Emil Staiger - Conceitos Fundamentais Da Poetica

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  • Conceitos Fundamentais da PoticaEmil Staiger

    Tempo Brasileiro Rio de Janeiro, 1977Traduo de Celeste Ada Galeo

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  • NOTA DO TRADUTOR

    As afirmaes de Staiger so ilustradas na maioria das vezes com composies alems e gregas. No caso de poesias lricas, em que o clima, como defende o prprio Staiger, irreproduzvel, ou de composies em verso focalizando algum aspecto da mtrica, transcrevo no corpo da obra os versos originais e em nota de p de pgina limito-me a uma traduo literal, que reflete unicamente o contedo.

    Da Ilada e da Odissia apresento a traduo de Carlos Alberto Nunes, igualmente em versos como a traduo alem de que se serve o autor.

    As notas numeradas so de Staiger; as notas do tradutor vm introduzidas por um asterisco.

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  • SUMRIO

    Introduo...........................................................................................................13Estilo Lrico: A Recordao................................................................................19Estilo pico: A Apresentao..............................................................................76Estilo Dramtico: A Tenso...............................................................................119Da Fundamentao dos Gneros Poticos........................................................100Eplogo..............................................................................................................180

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  • INTRODUO

    Por Conceitos Fundamentais da Potica se entendem aqui as noes de pico, lrico, dramtico e at certo ponto trgico e cmico num sentido, porm, que se distingue do comumente usado at agora e que logo de incio dever ser explicado.

    De h muito Potica no mais significa ensinamentos prticos para habilitar leigos a escrever corretamente poesia, obras picas e dramas. Mas um rano da conceituao mais antiga impregna ainda ensaios de hoje, quando estes parecem ver realizada em modelos de poemas, obras picas ou dramas, a essncia do lrico, pico e dramtico. Essa maneira de enfocar o problema se apresenta como herana da antiguidade. Naqueles tempos, cada gnero literrio era representado por um pequeno nmero de obras. Era lrica toda poesia que se assemelhasse em composio, extenso e principalmente na mtrica s criaes dos autores lricos considerados clssicos, Alcman, Estesdoro, Alceu, Safo, Ibico, Anacreonte, Simnides, Baqulides e Pndaro. Os romanos podiam, assim, classificar Horcio como lrico, mas no Catulo, j que este escolhera outros ps mtricos. Mas da antiguidade at hoje, os modelos multiplicaram-se indefinidamente. A Potica encontrar, portanto, dificuldades quase insuperveis, e, caso solucionadas, de muito pouco proveito, se continuar procurando classificar todos os exemplos isolados. A Potica teria para continuarmos dentro do gnero lrico que comparar baladas, canes, hinos, odes, sonetos e epigramas entre si, percorrer sua evoluo durante um ou dois milnios consecutivos, e descobrir o que h de comum entre essas composies, chegando ento, finalmente, a um conceito global do que seria o gnero lrico. Mas um conceito que tenha validez geral ser, por outro lado, vazio de significao. Alm disso, no momento em que surgir um novo artista lrico com um modelo indito, o conceito perder sua validade. Por estas razes, a possibilidade de uma arte potica tem sido muitas vezes contestada. Fala-se das vantagens de se poder seguir "sem preconceitos" as transformaes histricas, e despreza-se, assim, todo o tipo de sistematizao tornada dogma.

    Essa renncia Potica compreensvel, enquanto esta mantenha a pretenso de catalogar em compartimentos estanques todas as poesias, composies picas e dramas existentes. A individualidade de cada poesia exigiria tantas divises quantas poesias existam e isso tornaria suprflua qualquer tentativa de ordenao.

    Se desacreditamos da possibilidade de determinar a essncia da poesia lrica, da composio pica ou do drama, no nos parece, porm, fora de propsito uma definio do lrico, do pico e do dramtico.

    Usamos, por exemplo, a expresso "drama lrico". "Drama" significa aqui uma composio para o palco e "lrico" refere-se ao tom, que se mostra mais importante na determinao da essncia que a "exterioridade da forma dramtica". Qual , aqui, o critrio para determinao do gnero?

    Quando chamo um drama de lrico, ou um romance de dramtico como Schiller considera o "Hermano e Dorotia" 1 porque sei o que quer dizer lrico e dramtico. No passo a saber isso, ao me recordar de todas as poesias lricas e de todos os dramas que existem. Essa profuso enorme de obras viria apenas confundir-me. Antes tenho em mim uma idia do que seja lrico, pico e dramtico. Idia esta que me ocorreu a partir de algum exemplo. O exemplo ter sido, provavelmente, uma obra literria. Mas nem mesmo isso imprescindvel. Posso ter vindo a conhecer a "significao ideal" para falar como Husserl2 do "lrico" por meio de uma paisagem, e do pico, talvez, por uma leva de emigrantes; uma discusso pode ter-me incutido o sentido do "dramtico". Essas significaes mantm-se firmes; na opinio de Husserl, absurdo dizer-se que elas oscilam. O valor das obras que

    1 Carta a Goethe de 26 de dezembro de 1797.2 Logische Untersuchungen (Investigaes Lgicas). 4. ed., Halle, 1928, vol. II, l, pg. 91 e segs.

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  • tentamos julgar de acordo com esta idia que pode variar; uma pode ser mais ou menos lrica, pica ou dramtica que a outra. Tambm os "atos que conferem a significao" podem aparentar carter dbio. Todavia, uma vez captada a idia do "lrico", esta to irremovvel como a idia do tringulo ou como a idia do "vermelho"; uma idia objetiva e foge a meu arbtrio.

    verdade que uma idia pode ser imutvel e, apesar disso, falsa. Um daltnico no tem idia correia do "vermelho". De acordo. Apenas essa questo refere-se exclusivamente convenincia terminolgica. Minha idia de "vermelho" ter que corresponder ao que se considera no consenso geral como "vermelho". Do contrrio, estou usando a palavra erroneamente. Do mesmo modo a idia de "lrico" tem que corresponder ao que geralmente denomina-se lrico, embora sem um conceito claro. Isso no vem a ser a mdia do que chamado de Lrica, de acordo com as caractersticas formais. Ao falar de "clima lrico" ("Lyrische Stimmung") ou de "tom lrico", ningum est pensando num epigrama; mas qualquer pessoa pensa imediatamente em uma cano (Lied). meno de serenidade picaou de plenitude pica no se vai pensar no "Messias" de Klopstock. Evoca-se Homero, e mesmo assim no todo o Homero, em especial, suas passagens primordialmente picas, e s aos poucos cenas lricas ou dramticas que se vo acrescentando s primeiras. a partir de tais exemplos que se ter de elaborar as noes fundamentais dos gneros poticos.

    Desse ponto de vista, existe sem dvida uma conexo entre lrico e a Lrica, pico e a pica, dramtico e o Drama. Os exemplos mais tpicos do lrico sero encontrados provavelmente na Lrica, os do pico, nas Epopias. Mas no vamos de antemo concluir que possa existir em parte alguma uma obra que seja puramente lrica, pica ou dramtica. Nossos estudos, ao contrrio, levam-nos concluso de que qualquer obra autntica participa em diferentes graus e modos dos trs gneros literrios, e de que essa diferena de participao vai explicar a grande multiplicidade de tipos j realizados historicamente.

    H razes para aceitarmos sem mais anlise essa diviso tripartida em lrico, pico e dramtico? Irene Behrens3 prova que essa diviso s apareceu na Alemanha nos fins do sculo XVIII. E na poca no correspondia ainda nossa idia de gneros, mas designava determinados padres poticos. Vamos, portanto, deixar essa questo para mais tarde, e aceitar como hiptese de trabalho as expresses j consagradas. Os resultados de nossos estudos incumbem-se de mostrar se poderemos julgar dentro dessa perspectiva todos os tipos de obras poticas.

    Nossos exemplos deveriam em tese provir de toda a literatura mundial. Mas quase impossvel evitar que uma escolha deixe de projetar a situao do observador. H uma predominncia de exemplos gregos e alemes, unicamente por me serem estes mais familiares. Entretanto meu ponto de vista se manifestaria claro mesmo que fossem maiores meus conhecimentos de literatura eslava, nrdica ou no-europia. Teria sido ainda assim, algum de lngua alem que tomara a si o encargo desses textos. Portanto, h sempre as mesmas limitaes, qualquer que seja a alternativa. Naturalmente o prejuzo menor do que se tratssemos aqui da Potica no sentido antigo. Mas, apesar de todas essas consideraes, pode ser que a maneira de encarar aqui os fatos s apresente interesse para as regies de lngua alem. No cabe a mim tal deciso.

    Formulo, apenas, o pedido de que se deixe o julgamento das partes de que se compe o livro para o final. Aqui, mais que em qualquer outra situao, cada parte s pode ser totalmente apreendida dentro do contexto do todo. Especialmente alguns conceitos, de incio bastante obscuros, como "interioridade", "esprito", "alma", vo definindo-se no decorrer da

    3 Die Lebre von der Einteilung der Dichtkunst, Beihefte zur Zeitschrit fur romanische Philologie (Teoria da Diviso da Arte Potica, fascculos da Revista de Filologia Romnica) 1940.

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  • exposio. Como tais definies tendem sempre a precisar o emprego lingstico, no deveriam surgir dificuldades srias a esse respeito.

    A inteno deste livro poderia ser o esclarecimento de possveis dvidas quanto ao uso da lngua, eliminando no futuro dilemas no entendimento do "lrico", do "pico" e do "dramtico". Que ele seja considerado como uma propedutica da Cincia da Literatura, como instrumento que d ao crtico uma rpida compreenso ds conceitos mais gerais, permitindo assim posteriores estudos especializados sobre a tcnica particular, de cada autor. Aspira, tambm, uma validez independente, j que a questo da essncia dos gneros conduz automaticamente a outra, a questo da essncia do homem. Assim, a Potica Fundamental passa a ser uma colaborao da Cincia da Literatura Antropologia Filosfica. E nesse ponto coincidem ela e o livro Tempo como Fora de Imaginao do Poeta, editado em 1939 que, baseando-se em poesias de Brentano, Goethe e Gottfried Keller procura elaborar um estudo sobre as possibilidades criativas do homem. Quem se der ao trabalho de comparar a nova obra com a anterior, pode notar com facilidade que parte da terminologia mudou. Antes de mais nada, eu no designaria mais uma existncia lrica de "tempo impetuoso", por exemplo. E, mais significativo ainda, s nos Conceitos Fundamentais que se leva a cabo, com o devido rigor, a distino entre a realidade individual e a essncia puramente ideal.

    ESTILO LRICO: A RECORDAO

    "Wanderers Nachtlied" "Cano Noturna do Viandante" considerada um dos exemplos mais puros de estilo lrico*. J se escreveu que nos dois primeiros versos,

    "Uber allen Gipfeln Ist Ruh..." possvel ouvir-se o crepsculo silencioso, no "u" longo e na pausa que se segue;"In allen Wipfeln Sprest du..."que a rima "u" para "Ruh" no traduz acalento to profundo, porque a frase no termina

    e a voz permanece elevada, o que corresponde ao movimento final das folhas nas rvores. Finalmente que a pausa depois de

    "Warte nur, balde..." a prpria espera, at que no verso final, nas duas ltimas palavras prolongadas,"Ruhest du auch..."tudo se acalma, inclusive o homem, o mais inquieto dos seres. A estrofe de Verlaine"Et je m'en vais Au vem mauvais, Qui m'emporte De del, Pareil la Feuille morte."leva-nos a consideraes semelhantes. O segundo verso soa quase como o primeiro,

    com uma nica diferena, na minha opinio: a nasal se desloca no jogo despreocupado. Quase no se pode considerar as palavras "vais mauvais, dela Ia" como rimas, pois a lngua parece ficar a repetir a mesma vogal em simples balbucios sem significao. A rima em "la", slaba fugaz, tende a roubar por completo o peso da linguagem, Assim, parece-se ouvir, mesmo, algo desesperadamente ldico. J os sons parecem sugerir a disposio da alma criada pela apreciao de tolhas outonais levadas ao vento.

    Se podemos confiar em nosso sentimento do verso antigo, o fim da conhecida estrofe sfica

    * "Uber allen Gipfeln / Ist Ruh / In allen Wipfeln / Sprest du / Kaum einen Hauch. / Die Vgelein schweigen im Walde. / Warte nur, balde / Ruhest du auch.""Sobre todos os cumes / quietude / Em todas as rvores mal percebes / um alento/ Os pssaros emudecem na floresta. / Esperas s um pouco, breve / descansas tu tambm."

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  • Asteres mn amph klan selnnan no adnicoLatm' pi ka gnparece fazer-nos ouvir a serenidade clara e prolongada, espalhada sobre terra e mar pela

    lua cheia.A anlise estilstica deleita-se com essas observaes. No podemos opor-nos. Mas o

    leigo, o simples amigo da poesia, acha-as desagradveis. Parece que se atribui uma inteno ao poeta quando justamente a falta de inteno o agradvel, e onde qualquer vestgio de intencionalidade uma dissonncia. O conhecedor tem razes para no desprezar o julgamento do amador, pois seu conhecimento s autntico, enquanto ele continua tambm amador. Mas talvez seja possvel solucionar a contenda. Seria necessrio apenas que o conhecedor reconhecesse que no h aqui onomatopias. Da pica de Homero conhecem-se vrios versos onomatopaicos como o famoso e combatido hexmetro da traduo alem de Voss, freqentemente citado:

    "Hurtig mit Donnergepolter entrollte der tckische Marmor." ("Clere rolava com estrondo de trovo o traioeiro mrmore.")

    Ou ''Dumpfhin kracht er im Fali" (desencadeia-se em estrpito abafado), que traduz maravilhosamente em alemo o grego.

    Ou ainda o verso que descreve a corte amorosa de Calipso a Ulisses:Aie d malakoisi ka aimyloisi lgoisi...Os meios sonoros da lngua aqui so aplicados a um acontecimento. Se digo ''aplicados

    a" mostro com isso que a lngua e o acontecimento descrito so diversos um do outro. Dizemos, com razo, que a lngua "reproduz" o ocorrido. O conceito "imitatio" est bem escolhido. A imitao lingstica uma tarefa at certo ponto fundamentvel: a seqncia dos dctilos reproduz o estrondo do mrmore, a riqueza das vogais, as artimanhas sedutoras de Calipso. Essas comprovaes no chegam a melindrar ningum, pois o leitor pressupe quase sempre a intencionalidade, ou pelo menos julga a possvel, e ao poeta elas vm apenas reforar a alegria de ter conseguido coisa to bela.

    No estilo lrico, entretanto, no se d a "re"-produo lingstica de um fato. No se pode aceitar que na "Wanderers Nachtlied" estivesse de um lado o clima do crepsculo e do outro a lngua com todos os seus sons, pronta a ser aplicada. Antes, a prpria noite que soa como lngua. O poeta no ''realiza" coisa alguma. Ainda no h aqui um' defrontar-se objetivo (Gegenber). A lngua dissolve-se no clima crepuscular e o crepsculo na lngua. Por isso, a indicao das ralaes sonoras isoladas est fadada a decepcionar. interpretao separa em partes distintas o que em sua origem enigmaticamente uma s coisa. Alm disso, ela no pode nunca desvendar todo o mistrio da obra lrica. Pois esse estado de unicidade (Einssein) mais ntimo que a mais sagaz perspiccia de esprito; capaz de notar como uma face "fala" muito mais que qualquer descrio fisionmica e a alma mais profunda que qualquer tentativa de interpretao psicolgica.

    O valor dos versos lricos justamente essa unidade entre a significao das palavras e sua msica. uma msica espontnea, enquanto a onomatopia mutatis mutandis e sem valorao seria comparvel msica descritiva. Nada mais perigoso que uma tal manifestao direta do clima espiritual. Em conseqncia disso, cada palavra ou mesmo cada slaba na poesia lrica insubstituvel e imprescindvel. A quem isso no importunar, que substitua em "Wanderers Nachtlied" "sprest" pelo sinnimo "merkest" ou suprima o "e" de "Vgelein" e se pergunte se em cada mudana o verso no fica seriamente prejudicado. Claro que nem todas as poesias so to sensveis como esta. Mas quanto mais lrica, tanto mais intocvel. j uma audcia sua simples leitura, pelo receio de uma alongao ou abreviao das slabas, contrria ao tom do poeta. Os hexmetros picos so muito mais resistentes. Pode-se at, dentro de certos limites, aprender a recit-los. Versos lricos, entretanto, quando tm que ser declamados, s soam corretamente, enquanto ressurgem de profunda submerso,

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  • de uma quietude isolada do mundo, mesmo quando se trata de versos alegres. Eles precisam do encantamento da inspirao, e qualquer suspeita de intencionalidade continua aqui em desacordo.

    Isso que dificulta ou mesmo impossibilita a traduo em lnguas estrangeiras. No caso das onomatopias, um tradutor engenhoso poder sair-se bem. Entretanto, muito improvvel que palavras com o mesmo sentido em lnguas diversas tenham tambm a mesma unidade lrica de sons e significao. Ernest Jnger traz um exemplo em "Elogio das Vogais". 4 a estrofe latina:

    "Nulla unda Tam profunda Quam vis amoris Furibunda." *A violncia do amor comparada gua e as rimas "unda, profunda, furibunda" evocam

    as profundezas do sentimento de onde provm o inaudito, que ns mesmos no conhecemos. Na traduo alem

    "Kleine Quelle S tief und schnelle Als der Liebe Reissende Welle." *ao "u" fechado e escuro, corresponde o "e", ao "nd" o "l" dobrado. Pensamos novamente

    estar ouvindo a gua, mas no mais agora a profundeza da fonte, e sim a enxurrada clere da corrente. Tambm o amor outro, no mais demona reprimida, e sim paixo arrebatadora. E a isso corresponde a significao nova ou modificada das palavras. Nem "schnelle" (clere), nem "reissende" (arrebatadora) estavam no texto latino. A harmonia de som e significao , portanto, to pura como no original. Por sua vez, o todo est completamente transformado.

    Se, como vimos, a traduo de versos lricos quase impraticvel, tambm por outro lado mais dispensvel que a de picos ou dramticos, pois todos julgam sentir ou pressentir algo ao escut-los, mesmo quando no conhecem a lngua estrangeira. Ouvem os sons e ritmos, e sentem-se tocados pela disposio (Stimmung) do poeta, sem necessitarem de compreenso lgica. Aqui se insinua a possibilidade de uma compreenso sem conceitos. Parece conservar-se no lrico um remanescente da existncia paradisaca.

    A msica esse remanescente, linguagem que se comunica sem palavras, mas que se expande tambm entoando-as. O prprio poeta confessa-o, quando compe a cano (Lied) que destina ao canto. No canto, h uma elaborao da curva meldica, do ritmo. O contedo da frase passa a ter menor importncia para o ouvinte. Acontece, s vezes, que o prprio cantor no sabe bem de que se fala no texto. Amor morte gua, qualquer idia mais ou menos propcia lhe basta. Nos intervalos, ele segue cantando despreocupadamente e continua perfeitamente integrado no todo. Ele se chocaria se lhe dissessem que no compreendera a cano. evidente que com isso ele no dedica o tratamento devido ao todo da criao artstica; pois tambm as palavras e o contedo das frases pertencem, como lgico, cano. Nem somente a msica das palavras, nem somente sua significao perfazem o milagre da lrica, mas sim ambos unidos em um. No podemos todavia criticar, se algum se abandona mais ao efeito imediato da msica; pois mesmo o poeta sente-se quase inclinado a dedicar uma certa primazia parte musical, e, desvia-se, por vezes, das regras e usos da linguagem determinados pelo sentido, a bem do tom ou da rima. O e final sincopado, modifica-s a seqncia das palavras, e, algumas vezes, despreza-se uma parte

    4 Em Bldtter und Steine ("Folhas e Pedras"), Hamburgo, 1934.* "Nenhuma onda / to profunda, / quanto a fora do amor / furibunda."* "Pequena fonte / profunda e clere / como a onda / arrebatadora do amor."

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  • gramaticalmente imprescindvel."Viel Wandrer lustig schwenkenDie Hut'im Morgenstrahl..." * "Weg, du Traum! so gold du bist; Hier auch Lieb und Leben ist..."** "Was soll ali der Schmerz und Lust?" ***Tais versos chamariam a ateno numa composio pica. Mas numa obra lrica seriam

    aceitos sem qualquer escndalo, pois os campos de fora musicais dos quais depende a ordem das palavras, so visivelmente mais poderosos que a exigncia da correo e uso gramaticais.

    Alm disso, poesias de motivos e sentido substancialmente pobres mantm-se sculos e sculos inalteradas na alma do povo. Goethe combateu essa teoria. Nas conversas com Eckermann, fala-se uma vez de canes servias.5 Eckermann deleita-se com os motivos que Goethe abordou: "A mocinha no deseja aquele a quem no ama", "os prazeres do amor se desvanecem", "a bela garonete; seu escolhido no est entre os fregueses". Acrescenta que os motivos so por si to vivos, que ele quase no sente mais necessidade de poesia. Goethe responde-lhe:

    "Tem razo; isso mesmo. Mas com isso voc nota a importncia enorme que tm os motivos, e que ningum sabe avaliar. As mulheres aqui no tm a menor idia de seu valor. Dizem que uma poesia bela, e pensam apenas na sensao, palavras e versos. Ningum pensa, entretanto, que a verdadeira fora e valor de uma poesia est na situao, em seus motivos. A partir da fazem-se milhares de poesias em que o motivo nulo e que simulam uma espcie de existncia, simplesmente atravs de sensaes e versos sonoros".

    Em artes plsticas, Goethe demonstrou a mesma simpatia pelos motivos, o que muito decepcionou os pintores romnticos. Ousou afirmar que somente a passagem de uma poesia a prosa mostraria o que a poesia realmente tem de vida. Se necessrio, poder-se-ia compreender isso atravs de dramas e obras picas. As viagens de Ulisses conseguem prender o leitor mesmo nas "Lendas da Antiguidade Clssica" de Schwab. Pode-se pensar numa reproduo do "Wallenstein" de Schiller, que conserve sua tora. As canes (Lieder), porm, perdem com os versos o essencial, e por outro lado um motivo insignificante pode adquirir em linguagem lrica o valor de uma obra artstica do mais alto nvel.

    Seria difcil destacar-se em muitas das poesias de Eichendorff um motivo. E ser que a cano de Goethe "An den Mond", uma das mais apreciadas, no desmente seu rude julgamento? H mais de um sculo, conhecedores de Goethe procuram chegar a um acordo quanto situao-gnese dessa poesia. Dirige-se ela a uma mulher ou a um homem? Se a um homem, ser ento uma poesia monologada (Rollengedicht) ? Ou ser antes uma composio em dilogo? Se for uma composio em dilogo, como se dividem as estrofes entre os interlocutores? As mais diversas hipteses foram aventadas e postas em seguida de lado; apenas uma opinio foi unnime: que essa cano enigmtica uma das mais belas da literatura mundial.

    Essa exigncia a um bom poema, Goethe a fez em poca remota, quando sua esttica apoiava-se em noes elaboradas a partir da natureza e das artes plsticas. Esses mesmos conceitos tornaram-se fundamento da Histria da Literatura Alem, principalmente o conceito um tanto perigoso da forma, que pressupe sempre, de alguma maneira, algo a formar-se e uma fora formativa, ou uma espcie de forma oca com que se forma algo. Justamente essa oposio entre a forma e o que se vai formar inexiste na criao lrica. No estilo pico, evidencia-se o fato, toda vez que se derrama dentro de uma mesma "forma", o

    * "Muitos viandantes alegres agitam / os chapus ao sol da manh..."** "Para longe, sonho! / dourado que sejas / h aqui tambm vida e amor..."*** "Para que tanta dor e prazer?"5 18 de janeiro de 1825.

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  • hexmetro, inaltervel apesar de todas as mudanas temticas, os mais diversos conceitos dor e prazer, tilintar de armas e regresso do heri ao lar. Na criao lrica, ao contrrio, metro, rima e ritmo surgem em unssono com as frases. No se distinguem entre si, e assim no existe forma aqui e contedo ali.

    Parece conseqncia lgica, que deve haver em criaes lricas tantas estruturas mtricas quantos possveis climas (Stimmungen) a expressar-se. Na histria da Lrica, notam-se vestgios de tal fato. A Lrica causava dificuldades Potica antiga, que procurava classificar os gneros de acordo com caractersticas mtricas, justamente pela variedade de metros existentes, "varietate carminum". Finalmente a potica encontra a melhor sada, dizendo que esta "variedade" uma caracterstica do gnero. As denominaes de estrofes, "asclepiadia", "alcaica", "sfica", mostram que antigamente, pelo menos cada mestre do melo cantava em seu prprio tom, um ideal que ressurgiu na idade mdia. Chegou-se ao auge, quando no apenas cada poeta, mas ainda cada composio tinha seu prprio tom, sua estrofe e mtrica caractersticas. o que acontece nas composies curtas do Goethe dos primeiros anos de Weimar, como "Rastlose Liebe", ("Amor sem Descanso"), "Herbstgefuhl" ("Sentimento de Outono"), e com mais perfeio a "Wanderers Nachtlied" "Uber allen ipfeln ist Ruh'" pois essa poesia excelente apresenta em verso a mais sutil flexibilidade mtrica e no se adapta absolutamente a nenhum esquema mtrico, protegendo-se assim de qualquer plgio. Algumas canes breves de Mrike merecem tambm meno aqui, como ''Er ist's" (" a Primavera"), "In der Frhe" ("No Alvorecer"), "Septembermorgen" ("Manh de Setembro"), "Um Mitternacht", (" Meia-noite"), "Auf den Tod eines Vogels" ("Sobre a morte de um Pssaro").

    No vamos por. isso cometer o erro de atribuir importncia exagerada originalidade do esquema mtrico, e considerar menos lricas as inmeras poesias que se desenvolvem dentro da mesma estrutura de versos imbicos e trocaicos. Ainda dentro de um mesmo esquema, h lugar para alternncias rtmicas que se adaptam perfeitamente a qualquer "disposio anmica" (Stimmung) individual. A "Verborgenheit" ("Recolhimento") de Mrike, por exemplo, movimenta-se dentro do quarteto trocaico comum alemo:

    ''Lass, o Welt, o lass mich sein! Locket nicht mit Liebesgaben, Lasst dies Herz alleine haben Seine Wonne, seine Pein!" *Entretanto h uma completa harmonia de tom e mensagem. H um gesto suave de

    afastamento, percebe-se certa recusa na nfase quase imperceptvel da primeira slaba, e na pausa que se segue, marcada pela vrgula.

    "Lass, o Welt, o lass mich sein!"E como se o poeta se quisesse antecipar corte do mundo. Os trs versos comeando

    com "L" contribuem tambm para esse efeito s podemos ainda aqui sugerir uma interpretao; o mundo deixar agora aquele corao livre.

    A terceira estrofe soa bem diversa:"Oft bin ich mir kaum bewusst, Und die helle Freude zcket Durch die Schwere, s mich drcket, Wonniglich in meiner Brust." **Os ps mtricos continuam os mesmos, mas a melodia vai num crescendo. As slabas

    iniciais "oft" e "durch" no conseguem a nfase de "lass", "locket" e "lasst". Em compensao, o final dos versos ganha fora. ''Bewusst", "zcket", "drcket", tm mais

    * "Deixa-me, mundo, deixa-me ser, / No me atraias com dons de amor / Deixa s a este corao ter / Suas delcias, sua dor."** "Muitas vezes mal percebo / E a alegria lmpida agita-se / Penetrando atravs a dor / Deliciosamente em meu peito."

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  • acentuao que "sein", "haben" e as duas slabas finais de "Liebesgaben". O tom crescente aproximao no final parece dar a essa estrofe leves asas, enquanto que a primeira, cuja acentuao vai morrendo, transmite uma impresso de recuo. Hugo Wolf soube captar tudo isso e criou para a terceira estrofe uma melodia especial. Sua composio deixa o sentido dos versos bem claro, e nem mesmo o apreciador mais sensvel poder sentir-se melindrado ao ouvi-la.

    Poesias como "Cano Noturna do Viandante", " a Primavera", "No Alvorecer" adaptam-se maravilhosamente ao que Friedrich Theodor Vischer chama o "discreto inflamar-se do mundo no sujeito lrico".6 So poesias de poucas linhas. Toda composio lrica autntica deve ser de pequeno tamanho. Isso deduz-se do que j foi dito, e ser ainda explicitado adiante. O poeta lrico no produz coisa alguma. Ele abandona-se literalmente (Stimmung) inspirao. Ele inspira ao mesmo tempo clima e linguagem. No tem condies de dirigir-se a um nem a outra. Seu poetar involuntrio. Os lbios deixam escapar o "que est na ponta da lngua". Mrike, justamente, foi um poeta que de algum modo burilou suas poesias. Mas seu trabalho difere muito do modo como o autor dramtico reflete sobre seu plano, ou o pico insere novos episdios e tenta dar forma mais clara a sua obra. O poeta lrico escuta sempre de novo em seu ntimo os acordes j uma vez entoados, recria-s, como os cria tambm no leitor. Finalmente reconquista o j perdido encantamento da inspirao, ou d pelo menos um cunho de involuntariedade a sua obra, como o fazem tambm muitos poetas de pocas decadentes, herdeiros deste legado til. Conrad Ferdinand Meyer trilhou muitas vezes caminho idntico entre a primeira e ltima redao. Mas ele dificilmente seria considerado um prottipo do poeta lrico. Clemens Brentano criava de outro modo, inclinado sobre os sons, improvisando para surpresa e admirao de seus amigos. Suas canes demonstram um desabrochar espontneo:

    "Von der Mauern Widerklang Ach! im Herzen frgt es bang:Ist es ihre Stimme?""Wie klinget die Welle!Wie wehet ein Wind!O selige Schwelle,Wo wir geboren sind!" *As estrofes seguintes dessa longa poesia s raramente conservam o mesmo

    encantamento da primeira. O poeta v-se obrigado a elaborar sua inspirao, a coorden-la, buril-la e se necessrio mesmo explic-la. Com isso, situa-se frente (Gegenber) ao lrico e, portanto, fora do mbito da graa. Ele tem recursos, claro, pode lanar mo da linguagem que j usou em canes de seu vasto repertrio anterior; e Brentano assim o fez inmeras vezes; mas um epgono, mesmo um epgono de si mesmo, no engana a ouvidos apurados.

    Revela-se aqui uma certa debilidade do gnero lrico, posteriormente abordada mais de perto, quando de sua anlise como uma idia que no tem a fora de ser em estado puro e busca completar-se com o pico e o dramtico por uma exigncia de sua prpria essncia e no por incapacidade do autor.

    A "disposio anmica" (Stimmung) por exemplo, apenas um momento, um curto preldio, a que se segue o desencanto, ou de novo um outro som. Mas quando esses momentos se sucedem, quando o poeta arrastado nos altos e baixos da corrente anmica e seus versos acompanham, linogrficamente, essas mudanas, onde fica a unidade de que necessita sua obra de arte? H poesias dessa espcie, em ritmos livres, em que cada verso d

    6 Esttica. 2.a ed., Munique 1923, vol. VI, pg. 208.* "Ecoam as muralhas / e temeroso o corao pergunta / ser sua voz?" / "Como soa a onda! / como sopra o vento / oh! abenoado umbral / em que nascemos."

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  • a impresso de total espontaneidade, em que o todo se precipita como corrente, sem margens, sem princpio nem fim. Pretende-se um ideal de ininterrupta existncia lrica, ideal no mais possvel artisticamente, e que leva total desintegrao do eu.

    Ento quer isso dizer que a poesia lrica ficaria adstrita a uma faixa muito pequena? Vejamos como exemplo a poesia de Goethe, "Auf dem See" ("No Lago"):

    "Und frische Nahrung, neues BlutSaug ich aus freier Welt;Wie ist Natur so hold und gut,Die mich am Busen hlt!Die Welle wieget unsern KahnIm Rudertakt hinauf,Und Berge, wolkig himmelan,Begegnen unserm Lauf.Aug, mein Aug, was sinkst du nieder Goldne Trume, kommt ihr wieder? Weg, du Traum! so gold du bist; Hier auch Lieb und Leben ist.Auf der Welle blinken Tausend schwebende Sterne, Weiche Nebel trinken Rings die trmende Ferne; Morgenwind umflgelt Die beschattete Bucht, Und im See bespiegelt Sich die reifende Frucht." *Trs so as partes desse todo: a primeira tem um toque de alegria e coragem, graas s

    rsis; a segunda, com seus versos longos, uma contemplao evocativa; na terceira, segue-se viagem com encantamento levemente abafado. "O discreto inflamar-se do mundo" repete-se trs vezes no poeta e de modos to diversos que no se pode, portanto, falar de trs estrofes. Colocamos as diferentes inspiraes em seqncia, apenas porque elas se relacionam objetiva e temporalmente. No se sabe ao certo se se trata de poesia ou de um ciclo. Para um ciclo pouca demais a distncia entre as partes, para uma poesia, por demais longa. So momentos lricos de uma viagem. O que unifica esses momentos no linguagem nem o clima (Stimmung), apenas um relacionamento biogrfico que, devidamente prolongado, enquadra todas as poesias de Goethe como "fragmentos de uma confisso".

    A dvida permanece portanto: como surgir canes mais longas que no deixem perder-se o sentido de um todo compacto?

    Somente a repetio impede a poesia lrica de desfazer-se Mas a repetio presta-se igualmente a qualquer criao potica. A mais comum o compasso, a repetio de idnticas unidades de tempo. Hegel compara o compasso com as fileiras de colunas ou vidraas da arquitetura, e chama a ateno de que o eu no apenas durao permanente, ou subsistncia indefinida, mas conquista-se como individualidade quando se concentra e se volta para si mesmo.

    "A satisfao do eu por seu reencontro atravs do compasso tanto mais completa quanto a unidade e a uniformidade no dependam do tempo, nem dos prprios sons, e sim pertenam ao prprio eu e sejam por ele mesmo, para satisfao prpria, transportados ao tempo.7

    * "E alimento fresco, sangue novo, / sorvo de um mundo livre; / Como bondosa e terna a natureza. / que em seu seio me abriga; / A onda embalana-nos a barcaa / cadncia dos remos, / e montes, nublados contra o cu, / vm encontrar nossa rota. //Olhos meus porque se fecham? / os sonhos de ouro ho de voltar? / para longe, sonho, dourado que sejas / aqui tambm h viver e amar. //Cintilam na onda / milhares de estrelas flutuantes / neblinas etreas bebem / distancias acumuladas; / brisa matutina acalenta / a baia em sombras / e no lago vem mirar-se / o amadurecido fruto.

    7 Obras completas, Jubilums-Ausgabe, Stuttgart, 1928, vol XIV.

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  • Isso tem validade para o verso branco, para o hexmetro, ou para os ps mtricos de uma cano qualquer, enquanto passveis de serem fixados. Quando Hegel, de acordo com os pressupostos de sua Metafsica, diz que a uniformidade no pertence ao tempo nem aos sons, mas ao eu, quer dizer que "em realidade" nunca nascem compassos idnticos (a no ser numa declamao metronmica), mas que a igualdade percebida como uma idia regulativa que se afirma sobre maiores ou menores oscilaes. a oposio entre compasso e ritmo, como Hensler mesmo descreve.8 essencial para discernir-se o estilo do poeta observar se o compasso e o ritmo em declamao normal esto prximos, ou muito distintos entre si. Nas baladas de Schiller, o ritmo aproxima-se, freqentemente, tanto do compasso, que os versos soam como que entrecortados. No "Recolhimento" de Mrike, a igualdade do compasso nas estrofes desaparece frente mudana do ritmo e parece ser apenas um olho a vigiar imperceptivelmente os versos, e proteg-los da desintegrao. O compasso em "Cano Noturna do Viandante" no se percebe claramente. H diferentes demarcaes' possveis, dependendo de como se considere a durao das slabas e das pausas. Em cadncia semelhante, poesias mais longas se desfariam.

    Quanto mais lrica a poesia, mais evita esta uma repetio neutra de compassos, no para aproximar-se da prosa, mas em favor de um ritmo que varia de acordo com a "disposio. anmica" (Stimmung). Isto apenas a expresso mtrica de que em obra lrica dificilmente defrontam-se um eu de um lado e um objeto do outro. Ao contrrio, em Schiller, este distanciamento grande, o que corresponde em sua Esttica anttese entre uma pessoa, sempre idntica a si mesma, e um estado anmico, sempre sujeito a modificaes.

    Quando o compasso no essencial, so possveis outras repeties? "Nachts" (" Noite") de Eichendorff consta de duas estrofes mtricas idnticas:

    "Ich wandre durch die stille Nacht,Da schleicht der Mond so heimlich sachtOft aus der dunklen Wolkenhlle,Und hin und her im TalErwacht die Nachtigall,Dann wieder alles grau und stille.O wunderbarer Nachtgesang:Von fern im Land der Strme Gang,Leis Schauern in den dunklen Bumen Wirrst die Gedanken mir,Mein irres Singen hierIst wie ein Rufen nur aus Trumen." *

    Diferenas mtricas h aqui to poucas como no "Recolhimento" de Mrike. Ritmicamente tambm essas duas estrofes quase no se diferenciam. A rsis um tanto pesada na primeira estrofe, repete-se mesma altura da segunda:

    "Oft aus der dunklen Wolkenhlle..." "Leis Schauern in den dunklen Bumen..."tambm no ltimo verso, nota-se a rsis um pouco mais leve, mas ainda assim quase

    imperceptivelmente acentuada:"Dann wieder alles grau und stille..."

    8 Histria da Versificao Alem, Berlim e Leipzig, vol. I, 1925, pag. 17 e segs.* "Perambulo pela noite quieta, / e sorrateira esgueira-se a lua, / muitas vezes de escuras nuvens / e no vale de l pra c, / vai acordar o rouxinol. / E tudo volta a cinza e quietude. //Maravilhoso acalento no turno: / correntes vindas de longe / tremores leves nas rvores escuras / a confundir-me as idias. / Meu canto, aqui, sem rumo / como um chamado de sonhos."

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  • "Ist wie ein Rufen nur aus Trumen..."A diviso do peso notadamente harmnica. Apenas no quarto verso, h uma sensvel

    mudana de ritmo:"Und hin und her im Tal..." "Wirrst die Gedanken mir..."No se pode negar que h outras diferenas mais difceis de classificar. Elas, entretanto,

    no afetam a unidade rtmica do todo. Isto : a msica da primeira estrofe repete-se na segunda. A mesma corda soa mais uma vez, d um segundo tom, muito semelhante, cuja vibrao parece velar as diferenas da mensagem, como um acorde sustentado por um pedal consegue prolongar toda uma melodia.

    O " Meia-noite" de Mrike leva-nos ainda mais adiante:"Gelassen stieg die Nacht ans Land, Lehnt trumend an der Berge Wand, Ihr Auge sieht die goldne Waage nun Der Zeit in gleichen Schalen stille ruhn; Und kecker rauschen die Quellen hervor, Sie singen der Mutter, der Nacht, ins Ohr Vom Tage, Vom heute gewesenen Tage.Das uralt alte Schlummerlied,Sie achtets nicht, sie ist es md;Ihr klingt des Himmels Blue ssser noch,Der flchtgen Stunden gleicheschwungnes Joch.Doch immer behalten die Quellen das Wort,Es singen die Wasser im Schlafe noch fortVom Tage,Vom heute gewesenen Tage." *no mesmo par de versos fala-se do jugo do tempo igualmente distribudo, no mesmo par

    de versos fala-se das fontes. Enfim, unbas as estrofes, terminam com as mesmas palavras. A repetio rtmica, a dissimular as divergncias da mensagem, ope-se resistncia da linguagem, que se esfora por sempre prosseguir.

    Tal repetio s possvel em uma obra lrica. No lcito argumentar que tambm em criaes picas de Homero h repeties idnticas de versos. Encontraremos l vrias vezes, por exemplo:

    "Quando a aurora crepuscular acordou com dedos de rosas" "E levantaram as mos para a refeio deliciosa j preparada:"

    Mas nesse caso, o poeta apenas escolhe as mesmas palavras que ele usara antes nas mesmas situaes para uma outra refeio e uma outra manh. A repetio lrica no traz nada de novo com as mesmas palavras. a singularidade da mesma disposio interior que ressoa de novo.

    A repetio velada como em " Noite" de Eichendof acontece raramente e s pode conservar o clima lrico no mximo por duas ou trs estrofes. O que se segue j cansativo. Assim que a primeira repetio na "Spinnerin" ("A Tecel") de Brentano consegue agradar, mas a segunda j montona. A repetio literal, ao contrrio, o chamado refro, comum em poesias antigas e modernas de vrios povos. Naturalmente, nem sempre como em '' Meia-Noite" de Mrike. Nesta poesia, o tom lrico do incio ao fim. O refro quase que no se distingue como acrscimo, os primeiros versos da estrofe. Mas o comum em canes

    * "Serena desceu a noite sobre a terra, / encostou-se sonhadora na montanha; / seu olhar v agora a balana de ouro / do tempo descansar calma em pratos iguais / e as fontes cantam seus receios / aos ouvidos da me, da noite, / sobre o dia, / o dia passado de hoje. //O to antigo acalento / a noite no percebe, est cansada; / o azul do cu repete mais doce, / o jugo igualmente distribudo das horas fugidias. / Entretanto a palavra, as fontes a conservam / e as guas cantam-na em sono / sobre o dia, / o dia passado de hoje."

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  • populares (Volkslieder), ou outros poemas nos mesmos moldes, que o refro se diferencie pelo seu carter musical. Parece concentrar em si o elemento lrico, enquanto o resto do poema tende mais ao pico ou ao dramtico. Brentano traz inmeros exemplos. Suas poesias mais longas costumam apresentar um acontecimento, em tom de balada, ou em versos mais ou menos descuidados, e ao mesmo tempo coro-los sempre maneira de captulos, com um refro feiticeiro:

    "O wie blinkte ihr Krnlein schn, Eh die Sonne wollt untergehn."*"O Stern und Blume, Geist und Kleid, Lieb, Leid und Zeit und Ewigkeit."**

    No contexto das estrofes:"Ich trumte hinaus in das dunkle Tal Auf engen Felsenstufen, Und hab mein Liebchen ohne Zahl Bald hier, bald da gerufen.Treulieb, Treulieb ist verloren! Mein lieber Hirt, nun sage mir, Hast du Treulieb gesehen? Sie wollte zu den Lmmern hier Und dann zum Brunnen gehen. Treulieb, Treulieb ist verloren..." *Os versos alternantes dessa poesia so declamados a maioria das vezes de modo

    recitativo, se possvel por um s declamador, para que a "histria" seja compreendida. No refro, colaboram tambm os ouvintes. O canto avoluma-se. A musicalidade abafa a significao das palavras.

    O refro pode tambm vir no incio e no meio da estrofe:"Nach Sevilla, nach Sevilla. . ."**"Einsam will ich untergehen..." ***"Nun soll ich in die Fremde ziehen..." ****Novamente Brentano imita as poesias populares do "Ds Knaben Wunderhorn" ("O

    Chifre Encantado do Menino"). Esses exemplos so os melhores para mostrar o valor do refro. O poeta toca de novo conscientemente a corda que estava soando espontnea em seu corao e escuta o tom pela segunda, terceira, quarta e quinta vezes. O que lhe escapa como linguagem reproduz o mesmo clima anmico, possibilitando uma volta ao momento da inspirao lrica. Nesse meio tempo, ele pode narrar algo ou refletir sobre a disposio anmica (Stimmung). O todo conserva-se liricamente coeso. O refro no final da estrofe no traz diferenas fundamentais. Apenas o elemento lrico colocado artificialmente no fim, e significativo que aparea o refro no ttulo como em "Amorzinho, Amorzinho perdeu-se"; pois, com isso, a atmosfera lrica comea tambm, realmente desde a; o refro a fonte musical do todo.

    H repeties de outra espcie, como por exemplo no rondel, que descreve um movimento circular ou que retorna ligado de algum modo a versos anteriores:

    "Verflossen ist das Gold der Tage,

    * "Como cintilava sua coroazinha / antes do sol querer se pr."** "Estrela e flor, esprito e roupa, / amor, dor, tempo e eternidade."* "Sonhei ao ar livre, no bosque escuro, / de rochas em estreitos degraus, / e chamei meu amor pelo nome / vrias vezes aqui e ali. //Amorzinho, Amorzinho perdeu-se! / diz-me, bondoso pastor, / vistes Amorzinho? / Ela queria alcanar os carneiros / e depois chegar ali fonte. / Amorzinho, Amorzinho perdeu-se..."** "Para Sevilha, para Sevilha..."*** "Solitrio quero partir..."**** "Agora preciso arribar para o desconhecido."

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  • Des Abends braun und Blaue Farben: Des Hirten sanfte Flten starben, Des Abends blau und braune Farben; Verflossen ist das Gold der Tage."*A pea teatral de Strindberg "Nach Damaskus" ("Para Damasco") tem a grosso modo

    estrutura semelhante. Quando o autor, a partir do meio da pea repete os cenrios em ordem inversa e retorna finalmente ao primeiro, o todo ganha realmente cor lrica.O espectador no arrebatado (pg. 124), e sim acalentado como no "Traumspiel" ("Fantasmagoria").

    A repetio lrica vai desenvolvendo-se at chegar a casos bem singulares. Brentano oferece-nos de novo, exemplo bastante elucidativo:

    "Die Welt war mir zuwider,Die Berge lagen auf mir,Der Himmel war mir zu nieder,Ich sehnte mich nach dir, nach dir!O lieb Mdel, wie schlecht bist du!Ich trieb wohl durch die Gassen Zwei lange Jahre mich; An den Ecken musst ich passen Und harren nur auf dich, auf dich! O lieb Mdel, wie schlecht bist du!" **

    As repeties "nach dir", "auf dich" servem claramente de ponte entre os versos mais recitativos e o refro. Uma composio insinua-se e surge bem definida. Os trs primeiros versos so pouco meldicos. O quarto alcana no final um canto ntimo-doloroso, uma msica que mais tarde, no refro, j completamente livre de regras, poder transbordar vontade. O elemento lrico vai condensando-se nesta estrofe proporo que o fim se aproxima, ou ento sempre que se repetem palavras isoladas ou grupos de palavras:

    "Nach seinem Lenze sucht das Herz In einem fort, in einem fort..."* (C. F. Meyer)"Tiefe Flut, tief tief trunkne Flut.. ."** (A. V. Droste)"O Lieb, o Liebe! s golden schn.. ."*** (Goethe)"Muss i denn, muss i denn zum Stdtele naus. . ."**** "Aveva gli occhi neri, neri, neri..."Tais repeties encontramos apenas em linguagem lrica, ou, em outra formulao,

    quando encontramos tais repeties, consideramos a passagem como lrica.9 Acontece o mesmo com o refro. O ''discreto inflamar-se do mundo" repete-se. O poeta escuta de novo, com ateno, ressonncias do acorde executado.

    Isso nos conduz finalmente rima. No vamos procurar estud-la em todas as suas * "Passou-se como dos dias / da noite as cores cinza e azul / do pastor delicadas flautas calaram / da noite as cores azul e cinza / passou-se o ouro dos dias."** "O mundo parecia contra mini: / montes havia sobre mim / o cu me era baixo demais / eu sentia falta de ti, ah! de ti / menina querida, como s ruim! //Levei-me pelas ruelas / dois longos anos / em esquinas tive que esperar / atento s em ti, ah! em ti / menina querida, como s ruim!* "Em nostalgia da primavera, meu corao / busca evadir-se, busca escapar..."** "Fluxo profundo, profundo e inebriado fluxo..."*** "Amor! Amor! to dourado e belo..."**** "Ser que eu tenho, que eu tenho mesmo que ir minha cidadezinha..."9 Comparem-se aqui as repeties completamente diversas do estilo pattico, pgs. 140 e 141.

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  • manifestaes, pois muito tem variado sua importncia para a histria de criao literria. Apenas precisamos ter em mente que sua diversidade exige do estudioso uma grande cautela.

    A rima s surge como realidade na literatura crist, e parece destinada a substituir a variedade mtrica da lrica antiga, que vai aos poucos desaparecendo. como se a msica agora procedesse de nova fonte. por isso que poesias que procuram coordenar os dois mtodos, como estrofes sficas rimadas, no conseguem um efeito animador, parecendo exageradamente trabalhadas. Apesar disso, a rima, cadenciando o fim dos versos, pode apresentar qualidades mtricas excepcionais. Foi isso que Humboldt elogiou nos versos de Schiller.10

    Aqui porm interessam apenas as rimas de efeito sonoro mgico. Dos melhores exemplos so as rimas e assonncias como os "Romanzen vom Rosenkranz" ("Romances de Rosenkranz") de Brentano:

    "Allem Tagewerk sei Frieden! Keine Axt erschall im Wald! Alle Farbe ist geschieden, Und es raget die Gestalt.Tauberauschte Blumen schliessen Ihrer Kelche sssen Kranz, Und die schlummertrunknen Wiesen Wiegen sich in Traumes Glanz.Wo die wilden Quellen zielen Nieder von dem Felsenrand, Ziehn die Hirsche frei und spielen Freudig in dem blanken Sand..."*E assim por diante, sessenta e trs estrofes, na mesma variao hipntica de "i" para "a".

    Os mesmos sons evocam a mesma disposio afetiva. E somente um leitor sem sensibilidade musical seria capaz de discriminar primeira leitura as mincias do texto. A noite, a paz, o sono ficam-lhe gravados no esprito como imagem, enquanto as muitas outras lhe escapam numa torrente irreprimvel.

    A unidade e coeso do clima lrico de suma importncia num poema, pois o contexto lgico, que sempre esperamos de uma manifestao lingstica, quase nunca elaborado em tais casos, ou o apenas imprecisamente. A linguagem lrica parece desprezar as conquistas de um progresso lento em direo clareza, da construo parattica hipottica, de advrbios a conjunes, de conjunes temporais a causais.

    O "Bescheidenes Wnschlein" ("Desejozinho Modesto") ile Spitteler comea assim: "Damals, ganz zuerst am Anfang,wenn ich htte sagen sollen, Was, im Fall ich wnschen drfte,ich mir wrde wnschen wollen. . ."* gracioso, mas apenas porque zomba da real natureza do lrico, numa ironia simptica.

    Spitteler fazendo da necessidade virtude, mostra por meio de construes exageradamente lgicas sua pouca aptido lrica. Mas se um autor de canes expressa-se seriamente, com uma lgica to visvel, logo lamentamos a falta de musicalidade de sua composio. Pois pensar e cantar so duas atividades que no coexistem harmonicamente: Assim comea a poesia "Lied" de Hebbel:

    "Komm, wir wollen Erdbeern pflcken, Ist es doch nicht weit zum Wald,Wollen junge Rosen brechen,

    10 A Schiller, 18 de agosto de 1795.* "Paz ao trabalho do dia / No soe machado algum na floresta! / todo colorido j se foi / apenas a forma avoluma-se // Flores de orvalho enebriadas fecham / dos clices a doce coroa / e os prados sonolentos / acalentam-se em brilho de sonho. // Onde as fontes selvagens escoam-se / do alto de rochas de pedra / os cervos do saltos livres / e divertem-se na areia branca."* "De incio, bem no incio / se eu tivesse devido dizer / o que, no caso de eu ter podido pedir, / eu gostaria de desejar para mim..."

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  • Sie verwelken ja s bald!Droben jene Wetterwolke, Die dich ngstigt, frcht ich nicht;Nein, sie ist mir sehr willkommen, Denn die Mittagssonne sticht."**

    Esta impresso de frieza deve-se antes de tudo s palavras aparentemente inofensivas: "doch", "j", "nein", "denn". Se as afastamos, o carter doutrinrio dos versos desaparece, e eles assemelham-se antes a uma cano:

    "Wir wollen Erdbeern pflcken, Es ist nicht weit zum Wald, Und junge Rosen brechen. Rosen verwelken so bald..."*

    As canes no so igualmente sensveis a todas as conjunes. As causais e finais provocam os efeitos mais desagradveis. Um "se" ou "mas" de quando em vez quase no perturbam o clima lrico, mas o que melhor se adapta no caso a paralaxe simples como em "Retorno" de Eichendorff:

    "Mit meinem Saitenspiele, Das schn geklungen hat, Komm ich durch Lnder viele Zurck in diese Stadt.Ich ziehe durch die Gassen, So finster ist die Nacht, Und alles so verlassen, Hatt's anders mir gedacht.

    Am Brunnen steh ich lange, Der rauscht fort, wie vorher, Kommt mancher wohl gegangen, Es kennt mich keiner mehr.Da hrt' ich geigen, pfeifen, Die Fenster glnzten weit Dazwischen drehn und schleifen Viel fremde, frhliche Leut'Und Herz und Sinne mir brannten, Mich trieb's in die weite Weit, Es spielten die Musikanten, Da fiel ich hin im Feld." **

    A objeo de que essa paralaxe tpica do estilo romntico em particular, e no do ** "Venha, queremos colher cerejas, / e, alm disso, a floresta no longe. / Queremos apanhar tenras flores / que com certeza logo murcharo. //Acima a te amedrontar / a nuvem carregada, no temo / percebo-a com boas vindas / pois o sol das doze queima."* "Queremos colher cerejas, / no est longe a floresta / e rosas tenras apanhar, / que logo se vo murchar."** "Com minha harpa de cordas / que soube to bem tocar / passo por muitas terras / at minha cidade chegar. // Ando pelas ruas sem rumo / e a noite est assim escura / e tudo assim abandonado / como no pensara eu. // fonte, muito tempo parado, / ouo o marulhar como antes / alguns vm de l e de c / e ningum me conhece mais. // Ento ouvi violinos, assovios, / as janelas luziram abertas / e se voltam, e vo e vm, / passos estranhos e alegres. // Arderam-me corao e idias / o vasto mundo chamava; / muitos msicos tocavam / e lancei-me sem mais ao campo."

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  • gnero lrico, s pode ter razo no sentido de que no Romantismo alemo que a "cano" atinge seu apogeu dentro da literatura mundial, e com isso tambm a forma lrica mais pura. Mas encontramos a mesma estrutura frasal na cano " Lua" de Goethe, no "Uber allen Gpfeln ist Ruh", em Verlaine, ou j mesmo em obras primas lricas do barroco, do sculo to apaixonadamente interessado em estruturas lgicas; como o prova por exemplo o "Wo sind die Stunden der sussen Zeit" ("Onde os Tempos Doces de Outrora") de Hofmannswaldau. claro que no uma arte casual, e sim o mais apurado senso artstico que cria a linguagem lrica aqui, principalmente na ltima estrofe:

    "Ich schwamm in Freude,Der Liebe HandSpann mir ein Kleid von Seide,Das Blatt hat sich gewandt,Ich geh'im Leide,Ich wein'itzund, dass Lieb' und SonnenscheinStets voller Angse und Woiken sein."*Uma nica orao subordinada ao final. Justamente a o efeito lrico diminui

    sensivelmente, o canto cede lugar fala. O "dass" (que) , indubitavelmente, uma das conjunes no-lricas. As poesias populares (Volkslieder) agrupam-se tambm aqui, e da antiguidade lembramos Safo com seu tom lrico primitivo que nos soa como segredo confiado distncia de dois milnios e meio.

    Dduke mn a selnnaka pleades; msai d nktes, par d' rchet' ora; go d mna katedo.Entretanto o conceito "parattico" no define satisfatoriamente a linguagem lrica, pois a

    pica tambm parattica, tanto que se costuma dizer que quanto mais parattico, mais pico. (Conforme pg. 97). No gnero pico, porm, as partes so autnomas, no lrico no o so. Na poesia moderna, revela-se isso at ortograficamente em perodos inteiros separados apenas por vrgulas. No seria apenas pedantismo bobo, mas um procedimento anti-estilstico a obedincia cega s regras gramaticais no "Retorno" de Eichendorff, ou em " Lua" de Goethe. O fluxo lrico seria entrecortado. Mais clara se torna a diferena, quando comparamos a prosa de um Eichendorff com a de um Kleist ou de um Lessing. Aqui uma pontuao riqussima, l um retraimento em colocar-se sinais de pausa mais longa, que lembra o estilo costumeiro de uma carta feminina que se poderia atribuir s mesmas damas que merecem a crtica de Goethe pela vocao para poesias exclusivamente musicais. Com isso, j se apresenta talvez um trao feminino da poesia lrica, ou um trao lrico da mulher.

    Outra prova da coordenao das partes que mesmo um perodo j completo pode ceder lugar a mais uma seqncia de membros desgarrados:

    "Und hin und her im TalErwacht die Nachtigall,Dann wieder alles grau und stille. . ."*O ltimo verso no chega a ser uma frase, como tambm no o o incio da segunda

    estrofe:"O wunderbarer Nachtgesang:Von fern im Land der Strme GangLeis Schauern in den dunklen Bumen.. ."**Surgem fragmentos de frases que no podem existir isoladamente, que so apenas ondas

    da corrente lrica: antes de delinear-se o cume, j se destri de novo a onda. O fluir constante

    * "Nadei em gozo, / a mo do amor / teceu-me um vestido de seda, / A folha virou, / ando vestido de sofrimento / lamento agora que o amor e o sol / estejam sempre cheios de medo e nuvens."* Confira pg. 32** Confira a pg. 32.

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  • impede a concluso de cada uma das partes. Assim "Im Grase" ("Na Relva") de Annette von Droste:

    "Ssse Ruh', ssser Taumel im Gras, Von des Krautes Arome umhaucht, Tiefe Flut, tief tief trunkne Flut, Wenn die Wolk' am Azure verraucht, Wenn aufs mde, schwimmende Haupt Ssses

    Lachen gaukelt herab, Liebe Stimme suselt und traft Wie die Lindenblt' auf ein Grab."*ou em Goethe:

    "Dmmrung senkte sich con oben, Schon ist alle Nhe fern; Doch zuerst emporgehoben Holden Lichts der Abendstern!"**s vezes existe uma relao gramatical entre as partes, mas o leitor despreocupado no

    a procura; o caso do "Wanderlied" ("Cano do Viandante") de Eichendorff:"Durch Feld und Buchenhallen Bald singend, bald frhlich still, Recht lustig sei vor allen, Wer's Reisen whlen will!"***Gramaticalmente, seria assim compreensvel: "Wer's Reisen whlen will, der sei durch

    Feld und Buchenhallen bald singend, bald frhlich still, vor allen recht lustig." **** No se precisa perder tempo a explicar a inutilidade de tal esclarecimento do sentido gramatical.

    No raro ficam para atrs algumas palavras soltas, como "Tote Lieb', tote Lust, tote Zeit." *na segunda estrofe de "Na Relva" de Annette von Droste, sem qualquer relao com o

    que foi dito ou o que vem a seguir. Enfim o famoso refro de Brentano:"O Stern und Blume, Geist und Kleid, Lieb, Leid und Zeit und Ewigkeit.. .**parece gua da vida que o poeta deixa escorrer pelas mos; nada permanece intacto,

    nada conserva contornos definidos como fruto de uma existncia lrica voltam, incessantemente, as mesmas palavras fugazes e cheias de mistrios.

    Mesmo numa narrao, se os laos entre as frases se perdem, sentimos o trecho como lrico. O "Julian" de Eichendorff, uma narrativa em versos, serve de exemplo:

    "Drauf von neuem tiefes Schweigen, Und der Ritter schritt voll Hast. .."***Tambm no "Spiritus familiaris ds Rosstuschers" ("Spiritus Familiaris do Negociante

    de Cavalos") de Annette von Droste: "Tiefe tiefe Nacht, am Schreine nur der Maus geheimes Nagen rttelt!" ****

    Somente no estilo pattico, so tambm possveis frases incompletas e at mesmo * "Doce quietude, doce delrio na grama, / do aroma da erva perfumado / fluxo profundo, profundo e enebriado fluxo; / quando a nuvem no azul dissipa-se / quando sobre a cabea j cansada / vem brincar sorriso doce, / uma voz delicada sussurra e cai / como um boto de tlia sobre um tmulo."** "O crepsculo desceu do alto / e o prximo j distante / macia elevara-se antes / a luz da estrela vespertina."*** "Por entre campos e florestas de faia / ora cantando, ora satisfeito e calado / esteja antes de tudo alegre / quem quer a viagem escolher."**** "Quem quer a viagem escolher, esteja por entre os campos e florestas de faia cantando ou satisfeito e calado, antes de tudo alegre".* "Amor morto, alegrias mortas, tempo morto."** Confira pg. 34.*** "De novo silncio profundo / e o cavaleiro cavalgava apressado. "**** "Noite profunda, na mercearia o nico rudo / o roer secreto do camundongo."

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  • palavras soltas. Mas com sentido inteiramente diverso. O incompleto no estilo pattico reflete uma exigncia (conforme pg. 126). O poeta lrico no exige coisa alguma; ao contrrio, ele cede, deixa-se levar para onde o fluxo arrebatador da "disposio anmica" (Stimmung) o queira conduzir.

    Seria incompreender essas riquezas lingsticas interpret-las como elipses. Uma elipse indica que falta algo estrutura gramatical, algo que pertence realmente frase mas que dispensvel para a compuno do todo. Quando se intercala o que faltava, passam a coincidir a significao e a construo gramatical. Em nossos exemplos, entretanto, seria impossvel intercalar-se algo, sem falsear o sentido lrico:

    "Von fern im Land der Strme Gang."*Se colocamos o "rauscht" (murmura), a frase ganha uma nitidez muito diferente da idia

    do autor. Se, na primeira estrofe de "Na Relva", construmos com o verbo ser a orao subordinada de "wenn", dizendo " doce quietude, fluxo profundo, quando a nuvem no azul dissipa-se", vemos que o tom lrico resiste a este "", e mesmo onde o poeta diz "", estaria dificilmente expressando um ser no sentido de existncia presente. Sem o tom pessimista, as palavras de Werther adaptam-se aqui:

    "Podes dizer" isto , "quando tudo passa...?"Em outras palavras: para o poeta lrico no existe uma substncia, mas apenas acidentes,

    nada que perdure, apenas coisas passageiras. Para ele, uma mulher no tem "corpo", nada resistente, nada de contornos. Tem talvez um brilho nos olhos e seios que o confundem, mas no tem um busto no sentido de uma forma plstica e nenhuma fisionomia marcante. Uma paisagem tem cores, luzes, aromas, mas nem cho, nem terra como base. Quando falamos na poesia lrica, por essa razo, em imagens, no podemos lembrar absolutamente de pinturas, mas no mximo de vises que surgem e se desfazem novamente, despreocupadas com as relaes de espao e tempo. Quando essas vises parecem mais fixas, como em muitas poesias de Gottfried Keller, sentimo-nos j muito afastados do crculo fechado do lrico. Na cano de Goethe " Lua", misturam-se espacial e temporalmente fatos prximos e longnquos, como tambm em "Im Frihling" ("Na Primavera") de Mrike e "Durchwachte Nacht" ("Noite de Viglia") de Droste. Chamamos a isso saltos da imaginao, como tendemos a falar em relao linguagem de saltos gramaticais. Mas tais movimentos so saltos apenas para a inteno e para o esprito pensante. A alma no d saltos, resvala. Fatos distanciados nela esto juntos como se manifestaram. Ela no necessita de membros de ligao, j que todas as partes esto imersas no clima ou na "disposio anmica" lrica.

    A poesia lrica carece to pouco de conexes lgicas, quanto o todo de fundamentao. Na poesia pica quando, onde e quem tero que estar mais ou menos esclarecidos antes da histria iniciar-se. Com muito mais razes, o autor dramtico tem que pressupor a existncia de um teatro, e o que falta fundamentao do todo acrescentado posteriormente. Uma poesia pode tambm comear com uma espcie de exposio. Mrike por exemplo gosta de comunicar o ensejo de um sentimento:

    "Hier lieg ich auf dem Frhlingshgel.. ."*Mas tal no necessrio. "Grtner" ("O Jardineiro") de Echendorff comea logo com

    uma completa confisso de amor:"Wohin ich geh und schaue..."**O leitor pode imaginar a seu bel-prazer uma situao qualquer que comporte tais

    palavras, caso sinta-se inclinado a isso e no conhea a passagem da "Vida de um Vagabundo", qual esses versos se seguem. Assim comea um poema de C. F. Meyer:

    "Geh nicht, die Gott fr mich erschuf!

    * Confira pg. 32.Se longe no campo o movimento da corrente.

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  • Lass scharren deiner Rosse Huf Den Reiseruf!" ***Quem quer realizar a viagem? Quem est tentando reter a que parte? S o percebemos

    muito indecisamente, de modo que muitas situaes possveis adaptam-se aqui como base. Nos versos de Marianne von Willemer:

    "Was bedeutet die Bewegung? Bringt der Ost mir frohe Kunde?" *a biografia informa-nos que Goethe partiu de Frankfurt e que o vento sopra agora como

    se fosse um mensageiro seu. Tal informao pode aumentar o deleite que uma poesia proporciona. Entretanto ela dispensvel, e a maioria dos leitores no a exige. Menos ainda lembrar-se- algum de perguntar a que localizao do firmamento refere-se Goethe nos versos de Mignon:

    "Allein und abgetrennt Von aller Freude, Seh ich ans Firmament Nach jener Seite **As canes de Mignon independem totalmente dos "Anos de Aprendizagem de Wilhelm

    Meister". Quantas pessoas admiram-nas e cantam-nas sem ao menos conhecer o romance!Uma poesia pode contrariamente a todo uso racional - comear at com "e", ''pois",

    "mas" ou outras conjunes semelhantes:"Und frische Nahrung neuses Blut.. .."*** "Denn was der Mensch in seinen Erdeschranken. .."**** "Ais ob er horchte. Stille. Eine

    Ferne. .."*****Compreende-se qual a razo dessa falta de fundamentao. Em qualquer parte, no fluir

    de um dia descaracterizado, a existncia transforma-se em msica. o ''ensejo" que levou Goethe a chamar todo trecho autenticamente lrico de uma poesia de momento. Tal ensejo est relacionado com a histria da vida. Deixa-se fundamentar biogrfica, psicolgica, sociolgica, histrica e biologicamente. Goethe em "Poesia e Verdade" explicita a partir do contexto biogrfico o ensejo de muitas de suas poesias. A ele aliam-se na mesma tarefa seus estudiosos, zelosos em contribuir com o mtodo. Essas canes, porm, dispensam qualquer fundamentao. E devem dispens-la, j que o poeta no conscientiza a procedncia de sua inspirao. Alm disso podem faz-lo, pois so de imediato compreensveis atravs do texto. Compreenso imediata e no graas ao relacionamento feito pelo leitor com fato semelhante de sua existncia. Nesses casos, justamente, no h apreenso pura. O que permite qualquer relacionamento superestimado, ou desprezado. Geralmente no possvel esse relacionamento e quando ele existe, o leitor s posteriormente d-se conta de que os versos causaram-lhe alegria ou consolo porque tambm ele vive idnticos condicionamentos. A uma leitura autntica, o prprio leitor vibra conjuntamente sem saber porque, ou melhor, sem qualquer razo lgica. Somente quem no vibra em unssono com a obra exige razes. Somente o que no consegue participar diretamente do clima lrico, ter que o considerar possvel e depender de uma compreenso.

    Ao poeta lrico, propriamente, no importa se um leitor tambm vibra, se ele discute a verdade de um estado lrico. O poeta lrico solitrio, no se interessa pelo pblico; cria para si mesmo. Mas uma tal afirmao exige esclarecimentos. Composies lricas tambm publicam-se. A colheita de anos e anos reunida e entregue a um pblico. Correto.' Mas j aqui, num volume de poesias, "o balbucio apaixonado em linguagem escrita apresenta-se deveras estranho", como disse Goethe. E colecionar folhas soltas no parece apenas a Goethe

    * "Que significa o movimento? / O oriente traz-me boas novas?"** "S e afastada / de toda felicidade, / olha o firmamento / para aquele lado."*** Confira pg. 29.**** "Pois o que o homem em seus limites..."***** "Como se escutasse. Silncio. Uma distncia...

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  • um contra-senso. Quando o volume est pronto, o que que o povo faz com ele? Podem-se declamar poesias lricas, mas, apenas como tambm se pode ler um drama teatral. Recita do um poema lrico no pode ser apreciado como merece. Um declamador a recitar, diante de uma sala cheia, poesias exclusivamente lricas transmite quase sempre uma impresso penosa. Mais plausvel um recital para um crculo pequeno, para pessoas a cuja sensibilidade possamos abandonar-nos. Mas um trecho lrico s desabrocha inteiramente na quietude de uma vida solitria. E mesmo este desabrochar no sorte que seja dada todos os dias ao leitor. Folheamos uma coletnea de canes. Nada nos comove. Os versos nos soam vazios e surpreendemo-nos com o poeta vaidoso que se deu ao trabalho de escrever tais coisas, catalog-las e entreg-las a seus contemporneos e posteridade. Subitamente, porm, numa hora especial, uma estrofe ou toda uma poesia comove-nos. A esta juntam-se outras, e chegamos quase a reconhecer que um grande poeta que nos fala. o efeito de uma arte que nem nos retm como a pica, nem excita e causa tenso, como a dramtica. O lrico nos incutido. Para a insinuao ser eficaz o leitor precisa estar indefeso, receptivo. Isso acontece quando sua alma est afinada com a do autor. Portanto a poesia lrica manifesta-se como arte da solido, que em estado puro receptada apenas por pessoas que interiorizam essa solido.

    A cano de amor, em que um poeta dirige-se amada com um ntimo voc, ter que ser includa aqui. Um voc lrico s possvel quando amada e poeta formam "um corao e uma alma". O lamento do amor no correspondido diz um "voc", que o eu sabe no ter eco.

    O ouvinte pode naturalmente ser preparado para a "disposio anmica". Este , do ponto de vista do poeta, o sentido da composio de uma cano. Schubert, Chamam, Brahms, Hugo Wolf e Schoeck so mestres da arte de dar em poucos compassos uma frmula mgica que afasta o que no diz respeito ao texto e alivia o peso do corao. Eles abriram, com suas msicas, tesouros imensurveis da poesia lrica ao povo de lngua alem. Ressalte-se Hugo Wolf, sempre atento interpretao mais fiel e que quase nunca negligenciou o texto do poeta.

    Mas mesmo numa sala de concerto o ouvinte fica a ss com a cano. Ela no aproxima as pessoas como uma sinfonia de Haydn, em que cada um se sente obrigado a inclinar-se para o vizinho, nem como uma final de Beethoven de que esperamos que possa levar todos a levantarem-se num mpeto decidido. Os aplausos, aqui situados, molestam-nos aps canes lricas, pois sentamo-nos solitrios e somos forados subitamente a estar de novo com outros.

    Goethe e Schiller, esforando-se por encontrar as leis bsicas que regem os gneros dramticos, partiram da relao entre o pblico de um lado, e as rapsdias e farsas do outro.11

    Com a Lrica, com que no se preocuparam, poderamos agir de modo semelhante.Quem no se dirige a ningum e se preocupa apenas com pessoas esparsas que se

    encontram em idntica disposio interior, no necessita da arte de convencer. A idia de lrico exclui todo efeito retrico. Quem dever ser percebido to somente por pessoas analogamente dispostas, no necessita fundamentar. A fundamentao numa poesia lrica soa to indelicada quanto a atitude de um apaixonado que declara seu amor amada, expondo razes lgicas para isso. Assim como ele no precisa de um arrazoado, tambm no necessita esforar-se por explicar palavras veladas. Aquele que se encontra em idntica disposio afetiva, traz consigo uma chave que lhe fornece uma melhor viso do que a do mundo ordenado e da reflexo coerente. O leitor se sentir como se tivesse ele prprio composto a cano. Ele a repetiu de si para si, sabe-a de cor sem a aprender, e balbucia os versos como se brotassem de si mesmo.

    Justamente porque a poesia lrica toca-nos to imediatamente, seu conhecimento indireto, discursivo, ocasiona dificuldades. Quer dizer: fcil compreender-se uma poesia, ou

    11 Correspondncia, 23 e 26 de dezembro de 1797.

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  • melhor, no fcil nem difcil, mas algo que se d por si ou no se d de modo algum. Entretanto falar-se sobre versos lricos, julg-los e fundamentar o julgamento quase impossvel. O julgamento muito dificilmente alcana o valor do lrico; vai, s vezes, apoiar-se em alguma outra coisa que tambm faz parte da poesia, na significao do motivo bsico ou numa metfora ousada. aqui que se torna ntida a diferena entre a poesia lrica e a dramtica. No fcil a compreenso de um drama de Ibsen, Hebbel ou Kleist, nem fcil penetrar cada uma de suas partes, mas no momento em que compreendido, a fundamentao deste conhecimento no traz mais dificuldade. O prprio objeto est situado no mesmo plano da linguagem, que esclarece e deduz. por isso que a Esttica ocupa-se preferivelmente do drama, enquanto a Lrica tem no raro uma existncia apcrifa e tratada com certo embarao. Da tambm as grandes divergncias quanto valorao de poesias. Os mestres clssicos e romnticos j no suscitam mais dvidas. Contudo, com referncia aos poetas novos, ainda no consagrados, eclodem, vez por outra, disputas de feio extravagante, na medida em que ningum tenciona aceitar argumentos. O inexperiente sempre superestima poesias. Acha que tambm sente mais ou menos assim, e portanto os versos so bons. Entretanto, a poesia autenticamente lrica singular e irreproduzvel. Como um individuum ineffabile desencadeia disposies inteiramente novas, jamais at ento existentes. Precisa, todavia, ser apreensvel e confortar o leitor com a idia de que sua alma mais rica do que ele mesmo supusera at ento. A poesia lrica tem, portanto, que satisfazer exigncias antagnicas. Por outro lado, leitores experientes consideram quase tudo que lhes mostram ruim. Quando surpreendem uma boa poesia tm vontade de gritar: "milagre, milagre!". Muito justo, pois qualquer verso lrico autntico que se sustenta por milnios um milagre inexplicvel. Qualquer sentido de comunidade, de verdade fundamentada, de tora persuasiva ou de evidncia, escapa-lhe. o que h de mais privado, e de mais peculiar sobre o tema. E, contudo, consegue unir os ouvintes mais intimamente que qualquer outra palavra. Enquanto, porm, toda poesia autntica mergulha at as profundezas do lrico e reflete em si a unidade dessa fonte originria (cf. pg. 163), toda e qualquer poesia fundamenta-se no imperscrutvel de um "sunder warumbe" peculiar, em que no mais possvel qualquer explicao da beleza e do correio, mas tambm no mais necessria.

    Se a idia de lrico, sempre idntica a si mesma, fundamenta todos os fenmenos estilsticos at ento descritos essa mesma idia una e idntica precisa ser revelada e ter nome. Unidade entre a msica das palavras e de sua significao; atuao imediata do lrico sem necessidade de compreenso (1); perigo de derramar-se, retido pelo refro e repeties de outro tipo (2); renncia coerncia gramatical, lgica e formal (3); poesia da solido compartilhada apenas pelos poucos que se encontram na mesma "disposio anmica" (4); tudo isto indica que em poesia lrica no h distanciamento.

    Examinemos tal afirmao mais minuciosamente e procuremos reafirm-la com novas provas:

    mais fcil comearmos notando que o leitor de poesia lrica no se coloca distncia. No possvel "tomar-se posio contrria" ao elemento lrico de uma poesia. Ele nos comove ou nos deixa indiferentes. Emocionamo-nos com ele, quando estamos em idntica disposio interior. Em seguida os versos ecoam em ns como vindos de nosso prprio ntimo. Pela poesia pica ou dramtica parecemos ter antes admirao. A participao na poesia lrica merece o nome mais ntimo de amor.

    Na poesia lrica, a msica da linguagem adquire enorme importncia. A msica enderea-se audio. Ao ouvir, no temos que nos colocar, propriamente, diante do que ser ouvido, como ao ver diante do que ser visto. Concordamos em que a fenomenologia dos sentidos est pouco desenvolvida e justamente em tais domnios ficamos confundidos pelas divergncias de interpretao. Todavia pode-se dizer que quando queremos admirar um quadro, afastamo-nos um tanto dele para conseguirmos abrang-lo todo e perceber o que foi

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  • distribudo pelo espao. A distncia essencial. Ao ouvirmos msica, a distncia ou proximidade s influem at certo ponto, porque os instrumentos a uma certa distncia soam melhor. A distncia ideal do instrumento comparvel propcia iluminao dos quadros. A distncia, todavia, no cria um frente a frente objetivo como no caso do quadro que nos "exposto" e que podemos, quando ele no est presente, imaginar. Sobre a msica so vlidas as palavras de Paul Valry que dizem: a msica suprime o espao. Estamos nela e ela em ns. O ouvinte ideal "esclave de Ia prsence gnrale de la musique", preso a ela como uma Ptia num cmodo cheio de incenso.12 comparao dirigida intimidade do lrico parece exagerada. E naturalmente teramos que acrescentar que nem toda a msica pode ser considerada lrica. Uma fuga de Bach no lrica. No podemos examinar aqui se existe distanciamento na fuga e que no sentido especial ele vem a ter. Mas lrica aquela msica que Schiller condenou com palavras rudes nos ensaios "Sobre o Sublime":

    "Tambm a msica dos modernos parece tender principalmente para a sensualidade e com isso lisonjeia o gosto dominante que no quer ser comovido, emocionado profundamente, nem enaltecido, apenas acariciado. Assim prefere-se sempre o melodioso (Schmelzende) e mesmo quando h um forte sussurro na sala de concerto, todos se tornam subitamente ouvintes quando se desempenha uma passagem melodiosa. Aparece geralmente uma expresso de sensualidade quase animalesca em todas as faces os olhos amortecidos passeiam descontrolados, a boca abre-se cubiosamente, o corpo tomado de tremor voluptuoso, o hlito enfraquecido e clere, em resumo todos os sintomas do xtase. Prova cabal de que os sentidos deleitaram-se em gozo, o esprito, porm, ou o princpio da liberdade no homem arrebatado pela violncia do instinto sensual." 13

    Lrica ainda aquela msica da linguagem que Herder tambm descreve, de modo semelhante a Schiller, porm com palavras de aprovao entusistica:

    "Estes tons, estes gestos, aqueles movimentos simples da melodia, essa mudana sbita, essa voz a sussurrar, que mais sei eu? Entre crianas e na sensibilidade do povo entre mulheres, pessoas de sentimentos delicados, doentes, solitrios e taciturnos atuam mil vezes mais que a prpria verdade conseguiria atuar se sua voz leve e melodiosa soasse dos cus. Estas palavras, este tom, o desenrolar desta romana aterradora penetravam nossa alma, quando em nossa meninice os ouvamos pela primeira vez, sempre acompanhados por noes vagas de temor, de cerimnia, susto, pavor ou alegria. A palavra soa e como um exrcito de fantasmas elevam-se de sbito todos em sua majestade negra do tmulo da alma em que dormiam. Anuviam o puro e claro conceito da palavra que s podia ser apreendido sem eles: a palavra desaparece e soa o tom da sensibilidade. Um sentimento misterioso nos domina: o leviano apavora-se e treme, no por seus pensamentos e sim pelas slabas e sons da meninice; foi uma fora mgica do poeta, do recitador, tornar-nos crianas de novo. No houve reflexo nem pensamentos como base, apenas a lei da natureza: "O tom da sensibilidade deve transportar a criatura em sintonia para o mesmo tom".14

    A distncia entre obra e ouvinte, aqui superada, inexiste igualmente entre poeta e aquilo de que ele fala. O poeta lrico diz quase sempre "eu". Mas o emprega diferentemente de um autor de autobiografia. S se pode escrever sobre a prpria vida quando a poca abordada ficou para atrs e o eu pode ser visto e descrito de um ponto de observao mais alto. O autor lrico no se "descreve" porque no se "compreende". As palavras "descrever" e "compreender" pressupem um defrontar-se objetivo. Se a primeira se presta a composies autobiogrficas, a ltima serve para um dirio em que o homem se pode dar conta de horas tambm j passadas. Somente aparentemente, somente no tempo medido pelo relgio que o tema, neste caso, est mais prximo que na autobiografia, pois quem escreve um dirio faz

    12 Paul Valry, Eupalinos. Paris, 1924, pg. 126.13 Obras de Schiller, Edio Crtica Completa. Leipzig, 1910, vol. XVII, pg. 402.14 Obras Completas, editadas por Suphan em 5 volumes, Berlim, 1891, pg. 16 e segs.

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  • tambm de si o objeto de uma reflexo. Reflete, inclina-se sobre o passado. Se se inclina para trs porque j deixou para trs o alvo. Realmente, o termo reafirma-se em significao literal. O autor de um dirio liberta-se de cada dia, enquanto toma distncia e reflete sobre ele. Se no o conseguir, se expressar-se diretamente, seu dirio soar lrico.

    Isso nos conduz ao tempo gramatical do lrico. O presente domina de tal modo que seria suprfluo citar exemplos. Aproveitamos mais observando que o pretrito tem tambm um sentido diferente do pretrito pico. Retornemos "Rckkehr" de Eichendorff (pg. 40). Muito particularmente, o poeta oscila entre presente e pretrito, como se isso no importasse. Apenas no ltimo verso:

    "Da fiel ich hin im Feld" *o pretrito quase no pode ser substitudo pelo presente, pois este verso conta um

    acontecimento que ficou para trs e que apreendido nitidamente em seu afastamento temporal. Mas este verso no ''soa" mais. Eichendorff est desperto do encantamento e balbucia-o ainda perturbado para si mesmo. Neste ponto terminou a cano. Os outros pretritos que podiam indiferentemente ser presentes, no criam nenhum distanciamento de tempo. O passado que procuram trazer no est longe nem terminou. No delineado nitidamente e nem compreendido em sua totalidade, movimenta-se ainda e comove o poeta e a ns mesmos com a magia que o "An den Mond" de Goethe irradia e que Keller louva mais sobriamente no "Jugendgedenken" ("Lembranas, da Juventude"):

    "Ich will spiegeln mich in jenen Tagen,Die wie Lindenwipfelwehn entflohn,Wo die Silbsersaite, angeschlagen,Klar, doch bebend, gab den ersten Ton,Der mein Leben lang,Erst heut noch, widerklang,Ob die Saite lngst zerrissen schon." *O passado como objeto de narrao pertence a memria. O passado como tema do lrico

    um tesouro de recordao. O Goethe dos ltimos tempos diz: "no institucionalizo a recordao"15 e quer dizer com isso que no cede ao passado poderes sobre o presente. Os momentos lricos dos ltimos anos de Goethe, porm, provm sempre da recordao; como exemplo: "Dem aufgehenden Vollmond" (" Lua Cheia que Desponta") em que o encontro com Marianne von Willemer de mais de dez anos atrs torna-lhe a encher a alma, ou ento a poesia do "Divan":

    "Und da duftet's wie vor alters,Da wir noch von Liebe litten.. ." **Aromas, mais que impresses pticas pertencem recordao. Pode ser que no

    conservemos um aroma na memria, mas sem dvida o conservamos na recordao. Quando ele se espalha de novo, um acontecimento passado de h muito torna-se subitamente perceptvel; o corao bate e finalmente a recordao instiga a memria; podemos dizer em que circunstncias este aroma nos enebriou os sentidos. Que os aromas pertenam to inteiramente recordao e to pouco memria est sem dvida ligado ao fato de que ns no lhes podemos dar formas, freqentemente mal lhes podemos dar nomes. No delineados, sem nomes, no se tornam objetos. E s nos libertamos daquilo que conseguimos tornar

    * Confira pg. 40.* "Quero espelhar-me naqueles dias / que fugiram com o balano das folhas / em que a corda de prata, ao soar / claro, embora trinado, deu o primeiro tom / que durante minha vida / e hoje ainda, ressoa / mesmo que a corda j esteja, de h muito partida."15 Para F. O Mller, 4 de novembro de 1823.** "Ento ressende a outros tempos, / em que soframos ainda de amor..."

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  • objeto pela contemplao ou pelo conceito. S frente a isso teremos "tomado uma posio".16Quem se encontra em disposio afetiva lrica no toma posio. Desliza com a corrente

    da existncia. O momentneo adquire para ele fora exclusiva aqui este tom, ali um outro. Cada verso o plenifica tanto que ele no pode especificar como o seguinte se relaciona com o anterior. Portanto, onde se compe expressamente um relacionamento, onde se delineiam contornos, ou mesmo onde partes so interligadas por conjunes lgicas, como "weil" (porque), "demnach" (por conseguinte), a comparao interrompida. Sentimo-nos tolhidos, presos a uma margem firme ou, o que o mesmo, desiludidos, j que preferamos deixar-nos levar pelas guas e tnhamos sido convidados a tal:

    "Mag der Grieche seinen Ton Zu Gestalten drcken, An der eignen Hnde Sohn Steigern sein Entzcken;Aber uns ist wonnereich, In den Euphrat greifen Und im flssgen Element Hin und wider schweifen.. ."*Assim Goethe defrontou "cano e composio". Quando a terceira estrofe fala das

    guas crescidas nas mos frias do artista, a Esttica Clssica parece novamente querer afirmar-se em detrimento da Lrica, a no ser que o verso signifique apenas o milagre graas ao qual esse fluido pode ser expresso em linguagem Lrica; um quebra-cabea que solucionaremos em outro captulo. Basta-nos ver aqui que o no distanciamento que caracteriza os fenmenos lricos o responsvel pela inconvenincia do conceito da forma, pela enumerao parattica sem limites definidos entre as partes, pela necessidade de conseguir por meio do refro ou de repeties de outras espcies uma unidade do contrrio inatingvel.

    Sempre o mesmo distanciamento que falta poesia lrica. No hesitaria cham-lo de distncia-sujeito-objeto, se os conceitos sujeito e objeto no fossem igualmente polivalentes e de difcil interpretao como o prprio conceito da forma. "O gnero lrico no objetivo": esta a frmula geralmente empregada desde a Esttica Idealista. Expressa afirmativamente, a frmula ter que ser: o gnero lrico subjetivo. Da decorre uma subdiviso da poesia em: lrica poesia subjetiva; pica poesia objetiva; drama uma sntese de ambas em que o mtodo de reflexo idealista acha-se reafirmado segundo os dualismos eu-no-eu, esprito-natureza ou pela dialtica hegeliana. Como sistema ou metafsica, o idealismo no serve mais de base para as cincias humanas. Os conceitos "poesia subjetiva" e "objetiva" permaneceram e enriqueceram seus valores semnticos. Assim a objetividade da epopia se explica por apresentar esta a realidade como ela existe, independente da pessoa do poeta. "Objetivo" significa ento algo "imparcial e real" (sachlich) e por isso "de validade universal". A Lrica deve mostrar o reflexo das coisas e dos acontecimentos na conscincia individual. Aqui os conceitos confundem-se. Se "independente da pessoa" quer dizer "em si", a conceituao est visivelmente falsa. Nenhum objeto accessvel "em si". Justamente por ser objeto, est em frente, pode ser observado apenas a partir de um ponto de vista, de uma perspectiva que justamente a do poeta, de seu tempo ou de seu povo. (cf. pg. 77) "Objetivo" no portanto idntico a "independente do poeta".

    A contradio tambm se esclarece em outro sentido. O autor pico apresenta o mundo exterior, o lrico, seu mundo interior; a criao lrica ntima. Expliquemos isso: Na criao pica existe, como iremos ver, um defrontar-se objetivo. De um lado, o humor impassvel do

    16 Compare-se Schiller, op. cit. vol. XVIII. pg. 51.* "Que o grego aprecie moldar / o seu tom em figuras / e como filho de suas mos / aumentar seu encantamento. // Mas a ns delicioso / pegar o Eufrates / e no elemento liquido / passear de l pra c.'

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  • narrador, do outro o acontecimento plstico. Que significa, porm, ntima? Algo como "introvertida"? Isso viria deturpar a essncia do fenmeno lrico. A contradio psicolgica entre "introvertido" e "extrovertido" no tem nada a ver com a diferena entre "lrico" e "pico". Um autor pico excepcional com Spitteler introvertido. E Brentano faz lembrar sempre um tipo extrovertido.

    A idia de "dentro" e "fora" provm da imagem de uma representao de cmara escura, com que se figura a essncia do homem: a alma habita o corpo e permite entrar o mundo exterior atravs dos sentidos, principalmente atravs dos olhos por onde penetram as imagens. Embora todo mundo hoje contradiga veementemente tal idia, ela enraza-se no fundo de nosso esprito e quase nunca se deixa afastar totalmente. A viso do homem que vagueia nossa frente e cujo corpo est nitidamente delineado, por cujos olhos cintila a alma, nos traz sempre de novo a mesma idia. E com certeza ela no totalmente desprovida de sentido. A experincia de que nos separamos do mundo exterior pelo corpo cabe a um determinado plano, o plano pico. (cf. pgs. 85 e 86) No pico, representa-se o corpo. Por isso, na realidade pica as coisas se nos apresentam como mundo exterior. O mesmo no se d na realidade lrica. A ainda no h objetos. Portanto no pode tambm haver ainda sujeito. Agora reconhecemos o erro a que nos conduz a contuso dos conceitos. Se a poesia lrica no objetiva, no tem por isso que ser subjetiva. Se ela no representa o mundo exterior tambm no representa contudo o interior. O que se d que "interno" e "externo", "subjetivo" e "objetivo" no esto absolutamente diversificados em poesia lrica.

    digno de nota como na "Esttica" de Vischer essa idia desponta, para, entretanto, ficar de novo obscura e indefinida em virtude de seu conceito de subjetividade. Vischer introduz a Lrica assim:

    "A simples sntese do sujeito com o objeto, segundo a qual o primeiro subordina-se ao segundo (na epopia), no satisfaz ao esprito da arte; este requer algo mais elevado, de acordo com o qual o mundo, com sua essncia desliza pelo sujeito e penetrado por ele".17

    Essa ltima clusula importante; mas quase no observada. "O ingressar do mundo no Sujeito" quase s se adapta essncia da Lrica. Na apresentao da Msica, Vischer afirma tambm algo semelhante:

    "Falta ao sentimento a luz do choque entre sujeito e objeto; ele comporta-se em relao conscincia como o sono para com o estado de alerta: o sujeito mergulha em si mesmo e perde a oposio para com o mundo exterior "18

    O frente a frente (Gegenber) desaparece realmente, verdade. Mas no porque o sujeito mergulha em si mesmo, como disse Vischer. Seria igualmente certo e errado dizer que ele mergulha no mundo exterior, pois no fenmeno lrico, o "eu" no um "mi" que permanece consciente em sua identidade, mas um "je" que no se conserva, que se desfaz em cada momento da existncia.

    Chegou a hora de explicarmos o conceito fundamental da "disposio anmica" (Stimmung). No a constatao de uma situao da alma. A "disposio" j foi, alis, compreendida como tal, como objeto artificial da observao. Originalmente, porm, a disposio no nada que exista "dentro" de ns; e sim, na disposio estamos maravilhosamente "fora", no diante das coisas mas nelas e elas em ns. A disposio apreende a realidade