Em Searas Do Timor Portugues

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Brasília (UnB) como requisito para obtenção do título de Mestre em Antropologia.

Citation preview

  • Universidade de Braslia Instituto de Cincias Sociais

    Departamento de Antropologia Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social

    Em searas do Timor Portugus: um estudo sobre as prticas de mediao da Diocese de Dli no

    perodo colonial (1949-1973)

    Alexandre Jorge de Medeiros Fernandes

    Braslia,

    junho de 2014.

  • 2

    Alexandre Jorge de Medeiros Fernandes ([email protected])

    Em searas do Timor Portugus: um estudo sobre as prticas de mediao da Diocese de Dli no perodo colonial (1949-1973)

    Orientadora: Kelly Cristiane da Silva

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Braslia (UnB) como requisito para obteno do ttulo de Mestre em Antropologia.

    Banca Examinadora: Kelly Cristiane da Silva (DAN/UnB Presidente) Maria Cristina Pompa (UNIFESP) Carla Costa Teixeira (DAN/UnB) Carlos Emanuel Sautchuk (DAN/UnB Suplente)

    Braslia,

    junho de 2014.

  • 3

    A Painho e a Mainha. Um obrigado de corao.

  • 4

    Agradecimentos No embalo de Caetano Veloso, escrevi essa dissertao. Com o baiano de Santo

    Amaro, escrevo esses agradecimentos. E, na presena de tantos que me ajudaram, tudo o que eu expresso, o meu desejo, parece pequeno. Muito muito pouco.

    Market e Riccardo, madrugada chegou, o sereno caiu e a gente teve um mundo completo de envolvimentos imprescindvel durante os anos de 2012 e 2013. Nunca pensei que era o incio da felicidade. Aquilo era//ser a felicidade. Eu s queria que no amanhecesse o dia, que no chegasse a madrugada. Eu s queria amor, amor e mais nada. Gustavo, agradeo-te pelo seu apoio imenso desde o incio. Ainda que estejamos distantes, gosto muito raro trago em mim por ti.

    Palominha, se tu drume eu descolo um Ara cor do cu de l. Quero expressar a minha eterna admirao por voc, que me recebeu de braos abertos na antropologia e que tem muito o que me ensinar. Nossa oposio Peixes/Virgem, no zodaco astral, rende. Francisco, suas falas francas, ainda que por vezes falaciosas, sempre foram escutadas com enorme ateno e respeito. Muito obrigado pela companhia. A tua presena desintegra e atualiza a minha presena. Raysa, um porto seguro, sempre to carinhosa e que compartilha das nossas nordestinidades. Voc uma onda do mar at gritar de felicidade, vem.

    Ana Cndida, Bruner Tonitelli, Cassianne Campos, Guilherme Moura, Graciela Froechlich, Fabiano Souto, Izis Morais, Janana Fernandes, Jose Arenas, Julia Sakamoto, Lediane Fietlze, Krislaine Andrade, Mariana Oliveira, Martiniano Neto, Natlia Silveira, Raoni Giraldin, Talita Vianna, e demais colegas da Kata: apenas a matria vida era to fina. Obrigado por acompanharem to de perto toda a trajetria que foi a composio desta dissertao.

    Professores Ricardo Roque e Lcio Silva, compartilhando o mesmo oceano atlntico que banha o litoral brasileiro, obrigado por me receber em terras lusitanas. navegar preciso, viver no preciso. Simone Silvestre, voc foi uma tima companhia naquele outono frio. Obrigado.

    Kelly Cristiane da Silva, sua orientao foi puro carinho e preciso, eficincia, tcnica e paixo, clareza na expresso de cada sensao. Acho que serei eternamente grato por tudo o que voc me proporcionou. Daniel Simio, viso do espao sideral onde meu ser antroplogo floresceu. Muito obrigado, mestre.

    Meus queridos painho Jorge e mainha Magda, eu nunca lhes disse, mas agora saibam: as profecias auto-realizveis que vocs lanaram para o meu futuro me fazem,

  • 5

    por uma via extremamente torta, chegar antropologia. A gratido por me darem um quarto de sculo no mais puro conforto me faz querer que vocs tenham orgulho do que eu sou e do que eu produzo. Nunca acaba, nunca, o nosso amor. Da cor do azeviche, da jabuticaba e da cor da luz do Sol... Eu vos amo.

  • 6

    O outro Eu no sou eu nem sou outro Sou qualquer coisa de intermdio Pilar da ponte de tdio Que vai de mim para o outro

    Mario de S Carneiro Poeta portugus (1890-1916)

    Para os judeus fiz-me judeu, a fim de ganhar os judeus. Para os que esto debaixo da lei, fiz-me como se eu estivesse debaixo da lei, embora o no esteja, a fim de ganhar aqueles que esto debaixo da lei. Para os que no tm lei, fiz-me como se eu no tivesse lei, ainda que eu no esteja isento da lei de Deus - porquanto estou sob a lei de Cristo -, a fim de ganhar os que no tm lei. Fiz-me fraco com os fracos, a fim de ganhar os fracos. Fiz-me tudo para todos, a fim de salvar a todos. E tudo isso fao por causa do Evangelho, para dele me fazer participante.

    I Corntios, IX, 20-23

  • 7

    Resumo Essa dissertao um esforo de imaginao etnogrfica para entender dimenses da ao missionria catlica promovida pela Diocese de Dli no Timor Portugus durante o perodo ps-segunda guerra mundial. Tal esforo foi estimulado pela leitura dos nmeros do peridico Seara. A partir da contextualizao dos processos que levaram emergncia da Diocese de Dli e dos objetivos a ela atribudos, argumenta-se que uma das principais funes de tal instituio e do peridico Seara consistia em harmonizar as aes dos missionrios em Timor com as diretivas vindas do Vaticano e do Estado Portugus. Com base em anlise etnogrfica, sugere-se uma ampliao da ideia antropolgica de conhecimento missionrio, argumentando-se que os missionrios tambm especulam, como objeto de interesse das misses, reflexes sobre como gerir relaes com diversos atores que direta ou indiretamente esto envolvidos nas prticas de missionao. Algumas regularidades e mudanas dos discursos veiculados em Seara no que diz respeito aos timorenses e s tcnicas de missionao so correlacionadas com regularidades e mudanas a dinmicas institucionais na Igreja Catlica (Conclio do Vaticano II) e do Estado Portugus (abandono do Estatuto do Indigenato), no contexto de descolonizao caracterstico do Ps-II Guerra Mundial. A partir de uma perspectiva diacrnica, essa dissertao ressalta mudanas nas formas de representar os nativos leste-timorenses e nas tcnicas de missionao voltadas a cristianiz-los.

    Palavras Chaves: Missionrios Timor Portugus Missiologia Conclio Vaticano II

    Abstract This dissertation is an effort of ethnographic imagination to understand the dimension of the catholic missionary action performed by the Diocese of Dli in Portuguese Timor during the post-Second World War time. Such effort was stimulated by the readings of the "Seara" journal editions. From the contextualization of the processes that made the Diocese of Dli emerge and the objectives attributed to it, it is argued that one of the main functions of such institution and of the "Seara" journal consisted in harmonizing the missionaries' actions in Timor with directives coming from both the Vatican City and the Portuguese State. Through ethnographic analysis, an amplification of the anthropologic idea of "missionary knowledge" is suggested, by arguing that missionaries also speculate, as an object of interest of missions, on how to manage relations with distinct subjects that are directly or indirectly involved in missionary practices. Some regularities and changes in the discourse appearing in Seara with regards to Timoreses and the missionary techniques are correlated with regularities and changes in institutional dynamics in the Catholic Church (Second Vatican Council) and in the Portuguese State (the repeal of the Statute of Indigenous Peoples Estatuto do Indigenato) in the context of decolonization typical from the post-Second World War time. From a diachronic perspective, this dissertation highlights changes in the way of representing the East-Timorese natives, and in the techniques used to Christianize them.

    Keywords: Missionaries Timor Portugus Missiology Second Vatican Council -

  • 8

    ndice Agradecimentos ................................................................................................................ 4 Resumo ............................................................................................................................. 7 Abstract ............................................................................................................................. 7 ndice ................................................................................................................................ 8 Nota sobre a redao da dissertao ................................................................................. 9 Introduo: A diocese de Dli em tempos portugueses .................................................. 10

    1. A Igreja Catlica e sua reaproximao ao Estado portugus (1930-1940)......... 14 2. A administrao das misses pela Diocese de Dli ............................................ 23 3. O peridico Seara como prtica de comunicao para a mediao ................... 31

    I. Seara: um peridico missiolgico ............................................................................. 42 1. O exerccio de mediao pela divulgao de cincias e objetos missiolgicos.. 45 1.1. A totalidade da missiologia .......................................................................... 48 1.2. A dinamicidade da missiologia pela experimentao .................................. 56 1.3. A estrutura social da missiologia ................................................................. 63 2. Uma definio etnogrfica sobre conhecimento missionrio ......................... 67

    II. A mediao pela (re)produo de missiologia (1949-1955) ...................................... 74 1. Nacionalizar e cristianizar .................................................................................. 75 2. Combater o secularismo e as seitas protestantes ......................................... 77 3. Formar integrantes da Igreja Catlica ................................................................. 79 4. Regular as alianas matrimoniais dos indgenas ................................................ 81 5. Etnografias para cristianizar e civilizar .............................................................. 83 4. Narrao de contos ............................................................................................. 96 5. A mediao pela produo e reproduo de conhecimentos ............................ 102

    III. Repensando o cristianizar civilizador (1956-1973) ........................................... 105 1. Dissociar o cristianismo do colonialismo (1956-1960) .................................... 106 1.1. Reformar a estrutura organizacional das misses ...................................... 111 1.2. Criar novas formas de apostolar ................................................................. 113 2. Seara durante o Conclio Vaticano II (1961-1964) .......................................... 115 3. Cristianizar e civilizar por meio da Igreja Conciliar (1966-1973) ................... 120 3.1. Reestruturar os poderes da Diocese ........................................................... 123 3.2. Tolerar as outras religies e o comunismo ................................................. 124 3.3. Nacionalizar os timorenses......................................................................... 126 3.4. Formar integrantes da Igreja ...................................................................... 126 3.5. Conhecer os timorenses para adaptar a liturgia cultura ........................... 129 4. As transformaes nas mediaes .................................................................... 134

    Consideraes Finais .................................................................................................... 136 Anexo I ndices remissivos do peridico Seara (1949-1964) ................................... 142 Anexo II Relatos de Padre Afonso Ncher no Boletim Salesiano ............................ 154 Anexo III Um exemplar da Revista Seara (Edio de 30-10-1971) .......................... 158 Referncias bibliogrficas ............................................................................................ 165

  • 9

    Nota sobre a redao da dissertao Algumas consideraes ticas e tericas so feitas quanto redao

    monogrfica:

    1. Para uma diferenciao entre discurso nativo e discurso do antroplogo e para manter uma diferenciao entre fontes primrias e fontes secundrias, as referncias das fontes primrias so colocadas em notas de rodap. Em relao s fontes secundrias, essas so referenciadas no corpo do texto no sistema autor, data (por exemplo, FERNANDES, 2014), e suas referncias completas esto no final da dissertao.

    2. Como se trata de uma etnografia de um fenmeno social que aconteceu entre os anos de 1940 aos anos de 1970, os tempos verbais pretrito perfeito do indicativo (por exemplo, missionrios foram, missionrios disseram) e prterito imperfeito do indicativo (por exemplo, os missionrios eram, a diocese escrevia) so preferencialmente utilizados, em vez do presente do indicativo (por exemplo, missionrios so, missionrios dizem). Tal estratgia narrativa serve para indicar que os textos apresentados na dissertao foram demarcados temporalmente. Ainda que se possa observar continuidades e descontinuidades com perodo contemporneo, tentei sempre expressar, mediante tal escolha, o carter circunstancial e datado dos discursos.

    3. A narrativa autoral faz uso, principalmente, do tempo verbal do presente do indicativo e do pretrito perfeito do indicativo para retomar ideias j expressas durante o texto, para se referir ao perodo da pesquisa de campo e para antecipar ideias que so expressas adiante. Releva-se que citar a obra de um autor no presente do indicativo (por exemplo, Geertz afirma) no significa a atemporalidade e universalidade desse autor. Assim, a ideia utilizar o pretrito perfeito para narrar aes dos nativos e o presente do indicativo para a bibliografia terica, a qual esta dissertao procura agregar reflexes.

  • 10

    Introduo: A diocese de Dli em tempos portugueses A Igreja Catlica Apostlica Romana foi uma das instituies que, semelhana

    dos imprios coloniais da Europa Ocidental, atuaram na sia e na frica. Apesar de j ter havido aes missionrias ao longo dos sculos XVII, XVIII e XIX, a partir do inicio do sculo XX, essa expandiu consideravelmente a sua atuao nos espaos no-europeus, enviando seus integrantes em regime de misso para transformar populaes e territrios distantes da Europa catlica.

    Semelhantemente a todas as colnias portuguesas, o Timor Portugus, que corresponde parte leste da Ilha de Timor, foi um dos territrios ocupados por missionrios no perodo ps-Conferncia de Berlin (1884-85), principalmente a partir de 1940. Assim, as misses no Timor eram administradas pela Diocese de Macau, tendo uma atuao mais intensa e organizada da Igreja Catlica desde 1877. No entanto, a partir de 1940, as aes institucionais da Igreja Catlica no Timor Portugus comearam a ser promovidas pela recm-criada Diocese de Dli, de modo que os integrantes da Igreja Catlica (padres, freiras e irmos) que atuavam no Timor Portugus comearam a ser subordinados a essa Diocese.

    Nos seus primeiros trinta e cinco anos (1940-1974), a Diocese de Dli agiu em conjunto com o Estado Portugus. Esse perodo tambm significou um grande investimento no envio de missionrios e na construo de aparelhos da Igreja para a evangelizao do territrio. Conforme sugere Almeida (2012, p. 42), ao citar uma estatstica apresentada pelo Bispo de Timor, Jaime Goulart, no ano de 1999, a criao da Diocese de Dli teve como efeito um aumento na quantidade de pessoas e de aparelhos envolvidos no projeto de cristianizar o Timor Portugus, o que ocasionou um considervel aumento de catlicos na Ilha.

    A seguinte estatstica, trazida por Almeida (2002), que apresenta o considervel aumento de fiis catlicos, pessoal missionrio e aparelhos fsicos envolvidos, corrobora a sugesto de que a Diocese de Dli teve um papel essencial na fixao da Igreja Catlica no Timor Portugus:

    Em 1941 Em 1966 Catlicos 29.899 152.151 Sacerdotes 21 52 Irmos Religiosos - 8 Irms Religiosas 20 41 Professores Catequistas - 58 Monitores catequistas 5 54 Catequistas 42 56 Parquias 1 3

  • 11

    Misses 9 12 Internatos Masculinos 1 4 Internatos Femininos 3 4 Externatos Masculinos - 30 Externatos Femininos - 4 Peridicos Diocesanos - 2

    Os efeitos desta atuao se fazem sentir contemporaneamente, visto que Timor-Leste, o estado-nao que sucedeu o Timor Portugus, tem uma populao majoritariamente identificada enquanto catlica, que corresponde a 90% de sua populao (BUREAU OF DEMOCRACY, HUMAN RIGHTS, AND LABOUR, 2007). Assim, embora seja consenso que o nmero de cristos no que hoje reconhecemos como Timor-Leste tenha aumentado vertiginosamente durante a ocupao indonsia como efeito do Panchasila (SILVA, 2007; BOARCCAECH, 2013; FIDALGO, 2012) que obrigava todo cidado indonsio a ser adepto de uma religio monotesta, verdade tambm que o incio da implantao da Igreja Catlica no Timor e sua capilarizao se deram no perodo da colonizao portuguesa, ainda que nominalmente no tenha sido um momento de um grande nmero de converses.

    A experincia colonial da Igreja Catlica e do Estado Portugus, por sua vez, ainda possui ressonncia no imaginrio compartilhado por elites leste-timorenses que esto construindo o estado portugus. Conforme se observa em determinados estudos realizados por leste-timorenses (PAULINO, 2011), a revista Seara, peridico produzido por missionrios durante aquele perodo, atualmente compreendida como um relato que permite acesso aos elementos que constituem o leste-timorense. Nesse sentido, possvel sugerir que o passado colonial e os seus vestgios so fontes de construo de uma comunidade imaginada (ANDERSON, 2012).

    No entanto, ainda que sejam feitas relaes de causalidade nos estudos antropolgicos contemporneos e que determinados setores leste-timorenses se apropriem desses fenmenos para dar sentido s experincias contemporneas, h um relativo vcuo na produo historiogrfica e antropolgica sobre dilemas e reflexes cotidianos que marcaram a atuao dos missionrios no Timor Portugus. Os poucos investimentos de pesquisa scio-histrica sobre esse perodo buscaram compreender as razes pelas quais algumas populaes de Timor Leste se converteram ao catolicismo (ALMEIDA, 2012; FIDALGO, 2012) ou realizar biografias de algumas das principais figuras da Igreja Catlica em Timor Leste (PAULINO, 2013; BOUZA, 2012).

  • 12

    Assim, ciente das poucas reflexes sobre o tema, propus-me a compreender etnograficamente os desafios administrativos da Diocese de Dli no que diz respeito s suas aes institucionais, especificamente no perodo de 1949 a 1973. Nesse sentido, sabendo que Portugal um pas onde est depositado diversos vestgios sobre a experincia missionria no Timor Portugus, realizei uma pesquisa de campo para imaginar etnograficamente essa experincia colonial1.

    Diante das possibilidades de produo de dados empricos decorrente de uma experincia de campo em arquivos e bibliotecas em Portugal2, elegi Seara, um peridico escrito pelos administradores da Diocese de Dli, como minha principal fonte de reflexo para interpretar certas dimenses das prticas de ao e reproduo da Igreja Catlica e de seus missionrios em Timor. Segundo Vicente Paulino, esse peridico, publicado entre os anos de 1949 a 1973, foi um dos principais registros da atuao missionria em Timor.

    Produto de uma determinada poca e de um determinado espao, a Seara hoje, de acordo com alguns padres timorenses e alguns fiis nomeadamente aqueles que tm profunda ligao com os missionrios europeus , como um dos mais preciosos testemunhos simblicos das misses catlicas de Timor (PAULINO, 2011, p. 3).

    Entre outras razes que sero explicadas ao longo da introduo, escolho esse perodo histrico (1949-73) por corresponder, parcialmente, ao momento em que as misses religiosas catlicas foram administradas pela Diocese de Dli (1940) at quando Estado portugus deixou de ser provncia ultramarina de Portugal (1975) e porque a criao da Diocese de Dli e sua atuao foram pontos essenciais para a constituio de uma atuao mais potente da Igreja Catlica em Timor Leste.

    Nessa introduo, busco situar o leitor no universo de ao social dos missionrios catlicos no Timor Portugus no perodo que antecede Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e contextualizar como era a administrao das misses religiosas

    1 A pesquisa de campo foi realizada durante o perodo de 18 de setembro a 09 de dezembro de 2013 em

    Lisboa, onde produzi a maior parte dos dados empricos desta dissertao. Em Lisboa, os materiais mais substanciais que partem de um contexto semntico (missionrios em Timor Portugus) e temporal (1940-1975), foram encontrados nos seguintes depsitos de arquivos, livros e peridicos: Biblioteca Nacional de Portugal, Sociedade de Geografia de Lisboa, Arquivo Histrico Ultramarino e Arquivo Histrico Diplomtico. Meu acesso ao peridico Seara se deu na Sociedade de Geografia de Lisboa e na Biblioteca Nacional de Portugal. 2 Outros dados empricos foram produzidos durante a estadia em Lisboa mediante entrevistas com

    algumas pessoas que estiveram em Timor entre 1940 e 1974. Outras informaes tm origem nos relatos de missionrios salesianos no Timor Portugus registrados no Boletim da Congregao Salesiana de Portugal. No entanto, diante do pouco material produzido por meio de relatos orais e pela ausncia de tempo para aprofundar a leitura do Boletim Salesiano, estes so utilizados apenas residualmente . Provavelmente h diversos registros referentes misso religiosa em Timor Portugus em outros espaos que permitiriam descries mais densas sobre esse fenmeno, mas que no foi possvel ter acesso.

  • 13

    neste espao. Ao fazer isso, apresento tambm parte das questes que orientam minhas anlises no mbito dessa dissertao.

    Assim, a partir de pesquisas historiogrficas e de material primrio publicado pela Agncia Geral das Colnias e pela prpria Diocese de Dli, indico que a formao dessa foi fruto do fortalecimento da cooperao entre o Estado Portugus e a Igreja Catlica. Argumento tambm que a Diocese de Dli, em sua origem, teve como papel conectar as cpulas da Igreja Catlica e do Estado Portugus com os diferentes integrantes da Igreja que atuavam no Timor Portugus, harmonizando as diferentes agncias para gerar uma unidade institucional.

    Figura 1 - Capa do Boletim Geral das Colnias

    Diante de tal contexto, demonstro que o peridico Seara era uma ferramenta utilizada pela Diocese de Dli para realizar essa atividade mediadora, figurando como um dispositivo pelo qual Diocese de Dli comunicou os projetos e anseios das cpulas das

  • 14

    instituies metropolitanas3 (Estado Portugus e Igreja Catlica no Vaticano e em Portugal) para os agentes missionrios em Timor.

    Dada a constatao de que a principal inteno dos editores do peridico Seara - minha principal fonte de pesquisa - era exercer e fortalecer as aes de mediao da Diocese de Dli, essa dissertao busca compreender como tais mediaes ocorriam, em termos de forma e contedo. Subsidiariamente, proponho-me a compreender em quais condies estas prticas de mediao se tornavam possveis, como a Diocese de Dli dava sentido s instrues vindas das instituies metropolitanas para o contexto colonial timorense e as mudanas pelas quais as comunicaes expressas em Seara passaram ao longo dos vinte e cinco anos (1949-1973) cobertos nessa dissertao.

    1. A Igreja Catlica e sua reaproximao ao Estado portugus (1930-1940) Segundo Madalena de Almeida (2012), a atuao dos missionrios em Timor-

    Leste no perodo anterior ao sculo XX foi bastante incipiente, apesar de haver catlicos em Timor desde o sculo XV. Essa teloga afirma que as misses catlicas em Timor- Leste, durante os anos de 1516-1834, foram administradas por frades dominicanos de origem portuguesa. Os frades eram, em conjunto com mercadores e marinheiros, os nicos europeus que estiveram na ilha at 1701, quando os funcionrios do Estado Portugus chegaram. Aps a expulso das Ordens Religiosas de Portugal e das colnias em 1734 - ato movido por Marqus de Pombal -, a Arquidiocese de Goa enviou sacerdotes seculares para Timor.

    Durante a primeira parte do sculo XIX, a atuao missionria em Timor Leste teria sido tambm precria (ALMEIDA, 2012). Entretanto, em 1877, por determinao do papa Pio IX, a parte portuguesa da ilha de Timor comeou a ser administrada pela Diocese de Macau. A partir deste momento, houve um maior investimento nas misses, com o desenvolvimento de aes pastorais, instruo literria e de ofcios produtivos.

    No entanto, com mais um movimento anticlerical em Portugal em 1910, tornado recentemente uma Repblica, os missionrios foram expulsos do Timor Portugus (ALMEIDA, 2012, pp. 36-37). Pelo fato da proclamao da Repblica Portuguesa ter sido um momento de rompimento da relao com a Igreja Catlica, a atuao dessa foi relativamente abalada. Somente com a nomeao de D. Jos da Costa Nunes para Bispo de Macau em 1924, missionrios administrados pela Diocese de Macau voltaram a atuar

    3 Quando escrevo metropolitano, refiro-me tanto ao Estado Portugus no territrio portugus na Europa

    quanto Igreja Catlica em Portugal e a Igreja Catlica no Vaticano.

  • 15

    no Timor Portugus, cumprindo um plano pastoral que reabriu uma escola de Artes e Ofcios e de professores-Catequistas (ALMEIDA, 2012).

    Figura 2 - D. Jos da Costa Nunes, Bispo de Macau, em visita ao Timor Portugus (1937).

    Se houve desavenas durante o perodo de proclamao da Repblica, a partir da dcada de 1930, os laos de cooperao com o Estado portugus comeavam a ser reatados.4 Desde 1936, a Santa S e o Estado Portugus estiveram em negociaes para a construo de uma agenda compartilhada, ainda que houvesse conflitos quanto a diversos pontos, como a restituio de bens para a Igreja depois da revoluo e os efeitos civis do casamento cannico (CRUZ, 1997).

    Tais movimentos de cooperao entre a Igreja Catlica e o Estado Portugus, que desencadearam na formao de uma Diocese no Timor Portugus, so observveis por diversas comunicaes entre integrantes da Igreja e do Estado, que se encontram no Boletim da Agncia Geral das Colnias.5 Em um texto de 1934 que narra o pedido de

    4 Em certo sentido, no perodo de anlise em questo, Igreja Catlica e Estado Portugus foram entendidos

    como diferentes grupos. Isto pode ser explicitado por um argumento histrico. Em 1910, com o surgimento da Repblica Portuguesa, as novas elites governantes de Portugal realizaram diversas aes anticlericais semelhantes ao que aconteceu durante o perodo de Marqus de Pombal, que acabaram por modificar as posies de pessoas identificadas como Clero na organizao do at ento Reino Portugus (CRUZ, 1997). 5 O Boletim da Agncia Geral das Colnias foi um rgo de propaganda do Ministrio das Colnias. Por

    buscar divulgar o legado do colonialismo portugus, os textos deste Boletim foram feitos para leitores em geral. Atualmente, os volumes desse Boletim podem ser acessados no stio eletrnico Memrias de frica e do Oriente (http://memoria-africa.ua.pt/). O acesso de leitura desse material ocorreu ainda no Brasil, fazendo uso dos ndices remissivos encontrados em cada volume para encontrar os relatos mais especificos.

  • 16

    maior financiamento das misses religiosas nas colnias portuguesas, o Bispo de Macau, Dom Jos da Costa Nunes, escreveu um relato para o Ministro das Colnias de Portugal. Publicado com o ttulo Misses de Timor, o relatrio narrou a situao das misses catlicas no ano de 1933, dando destaque grande quantidade de pagos que existiam no Timor Portugus e a pouca quantidade de missionrios:

    Conforme o preceituado no artigo 28 do decreto n 12.485, de 13 de outubro de 1926, venho apresentar a V. Ex o Relatrio das Misses Catlicas Portuguesas de Timor, referente ao ano de 1933. Acabo precisamente de as visitar. Constituem elas duas Misses Centrais Lane e Soibada das quais dependem os seguintes postos missionrios: Dli, Liqui, Maubara, Fatumasse, Manatuto, Lacl, Laleia, Vernasse, Baucau, Viqmeque, Lacluta, Luta, Barique, Laclbar, Alas, Suro, Bobonaro, Atsabe, Batugad, Emera e Ocssi. Apenas Lane, Soibada, Dili, Manatuto, Alas, Suro e Ocssi tm missionrios permanentes. No esto, porm, as outras misses abandonadas, no s por haver em qusi todas professores e catequistas, mas ainda por serem visitadas, ao menos de dois em dois meses, pelos missionrios que as tm ao seu cuidado. Com 14 sacerdotes apenas, dando-se ainda a circunstncia de alguns estarem ocupados exclusivamente em obras escolares, impossvel colocar permanentemente missionrios frente de todos os postos e muito menos abrir novas misses, como tanto o esto reclamando as necessidades de evangelizao e at os prprios timorenses pagos. Na verdade, por bem poucos lugares passei agora sem receber comisses de chefes indgenas com o rgulo frente, instando por que lhes mandassem padres, professores e catequistas. E era de ver a tristeza que deles se apoderava quando lhes dizia no me ser possvel, por enquanto, satisfazer os seus desejos, que meus tambm eram, tanta a falta de pessoal que tinha.6

    Alm de afirmar o pouco nmero de missionrios para o Timor Portugus, pode-se observar uma intencionalidade do Bispo de Macau em constituir a noo de que ter uma grande quantidade de pagos no Timor Portugus era um problema tanto para as misses quanto para o Estado Portugus, na medida em que o paganismo colocava em xeque a eficcia das aes coloniais naquele territrio. Nesse sentido, o Bispo afirmou que aumentar a atuao dos missionrios melhoraria a colonizao da ilha:

    A pacificao completa da ilha; a sua inteira submisso ao domnio portugus; a melhor organizao dos servios missionrios; a difuso da instruo ministrada nas nossas escolas, tendente no s a abrir estes crebros rudes, mas ainda a fazer dos indgenas cristos mais conscientes e tenazes na sua f; a esperana de que no passado mais de uma vez aniquilaram a obra missionria ultramarina tudo isto nos d garantia de que a actual evangelizao de Timor no mais sofrer intermitncias e ir, ao contrrio, avanando cada vez mais.7

    Noutro relatrio, o Bispo de Macau tentou mais uma vez chamar a ateno do governo portugus para que este patrocinasse ainda mais as misses religiosas, sugerindo que mandasse os funcionrios de Estado cooperar com os missionrios e enviasse mais recursos para a Igreja Catlica como meio de soluo dos problemas para a colonizao

    6 Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Vol. XI, n115, 1935, p. 152 156.

    7 Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, Vol. XI, n 115, 1935, p. 156.

  • 17

    do Timor Portugus. Por tal razo, o Bispo de Macau afirmou que as construes de escolas agrcolas pelo territrio poderiam ser uma forma conjunta de o Estado Portugus e da Igreja atuarem a fim de colonizar e evangelizar.

    Obrigar o preto a trabalhar, ensinar-lhe arte e ofcios, aproveitar-lhe a mo de obra, mas sem que le veja, prticamente e pessoalmente, a vantagem do trabalho e do ensino, criar nele dio ao trabalho, dio ao ensino, dio ao dominador, dio a empresas e iniciativas pblicas ou particulares. por isso que eu defendo uma instruo profissional, que possa ser utilizada no meio indgena e em favor do indgena.8

    Como se tratou de um relatrio para o Ministro das Colnias, o Bispo de Macau acabou se focando para o que foi primordial naquela lgica colonial da poca: produo de trabalhadores para o enriquecimento da metrpole.9 Assim, nesse relatrio, houve a apresentao de diversos problemas das misses catlicas em Timor: poucos missionrios, descontinuidade da atividade missionria, entre outros. Mas, ainda assim, por meio da evangelizao, da instruo e do aperfeioamento dessas atividades, esperava-se que as escolas dos missionrios cumpririam seu papel neste projeto de cristianizao e nacionalizao do Timor Portugus: as nossas escolas, em nmero de 46, so freqentadas por 2:424 alunos e tendem a desenvolver-se num ritmo que poderia classificar-se de acelerado, caso dispusssemos de mais pessoal ensinante (...).10

    Percebe-se que o Bispo de Macau sugeriu que o projeto de civilizar e cristianizar a ilha somente se efetivaria se houvesse um aumento do contingente de missionrios. Por razes semelhantes, as anlises das estatsticas feitas pela Igreja, referentes ao ano de 1937, relataram o pequeno nmero de missionrios em Timor, que foi apresentado por esse Bispo e pelos coletivos da Igreja Catlica como o ponto mais crtico do projeto de cristianizao e, consequentemente, da lusitanizao de Timor Portugus:

    Nmeros missionrios de Timor Os nmeros que abaixo referem sobre as misses de Timor, referentes ao ano de 1937, so extrados do mensrio O Missionrio Catlico. Em 1937, sobretudo, demonstram um aumento admirvel sobre os anos anteriores. Os baptismos de adultos, por exemplo, que foram 844 em 1936, subiram em 1937 a 1.815, tendo os alunos das escolas passado de 2.330 a 2.979.

    8 Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. XIV, n 154, 1938, p. 183.

    9 Ainda que no expresso pelo prprio relatrio, possvel perceber que o Bispo entendeu que havia outras

    aes dos missionrios que seriam teis para a misso. A construo de igrejas, por exemplo, era uma das aes dos missionrios de Timor naquele perodo para a cristianizao: Ao concluir este pequeno relatrio, levo ao conhecimento de V. Ex que inaugurei ltimamente duas igrejas, que ficam sendo as maiores e melhores desta Colnia: a matriz de Dli e a igreja de Nossa Senhora de Ftima, em Ainaro. A matriz de Dli, para cuja construo tive de arranjar $150.000.000, um magnfico edifcio, que honra no s as misses, mas tambm a prpria Colnia de Timor (Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. XIV, n 154, 1938, p. 184) 10

    Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, Vol. XIV, n 154, 1938, p. 182.

  • 18

    Outros dados: Missionrios. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 Catlicos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.286 Catecumenatos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68 Catequistas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .60 Escolas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 Alunos (com freqncia regular). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2.330 Baptismos de adultos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1.815 Baptismos in articulo morte. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92 Baptismos de crianas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 796 Confisses. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104.788 Comunhes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254.825 Confirmaes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 4.323 Templos (igrejas, capelas e oratrios). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .45 Curativos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ... . 20.222.11

    Assim, observa-se que o Bispo de Macau, ao falar da baixa quantidade de missionrios e da alta quantidade de pagos, lanava como sugesto para os agentes do Estado Portugus um incentivo ao envio de missionrios para Timor Leste: urge reforar quanto antes com muito santos obreiros evanglicos o punhado de missionrios que l trabalham pela extenso do reinado de Cristo nas almas.12

    Outros relatos feitos por missionrios, tambm registrados no Boletim Geral das Colnias, sugeriram que a quantidade baixa de catlicos na ilha se devia descontinuidade da atuao missionria pelas aes dos outros portugueses na Ilha. No texto Portugal missionrio e as misses de Timor, os insucessos da misso foram atribudos ao contexto anticlerical de Portugal: A Revoluo de 1910, pondo em vigor o decreto da expulso das Ordens Religiosas de Portugal e Colnias, vibrou um profundo golpe nas Misses de Timor.13 Num relatrio posterior do Bispo de Macau, ainda que tenha sido escrito para o Ministro das Colnias, Dom Jos da Costa Nunes demonstrou certo ressentimento com o que foi chamado de surto anti-religioso, que, segundo este Bispo, desencadeou diversos problemas para as misses nas converses em Timor:

    Vim a Timor, em 1911, pela primeira vez, no desempenho duma comisso de servio, imposta pelo meu antecessor. A Repblica acabava de se implantar. O esprito sectrio dos seus dirigentes irrompeu logo nas colnias. Como era fatal, abriu-se uma ciso entre missionrios e funcionrios. Verifiquei-o pessoalmente, por ocasio dessa visita a Timor. O resultado no se fez esperar. Contrariadas e, algumas vezes, perseguidas, as Misses entraram em declnio. O indgena, tmido e moralmente fraco, no ousava abraar uma religio mal vista por certas autoridades, e os cristos, pelo mesmo motivo, arrefeciam na f.14

    11 Nmeros missionrios. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, Vol. XIV, n 161, 1938, p. 139.

    12 Nmeros missionrios. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, Vol. XIV, n 161, 1938, p. 139.

    13 Portugal missionrio e as misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. XIII, n 141,

    1937, p. 123. (Publicado originalmente no Boletim Eclesistico da Diocese de Macau pelo Rev. M. M. Variz). 14

    Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. XIV, n 154, 1938, p. 182

  • 19

    Assim como fez o Bispo de Macau, outros missionrios chefes de misses na frica e no Oriente sob administrao colonial portuguesa comunicavam tais interesses de cooperao com o Estado Portugus. Os missionrios catlicos da ordem do Esprito Santo em Angola, por exemplo, estiveram particularmente interessados em que os portugueses cooperassem com as misses catlicas para empoder-los diante da concorrncia com as misses protestantes.15 Nesse sentido, alguns missionrios investiram na cooperao com o Estado portugus como forma de ter a hegemonia missionria sobre o territrio angolano. 16

    Tal busca pela cooperao com os estados nacionais no foi exclusiva da Igreja Catlica em Portugal. Os mandamentos do Santo Padre, o Papa Pio XI, emitidos no jornal romano Il Pensiero Missionario, no ano de 1935, sugeriram que a unio de esforos com os diferentes estados colonizadores da Europa poderia ser um meio de tornar mais fcil os interesses da Igreja:

    Toda a cooperao exterior que nos oferecida, no o esqueamos, uma graa graa vinda por uma via escolhida por Deus. No rejeitamos esta graa e sirvamo-nos de toda a cooperao exterior possvel contanto que nem a integridade da doutrina nem a hierarquia sejam comprometidas.17

    Do mesmo modo que a Igreja Catlica, os integrantes do Estado Portugus realizaram diversos esforos nesta cooperao, tanto por questes da relao da Igreja com o Estado no Portugal metropolitano quanto por fenmenos em todas as colnias, apesar da resistncia de setores da ditadura portuguesa (CRUZ, 1997). No por acaso, a Agncia Geral das Colnias de Portugal, em seu Boletim, publicou diversos textos relatando as instrues do Papa para a formao de alianas com os estados, assim como

    15O procurador Geral das Misses do Esprito Santo, em Angola, Reverendo J. Alves Correia, publicou um texto indicando que as misses protestantes eram um perigo aos interesses da nao: (...) para o intersse nacional (e o intersse nacional, que no o puramente religioso, o que move a maioria dos nossos presentes leitores) as misses do Esprito Santo, como as do clero secular portugus, so consideradas como nossas; as do protestantismo, das vrias denominaes, so tidas por estranhas (...) Arrumadas assim as noes, posto o estado da questo com suficiente clareza para todos, vamos mostrar aos leitores a posio actual das duas categorias de milcias religiosas que disputam a alma dos indgena de Angola. E veremos que o perigo, se no to grave como Moambique (onde os protestantes estrangeiros h muito que esto em maioria esmagadora), no deixa de afligir e humilhar a mais portuguesa de nossas grandes colnias (CORREIA, J. Alves. A Obra das misses nacionais e das misses estrangeiras em Angola. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. X, n 108, 1934). 16

    O Reverendo Antnio Brasio constituiu a noo de que a nao portuguesa era catlica e que, por isso, deveria impedir outras denominaes missionrias de entrarem nas colnias portuguesas: A lei portuguesa desconhece quaisquer misses que no sejam as catlicas, e levada a isso, no por intolerncia religiosa (o Estado neutro), no tanto por sses princpios de direito internacional em que ningum acredita, como pelo facto da prpria mentalidade da Nao que , e sempre foi, catlica, pelas razes da unio dos portugueses entre si e da unidade do Imprio, que no podem prescindir do elemento religioso. (CORREIA, J. Alves. A Obra das misses nacionais e das misses estrangeiras em Angola. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. X, n 108, 1934, p. 185). 17

    O pensamento missionrio. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, Vol. XI, n 120, 1935.

  • 20

    tambm publicando textos da recm-criada sociedade portuguesa das Misses Catlicas Ultramarinas. Num discurso feito por D. Manuel Maria Ferreira da Silva, o ento Bispo de Gurza, ndia, sugeriu a simbiose entre os projetos coloniais do estado e os projetos de cristianizao das misses catlicas como um meio de se conseguir a evangelizao e a colonizao:

    (...) poca de esplendor e de glria a dos descobrimentos dos portugueses! As nossas caravelas cruzam todos os mares em busca de novas terras, as nossas bandeiras so hasteadas nos muros de tantas fortalezas, o nome de Portugal levado s mais longnquas paragens; e onde chegou o nome de Portugal, chegou sempre, tambm, o nome de Jesus Cristo.18

    Com isso, h diversos indcios de que os coletivos da Igreja Catlica estiveram em busca de combinar o nacionalismo e o colonialismo em sua agenda. Diante de alguns problemas (baixo nmero de missionrios, conflitos com misses religiosas e outros colonos), a Igreja Catlica acabou por intensificar essas parcerias. Assim, muitos dos agentes da Igreja e do Estado Portugus propuseram que nacionalizar e cristianizar eram sinnimos:

    Quem anda pelo interior da ilha de Timor e v um indgena de modos mais civilizados e ouve falar a nossa lngua, no precisa perguntar-lhe se cristo e onde aprendeu portugus; A resposta, noventa e nove vezes por cento, vir confirmar esta verdade: o nativo mais ou menos europeizado catlico e estudou nas nossas escolas.19

    A relao de causalidade entre a falta de missionrios e a m colonizao dos territrios coloniais portugueses foi se constituindo como uma forma de justificar, para os integrantes da Igreja Catlica, a necessidade de unir esforos com o Estado colonizador Portugus. Do mesmo modo, ao destacar estes pedidos de ajuda da Igreja Catlica no seu Boletim da Agncia Colonial, os funcionrios do Estado comeavam a constituir a unio com a Igreja Catlica como uma possibilidade de eficincia na colonizao. Aumentando a atividade missionria e mantendo sua continuidade, assim como juntando esforos dos missionrios e dos outros europeus que l estivessem, Portugal e a Igreja Catlica teriam como mudar a parte leste da ilha de Timor e os outros territrios coloniais de modo a transform-los ainda mais em territrios portugueses e cristos.

    Nesse sentido, pode-se observar que o movimento dos diferentes missionrios em territrios coloniais portugueses (Angola, Moambique, Goa e etc.), como o apresentado pelo Bispo de Macau, fizeram com que a Igreja Catlica se reaproximasse do Estado Portugus, transformando as relaes entre missionrios e outros coletivos coloniais para aumentar o financiamento das misses, assim como possibilitar a

    18 Boletim Geral das Colnias, Lisboa, vol. XVI, n 179, 1940.

    19 Misses de Timor. Boletim Geral das Colnias, Lisboa, Vol. XI, n 115, 1935, p. 152 156.

  • 21

    competio com misses protestantes. Entendendo-se que o coletivo da Igreja Catlica, em seu nvel global, se props a intensificar outras agendas, tais como a nacionalizao dos pagos com quem tinha contato nas misses, essa acabou por se transformar, em contextos coloniais como o do imprio portugus, em uma misso catlica nacionalista.

    Tal perspectiva de que a cooperao de ambos permitiria uma agenda nica fez com que surgisse o Acordo Missionrio entre Vaticano e Portugal.20 Assinado por Antnio Salazar e pelo papa Pio XII, esse documento representou um retorno ao padroado portugus, regime jurdico sui generis da Igreja Catlica que deu poderes de nomeao do pessoal missionrio nas colnias portuguesas ao Estado portugus.

    Figura 3 - Salazar e o Nncio Apostlico Ciriacci ratificam a Concordata e o Acordo Missionrio (1940)

    Por esse acordo, as misses catlicas em todas as colnias de Portugal passaram a ser administradas prioritariamente por missionrios de nacionalidade portuguesa, apenas sendo possvel que a administrao eclesistica fosse exercida por estrangeiros caso houvesse falta de pessoal portugus (art. 2). Em contraposio, as mudanas de base territorial das dioceses tiveram de respeitar as fronteiras do territrio portugus ultramarino, ou de acordo com as divises deste (art. 6). Alm disso, os bispos nomeados pela Santa S para as Dioceses nas colnias tinham de ser aprovados pelo governo portugus (art. 7), assim como a Igreja Catlica se obrigava a instruir os missionrios, nas escolas, a dar aulas de portugus nas escolas (art. 16). Em compensao, o Estado portugus se obrigava a subsidiar as misses, custeando o envio os missionrios para as provncias ultramarinas, assim como pagando as penses (art. 13) ao clero aposentado e

    20 SANTA S; PORTUGAL. Acordo missionrio entre a Santa S e a Repblica Portuguesa, de 7 de maio

    de 1940. (retirado do stio eletrnico http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/archivio/documents/rc_seg-st_19400507_missioni-santa-sede-portogallo_po.html em 25 de maio de 2014)

  • 22

    subsidiando os que l estivessem. Do mesmo modo, o Estado Portugus se obrigava a doar terrenos para a construo dos prdios das misses.

    Diferentemente do regime comum a outras misses catlicas, as misses em colnias portuguesas passaram novamente a ser compreendidas como misses catlico-portuguesas. Isso ficou expresso em discursos que viam estas duas caractersticas como parte de um mesmo projeto: Ns, a comunidade crist de Portugal, devemos-lhe tambm o nosso dever. Coloquemos as nossas Misses no plano catlico e esta obrigao de cooperar na dilatao do reino de Deus impe-se terminantemente.21

    Alguns textos da dcada de 1940 registram claramente este projeto de cooperao. No ano de 1949, um autor com pseudnimo Lusitano escreveu um artigo com o ttulo As misses religiosas e o seu papel nas colnias portuguesas.22 Neste texto, Lusitano comeou sua discusso com uma questo retrica: afinal que utilidade tm as misses religiosas para que o Estado gaste to avultada quantia em subsidi-la?. Em resposta, Lusitano valorizou a ao missionria por essa ser um meio da produo da civilizao e na paz dos povos:

    S uma ignorncia gravissssima acerca do papel que elas vm h sculos desempenhando na civilizao e na paz dos povos, e do estado de ignorncia e atraso mental e espiritual em que se encontra ainda a maior parte dos povos das nossas colnias justifica e desculpa tal dislate. Colonizar principalmente cristianizar e nacionalizar.23

    No entanto, o texto de Lusitano sugeriu que a simples nacionalizao das populaes nas colnias no era suficiente para civiliz-las. Tambm era importante dar uma religio da civilizao que transformasse as populaes da colnia nos seus aspectos religiosos e que, assim, a transformao secular se mantivesse:

    Subtrair povos ignorantes simplesmente influncia de grosseiras supersties e no lhes dar em compensao directrizes morais, seguras e perfeitas no civiliz-los: equivale a deix-los espiritual e moralmente pior do que estavam e mais sujeitos ainda s ardilosas sedues do primeiro aventureiro que os souber cativar e atrair. Foram as misses religiosas que concorreram poderosamente para a civilizao dos povos da Europa e da Amrica e ho-de ser elas tambm que, ajudadas e prestigiadas, civilizaro verdadeiramente os povos (...). Em vez de censuras, louvores incondicionais so devidos portanto ao Govrno portugus que to criteriosamente est fomentando, protegendo e subsidiando to prestantes organismos.24

    21 Colaborao da metrpole. Seara, Dli, ano 1, n 9, setembro de 1949.

    22 LUSITANO. As misses religiosas e o seu papel nas colnias portuguesas. Boletim Geral das

    Colnias, ano XXV, n 286, Lisboa, 1949. O texto foi originalmente publicado em um jornal chamado O evangelho de Loureno Marques (atual Maputo de Moambique), 23

    LUSITANO. As misses religiosas e o seu papel nas colnias portuguesas. Boletim Geral das Colnias, ano XXV, n 286, Lisboa, 1949, p. 286. 24

    LUSITANO. As misses religiosas e o seu papel nas colnias portuguesas. Boletim Geral das Colnias, ano XXV, n 286, Lisboa, 1949, p. 138-139.

  • 23

    Assim, pode-se sugerir que, no discurso oficial do Estado portugus, o financiamento da misso religiosa foi pensado como uma forma de alcanar a produo de nacionais25.

    At aqui, perceptvel muito do que j foi sugerido na formulao de Louis Althusser de que a igreja um aparelho ideolgico de estado (ALTHUSSER, 1988), ou seja, o estado portugus buscou englobar a igreja catlica para fins de sua agenda. Para Althusser, os aparelhos ideolgicos, diferentemente dos aparelhos coercitivos (polcia, por exemplo), so instituies pelas quais o Estado expande sua hegemonia sem o uso da fora. Apesar de Althusser focar a escola, esse tambm estende o argumento de que a fora do Estado se faz tambm por uma srie de outros aparelhos ideolgicos.

    A escola (mas tambm outras instituies de Estado como a Igreja ou outros aparelhos como o exrcito) ensinam saberes prticos, mas em moldes que asseguram a sujeio ideologia dominante ou o manejo da prtica desta. (ALTHUSSER, 1988, p. 22)

    No entanto, assim como perceptvel uma viso do Estado Portugus sobre a Igreja Catlica enquanto um aparelho ideolgico, possvel sugerir que a igreja tambm viu o Estado portugus como seu aparelho. Numa relao de mtuo parasitismo (ROQUE, 2010), a Igreja buscou se hospedar nas prticas de governo dos agentes coloniais vinculados ao Estado Portugus, assim como estes agentes se apropriaram das aes evangelizadoras da Igreja para fins de sua pauta.

    2. A administrao das misses pela Diocese de Dli

    Alm das modificaes da relao da Igreja Catlica com o Estado Portugus, o Acordo Missionrio previu a criao da Diocese de Dli, no Timor Portugus (art. 6).26 Em 04 de setembro de 1940, a Diocese foi criada por Bula Papal promulgada pelo Papa Pio XII.27 Assim, no perodo colonial ps-Segunda Guerra, as misses religiosas catlicas no Timor Portugus foram administradas por um rgo da Igreja, a Diocese de Dli.

    25 Nacionalizar, no perodo de vigncia do Estatuto do Indigenato (1926-1960), significava a incluso de

    populaes destes territrios em uma relao jurdica com o Estado Portugus. No entanto, essas populaes eram includas em duas subcategorias de cidadania pelo critrio de raa: indgenas ou assimilados (caso demonstrassem que sabiam ler e escrever, falar o idioma portugus e ter os usos e costumes europeus). Tais categorias de cidadania no igualavam os status de cidadania dessas populaes ultramarinas aos portugueses brancos, na medida em que tratavam os indgenas como tutelados, promoviam regimes jurdicos diferenciados e negavam direitos como o exerccio do voto. 26

    Art. 6 So desde j criadas trs dioceses em Angola, com sede em Luanda, Nova Lisboa e Silva Prto; trs em Moambique, com sede em Loureno Marques, Beira e Nampula; uma em Timor, com sede em Dili. Alm disso, nas ditas colnias e na Guin podero ser erectas circunscries missionrias. 27

    Bula de Proviso da Diocese de Dli. Seara, Dli, ano 1, n 1, janeiro de 1949.

  • 24

    Quando surgiu, essa Diocese foi interinamente governada pelo Arcebispo de Goa, que nomeou o missionrio Padre Jaime Garcia Goulart para ser seu prefeito apostlico. No entanto, em maro de 1942, sua atuao como prefeito da recm-criada Diocese foi interrompida pelas invases consecutivas de tropas australianas e de japonesas, decorrente dos conflitos da Segunda Guerra Mundial. Segundo Paulino (2013), diante das hostilidades das tropas japonesas, Padre Jaime Goulart conseguiu fugir para Austrlia em conjunto com diversos outros missionrios. Alguns missionrios se mantiveram em Timor, mas a atuao da Diocese como um todo ficou abalada.

    Figura 4 - D. Jaime Garcia Goulart, administrador apostlico (1940-1945) e Bispo (1945-1965) da Diocese de Dli

    A Diocese de Dli voltou s suas atividades apenas em 1945, quando Portugal retomou sua soberania sobre a colnia. Neste momento de retorno das atividades, Jaime Garcia Goulart - j nomeado Bispo de Dli pelo Papa - e outros missionrios regressaram ao Timor Portugus.

    Em carta escrita pelo papa Pio XII endereada ao Bispo, o Papa indicou quais seriam seus deveres:

    Queremos, porm, que, observado tudo o mais que de direito e antes que recebas a consagrao episcopal e tomes posse cannica da Diocese que te confiada, faas profisso de f catlica e os juramentos prescritos, segundo as frmulas estabelecidas, nas mos dalgum Bispo catlico de tua escolha que esteja na comunho e graa da S Apostlica (...) Alimentamos, por fim, a firme esperana e confiana de que a Igreja de Dili ser dirigida utilmente pelo teu desvelo pastoral e indefeso esforo, assistindo-te propcia a dextra do Senhor, e receber, com o andar do tempo, maior desenvolvimento nas coisas espirituais e temporais.28

    Segundo um texto escrito em Seara, as misses no Timor Portugus visavam estabelecer a Igreja naquele territrio: Assinala-se como objetivo formal das Misses, como razo de ser, o estabelecimento da Igreja visvel nos pases onde ainda no

    28 Pio Papa, Servo dos Servos de Deus. Seara, Dli, ano 1, n 1, janeiro de 1949, p. 5-6

  • 25

    existe.29 Esse foi idealmente o principal objetivo da Igreja Catlica no Timor Portugus naquele perodo, apesar de que houvesse, concomitantemente, o intuito de produzir converses e de nacionalizar lusitanamente o territrio e as populaes de Timor. Nesse sentido, a misso catlica em Timor Portugus, administrada pela Diocese de Dli, tentou produzir cristos e permitir que a Igreja se reproduzisse autonomamente naquele local. Subsidiariamente, os integrantes desta buscaram fortalecer o Estado Portugus no Timor Portugus.

    A Diocese de Dli tinha uma jurisdio que alcanava todo o territrio portugus na ilha.30 No por acaso, em 1945, quando o Estado Portugus voltou a ter domnio sobre o que hoje reconhecemos como Timor-Leste, os missionrios comearam a ser realocados no territrio a partir de atos do Bispo Jaime Garcia Goulart. Independente das denominaes dos missionrios que ali atuaram, a Diocese de Dli monopolizava a distribuio e a administrao das aes de quadros da Igreja.

    Uma estatstica referente ao ano de 194931 apresentou diferentes aspectos desta organizao poltica e territorial da Diocese de Dli, indicando que havia uma vinculao entre governo, territrio e populao:

    Ano de 1949 Mapa n 1

    Diferentemente das igrejas protestantes que agem difusamente e sem centralidade (BEIDELMAN, 1982, p. 13), a expanso da Igreja Catlica agem de modo

    29 Colaborao da metrpole. Seara, Dli, ano 1, n 9, setembro de 1949.

    30 Aps a sada dos agentes do Estado colonial portugus e com a invaso da Indonsia em 1974, a Diocese

    se desvinculou da Igreja Catlica de Portugal, mas no se agregou Igreja Catlica da Indonsia (BOARCCAECH, 2013). No perodo contemporneo, esta Diocese continua atuando, apesar de sua abrangncia territorial ter diminudo. Com a criao da Diocese de Baucau em 1996 e a Diocese de Maliana em 2010, esta passou a no abranger mais todo o Timor Leste. 31Diocese de Dli.. Seara, Dli Ano 2, n V e VI, maio e junho de 1950.

    Populao Circunscries

    Eclesisticas Estaes

    missionrias rea em

    Km Total Catlica

    Parquia de Dli Misso de Anaro Misso ed (sic) las Misso de Baucau Misso de Bobonaro Misso de Cova-Lima Misso de Ermera Misso de Fuiloro Misso de Manatuto Misso de Oe-Cusse Misso de Ossu Misso de Soibada

    2 3 4 8 5 7 7 -

    3 6 6 3

    580 1.016 600

    1.600 1.440 2.145 2.435 3.000 1.350 803

    2.345 1.609

    19.835 34.107 18.782 54.800 48.819 26.105 93.597 25.713 11.788 16.776 45.921 16.801

    2.007 2.102 4.236 4.912 1.934 2.258 5.409 366

    3.850 2.360 4.490 4.410

    54 18.923 423.044 38.034

  • 26

    vertical e se estabelecem territorialmente. Desse modo, a Diocese de Dli foi vista pelo Vaticano e por outros coletivos como um rgo da Igreja Catlica preocupado com as populaes que habitassem o territrio do Timor Portugus.

    Assim como aconteceu na expanso da Igreja Catlica em outras partes do mundo, a Diocese de Dli tinha um espao de atuao definido territorialmente, que era administrado por um Bispo. Este territrio era dividido em circunscries eclesisticas, que eram governadas por um chefe da misso, o padre. Os missionrios chefes de misso eram padres subordinados ao Bispo e atuavam como pastores das populaes que estavam vinculadas a uma circunscrio eclesistica. Esses tinham como competncia procurar promover e excitar a vitalidade da misso at ao seu completo desenvolvimento, pois sobre ele impende a obrigao estrita de procurar a salvao eterna de todos os habitantes do territrio que lhe foi confiado.32 Desse modo, o governador da misso de Timor (no singular) era o Bispo da Diocese de Dli, sendo as misses de Timor (no plural) governadas cada uma por um padre missionrio.

    As misses possuam um pessoal missionrio. Alm dos chefes de misso, o pessoal missionrio era constitudo por missionrios (sentido estrito), clrigos indgenas e auxiliares. Os missionrios, no sentido estrito, eram clrigos masculinos e estrangeiros, e eram classificados em trs categorias: religiosos, pertencente ao instituto ao qual a misso foi confiada; religioso, sbdito de outros institutos; e seculares, pertencentes misso.33 Das categorias do pessoal missionrio, o clero indgena ou autctone se diferenciava dos missionrios strictu sensu porque era nascido na regio.34

    Em conjunto com os padres, religiosos ou seculares, missionrios (estrito senso) ou indgenas, as categorias de pessoal da Diocese de Dli contemplavam ainda missionrios auxiliares. Esses eram irmos e irms missionrios, pessoas que

    32 REGO, Antnio da Silva. Lies de Missionologia. Srie Estudos de Cincias Polticas e Sociais n 56.

    Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, 1961, p. 70 33

    Cabe-se uma nota para diferenciar o que significa secular e religioso neste contexto. Essa oposio no se trata da mesma oposio contempornea anloga a leigo e clero. Os padres seculares, para evitar este tipo de confuso, so atualmente tambm chamados de padres diocesanos, enquanto os padres religiosos so chamados de padres regulares. As diferenas entre religiosos e seculares se devem aos votos que fazem. Enquanto os missionrios religiosos pertencem a uma congregao religiosa (salesianos, por exemplo) ou a uma ordem (franciscanos, capuchinhos, dominicanos, etc.), os seculares so padres que no tem qualquer intermediao de um superior de uma ordem ou congregao, reportando-se apenas ao Bispo e ao Papa. Os padres seculares ou diocesanos tambm so padres que possuem uma mobilidade mais restrita. Naquele perodo, eles eram vinculados Diocese e, por isso, no circulavam por outras Dioceses, diferentemente dos religiosos, que so padres mobilizados com maior facilidade. 34O clero indgena o clero nacional ou autctone, aquele que, por nascimento, pertence regio evangelizada. No , portanto, um missus ou enviado, um missionrio, estritamente considerado. IN: REGO, Antnio da Silva. Lies de Missionologia. Srie Estudos de Cincias Polticas e Sociais n 56. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, 1961,p. 77

  • 27

    participam de instituies religiosas, mas que no poderiam realizar os ritos litrgicos como a missa, o batismo, a eucaristia e etc. Os auxiliares exerciam diferentes ofcios, como a catequese, ensino e tantos outros trabalhos tidos como importantes para o funcionamento da misso. As irms Canossianas, freiras pertencentes ordem de Madalena de Canossa, eram o pessoal auxiliar de maior destaque35.

    No Timor Portugus, segundo estatstica36 referente ao ano de 1949, o pessoal missionrio era composto por vinte e oito padres seculares (todos portugueses), cinco salesianos (dois portugueses, dois italianos e um polaco), cinco coadjutores salesianos (dois espanhis, dois portugueses e um tchecoslovaco), e vinte e trs irms canossianas (quatro portuguesas, quinze italianas e quatro filipinas). Assim havia um total de 61 missionrios naquele ano. Nessa estatstica, no se faz meno ao clero indgena, o que permite sugerir que se esse era, naquele ano, um investimento ainda muito recente.37

    A atuao destes padres e dos missionrios subordinados se dava por meio de estaes missionrias, que se tratavam de aparelhos materiais como escolas, igrejas, casas de missionrios, oficinas, granjas ou fazendas.38 Por meio dessas estaes, os missionrios performaram as atividades da igreja: rituais como as missas, os sacramentos (casamento, batismo, eucaristia, crisma, etc.), educao, catequese, imprensa, alimentao, medicina e tantas outras atividades. Assim, pode-se observar que a misso religiosa em Timor foi uma organizao composta por diferentes pessoas e aparelhos. Sua ao foi coordenada, hierarquizada e com uma diviso social do trabalho.

    35 Naquele momento, a Igreja tinha ideia de laicato missionrio ainda como uma novidade, de modo que

    os fiis catlicos que ajudavam nas atividades da igreja no eram considerados parte da Igreja Catlica. Somente em momento posterior ao Conclio Vaticano II, o laicato missionrio comeou a ser compreendido como parte da Igreja Catlica. 36Diocese de Dli. Seara, Dli, Ano II, n V e VI, maio e junho de 1950. 37

    importante relatar que as populaes nascidas nas colnias portuguesas no eram consideradas portuguesas. Esses passaram a ser considerados portugueses apenas com as reformas do Estatuto do Indigenato, em meados da dcada de 1950. 38

    REGO, Antnio da Silva. Lies de Missionologia. Srie Estudos de Cincias Polticas e Sociais n 56. Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, 1961.

  • 28

    Figura 5 - Mapa Missionrio do Timor Portugus (1965)

    Esse retrato sobre a misso catlica no Timor Portugus, em que se informou como ela buscou reproduzir a Igreja em Timor, contando com uma diviso territorial, com administradores e pessoal missionrio, estaes e atividades, apresenta o quanto essas misses foram instituies sociais que compartilham representaes coletivas. Em

    seu estudo sobre misses religiosas na Tanznia, Thomas Beidelman enfatiza que as misses religiosas tem um padro de ao: Tais organizaes so rotinizadas, manipulando cotidianamente tcnicas de ponta, informaes padronizadas, objetos e procedimentos (1982, p. 23, traduo minha).

    Alm das misses serem instituies, Beidelman entende que as misses tm como caracterstica ser colonial, porque se conformaram como coletivos cuja intencionalidade produzir mudanas sociais:

    () por colonialismo, queremos dizer dominao cultural com mudanas sociais impostas. No me refiro apenas contnua influncia econmica e poltica por ex-potncias coloniais, mas tambm a dominao de massas pobres e sem instruo por uma elite nativa privilegiada e poderosa incessantemente determinada por fazer mudanas, seja l quais forem as razes (...) (1982, p. 2, traduo minha)

    Beidelman, portanto, compreende as misses religiosas como uma coletividade que se pensa para produzir mudanas sociais, de modo que isso lhe fez atentar ao quanto as misses religiosas so instituies, ou seja, so padronizadas na sua forma de pensamento e de ao. semelhana do contexto etnogrfico de Beidelman, a misso religiosa em Timor no perodo colonial portugus foi um coletivo padronizado por meio de uma organizao religiosa, a Diocese de Dli, que intencionou produzir mudanas sociais.

  • 29

    Uma das causas e dos efeitos dessa organizao a harmonizao das representaes coletivas. Mary Douglas (1998 [1986]) releva como as instituies sociais, aqui entendidas como modos padronizados de pensamento, so primordiais nas aes das pessoas. Essa antroploga sugere a primazia do estilo de pensamento sobre o comportamento humano em detrimento da racionalidade do indivduo. Sobre o papel das instituies no comportamento humano, esta antroploga afirma: Por bem ou por mal os indivduos compartilham seus pensamentos e eles, at certo ponto, harmonizam suas preferncias. Eles no tm outros meios de tomar as grandes decises a no ser na esfera das instituies que eles constroem (DOUGLAS, 1998 [1986], p. 150). Nesse sentido, pode-se entender que a Diocese de Dli, por ser parte da Igreja Catlica, buscou harmonizar as representaes coletivas da organizao de missionrios do Timor Portugus.

    interessante observar que a Diocese de Dli, nos seus primeiros dez anos, foi um rgo da Igreja Catlica que teve um papel fundamental para a organizao das misses religiosas que estiveram em Timor, na medida em que houve mais ou menos um compartilhamento e difuso de vises e projetos por meio da sua atividade organizacional. Apesar de os missionrios no Timor Portugus serem conectados a uma multiplicidade de agentes, a Diocese de Dli teve um papel estruturante. Isto no quer dizer que no houvesse outras relaes sociais importantes, mas que, do ponto de vista destes missionrios, a interlocuo das misses entre si foi feita principalmente pelas aes de mediao da Diocese de Dli.

    Alm de articular os missionrios entre si, a Diocese de Dli conectou os missionrios s cpulas da Igreja Catlica. Dentro do contexto organizacional da Igreja Catlica daquele perodo, pode-se observar que os bispos e as dioceses eram, respectivamente, partes do poder do Papa e da Cria Romana. Assim como o Papa o sucessor de So Pedro e o representante de Cristo, os bispos so os sucessores dos apstolos: ... e por instituio divina esto colocados frente de Igrejas Particulares, que governam com poder ordinrio, mas sob a autoridade do Pontfice Romano (cnone 329)39. Isto exemplifica, portanto, a caracterizao da Diocese, um rgo administrado por um Bispo, como um instrumento de conexo entre o corpo central da Igreja Catlica com os missionrios subordinados a uma diocese.

    39 REGO, Antnio da Silva. Lies de Missionologia. Srie Estudos de Cincias Polticas e Sociais n 56.

    Lisboa: Junta de Investigaes do Ultramar, 1961, p. 55.

  • 30

    Do mesmo modo, por ter surgido do fortalecimento da associao com o Estado portugus, a Diocese era compreendida pelo corpo de integrantes do Estado Portugus e da Igreja Catlica como um instrumento para harmonizar as misses catlicas com os projetos coloniais do Estado Portugus.

    Observando-se o papel da Diocese de Dli, possvel categoriz-la como uma mediadora. Sobre a noo de mediador, Clifford Geertz (1960) sugere que esse agente opera muitas vezes como um tradutor entre diferentes escalas e sistemas de insero e reproduo social, tornando-os mutuamente gramaticais (GEERTZ, 1960, p. 228). Wolf (2003 [1956]), por sua vez, sugere que os mediadores promoveriam sinapses entre tais escalas ou sistemas. De todo modo, ambos ressaltam que as prticas de mediao so fortemente marcadas por ansiedades polticas e epistmicas voltadas manuteno das diferenas e fronteiras entre as escalas a partir das quais a prxis da mediao acontece e, ao mesmo tempo, dos laos que emergem do trabalho da mediao e a partir dos quais os mediadores legitimam seu papel.

    Uma vez que conectava os missionrios entre si, e eles a complexos

    institucionais como o Estado portugus e a Santa S, a Diocese de Dli promovia vrias sinapses, podendo ser tomada como uma mediadora fundamental. O seguinte esquema, simplificador por no considerar muitos outros agentes importantes como os destacados no processo de formao da Diocese de Dli (como foram as misses religiosas da Angola e de Macau) e por no destacar algumas relaes j citadas (interaes entre misses locais com os aparelhos do governo provinciano), explica mais ou menos como se buscava manter a coordenao de aes dos missionrios de Timor em relao Igreja Catlica e ao Estado Portugus:

  • 31

    Figura 6 - Mediaes das misses religiosas de Timor

    Assim, utilizando-se da oposio entre morfologia social e representaes coletivas (DURKHEIM, 1989), possvel observar que estas relaes sociais buscavam estabelecer dois efeitos. O primeiro era formar uma comunidade de pessoas que se relacionam, entre os quais podemos citar o papa da Igreja Catlica, o chefe de governo do Estado Portugus, os arcebispos da Igreja Catlica em Portugal, o governador do Timor Portugus, o Bispo da Diocese de Dli e, finalmente, os missionrios lotados em Timor. O segundo efeito desejado era estabelecer uma coletividade que compartilhasse mais ou menos representaes coletivas semelhantes, ou seja, modos de perceber e de se comunicar.

    Por tal razo, a Diocese de Dli foi um rgo da Igreja Catlica que teve o papel de mediar a relao entre a Igreja Catlica na metrpole portuguesa e no Vaticano e as misses locais e as misses entre si, sendo o Bispo de Dli uma pea fundamental nessa

    articulao de engrenagens.

    3. O peridico Seara como prtica de comunicao para a mediao

    Por ser possvel entender a Diocese enquanto uma mediadora, um de seus projetos mais importantes consistia em produzir, por meio de diferentes tcnicas, certa unidade nos modos de pensar e agir dos diferentes missionrios em atuao em Timor em face de diretivas da Igreja Catlica ou do Estado portugus. Assim, na medida em que os integrantes das misses religiosas, apesar de compartilharem diversas representaes coletivas, tinham experincias sociais distintas que potencialmente poderiam realizar

  • 32

    disperses nos modos de pensar e agir institucionais, a Diocese de Dli utilizava-se de diversos artefatos tecnolgicos para que houvesse comunicao entre os diferentes atores e, com isto, coordenao e coerncia em suas prticas. Nesse sentido, a cpula da Diocese de Dli realizava uma diversidade de aes, como reunies, conversas, rituais da igreja, festas e cartas que tinham, entre outras intenes, fazer com que a Diocese exercesse o papel de mediadora.

    Durante a pesquisa de campo realizada em bibliotecas e livrarias de Lisboa, Portugal, encontrei alguns vestgios destas comunicaes da Diocese de Dli para com os missionrios. Por exemplo, no Arquivo Histrico Diplomtico, foi possvel ter acesso a

    algumas homilias e cartas escritas pelo Bispo Jos Joaquim Ribeiro para professores catequistas. No entanto, esse material no era substancial para um exerccio etnogrfico sobre as prticas de mediao da Diocese de Dli, na medida em que eram documentos anexos s comunicaes entre o Governo Colonial do Timor Portugus e o Ministrio do Ultramar e eram utilizados muito mais para justificar determinadas aes de controle do governador local sobre as aes da Diocese. Do mesmo modo, o acesso aos arquivos eclesisticos ao perodo de anlise restrito ao pblico leigo, o que me impossibilitou ter acesso s comunicaes mais diretas da Diocese de Dli para com os missionrios.

    Apesar disto, foi possvel ter acesso a um peridico utilizado pela Diocese de Dli para se comunicar com seus subordinados, Seara. Esse peridico mostrou-se como uma fonte de pesquisa apropriada para melhor compreender o processo de fixao e ao da Igreja Catlica em Timor-Leste entre 1949 e 1973, dadas as funes de articulao e mediao nele manifestos.40

    40Por polticas de arquivamento do legado colonial portugus, parte dos exemplares do peridico Seara foi constantemente enviado para outras localidades que vo alm das circunscries eclesisticas da Diocese de Dli. Durante a pesquisa, tive conhecimento de trs espaos que receberam Seara: Sociedade de Geografia de Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal e Hemeroteca Municipal de Lisboa. Como essa ltima encontrava-se fechada durante o perodo de pesquisa de campo, tive acesso ao peridico Seara apenas pelas duas outras instituies.

  • 33

    Figura 7 - Exemplar do peridico "Seara" encontrado na Biblioteca Nacional de Portugal.

    Inicialmente com periodicidade mensal, o primeiro nmero do Seara foi lanado em janeiro de 1949, nove anos aps a fundao da Diocese41. Apesar da diferena de mais de trs anos para iniciar as atividades de publicao desde o restabelecimento da Diocese no ps-segunda guerra mundial, um dos escritos do Padre Ezequiel Pascoal, o primeiro editor da Seara, indicou que a imprensa era um dos principais instrumentos para a atuao da Diocese de Dli: Creio que no h diocese alguma que no tenha o seu boletim. um elemento necessrio orienta, coordena esforos, suscita energia, prope alvitres, estimula iniciativas.42

    O pequeno trecho citado revela que o peridico Seara era visto por diferentes atores missionrios como um instrumento de produo de coordenao da ao dos diferentes missionrios que estavam sob a hierarquia da Diocese de Dli. Do mesmo modo, a imprensa era entendida pela Diocese como uma das formas de guiar a ao dos missionrios vinculados a Diocese de Timor:

    41 Sobre a dificuldade de iniciar a publicao de um boletim da Diocese, Ezequiel Enes Pascoal, seu

    primeiro editor, afirmou: (...) as runas acumuladas eram tantas, a guerra deixara tudo num estado tal que, apesar de Sua. Ex. Rev.m o Sr. Bispo ter comeado logo, com todo o empenho e zelo, a reorganizao dos servios missionrios, foram precisos trs anos para que estes voltassem sua plena atividade (Seara. Seara, Dli, ano 1, n 1, janeiro de 1949). 42Seara. Seara, Dli, ano 1, n 1, janeiro de 1949, p. 10.

  • 34

    [Seara] o eco da voz veneranda do Sumo Pontfice e do prelado diocesano, pois, arquiva suas decises, transmite os seus desejos, pe-nos, em suma, em contacto mais directo com todos aqueles que esto entregues aos seus desvelos pastorais.43

    Segundo Vicente Paulino, o peridico Seara teve inicialmente a tiragem de 500 exemplares, impressos na Imprensa Nacional de Timor, em Dli. A partir de outubro de 1949, sua periodicidade tornou-se bimestral, passando para quadrimestral no ano de 1955, sendo, por vezes, de periodicidade semestral. Em 1964, Seara foi encerrado por falta de material de impresso. Porm, em 1966, ele refundado, deixando o formato de Boletim Eclesistico e se tornando um Jornal. Esta nova fase marcou uma nova concepo sobre o peridico, decorrente da absoro dos ideais do Conclio Vaticano II em que se comeou a conceber a Igreja Catlica no apenas como a hierarquia eclesistica, mas tambm como os fiis que participavam dessa.

    Apesar da ampliao do pblico alvo, possvel observar que a funo institucional de mediao de Seara se manteve, na medida em que continuava sendo a comunicao dos anseios da Igreja e do Estado Portugus para os integrantes da Igreja Catlica em Timor (clero e tambm fiis).

    Assim, a partir da observao de que a Diocese de Dli era o principal mediador da Igreja Catlica e do Estado Portugus com os missionrios de Timor e destes entre si, a principal questo desta dissertao compreender como a Diocese de Dli, composta por um bispo e subordinados diretos, buscava, por meio do peridico Seara, dar sentido aos projetos institucionais de Portugal e da Igreja Catlica recepcionados e, com isso, orientar a atuao dos missionrios no Timor Portugus.

    Tal questo entra em consonncia com propostas etnogrficas de pensar artefatos como Seara menos como expresso de taxonomias e mais como espaos que materializam intenes e buscam produzir efeitos, ou seja, como repositrios de ansiedades epistmicas (STOLER, 2009). Quando comecei a ler os textos presentes no peridico, busquei ter uma compreenso mais totalizante sobre o que compunha cada nmero, no apenas centrando nos textos produzidos pelos prprios missionrios no Timor Portugus, mas tambm nos textos metropolitanos reproduzidos. Estes textos, vindos do Vaticano, da Igreja de Portugal e do Estado Portugus, eram mais destacados do que os textos de origem local. Isto me levou hiptese, que sustento ao longo desta

    43 Seara. Seara, Dli, ano 1, n 1, janeiro de 1949, p. 10.

  • 35

    dissertao, de que Seara era um dispositivo de mediao entre as mltiplas escalas em que os coletivos coloniais engendravam suas aes de governana. 44

    O peridico Seara45 Formato Ano Volume Periodicidade Observao

    BOLETIM Tamanho mdio de uma folha A5. Em mdia, cada nmero continha 30 pginas.

    1949 I Mensal O nmero de novembro e dezembro foi aglutinado em apenas um boletim.

    1950 II

    Bimestral

    1951 III 1952 IV 1953 V 1954 VI 1955

    VII ?

    Neste ano, foram publicados trs nmeros do peridico Seara, porm os nmeros cobrem perodos irregulares (janeiro-abril, maio-outubro, novembro-dezembro)

    1956 VIII Semestral 1957 IX

    Bimestral

    O nmero que seria referente a maro-abril de 1957 no se encontra na coletnea de nmeros do Seara composta pela Sociedade de Geografia de Lisboa.

    1958 X 1959 XI 1960 XII 1961 XIII 1962 XIV 1963

    I ?

    Na coletnea da Sociedade de Geografia de Lisboa, encontram-se dois nmeros referentes ao ano de 1963. Esses nmeros foram encadernados numa coletnea, de modo que houve corte das margens da capa dos boletins. Isso fez com que as informaes sobre o perodo de referncias dos nmeros no pudessem ser acessadas. Nesse ano, Seara tambm inicia uma segunda srie, o que faz com que os seus volumes votem a ser renumerados.

    1964 II Quadrimestral - 1965 Interrompido

    JORNAL tamanho mdio entre folha A4 e A3). Em mdia, cada nmero continha 8 folhas.

    1966 I

    Semanal

    Por diversas razes, desde a ausncia de diversos nmeros do jornal nos repositrios da Sociedade de Geografia de Lisboa e da Biblioteca Nacional de Portugal prpria desateno do pesquisador, no sou capaz de afirmar que a periodicidade do jornal de 1966 a 1973 foi sempre semanal, tampouco afirmar de modo contundente que no houve interrupes.

    1967 II 1968 III 1969 IV 1970 V 1971 VI 1972 VII 1973 VIII

    Desse modo, ao focar na ao de mediao no peridico Seara, me distancio da proposta de anlise de Vicente Paulino (2011) feita sobre o mesmo peridico, j que esse jornalista procura compreender as percepes dos missionrios sobre a tradio

    44 Isso no quer dizer que no havia outras intencionalidades na produo textual nele expressa, mas que,

    dentro do universo de questes que guiam esta dissertao, proponho-me a pensar o peridico Seara a partir das intenes de mediao. 45

    No anexo I, encontra-se um quadro completo com os ndices dos nmeros do peridico Seara no seu formato Boletim.

  • 36

    timorense. Como estou em busca de uma interpretao holstica e etnogrfica, que se caracteriza, entre outras coisas, por internalizar o ponto de vista nativo, a proposta partir do que nominalmente estruturante e o que objeto de interesse dos agentes que produziam os nmeros deste peridico. Acredito que este tipo de abordagem, que busca, em primeiro momento, compreender uma produo discursiva a partir do que era objeto de ansiedade dos seus produtores, permite constituir questes etnogrficas potentes, em conformidade com a sugesto de Evans-Pritchard (2005), que tentou compreender o que era objeto de interesse dos seus interlocutores Azande a bruxaria , em vez de investir energia com preocupaes sobre a organizao social.

    Dentro de uma pauta de estudos sobre fenmenos de globalizao, os estudos etnogrficos dos fenmenos de mediao tm sido realizados para aprofundar o conhecimento a respeito dos modos e meios pelos quais o sistema mundial tem se constitudo. Em continuidade aos problemas tericos que buscam compreender como processos sociais globais alcanam espaos sociais localizados (WALLERSTEIN, 1974; HANNERZ, 1997), os estudos de Clifford Geertz (1960) e Eric Wolf (2003 [1956]) mostram que os mediadores, ao atuarem numa interface entre um sistema global e local, so promotores de mudanas nas configuraes sociais e culturais, tanto num contexto local quando num contexto global. Nesse sentido, esses antroplogos buscam mensurar as mudanas sociais provocadas pela incluso de contextos localizados em sistemas mais amplos, assim como a integrao sociolgica que esses atores produzem.

    Essa dissertao, ainda que inspirada nos estudos empreendidos por Geertz e Wolf, se distancia de parte dos produtos de suas anlises, nomeadamente no que diz respeito aos efeitos das mediaes na vida de certas populaes. Diante do material com o qual tive uma experincia de leitura, os potenciais da anlise da mediao aqui explorados implicam compreender principalmente como a Diocese de Dli buscava produzir a articulao entre escalas de governo superiores (Igreja Catlica Portuguesa e Vaticano e Estado Portugus) e inferiores (missionrios em Timor). Assim, o foco de discusso no reside necessariamente em entender como as atividades de mediao da Diocese de Dli influenciaram os leitores-missionrios, mas sim em desvelar o modo como a Diocese de Dli dava sentido e traduzia os projetos vindos das cpulas da Igreja Catlica e do Estado Portugus e s percepes dos missionrios sobre o contexto timorense e suas formas de expresso.

    Do mesmo modo, apesar de apresentar alguma interlocuo entre a Diocese de Dli, o estado portugus local e a Igreja Catlica em Portugal e no Vaticano, h poucos e

  • 37

    escassos textos nesse peridico que mostram a comunicao entre a Diocese de Dli com outros coletivos, visto que o peridico Seara foi pensado como uma das formas de comunicao da Diocese de Dli com os membros da Igreja no Timor Portugus. Assim, procuro entender primordialmente as prticas de mediao que envolvem os sentidos dados pela Diocese de Dli aos projetos vindos das cpulas metropolitanas e s percepes dos missionrios no Timor Portugus sobre o contexto de atuao missionria. 46

    Por buscar compreender como a Diocese de Dli, uma agncia missionria, significava as prticas de reproduo social das populaes no Timor Portugus para instrumentalizar os projetos institucionais vindos da Igreja Catlica no Vaticano e em Portugal e do Estado Portugus, essa dissertao se alinha parcialmente s produes antropolgicas sobre as misses catlicas, lideradas pela Professora Paula Montero, que busca compreender o modo como a ao missionria estimula a ressignificao da tradio (indgena e no-indgena) para adapt-la aos novos contextos de intercomunicao cultural (MONTERO, 2006, p. 32). No entanto, essa dissertao se distancia ao sentido dado por essa autora categoria de mediao, porque no a entende necessariamente como o ato de significao, mas como o ato de conectar sociologicamente diferentes atores. Do mesmo modo, por entender o que caracteriza as misses o seu carter de instituio social voltada para a produo de mudanas culturais e sociais nas populaes subordinadas (BEIDELMAN, 1982), afirma-se que a significao da tradio, mais do que a busca pela compreenso, subsume-se ao interesse de transformao do outro.

    Alm de compreender como a Diocese de Dli buscava articular os diferentes agentes missionrios aos projetos institucionais da Igreja Catlica, proponho-me a ter uma perspectiva diacrnica sobre a prtica da mediao expressa no peridico Seara. Como se trata de um estudo sobre fenmenos que ocorreram durante um perodo histrico de mdia durao, tento perceber as transformaes pelas quais os projetos vindos das cpulas metropolitanas (Igreja Catlica e Estado Portugus) passaram e, consequentemente, como foram traduzidos nos textos produzidos pela prpria Diocese no peridico Seara. Nesse sentido, ainda que, nominalmente, os projetos da Igreja Catlica e do Estado Portugus sejam cristianizar e nacionalizar e eles tenham se perpetuado

    46 Ainda que no seja a inteno desta dissertao, possvel entender que a discusso sobre o peridico

    Seara constitui tambm uma janela cognitiva para apreender parte das ansiedades administrativas, dos conflitos e das tecnologias pelos quais projetos de transposio do cristianismo se impunham no Timor portugus.

  • 38

    durante todo o perodo analisado, busco dar destaque s mutaes pelas que categorias experimentaram durante os vinte e cinco anos do peridico Seara aqui discutidos.

    Tal opo metodolgica de pensar o cristianizar e o nacionalizar como categorias nativas inscreve-se em uma perspectiva que evoca um engajamento menos acusatrio e mais compreensivo da antropologia sobre organizaes classificadas por antroplogos como missionrias. Diante das reflexes epistemolgicas que tem pensado as ferramentas antropolgicas como dispositivos que impem a esses atores a posio de crentes ou que entendem o religioso como um subterfgio de um interesse poltico e econmico (ASAD, 1993; CANNELL, 2005; GIUMBELLI, 2011), ao dar religio e ao cristianismo status de categorias nativas, procuro relevar o carter idiossincrtico que essas possuem diante do contexto etnogrfico.

    Alm de um estudo sobre as prticas de comunicao e mediao da Diocese de Dli para fins de integrao e harmonizao, nos termos apresentados acima, essa dissertao possui vocaes secundrias. Como j afirmei no incio da introduo, o estudo sobre a Diocese de Dli propicia subsdios que coadjuvem na construo do conhecimento de fenmenos de longa durao que tm se imposto nas fronteiras leste-timorenses. Segundo Bernard Cohn, os estudos antropolgicos empreendidos pela observao participante potencializam sua qualidade heurstica quando trazem a dimenso do tempo para a anlise, j que as culturas esto constantemente sendo construdas e modificadas (COHN, 1987, p. 43). Como grande parte dos estados independentes surgidos na sia e frica, as fronteiras e os projetos de pacto e organizao scio-poltica de Timor Leste derivam parcialmente do legado colonial. Assim, parece-me que uma compreenso etnogrfica de algumas dimenses da ao missionria catlica no Timor Portugus pode auxiliar no entendimento de fenmenos sociais contemporneos.

    Ao mesmo tempo, essa dissertao tambm busca entrar em dilogo com estudos antropolgicos sobre as misses religiosas. Esse subcampo da antropologia, que se iniciou tardiamente dentro da histria da disciplina, teve Thomas Beidelman como pioneiro (COOPER, 2002; PELS, 1997). No inicio dos anos 1980, esse antroplogo lanou sua obra Colonialism Evangelism (BEIDELMAN, 1982), em que afirmou que a maioria dos estudos antropolgicos que se refere s misses teria se focado mais em questes sobre as transformaes nas populaes autctones advindas do contato com

  • 39

    missionrios do que necessariamente sobre essas organizaes em si mesmas.47 Esse antroplogo tambm relata que a ideia de estudar as misses surgiu quando, aps um longo perodo de pesquisa entre os Kaguru da Tanznia, percebeu que sempre negligenciou essa instituio em suas anlises:

    A vida colonial um tpico negligenciado pela antropologia ainda que o colonialismo tenha se envolvido, apenas a duas geraes atrs, aproximadamente metade do mundo e foi testemunhado pela maioria dos antroplogos como parte dos seus trabalhos de campo. No mximo, antroplogos estudaram o contato cultural, o impacto das foras coloniais sobre as sociedades nativas nas quais eles estavam fazendo seus trabalhos de campo. Os antroplogos escreveram pouco sobre as mudanas profundas pelas quais os europeus se submeteram tambm (BEILDEMAN, 1982, p. 3, traduo minha)

    Ainda que haja alguns estudos antropolgicos que focam o entendimento dessas organizaes (RAFAEL, 1993; KEANE, 2007), os investimentos majoritrios no estudo sobre o fenmeno missionrio tocam principalmente nos efeitos provocados pelas relaes dos missionrios com as populaes autctones, como a obra Of revelation and Revolution (COMAROFF & COMAROFF, 1991).

    Segundo um mapeamento bibliogrfico feito por Robin Wright,48 a parte majoritria da literatura antropolgica produzida no Brasil sobre misses religiosas se focaliza em entender a interpretao das cosmologias dos povos indgenas sobre os processos de converso (WRIGHT, 1999, p. 11), na medida em que se busca entender os modos pelos quais as populaes do sentido a artefatos advindos das relaes com missionrios, assim como se procura mensurar os efeitos das misses para as transformaes pretendidas pelos missionrios. Para Wright, apenas uma linha

    47 Apesar de ser posteriormente reconhecido como um trabalho com diferentes problemas terico-

    metodolgicos, este trouxe uma pauta de pesquisa, sendo uma constante citao nas obras de outros autores por abrir um caminho. Comaroff & Comaroff, me sua obra, destacam o papel da obra de Beidelman, apesar de tambm afirmar que Colonial Evangelism, de Thomas Beidelman, tem sido julgado tristemente imcompleto precisamente porque ele dar uma perspectiva antropolgica sistemtica ou romntica para dar conta do objet