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Em busca de explicações para o fogo Somos nós que o causamos e somos nós que o alimentamos. Como foi que tornámos o fogo o nosso pior inimigo? - p. 04

Em de explicações para fogo - ulisboa.pt · gigantes, passa por áreas ardi-das que se estranham num parque natural. Os guias cx-plicam que os vestígios de fogo são de queimadas

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Em busca de explicações para o fogoSomos nós que o causamos e somos nós queo alimentamos. Como foi que tornámos o fogoo nosso pior inimigo? - p. 04

Como tornámosos fogosum inimigotão assustadorO primeiro incêndiocom mais de dez milhectares de áreaardida em Portugalfoi em 1986. Em

pouco mais de30 anos entrámosnuma "novageração'' demegafogos, comdois a consumiremacima de 40 milhectares de floresta,matos, vidas. Dooutro lado doAtlântico, aCalifórnia ardenuma área que faz12 Lisboas. Comoé que o fogo setornou o nossomaior inimigo? Seráeste o novo normal?

PATRÍCIA JESUS

vem procura as paisagensirónicas de Yosemite, na Cali-fornia, a caminho dos monó-litos de granito e das sequoiasgigantes, passa por áreas ardi-das que se estranham numparque natural. Os guias cx-

plicam que os vestígios de

fogo são de queimadas con-troladas, feitas para permitiro crescimento das sequoias,que não conseguiriam rom-

per e afirmar-se tapadas pelo pequenomato. Durante séculos, o fogo foi "apenas"um fenómeno natural no campo, sobretu-do em tipos de clima como o português, se-melhante a partes da Austrália e da Califór-nia- além de ser essencial para o desenvol-vimento de algumas espécies, faz parte darenovação da paisagem e é uma forma efi-caz de limpeza. Hoje, porém, é assustadorde tão veloz e gigante. As portas de Yosemi-te, ardem 120 mil hectares, 12 vezes o tama-nho de Lisboa, na Grécia morreram 94 pes-soas em julho e a serra de Monchique foiconsumida durante a última semana.

Como é que o fogo se tornou o nossomaior inimigo? Como é que o tornámos tãoavassalador e destrutivo? E, mais grave, seráeste o novo normal?

É preciso recuar cerca de 30 anos para en-contrar o primeiro grande fogo em Portu-gal, que consumiu mais de dez mil hectares-foi em 1986, em Vila de Rei, Castelo Bran-co. No ano passado, o pior desde que há re-gistos, houve 214 grandes fogos, responsá-veis por cerca de 90% dos 500 mil hectaresde área ardida. E neste ano, com o país em

A reconstrução começalogo nas horas após o fogopassar e a prioridade égarantir que há água parao caso de as chamasregressarem.

27000MONCHIQUE. Arderam 27 mil hectares na última

semana, de acordo com o Sistema Europeu de

Informação de Incêndios Florestais. É o maior fogodo ano em Portugal e na Europa, mas não ficariano top 5 do ano passado.

alerta vermelho, o fogo de Monchique con-sumiu 27 mil hectares, tornando-se o maiordaEuropaem2olB.

"Ainda me lembro desse fogo de Vila deRei. Aí iniciámos uma nova geração de gran-des incêndios, que se prolongou até 2003,quando entrámos na terceira geração, comfogos de 20 mil hectares. Até ao ano passado,em que chegámos a ter incêndios com maisde 40 mil hectares", explica Luciano Louren-

ço, geógrafo e especialista do núcleo de in-vestigação científica em incêndios florestaisda Universidade de Coimbra (NICIF) . Nosanos 1970, consideravam-se grandes todosos incêndios com mais de dez hectares e

agora só contam os que têm mais de cem.Os números são esmagadores: entre 1980

e 2006, segundo dados oficiais, foram con-sumidos por incêndios florestais mais de trêsmilhões de hectares, o equivalente a toda aárea atual da floresta portuguesa. É como se

todo o verde desaparecesse num ano. Mas o

fenómeno também é muito pouco natural:o relatório de análise das causas de incên-dios florestais entre 2003 e 20 13 estima queapenas 2% sejam provocados por causas na-turais; o resto tem origem no homem, sejapor negligência ou fogo posto. Ou seja, so-mos nós que os causamos. E somos nós queos alimentamos - com calor e combustível.

O verão das alterações climáticasPara perceber como a situação piorou,é preciso recuar ainda mais, até à Revolu-ção Industrial, o marco que os cientistasapontam como o início do aumento dasemissões de gases de efeito de estufa quecausam as alterações climáticas. Os últimostrês anos foram os mais quentes desde quehá registos e este tem sido chamado o "ve-rão das alterações climáticas", como expli-cou o climatólogo Ricardo Trigo ao DN, nasemanapassada. Nas últimas semanas, va-

gas de calor fizeram mortos no Japão e noCanadá e impulsionaram incêndios queentraram no círculo polar ártico.

Um estudo de 2016 que analisou os fogosno oeste dos Estados Unidos, publicado naPNAS (Proceedings ofthe National Academyof Sciences) , concluiu que a área ardida pro-vavelmente duplicou devido às alteraçõesclimáticas e à sua influência na disponibili-dade de combustível - de floresta seca, sem

humidade, pronta para arder."Para além do senhor Trump, há muito

pouca gente com responsabilidade que ne-gue as evidências. As alterações climáticasestão atrazer mais ondas de calor, um maiornúmero de dias com temperaturas extremase períodos de seca. Os dados são razoavel-mente seguros", aponta José Luís Zêzere, in-vestigador do Centro de Estudos Geográfi-cos de Lisboa e especialista em riscos am-bientais.

Também em Portugal os fogos estão mui-to ligados às condições meteorológicas.Quando não é detetado no início, e com o es-

tado de tempo "ideal", um grande incêndioencontra em Portugal florestas desordena-das, que não estão limpas, e muito mato, tor-nando-se imparável, considera o geógrafo."Não é só Monchique agora. Pedrógão esta-va a arder há oito dias e só deixou de arderquando o tempo mudou, como aconteceucom este. A Califórnia está a arder há duas se-manas e os bombeiros já avisaram que sóem setembro vai parar. Incêndios deste ta-manho não se apagam."

No ElPaís, os engenheiros florestais MarcCastellnou Ribau e Alejandro Garcia Her-nández comparavam os incêndios de 20 1 7em Portugal a bombas atómicas, salientan-do como aintensidadecaloríficaemitidanosfogos de outubro foi 142 vezes a da bombaatómica de Hiroxima e foram queimados 14mil hectares /hora, o maior rácio de que hánotícia. "A energia emitida torna fisicamen-te impossível o seu controlo", concluem.

Quanto às alterações climáticas, não hánada a fazer - além de um combate a nívelmundial-, e portanto não podem servir de

desculpa, alerta. "Não controlamos, não vaidiminuir, só nos dá mais razões para ser-mos mais eficazes naquilo que podemosintervir."

Há outro fator que não podemos contro-lar e que muitas vezes até bendizemos: oclima. "O climamediterrânico é o único nomundo em que a estação quente é a esta-ção seca e como Portugal também temuma matriz atlântica há quase sempre hu-midade no ar que permite que a vegetaçãocresça até no verão. Não há a aridez do sulde Espanha, por exemplo. O inverno, poroutro lado, não é suficientemente frio paraimpedir o crescimento. Portanto, temos ve-

getação que cresce no ano todo. Se não é

tratada, vai arder."

Floresta abandonadaA situação atual é, portanto, a soma do quefizemos com o que deixámos de fazer noúltimo século, resume José Cardoso Perei-ra, coordenador do grupo For Eco - Ecolo-gia Florestal, do Instituto Superior de Agro-nomia (ISA) de Lisboa. "Estamos a come-çar a sentir a sério as consequências deuma quantidade de processos de transfor-mação da geografia humana, a demogra-fia, o uso da terra e ainda das alterações cli-máticas."

Quem viajasse por Portugal no início doséculo passado encontraria uma paisagemmuito diferente da que vemos agora. "Só9% da área do país era coberta por florestano início do século XX e até 1980 esse nú-mero aumentou para 39%", explica. Atual-mente, 9% do território está coberto por eu-caliptos.

À medida que a população saiu do inte-rior, primeiro para as cidades e depois parao estrangeiro, em meados do século XX, os

campos agrícolas e as pastagens foram-seenchendo de mato e florestas - as que ha-via, como as novas, deixaram de ser cuida-das, limpas, exploradas. Uma expansão flo-restal que se fez quase sempre à custa de pi-nheiro-bravo, primeiro, e do eucaliptonuma segunda fase, em grandes manchascontínuas que se tornaram barris de pólvo-ra. "Dou o exemplo de uma área muito afe-tada pelos incêndios do ano passado: Alva-res, em Gois, no Pinhal Interior. Está a per-der população desde 1911 e ao mesmotempo a área florestal disparou de 5% para96%", concretiza Cardoso Pereira.

A sul, em Monchique, Maria MartinsFrancisco é o símbolo dessa perda. En-quanto salva o que pode da casa que ardeu,a última habitante de Canivete lembracomo cresceu numa aldeia que tinha maisde dez famílias. Desde 1940 que o concelhoestá a perder população, estando agora re-duzido a um terço.

Às vezes, também há resultados negati-vos de evoluções positivas. "Amelhoria das

condições de vida fez que as pessoas naszonas rurais tivessem acesso a eletricidade,gás e mais rendimento, deixando de ser ne-

cessário, por exemplo, colher lenha, pinhase caruma para o aquecimento e até para co-zinhar. Aquilo que era recolhido, passou aacumular-se." Por outro lado, "muitas vezesos fogos paravam sozinhos, num pasto,porque não tinham como se alimentar.E mais gente nas áreas rurais significa maisgente a policiar, no fundo, capaz de detetarum fogo no início, na fase em que todos são

pequenos", acrescenta José Luís Zêzere.

Depois de desaparecerem aquilo queeram processos "socionaturais", a gestão queera feita pelos proprietários, que viviam da

agricultura e da floresta como rendimentocomplementar, faltou a noção de que erapreciso gerir o território rural e as florestas,provavelmente até aos primeiros grandes in-cêndios dos anos 1980. Sobrou umaflorestadesordenada e por limpar.

Eucalipto em regime de "epidemia"Para o engenheiro silvicultor Paulo Pimen-ta de Castro, autor do livro Portugalem Cha-mas, o expoente máximo desse desordena-mento é o eucalipto, que o preocupa mais

por continuar a crescer, em área. "Não é re-gime de monocultura, é epidemia. Temos amaior área relativa a nível mundial." O afas-tamento dos proprietários das suas terras é

propício a esta árvore nativa da Austrália,que é mais fácil de plantar e mais rentávelno curto prazo, defende, insistindo que é osímbolo do desleixo - 80% do eucaliptalnão é gerido, segundo dados de 2005, osmais recentes, que cita de cabeça.

Depois há um ciclo vicioso: quem vê ar-der os carvalhos ou os castanheiros queplantou sente-se com certeza mais tentadoa plantar eucaliptos. Desiste, de alguma for-ma. "O risco é tão grande que as pessoasnão gastam dinheiro a plantar essas árvo-res, plantam eucaliptos e fazem figas, au-mentando ainda mais o risco", conta JoséCardoso Pereira.

O resultado é uma floresta "muito pobre".Hámuitas razões para que sejamais diversi-ficada, defende o agrónomo, atépelarique-za e pelo tipo de produtos que se extraemdela. Mas, quanto ao fogo, o mais importan-te é o estado em que está a floresta, a limpe-za do sub-bosque. "Mais importante do quea espécie é o estado em que está", salienta.Afinal, uma floresta de carvalhos também

arde se não estiver limpa.

Como se quebra o ciclo?Apesar de o combate aos fogos ser sempreo foco quando chegamos a esta altura doano e somos confrontados com a floresta aarder, os especialistas consideram que issoé apenas o telhado; os alicerces da casa con-cretizam-se no ordenamento.

Não é,porém, possível voltar atrás no tem-po. "Não advogo simplesmente levar as pes-soas para o interior. Vão para lá fazer o quê?Enquanto não houver uma base económicaassociada, isto não se resolve", diz o geógra-fo José Luís Zêzere. "O que temos de fazer é

estimular as economias locais de forma a

que compense gerir aquele território, e commuito menos gente", acrescenta o agróno-mo José Cardoso Pereira.

Ou seja, é preciso dinheiro. Isso passapor percebermos todos que é preciso pa-gar a gestão e os serviços que aquele terri-tório nos dá a todos: o ar, a água, a paisa-gem. Da floresta que produz oxigénio e aju-

da a combater as alterações climáticas à

água limpa que vem da barragem - como ade Castelo de Bode, que abastece a GrandeLisboa e não aguentaria mais incêndioscomo os do ano passado sem se degradar,avisa José Luís Zêzere. E o que o especialis-ta chama de "custo de utilização dos ecos-sistemas".

Há, por exemplo, consenso sobre a neces-sidade de ordenar a floresta, rompendo as

grandes manchas florestais da mesma es-

pécie, as monoculturas, introduzindo árvo-res autóctones que compartimentam a flo-resta, folhosas, perto de linhas de água. Háconsenso sobre a necessidade de faixas dedescompressão, áreas agrícolas ou prados,a interromper as áreas de floresta, e faixas de

gestão de combustível. "Estamos a falar defaixas de 120 metros de largura com muitosquilómetros de extensão em que um pro-prietário não pode plantar nada", diz o pro-fessor do ISA.

Dinheiro e tempo, muito tempoMas como se faz isso quando 93% da flores-ta é privada? Os proprietários têm de ser

responsabilizados e compensados, defen-de Cardoso Pereira. "É preciso capacidadepara pensar em grande: quando se tem fo-gos de 20 mil hectares temos de ter capaci-dade de intervir numa área semelhante.Isso implica dinamizar a colaboração dos

proprietários, que têm de se entender",acrescenta. Implica, portanto, compensaraqueles que não vão poder plantar, os quevão sair prejudicados.

E por fim implica tempo e persistência."É um problema complexo e um trabalho decontinuidade, que não é tão visível, mas o

que é feito estámuito dependente de ciclos

eleitorais, dos resultados imediatos", criticaLuciano Lourenço, para quem tudo começana educação e no ordenamento. Estamos afalar de prazos de dez, vinte anos em que é

preciso investir, monitorizar os resultados enão desistir. Portanto, todos vamos ter de pa-gar, com a certeza de que sairá mais baratodo que ver o país a arder todos os anos, do

que ficarmos dependentes do tempo e dasorte. "Este ano fez-se alguma coisa", concluiLuciano Lourenço, "mas entre o que se fez eo que há parafazer..."

Somos nós

que provocamos98% dos fogos esomos nós queos alimentamos -com calor ecombustível.