
ileso, mas duas pessoas morreram e quatorze ficaram feridas.82
Dom Hlder Cmara e mais quinze bispos de Pernambuco, Paraba, Rio
Grande do Norte e Alagoas lanaram, em julho, apoio formal a um manifesto
divulgado em maro por ativistas catlicos, condenando as injustias sociais, a
explorao da classe trabalhadora e as perseguies polticas.83
Nesse mesmo ano, Carlos Lacerda governador do Rio de Janeiro
poca do golpe e antes um entusiasmado defensor do mesmo84 iniciou contato
com Joo Goulart e Juscelino Kubitschek, para conseguir adeptos para a
formao de uma frente de oposio ao regime militar. A chamada Frente Ampla
tinha a proposta de lutar pelo retorno democracia e pelo nacionalismo.85
Em novembro de 1966, o Movimento Nacionalista Revolucionrio
(MNR) liderado do exterior por Leonel Brizola que reunia estudantes, cabos,
sargentos, marinheiros excludos das Foras Armadas pelo golpe e antigos
militantes das campanhas nacionalistas do pr-golpe, ocupou um ponto elevado e
deserto da Serra do Capara, na divisa entre os Estados de Minas Gerais e
Esprito Santo. O objetivo era iniciar um foco guerrilheiro, que deveria se juntar
a outros dois um no Sul do Maranho e outro no Mato Grosso e desencadear
a Revoluo no Brasil. Mas, em abril de 1967, o foco foi desbaratado sem ter
realizado um nico combate. 86
Nesse desgaste por que passava o regime, iniciou-se o processo de
escolha do sucessor de Castelo. Os militares insistiam no nome de Costa e Silva,
general da linha dura. Este candidato despertava a suspeita de que no manteria a
linha poltica em vigor, por ser nacionalista e de extrema direita. Para garantir a
manuteno das diretrizes assumidas, os militares no poder trataram de criar uma
estrutura legal que limitasse as aes de Costa e Silva. Assim, em 17/12/1966,
82 Gorender afirma que a Ao Popular (AP) foi responsvel pelo atentado, que foi planejado por Alpio de Freitas e Raimundo Gonalves de Figueiredo, revelia da direo nacional, que ao tomar conhecimento da ao pelo prprio Alpio, condenou o fato. 83 Skidmore, Thomas. Op. cit., p. 109. 84 O cancelamento das eleies presidenciais de 1965 frustrou os planos de Carlos Lacerda, que alimentava o desejo de ser presidente da Repblica. Isto o levou a fazer uma rigorosa oposio ao governo, que acabou por cassar seus direitos polticos. 85 Skidmore, Thomas. Op. Cit., p. 115. A Frente Ampla foi proibida em 04/04/1968. 86 Tavares, Flvio. Memria do esquecimento. So Paulo, Editora Globo, 1999, pp. 178-203.
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uma nova Constituio foi apresentada ao Congresso, a qual apesar dos debates
suscitados, foi aprovada sem alteraes. Pela nova Carta, promulgada em
24/01/1967, houve um fortalecimento do poder Executivo; o governo federal
ganhou amplos poderes para apurar infraes penais contra a Segurana Nacional
e a ordem poltica e social.87
Quatro dias antes de deixar o governo, Castelo imps, atravs de
decreto, a Lei de Segurana Nacional (LSN), visando defender o Brasil contra a
expanso comunista, que o ameaava e justificava a permanncia dos militares
no poder.
O perodo de governo de Costa e Silva
Costa e Silva assumiu o poder comprometendo-se com a
democratizao do pas e com uma poltica nacionalista. Embora impopular, a
poltica econmica do governo anterior deixou uma herana favorvel. A
inflao havia sido reduzida, a balana de pagamentos havia tido uma melhora
considervel e o dficit pblico havia diminudo. A nova equipe de tecnocratas
que assumiu a economia, liderada por Delfim Neto, substituiu a poltica de
tratamento de choque pela do gradualismo econmico. Os salrios passaram
a ter pequenos aumentos anuais, foram promovidas pequenas desvalorizaes da
moeda para manter as exportaes competitivas e implementou-se uma poltica
de gerao de empregos. Ampliou-se o crdito ao consumidor, fazendo com que
a classe mdia aumentasse seu poder de compras e sua satisfao com o regime.
E, contrariando as expectativas dos oficiais nacionalistas, manteve-se a poltica
de atrao do capital estrangeiro.88
No entanto, os efeitos dessa nova poltica econmica s se fariam sentir
em fins de 1968. At ento, Costa e Silva teve de se defrontar com numerosos
87 Skidmore, Thomas. Op. cit., pp. 118-121. 88 Drosdoff, Daniel. Op. cit., pp. 36- 38.
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protestos. Greves, manifestaes estudantis, aes da guerrilha urbana e de
grupos paramilitares de direita se intensificaram, o que fez com que os militares
da linha dura o pressionassem para tomada de medidas mais radicais para manter
a ordem.
1968 foi um ano marcado pelos movimentos de oposio. A greve dos
cortadores de cana do municpio pernambucano do Cabo, em janeiro, sinalizou
para o descontentamento dos trabalhadores. Em abril, foi a vez dos metalrgicos
da cidade mineira de Contagem paralisarem suas atividades. Impressionado com
a amplitude do movimento, o Ministro do Trabalho, Jarbas Passarinho, concedeu
um abono salarial de 10% aos operrios.
Em julho, estourou a greve dos trabalhadores em Osasco. O governo,
endurecendo sua posio, no negociou com os operrios e ordenou a invaso da
COBRASMA, uma fbrica de material ferrovirio, quando cerca de quinhentas
prises foram efetuadas. A greve de Osasco recebeu declaraes de apoio da
Conferncia dos Bispos e de entidades estudantis.89
Setores da populao uniram-se aos protestos estudantis, que
provocaram uma desestabilizao no governo nesse ano. Ancorados em
reivindicaes especficas da categoria, os universitrios acabaram canalizando
seu descontentamento para uma oposio sistemtica ditadura militar. Apesar
das medidas repressivas adotadas pelas autoridades, os protestos se
multiplicavam.90
A situao parecia escapar ao controle governamental. Com a
intensificao dos protestos, mesmo os oficiais moderados passaram a apoiar um
endurecimento do regime. Acreditavam os militares que seria uma
desmoralizao para as Foras Armadas se elas no conseguissem vencer o
inimigo interno, que estava insuflando os movimentos de oposio.91Afinal de
89 Gorender, Jacob. Op. cit., pp. 155-157. Gorender critica a posio de Francisco Weffort, que concluiu que as greves de Contagem e Osasco foram espontneas. Para Gorender, estas greves foram organizadas e orientadas por agrupamentos de esquerda que se ramificavam nas empresas e dominavam os sindicatos de metalrgicos. 90 Os protestos estudantis so o objeto de estudo deste trabalho e sero focalizados nos prxim os captulos. 91 Scalercio, Marcio. Op. cit., p. 111.
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contas, a Revoluo de 31 de Maro tinha exatamente o objetivo de defender as
instituies democrticas da ameaa comunista.
Convencidos de que era preciso fechar ainda mais o regime, os militares
tambm sabiam que precisavam de apoio para isso. E os rumos da histria
comearam a caminhar a favor da ditadura. Os ventos da nova poltica
econmica comeavam a soprar favoravelmente ao governo. Os estudantes
comeavam a se atropelar com sua retrica radical, perdendo o apoio popular. As
aes da guerrilha urbana e os ataques terroristas de direita92 incutiam medo nas
pessoas. Os atentados promovidos pela esquerda e pela direita projetavam a
imagem de um pas convulsionado, beira de uma guerra civil. Parecia que
novamente a chave de interpretao da realidade elaborada pelas Foras Armadas
encont