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Um estudo de caso da Tese da Maria Lívia Tourinho.
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2.7. EM NOME DO BEM, O PIOR PARA QUEM?
Nair era uma mulher de 53 anos que sofria intensamente não só por ter cirrose hepática, mas
especialmente pelas limitações que aquela doença lhe impunha. Viúva havia mais de dez anos, sem
filhos, queixava-se com frequência do abandono que sentia ao lembrar dos sobrinhos, filhos de seu
falecido irmão, a quem, com muita satisfação, referia ter dedicado boa parte de sua vida, seja
ajudando a criá-los, seja financeiramente. Sofria por acreditar que a “vida é uma troca” (sic), e que
aquilo que deu ficou como crédito. Hoje, o Outro não lhe paga a dívida, deixando-a “sem nada... na
pior” (sic).
Nair seguia o seu tratamento com rigor. Era assídua às consultas com a médica, que também era
muito dedicada e cuidava de Nair com uma atenção que, dizia a paciente, lhe fazia muito bem.
Entendia a relação com a médica como “justa” (sic). No entanto, foi chegada a hora de indicar o
transplante de fígado para Nair, e esta indicação não foi bem aceita, por mais clara e objetiva que
tenha sido sua médica. E embora entendesse as explicações e as razões pelas quais a médica se
dedicava a “convencê-la” (sic), Nair compareceu à consulta comigo e, não convencida, foi muito
convincente: “Não quero, Dr.ª Lívia, não vou fazer o transplante, não é para mim esse tipo de coisa.
Se tiver que morrer por causa dessa opção, que morra, cada um tem sua hora. Mas não vou topar.
Espero que Dr.ª X [a médica] me compreenda, e não me queira mal por isso.”
Sua médica não compreendeu, e nem por isso lhe queria mal. Pelo contrário: em nome do que
entendeu como seu Bem, ela foi insistente, lhe mostrou o bom caminho, acreditando que a vida,
ainda que prorrogada pelo transplante, valeria a pena! Diante da resistência da paciente, a médica
dirigiu a mim a sua demanda de convencimento, questionando, inclusive, se eu achava que ela
estava em condições psicológicas de assimilar as informações. Sim, ela tinha condições psicológicas
de assimilar as informações, e por isso mesmo se negava a aceitar o transplante. Recusando-se a
aceitar a posição subjetiva da paciente, Dr.ª X me disse que aquilo não poderia ficar assim, depois
de tanto investimento. Na consulta seguinte comigo, após a última consulta com a médica, Nair
chegou muito triste, mas convencida:
“Não é justo com a Dr.ª X o que eu estou fazendo. Estou decidindo pela morte, enquanto ela me deu
o seu tempo, o seu carinho, a sabedoria. Eu aceito o transplante. Não vou abandoná-la. Ela fez por
mim, vou morrer por ela” (sic). Seria uma troca justa?
A fala dessa paciente foi muito impactante para mim. Eis o analista numa situação muito, muito
preocupante. Ela associava transplante à morte, e aceitava morrer pela médica, que, por sua vez,
lhe oferecia vida. Havia ali um mal-entendido que a médica não só promovia, mas recusava-se a
escutar. Diante de tal situação, foi necessário intervir.
Na clínica com a paciente, trabalhei no sentido de interrogar essa associação transplante/morte, e
mais: por que haveria de morrer pelo Outro? Ela me disse apenas que não seria a primeira que faria
isso, e aos poucos recusava-se a falar, faltava às sessões. Quando comparecia, claramente
deprimida, dizia estar cumprindo o seu papel. “Que papel é o seu, Nair?”, perguntei. Ela respondeu,
sem muita convicção: “Eu pago o que devo, Dr.ª Lívia, e não suporto ser cobrada. O que devo à
senhora? Gratidão, talvez, nem sei, nunca entendi bem o que a senhora quer de mim.” Em meio ao
meu silêncio, ela continuou: “Acho sempre que o que a senhora quer é que eu fale, e eu falo. Isto me
faz bem, e a senhora deve perceber. Se a senhora queria mais do que isso, nunca disse, e eu
também não tenho como adivinhar. Mas à Dr.ª X eu devo minha vida.” E eu perguntei: “E é com sua
vida que você vai pagar?” Ela refletiu, saiu e não voltou mais.
No tocante ao que podemos chamar “intervenção do analista na vertente institucional”, na interface
com a clínica, pode-se dizer que, com a médica, a intervenção foi difícil. Frente ao seu pedido de
convencimento e avaliação das condições psicológicas de assimilação da paciente, o analista é
convocado mais uma vez a uma posição ética. E eu pedi uma conversa. Marcamos o que naquela
instituição se chama “interconsulta” com o médico, e nesta conversa se fez a intervenção. Coloquei
para ela que a paciente não só tinha boas condições psicológicas para assimilar informações, mas
também tinha uma história que interferia no seu modo singular de assimilação. Era importante que
eu transmitisse àquela médica que não se tratava de uma questão de dúvidas, mas de dívidas. Era
claro para mim que a aceitação do transplante se dava por essa via, e a médica, por sua vez, sem
nenhuma dificuldade de assimilação, me disse, relativamente satisfeita: “É isso mesmo! Você tem
razão, foi por aí mesmo que consegui convencê-la. É a nossa obrigação, salvar vidas. Se ela faz isso
por mim, melhor para ela.”
Ali se configurava a experiência difícil de verificar que a transmissão só se dá na relação, e naquela
relação, o que eu podia me fazia encontrar a impotência, mas também a tranquilidade de ter ido até
onde pude.
A paciente aguardou o transplante, e durante aquele período não compareceu às consultas comigo,
tendo me avisado que não viria mais. Encontrei-a algumas vezes no ambulatório, e ela me
cumprimentava, sem palavras. Até mesmo quando eu parava para ouvi-la, em meio à sala de espera,
o silêncio era a resposta.
Foi transplantada e sua cirurgia foi muito difícil, com intercorrências complicadas. Não fossem as
manobras complexas da equipe experiente, ela teria, como dizia um cirurgião, “ficado na mesa”. Na
UTI, o fígado enxertado não funcionava, e em estado muito grave, o caso de Nair fez a equipe solicitar
um re-transplante com prioridade. Fui ver a paciente, que podia falar, e a mim falou com o silêncio.
Estava morrendo.
Naquela mesma noite, a médica telefonou-me em casa, e me disse, muito chocada:
“Ela me chamou e me perguntou no ouvido se agora eu estava satisfeita.” Abalada, me pediu ajuda,
sem conseguir dizer mais nada. Marcamos um café da manhã no dia seguinte. Aliás, o “café” costuma
ser um “setting” analítico bastante para atender algumas urgências institucionais, como essa. A
paciente faleceu na madrugada, e a médica lembrava angustiada da pergunta da paciente, que ela
sentiu como agressiva, raivosa, e com muito sofrimento disse que só queria o melhor para ela. E
sabemos, pela lição psicanalítica, que é muitas vezes nesse ímpeto de levar o outro a fazer o que
achamos melhor (para quem?) que o conduzimos ao pior. É o que faz lembrar Mauro Mendes Dias
ao afirmar que:
A ideia de se dirigir ao pior conta com pouca aceitação. Principalmente quando se está voltado a
algumas finalidades na vida, que mantém como meta a realização unívoca da felicidade. Ponto que
Sigmund Freud, o pai da Psicanálise, fez questão de elucidar, afirmando que o sentimento de culpa
é capaz de levar ao fracasso os que triunfam. Portanto, a recusa ao pior tende a acentuar sua
potência, quanto mais a evitação é sinônimo de conquista de benefícios (FINGERMANN; DIAS, 2005,
p.107).
O caso foi discutido com a médica, que dias depois pediu a indicação de um analista, pois percebeu
que sua “aflição para curar” (sic) tem atrapalhado seu trabalho, sua vida. Freud (1912) nos
recomenda cuidado com o “furor sanandis”, deixando clara a importância de trabalhar com o desejo
do sujeito, fazendo disso o desejo de um analista.
Não é assim para a Medicina, não porque o desejo de um médico tenha que se sobrepor ao desejo
de seu paciente, mas talvez porque a prática médica tome como referência a Ética do Bem, e neste
sentido, todo ato médico se sustenta no que a Medicina entende ser o melhor para o Homem (nem
sempre para um homem), porque esse saber é o produto de sua pesquisa.
De acordo com o que nos ensina Lacan (1969-1970) na teoria dos discursos, todo aquele que no
laço social se coloca no lugar de agente como saber, sustenta o discurso universitário e tomará o
outro como objeto de seu saber, que se pretende universal, é um saber para todos. No discurso do
analista, o outro não é objeto de seu saber; o outro é o sujeito, que a partir de sua própria produção
coloca o seu saber do lugar da verdade. Quando se trata do saber sobre o que é melhor, nós
sabemos que entre o universal e o particular, está cada sujeito.
O caso foi discutido em reunião, apresentado pela médica e por mim, a equipe se deparou com uma
discussão sobre Ciência, discurso da Ciência, a verdade de cada um. Ali, na fala da médica, a
intervenção da analista aparecia como fundamental, mas num momento posterior, pois ela dizia que,
durante as interconsultas, não conseguira ouvir. Naquele momento, percebi que o efeito da minha
intervenção me colocara num lugar específico – não só no discurso dela, mas talvez no de todos: o
analista na equipe é uma prevenção! Uma espécie de conforto pairava no ar. Parecia conveniente
contar com alguém que fosse, para eles, uma espécie de garantia, e, no caso, a garantia de os alertar
dos perigos de fazer o que a Ciência impõe, o perigo de excluir o sujeito, ainda que em nome do seu
próprio Bem.
E o que se faz com esse lugar de garantia? O analista não é uma garantia, mas é tomado como tal,
e ainda na reunião, percebendo o lugar transferencial que doravante me seria designado, lembrei do
perigo de um analista, estrangeiro em terras médicas, se apegar a esse lugar, ainda que
imaginariamente, pois ele sabe que isso é um equívoco. É preciso sair dali antes que a lógica nos
tire.
Semanas depois, com o trabalho fluindo bem, numa reunião de equipe um médico recém- chegado,
Dr. Y, iniciava sua brilhante contribuição trazendo para discussão o caso de um paciente alcoólatra
que, em estado grave, pedia para ser transplantado, mas se recusava a parar de beber, posto que
desejava muito um fígado novo para beber por mais tempo. Sua intervenção fora no sentido de
convocar a família, já com pedido de internação psiquiátrica para desintoxicação e restrição do uso
de álcool, permitindo que o paciente viesse, em breve, a atender os critérios de inclusão na lista de
transplante.
Equipe em silêncio absoluto, o chefe da equipe me perguntou: “Você já o escutou?” Eu respondi: “A
quem?” Todos riram muito, de uma só vez, menos o médico novo (que não entendeu bem o que
estava acontecendo) e eu, que trabalhava atentamente. O chefe, ainda sorrindo: “Já escutou esse
paciente?” Eu: “Não, não o conheço.” Chefe: “Y, não repare não, você está vindo de terras
estrangeiras, mas aqui a coisa tem funcionado meio diferente, viu?
Esse paciente seu quer o transplante?” Dr. Y: “Claro que não, é um alcoólatra ativo! Temos que
trabalhar para que ele aceite o transplante, tenho certeza de que é necessário que se faça um
trabalho psicológico.” Eu: “Como assim, não quer o transplante? Ele não pediu para ser
transplantado?” Dr. Y: “Sim, mas o que ele quer é fígado novo para beber mais um pouquinho!!”
Algum outro médico aproveitou para brincar: “Então ele está certo. Como é que alguém pode ter um
fígado novo sem pedir um transplante?” Brincadeiras à parte, o chefe concluiu: “Pois, é, acho
interessante você conversar com a Lívia, eu não sei bem como te explicar isso, mas sei te dizer, com
certeza, que aqui no nosso Serviço o paciente não tem que aceitar o transplante, ele só vai se o
desejar.” E dirigindo-se a mim: “Agora sim, você pode escutá-lo (apontando para o Dr. Y)?”
Àquela altura dos acontecimentos, tive a impressão que algo mudara na posição da equipe. Falava-
se ali, com muita propriedade, de uma relação com a subjetividade. Talvez pelo que tinha acontecido
com a Dra. X, talvez por todo um percurso que vínhamos construindo juntos. Enfim, estava valendo:
em nome do Bem, era melhor que se escutasse cada sujeito.
MORETTO, M. L. T. O psicanalista num programa de transplante de fígado: a experiência do outro
em si. São Paulo: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, 2006.