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Emboscada - Herberto Sales

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Conto de Herberto Sales

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Arte, impressão e acabamento:Thesaurus Editora de Brasília

Editor: Victor Alegria

Os direitos autorais da presente obra estão liberados para sua difusão desde que semfins comerciais e se citada a fonte. THESAURUS EDITORA DE BRASÍLIA LTDA. SIGQuadra 8, lote 2356 – CEP 70610-480 - Brasília, DF. Fone: (61) 3344-3738 – Fax:(61) 3344-2353 *End. Eletrônico: [email protected] *Página na Internet:www.thesaurus.com.br – Composto e impresso no Brasil – Printed in Brazil

© Copyright Thesaurus Editora – 2007

LILIANE BERNARDES CARNEIRO é mineira de Patos de Minas.Formada em Pedagogia pela Universidade Católica de Brasíliae mestranda em Ciência da Informação / Universidade deBrasília. Professora da Secretaria de Estado de Educação,atualmente está cedida para a Biblioteca Nacional de Brasília.Participou da comissão de implantação da Biblioteca Públicade Ceilândia e como assessora da Diretoria de Bibliotecas/Secretaria de Estado de Cultura coordenou atividades culturaisna Feira do Livro de Brasília, um dos eventos literários maisimportantes da capital do país. Em 2006, a convite doMinistério da Cultura da Espanha, em Santa Cruz de La Sierra- Bolívia, apresentou o programa de políticas públicas deincentivo ao livro e à leitura desenvolvido no Distrito Federal,com destaque aos seguintes projetos: Inclusão Digital para aRede de Bibliotecas Públicas do DF; Revitalização, Modernização, Ampliação e Dinamização da Rede deBibliotecas Públicas do DF. Desenvolveu e coordenou, ainda,projetos importantes na área de leitura, entre os quais OEscritor no Meio da Gente e a Tenda da Leitura.

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HERBERTO SALES, jornalista, contista, romancista ememorialista, nasceu em Andaraí, Bahia, em 21 de setembrode 1917. Faleceu no dia 13 de agosto de 1999, no Rio deJaneiro. Membro da Academia Brasileira de Letras, trabalhouno Diários Associados, de Assis Chateubriand, na área darevista O Cruzeiro da qual foi assistente de redação. Em1974 mudou-se para Brasília, onde foi diretor do InstitutoNacional do Livro e assessor da Presidência da República. Apartir de 1986, por quatro anos, residiu em Paris, servindocomo adido cultural à Embaixada Brasileira. Regressando aoBrasil, fixou residência em São Pedro da Aldeia, Rio deJaneiro.

Principais obras de Herberto Sales: Cascalho (1944);Além dos marimbus (1961); Dados biográficos do finadoMarcelino (1965); Histórias ordinárias (1966); Osobradinho dos pardais (1969); O lobisomem e outroscontos folclóricos (1970); Uma telha de menos (1970); OJapão: experiências e observações de uma viagem (1971);A feiticeira da salina (1974); A vaquinha sabida (1974); Ohomenzinho dos patos (1975); Armado cavaleiro o audazmotoqueiro (1980); Einstein, o minigênio (1983); Os

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA

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pareceres do tempo (1984); O menino perdido (1984); Avolta dos pardais do sobradinho (1985); A porta de chifre(1986); Subsidiário (1988); Na relva da tua lembrança(1988); Andanças por umas lembranças (Subsidiário 2)(1990); O urso caçador (1991); Eu de mim com cada um demim (Subsidiário 3) (1992); Rio dos morcegos (1993); Asboas más companhias (1995); Rebanho do ódio (1995); Aprostituta (1996).

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Os dois homens começaram a descer a encosta.O velho Patuá vinha na frente. Era um cabrade ombros estreitos, grande bigode e pernas

em arco, muito firmes ainda para a sua idade. O negroGuido seguia-o de perto, sustendo na mão esquerda acapanga de munição. Na semi-obscuridade damadrugada, o vale esboçava amplos paredões hirtos,encaixotando funebremente o rio. Os dois homenssaltavam de uma pedra para outra, desciam peloslajedões talhados quase a pique, subiam por íngremesatalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça demalva ou de velame, com uma agilidade de cabritosmonteses. Agora, porém, tinham eles conseguidoalcançar um trecho melhor do caminho, e andavam numpasso regular, encolhidos nos capotes surrados.

O ar era frio e úmido.— Será que ele passa hoje? – perguntou Guido.— Tem de passar — respondeu o outro homem.

— Não é possível que o santo dele seja tão forte.— Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por

ele...— É assim mesmo. Tem emboscadas que dão

muito trabalho. Você ainda não viu nada.— De qualquer maneira, confesso que isto já

está me amolando — disse o outro.

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O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brimmescla um pedaço de fumo de corda e, com umadentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigohábito seu, do qual trazia marcas nos longos caninosencardidos.

— Quanto mais se você tivesse ajudado a gentea matar o Major Cavalcanti! — disse.

— O que foi que teve?— Nós esperamos por ele na emboscada oito

dias seguidos.— Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta

paciência. Juro.— Será que nunca lhe aconteceu uma coisa

destas?— A mim? Deus me livre!Andando sempre, os dois homens contornaram

uma grande rocha, e atravessaram em seguida umamoita de capim-gordura. O negro Guido olhou:amanhecia. A aurora barrava o horizonte de vermelho,e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meioa um espantoso incêndio. Então o velho Patuá, queusava chapéu de couro e trazia as calças arregaçadas,disse de repente:

— Pois pode preparar o dedo, companheiro, quede hoje ele não passa.

— Como é que você pode saber disso? —indagou o outro homem, meio intrigado.

— Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe

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interessa. Sobre certas coisas é melhor a gente nãofazer perguntas.

O negro era muito supersticioso e revelava umaespécie de místico respeito pelo seu companheiro.Disse com hesitação:

— Eu sempre ouvi dizer que você era um mestreem rezas bravas... Na verdade, eu estou aqui fazsomente um mês. Mas em minha terra me contarammuitos casos que aconteceram com você.

— Não lhe disseram que eu tinha parte com oDiabo? — perguntou sardonicamente o velho.

E o outro, olhando-o de lado:— Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi

dizer que você tinha reza para amarrar rastro, e atépara fazer uma pessoa desaparecer.

O velho Patuá assumiu um ar de mistério:— Você fala demais, Guido.— Eu não falei por mal... — disse o outro homem,

arrancando uma haste de capim com a larga mão de palmamusculosa. — Se você não gosta de perguntas, acabou-se. Eu só quero é que ele não deixe de passar hoje.

— Pois fique calado e espere.Os dois homens subiram uma rampa, entraram

por um atalho, e pararam defronte de uma pequenacaverna. Em torno, a vegetação era rude eagressiva. Instalaram-se atrás de uma pedra, comojá vinham fazendo havia dois dias, e o velho Patuáobservou:

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— Este lugar é o melhor possível. Daqui a gentepode atirar nele à vontade.

Estavam instalados na crista de um precipícioque dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra.O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgadoentre selvagens e imponentes escarpas. No céu, umtom róseo substituía agora o vermelho sangüíneo deantes. Pássaros-pretos cantavam.

— Quer fazer uma combinação, Patuá?perguntou o negro Guido.

— Qual é?— Como você tem melhor pontaria, atira na

cabeça dele.— E você?— Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil.O velho Patuá, teve um risinho sarcástico :— Não pensei que você fosse tão nervoso,

Guido.O outro homem guardou silêncio, demonstrando

não ter gostado da observação do companheiro. Derepente, atentando na pedra que ficava à entrada dacaverna, foi empolgado pela certeza de estar bemprotegido. “Caso ele reaja” — pensou — “toda avantagem é minha, pois estou numa boa trincheira.”Depois desembainhou a sua longa e afiada faca, de dezpolegadas e começou a cortar fumo para um cigarro.

Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha umaexpressão cruel e concentrada) para inspecionar mais

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uma vez o local. Completando de maneira magnífica asvirtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a cristaum imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada dacaverna. Olhando através da folhagem, que descia emcortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos,àquela, hora deserta, por onde o homem teria de passar.

— Vai ser uma pontaria bonita — disse. — Elenão vai nem gemer.

O chão da caverna era coberto de capim — tufosverdes, amarelados, macios — e o velho Patuá sentou-se. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas,retirando da capanga a munição para a carga.

— Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar devigia — disse. Sentado como estou, não possoenxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando dejoelhos, você domina a estrada toda. É só um instante,Guido. Eu carrego a arma depressa.

— Está certo — concordou o outro homem.— Está enxergando bem? — perguntou ainda o

velho.— Estou.De joelhos como se achava, Guido dominava

realmente toda a estrada. A pedra lhe dava na alturado peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe acabeça. Nessa posição, acendeu um cigarro, tendo ocuidado de soltar as baforadas para dentro da caverna,o que fez por duas vezes. Mas, logo depois, atinandocom a inconveniência de estar fumando ali, pois a

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fumaça, poderia, denunciar sua presença no local,apagou imediatamente o cigarro, esmagando-o naponta de uma pedra. Depois soprou com força, paraexpelir o resto de fumaça que tinha na boca.

— Cadê a rolimã? — perguntou o velho Patuá.— Você vai carregar com ela? — disse Guido,

sem desviar os olhos da estrada.— Vou. Você não quer que eu atire na cabeça

dele? Portanto, vou precisar de uma carga possante. Eande depressa. Porque antes das sete horas ele deveestar passando por aqui.

Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã,que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalharanuma garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos depólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão eespoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que deviaservir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e erado tamanho de um caroço de pitanga.

— Tome — disse, passando-a ao companheiro.O velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a

examinou por um momento, como se estivesseavaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça dohomem a ser morto. Com ela carregou a arma, juntandoboa dose de pólvora e algum chumbo grosso. Depoissocou a bucha e colocou a espoleta.

— Pronto? — perguntou Guido.— Pronto — respondeu o velho, limpando nas

calças a mão suja de pólvora.

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E depois de mais uma vez examinar a arma :— Agora você carregue a sua, que eu fico de

vigia.Mais que depressa, o negro Guido trocou de

lugar com o companheiro e tratou de carregar o seuclavinote. Notando, porém, ao retirar a munição dacapanga, que a carga talvez não ficasse bastante forte,perguntou ao velho:

— Você não tem aí um chumbo mais grosso doque este meu?

— Tenho — respondeu o outro homem. —Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem;é chumbo para matar onça. Tome.

E passou a lata de chumbo ao negro.— Mas eu acho bom você botar estes pregos

também — acrescentou. — Reforça mais.O negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e

socou, bem socada, a carga do seu clavinote.— Não bote chumbo demais não — observou o

velho Patuá.— Você está pilheriando? — respondeu Guido,

guardando na capanga o pedaço de chifre que lheservia de depósito de pólvora.

— Pilheriando?— Sim, companheiro. Será que você acha que eu

não sei carregar uma arma?— Estou avisando por avisar.— Fique sossegado. A carga foi bem calculada.

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O velho Patuá voltou-se rapidamente para ocompanheiro e, vendo que este já havia carregado aarma, disse:

—Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. Eagora fique aqui junto de mim.

O negro devolveu o chumbo restante, que ovelho guardou apressadamente na capanga eentrincheirou-se atrás da pedra.

— Eu não estou enxergando bem daqui, não —disse, espiando por entre as folhas do imbezeiro. —Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.

— Então, fique — concordou o outro homem.— E você já sabe : só atire quando eu mandar.

— Está certo — respondeu Guido. — Mas euacho que a gente só deve atirar quando ele entrarnaquela curva.

E com o dedo apontou o local.Era o trecho mais estratégico da estrada, porque

ali a vítima poderia ser colhida pelas costas.— O tiro vai ser seguro — garantiu Guido.O velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar

nenhuma sugestão do companheiro. Como jagunçoque já tomara parte em várias emboscadas, tinha, deresto, as suas vaidades. Respondeu secamente:

— Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhedigo.

Entretanto, o negro Guido não deixou de mudarde posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O

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velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta dacaverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinotecontra a pedra. O lugar que escolhera proporcionavauma visibilidade perfeita.

— Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora— confessou Guido.

— É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem —respondeu o velho Patuá. — Não tem mais nem umpingo.

— Se ele não tivesse se atrasado — disse o outrohomem — eu não estava agora com a garganta seca.Nós trouxemos bastante cachaça.

No fundo, também o velho Patuá sentia falta dabebida. Entretanto, mordaz, com o intuito de rebaixaro companheiro, perguntou:

— Será que você precisa beber para criarcoragem?

Mas já o negro Guido não o escutava:— Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo?O outro homem estava ouvindo. E identificou o

ruído como sendo o dos cascos de um animal que vinhasubindo a serra.

— É. Talvez seja ele — disse. — Vamos nospreparar para fazer fogo.

Os dois clavinotes estavam apontados emdireção à estrada. Os canos tinham sido apoiadossobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. Aessa altura, já o Sol faiscava nos lajeados, e o ar, embora

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frio, era reconfortante e seco. Um sabiá veio pousarperto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentiros dois homens. Houve em seguida um rumor de folhas,provocado por uma lagartixa em fuga.

— Já vem bem perto — disse o negro Guido,com o dedo no gatilho da arma.

O tropel fazia-se ouvir cada vez mais próximo.De repente, surgiu, no topo do atalho, a cabeça de umcavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que ooutro dava visíveis mostras de excitação. À vista dacabeça do cavalo, seus lábios chegaram mesmo aembranquecer, como se uma sede atroz o tivesseassaltado.

— Será ele mesmo? — perguntou.Foi quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada

descuidado, assobiando. Guido logo reconheceu ofazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incertezano seu espírito transformou-se imediatamente numasensação de alívio, marcada a um só tempo de medo ecrueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre como dedo no gatilho. Viu o homem parar de assobiar,enxugar o suor do rosto, com um lenço que de novoguardou no bolso, e acender o cigarro.

Foi quando o velho Patuá comandou :— Fogo !O negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria

contra o paletó de brim cáqui, onde havia manchas desuor.

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— Fogo! — repetiu o velho Patuá, num tom deirritação.

E, com o clavinote apontado para a nuca dohomem, apertou o gatilho. O negro Guidoacompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmotempo que a caverna se enchia de fumaça. Como seuma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram.Um desabrido tropel foi então ouvido : era o cavalo dofazendeiro, que fugia com os arreios vazios. Espantado,corria doidamente estrada abaixo – as caçambasbatendo como sinos. Como sinos roucos.Estranhamente roucos.

***

O conto Emboscada foi extraído da “Antologia escolarde contos brasileiros”, organizada por Herberto Sales,seleção de Ivo Barbieri e Maria Mecler Kampell. _ 5ª. ed. _São Paulo: Ediouro, 2002.

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