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AS REGRAS DO MÉTODO SOCIOLÓGICO Emile Durkheim Até o presente, os sociólogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir o método que aplicam ao estudo dos fatos sociais. É assim que, em toda a obra de Spencer, o problema metodológico não ocupa nenhum lugar; pois a Introdução à ciência social, cujo título poderia dar essa ilusão, destina-se a demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia, não a expor os procedimentos que ela deve utilizar. Stuart Mill, é verdade, ocupou-se longa- mente da questão; mas ele não fez senão passar sob o crivo de sua dialética o que Comte havia dito, sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal. Um capítulo do Curso de filosofia positiva, eis praticamente o único estudo original e importante que possuímos sobre o assunto. Essa despreocupação aparente, aliás, nada tem de surpreendente. De fato, os grandes sociólogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saíram das generalidades sobre a natureza das sociedades, sobre as relações do reino social e do reino biológico, sobre a marcha geral do progresso; mesmo a volumosa sociologia de Spencer quase não tem outro objeto senão mostrar como a lei da evolução universal se aplica às sociedades. Ora, apara tratar essas questões filosóficas, n o são necessá_nosprocedimentos especiais e complexos. A ra su iciente, portanto, pesar os méritos comparados da dedução e da indução e fazer uma inspeção sumária dos recursos mais gerais de que dispõe a investigação sociológica. Mas as precauções a tomar na observação dos fatos, a maneira como os principais problemas devem ser colocados, o sentido no qual as pesquisas devem ser dirigidas, as práticas especiais que podem permitir chegar aos fatos, as regras que devem presidir a administração das provas, tudo isso permanecia indeterminado. Uma série de circunstâncias felizes, entre as quais é justo destacar a iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade

Emile Durkheim-As Regras Do Método Sociológico

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  • AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICOEmile Durkheim

    At o presente, os socilogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir

    o mtodo que aplicam ao estudo dos fatos sociais. assim que, em toda a obra

    de Spencer, o problema metodolgico no ocupa nenhum lugar; pois a

    Introduo cincia social, cujo ttulo poderia dar essa iluso, destina-se a

    demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia, no a expor os

    procedimentos que ela deve utilizar. Stuart Mill, verdade, ocupou-se longa-

    mente da questo; mas ele no fez seno passar sob o crivo de sua dialtica o

    que Comte havia dito, sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal. Um

    captulo do Curso de filosofia positiva, eis praticamente o nico estudo original e

    importante que possumos sobre o assunto.

    Essa despreocupao aparente, alis, nada tem de surpreendente. De fato,

    os grandes socilogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saram

    das generalidades sobre a natureza das sociedades, sobre as relaes do reino

    social e do reino biolgico, sobre a marcha geral do progresso; mesmo a

    volumosa sociologia de Spencer quase no tem outro objeto seno mostrar como

    a lei da evoluo universal se aplica s sociedades. Ora, apara tratar essas

    questes filosficas, n o so necess_nosprocedimentos especiais e complexos.

    A ra su iciente, portanto, pesar os mritos comparados da deduo e da induo

    e fazer uma inspeo sumria dos recursos mais gerais de que dispe a

    investigao sociolgica. Mas as precaues a tomar na observao dos fatos, a

    maneira como os principais problemas devem ser colocados, o sentido no qual as

    pesquisas devem ser dirigidas, as prticas especiais que podem permitir chegar

    aos fatos, as regras que devem presidir a administrao das provas, tudo isso

    permanecia indeterminado.

    Uma srie de circunstncias felizes, entre as quais justo destacar a

    iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade

  • de Letras de Bordus, o qual possibilitou que nos dedicssemos desde cedo ao

    estudo da cincia social e inclusive fizssemos dele o objeto de nossas ocupaes

    profissionais, nos fez sair dessas questes demasiado gerais e abordar um certo

    nmero de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela fora mesma das

    coisas, a elaborar um mtodo que julgamos mais definido, mais exatamente

    adaptado natureza particular dos fenmenos sociais. So esses resultados de

    nossa prtica que gostaramos de expor aqui em conjunto e de submeter

    discusso. Claro que eles esto implicitamente contidos no livro que publicamos

    recentemente sobre A diviso do trabalho social. Mas nos parece interessante

    destac-los, formul-los parte, acompanhados de suas provas e ilustrados de

    exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inditos. Assim

    podero julgar melhor a orientao que gostaramos de tentar dar aos estudos de

    sociologia.

    O QUE UM FATO SOCIAL?

    Antes de procurar qual mtodo convm ao estudo dos fatos sociais, importa saber

    quais fatos chamamos assim.

    A questo ainda mais necessria porque se utiliza essa qualificao sem

    muita preciso. Ela empregada correntemente para designar mais ou menos

    todos os fenmenos que se do no interior da sociedade, por menos que

    apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa

    maneira, no h, por assim dizer, acontecimentos humanos que no possam ser

    chamados sociais. Todo indivduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade

    tem todo o interesse em que essas funes se exeram regularmente. Portanto,

    se esses fatos fossem sociais, a sociologia no teria objeto prprio, e seu domnio

    se confundiria com o da biologia e da psicologia.

    Mas, na realidade, h em toda sociedade um grupo determinado de

    fenmenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras

    cincias da natureza estudam.

    Quando desempenho minha tarefa de irmo, de marido ou de cidado,

  • quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que esto

    definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles

    estejam de acordo com meus sentimentos prprios e que eu sinta interiormente a

    realidade deles, esta no deixa de ser objetiva; pois no fui eu que os fiz, mas os

    recebi pela educao. Alis, quantas vezes no nos ocorre ignorarmos o detalhe

    das obrigaes que nos incumbem e precisarmos, para conhec-las, consultar o

    Cdigo e seus intrpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenas e as prticas

    de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas

    existiam antes dele, que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo

    para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar

    minhas dvidas, os instrumentos de crdito que utilizo em minhas relaes co-

    merciais, as prticas observadas em minha profisso, etc. funcionam

    independentemente do uso que fao deles. Que se tomem um a um todos os

    membros de que composta a sociedade; o que precede poder ser repetido a

    propsito de cada um deles. Eis a, portanto, maneiras de agir, de pensar e de

    sentir que apresentam essa notvel propriedade de existirem fora das

    conscincias individuais.

    Esses tipos de conduta ou de pensamento no apenas so exteriores ao

    indivduo, como tambm so dotados de uma fora imperativa e coercitiva em

    virtude da qual se impem a ele, quer ele queira, quer no. Certamente, quando

    me conformo voluntariamente a ela, essa coero no se faz ou pouco se faz

    sentir, sendo intil. Nem por isso ela deixa de ser um carter intrnseco desses

    fatos, e a prova disso que ela s afirma to logo tento resistir. Se tento violar

    as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver

    em tempo, ou para anul-lo e restabelec-lo em sua forma normal, se tiver sido

    efetuado e for reparvel, ou para fazer com que eu o expie, se no puder ser

    reparado de outro modo. Em se tratando de mximas puramente morais, a

    conscincia pblica reprime todo ato que as ofenda atravs da vigilncia que

    exerce sobre a conduta dos cidados e das penas especiais de que dispe. Em

    outros casos, a coero menos violenta, mas no deixa de existir. Se no me

    submeto s convenes do mundo, se, ao vestir-me, no levo em conta os

  • costumes observados em meu pas e em minha classe, o riso que provoco, o

    afastamento em relao a mim produzem, embora de maneira mais atenuada,

    os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coero,

    mesmo sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. No sou obrigado a falar

    francs com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas

    impossvel agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidade,

    minha tentativa fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me probe de

    trabalhar com procedimentos e mtodos do sculo passado; mas, se o fizer,

    certo que me arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa libertar-me dessas regras

    e viol-las com sucesso, isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar

    contra elas. E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram

    suficientemente sua fora coercitiva pela resistncia que opem. No h

    inovador, mesmo afortunado, cujos empreendimentos no venham a deparar

    com oposies desse tipo.

    Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam caractersticas muito

    especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao

    indivduo, e que so dotadas de um poder de coero em virtude do qual esses

    fatos se impem a ele. Por conseguinte, eles no poderiam se confundir com os

    fenmenos orgnicos, j que consistem em representaes e em aes; nem

    com Os fenmenos psquicos, os quais s tm existncia na conscincia

    individual e atravs dela. Esses fatos constituem portanto uma espcie nova, e

    a eles que deve ser dada e reservada a qualificao de sociais. Essa qualificao

    lhes convm; pois claro que, no tendo o indivduo por substrato, eles no

    podem ter outro seno a sociedade, seja a sociedade poltica em seu conjunto,

    seja um dos grupos parciais que ela encerra: confisses religiosas, escolas

    polticas, literrias, corporaes profissionais, etc. Por outro lado, a eles s que

    ela convm; pois apalavra social s tem sentido definido com a condio de

    designar unicamente fenmenos que no se incluem em nenhuma das categorias

    de fatos j constitudos e denominados. Eles so portanto o domnio prprio da

    sociologia. verdade que a palavra coero, pela qual os definimos, pode vira

    assustar os zelosos defensores de um individualismo absoluto. Como estes

  • professam que o indivduo perfeitamente autnomo, julgam que o diminumos

    sempre que mostramos que ele no depende apenas de si mesmo. Sendo hoje

    incontestvel, porm, que a maior parte de nossas idias e de nossas tendncias

    no elaborada por ns, mas nos vem de fora, elas s podem penetrar em ns

    impondo-se; eis tudo o que significa nossa definio. Sabe-se, alis, que nem

    toda coero social exclui necessariamente a personalidade individual'.

    Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurdicas,

    morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.)consistem todos em

    crenas e em prticas constitudas, poder-se-ia supor, com base no que precede,

    que s h fato social onde h organizao definida. Mas existem outros fatos

    que, sem apresentar essas formas cristalizadas, tm a mesma objetividade e a

    mesma ascendncia sobre o indivduo. o que chamamos de correntes sociais.

    Assim, numa assemblia, os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoo

    que se produzem no tm por lugar de origem nenhuma conscincia particular.

    Eles nos vm, a cada um de ns, de fora e so capazes de nos arrebatar contra

    a nossa vontade. Certamente pode ocorrer que, entregando-me a eles sem

    reserva, eu no sinta a presso que exercem sobre mim. Mas ela se acusa to

    logo procuro lutar contra eles. Que um indivduo tente se opor a uma dessas

    manifestaes coletivas: os sentimentos que ele nega se voltaro contra ele.

    Ora, se essa fora de coero externa se afirma com tal nitidez nos casos de re-

    sistncia, porque ela existe, ainda que inconsciente, nos casos contrrios.

    Somos ento vtimas de uma iluso que nos faz crer que elaboramos, ns

    mesmos, o que se imps a ns de fora. Mas, se a complacncia com que nos

    entregamos a essa fora encobre a presso sofrida, ela no a suprime. Assim,

    tambm o ar no deixa de ser pesado, embora no sintamos mais seu peso.

    Mesmo que, de nossa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a

    emoo comum, a impresso que sentimos muito diferente da que teramos

    sentido se estivssemos sozinhos. Assim, a partir do momento em que a

    assemblia se dissolve, em que essas influncias cessam de agir sobre ns e

    nos vemos de novo a ss, os sentimentos vividos nos do a impresso de algo

    estranho no qual no mais nos reconhecemos. Ento nos damos conta de que

  • sofremos esses sentimentos bem mais do que os produzimos. Pode acontecer

    at que nos causem horror, tanto eram contrrios nossa natureza. assim que

    indivduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem ser

    levados a atos de atrocidade quando reunidos em multido. Ora, o que dizemos

    dessas exploses passageiras aplica-se identicamente aos movimentos de

    opinio, mais durveis, que se produzem a todo instante a nosso redor, seja em

    toda a extenso da sociedade, seja em crculos mais restritos, sobre assuntos

    religiosos, polticos, literrios, artsticos, etc.

    Alis, pode-se confirmar por uma experincia caracterstica essa definio do

    fato social: basta observar a maneira como so educadas as crianas. Quando se

    observam os fatos tais como so e tais como sempre foram, salta aos olhos que

    toda educao consiste num esforo contnuo para impor criana maneiras de

    ver, de sentir e de agir s quais ela no teria chegado espontaneamente. Desde

    os primeiros momentos de sua vida, foramolas a comer, a beber, a dormir em

    horrios regulares, foramo-las limpeza, calma, obedincia; mais tarde,

    foramo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes,

    as convenincias, foramo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, essa

    coero cessa de ser sentida, que pouco a pouco ela d origem a hbitos, a

    tendncias internas que a tornam intil, mas que s a substituem pelo fato de

    derivarem dela. verdade que, segundo Spencer, uma educao racional deveria

    reprovar tais procedimentos e deixar a criana proceder com toda a liberdade;

    mas como essa teoria pedaggica jamais foi praticada por qualquer povo

    conhecido, ela constitui apenas um desideratum pessoal, no um fato que se pos-

    sa opor aos fatos que precedem. Ora, o que torna estes ltimos particularmente

    instrutivos que a educao tem justamente por objeto produzir o ser social;

    pode-se portanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira esse ser

    constituiu-se na histria. Essa presso de todos os instantes que sofre a criana

    a presso mesma do meio social que tende a model-la sua imagem e do qual

    os pais e os mestres no so seno os representantes e os intermedirios.

    Assim, no sua generalidade que pode servir para caracterizar os

    fenmenos sociolgicos. Um pensamento que se encontra em todas as

  • conscincias particulares, um movimento que todos os indivduos repetem nem

    por isso so fatos sociais. Se se contentaram com esse carter para defini-los,

    que os confundiram, erradamente, com o que se poderia chamar de suas

    encarnaes individuais. O que os constitui so as crenas, as tendncias e as

    prticas do grupo tomado coletivamente; quanto s formas que assumem os

    estados coletivos ao se refratarem nos indivduos, so coisas de outra espcie. O

    que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza que essas duas

    ordens de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efeito, algumas

    dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem, por causa da repetio, uma

    espcie de consistncia que as precipita, por assim dizer, e as isola dos aconteci-

    mentos particulares que as refletem. Elas assumem assim um corpo, uma forma

    sensvel que lhes prpria, e constituem uma realidade sui generis, muito distinta

    dos fatos individuais que a manifestam. O hbito coletivo no existe apenas em

    estado de imanncia nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de

    uma vez por todas, por um privilgio cujo exemplo no encontramos no reino

    biolgico, numa frmula que se repete de boca em boca, que se transmite pela

    educao, que se fixa atravs da escrita. Tais so a origem e a natureza das

    regras jurdicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos de f em

    que as seitas religiosas ou polticas condensam suas crenas, dos cdigos de

    gosto que as escolas literrias estabelecem, etc. Nenhuma dessas maneiras de

    agir ou de pensar se acha por inteiro nas aplicaes que os particulares fazem

    delas, j que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas.

    Claro que essa dissociao nem sempre se apresenta com a mesma nitidez.

    Mas basta que ela exista de uma maneira incontestvel nos casos importantes e

    numerosos que acabamos de mencionar, para provar que o fato social distinto de

    suas repercusses individuais. Alis, mesmo que ela no seja imediatamente

    dada observao, pode-se com freqncia realiz-la com o auxilio de certos

    artifcios de mtodo; inclusive indispensvel proceder a essa operao se

    quisermos separar o fato social de toda mistura para observ-lo no estado de

    pureza. Assim, h certas correntes de opinio que nos impelem, com desigual

    intensidade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamento, por exemplo,

  • outra ao suicdio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada, etc. *Trata-se,

    evidentemente, de fatos sociais. primeira vista, eles parecem inseparveis das

    formas que assumem nos casos particulares. Mas a estatstica nos fornece o meio

    de isol-los. Com efeito, eles so representados, no sem exatido, pelas taxas

    de natalidade, de nupcialidade, de suicdios, ou seja, pelo nmero que se obtm

    ao dividir a mdia anual total dos nascimentos, dos casamentos e das mortes

    voluntrias pelo total de homens em idade de se casar, de procriar, de se

    suicidarz. Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os casos

    particulares sem distino, as circunstncias individuais que podem ter alguma

    participao na produo do fenmeno neutralizam-se mutuamente e, portanto,

    no contribuem para determin-lo. O que esse fato exprime um certo estado da

    alma coletiva.

    Eis o que so os fenmenos sociais, desembaraados de todo elemento

    estranho. Quanto s suas manifestaes privadas, elas tm claramente algo de

    social, j que reproduzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas

    depende tambm, e em larga medida, da constituio orgnico-psquica do

    indivduo, das circunstncias particulares nas quais ele est situado. Portanto elas

    no so fenmenos propriamente sociolgicos. Pertencem simultaneamente a

    dois reinos; poderamos cham-las sociopsquicas. Essas manifestaes

    interessam o socilogo sem constiturem a matria imediata da sociologia. No

    interior do organismo encontram-se igualmente fenmenos de natureza mista que

    cincias mistas, como a qumica biolgica, estudam.

    Mas, diro, um fenmeno s pode ser coletivo se for comum a todos os

    membros da sociedade ou, pelo menos, maior parte deles, portanto, se for geral.

    Certamente, mas, se ele geral, porque coletivo (isto , mais ou menos

    obrigatrio), o que bem diferente de ser coletivo por ser geral. Esse fenmeno

    um estado do grupo, que se repete nos indivduos porque se impe a eles. Ele

    est em cada parte porque est no todo, o que diferente de estar no todo por

    estar nas partes. Isso sobretudo evidente nas crenas e prticas que nos so

    transmitidas inteiramente prontas pelas geraes anteriores; recebemolas e

    adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra

  • secular, elas esto investidas de uma particular autoridade que a educao nos

    ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a imensa maioria

    dos fenmenos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte,

    nossa colaborao direta, o fato social da mesma natureza. Um sentimento

    coletivo que irrompe numa assemblia no exprime simplesmente o que havia de

    comum entre todos os sentimentos individuais. Ele algo completamente distinto,

    conforme mostramos. uma resultante da vida comum, das aes e reaes que

    se estabelecem entre as conscincias individuais; e, se repercute em cada uma

    delas, em virtude da energia social que ele deve precisamente sua origem

    coletiva. Se todos os coraes vibram em unssono, no por causa de uma

    concordncia espontnea e preestabelecida; que uma mesma fora os move no

    mesmo sentido. Cada um arrastado por todos.

    Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domnio da

    sociologia. Ele compreende apenas um grupo determinado de fenmenos. Um

    fato social se reconhece pelo poder de coero externa que exerce ou capaz de

    exercer sobre os indivduos; e a presena desse poder se reconhece, por sua vez,

    seja pela existncia de alguma sano determinada, seja pela resistncia que o

    fato ope a toda tentativa individual de fazer-lhe violncia. Contudo, pode-se

    defini-lo tambm pela difuso que apresenta no interior do grupo, contanto que,

    conforme as observaes precedentes, tenha-se o cuidado de acrescentar como

    segunda e essencial caracterstica que ele existe independentemente das formas

    individuais que assume ao difundir-se. Este ltimo critrio, em certos casos,

    inclusive mais fcil de aplicar que o precedente. De fato, a coero fcil de

    constatar quando se traduz exteriormente por alguma reao direta da sociedade,

    como o caso em relao ao direito, moral, s crenas, aos costumes, inclusive

    s modas. Mas, quando apenas indireta, como a que exerce uma organizao

    econmica, ela nem sempre se deixa perceber to bem. A generalidade

    combinada coma objetividade podem ento ser mais fceis de estabelecer. Alis,

    essa segunda definio no seno outra forma da primeira; pois, se uma

    maneira de se conduzir, que existe exteriormente s conscincias individuais, se

    generaliza, ela s pode faz-lo impondo-sei.

  • Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definio completa. Com efeito,

    os fatos que nos forneceram sua base so, todos eles, maneiras de fazer; so de

    ordem fisiolgica. Ora, h tambm maneiras de ser coletivas, isto , fatos sociais

    de ordem anatmica ou morfolgica. A sociologia no pode desinteressar-se do

    que diz respeito ao substrato da vida coletiva. No entanto, o nmero e a natureza

    das partes elementares de que se compe a sociedade, a maneira como elas

    esto dispostas, o grau de coalescncia a que chegaram, a distribuio da

    populao pela superfcie do territrio, o nmero e a natureza das vias de

    comunicao, a forma das habitaes, etc. no parecem capazes, num primeiro

    exame, de se reduzir a modos de agir, de sentir ou de pensar.

    Mas, em primeiro lugar, esses diversos fenmenos apresentam a mesma

    caracterstica que nos ajudou a definir os outros. Essas maneiras de ser se

    impem ao indivduo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos. De fato,

    quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente,

    como essas divises se compem, a fuso mais ou menos completa que existe

    entre elas, no por meio de uma inspeo material e por observaes

    geogrficas que se pode chegar a isso; pois essas divises so morais, ainda que

    tenham alguma base na natureza fsica. somente atravs do direito pblico que

    se pode estudar essa organizao, pois esse direito que a determina, assim

    como determina nossas relaes domsticas e cvicas. Portanto, ela no menos

    obrigatria. Se a populao se amontoa nas cidades em vez de se dispersar nos

    campos, que h uma corrente de opinio, um movimento coletivo que impe aos

    indivduos essa concentrao. No podemos escolher a forma de nossas casas,

    como tampouco a de nossas roupas; pelo menos, uma obrigatria na mesma

    medida que a outra. As vias de comunicao determinam de maneira imperiosa o

    sentido no qual se fazem as migraes interiores e as trocas, e mesmo a

    intensidade dessas trocas e dessas migraes, etc., etc. Em conseqncia, seria,

    quando muito, o caso de acrescentar lista dos fenmenos que enumeramos

    como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais; e, como

    essa enumerao no tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adio no seria

    indispensvel.

  • Mas ela no seria sequer proveitosa; pois essas maneiras de ser no so

    seno maneiras de fazer consolidadas. A estrutura poltica de uma sociedade no

    seno a maneira como os diferentes segmentos que a compem se habituaram

    a viver uns com os outros. Se suas relaes so tradicionalmente prximas, os

    segmentos tendem a se confundir; caso contrrio, tendem a se distinguir. O tipo

    de habitao que se impe a ns no seno a maneira como todos ao nosso

    redor e, em parte, as geraes anteriores se acostumaram a construir suas casas.

    As vias de comunicao no so seno o leito escavado pela prpria corrente

    regular das trocas e das migraes, correndo sempre no mesmo sentido, etc.

    Certamente, se os fenmenos de ordem morfolgica fossem os nicos a apresen-

    tar essa fixidez, poderamos pensar que eles constituem uma espcie parte. Mas

    uma regra jurdica um arranjo no menos permanente que um modelo

    arquitetnico, e no entanto um fato fisiolgico. Uma simples mxima moral ,

    seguramente, mais malevel; porm ela possui formas bem mais rgidas que um

    simples costume profissional ou que uma moda. H assim toda uma gama de

    nuances que, sem soluo de continuidade, liga os fatos estruturais mais

    caracterizados s correnteslivres da vida social ainda no submetidas a nenhum

    molde definido. que entre os primeiros e as segundas apenas h diferenas no

    grau de consolidao que apresentam. Uns e outras so apenas vida mais ou

    menos cristalizada. Claro que pode haver interesse em reservar o nome de

    morfolgicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social, mas com a

    condio de no perder de vista que eles so da mesma natureza que os outros.

    Nossa definio compreender portanto todo o definido se dissermos: fato social

    toda maneira de fazer, fixada ou no, suscetvel de exercer sobre o indivduo uma

    coero exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que geral na extenso de uma

    sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existncia prpria, independente

    de suas manifestaes individuais.

    REGRAS RELATIVAS OBSERVAO

    DOS FATOS SOCIAIS

  • A primeira regra e a mais fundamental considerar os fatos sociais como

    coisas.

    No momento em que uma nova ordem de fenmenos torna-se objeto de

    cincia, eles j se acham representados no esprito, no apenas por imagens

    sensveis, mas por espcies de conceitos grosseiramente formados. Antes dos

    primeiros rudimentos da fsica e da qumica, os homens j possuam sobre os

    fenmenos fsico-qumicos noes que ultrapassavam a pura percepo, como

    aquelas, por exemplo, que encontramos mescladas a todas as religies. que, de

    fato, a reflexo anterior cincia, que apenas se serve dela com mais mtodo.

    O homem no pode viver em meio s coisas sem frmar a respeito delas idias;

    de acordo com as quais regula sua conduta. Acontece que, como essas noes

    esto mais prximas de ns e mais ao nosso alcance do que as realidades a que

    correspondem, tendemos naturalmente a substituir estas ltimas por elas e a fazer

    delas a matria mesma de nossas especulaes. Em vez de observar as coisas,

    de descrevlas, de compar-las, contentamo-nos ento em tomar conscincia de

    nossas idias, em analis-las, em combinlas. Em vez de uma cincia de

    realidades, no fazemos mais do que uma anlise ideolgica. Por certo, essa

    anlise no exclui necessariamente toda observao. Pode-se recorrer aos fatos

    para confirmar as noes ou as concluses que se tiram. Mas os fatos s intervm

    ento secundariamente, a ttulo de exemplos ou de provas confirmatrias; eles

    no so o objeto da cincia. Esta vai das idias s coisas, no das coisas s

    idias.

    claro que esse mtodo no poderia dar resultados objetivos. Com efeito,

    essas noes, ou conceitos, no importa o nome que se queira dar-lhes, no so

    os substitutos legtimos das coisas. Produtos da experincia vulgar, eles tm por

    objeto, antes de tudo, colocar nossas aes em harmonia com o mundo que nos

    cerca; so formados pela prtica e para ela. Ora, uma representao pode ser

    capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sendo teoricamente falsa.

    Coprnico, h muitos sculos, dissipou as iluses de nossos sentidos referentes

    aos movimentos dos astros; no entanto, ainda com base nessas iluses que

    regulamos correntemente a distribuio de nosso tempo. Para que uma idia

  • suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama, no

    necessrio que ela exprima fielmente essa natureza; basta que nos faa perceber

    o que a coisa- tem de til ou de desvantajoso, cie que modo pode nos servir, de

    que modo nos contrariar. Mas as noes assim formadas s apresentam essa

    justeza prtica de uma maneira aproximada e somente na generalidade dos

    casos. Quantas vezes elas so to perigosas como inadequadas! No portanto

    elaborando-as, pouco importa de que maneira o faamos, que chegaremos a

    descobrir as leis da realidade. Tais noes, ao contrrio, so como um vu que se

    interpe entre as coisas e ns, e que as encobre tanto mais quanto mais

    transparente julgamos esse vu.

    Tal cincia no apenas truncada; falta-lhe tambm matria de que se

    alimentar. Mal ela existe, desaparece, por assim dizer, transformando-se em arte.

    De fato, supese que essas noes contenham tudo o que h de essencial no

    real, j que so confundidas com o prprio real. Com isso, parecem ter tudo o que

    preciso para que sejamos capazes no s de compreender o que , mas de

    prescrever o que deve ser e os meios de execut-lo. Pois bom o que est de

    acordo com a natureza das coisas; o que contrrio a elas mau, e os meios

    para alcanar um e evitar o outro derivam dessa mesma natureza. Portanto, se a

    dominamos de sada, o estudo da realidade presente no tem mais interesse

    prtico, e, como esse interesse a razo de ser de tal estudo, este se v desde

    ento sem finalidade. A reflexo , assim, incitada a afastar-se do que o objeto

    mesmo da cincia, a saber, o presente e o passado, para lanar-se num nico

    salto em direo ao futuro. Em vez de buscar compreender os fatos adquiridos e

    realizados, ela empreende imediatamente realizar novos, mais conformes aos fins

    perseguidos pelos homens. Quando se cr saber em que consiste a essncia da

    matria, parte-se logo em busca da pedra filosofal. Essa intromisso da arte na

    cincia, que impede que esta se desenvolva, alis facilitada pelas circunstncias

    mesmas que determinam o despertar da reflexo cientfica. Pois, como esta s

    surge para satisfazer necessidades vitais, natural que se oriente para a prtica.

    As necessidades que ela chamada a socorrer so sempre prementes, portanto a

    pressionam para obter resultados; elas reclamam, no explicaes, mas remdios.

  • Essa maneira de proceder to conforme tendncia natural de nosso

    esprito que a encontramos inclusive na origem das cincias fsicas. ela que

    diferencia a alquimia da qumica, bem como a astrologia da astronomia. por ela

    que Bacon caracteriza o mtodo que os sbios de seu tempo seguiam e que ele

    combate. As noes que acabamos de mencionar so aquelas notiones vulgares

    ou praenotioneslque ele assinala na base de todas as cincias, nas quais elas

    tomam o lugar dos fatos. So os idola, fantasmas que nos desfiguram o

    verdadeiro aspecto das coisas e que, no entanto, tomamos como as coisas

    mesmas. E por esse meio imaginrio no oferecer ao esprito nenhuma

    resistncia que este, no se sentindo contido por nada, entrega-se a ambies

    sem limite e julga possvel construir, ou melhor, reconstruir o mundo com suas

    foras apenas e ao sabor de seus desejos.

    Se foi assim com as cincias naturais, com mais forte razo tinha de ser

    com a sociologia. Os homens no esperaram o advento da cincia social para

    formar idias sobre o direito, a moral, a famlia, o Estado, a prpria sociedade;

    pois no podiam privar-sedelas para viver. Ora, sobretudo em sociologia que

    essas prenoes,para retomar a expresso de Bacon, esto em situao de

    dominar os espritos e de tomar o lugar das coisas. Com efeito, as coisas sociais

    s se realizam atravs dos homens; elas so um produto da atividade humana.

    Portanto, parecem no ser outra coisa seno a realizao de idias, inatas ou no,

    que trazemos em ns, seno a aplicao dessas idias s diversas circunstncias

    que acompanham as relaes dos homens entre si. A organizao da famlia, do

    contrato, da represso, do Estado, da sociedade vista assim como um simples

    desenvolvimento das idias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justia, etc.

    Em conseqncia, esses fatos e outros anlogos s parecem ter realidade nas e

    pelas idias que so seu germe e que se tornam, com isso, a matria prpria da

    sociologia.

    O que refora essa maneira de ver que, como os detalhes da vida social

    excedem por todos os lados a conscincia, esta no tem uma percepo

    suficientemente forte desses detalhes para sentir sua realidade. No tendo em ns

    ligaes bastante slidas nem bastante prximas, tudo isso nos d facilmente a

  • impresso de no se prender a nada e de flutuar no vazio, matria em parte irreal

    e indefinidamente plstica. Eis por que tantos pensadores no viram nos arranjos

    sociais seno combinaes artificiais e mais ou menos arbitrrias. Mas, se os

    detalhes, se as formas concretas e particulares nos escapam, pelo menos nos

    representamos os aspectos mais gerais da existncia coletiva de maneira

    genrica e aproximada, e so precisamente essas representaes esquemticas e

    sumrias que constituem as prenoes de que nos servimos para as prticas

    correntes da vida. No podemos portanto pensar em pr em dvida a existncia

    delas, uma vez que a percebemos ao mesmo tempo que a nossa. Elas no

    apenas esto em ns, como tambm, sendo um produto de experincias

    repetidas, obtm da repetio - e do hbito resultante - uma espcie de

    ascendncia e de autoridade. Sentimos sua resistncia quando buscamos

    libertarnos delas. Ora, no podemos deixar de considerar como real o que se ope

    a ns. Tudo contribui, portanto, para que vejamos nelas a verdadeira realidade

    social.

    E, de fato, at o presente, a sociologia tratou mais ou menos

    exclusivamente no de coisas, mas de conceitos. Comte, verdade, proclamou

    que os fenmenos sociais so fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste

    modo, ele implicitamente reconheceu seu carter de coisas, pois na natureza s

    existem coisas. Mas, quando, saindo dessas generalidades filosficas, ele tenta

    aplicar seu princpio e extrair a cincia nele contida, so idias que ele toma por

    objeto de estudo. Com efeito, o que faz a matria principal de sua sociologia o

    progresso da humanidade no tempo. Ele parte da idia de que h uma evoluo

    contnua do gnero humano que consiste numa realizao sempre mais completa

    da natureza humana, e o problema que ele trata descobrir a ordem dessa

    evoluo. Ora, supondo que essa evoluo exista, sua realidade s pode ser

    estabelecida uma vez feita a cincia; portanto, s se pode fazer dessa evoluo o

    objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepo do esprito,

    no como uma coisa. E, de fato, to claro que se trata de uma representao

    inteiramente subjetiva que, na prtica, esse progresso da humanidade no existe.

    O que existe, a nica coisa dada observao, so sociedades particulares que

  • nascem, se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras. Se pelo

    menos as mais recentes continuassem as que as precederam, cada tipo superior

    poderia ser considerado como a simples repetio do tipo imediatamente inferior,

    com alguma coisa a mais; poderse-ia, pois, alinh-las umas depois das outras, por

    assim dizer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de

    desenvolvimento, e a srie assim formada poderia ser vista como representativa

    da humanidade. Mas os fatos no se apresentam com essa extrema simplicidade.

    Um povo que substitui outro no simplesmente um prolongamento deste ltimo

    com algumas caractersticas novas; ele outro, tem algumas propriedades a mais,

    outras a menos; constitui uma individualidade nova, e todas essas individualidades

    distintas, sendo heterogneas, no podem se fundir numa mesma srie contnua,

    nem, sobretudo, numa srie nica. Pois a seqncia das sociedades no poderia

    ser figurada por uma linha geomtrica; ela assemelha-se antes a uma rvore cujos

    ramos se orientam em sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou por

    desenvolvimento histrico a noo que dele possua e que no difere muito da que

    faz o vulgo. Vista de longe, de fato, a histria adquire bastante claramente esse

    aspecto serial e simples. Percebem-se apenas indivduos que se sucedem uns

    aos outros e marcham todos numa mesma direo, porque tm uma mesma

    natureza. Alis, como no se concebe que a evoluo social possa ser outra coisa

    que no o desenvolvimento de uma idia humana, parece natural defini-Ia pela

    idia que dela fazem os homens. Ora, procedendo assim, no apenas se

    permanece na ideologia, mas se d como objeto sociologia um conceito que

    nada tem de propriamente sociolgico.

    Esse conceito, Spencer o descarta, mas para substitulo por outro que no

    formado de outro modo. Ele faz das sociedades, e no da humanidade, o objeto

    da cincia; s que ele d em seguida, das primeiras, uma definio que faz

    desaparecer a coisa de que fala para colocar no lugar a prenoo que possui dela.

    Com efeito, ele estabelece como uma proposio evidente que "uma sociedade s

    existe quando justaposio acrescenta-se a cooperao", sendo somente ento

    que a unio dos indivduos se torna uma sociedade propriamente dita. Depois,

    partindo do princpio de que a cooperao a essncia da vida social, ele

  • distingue as sociedades em duas classes, conforme a natureza da cooperao

    que nelas predomina. "H, diz ele, uma cooperao espontnea que se efetua

    sem premeditao durante a perseguio de fins de carter privado; h tambm

    uma cooperao conscientemente instituda que supe fins de interesse pblico

    claramente reconhecidos." s primeiras, ele d o nome de sociedades industriais;

    s segundas, de militares, e pode-se dizer dessa distino que ela a idia-me

    de sua sociologia.

    Mas essa definio inicial enuncia como coisa o que to-s uma noo

    do esprito. Com efeito, ela se apresenta como a expresso de um fato

    imediatamente visvel e que basta observao constatar, j que formulada

    desde o incio da cincia como axioma. No entanto, impossvel saber por uma

    simples inspeo se realmente a cooperao a essncia da vida social. Tal

    afirmao s cientificamente legtima se primeiramente passarmos em revista as

    manifestaes da existncia coletiva e se mostrarmos que todas so formas

    diversas da cooperao. Portanto, ainda certa maneira de concebera realidade

    social que substitui essa realidade. O que assim definido no a sociedade,

    mas a idia que dela faz o Sr. Spencer. E, se ele no tem o menor escrpulo em

    proceder deste modo, que, tambm para ele, a sociedade no e no pode ser

    seno a realizao de uma idia, isto , dessa idia mesma de cooperao pela

    qual a define. Seria fcil mostrar que, em cada um dos problemas particulares que

    aborda, seu mtodo permanece o mesmo. Assim, embora d a impresso de

    proceder empiricamente, como os fatos acumulados em sua sociologia so

    empregados para ilustrar anlises de noes e no para descrever e explicar

    coisas, eles parecem estar ali apenas para figurar como argumentos. Em

    realidade, tudo o que h de essencial na doutrina de Spencer pode ser

    imediatamente deduzido de sua definio da sociedade e das diferentes formas de

    cooperao. Pois, se s pudermos optar entre uma cooperao tiranicamente

    imposta e uma cooperao livre e espontnea, evidentemente esta ltima que

    ser o ideal para o qual a humanidade tende e deve tender.

    No somente na base da cincia que se encontram essas noes

    vulgares; vemo-las a todo instante na trama dos raciocnios. No estado atual de

  • nossos conhecimentos, no sabemos com certeza o que o Estado, a soberania,

    a liberdade poltica, a democracia, o socialismo, o comunismo, etc.; o mtodo

    aconselharia, portanto, a que nos proibssemos todo uso desses conceitos,

    enquanto eles no estivessem cientificamente constitudos. Entretanto, as

    palavras que os exprimem retornam a todo momento nas discusses dos

    socilogos. Elas so empregadas correntemente e com segurana como se

    correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas, quando apenas

    despertam em ns noes confusas, misturas indistintas de impresses vagas, de

    preconceitos e de paixes. Zombamos hoje dos singulares raciocnios que os

    mdicos da Idade Mdia construam com as noes de calor, de frio, de mido, de

    seco, etc., e no nos apercebemos de que continuamos a aplicar esse mesmo

    mtodo ordem de fenmenos que o comporta menos que qualquer outro, por

    causa de sua extrema complexidade.

    Nos ramos especiais da sociologia, esse carter ideolgico ainda mais

    pronunciado.

    o caso sobretudo da moral. De fato, pode-se dizer que no h um nico

    sistema em que ela no seja representada como o simples desenvolvimento de

    uma idia inicial que a conteria por inteiro em potncia. Essa idia, uns crem que

    o homem a encontra inteiramente pronta dentro dele desde seu nascimento;

    outros, ao contrrio, que ela se forma mais ou menos lentamente ao longo da

    histria. Mas, tanto para uns como para outros, tanto para os empiristas como

    para os racionalistas, ela tudo o que h de verdadeiramente real em moral. No

    que concerne ao detalhe das regras jurdicas e morais, elas no teriam, por assim

    dizer, existncia por si mesmas, mas seriam apenas essa noo fundamental

    aplicada s circunstncias particulares da vida e diversificada conforme os casos.

    Portanto, o objeto da moral no poderia ser esse sistema de preceitos sem

    realidade, mas a idia da qual decorrem e da qual no so mais que aplicaes

    variadas. Assim, todas as questes que a tica se coloca ordinariamente se

    referem, no a coisas, mas a idias; o que se trata de saber em que consiste a

    idia do direito, a idia da moral, e'no qual a natureza da moral e do direito

    considerados em si mesmos. Os moralistas ainda no chegaram concepo

  • muito simples de que, assim como nossa representao das coisas sensveis

    provm dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente, nossa

    representao da moral provm do prprio espetculo das regras que funcionam

    sob nossos olhos e as figura esquematicamente; de que, conseqentemente, so

    essas regras, e no a noo sumria que temos delas, que formam a matria da

    cincia, da mesma forma que a fsica tem como objeto os corpos tais como

    existem, e no a idia que deles faz o vulgo. Disso resulta que se toma como base

    da moral o que no seno o topo, a saber, a maneira como ela se prolonga nas

    conscincias individuais e nelas repercute. E no apenas nos problemas mais

    gerais da cincia que esse mtodo seguido: ele permanece o mesmo nas

    questes especiais. Das idias essenciais que estuda no incio, o moralista passa

    s idias secundrias de famlia, de ptria, de responsabilidade, de caridade, de

    justia; mas sempre a idias que se aplica sua reflexo.

    No diferente com a economia poltica. Ela tem por objeto, diz Stuart Mill, os

    fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da

    aquisio de riquezas. Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser

    designados, enquanto coisas, observao do cientista, seria preciso pelo menos

    que se pudesse indicar por qual sinal possvel reconhecer aqueles que satisfa-

    zem essa condio. Ora, no incio da cincia, no se tem sequer o direito de

    afirmar que existe algum, muito menos ainda se pode saber quais so. Em toda

    ordem de pesquisas, com efeito, somente quando a explicao dos fatos est

    suficientemente avanada que possvel estabelecer que eles tm um objetivo e

    qual esse objetivo. No h problema mais complexo nem menos suscetvel de

    ser resolvido de sada. Portanto, nada nos garante de antemo que haja uma

    esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente

    esse papel preponderante. Em conseqncia, a matria da economia poltica,

    assim compreendida, feita no de realidades que podem ser indicadas, mas de

    simples possveis, de puras concepes do esprito; a saber, fatos que o

    economista conceb como relacionados ao fim considerado, e tais como ele os

    concebe. Digamos, por exemplo, que ele queira estudar o que chama a produo.

    De sada, acredita poder enumerar os principais agentes com o auxlio dos quais

  • ela ocorre e pass-los em revista. Portanto, ele no reconheceu a existncia

    desses agentes observando de quais condies dependia a coisa que ele estuda;

    pois ento teria comeado por expor as experincias de que tirou essa concluso.

    Se, desde o incio da pesquisa e em poucas palavras, ele procede a essa

    classificao, que a obteve por uma simples anlise lgica. Parte da idia da

    produo; decompondo-a, descobre que ela implica logicamente as de foras

    naturais, de trabalho, de instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma ma-

    neira essas idias derivadas.

    A mais fundamental de todas as teorias econmicas, a do valor,

    manifestamente construda segundo o mesmo mtodo. Se o valor fosse estudado

    como uma realidade deve s-lo, veramos primeiro o economista indicar em

    apenas essa noo fundamental aplicada s circunstncias particulares da vida e

    diversificada conforme os casos. Portanto, o objeto da moral no poderia ser esse

    sistema de preceitos sem realidade, mas a idia da qual decorrem e da qual no

    so mais que aplicaes variadas. Assim, todas as questes que a tica se coloca

    ordinariamente se referem, no a coisas, mas a idias; o que se trata de saber

    em que consiste a idia do direito, a idia da moral, e'no qual a natureza da

    moral e do direito considerados em si mesmos. Os moralistas ainda no chegaram

    concepo muito simples de que, assim como nossa representao das coisas

    sensveis provm dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos

    exatamente, nossa representao da moral provm do prprio espetculo das

    regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente; de que,

    conseqentemente, so essas regras, e no a noo sumria que temos delas,

    que formam a matria da cincia, da mesma forma que a fsica tem como objeto

    os corpos tais como existem, e no a idia que deles faz o vulgo. Disso resulta

    que se toma como base da moral o que no seno o topo, a saber, a maneira

    como ela se prolonga nas conscincias individuais e nelas repercute. E no

    apenas nos problemas mais gerais da cincia que esse mtodo seguido: ele

    permanece o mesmo nas questes especiais. Das idias essenciais que estuda

    no incio, o moralista passa s idias secundrias de famlia, de ptria, de

    responsabilidade, de caridade, de justia; mas sempre a idias que se aplica sua

  • reflexo.

    No diferente com a economia poltica. Ela tem por objeto, diz Stuart Mill, os

    fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da

    aquisio de riquezas. Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser

    designados, enquanto coisas, observao do cientista, seria preciso pelo menos

    que se pudesse indicar por qual sinal possvel reconhecer aqueles que satisfa-

    zem essa condio. Ora, no incio da cincia, no se tem sequer o direito de

    afirmar que existe algum, muito menos ainda se pode saber quais so. Em toda

    ordem de pesquisas, com efeito, somente quando a explicao dos fatos est

    suficientemente avanada que possvel estabelecer que eles tm um objetivo e

    qual esse objetivo. No h problema mais complexo nem menos suscetvel de

    ser resolvido de sada. Portanto, nada nos garante de antemo que haja uma

    esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente

    esse papel preponderante. Em conseqncia, a matria da economia poltica,

    assim compreendida, feita no de realidades que podem ser indicadas, mas de

    simples possveis, de puras concepes do esprito; a saber, fatos que o

    economista conceb como relacionados ao fim considerado, e tais como ele os

    concebe. Digamos, por exemplo, que ele queira estudar o que chama a produo.

    De sada, acredita poder enumerar os principais agentes com o auxlio dos quais

    ela ocorre e pass-los em revista. Portanto, ele no reconheceu a existncia

    desses agentes observando de quais condies dependia a coisa que ele estuda;

    pois ento teria comeado por expor as experincias de que tirou essa concluso.

    Se, desde o incio da pesquisa e em poucas palavras, ele procede a essa

    classificao, que a obteve por uma simples anlise lgica. Parte da idia da

    produo; decompondo-a, descobre que ela implica logicamente as de foras

    naturais, de trabalho, de instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma ma-

    neira essas idias derivadas.

    A mais fundamental de todas as teorias econmicas, a do valor,

    manifestamente construda segundo o mesmo mtodo. Se o valor fosse estudado

    como uma realidade deve s-lo, veramos primeiro o economista indicar em que

    se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome, depois classificar suas

  • espcies, buscar por indues metdicas as causas em funo das quais elas

    variam, comparar enfim os diversos resultados para obter uma frmula geral. A

    teoria portanto s poderia surgir quando a cincia tivesse avanado bastante. Em

    vez disso, encontramola desde o incio. que, para faz-la, o economista

    contenta-se em recolher, em tomar conscincia da idia que ele tem do valor, ou

    seja, de um objeto suscetvel de ser trocado; descobre que ela implica a idia do

    til, do raro, etc., e com esses produtos de sua anlise que constri sua

    definio. Certamente ele a confirma por alguns exemplos. Mas, quando se pensa

    nos inumerveis fatos que semelhante teoria deve explicar, como atribuir o menor

    valor demonstrativo aos fatos, necessariamente muito raros, que so assim

    citados ao acaso da sugesto?

    Por isso, tanto em economia poltica como em moral, a parte da

    investigao cientfica muito restrita; a da arte, preponderante. Em moral, a parte

    terica se reduz a algumas discusses sobre a idia do dever, do bem e do direito.

    Mesmo essas especulaes abstratas no constituem uma cincia, para falar

    exatamente, j que tm por objeto determinar no o que , de fato, a regra

    suprema da moralidade, mas o que ela deve ser. Do mesmo modo, o que mais

    preocupa os economistas a questo de saber, por exemplo, se a sociedade

    deve ser organizada segundo as concepes dos individualistas ou segundo as

    dos socialistas; se melhor o Estado intervir nas relaes industriais e comerciais

    ou abandon-las inteiramente iniciativa privada; se o sistema monetrio deve ser

    o monometalismo ou o bimetalismo, etc., etc. As leis propriamente ditas so pouco

    numerosas nessas pesquisas; mesmo as que nos habituamos a chamar assim

    geralmente no merecem essa qualificao, no passando de mximas de ao,

    preceitos prticos disfarados. Eis, por exemplo, a famosa lei da oferta e da

    procura. Ela jamais foi estabelecida indutivamente, como expresso da realidade

    econmica. Jamais uma experincia, uma comparao metdica foi instituda para

    estabelecer, de fato, que segundo essa lei que procedem as relaes

    econmicas. Tudo o que se pde fazer e tudo o que se fez foi demonstrar

    dialeticamente que os indivduos devem proceder assim, caso entendam bem

    seus interesses; que qualquer outra maneira de proceder lhes seria prejudicial e

  • implicaria, da parte dos que se entregassem a isso, uma verdadeira aberrao

    lgica. lgico que as indstrias mais produtivas sejam as mais procuradas; que

    os detentores dos produtos de maior demanda e mais raros os vendam ao mais

    alto preo. Mas essa necessidade inteiramente lgica em nada se assemelha

    quela que apresentam as verdadeiras leis da natureza. Estas exprimem as

    relaes segundo as quais os fatos se encadeiam realmente, e no a maneira

    como bom que eles se encadeiem.

    O que dizemos dessa lei pode ser dito de todas as que a escola econmica

    ortodoxa qualifica de naturais e que, por sinal, no so muito mais do que casos

    particulares da precedente. Elas so naturais, se quiserem, no sentido de que

    enunciam os meios que ou que pode parecer natural empregar para atingir

    determinado fim suposto; mas elas no devem ser chamadas por esse nome, se,

    por lei natural, se entender toda maneira de ser da natureza, indutivamente

    constatada. Elas no passam, em suma, de conselhos de sabedoria prtica, e, se

    foi possvel, mais ou menos especiosamente, apresent-las como a expresso

    mesma da realidade, que, com ou sem razo, acreditou-se poder supor que tais

    conselhos eram efetivamente seguidos pela generalidade dos homens e na

    generalidade dos casos.

    No entanto, os fenmenos sociais so coisas e devem ser tratados como

    coisas. Para demonstrar essa proposio, no necessrio filosofar sobre sua

    natureza, discutir as analogias que apresentam com os fenmenos dos reinos

    inferiores. Basta constatar que eles so o nico datum oferecido ao socilogo.

    coisa, com efeito, tudo o que dado, tudo o que se oferece ou, melhor, se impe

    observao. Tratar fenmenos como coisas trat-los na qualidade de data que

    constituem o ponto de partida da cincia. Os fenmenos sociais apresentam

    incontestavelmente esse carter. O que nos dado no a idia que os homens

    fazem do valor, pois ela inacessvel; so os valores que se trocam realmente no

    curso de relaes econmicas. No esta ou aquela concepo da idia moral;

    o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta. No a idia do

    til ou da riqueza; toda a particularidade da organizao econmica., possvel

    que a vida social no seja seno o desenvolvimento de certas noes; mas,

  • supondo que seja assim, essas noes no so dadas imediatamente. No se

    pode portanto atingi-Ias diretamente, mas apenas atravs da realidade fe-

    nomnica que as exprime. No sabemos a priori que idias esto na origem das

    diversas correntes entre as quais se divide a vida social, nem se existe alguma;

    somente depois de t-las remontado at suas origens que saberemos de onde

    elas provm.

    preciso portanto considerar os fenmenos sociais em si mesmos, separados

    dos sujeitos conscientes que os concebem; preciso estud-los de fora, como

    coisas exteriores, pois nessa qualidade que eles se apresentam a ns. Se essa

    exterioridade for apenas aparente, a iluso se dissipar medida que a cincia

    avanar e veremos, por assim dizer, o de fora entrar no de dentro. Mas a soluo

    no pode ser preconcebida e, mesmo que eles no tivessem afinal todos os

    caracteres intrnsecos da coisa, deve-se primeiro trat-los como se os tivessem.

    Essa regra aplica-se portanto realidade social inteira, sem que haja motivos para

    qualquer exceo. Mesmo os fenmenos que mais parecem consistir em arranjos

    artificiais devem ser considerados desse ponto de vista.. O carter convencional

    de uma prtica ou de uma instituiro jamais deve ser presumido. Alis, se nos for

    permitido invocar nossa experincia pessoal, acreditamos poder assegurar que,

    procedendo dessa maneira, com freqncia se ter a satisfao de ver os fatos

    aparentemente mais arbitrrios apresentarem, aps uma observao mais atenta

    dos caracteres de constncia e de regularidade, sintomas de sua objetividade.

    De resto, e de uma maneira geral, o que foi dito anteriormente sobre os

    caracteres distintivos do fato social suficiente para nos certificar sobre a natureza

    dessa objetividade e para provar que ela no ilusria. Com efeito, reconhece-se

    principalmente uma coisa pelo sinal de que no pode ser modificada por um

    simples decreto da vontade. No que ela seja refratria a qualquer modificao.

    Mas, para produzir uma mudana nela, no basta querer, preciso alm disso um

    esforo mais ou menos laborioso, devido resistncia que ela nos ope e que

    nem sempre, alis, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais tm essa

    propriedade. Longe de serem um produto de nossa vontade, eles a determinam de

    fora; so como moldes nos quais somos obrigados a vazar nossas aes. Com

  • freqncia at, essa necessidade tal que no podemos escapar a ela. Mas ainda

    que consigamos super-la, a oposio que encontramos suficiente para nos

    advertir de que estamos em presena de algo que no depende de ns. Portanto,

    considerando os fenmenos sociais como coisas, apenas nos conformaremos

    sua natureza.

    Em suma, a reforma que se trata de introduzir em sociologia em todos os

    pontos idntica que transformou a psicologia nos ltimos trinta anos. Do mesmo

    modo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais so fatos de natureza,

    sem no entanto trat-los como coisas, as diferentes escolas empricas h muito

    haviam reconhecido o carter natural dos fenmenos psicolgicos, *embora

    continuassem a aplicar-lhes um mtodo puramente ideolgico*. Com efeito, os

    empiristas, no menos que seus adversrios, procediam exclusivamente por

    introspeco. Ora, os fatos que s observamos em ns mesmos so demasiado

    raros, demasiado fugazes, `demasiado maleveis para poderem se impor s

    noes correspondentes que o hbito fixou em ns e estabelecer-lhes a lei.

    Quando estas ltimas no so submetidas a outro controle, nada lhes faz

    contrapeso; por conseguinte, elas tomam o lugar dos fatos e constituem a matria

    da cincia. Assim, nem Locke, nem Condillac consideraram os fenmenos

    psquicos objetivamente. No a sensao que eles estudam, mas uma certa

    idia da sensao. Por isso, ainda que sob certos aspectos eles tenham

    preparado o advento da psicologia cientfica, esta s surgiu realmente bem mais

    tarde, quando se chegou finalmente concepo de que os estados de

    conscincia podem e devem ser considerados de fora, e no do ponto de vista da

    conscincia que os experimenta. Tal foi a grande revoluo que se efetuou nesse

    tipo de estudos. Todos os procedimentos particulares, todos os mtodos novos

    que enriqueceram essa cincia, no so mais que meios diversos de realizar mais

    completamente essa idia fundamental. o mesmo progresso que resta fazer em

    sociologia. preciso que ela passe do estgio subjetivo, raramente ultrapassado

    at agora, fase objetiva.

    Essa passagem, alis, menos difcil de efetuar do que em psicologia. Com

    efeito, os fatos psquicos so naturalmente dados como estados do sujeito, do

  • qual eles no parecem sequer separveis. Interiores por definio, parece que s

    se pode trat-los como exteriores violentando sua natureza. preciso no apenas

    um esforo de abstrao, mas todo um conjunto de procedimentos e de artifcios

    para chegar a consider-los desse vis. Ao contrrio, os fatos sociais tm mais

    naturalmente e mais imediatamente todas as caractersticas da coisa. O direito

    existe nos cdigos, os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados

    estatsticos, nos monumentos da histria, as modas nas roupas, os gostos nas

    obras de arte. Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se constituir fora

    das conscincias individuais; visto que as dominam. Para v-los sob seu aspecto

    de coisas, no preciso, portanto, tortur-los com engenhosidade. Desse ponto

    de vista, a sociologia tem sobre a psicologia Uma sria vantagem que no foi

    percebida at agora e que deve apressar seu desenvolvimento. Os fatos talvez

    sejam mais difceis de interpretar por serem mais complexos, mas so mais fceis

    de atinar. A psicologia, ao contrrio, no apenas tem dificuldade de elabor-los,

    como tambm de perceb-los. Em conseqncia, lcito imaginar que, no dia em

    que esse princpio do mtodo sociolgico for unanimemente reconhecido e

    praticado, veremos a sociologia progredir com uma rapidez que a lentido atual de

    seu desenvolvimento no faria supor, e inclusive reconquistar a dianteira que a

    psicologia deve unicamente sua anterioridade histrica.

    Mas a experincia de nossos predecessores nos mostrou que, para

    assegurar a realizao prtica da verdade que acaba de ser estabelecida, no

    basta oferecer uma demonstrao terica nem mesmo compenetrar-se dela. O

    esprito tende to naturalmente a desconhec-la que recairemos inevitavelmente

    nos antigos erros, se no nos submetermos a uma disciplina rigorosa, cujas regras

    principais, corolrios da precedente, iremos formular.

    1) O primeiro desses corolrios que: preciso descartar

    sistematicamente todas as prenoes. Uma demonstrao especial dessa regra

    no necessria; ela resulta de tudo o que dissemos anteriormente. Alis, ela a

    base de todo mtodo cientfico. A dvida metdica de Descartes, no fundo, no

    seno uma aplicao disso. Se, no momento em que vai fundar a cincia,

    Descartes impe-se como lei pr em dvida todas as idias que recebeu

  • anteriormente, que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente

    elaborados, isto , construdos de acordo com o mtodo que ele institui; todos os

    que ele obtm de uma outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos

    provisoriamente. J vimos que a teoria dos dolos, em Bacon, no tem outro

    sentido. As duas grandes doutrinas que freqentemente foram opostas uma

    outra, concordam nesse ponto essencial. preciso, portanto, que o socilogo,

    tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas, como no curso

    de suas demonstraes, proba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos

    que se formaram fora da cincia e por necessidades que nada tm de cientfico.

    preciso que ele se liberte dessas falsas evidncias que dominam o esprito do

    vulgo, que se livre, de uma vez por todas, do jugo dessas categorias empricas

    que um longo costume acaba geralmente por tornar tirnicas. Se a necessidade o

    obriga s vezes a recorrer a elas, pelo menos que o faa tendo conscincia de seu

    pouco valor, a fim de no as chamar a desempenhar na doutrina um papel de que

    no so dignas.

    O que torna essa libertao particularmente difcil em sociologia que o

    sentimento com freqncia se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas

    crenas polticas e religiosas, por nossas prticas morais, muito mais do que pelas

    coisas do mundo fsico; em conseqncia, esse carter passional transmite-se

    maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras. As idias que

    fazemos a seu respeito nos so muito caras, assim como seus objetos, e

    adquirem tamanha autoridade que no suportam a contradio. Toda opinio que

    as perturba tratada como inimiga. Por exemplo, uma proposio no est de

    acordo com a idia que se faz do patriotismo, ou da dignidade individual? Ento

    ela negada, no importam as provas sobre as quais repousa. No se pode

    admitir que seja verdadeira; ela rejeitada categoricamente, e a paixo, para

    justificar-se, no tem dificuldade de sugerir razes que so consideradas

    facilmente decisivas. Essas noes podem mesmo ter tal prestgio que no

    toleram sequer um exame cientfico. O simples fato de submetlas, assim como os

    fenmenos que elas exprimem, a uma anlise fria e seca, revolta certos espritos.

    Quem decide estudar a moral a partir de fora e como uma realidade exterior

  • visto por esses delicados como desprovido de senso moral, da mesma forma que

    o vivissecionista parece ao vulgo desprovido da sensibilidade comum. Em vez

    de admitir que esses sentimentos so do domnio a* da cincia, a eles que se

    julga dever apelar para fazer a cincia das coisas s quais se referem. "Infeliz o

    sbio", escreve um eloqente historiador das religies, "que aborda as coisas de

    Deus sem ter no fundo de sua conscincia, no fundo indestrutvel de seu ser, l

    onde dorme a alma dos antepassados, um santurio desconhecido do qual se

    eleva por instantes um perfume de incenso, uma linha de salmo, um grito doloroso

    ou triunfal que, criana, lanou ao cu junto com seus irmos e que o repe em

    sbita comunho com os profetas de outrora!""

    Nunca nos ergueremos com demasiada fora contra essa doutrina mstica

    que como todo misticismo, alis no , no fundo, seno um empirismo disfarado,

    pegador de toda cincia. Os sentimentos que tm como objetos as coisas sociais

    no tm privilgio sobre os demais, pois no outra sua origem. Tambm eles

    so formados historicamente; so um produto da experincia humana, mas de

    uma experincia confusa e inorganizada. Eles no se devem a no sei que

    antecipao transcendental da realidade, mas so a resultante de todo tipo de

    impresses e de emoes acumuladas sem ordem, ao acaso das circunstncias,

    sem interpretao metdica. Longe de nos proporcionarem luzes superiores s

    luzes racionais, eles so feitos exclusivamente de estados fortes, verdade, mas

    confusos. Atribuir-lhes tal preponderncia conceder s faculdades inferiores da

    inteligncia a supremacia sobre as mais elevadas, condenar-se a uma

    logomaquia mais ou menos oratria. Uma cincia feita assim s pode satisfazer os

    espritos que gostam de pensar com sua sensibilidade e no com seu

    entendimento, que preferem as snteses imediatas e confusas da sensao s

    anlises pacientes e luminosas da razo. O sentimento objeto de cincia, no o

    critrio da verdade cientfica. De resto, no h cincia que, em seus comeos, no

    tenha encontrado resistncias anlogas. Houve um tempo em que os sentimentos

    relativos s coisas do mundo fsico, tendo eles prprios um carter religioso ou

    moral, opunham-se com no menos fora ao estabelecimento das cincias fsicas.

    Pode-se portanto supor que, expulso de cincia em cincia, esse preconceito

  • acabar por desaparecer da prpria sociologia, seu ltimo refgio, para deixar o

    terreno livre ao cientista.

    2) Mas a regra precedente inteiramente negativa. Ela ensina o socilogo

    a escapar ao domnio das noes vulgares, para dirigir sua ateno aos fatos;

    mas no diz como deve se apoderar desses ltimos para empreender um estudo

    objetivo deles.

    Toda investigao cientfica tem por objeto um grupo determinado de

    fenmenos que correspondem a uma mesma definio. O primeiro procedimento

    do socilogo deve ser, portanto, definir as coisas de que ele trata, a fim de que se

    saiba e de que ele saiba bem o que est em questo. Essa a primeira e a mais

    indispensvel condio de toda prova e de toda verificao; uma teoria, com

    efeito, s pode ser controlada se se sabe reconhecer os fatos que ela deve

    explicar. Alm do mais, visto ser por essa definio que constitudo* o objeto

    mesmo da cincia, este ser uma coisa ou no, conforme a maneira pela qual

    essa definio for feita.

    Para que ela seja objetiva, preciso evidentemente que exprima os

    fenmenos, no em funo de uma idia do esprito, mas de propriedades que lhe

    so inerentes. preciso que ela os caracterize por um elemento integrante da

    natureza deles, no pela conformidade deles a uma noo mais ou menos ideal.

    Ora, no momento em que a pesquisa vai apenas comear, quando os fatos no

    esto ainda submetidos a nenhuma elaborao, os nicos desses caracteres que

    podem ser atingidos so os que se mostram suficientemente exteriores para

    serem imediatamente visveis. Os que esto situados mais profundamente so,

    por certo, mais essenciais; seu valor explicativo maior, mas nessa fase da cincia

    eles so desconhecidos e s podem ser antecipados se substituirmos a realidade

    por alguma concepo do esprito. Assim, entre os primeiros que deve ser

    buscada a matria dessa definio fundamental. Por outro lado, claro que essa

    definio dever compreender,sem exceo nem distino, todos os fenmenos

    que apresentam igualmente esses mesmos caracteres; pois no temos nenhuma

    razo e nenhum meio de escolher entre eles. Essas propriedades so, ento, tudo

    o que sabemos do real; em conseqncia, elas devem determinar soberanamente

  • a maneira como os fatos devem ser agrupados. No possumos nenhum outro

    critrio que possa, mesmo parcialmente, suspender os efeitos do precedente.

    Donde a regra seguinte: Jamais tomarporobjeto de pesquisas seno um grupo de

    fenmenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes so

    comuns, e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa

    definio. Por exemplo, constatamos a existncia de certo nmero de atos que

    apresentam, todos, o carter exterior de, uma vez efetuados, determinarem de

    parte da sociedade essa reao particular que chamada pena. Fazemos deles

    um grupo sui generis, ao qual impomos uma rubrica comum; chamamos crime

    todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma cincia

    especial, a criminologia. Do mesmo modo, observamos, no interior de todas as

    sociedades conhecidas, a existncia de uma sociedade parcial, reconhecvel pelo

    sinal exterior de ser formada de indivduos consangneos uns dos outros, em sua

    maior parte, e que esto unidos entre si por laos jurdicos. Fazemos dos fatos

    que se relacionam a ela um grupo particular; so os fenmenos da vida

    domstica. Chamamos famlia todo agregado desse tipo e fazemos da famlia

    assim definida o objeto de uma investigao especial que ainda no recebeu

    denominao determinada na terminologia sociolgica. Quando, mais tarde,

    passarmos da famlia em geral aos diferentes tipos familiares, aplicaremos a

    mesma regra. Quando abordarmos; por exemplo, o estudo do cl, ou da famlia

    maternal, ou da famlia patriarcal, comearemos por defini-los, e de acordo com o

    mesmo mtodo. O objeto de cada problema, geral como particular, deve ser

    constitudo segundo o mesmo princpio.

    Ao proceder dessa maneira, o socilogo, desde seu primeiro passo, toma

    imediatamente contato com a realidade. Com efeito, o modo como os fatos so

    assim classificados no depende dele, da propenso particular de seu esprito,

    mas da natureza das coisas. O sinal que possibilita serem colocados nesta ou

    naquela categoria pode ser mostrado a todo o mundo, reconhecido por todo o

    mundo, e as afirmaes de um observador podem ser controladas pelos outros.

    verdade que a noo assim constituda nem sempre se ajusta, ou, at mesmo, em

    geral no se ajusta, noo comum. Por exemplo; evidente que, para o senso

  • comum, os casos de livre pensamento ou as faltas etiqueta, to regularmente e

    to severamente punidos numa srie de sociedades, no so vistos como crimes,

    inclusive em relao a essas sociedades. Assim tambm, um cl no uma

    famlia, no sentido -usual da palavra. Mas no importa; pois no se trata

    simplesmente de descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente

    certeza os fatos a que se aplicam as palavras da lngua corrente e as idias que

    estas traduzem. O que preciso constituir inteiramente conceitos novos,

    apropriados s necessidades da cincia e expressos com o auxlio de uma

    terminologia especial. No, certamente, que o conceito vulgar seja intil ao

    cientista; ele serve de indicador. Por ele, somos informados de que existe em

    alguma parte um conjunto de fenmenos reunidos sob uma mesma denominao

    e que, portanto, devem provavelmente ter caractersticas comuns; inclusive, como

    o conceito vulgar jamais deixa de ter algum contato com os fenmenos, ele nos

    indica s vezes, mas de maneira geral, em que direo estes devem ser

    buscados. Mas, como ele grosseiramente formado, natural que no coincida

    exatamente com o conceito cientfico, institudo em seu lugar.

    Por mais evidente e importante que seja essa regra, ela no muito observada

    em sociologia. Precisamente por esta tratar de coisas das quais estamos sempre

    falando, como a famlia, a propriedade, o crime, etc., na maioria das vezes parece

    intil ao socilogo dar-lhes uma definio preliminar e rigorosa. Estamos to

    habituados a servir-nos dessas palavras, que voltam a todo instante no curso das

    conversaes, que parece intil precisar o sentido no qual as empregamos. As

    pessoas se referem simplesmente nao comum. Ora, esta muito freqente-

    mente ambgua. Essa ambigidade faz que se renam sob um mesmo nome e

    numa mesma explicao coisas, em realidade, muito diferentes. Da provm

    inextricveis confuses. Assim, existem duas espcies de unies monog-

    micas:umas o so de fato, outras de direito. Nas primeiras, o marido s tem uma

    mulher, embora, juridicamente, possa ter vrias; nas segundas ele legalmente

    proibido de ser polgamo. A monogamia de fato verifica-se em vrias espcies

    animais e em certas sociedades inferiores, no de forma espordica, mas com a

    mesma generalidade como se fosse imposta por lei. Quando a populao est

  • dispersa numa vasta superfcie, a trama social mais frouxa, portanto os

    indivduos vivem isolados uns dos outros. Por isso, cada homem busca

    naturalmente obter uma mulher e uma s, porque, nesse estado de isolamento,

    lhe difcil ter vrias. A monogamia obrigatria, ao contrrio, s se observa nas

    sociedades mais elevadas. Essas duas espcies de sociedades conjugais tm

    portanto uma significao muito diferente, no entanto a mesma palavra serve para

    design-Ias; pois comum dizer de certos animais que eles so mongamos,

    embora nada exista entre eles que se assemelhe a uma obrigao jurdica. Ora, o

    sr. Spencer, abordando o estudo do casamento, emprega a palavra monogamia,

    sem defini-Ia, com seu sentido usual e equvoco. Disso resulta que a evoluo do

    casamento lhe parece apresentar uma incompreensvel anomalia, j que ele cr

    observar a forma superior da unio sexual j nas primeiras fases do

    desenvolvimento histrico, ao passo que ela parece desaparecer no perodo

    intermedirio para retornar a seguir. Ele conclui da que no h relao regular

    entre o progresso social em geral e o avano progressivo em direo a um tipo

    perfeito de vida familiar. Uma definio oportuna teria evitado esse errol3.

    Em outros casos, toma-se o cuidado de definir o objeto sobre o qual incidir a

    pesquisa; mas, em vez de abranger na definio e de agrupar sob a mesma

    rubrica todos os fenmenos que tm as mesmas propriedades exteriores, faz-se

    uma triagem entre eles. Escolhem-se alguns, espcie de elite, que so vistos

    como os nicos com o direito a ter esses caracteres. Quanto aos demais, so

    considerados como tendo usurpado esses sinais distintivos e no so levados em

    conta. Mas fcil prever que dessa maneira s se pode obter uma noo

    subjetiva e truncada. Essa eliminao, com efeito, s pode ser feita com base

    numa idia preconcebida, uma vez que, no comeo da cincia, nenhuma pesquisa

    pde ainda estabelecer a realidade dessa usurpao, supondo-se que ela seja

    possvel. Os fenmenos escolhidos s o podem ter sido porque estavam, mais do

    que os outros, de acordo com a concepo ideal que se fazia desse tipo de

    realidade. Por exemplo, o sr. Garofalo, no comeo de sua Criminologie, demonstra

    muito bem que o ponto de partida dessa incia deve ser "a noo sociolgica do

    crime". S que, para constituir essa noo, ele no compara indistintamente todos

  • os atos que, nos diferentes tipos sociais, foram reprimidos por penas regulares,

    mas apenas alguns dentre eles, a saber, os que ofendem a parte mdia e imutvel

    do senso moral. Quanto aos sentimentos morais que desapareceram durante a

    evoluo, eles no lhe parecem fundados na natureza das coisas, por no terem

    conseguido se manter; por conseguinte, os atos que foram considerados

    criminosos porque os violavam, lhe parecem dever essa denominao apenas a

    circunstncias acidentais e mais ou menos patolgicas. Mas em virtude de uma

    concepo inteiramente pessoal da moralidade que ele procede a essa

    eliminao. Ele parte da idia de que a evoluo moral, tomada em sua fonte

    mesma ou nos arredores, arrasta todo tipo de escrias e de impurezas, que ela

    elimina a seguir progressivamente, e de que somente hoje ela conseguiu

    desembaraar-se de todos os elementos adventcios que, primitivamente,

    perturbavam-lhe o curso. Mas esse princpio no nem um axioma evidente nem

    uma verdade demonstrada; apenas uma hiptese, que nada inclusive justifica.

    As partes variveis do senso moral no so menos fundadas na natureza das

    coisas do que as partes imutveis; as variaes pelas quais as primeiras

    passaram testemunham apenas que as prprias coisas variaram. Em zoologia, as

    formas especficas s espcies inferiores no so vistas como menos naturais do

    que as que se repetem em todos os graus da escala animal. Do mesmo modo, os

    atos tachados de crimes pelas sociedades primitivas, e que perdelam essa

    qualificao, so realmente criminosos para essas sociedades, tanto quanto os

    que continuamos a reprimir hoje em dia. Os primeiros correspondem s condies

    mutveis da vida social, os segundos s condies constantes; mas uns no so

    mais artificiais que os outros.

    E tem mais: ainda que esses atos tivessem adquirido indevidamente o carter

    criminolgico, nem por isso deveriam ser separados radicalmente dos outros; pois

    a natureza das formas mrbidas de um fenmeno no diferente da natureza das

    formas normais e, por conseqncia, necessrio observar tanto as primeiras

    quanto as segundas para determinar essa natureza. A doena no se ope

    sade; trata-se de duas variedades do mesmo gnero e que se esclarecem

    mutuamente. Essa uma regra h muito reconhecida e praticada, tanto em

  • biologia como em psicologia, e que o socilogo no menos obrigado a respeitar.

    A menos que se admita que um mesmo fenmeno possa ser devido ora a causa,

    ora a uma outra, isto , a menos que se negue o princpio de causalidade, as

    causas que imprimem num ato, mas de maneira anormal, o sinal distintivo do

    crime no poderiam diferir em espcie das que produzem normalmente o mesmo

    efeito; elas distinguem-se apenas em grau ou porque no agem no mesmo

    conjunto de circunstncias. O crime anormal ainda , portanto, um crime e deve,

    por conseguinte, entrar na definio do crime. Assim, o que ocorre? O sr. Garofalo

    toma por gnero o que no seno a espcie ou mesmo uma simples variedade.

    Os fatos aos quais se aplica sua frmuIa da criminalidade no representam seno

    uma nfima minoria entre os que ela deveria compreender; pois ela no convm

    nem aos crimes religiosos, nem aos crimes contra a etiqueta, o cerimonial, a

    tradio, etc., que, se desapareceram de nossos cdigos modernos, preenchem,

    ao contrrio, quase todo o direito penal das sociedades anteriores.

    a mesma falta de mtodo que faz que certos observadores-recusem aos

    selvagens qualquer espcie de moralidade15. Eles partem da idia de que nossa

    moral a moral; ora, evidente que ela desconhecida dos povos primitivos ou

    que s existe neles em estado rudimentar. Mas essa definio arbitrria.

    Apliquemos nossa regra e tudo se modifica. Para decidir se um preceito moral

    ou no, devemos examinar se ele apresenta ou no o sinal exterior da moralidade;

    esse sinal consiste numa sano repressiva difusa, ou seja, numa reprovao da

    opinio pblica que vinga toda violao do preceito. Sempre que estivermos em

    presena de um fato que apresenta esse carter, no temos o direito de negar-lhe

    a qualificao de moral; pois essa a prova de que ele da mesma natureza que

    os outros fatos morais. Ora, regras desse gnero no s se verificam nas

    sociedades inferiores, como so mais numerosas a do que entre os civilizados.

    Uma quantidade de atos atualmente entregues livre apreciao dos indivduos

    so, ento, impostos obrigatoriamente. Percebe-se a que erros somos levados

    quando no definimos, ou quando definimos mal.

    Mas, diro, definir os fenmenos por seus caracteres aparentes no ser

    atribuir s propriedades superficiais uma espcie de preponderncia sobre os

  • atributos fundamentais? No ser, por uma verdadeira inverso da ordem lgica,

    fazer repousar as coisas sobre seus topos, e no sobre suas bases? assim que,

    quando se define o crime pela pena, corre-se quase inevitavelmente o risco de ser

    acusado de querer derivar o crime da pena ou, conforme uma citao bem

    conhecida, de ver no patbulo a fonte da vergonha, no no ato expiado. Mas a

    objeo repousa sobre uma confuso. Como a definio cuja regra acabamos de

    dar est situada no comeo da cincia, ela no poderia ter por objeto exprimir a

    essncia da realidade; ela deve apenas nos pr em condies de chegar a isso

    ulteriormente. I-ia tem por nica funo fazer-nos entrar em contato com as coisas

    e, como estas no podem ser atingidas pelo esprito a no ser de fora, por seus

    exteriores que ela as exprime. Mas isso no quer dizer que as explique; ela

    apenas fornece o primeiro ponto de apoio necessrio s nossas explicaes.

    Claro, no a pena que faz o crime, mas por ela que ele se revela exteriormente

    a ns, e dela portanto que devemos partir se quisermos chegar a compreend-

    lo.

    A obje ao s seria fundada se esses caracteres exteriores fossem ao mesmo

    tempo acidentais, isto , se no estivessem ligados s propriedades fundamentais.

    De fato, nessas condies, a cincia, aps t-los assinalado, no teria-meio algum

    de ir mais adiante; no poderia aprofundar-se mais na realidade, j que no

    haveria nenhuma relao entre a superfcie e o fundo. Mas, a menos que o

    princpio de causalidade seja uma palavra v, quando caracteres determinados se

    encontram identicamente e sem nenhuma exceo em todos os fenmenos de

    certa ordem, pode-se estar certo.de que eles se ligam intimamente natureza

    destes ltimos e que so solidrios com eles. Se um grupo dado de atos

    apresenta igualmente a particularidade de uma sano penal estar a eles

    associada, que existe uma ligao ntima entre a pena e os atributos

    constitutivos desses atos. Em conseqncia, por mais superficiais que sejam,

    essas propriedades, contanto que tenham sido metodicamente observadas,

    mostram claramente ao cientista o caminho que ele deve seguir para penetrar

    mais fundo nas coisas; elas so o primeiro e indispensvel elo da cadeia que a

    cincia ir desenrolar a seguir no curso de suas explicaes.

  • Visto ser pela sensao que o exterior das coisas nos dado, pode-se

    portanto dizer, em resumo: a cincia, para ser objetiva, deve partir, no de

    conceitos que se formaram sem ela, mas da sensao. dos dados sensveis que

    ela deve tomar diretamente emprestados os elementos de suas definies iniciais.

    E, de fato, basta pensar em que consiste a obra da cincia para compreender que

    ela no pode proceder de outro modo. Ela tem necessidade de conceitos que

    exprimam adequadamente as coisas tais como elas so, no tais como til

    prtica conceb-las. Ora, aqueles conceitos que se constituram fora de sua ao

    no preenchem essa condio. preciso, pois, que ela crie novos e que, para

    tanto, afastando as noes comuns e as palavras que as exprimem, volte

    sensao, matria-prima necessria de todos os conceitos. da sensao que

    emanam todas as idias gerais, verdadeiras ou falsas, cientficas ou no.

    Portanto, o ponto de partidarda cincia ou conhecimento especulativo no poderia

    ser outro que o do conhecimento vulgar ou prtico. somente alm dele, na

    maneira pela qual essa matria comum elaborada, que as divergncias

    comeam.

    3) Mas a sensao facilmente subjetiva. Assim de regra, nas cincias

    naturais, afastar os dados sensveis que correm o risco de ser demasiado

    pessoais ao observador, para reter exclusivamente os que apresentam um

    suficiente grau de objetividade. Eis o que leva o fsico a substituir as vagas

    impresses que a temperatura ou a eletricidade produzem pela representao

    visual das oscilaes do termmetro ou do eletrmetro. O socilogo deve tomar as

    mesmas precaues. Os caracteres exteriores em funo dos quais ele define o

    objeto de suas pesquisas devem ser to objetivos quanto possvel.

    Pode-se estabelecer como princpio que os fatos sociais so tanto mais

    suscetveis de ser objetivamente representados *quanto mais completamente

    separados dos fatos individuais que os manifestam.

    De fato, uma sensao tanto mais objetiva quanto maior a fixidez do objeto

    ao qual ela se relaciona; pois a condio de toda objetividade a existncia de um

    ponto de referncia, constante e idntico, ao qual a representao pode ser

    relacionada e que permite eliminar tudo 0 que ela tem de varivel, portanto, de

  • subjetivo. Se os nicos pontos de referncia dados forem eles prprios variveis,

    se forem perpetuamente diversos em relao a si mesmos, faltar uma medida

    comum e no teremos meio algum de distinguirem nossas impresses o que

    depende de fora e o que lhes vem de ns. **Ora, a vida social, enquanto no

    chegou a isolar-se dos acontecimentos particulares que a encarnam para

    constituir-se parte, tem justamente essa propriedade, pois, como esses

    acontecimentos no tm a mesma fisionomia de uma vez a outra, de um instante

    a outro, e como ela inseparvel deles, estes transmitem-lhe sua mobilidade. Ela

    consiste ento em livres correntes** que esto perpetuamente em via de

    transformao e que o olhar do observador no consegue fixar. Vale dizer que no

    por esse lado que o cientista pode abordar o estudo da realidade social. Mas

    sabemos que esta apresenta a particularidade de, sem deixar de ser ela mesma,

    ser capaz de cristalizar-se. Fora dos atos individuais que suscitam, os hbitos

    coletivos exprimem-se sob formas definidas, regras jurdicas, morais, ditos

    populares, fatos de estrutura social, etc.Como essas formas existem de uma

    maneira permanente, *como no mudam comas diversas aplicaes que delas

    so feitas,* elas constituem um objeto fixo, um padro constante que est sempre

    ao alcance do observador e que no d margem s impresses subjetivas e s

    observaes pessoais. Uma regra de direito o que ela , e no h duas

    maneiras de perceb-la. Por outro lado, visto que essas prticas nada mais so

    que vida social consolidada, legtimo, salvo indicaes contrriasl6, estudar esta

    atravs daquelas.

    Quando, portanto, o socilogo empreende a explorao uma ordem

    qualquer de fatos sociais, ele deve esforarse em consider-los por um lado em

    que estes se apresentem isolados de suas manifestaes individuais. em virtude

    desse princpio que estudamos a solidariedade social, suas formas diversas e sua

    evoluo atravs do sistema das regras jurdicas que as exprimem. Do mesmo

    modo, se se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familiares com base

    nas descries literrias que deles nos oferecem os viajantes e, s vezes, os

    historiadores, corre-se o risco de confundir as espcies mais. diferentes, de

    aproximar os tipos mais afastados. Se, ao contrrio, tomar-se por base dessa

  • classificao a constituio jurdica da famlia e, mais especificamente, o direito

    sucessrio, ter-se- um critrio objetivo que, sem ser infalvel, evitar no entanto

    muitos erros. Queremos classificar os diferentes tipos de crimes? Ento nos

    esforaremos por reconstituir as maneiras de viver, os costumes profissionais

    praticados nos diferentes mundos do crime, e reconheceremos tantos tipos

    criminolgicos quantas forem as formas diferentes que essa organizao

    apresenta. Para identificar os costumes, as crenas populares, recorreremos aos

    provrbios, aos ditados que os exprimem. Certamente, ao proceder assim,

    deixamos provisoriamente fora da cincia a matria concreta da vida coletiva, e no

    entanto, por mais mutvel que esta seja, no temos o direito de postular a priori

    sua ininteligibilidade. Mas, se quisermos seguir uma via metdica, precisaremos

    estabelecer os primeiros alicerces da cincia sobre um terreno firme e no sobre

    areia move