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1 EMANCIPAÇÃO HUMANA E A AMBIGUIDADE PRESENTE NO HOMEM GREGO NA FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO: UMA PROPOSTA DE SÓFOCLES EM ÉDIPO REI. CZADOTZ, Regina Celia Rampazzo (UEM) INTRODUÇÃO O desenvolvimento da polis urbana, entre século IV e V a.C., permite ao cidadão grego exercer a sua autonomia, no entanto, no bojo das mudanças na forma de produzir a vida, o grego depara-se com a sua condição humana frágil e ambígua, que se apresenta no limite entre a razão e a paixão, trazendo sentimentos de insegurança e, a necessidade de buscar nos deuses o conforto da justa medida. Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo estudar Édipo Rei, de Sófocles, na busca de compreender a relação estabelecida entre os deuses e o homem, após a emergência da polis urbana, unidade independente e autônoma que possibilitou o desenvolvimento de uma individualidade e o sentimento de justiça terreno, presente no cidadão grego, no período de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica, características necessárias na formação do homem cívico. SURGIMENTO DA PÓLIS URBANA NO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE A GRÉCIA ARCAICA E A CLÁSSICA Embora a questão geográfica seja um dos aspectos a serem observados no surgimento da polis grega indicam que a falta de comunicação, devido ao relevo montanhoso, fez parte da dinâmica que possibilitou o surgimento da cidade estado. Compreende-se, no entanto, que alguns fatores psicológicos trazem algumas explicações sobre a forma de organização política constituída neste tempo histórico. Conforme assinala Pereira (1997): ...é que a insegurança posterior à invasão dórica e a falta de um poder central forte que defendesse os homens os levou a unir-se em pequenos territórios. Qual terá sido, todavia, a causa psicológica da formação desse regime?

EMANCIPAÇÃO HUMANA E A AMBIGUIDADE PRESENTE NO … · ... devido ao relevo ... pela legislação da polis. O herói conhecedor do manejo das ... instituição do tribunal da Helieia,

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EMANCIPAÇÃO HUMANA E A AMBIGUIDADE PRESENTE NO

HOMEM GREGO NA FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO: UMA

PROPOSTA DE SÓFOCLES EM ÉDIPO REI.

CZADOTZ, Regina Celia Rampazzo (UEM)

INTRODUÇÃO

O desenvolvimento da polis urbana, entre século IV e V a.C., permite ao cidadão

grego exercer a sua autonomia, no entanto, no bojo das mudanças na forma de produzir a

vida, o grego depara-se com a sua condição humana frágil e ambígua, que se apresenta no

limite entre a razão e a paixão, trazendo sentimentos de insegurança e, a necessidade de

buscar nos deuses o conforto da justa medida.

Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo estudar Édipo Rei, de Sófocles,

na busca de compreender a relação estabelecida entre os deuses e o homem, após a

emergência da polis urbana, unidade independente e autônoma que possibilitou o

desenvolvimento de uma individualidade e o sentimento de justiça terreno, presente no

cidadão grego, no período de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica, características

necessárias na formação do homem cívico.

SURGIMENTO DA PÓLIS URBANA NO PERÍODO DE TRANSIÇÃO ENTRE A

GRÉCIA ARCAICA E A CLÁSSICA

Embora a questão geográfica seja um dos aspectos a serem observados no surgimento

da polis grega indicam que a falta de comunicação, devido ao relevo montanhoso, fez parte da

dinâmica que possibilitou o surgimento da cidade estado. Compreende-se, no entanto, que

alguns fatores psicológicos trazem algumas explicações sobre a forma de organização política

constituída neste tempo histórico. Conforme assinala Pereira (1997):

...é que a insegurança posterior à invasão dórica e a falta de um poder central forte que defendesse os homens os levou a unir-se em pequenos territórios. Qual terá sido, todavia, a causa psicológica da formação desse regime?

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Como observa EHRENBERG, era costume antigamente dizer que o particularismo grego impedia a formação de uma nação unificada; mais recentemente entendeu-se que cada polis era uma pequena nação, e a Hélade uma unidade supranacional, como a Europa moderna em relação aos vários países independentes que a compõem, mas nenhuma destas explicações é perfeitamente exacta, pois o Pan- Helenismo desperta como força política, é um sinal de fadiga e de desejo de paz.( PEREIRA,1997, p.171e172).

Esta busca de desejo, de paz, destacado pela autora, como característica surgida pela

forma do homem produzir a vida, neste caso, a guerra, desencadeou bases para o

aparecimento do período helenístico, tempo caracterizado pela morte do herói e o nascimento

do cidadão grego, que buscava, na polis, as bases para a sua organização política, social e

religiosa.

A polis é um sistema de vida, e, por conseqüência, forma os cidadãos que nela habitam.... Uma certa extensão territorial, nunca muito grande, continha uma cidade, onde havia o lar como fogo sagrado, os templos e as repartições dos magistrados principais, a ágora, onde se efectuavam as transacções; e, habitualmente, a cidadela, na acrópole. A cidade vivia do seu território e a sua economia era essencialmente agrária. Cada uma tinha a sua constituição própria, de acordo com a qual exercia três espécies de actividade: legislativa, judiciária e administrativa. Não menores eram os deveres para com os deuses, pois a polis assentava em bases religiosas, e as cerimônias do culto eram ao mesmo tempo obrigações civis, desempenhadas pelos magistrados. (PEREIRA, 1997, p.173).

A emergência da polis urbana possibilitou ao cidadão grego a formação da sua nova

organização social, isto é, anteriormente o que se tinha era uma sociedade estruturada no

patriarcalismo, ou seja, sociedade constituída por homens de uma aristocracia que

vivenciavam o costume da vida arraigada na terra. Época do líder familiar, que buscava

segurança nos muros dos palácios reais, bem como no mito e nos deuses, a tranquilidade e os

direcionamentos da vida, na busca da continuidade da organização da ordem social

estabelecida a qual defendiam com um heroísmo o que caracterizou a mentalidade do período

que se convencionou chamar de Grécia Arcaica.

O período micênico ( séculos XVI a XII a. C.) apresenta o surgimento de uma sociedade ligada às grandes civilizações do Mediterrâneo oriental, integrada por com seguinte, ao mundo oriental. Nessa época, ocorreu o apogeu do mundo palaciano e aristocrático. A sociedade apoiava-se no mito e concentrava na figura do rei divino os poderes administrativos, econômicos, militares e religiosos. Surge o soberano absoluto, habitante de

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uma fortaleza cercada de muros cuja peça central era a sala do trono. (COSTA, 1988, p.6).

As mudanças que ocorreram na estrutura da Grécia Arcaica que, ocasionou o

surgimento da Grécia Clássica, decorreram, principalmente, dos fatores econômicos, sociais e

políticos que não aceitavam as formas de organização social presentes. Nestes grupos

destacam-se homens que conseguiram acumular bens materiais, a exemplo daqueles que

enriqueceram com o advento do comércio marítimo.

Essa época (século XII a.C.) caracterizou-se, principalmente, pela dissolução do poder absoluto simultaneamente à institucionalização de uma estrutura de poder que compreendia quatro domínios: religioso, o guerreiro, o agrícola e o mágico. Momento em que a monarquia cedeu lugar à aristocracia, é um período de transição onde o mágico ligava-se as forças do fogo e onde as forças do artesão serviu para expressar a idade do ferro.(COSTA, 1988, p.8).

Este movimento, que ocasionou a formação da cidade estado, deve-se, não apenas ao

surgimento do comércio, mas, também, constituiu-se em função das necessidades presentes

na própria condição de vida do grego, neste caso, a busca de lugares mais seguros para

sobreviver, ocasionando uma série de migrações, na medida em que ocorria o fenômeno da

superpopulação. A fundação era precedida de todo um ritual, devidamente planeado. Depois de consultar o oráculo ( geralmente o de Apolo em Delfos), um grupo de cidadão abandonava sua terra, sob a direção de um colonizador ( oίκιστης), levando consigo fogo sagrado do lar da cidade, para fundar longe dali uma colónia( άποικία = “ lar distante”).Este chefe da expedição distribuía as terras e recebia mais tarde culto, na qualidade de fundador, A colónia herdava da cidade - mãe (μητρόπολις), além do fogo sagrado, a religião, instituições, calendário, dialecto, alfabeto. Mas não lhe incubiam obrigações tributárias (salvo raríssimas excepções), nem tinha quaisquer outros deveres políticos para com a fundadora. Os laços existentes eram de ordem moral. (PEREIRA, 1997, p.175 e 176).

As novas colônias surgidas reforçavam o desenvolvimento do comércio e, o avanço

nesta área, levou ao surgimento de algumas necessidades, até então não vivenciadas. A

utilização da moeda, o reaparecimento da escrita que, neste momento, tinha como objetivo o

registro das leis públicas necessárias à organização da vida da polis, possibilitaram ao cidadão

grego manifestar seus interesses e a reivindicar seus direitos cívicos e políticos. Nesse

cenário aparecem grupos que se destacaram socialmente pelas suas posses, abalando as

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antigas relações gentílicas, que passaram a dar lugar às novas formas de vida estabelecidas

pela legislação da polis.

O herói conhecedor do manejo das armas, das estratégias de guerra, não correspondia

aos ideais que estavam surgindo na polis democrática. A morte do guerreiro, cortesão e,

temente aos deuses, suscitava o aparecimento de um novo modelo de homem. Cidadão com

capacidade de participar da assembleia e, assim, decidir sobre os rumos da sua existência.

A polis, a formação da cidade estado, consolidou-se em um dos instrumentos

fundamentais para o desenvolvimento de todo o pensamento da Grécia Clássica, surgida e

organizada mediante as condições de sobrevivência na forma do homem produzir a vida.

Revelava a vida dos cidadãos gregos, suas necessidades e anseios.

O DESENVOLVIMENTO DO INDIVIDUALISMO E O SENTIMENTO DE JUSTIÇA

RELACIONADO AO TRABALHO DO HOMEM

Neste período histórico (séculos VIII e VII a.C.) o poder de argumentação se

manifesta e o homem passa a buscar, em si mesmo, condições para consolidar sua autonomia

na forma de viver e representar o mundo. Assim, a racionalidade sobrepõe ao mito e aos

deuses e, a vida pública se torna a razão de existência do cidadão.

Só na polis se pode encontrar aquilo que abrange todas as esferas da vida espiritual. No período primitivo da cultura grega todos os ramos da atividade espiritual brotam diretamente da raiz unitária da vida em comunidade. Poderíamos comparar isso a múltiplos regatos e rios que desembocassem num único mar – a vida comunitária – de que recebessem orientação, e refluíssem e à sua fonte por canais subterrâneos e invisíveis (JAEGER, 1994, p.107).

A possibilidade ocasionada, com o advento do comércio na polis, impulsionada pelas

trocas comerciais entre as cidades estado resultou no fato de uma parcela da população

acumular bens, ocorrendo desequilíbrios na balança econômica. Isso, de certa forma, trouxe

consequências para alguns cidadãos, que passaram a ser destituídos das suas terras em

decorrência das dívidas acumuladas.

A estes diversos factores, aos quais devemos acrescentar a pobreza do solo grego e o mais importante e esquecido de todos – a natural desigualdade humana, exemplificada no caso típico de Hesíodo, o irmão diligente, e

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Perses, o irmão preguiçoso – vem juntar-se como conseqüência o aumento da escravatura, e, portanto a redução na procura de mão de obra livre. Efectivamente, ao agricultor reduzido à miséria só restava a solução de se entregar como escravo, para saldar as suas dívidas. E, sendo assim, os homens livres já tinham dificuldade em encontrar quem os assalariasse. (PEREIRA, 1997, p.177 e 178).

As dificuldades surgidas nesta época, pelo modo de produção da vida dos gregos,

desencadeou um sistema de poder, a tirania, no qual o governante, apoiado pelos

comerciantes, adquire a força e o poder. Esta forma de governo, relacionada às leis da Grécia

arcaica, também está ligada a uma das grandes conquista da cultura ocidental, desenvolvida

pelos gregos, o surgimento da democracia.

Em Atenas, cuja tirania foi, por mais surpreendente que pareça, das últimas a acabar, a ação dos Pisístratos é notável. Fazem grandes obras, quer na Acrópole, quer na Ágora ( como altar dos doze deuses) e principiam o templo colossal de Zeus Olímpico – que, aliás, só seria concluído no séc. II d, C., no tempo de Adriano; abastecem de água a cidade; tomam medidas econômicas importantes, como o empréstimo aos lavradores em dificuldades; efectuam reformas religiosas, de grande projecção cultural também, como a reorganização das Panateneias, com a recitação dos Poemas Homéricos, e a instituição das Grandes Dionísias, junto das quais nascera o teatro ( PEREIRA, 1997, p.179).

O desenvolvimento de um sistema legislativo trouxe, para a época, uma maior

estabilidade na vida social, substituindo a força pelo direito, em oposição à sociedade anterior,

pautada na concepção guerreira. Este fato possibilitou o processo de formação cívica do

grego, o desenvolvimento da polis democrática e o surgimento do cidadão.

(...) De certo modo, como veremos, a história das cidades gregas é marcada pelo crescimento mais ou menos rápido desta minoria, que acabará por englobar todos os membros da comunidade, como acontecerá na Atenas democrática, a partir do século V a.C. Esta época será o termo de uma evolução que se prolongou por dois séculos, o cidadão tornar-se-á uma realidade... (MOSSÉ, 1999, p.10).

O autor discorre a respeito da constituição e organização da sociedade grega, partindo

do período homérico até o helenístico, destacando uma maior participação política de todos

aqueles que eram considerados cidadãos gerenciadas pelas leis implantadas na polis.

Não podemos esquecer, no entanto, que ela é resultante de um processo histórico, cuja raízes se encontram no começo do séc.VI e, mais concretamente, na ação de Sólon, que aliás, não foi o primeiro legislador ateniense. Antes dele existiu Drácon, autor de leis que ficaram famosas pela

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sua extrema severidade... Ora precisamente uma das medidas mais importantes de Sólon foi a abolição da escravatura por dívidas (..........). Outras foram de proteção à agricultura e indústria (obrigação de cada pai ensinar ao filho a sua arte, e chamada a Atenas de artífices de fora, aos quais concedia a cidadania) e ao comércio, a criação de uma moeda própria, com a concomitante alteração de pesos e medidas, e, sobretudo, instituição do tribunal da Helieia, para o qual todos tinham o direito de apelar contra as sentenças dos magistrados, cujo poder ficava assim cerceado. (PEREIRA, 1997, p.189)

Estas questões foram discutidas e representadas pelas expressões artísticas, que

culminaram nas Grandes Dionísias.

(...) enquadrada numa série de cerimônias de caráter cívico e religioso simultaneamente, a ela assiste toda polis, pois até os pobres podem levantar os seus bilhetes numa espécie de fundo comum, o theoricon, Não é divertimento e distração para o espírito cansado pelas tarefas quotidianas. O cuidado em que tais actos se efectuem anualmente com toda regularidade era uma das grandes preocupações dos Atenienses, que até encerravam os tribunais durante esse período. (PEREIRA, 1997, p.392).

A democracia vivida na antiguidade é consequência do sentimento de pertencimento

da coletividade, manifestada na polis. Assim, todos os que eram considerados cidadãos

participavam, em praça pública, dos direcionamentos da cidade estado e refletiam, por meio

das representações artísticas, a vida e a forma de manifestar a mesma. Neste sentido, a figura

do cidadão é valorizada, permitindo ao grego participar das decisões a respeito da sua vida e,

da vida da polis.

SENTIMENTO DE AMBIGUIDADE E FRAGILIDADE DO HOMEM EM

DECORRÊNCIA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA

Na esteira desse processo de mudanças e contradições, o cidadão grego encontrou, no

teatro, uma das maneiras de entender suas dúvidas e anseios. A representação artística, por

meio das narrativas trágicas, orientava o homem na formação da sua consciência, na medida

em que o conduzia a refletir a respeito das coisas do mundo, perante a nova ordem social que

surgia.

A obra artística, por meio do enredo trágico, mobilizava a todos os que assistiam, em

praça pública, pensar a respeito dos conflitos presentes da própria vida dos gregos, bem como

refletir os meios na condução da sua existência. O herói trágico, ao transgredir uma lei, aceita

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pela comunidade e, sancionada pelos deuses, recebe a punição em decorrência da sua

desobediência. Instala-se a desgraça humana, reflexo da desordem e do caos.

A articulação entre o humano e divino, na tragédia, comprova o conflito entre o pensamento racional e o mítico, o que demonstra que o domínio da tragédia se localiza onde os atos humanos se articulam com os deuses [...]. Outra característica é revelar a ambigüidade resultante do choque entre ethos e dáimon, já que, na tragédia, o herói trágico quer guiar-se por seu próprio caráter (ethos), mas está subordinado à força, ao gênio mau ( daimon). Também caracteriza a tragédia um acontecimento aterrorizante, representado pelas interdições do mundo cultural grego: o parricídio, o incesto, o regicídio. ( COSTA,1988,p.9).

O herói trágico, ao representar as fragilidades e inseguranças vividas pelo cidadão da

polis, sem demonstrar preocupação, revela uma proposta formativa, pois permite ao

espectador, em praça pública, vivenciar meios para pensar a respeito da própria existência,

formar a sua consciência, frente as novas exigências surgidas na polis. Este processo de

transformação, vivido pelo cidadão grego, reflete a necessidade da sociedade de buscar um

modelo formativo, tendo em vista o homem que deveria responder a nova ordem social.

Significativo, neste sentido, foram os conteúdos formativos presente no enredo

trágico, a exemplo das tragédias de Sófocles (496-406 a.C.), que compreendem a denominada

Trilogia Tebana: Édipo Rei, Édipo em Colono e Antígona. Os personagens da peça da

Trilogia Tebana, principalmente Édipo, Creonte e Teseu, revelam, no decorrer da narrativa, o

surgimento de novos conceitos a respeito do mundo. Concepção exigida por uma nova ordem

social, presentes na obra de Sófocles. De forma geral, a Trilogia Tebana narra o mito de

Édipo, um rei que tem a preocupação em esclarecer os mistérios de um assassinato que foi

realizado por ele próprio. Em Édipo rei, o ideal de homem Homérico é colocado à prova, na

medida em que este herói cede lugar a um homem com vontade própria, que desrespeita os

desígnios dos deuses, e passa a buscar, no próprio homem, as respostas para os seus

questionamentos. No entanto, esta posição, frente ao mundo, traz para o cidadão a

responsabilidade de assumir as consequências pelos seus atos.

Édipo Foi Apolo! Foi sim, meu amigo! Foi Apolo o autor dos meus males, De meus males terríveis; foi ele! Mas fui eu quem vazou os meus olhos. Mais ninguém. Fui eu mesmo o infeliz!

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Para que serviram os meus olhos Quando nada me resta de bom Para ver? Para que serviriam? (ÉDIPO REI, vv 1176-1182, p.67).

O tragediógrafo deixa claro que, caso o homem exceda na condução da sua própria

vida, terá o castigo dos deuses. Veicula, também, novas formas de pensar e agir no mundo,

que exigiam do grego encontrar, em si mesmo, respostas para os seus questionamentos ainda

influenciados pelo modo de pensar da Grécia arcaica.

Édipo ...pois cheguei, sem nada conhecer, eu Édipo

e impus silêncio à esfinge; veio a solução de minha mente e não das aves agourentas... (Édipo REI, vv.476-479, p.39)

Sófocles convoca o homem a assumir a sua responsabilidade, tira das mãos dos deuses

a sua história e passa a dar novos direcionamentos para a sociedade. No entanto, ele levanta a

preocupação com a justa medida, pois o homem que não a apresenta, terá o castigo dos

deuses.

Coro ...o homem que nos atos e palavras se deixa dominar por vão orgulho sem recear a obra da justiça e não cultua propriamente os deuses está fadado a dolororoso fim, vítima da arrogância criminosa que induziu a desmedidos ganhos, a sacrilégios, a loucura máxima de profanar até as coisas santas (Édipo Rei, vv. 1051-1059, p.63)

Assim, ao tirar das mãos dos deuses a sua história, mesmo que esta situação lhe tenha

como retorno o castigo, Sófocles mostra o drama de toda a sociedade e, nesta perspectiva,

busca a construção de uma nova história.

Édipo Ai de mim! Ai de mim! As dúvidas desfazem-me! Ah! Luz do sol. Queriam os deuses que esta seja a derradeira vez que te contemplo! Hoje tornou-se claro a todos que eu não poderia

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nascer de quem nasci, nem viver com quem vivo e, mais ainda, assassinei quem não devia! (Édipo Rei, VV. 1387-1392, p.82).

Com Sófocles encerra-se a compreensão, por meio do mito, seu enredo trágico,

embora não seja uma racionalidade explícita, contém certa racionalidade, na forma de se

expressar, na medida em que tenta justificar e refletir sobre os acontecimentos, constituindo-

se em um exercício premeditado.

A FORMAÇÃO DO HOMEM CÍVICO PROPOSTO POR SÓFOCLES EM ÉDIPO REI

A possibilidade de refletir, por meio do enredo trágico, sobre as dificuldades

vivenciadas pela sociedade, permitia ao cidadão grego expressar suas preocupações referentes

ao processo de transição entre a Grécia Arcaica e a Clássica. Pois, ao expressarem um cenário

de contradição, que revelam homens perdidos frente a negação dos desígnios dos deuses, as

tragédias evidenciam o surgimento de novos padrões requeridos pela sociedade em

transformação.

CRIADO Ele esbraveja e manda que abram o palácio E mostrem aos tebanos logo o parricida, O filho cuja mãe...não posso repetir Suas sacrílegas palavras; ele fala Em exilar-se e afirma que não ficará Neste palácio, vítima das maldições Por ele mesmo proferidas. Deveremos Levar-lhe apoio, dar-lhe um guia, pois seu mal É muito grande para que ele sofra só (Édipo Rei,VV. 1525-1533,p.86)

A figura de Édipo chama a atenção para que a Cidade- Estado seja vista como o início

e, o fim das preocupações dos gregos, isto é, a valorização do público em detrimento aos

interesses pessoais. Neste sentido, a vida pública representava as bases da existência e da

felicidade do grego. Homem exemplar, que buscava na racionalidade as respostas para seus

anseios e dúvidas, contrapondo-se aos conselhos dos deuses. Constituía-se em preocupação

primeira de Sófocles na peça: Édipo Rei, motivo de ter exercido papel significativo no

processo formativo do homem grego do seu tempo.

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Um escultor de hombres como Sófocles pertenece a la história de la educación humana. Y como ningún outro poeta griego. Y ello sentido completamente nuevo. Em su arte se manifiesta por primera vez la conciencia despierta de la educación humana. (JAEGER,1995,p.252).

O provável é que Sófocles entendeu que o herói, habilidoso no manejo das armas e das

estratégias de guerra, não correspondia aos ideais que estavam surgindo na polis democrática.

A morte do guerreiro, cortesão e, temente aos deuses, suscitava o aparecimento do cidadão

com capacidade de participar da assembleia e, assim, decidir sobre os rumos dela e da sua

existência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O drama trágico narrado por Sófocles aborda temas caracterizados, vividos na época,

tais como: conflito entre as leis dos deuses e do homem, as limitações humanas e, a

necessidade do homem buscar, em si mesmo, as respostas para seus questionamentos. O que

leva a existência de uma sociedade que é capaz de dirigir os rumos da sua própria vida,

exigência da nova forma de organização social, surgida com a polis. No entanto, revela a

ambiguidade vivida pelo grego, na forma de constituir cidadão.

Sófocles, com seu drama trágico, contribuiu, de maneira significativa, para que o

homem grego vivenciasse seus medos e, dessa forma, pensasse e refletisse sobre sua própria

existência e sobre a vida da cidade estado. Daí o seu papel formativo, mesmo sem uma

intenção clara, deste homem que a polis estava requisitando. Ao pensar, refletir e vivenciar,

por meio da obra artística, as contradições da sua existência, o homem se potencializa frente

a polis.

Nesta perspectiva, considera-se que as possibilidades dadas ao cidadão grego, naquele

tempo histórico, o desenvolvimento do comércio, o aparecimento da moeda e da escrita, que

culminaram na formação da polis, representam as bases materiais na forma do homem

produzir a vida naquele período, permitiram aos mesmos organizaram-se de maneira a

desenvolver a capacidade de pensar e refletir as coisas do mundo e, consequentemente, os

rumos da própria existência. Observa-se que o cidadão grego, ao vivenciar suas contradições,

por meio da obra artística, se humaniza e permite o próprio desenvolvimento da história dos

homens.

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REFERÊNCIAS

COSTA, Lígia Militz da; REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. A tragédia Estrutura e

História. São Paulo: Editora Ática, 1988. 132 p.

JAEGER, Werner. Paidéia: A formação do homem grego. Trad. Artur M. Parreira. 3 ed.

São Paulo: Martins Fontes, 1994. 1413 p.

MOSSÉ, Claude. A Grécia Arcaica de Homero a Ésquilo (Séculos VIII-VI a.C). Trad.

Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa: Edições 70,1984. 93 p.

PEREIRA, Maria Helena da Rocha. Estudos de História da Cultura Clássica – Cultura

Grega. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenakian, 1997. v.1. 710 p.

SÓFOCLES. A Trilogia Tebana. Zahar, 1996.