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1 Em defesa da segurança: uma análise da dinâmica da sociabilidade nas reuniões e cafés Comunitários de Segurança 1 Orlinda Claudia de Moraes – PPCIS-UERJ/RJ Thiago Barcelos Soliva – IFCS-PPGSA-UFRJ/RJ João Batista Porto – UFF/RJ O objetivo desse trabalho é analisar a dinâmica da sociabilidade estabelecida entre polícia e comunidade e as suas implicações na condução da política pública de segurança no estado do Rio de Janeiro. Foram analisados dois contextos distintos: as reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança e os cafés comunitários realizados nos Batalhões da Polícia Militar. Ambos os contextos estão inseridos no bojo das mudanças que ocorreram no campo da segurança pública do estado do Rio de Janeiro, em 1999, as quais implicaram alterações significativas nas representações sobre a ordem pública. Essas transformações constituíram novas modalidades de gestão e mediação de conflitos, sendo a população um dos principais agentes envolvidos nesse processo. Nesse curto período de tempo, os cafés e, sobretudo as reuniões de conselhos, cresceram em volume e grau de importância como instância mediadora de conflitos. Contudo, mais do que isso, esses espaços puderam instituir, através da interação entre gestores públicos e usuários, laços de afinidade que ecoam na construção do controle institucional da segurança pública. Considerando essas questões, buscamos compreender como essas relações organizam sentidos diferentes sobre a segurança pública e como elas interagem com a gestão institucional. Os dados de pesquisa foram obtidos por trabalho de campo conduzido nesses espaços, o qual procurou privilegiar a observação dos rituais que regem os mesmos. Palavras-chave: segurança; conselhos comunitários de segurança; sociabilidade. 1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

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Em defesa da segurança: uma análise da dinâmica da sociabilidade nas reuniões e cafés Comunitários de Segurança1

Orlinda Claudia de Moraes – PPCIS-UERJ/RJ

Thiago Barcelos Soliva – IFCS-PPGSA-UFRJ/RJ

João Batista Porto – UFF/RJ

O objetivo desse trabalho é analisar a dinâmica da sociabilidade estabelecida entre polícia e comunidade e as suas implicações na condução da política pública de segurança no estado do Rio de Janeiro. Foram analisados dois contextos distintos: as reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança e os cafés comunitários realizados nos Batalhões da Polícia Militar. Ambos os contextos estão inseridos no bojo das mudanças que ocorreram no campo da segurança pública do estado do Rio de Janeiro, em 1999, as quais implicaram alterações significativas nas representações sobre a ordem pública. Essas transformações constituíram novas modalidades de gestão e mediação de conflitos, sendo a população um dos principais agentes envolvidos nesse processo. Nesse curto período de tempo, os cafés e, sobretudo as reuniões de conselhos, cresceram em volume e grau de importância como instância mediadora de conflitos. Contudo, mais do que isso, esses espaços puderam instituir, através da interação entre gestores públicos e usuários, laços de afinidade que ecoam na construção do controle institucional da segurança pública. Considerando essas questões, buscamos compreender como essas relações organizam sentidos diferentes sobre a segurança pública e como elas interagem com a gestão institucional. Os dados de pesquisa foram obtidos por trabalho de campo conduzido nesses espaços, o qual procurou privilegiar a observação dos rituais que regem os mesmos.

Palavras-chave: segurança; conselhos comunitários de segurança; sociabilidade.

                                                                                                                         1 Trabalho apresentado na 29ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.  

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Introdução

O personalismo nas relações é um tema constitutivo dos estudos sobre a

formação da sociedade brasileira. Este tema esteve presente em diferentes autores os

quais buscaram a partir de variados enfoques oferecer explicações acerca da nossa

formação sociocultural e da construção de um suposto caráter brasileiro. O principal

objetivo desses estudos era evidenciar aspectos significativos dos processos de

construção de nossa identidade como povo a partir da análise do fluxo da história. Para

esse conjunto de autores, a dicotomia “tradicional” e “moderno” era fundamental para a

compreensão do nosso passado e, simultaneamente, possibilitava vislumbrar propostas

de superação dos problemas para se alcançar um pleno desenvolvimento em diferentes

planos da vida social.

O autor que reflete de forma mais bem acabada este argumento é Sérgio Buarque

de Holanda. Em Raízes do Brasil, obra publicada em 1936, este autor lança as bases

para uma interpretação da nossa sociedade a partir de três grandes características

significativas: o “iberismo”, o “agrarismo” e o “patriarcalismo”. Tanto o agrarismo

quanto o patriarcalismo já haviam sido apontados por autores como Gilberto Freyre e

Oliveira Vianna como traços constitutivos da sociedade brasileira. Entretanto, o caráter

inovador das reflexões de Sérgio Buarque de Holanda reside na sua análise dos

impactos do processo colonizador – ou seja, dos padrões societários legados ao nosso

povo pelas sociedades ibéricas que encabeçaram este processo.

A herança ibérica é o núcleo central do argumento de Sérgio Buarque de

Holanda para explicar os dilemas pelos quais passam a sociedade brasileira. Para o

autor, as culturas ibéricas se encontrariam organizadas a partir de um traço essencial – o

culto à personalidade -, o que implicaria em uma forte valorização da individualidade

nas relações em detrimento de formas de solidariedade social. Os impactos dessa

inclinação contagiariam toda a vida social, dotando nossas formas de associação antes

de um forte apelo emocional de que por interesses racionalmente orientados.

A transposição desse indelével traço ibérico ao empreendimento colonizador em

nosso país resultou em um tipo de colonização marcada pelo agrarismo e por uma

estrutura familiar fortemente vinculada à antiguidade clássica. A família patriarcal

reproduz a síntese de todo este processo – escravidão e grande propriedade. Mas o grave

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problema é que esta estrutura vai impregnar toda a vida social, imiscuindo, segundo o

autor, família e estado; público e privado.

A forma acabada desse estado de coisas é o que o autor conceitua de “homem

cordial”, o qual articula duas dimensões centrais de sua análise: cultura e estrutura

social (FERREIRA, 1996). A noção de “homem cordial” irá justamente apontar para

essa profunda aproximação entre dimensões que deveriam ser diferenciadas – público e

privado -, mas que, no caso brasileiro, se encontram marcadamente combinadas,

promovendo entraves à efetivação da sociedade civil e da emergência de um Estado

impessoal. De forma sumária, o “homem cordial” expressa um “padrão de convívio”

entre nós que encontra respaldo em nossas raízes agrária e patriarcal. Em outros termos,

representa a ruptura de uma fronteira que deveria ser intransponível para a vida política

e social – aquela que estabelece limites entre o que é público e o que é privado. Essas

características associadas à importação das ideias liberais entre nós promoveram uma

profunda desigualdade na distribuição de recursos e privilégios sociais, o que será

reproduzido nas interações cotidianas e na vida social como um todo.

Outro autor que apontou o personalismo como uma marca constitutiva da

sociedade brasileira foi o antropólogo Roberto Da Matta. Mas, dessa vez, a ênfase recai

nos rituais através dos quais esse “culto à personalidade” ganha materialidade no fluxo

da vida cotidiana. Em Carnavais, malandros e heróis, sobretudo no capítulo Você sabe

com quem está falado? Da Matta (1983) problematiza situações ritualizadas nas quais a

hierarquia é acionada para “retornar as coisas aos seus devidos lugares sociais”. O uso

dessa expressão sugere uma ruptura fundamental na ordem das coisas – evidenciando as

desigualdade na distribuição do status e do prestígio social em nossa sociedade e as

implicações de acesso e tratamento que esta diferença encerra.

Uma dimensão importante da análise formulada por Da Matta (1983) se

relaciona a distinção básica entre os domínios das relações pessoais (pessoas) e o das

relações impessoais (indivíduos). Para este antropólogo, o ritual de separação

operacionalizado pelo uso do Você sabe com quem está falando? imprime uma

distinção entre aqueles que estão inseridos em relações – em termos bourdiesianos

possuem capital social – e aqueles que não são dotados desse aparato. A forma como

estas relações são negociadas no curso da vida social corresponde à pesada hierarquia

que divide a sociedade brasileira entre aqueles poucos que são beneficiados pela lei e

aquela multidão massificada que apenas sofre os seus impactos.

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A partir desses dois autores, encontramos elementos que justificam do ponto de

vista teórico e empírico a ausência entre nós de uma sociedade pautada por ideais

racionais de participação. Mas será mesmo que a sociedade civil inexiste nessas

condições ou ela teria assumido outros significados que Sérgio Buarque de Holanda e

Da Matta, ambos bastante influenciados pela experiência de democracia norte-

americana, não teriam vislumbrado? Dadas essas questões, este trabalho se propõe a

pensar como a participação social pode acionar de diferentes maneiras esses “padrões de

convívio” baseados na domesticidade, na aproximação e na docilização das instituições

públicas promovendo “aberturas” na burocracia, sem as quais o acesso aos serviços

públicos seria ainda mais dificultado.

Assim, o objetivo desse trabalho é analisar a dinâmica da sociabilidade

estabelecida entre polícia e comunidade e as suas implicações na condução da política

pública de segurança no estado do Rio de Janeiro. Foram analisados dois contextos

distintos: as reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança e os cafés comunitários

realizados nos Batalhões da Polícia Militar. Ambos os contextos estão inseridos no bojo

das mudanças que ocorreram no campo da segurança pública do estado do Rio de

Janeiro, em 1999, as quais implicaram alterações significativas nas representações sobre

a ordem pública. Essas transformações constituíram novas modalidades de gestão e

mediação de conflitos, na qual através da instituição de espaços híbridos compartilhados

entre Estado e sociedade, a população passa a ter uma nova perspectiva de atuação

nesse processo. Nesse curto período de tempo, os cafés e, sobretudo as reuniões de

conselhos, cresceram em volume e grau de importância como instância mediadora de

conflitos.

Contudo, mas do que isso, esses espaços puderam instituir, através da interação

entre gestores públicos e usuários, laços de afinidade que ecoam na construção do

controle institucional da segurança pública. Considerando essas questões, buscamos

compreender como essas relações organizam sentidos diferentes sobre a segurança

pública e como elas interagem com a gestão institucional. Os dados de pesquisa foram

obtidos por trabalho de campo conduzido nesses espaços, o qual procurou privilegiar a

observação dos rituais que regem os mesmos.

1.1. Metodologia

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Este trabalho possui uma abordagem qualitativa adotando como estratégias

principais de pesquisa a observação participante e a análise documental. A pesquisa de

campo foi conduzida nas reuniões dos Conselhos Comunitários de Segurança realizadas

entre os anos de 2013 e no primeiro semestre de 2014. Faz-se necessário, contudo,

problematizar essas incursões nas referidas reuniões uma vez que participei na condição

de Coordenadora dos CCS, cargo vinculado ao Instituto de Segurança Pública (ISP) 2.

Na condição de coordenadora ia quase sempre representando o estado, tendo assento na

mesa de autoridades.

Essa inserção diferenciada provocou em mim uma necessidade de relativizar a

dinâmica dos conselhos no tocante a forma como os mesmos administram os seus

conflitos internos e se relacionam com as autoridades do campo da segurança pública.

Trabalhar como gestora junto aos conselhos propiciou observar em diferentes reuniões

eventos que merecem receber tratamento analítico adequado, algo para além dos

relatórios gerenciais. Reunindo uma pequena equipe – um antropólogo e um estudante

do curso de segurança pública – venho reunindo informações sobre a dinâmica da

sociabilidade nos conselhos com o objetivo de compreender como ela evidencia

sentidos e práticas diferentes em torno da noção de segurança pública.

Os dados coletados nessas reuniões, ainda em curso, revelam importantes pontos

de tensão sobre o debate em torno da relação segurança pública e participação

comunitária. Dadas essas questões, busco aqui problematizar a minha inserção neste

campo, uma vez que como gestora e também policial militar me insiro no elenco de

nativos que compõe esse espaço de pesquisa. Mas, simultaneamente, como cientista

social formada, reitero a necessidade de refletir sobre a difícil interação entre polícia e

sociedade civil a partir das inserções nestes espaços. Assim, foi privilegiada nessas

reuniões a observação dos rituais de congraçamento e separação através dos quais a

segurança pública é negociada por cidadãos nem sempre conscientes da noção de “coisa

pública”.

Também foi importante para a produção deste artigo, a leitura das atas

produzidas pelos conselhos para registrar essas reuniões. Este leitura, ainda que aponte

para padronizações sobre um dado discurso, revela importantes aspectos sobre os temas

e os “culpados” sobre os problemas discutidos durante o curso dessas reuniões. A

                                                                                                                         2  O ISP é uma autarquia da administração indireta do estado do Rio de Janeiro, vinculada à Secretaria de Estado de Segurança (SESEG/RJ), responsável pela consolidação e divulgação dos dados estatísticos de segurança pública do estado e pela coordenação dos CCS.          

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leitura das atas possui ainda o mérito de informar a assiduidade e a quantidade de

pessoas que frequentam esses espaços, oferecendo dados quantitativos que

complementam esta análise.

1.2. O espaço da pesquisa: os cafés comunitários e os CCS

Os Conselhos Comunitários de Segurança foram instituídos em 1999, como

parte de um plano governamental de reestruturação da política de segurança pública no

estado do Rio de Janeiro3. De acordo com Teixeira: “Está ação estava inserida na implantação de uma política pública de segurança, que se fundamentou num entendimento mais amplo do conceito de ordem, tornando possível a existência de outros tipos de mediação para o gerenciamento de seus diversos conflitos e a redução da criminalidade” (TEIXEIRA, 2006, p. 205).

Os Conselhos Comunitários de Segurança têm natureza consultiva e vêm se

constituído como importantes canais de participação popular em conjunto com as

instituições policiais – Polícia Civil e a Polícia Militar. Atualmente o estado do Rio de

Janeiro possui 67 conselhos ativos distribuídos em mais da metade dos municípios

fluminenses. Uma das premissas que delineia a construção desses conselhos é o resgate

da credibilidade das polícias frente à sociedade, transmitindo confiança e sentimento de

segurança.

No tocante aos atos normativos que institucionaliza e regula o funcionamento

dos CCS há quatro resoluções emanadas pela Secretaria de Estado de Segurança

(SESEG/RJ) que tratam desse tema, sendo elas: a Resolução SSP Nº 263/1999, que cria

os Conselhos Comunitários de Segurança e estabelece algumas regras gerais sobre o seu

funcionamento, a Resolução SSP Nº 629/2003 que revitaliza os Conselhos

Comunitários das Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) e dentre outras

providências institui os cafés comunitários, a Resolução SSP Nº 781/2005 que aprova o

Regulamento dos CCS, a qual foi alterada posteriormente pela Resolução SESEG

78/2007.

Sobre o papel da Coordenadoria dos Conselhos Comunitários de Segurança

nesse contexto, vale dizer que, em 2004, a Secretaria de Segurança Pública (SESEG)

                                                                                                                         3 A Resolução SSP 263 de 26 de julho de 1999 cria as Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) e institui os Conselhos Comunitários de Segurança no estado do Rio de Janeiro  

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transferiu a coordenação do CCS ao Instituto de Segurança Pública (ISP) através da

Resolução SSP 781/2005, a qual: “Em resumo, criava regras mínimas para o

funcionamento dos conselhos e, além disso, em seus primeiros artigos, aponta a

presença do ISP na organização dos CCS, através da figura do Coordenador dos CCS.”

(MORAES, 2013, p.10).

Os CCS têm por função canalizar as demandas da comunidade de forma que os

integrantes das polícias e os demais órgãos e entidades do campo da segurança pública

possam maximizar suas ações em defesa da comunidade, bem como: estimular o

espírito cívico e comunitário; desenvolver um trabalho auxiliar de combate às causas da

violência, agregar as lideranças comunitárias, juntamente com as autoridades locais,

com o objetivo de planejar ações integradas de segurança pública; promover eventos

comunitários que fortaleçam o vínculo da comunidade com a polícia; estudar, discutir e

elaborar sugestões e encaminhamentos para as políticas públicas de segurança;

funcionar como fórum para a prestação de contas por parte da polícia quanto a sua

atuação local e, por fim, assumir a função de aproximar a sociedade e as instituições de

segurança pública através da perspectiva da prevenção.

Quanto a sua composição, os Conselhos Comunitários de Segurança são

formados por membros natos, efetivos e participantes. Os membros natos são os

representantes da Polícia Militar (Comandante do Batalhão) e da Polícia Civil

(Delegado Titular) responsáveis pela área de circunscrição do CCS4, sendo que a

participação dos representantes das polícias é obrigatória, ao passo que os

representantes da sociedade civil são voluntários. Os membros efetivos são

representantes de organizações atuantes na área dos CCS, ou ainda membros da

comunidade que voluntariamente manifestam seu interesse em vincular-se ao CCS. Essa

adesão é feita através do preenchimento de ficha cadastral. Eles ainda precisam atender

a uma série de requisitos previstos na resolução, dentre elas: ter idade mínima de 18

anos, não registrar antecedentes criminais, morar, trabalhar ou estudar na área de

circunscrição do CCS, ou em circunscrição vizinha que ainda não possua CCS

organizado e devem seguir as normas reguladoras dos Conselhos. Já os membros

participantes são aqueles que frequentam as reuniões do CCS, mas não possuem

nenhum vínculo efetivo com o mesmo (MORAES, 2013).

                                                                                                                         4 Normalmente esta corresponde a Área Integrada de Segurança Pública, todavia há situações em que a extensão da AISP e limites dos municípios torna necessário o desdobramento de mais de um CCS por AISP.  

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A estrutura mínima de uma diretoria de CCS é composta por cargos preenchidos

por eleição, são eles: Presidente, Vice-Presidente, 1º secretário, 2º secretário e Diretor

Social e de Assuntos Comunitários. É importante destacar que essa diretoria é formada

por representantes da sociedade civil. Quanto às dinâmicas de funcionamento, os

Conselhos se reúnem uma vez por mês, em reuniões abertas ao público, com horário e

local pré-definidos pela diretoria que devem ser informados ao Instituto de Segurança

Pública (ISP) para que seja feita a divulgação através da Coordenadoria dos Conselhos

Comunitários no site do ISP e da Fanpage dos CCS5.

Vale ressaltar que os CCS atuam geograficamente, respeitando os contornos da

Área Integrada de Segurança Pública (AISP), mas não necessariamente restritos a ela.

Cada AISP é estruturada com base nas áreas geográficas de atuação das Polícias Civil e

Militar. Dessa maneira, a configuração espacial de cada AISP é estabelecida a partir da

área de atuação de um batalhão de Polícia Militar e as circunscrições das delegacias de

Polícia Civil nela contidas. Uma AISP pode conter mais de um CCS. Essa existência

está condicionada as especificidades de cada região, a qual demanda ou não a

necessidade de mais conselhos6. O mapa a seguir traz a distribuição atualizada dos CCS

no estado do Rio de Janeiro e, tendo em vista as características de cada localidade e suas

dinâmicas sociais, esta configuração não é estática podendo sofrer alterações, tais como

a implantação de novos CCS, ou reativação de antigos, assim como a desativação de

conselhos já existentes, mas que não atenderam às condições para sua existência, como

presença de diretoria mínima ou devido a cometimento de outras infrações regimentais,

por exemplo.

                                                                                                                         5 A coordenadoria dos CCS desde 2013 criou uma página oficial na rede social Facebook.  6  Na região metropolitana, normalmente cada Área Integrada de Segurança Pública conta com apenas um CCS, todavia há situações em que a extensão da AISP e sua abrangência a mais de um município tornem o conselho pouco operativo, demandando assim a necessidade de um CCS para cada município da AISP.  

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Mapa 1 – Distribuição dos CCS no estado do Rio de Janeiro

MACAÉ

CAMPOS DOS GOYTACAZES

VALENÇA

PARATY

RESENDE

ITAPERUNA

PIRAÍ

SÃO FIDÉLIS

RIO CLARO

RIO DE JANEIRO

SILVA JARDIM

QUISSAMÃ

MAGÉ

PETRÓPOLIS

CANTAGALO

CAMBUCI

NOVA FRIBURGO

ARARUAMA

TERESÓPOLIS

SAPUCAIA

ITABORAÍ

MARICÁ

ITALVA

VASSOURAS

CARMO

ITAOCARA

QUATIS

RIO BONITO

BARRA MANSA

ANGRA DOS REIS

BARRA DO PIRAÍ

ITAGUAÍ

SANTA MARIA MADALENA

NATIVIDADE

ITATIAIA

BOM JARDIM

TRÊS RIOSRIO DAS FLORES

MIRACEMA

SAQUAREMA

CARAPEBUS

MANGARATIBA

NOVA IGUAÇU

CABO FRIO

CACHOEIRAS DE MACACU

PARAÍBA DO SUL

SÃO FRANCISCO DE ITABAPOANA

SUMIDOURO

GUAPIMIRIM

TRAJANO DE MORAES

DUAS BARRAS

CARDOSO MOREIRA

DUQUE DE CAXIAS

CASIMIRO DE ABREU

SANTO ANTÔNIO DE PÁDUA

SEROPÉDICA

SÃO JOÃO DA BARRA

BOM JESUS DO ITABAPOANA

PORCIÚNCULA

TANGUÁ

PATY DO ALFERES

VARRE-SAI

MIGUEL PEREIRA

AREAL

SÃO GONÇALO

NITERÓI

SÃO SEBASTIÃO DO ALTO

PARACAMBI

LAJE DO MURIAÉ

SÃO PEDRO DA ALDEIA

CONCEIÇÃO DE MACABU

SÃO JOSÉ DE UBÁ

RIO DAS OSTRAS

JAPERI

MENDESVOLTA REDONDA

APERIBÉ

CORDEIRO

ANGRA DOS REIS

MACUCO

ARRAIAL DO CABO

PINHEIRAL

SÃO JOSÉ DO VALE DO RIO PRETO

QUEIMADOS BELFORD ROXO

ENGENHEIRO PAULO DE FRONTIN

PORTO REAL

MESQUITA

MANGARATIBA

COMENDADOR LEVY GASPARIAN

IGUABA GRANDE

ARMAÇÃO DOS BÚZIOS

NILÓPOLIS

ITAGUAÍ

SÃO JOÃO DE MERITI

ARRAIAL DO CABO

Mapa  dos  CCS  – Estado*

CCS  ativos

Áreas  sem  CCS

CCS  em  reestruturação

*Mapa  produzido  com  base  nos  dados  da  Coordenadoria  dos  CCS,  atualizados  até  o  mês  de  janeiro  de  2014.

Fonte: ISP

Uma vez instaurado o CCS em sua área, sua diretoria em conjunto com a

população e instituições de segurança, devem identificar e analisar os problemas locais,

propondo soluções e avaliando as respostas e as soluções dos problemas demandados.

Embora os CCS possuam caráter consultivo, ou seja, suas eventuais deliberações não

produzem obrigação de fazer por parte dos gestores da segurança ou demais órgãos

públicos participantes, a prática vem demonstrando as possibilidades de influência e

contribuição dos CCS na gestão da segurança pública, a princípio em nível local.

Outro aspecto do trabalho desenvolvido pelos Conselhos Comunitários de

Segurança pode ser percebido e reconhecido através da adesão crescente, de novos

membros efetivos, representações de associações de bairro, de clubes de serviço, de

sindicatos, do comércio, da indústria, de bancos, de estabelecimentos de ensino, dentre

outras entidades públicas e privadas, além dos cidadãos que residem, trabalham ou

estudam na localidade.

Entretanto, é importante considerar que a participação social é assunto

relativamente novo no campo da segurança pública brasileira, com isso, até mesmo

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difundir tal ideia já se constitui num primeiro desafio, uma vez que esta não se

concretiza simplesmente a partir da institucionalização de espaços de diálogo em termos

legais. Aliás, o fato de esses espaços associativos serem criados pelo Estado já lhes

rendem críticas, pois em certa medida são entendidos como uma “política de cima para

baixo”.

Não obstante tais constatações, conforme vimos até aqui o estado do Rio de

Janeiro possui dois desses canais institucionais, cujo objetivo principal é promover a

aproximação entre polícia e comunidade, sendo eles os Cafés Comunitários e os

Conselhos Comunitários de Segurança (CCS). Os Cafés Comunitários são considerados

de natureza mais informal e, em linhas gerais, seriam encontros, normalmente cafés da

manhã, regularmente promovidos pelos batalhões da Polícia Militar sem regras rígidas,

enquanto os Conselhos Comunitários de Segurança têm natureza formal, são regidos

por legislação própria, com regras a serem seguidas pelos participantes, ou seja, polícia

e sociedade (TEIXEIRA, 2009).

Pode-se dizer que a existência formal dos Conselhos Comunitários de Segurança

e dos cafés comunitários é uma realidade, tendo em vista sua presença na maior parte

das 39 Áreas Integradas de Segurança Pública (AISP) do estado do Rio de Janeiro. O

que significa dizer que, em média, entre cafés e reuniões de CCS, são realizados a cada

mês cerca 70 desses encontros, em distintas localidades do estado, que permitem a

interação, ou pelo menos reúnem no mesmo espaço físico, policiais, gestores públicos

dos diferentes níveis governamentais, parlamentares, representantes de associações de

moradores, empresários, moradores, dentre outros atores.

Obviamente a consolidação e a efetividade desses espaços dependem do

desenvolvimento de novas formas de relacionamento entre polícia e comunidade, visto

que esse contato é historicamente marcado pela desconfiança mútua.

Passados quase quinze anos de seu surgimento oficial no Rio de janeiro, ainda

não há avaliações acerca da efetividade desses conselhos, não sendo possível afirmar

em que medida eles de fato têm, ou não, contribuído para a melhoria da segurança

pública nas áreas onde funcionam. Todavia, é plausível a hipótese de que esses contatos

regulares entre policiais e “civis”, tenham promovido mudanças nas práticas e

percepções de uns em relação aos outros, e é disso trataremos adiante.

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1.3. Cafés e Conselhos: espaços de interação e estratégias de mediação

Tendo em vista a natureza consultiva dos CCS e o caráter informal dos Cafés

Comunitários, contornar as frustrações decorrentes dos limites de competência desses

espaços em relação às expectativas dos participantes e ainda apontar soluções viáveis

para os problemas ali apresentados é um desafio que requer habilidade, tanto por parte

dos gestores da segurança pública local quanto dos representantes da sociedade civil.

Esses processos podem ser percebidos em algumas falas de um presidente de CCS: “O

conselho não tem poder de caneta!”. Por outro lado, esse mesmo presidente definiu o

CCS como “um órgão representante da sociedade civil junto aos poderes públicos”.

Quanto à função do CCS, tinha ele a seguinte percepção: “nossa função é pegar as

solicitações de vocês e encaminhar para as autoridades” 7.

A notória desproporcionalidade entre gestores públicos e sociedade civil no que

tange ao poder de decisão nesses espaços, a habilidade para o diálogo e a mediação são

fatores percebidos como determinantes para que esses encontros não se resumam a

meras estratégias de relações públicas com vistas à melhoria da imagem da polícia

frente à sociedade.

Nesse sentido, o local e a forma como esses encontros são realizados podem

favorecer, mais ou menos, a aproximação entre os atores sociais e os gestores públicos.

Não obstante a existência de atos normativos que regulam os CCS e a realização dos

cafés comunitários; na prática, há que se considerar que as diferenças entre as áreas do

estado produzem distinções em suas dinâmicas de funcionamentos, as quais vão desde a

estrutura física dos locais de reunião8 até o relacionamento entre a comunidade e os

gestores públicos locais.

Há reuniões que são mais ritualizadas, iniciadas solenemente com a execução do

Hino Nacional, com mestres de cerimônia e roteiros definidos. Por outro lado, há

também aquelas menos formais. Porém, todas conservam a formação da mesa das

autoridades como elemento comum e atribuem a elas grande importância. A

composição da mesa nas reuniões dos CCS é um momento em que as disputas pela

autoridade no conselho podem aflorar. Nesse sentido, ter um lugar na mesa principal

significa prestígio. Nesses termos, a quem compete decidir sobre a composição da                                                                                                                          7 Anotações de campo, declarações do presidente do CCS AISP16.  8 Existem conselhos que possuem locais de reunião fixos com recursos multimídia para apresentação de palestras e filmes. Há a outros, contudo, que realizam suas reuniões em salas cedidas pela Prefeitura, ou ainda, aqueles que optam por reuniões itinerantes realizadas em igrejas, escolas, clubes etc.  

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mesa? A princípio, no caso dos conselhos, ao Presidente do CCS. Já nos cafés, essa é

uma escolha do Comandante do Batalhão, o anfitrião do evento. Conforme observou

Moraes (2011) analisando a reunião de um CCS da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ainda sobre a composição da mesa das “autoridades”, no CCS da 23ª AISP é normalmente fruto da iniciativa do presidente do conselho o convite a outros participantes “especiais” para a reunião. No período de realização da pesquisa, deputados, vereadores, secretários do Executivo estadual e municipal e até um ex-ministro estiveram presentes às reuniões, ocupando lugar na mesa das “autoridades”. A decisão de quem e quando convidar parte normalmente do presidente do conselho. E estas presenças ilustres, ao mesmo tempo em que trazem prestígio para o CCS, geram reações controversas entre os participantes (MORAES, 2011, p.118).

Há CCS que acabam assumindo em suas reuniões alguns rituais das instituições

militares, como a entrega de medalhas e honrarias. Os CCS das AISP 09 e AISP 03 são

exemplos interessantes desse tipo de situação. As medalhas, muitos mais do que

reconhecimento, tende a promover laços afetivos entre estes CCS e as instituições

policiais. Interessante destacar que é também nesses conselhos que o personalismo

assume um caráter mais bem acabado, sendo manifestado em situações nas quais a

aproximação é verbalizada abertamente em diferentes ocasiões: “meus policiais!”, fala o

presidente de um desses CCS.

O uso do pronome possessivo implica duas ordens de coisas: manifestar uma

efetiva apropriação do público por essas pessoas, as quais parecem começar a perceber a

polícia como uma instância a quem podem confiar. Simultaneamente, o “meu” pode se

constituir como uma individualização do público – um recurso de apadrinhamento –

revelando desigualdades de acesso aos serviços públicos mediadas por relações de

proximidade.

A entrega de medalhas e honrarias, uma atividade recorrente em diferentes CCS,

também revela um outro componente significativo, a possibilidade dos CCS falarem a

mesma língua das instituições policiais. O reconhecimento da hierarquia policial e a sua

incorporação pelos CCS, menos que sinalizar para a cooptação dos CCS pelas

instituições de segurança é uma forma de amolecer a rígida hierarquia policial e

compartilhar das decisões sobre a segurança no estado. Nesse empreendimento, a

conversa de bastidores é um recurso de grande valia. É através dessas conversas

informais que se obtém respostas às demandas por segurança pública, até mesmo

influenciando na arquitetura do policiamento. É possível observar em várias reuniões a

troca de telefones entre as autoridades e os usuários de serviços. A possibilidade de ligar

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direto para a autoridade oferece uma agência a estes CCS, a qual abre possibilidades de

construção coletiva de estratégias de mediação de conflitos.

Nesse contexto ter acesso aos telefones dos comandantes e delegados de sua área

e com isso a possibilidade de ser atendidos por eles a qualquer hora, se constitui num

fator de distinção no relacionamento dos conselheiros e membros natos. Isso implica na

abreviação dos contatos via burocracia, tais como envio de ofícios, emails ou mesmo a

disputa pelas concorridas agendas desses gestores. Além disso, em alguns casos, esse

canal privilegiado de acesso pode ser mobilizado como forma de obter reconhecimento

e prestígio em determinados ambientes ou situações, como no caso observado por

Moraes, em que ao se sentir mal atendido pelo policial atendente do 190 o conselheiro

ameaçou ligar de madrugada para o comandante geral da PM. Outro conselheiro destacou a falta de conhecimento sobre os conselhos por parte dos atendentes do 190 (serviço de atendimento telefônico da PM): “Pelo menos nós, conselheiros, eles poderiam identificar. Aí eu disse para ele: ‘Vou acordar o Comandante Geral’” (MORAES, 2012:115)

Outro dado que pode ser destacado nessa interação são as parcerias e o apoio dos

conselheiros que mobilizam suas redes de contatos, quer seja junto aos poderes públicos

ou mesmo aos empresários locais, de modo a auxiliar na execução de algum projeto do

Batalhão ou Delegacia de sua área. Não são raras essas interlocuções promovidas por

conselheiros visando cessão de terrenos ou a obtenção de parcerias logísticas para a

construção de destacamentos policiais, delegacias, consertos de viaturas, dentre outras

iniciativas das polícias que eventualmente não contem com recursos públicos

previamente destinados. Em certos casos os próprios alimentos servidos nos cafés

comunitários (que normalmente são oferecidos pelo batalhão) são fornecidos pelos

participantes dos conselhos, por vezes foi possível observá-los chegando às reuniões

trazendo garrafas térmicas, pães, bolos adquiridos ou feitos com seus recursos

particulares. Apesar de reduzidas na região da Capital do estado as parcerias logísticas

ainda são comuns nas áreas interioranas.

Considerando, tratar-se a segurança pública e suas questões de ordem técnica,

como assuntos normalmente restritos aos policiais ou especialistas, é possível imaginar

que a participação social neste cenário se restrinja a informar as autoridades acerca dos

problemas em termos de “o que, quando e onde” cabendo então aos policiais o “como”

resolver. Todavia, percebe-se que em alguns casos pode ser bem-vinda a “intromissão”,

não especializada dos conselheiros, em questões como a captação de recursos, tais como

mais policiais e equipamentos, quer seja junto à Secretaria de Estado de Segurança ou

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mesmo ao Comando Geral da PM ou Chefia de Polícia Civil. Nesse sentido são

recorrentes os pedidos de agendamento de encontros de conselheiros com o Secretário

Estadual de Segurança e os Chefes das corporações policiais, bem como a promoção de

abaixo-assinados e entrega de ofícios solicitando aumento de efetivo policial, viaturas,

equipamentos, construção de delegacias, bem como pedidos para que determinados

policiais não sejam movimentados de suas unidades, dentre outras.

Em princípio, é possível perguntar: tais solicitações não poderiam ser

encaminhadas pelos próprios gestores às suas instituições? Entretanto, é necessário

salientar que tanto os comandantes de batalhão quanto os delegados são nomeados e que

suas instituições, guardadas as notórias diferenças, são marcadamente hierarquizadas e,

nesse contexto os representantes da sociedade, em tempos democráticos, têm mais

liberdade para brigar pelas parcelas de recursos para sua região. Percebe-se que nestes

casos, mais uma possibilidade de parceria, onde a comunidade diz aquilo que o gestor

tem vontade de dizer, mas não pode em função de seu cargo.

Corrobora com esse argumento a fala de um presidente de CCS proferida

durante uma reunião: “a delegacia tal está caindo aos pedaços, chove dentro, precisa de

reforma urgente” 9. Não é plausível imaginar que o delegado ou seus agentes, presentes

à reunião, não tivessem conhecimento de tal situação acerca de seu próprio local de

trabalho, sendo possível que estes tenham esgotado seus recursos junto à administração

superior com vistas à solução do problema, restando à comunidade “colocar a boca no

trombone”.

A interação nos cafés e conselhos permite a sensibilização dos conselheiros

assim como os demais participantes em relação às dificuldades do trabalho policial.

Com isso as mobilizações promovidas pelos conselheiros com vistas à melhoria das

condições de trabalho dos policiais, para além do ganho objetivo com a resolução do

problema, apontam também para a possibilidade de vínculos de solidariedade

construídos entre esses atores e, nesses casos, as cobranças deixam de ser feitas

diretamente aos comandantes e delegados, passando a ser direcionadas aos seus

superiores hierárquicos. Podendo assim produzir ganhos mútuos.

Ao considerar, mesmo que superficialmente, a participação comunitária a partir

dos Conselhos Comunitários de Segurança pública e cafés comunitários, percebe-se que

polícia e comunidade ainda estão em processo de aprendizagem. “Era absolutamente

                                                                                                                         9  A designação da delegacia policial foi omitida pelos autores.        

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estranho ver um paisano dentro do quartel” 10, afirma um comandante. O relato deste

comandante referindo-se à reação e estranhamento das primeiras reuniões de conselho

realizadas em unidades da polícia militar, com a presença de “paisanos” no ambiente da

“caserna”, revela alguns elementos determinantes desse longo processo de aproximação

ainda em andamento.

Percebe-se que essa visão dá sinais de mudança, sendo frequente nas reuniões

falas do tipo “o batalhão está de portas abertas” ou “a delegacia está de portas abertas”,

proferidas por comandantes de batalhão e delegados de polícia civil, em alusão a

possibilidade de a comunidade procurar essas instâncias, para além das situações de

crise – a construção de um registro de ocorrência, por exemplo. Como afirma um

delegado: “Porque ninguém procura uma delegacia para tomar um cafezinho ou dizer

que seu filho passou no vestibular”, o argumento desse profissional demonstra a

percepção desses espaços como locais onde naturalmente as pessoas não desejam estar.

A delegacia, principalmente, tem sido representada como um espaço de desonra onde a

presença de um “cidadão de bem” é moralmente reprovável.

Todavia, percebe-se que alguns conselheiros já demonstram se sentir à vontade

em algumas unidades policiais, especialmente os batalhões, onde com mais frequência

que nas delegacias, são realizadas solenidades de premiação de policiais, eventos

cívicos tais como cerimônia da bandeira, formaturas de policiais, entregas de medalhas,

dentre outras. Não é incomum que, após a realização das reuniões de CCS e cafés

comunitários – normalmente realizados no horário da manhã – alguns participantes

“civis” permaneçam no batalhão para o almoço onde compartilham o rancho dos

oficiais, local tradicionalmente destinado às refeições dos policiais de patentes mais

altas da unidade. A presença dessas pessoas nessas unidades constitui de um único

golpe a dissolução do espaço – que antes parecia intransponível – entre a sociedade e as

instituições policiais, vistas como endurecidas e extremamente hierarquizadas.

Outro aspecto importante observado pela interação entre polícia (Militar e Civil)

e sociedade é o alargamento dos sentidos atribuídos a noção de segurança pública. O

buraco na rua, a falta de iluminação pública, a ausência de coleta de lixo adequada

ganha nesses espaços sentidos associados à segurança pública. Este processo tende a

gerar tensões entre os CCS e as instituições policiais, mas, ao mesmo tempo, favorece

                                                                                                                         10 Cabe destacar que, apesar da frase, a princípio, denotar uma insatisfação do oficial, o mesmo se referia à reação de estranhamento por parte dos policiais ante a presença de civis nos quartéis da polícia  

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uma discussão interserccional do campo da segurança. Esta interseccionalidade

promove um aprendizado dos usos e atribuições das instituições públicas – eles ficam

cientes de quem é o responsável por cada problema. O convite cada vez mais frequente

de outras instituições – tais como: bombeiros, prefeituras, secretarias municipais,

regiões administrativas etc. -, até mesmo na mesa de autoridades, implica uma

especialização cada vez maior dos CCS em qualificar as suas demandas, um processo

somente possível a partir dessa cooperação ativa entre os CCS e as polícias.

Gráfico 1 – Participação de representantes de Poderes Públicos e Entidades

em Reuniões de CCS – valores percentuais – Jan a mai / 201411

Valores Percentuais

13,3 13,3

10,6 10,08,0 7,3 6,7 6,7 6,0 5,3 5,3

4,0 3,4

02468

10121416

Políc

ia Mi

litar

Políc

ia Ci

vil

Repr

esen

tantes

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Outra

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OAB

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ombe

iros

Entid

ades

Reli

giosa

s

Órgãos / Entidades

Fonte: Coordenadoria dos CCS/ISP.

A presença dessas autoridades tem despertado ainda o interesse de outros setores

da sociedade para os CCS, uma vez que estes espaços têm se constituído como caixas

                                                                                                                         11 Os dados apresentados neste gráfico foram produzidos a partir da leitura de 20 (vinte) atas de reuniões de CCS, produzidas pelos conselheiros através de um sistema de registro de atas produzido para este fim. Todavia nem todos os conselhos até o momento aderiram ao método e sistema confecção eletrônica das atas,esta adesão tem sido paulatina, razão pela qual o gráfico é ilustrativo e tem o objetivo de mostrar a participação de outros segmentos da gestão pública e sociedade civil organizada nas reuniões de CCS.  

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de ressonância dos diferentes problemas vivenciados por toda a comunidade – uma

espécie de associação de moradores ampliada, ou uma grande reunião de condomínio.

Assim, mais do que representantes da sociedade civil, os CCS têm sido procurados por

associações comerciais e de serviços cujo objetivo, ainda que individual, terminam por

oferecer respostas coletivas aos problemas enfrentados no campo da segurança pública.

1.4. “Café com bobagem?”: disputas e tensões em torno da noção de segurança

pública e participação comunitária

Por vezes, ao longo das inserções no campo na condição de gestor12 foi possível

ouvir a expressão “café com bobagem” proferida inadvertidamente por alguns policiais,

especialmente os mais jovens, ao se referirem de forma jocosa às reuniões dos CCS ou

café comunitário. Para além da possibilidade desses policiais simplesmente

desqualificarem estas reuniões como algo útil às polícias, essa expressão pode estar

relacionada aos tipos de assuntos ali tratados os quais, em alguns casos, passam ao largo

das questões estritamente policiais.

Nesses encontros, ao ser franqueada a palavra aos participantes, pode sair de

tudo. Desde pedidos de providências relativas a saneamento básico, lixo, população de

rua, perturbação do sossego, saúde, educação, meio ambiente, ordem pública,

iluminação, sistema de transporte, fornecimento de serviços de telefonia, ou ainda em

alguns casos é possível que algum participante utilize seus dois ou três minutos de fala13

para declamar uma poesia ou ler um texto de sua própria autoria.

Diferentes fatores podem influenciar no tipo das solicitações levadas ao CCS.

Nesse sentido, o fato de as reuniões e atas dos CCS constantemente fazerem referência a

problemas ligados a temas não policiais - sobretudo problemas da municipalidade –

pode indicar um sentido amplo da segurança pública por parte daqueles que procuram os

conselhos. Por outro lado, é possível que a ausência ou ineficiência dos espaços

legítimos e competentes para a resolução desses problemas façam do Conselho

Comunitário de Segurança uma espécie de catalisador da demanda reprimida de outros

órgãos, como é possível observar nas narrativas de algumas das atas eletrônicas de CCS,                                                                                                                          12 Até a conclusão deste artigo a autora esteve presente em mais de 80 reuniões entre CCS e Cafés Comunitários em distintas regiões do estado.  13 Para atender ao maior número de participantes o tempo de fala dos inscritos, normalmente são cronometrados, em geral entre dois e três minutos.  

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acessadas durante a pesquisa. Nessas atas, alguns participantes demonstraram conhecer a

natureza de sua solicitação, bem como o órgão encarregado de atendê-la. Todavia, na

ausência de resposta por parte dos mesmos, recorrem ao CCS.

A ênfase nesse aspecto dos CCS não significa que outras questões, consideradas

de segurança pública em sentido estrito, não sejam ali abordadas. Nesse contexto, as

solicitações se referem geralmente a aumento do efetivo policial, viaturas, criação de

delegacias e postos de policiamento. O efetivo é uma reclamação recorrente nesses

espaços.

Porém, a forma como os membros natos e as diretorias dos CSS lidam com as

solicitações e expectativas, que de início não dizem respeito às suas esferas de

competência, pode sinalizar o entendimento de que tais atores têm sobre a segurança

pública, ou mesmo o papel dos CCS.

É frequente observar nos discursos dos participantes a tentativa de relacionar os

problemas apresentados (lixo acumulado, árvore em risco de cair e muros em vias de

desabamento, etc.) com a questão da segurança pública, cuja falta de resolução poderia

transformá-los em problemas efetivos de segurança pública – “coisa de polícia”.

Entretanto, é importante considerar que situações como essas não podem ser tomadas

como regra para avaliação do entendimento dos participantes sobre o termo. Afinal,

tratam-se de discursos proferidos em arenas públicas onde estão em jogo, além de

recursos escassos, as performances e habilidades dos atores em legitimar as suas

demandas.

Embora não revelem exatamente o entendimento dos participantes dos CCS

sobre segurança pública, os desdobramentos das solicitações apresentadas podem

fornecer algumas pistas. Atos como: simplesmente informar não ser aquele o foro

competente, ou encaminhar as solicitações aos órgãos responsáveis ou, ainda, convidar

os representantes dos órgãos demandados para as reuniões onde possam responder

diretamente aos representantes da comunidade demonstram algumas possibilidades

dessas questões “não policiais” serem acolhidas e encaminhadas pelos CCS.

Porém, nas reuniões e cafés comunitários nem tudo se resume aos problemas de

segurança pública, quer seja em sentido ampliado ou estrito, esses encontros também

podem proporcionar situações constrangedoras tais como, os desentendimentos pessoais

e brigas internas de diretorias CSS, que por vezes são expostos em público nesses

encontros. Por outro lado, o descontentamento também pode ser direcionado aos

gestores públicos ou mesmo os próprios membros natos, em alguns casos a postura mais

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enfática, ou agressiva, por parte dos participantes do CCS pode desestimular a

frequência de gestores ou mesmo de moradores.

As trocas de comandantes de batalhão e titulares de delegacias também são

fatores que geram descontentamentos por parte alguns participantes desses espaços,

conforme visto até aqui o estabelecimento de laços entre comunidade e gestores policiais

pode levar certo tempo, o que significa dizer essas mudanças provocam o recomeço do

processo de aproximação, sendo frequente as reclamações do tipo “quando começamos a

conhecer e a nos acostumar com os comandantes e delegados eles são substituídos”.

Por outro lado, podemos observar que as autoridades policiais, por vezes se

demonstram saturadas com o “excesso de temas” tratados nessas reuniões bem como

com o demasiado tempo de duração das mesmas, que embora tenham duração

regulamentar de no máximo duas horas, há casos de reuniões que duram até quatro

horas.

A “bobagem” a que se referem na expressão já famosa entre os policiais – “café

com bobagem” – pode ser significativa para entender esse cansaço em relação aos

problemas lançados nessas reuniões. É comum, e não apenas entre policiais, a visão de

que o trabalho policial se resume a resolução de crimes, nesse sentido alguns deles têm

expectativas de nesses encontros com moradores colher informações privilegiadas sobre

crimes e criminosos o que normalmente é frustrado pelos pedidos de podas de árvores,

iluminação, etc. Quase sempre as polícias tentam promover uma distinção entre “coisas

de polícia” e outros problemas, definindo limites entre áreas de competência, as quais

não são respeitas nesses espaços. Este desrespeito não ocorre porque estes não conhecem

a especificidade dos serviços policiais, mas antes porque os CCS acabam se constituindo

como o único lugar onde estas pessoas podem reclamar diretamente com gestores

públicos da infraestrutura urbana e têm a possibilidade de ser atendidos.

Com isso, as reuniões dos cafés e Conselhos Comunitários de Segurança

oferecem, pelo menos uma vez ao mês, a oportunidade do encontro entre diferentes

segmentos da sociedade e poderes públicos. O que advirá destes encontros, se benefícios

públicos ou privados, dependerá dos atores envolvidos.

Referências bibliográficas

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Da Matta, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

FERREIRA, Gabriela Nunes. A formação nacional em Buarque, Freyre e Vianna. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 37, 1996, p. 229-254.

MORAES, Luciane Patrício Braga de. Falar, ouvir e escutar. Etnografia dos processos de produção de discursos e de circulação da palavra nos rituais de participação dos Conselhos Comunitários de Segurança. Tese de Doutorado em Antropologia apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFF. Niterói, 2011.

MORAES, Orlinda Claudia Rosa de. Conselhos Comunitários de Segurança Pública no Rio de Janeiro – Origens, Estruturas e Dinâmicas de Funcionamento. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ, Rio de Janeiro, 2012

TEIXEIRA, Paulo Augusto Souza. Os Conselhos e Cafés Comunitários de Segurança Pública/RJ no Contexto Democrático. In: LYRA, Rubens Pinto (org.). Participação e Segurança Pública no Brasil: teoria e prática. João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2009.

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