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AS REGRAS DO MTODO SOCIOLGICOEmile Durkheim
At o presente, os socilogos pouco se preocuparam em caracterizar e definir
o mtodo que aplicam ao estudo dos fatos sociais. assim que, em toda a obra
de Spencer, o problema metodolgico no ocupa nenhum lugar; pois a
Introduo cincia social, cujo ttulo poderia dar essa iluso, destina-se a
demonstrar as dificuldades e a possibilidade da sociologia, no a expor os
procedimentos que ela deve utilizar. Stuart Mill, verdade, ocupou-se longa-
mente da questo; mas ele no fez seno passar sob o crivo de sua dialtica o
que Comte havia dito, sem acrescentar nada de verdadeiramente pessoal. Um
captulo do Curso de filosofia positiva, eis praticamente o nico estudo original e
importante que possumos sobre o assunto.
Essa despreocupao aparente, alis, nada tem de surpreendente. De fato,
os grandes socilogos cujos nomes acabamos de mencionar raramente saram
das generalidades sobre a natureza das sociedades, sobre as relaes do reino
social e do reino biolgico, sobre a marcha geral do progresso; mesmo a
volumosa sociologia de Spencer quase no tem outro objeto seno mostrar como
a lei da evoluo universal se aplica s sociedades. Ora, apara tratar essas
questes filosficas, n o so necess_nosprocedimentos especiais e complexos.
A ra su iciente, portanto, pesar os mritos comparados da deduo e da induo
e fazer uma inspeo sumria dos recursos mais gerais de que dispe a
investigao sociolgica. Mas as precaues a tomar na observao dos fatos, a
maneira como os principais problemas devem ser colocados, o sentido no qual as
pesquisas devem ser dirigidas, as prticas especiais que podem permitir chegar
aos fatos, as regras que devem presidir a administrao das provas, tudo isso
permanecia indeterminado.
Uma srie de circunstncias felizes, entre as quais justo destacar a
iniciativa que criou em nosso favor um curso regular de sociologia na Faculdade
de Letras de Bordus, o qual possibilitou que nos dedicssemos desde cedo ao
estudo da cincia social e inclusive fizssemos dele o objeto de nossas ocupaes
profissionais, nos fez sair dessas questes demasiado gerais e abordar um certo
nmero de problemas particulares. Assim, fomos levados, pela fora mesma das
coisas, a elaborar um mtodo que julgamos mais definido, mais exatamente
adaptado natureza particular dos fenmenos sociais. So esses resultados de
nossa prtica que gostaramos de expor aqui em conjunto e de submeter
discusso. Claro que eles esto implicitamente contidos no livro que publicamos
recentemente sobre A diviso do trabalho social. Mas nos parece interessante
destac-los, formul-los parte, acompanhados de suas provas e ilustrados de
exemplos tomados tanto dessa obra como de trabalhos ainda inditos. Assim
podero julgar melhor a orientao que gostaramos de tentar dar aos estudos de
sociologia.
O QUE UM FATO SOCIAL?
Antes de procurar qual mtodo convm ao estudo dos fatos sociais, importa saber
quais fatos chamamos assim.
A questo ainda mais necessria porque se utiliza essa qualificao sem
muita preciso. Ela empregada correntemente para designar mais ou menos
todos os fenmenos que se do no interior da sociedade, por menos que
apresentem, com uma certa generalidade, algum interesse social. Mas, dessa
maneira, no h, por assim dizer, acontecimentos humanos que no possam ser
chamados sociais. Todo indivduo come, bebe, dorme, raciocina, e a sociedade
tem todo o interesse em que essas funes se exeram regularmente. Portanto,
se esses fatos fossem sociais, a sociologia no teria objeto prprio, e seu domnio
se confundiria com o da biologia e da psicologia.
Mas, na realidade, h em toda sociedade um grupo determinado de
fenmenos que se distinguem por caracteres definidos daqueles que as outras
cincias da natureza estudam.
Quando desempenho minha tarefa de irmo, de marido ou de cidado,
quando executo os compromissos que assumi, eu cumpro deveres que esto
definidos, fora de mim e de meus atos, no direito e nos costumes. Ainda que eles
estejam de acordo com meus sentimentos prprios e que eu sinta interiormente a
realidade deles, esta no deixa de ser objetiva; pois no fui eu que os fiz, mas os
recebi pela educao. Alis, quantas vezes no nos ocorre ignorarmos o detalhe
das obrigaes que nos incumbem e precisarmos, para conhec-las, consultar o
Cdigo e seus intrpretes autorizados! Do mesmo modo, as crenas e as prticas
de sua vida religiosa, o fiel as encontrou inteiramente prontas ao nascer; se elas
existiam antes dele, que existem fora dele. O sistema de signos de que me sirvo
para exprimir meu pensamento, o sistema de moedas que emprego para pagar
minhas dvidas, os instrumentos de crdito que utilizo em minhas relaes co-
merciais, as prticas observadas em minha profisso, etc. funcionam
independentemente do uso que fao deles. Que se tomem um a um todos os
membros de que composta a sociedade; o que precede poder ser repetido a
propsito de cada um deles. Eis a, portanto, maneiras de agir, de pensar e de
sentir que apresentam essa notvel propriedade de existirem fora das
conscincias individuais.
Esses tipos de conduta ou de pensamento no apenas so exteriores ao
indivduo, como tambm so dotados de uma fora imperativa e coercitiva em
virtude da qual se impem a ele, quer ele queira, quer no. Certamente, quando
me conformo voluntariamente a ela, essa coero no se faz ou pouco se faz
sentir, sendo intil. Nem por isso ela deixa de ser um carter intrnseco desses
fatos, e a prova disso que ela s afirma to logo tento resistir. Se tento violar
as regras do direito, elas reagem contra mim para impedir meu ato, se estiver
em tempo, ou para anul-lo e restabelec-lo em sua forma normal, se tiver sido
efetuado e for reparvel, ou para fazer com que eu o expie, se no puder ser
reparado de outro modo. Em se tratando de mximas puramente morais, a
conscincia pblica reprime todo ato que as ofenda atravs da vigilncia que
exerce sobre a conduta dos cidados e das penas especiais de que dispe. Em
outros casos, a coero menos violenta, mas no deixa de existir. Se no me
submeto s convenes do mundo, se, ao vestir-me, no levo em conta os
costumes observados em meu pas e em minha classe, o riso que provoco, o
afastamento em relao a mim produzem, embora de maneira mais atenuada,
os mesmos efeitos que uma pena propriamente dita. Ademais, a coero,
mesmo sendo apenas indireta, continua sendo eficaz. No sou obrigado a falar
francs com meus compatriotas, nem a empregar as moedas legais; mas
impossvel agir de outro modo. Se eu quisesse escapar a essa necessidade,
minha tentativa fracassaria miseravelmente. Industrial, nada me probe de
trabalhar com procedimentos e mtodos do sculo passado; mas, se o fizer,
certo que me arruinarei. Ainda que, de fato, eu possa libertar-me dessas regras
e viol-las com sucesso, isso jamais ocorre sem que eu seja obrigado a lutar
contra elas. E ainda que elas sejam finalmente vencidas, demonstram
suficientemente sua fora coercitiva pela resistncia que opem. No h
inovador, mesmo afortunado, cujos empreendimentos no venham a deparar
com oposies desse tipo.
Eis portanto uma ordem de fatos que apresentam caractersticas muito
especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao
indivduo, e que so dotadas de um poder de coero em virtude do qual esses
fatos se impem a ele. Por conseguinte, eles no poderiam se confundir com os
fenmenos orgnicos, j que consistem em representaes e em aes; nem
com Os fenmenos psquicos, os quais s tm existncia na conscincia
individual e atravs dela. Esses fatos constituem portanto uma espcie nova, e
a eles que deve ser dada e reservada a qualificao de sociais. Essa qualificao
lhes convm; pois claro que, no tendo o indivduo por substrato, eles no
podem ter outro seno a sociedade, seja a sociedade poltica em seu conjunto,
seja um dos grupos parciais que ela encerra: confisses religiosas, escolas
polticas, literrias, corporaes profissionais, etc. Por outro lado, a eles s que
ela convm; pois apalavra social s tem sentido definido com a condio de
designar unicamente fenmenos que no se incluem em nenhuma das categorias
de fatos j constitudos e denominados. Eles so portanto o domnio prprio da
sociologia. verdade que a palavra coero, pela qual os definimos, pode vira
assustar os zelosos defensores de um individualismo absoluto. Como estes
professam que o indivduo perfeitamente autnomo, julgam que o diminumos
sempre que mostramos que ele no depende apenas de si mesmo. Sendo hoje
incontestvel, porm, que a maior parte de nossas idias e de nossas tendncias
no elaborada por ns, mas nos vem de fora, elas s podem penetrar em ns
impondo-se; eis tudo o que significa nossa definio. Sabe-se, alis, que nem
toda coero social exclui necessariamente a personalidade individual'.
Entretanto, como os exemplos que acabamos de citar (regras jurdicas,
morais, dogmas religiosos, sistemas financeiros, etc.)consistem todos em
crenas e em prticas constitudas, poder-se-ia supor, com base no que precede,
que s h fato social onde h organizao definida. Mas existem outros fatos
que, sem apresentar essas formas cristalizadas, tm a mesma objetividade e a
mesma ascendncia sobre o indivduo. o que chamamos de correntes sociais.
Assim, numa assemblia, os grandes movimentos de entusiasmo ou de devoo
que se produzem no tm por lugar de origem nenhuma conscincia particular.
Eles nos vm, a cada um de ns, de fora e so capazes de nos arrebatar contra
a nossa vontade. Certamente pode ocorrer que, entregando-me a eles sem
reserva, eu no sinta a presso que exercem sobre mim. Mas ela se acusa to
logo procuro lutar contra eles. Que um indivduo tente se opor a uma dessas
manifestaes coletivas: os sentimentos que ele nega se voltaro contra ele.
Ora, se essa fora de coero externa se afirma com tal nitidez nos casos de re-
sistncia, porque ela existe, ainda que inconsciente, nos casos contrrios.
Somos ento vtimas de uma iluso que nos faz crer que elaboramos, ns
mesmos, o que se imps a ns de fora. Mas, se a complacncia com que nos
entregamos a essa fora encobre a presso sofrida, ela no a suprime. Assim,
tambm o ar no deixa de ser pesado, embora no sintamos mais seu peso.
Mesmo que, de nossa parte, tenhamos colaborado espontaneamente para a
emoo comum, a impresso que sentimos muito diferente da que teramos
sentido se estivssemos sozinhos. Assim, a partir do momento em que a
assemblia se dissolve, em que essas influncias cessam de agir sobre ns e
nos vemos de novo a ss, os sentimentos vividos nos do a impresso de algo
estranho no qual no mais nos reconhecemos. Ento nos damos conta de que
sofremos esses sentimentos bem mais do que os produzimos. Pode acontecer
at que nos causem horror, tanto eram contrrios nossa natureza. assim que
indivduos perfeitamente inofensivos na maior parte do tempo podem ser
levados a atos de atrocidade quando reunidos em multido. Ora, o que dizemos
dessas exploses passageiras aplica-se identicamente aos movimentos de
opinio, mais durveis, que se produzem a todo instante a nosso redor, seja em
toda a extenso da sociedade, seja em crculos mais restritos, sobre assuntos
religiosos, polticos, literrios, artsticos, etc.
Alis, pode-se confirmar por uma experincia caracterstica essa definio do
fato social: basta observar a maneira como so educadas as crianas. Quando se
observam os fatos tais como so e tais como sempre foram, salta aos olhos que
toda educao consiste num esforo contnuo para impor criana maneiras de
ver, de sentir e de agir s quais ela no teria chegado espontaneamente. Desde
os primeiros momentos de sua vida, foramolas a comer, a beber, a dormir em
horrios regulares, foramo-las limpeza, calma, obedincia; mais tarde,
foramo-las para que aprendam a levar em conta outrem, a respeitar os costumes,
as convenincias, foramo-las ao trabalho, etc., etc. Se, com o tempo, essa
coero cessa de ser sentida, que pouco a pouco ela d origem a hbitos, a
tendncias internas que a tornam intil, mas que s a substituem pelo fato de
derivarem dela. verdade que, segundo Spencer, uma educao racional deveria
reprovar tais procedimentos e deixar a criana proceder com toda a liberdade;
mas como essa teoria pedaggica jamais foi praticada por qualquer povo
conhecido, ela constitui apenas um desideratum pessoal, no um fato que se pos-
sa opor aos fatos que precedem. Ora, o que torna estes ltimos particularmente
instrutivos que a educao tem justamente por objeto produzir o ser social;
pode-se portanto ver nela, como que resumidamente, de que maneira esse ser
constituiu-se na histria. Essa presso de todos os instantes que sofre a criana
a presso mesma do meio social que tende a model-la sua imagem e do qual
os pais e os mestres no so seno os representantes e os intermedirios.
Assim, no sua generalidade que pode servir para caracterizar os
fenmenos sociolgicos. Um pensamento que se encontra em todas as
conscincias particulares, um movimento que todos os indivduos repetem nem
por isso so fatos sociais. Se se contentaram com esse carter para defini-los,
que os confundiram, erradamente, com o que se poderia chamar de suas
encarnaes individuais. O que os constitui so as crenas, as tendncias e as
prticas do grupo tomado coletivamente; quanto s formas que assumem os
estados coletivos ao se refratarem nos indivduos, so coisas de outra espcie. O
que demonstra categoricamente essa dualidade de natureza que essas duas
ordens de fatos apresentam-se geralmente dissociadas. Com efeito, algumas
dessas maneiras de agir ou de pensar adquirem, por causa da repetio, uma
espcie de consistncia que as precipita, por assim dizer, e as isola dos aconteci-
mentos particulares que as refletem. Elas assumem assim um corpo, uma forma
sensvel que lhes prpria, e constituem uma realidade sui generis, muito distinta
dos fatos individuais que a manifestam. O hbito coletivo no existe apenas em
estado de imanncia nos atos sucessivos que ele determina, mas se exprime de
uma vez por todas, por um privilgio cujo exemplo no encontramos no reino
biolgico, numa frmula que se repete de boca em boca, que se transmite pela
educao, que se fixa atravs da escrita. Tais so a origem e a natureza das
regras jurdicas, morais, dos aforismos e dos ditos populares, dos artigos de f em
que as seitas religiosas ou polticas condensam suas crenas, dos cdigos de
gosto que as escolas literrias estabelecem, etc. Nenhuma dessas maneiras de
agir ou de pensar se acha por inteiro nas aplicaes que os particulares fazem
delas, j que elas podem inclusive existir sem serem atualmente aplicadas.
Claro que essa dissociao nem sempre se apresenta com a mesma nitidez.
Mas basta que ela exista de uma maneira incontestvel nos casos importantes e
numerosos que acabamos de mencionar, para provar que o fato social distinto de
suas repercusses individuais. Alis, mesmo que ela no seja imediatamente
dada observao, pode-se com freqncia realiz-la com o auxilio de certos
artifcios de mtodo; inclusive indispensvel proceder a essa operao se
quisermos separar o fato social de toda mistura para observ-lo no estado de
pureza. Assim, h certas correntes de opinio que nos impelem, com desigual
intensidade, conforme os tempos e os lugares, uma ao casamento, por exemplo,
outra ao suicdio ou a uma natalidade mais ou menos acentuada, etc. *Trata-se,
evidentemente, de fatos sociais. primeira vista, eles parecem inseparveis das
formas que assumem nos casos particulares. Mas a estatstica nos fornece o meio
de isol-los. Com efeito, eles so representados, no sem exatido, pelas taxas
de natalidade, de nupcialidade, de suicdios, ou seja, pelo nmero que se obtm
ao dividir a mdia anual total dos nascimentos, dos casamentos e das mortes
voluntrias pelo total de homens em idade de se casar, de procriar, de se
suicidarz. Pois, como cada uma dessas cifras compreende todos os casos
particulares sem distino, as circunstncias individuais que podem ter alguma
participao na produo do fenmeno neutralizam-se mutuamente e, portanto,
no contribuem para determin-lo. O que esse fato exprime um certo estado da
alma coletiva.
Eis o que so os fenmenos sociais, desembaraados de todo elemento
estranho. Quanto s suas manifestaes privadas, elas tm claramente algo de
social, j que reproduzem em parte um modelo coletivo; mas cada uma delas
depende tambm, e em larga medida, da constituio orgnico-psquica do
indivduo, das circunstncias particulares nas quais ele est situado. Portanto elas
no so fenmenos propriamente sociolgicos. Pertencem simultaneamente a
dois reinos; poderamos cham-las sociopsquicas. Essas manifestaes
interessam o socilogo sem constiturem a matria imediata da sociologia. No
interior do organismo encontram-se igualmente fenmenos de natureza mista que
cincias mistas, como a qumica biolgica, estudam.
Mas, diro, um fenmeno s pode ser coletivo se for comum a todos os
membros da sociedade ou, pelo menos, maior parte deles, portanto, se for geral.
Certamente, mas, se ele geral, porque coletivo (isto , mais ou menos
obrigatrio), o que bem diferente de ser coletivo por ser geral. Esse fenmeno
um estado do grupo, que se repete nos indivduos porque se impe a eles. Ele
est em cada parte porque est no todo, o que diferente de estar no todo por
estar nas partes. Isso sobretudo evidente nas crenas e prticas que nos so
transmitidas inteiramente prontas pelas geraes anteriores; recebemolas e
adotamo-las porque, sendo ao mesmo tempo uma obra coletiva e uma obra
secular, elas esto investidas de uma particular autoridade que a educao nos
ensinou a reconhecer e a respeitar. Ora, cumpre assinalar que a imensa maioria
dos fenmenos sociais nos chega dessa forma. Mas, ainda que se deva, em parte,
nossa colaborao direta, o fato social da mesma natureza. Um sentimento
coletivo que irrompe numa assemblia no exprime simplesmente o que havia de
comum entre todos os sentimentos individuais. Ele algo completamente distinto,
conforme mostramos. uma resultante da vida comum, das aes e reaes que
se estabelecem entre as conscincias individuais; e, se repercute em cada uma
delas, em virtude da energia social que ele deve precisamente sua origem
coletiva. Se todos os coraes vibram em unssono, no por causa de uma
concordncia espontnea e preestabelecida; que uma mesma fora os move no
mesmo sentido. Cada um arrastado por todos.
Podemos assim representar-nos, de maneira precisa, o domnio da
sociologia. Ele compreende apenas um grupo determinado de fenmenos. Um
fato social se reconhece pelo poder de coero externa que exerce ou capaz de
exercer sobre os indivduos; e a presena desse poder se reconhece, por sua vez,
seja pela existncia de alguma sano determinada, seja pela resistncia que o
fato ope a toda tentativa individual de fazer-lhe violncia. Contudo, pode-se
defini-lo tambm pela difuso que apresenta no interior do grupo, contanto que,
conforme as observaes precedentes, tenha-se o cuidado de acrescentar como
segunda e essencial caracterstica que ele existe independentemente das formas
individuais que assume ao difundir-se. Este ltimo critrio, em certos casos,
inclusive mais fcil de aplicar que o precedente. De fato, a coero fcil de
constatar quando se traduz exteriormente por alguma reao direta da sociedade,
como o caso em relao ao direito, moral, s crenas, aos costumes, inclusive
s modas. Mas, quando apenas indireta, como a que exerce uma organizao
econmica, ela nem sempre se deixa perceber to bem. A generalidade
combinada coma objetividade podem ento ser mais fceis de estabelecer. Alis,
essa segunda definio no seno outra forma da primeira; pois, se uma
maneira de se conduzir, que existe exteriormente s conscincias individuais, se
generaliza, ela s pode faz-lo impondo-sei.
Entretanto, poder-se-ia perguntar se essa definio completa. Com efeito,
os fatos que nos forneceram sua base so, todos eles, maneiras de fazer; so de
ordem fisiolgica. Ora, h tambm maneiras de ser coletivas, isto , fatos sociais
de ordem anatmica ou morfolgica. A sociologia no pode desinteressar-se do
que diz respeito ao substrato da vida coletiva. No entanto, o nmero e a natureza
das partes elementares de que se compe a sociedade, a maneira como elas
esto dispostas, o grau de coalescncia a que chegaram, a distribuio da
populao pela superfcie do territrio, o nmero e a natureza das vias de
comunicao, a forma das habitaes, etc. no parecem capazes, num primeiro
exame, de se reduzir a modos de agir, de sentir ou de pensar.
Mas, em primeiro lugar, esses diversos fenmenos apresentam a mesma
caracterstica que nos ajudou a definir os outros. Essas maneiras de ser se
impem ao indivduo tanto quanto as maneiras de fazer de que falamos. De fato,
quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se divide politicamente,
como essas divises se compem, a fuso mais ou menos completa que existe
entre elas, no por meio de uma inspeo material e por observaes
geogrficas que se pode chegar a isso; pois essas divises so morais, ainda que
tenham alguma base na natureza fsica. somente atravs do direito pblico que
se pode estudar essa organizao, pois esse direito que a determina, assim
como determina nossas relaes domsticas e cvicas. Portanto, ela no menos
obrigatria. Se a populao se amontoa nas cidades em vez de se dispersar nos
campos, que h uma corrente de opinio, um movimento coletivo que impe aos
indivduos essa concentrao. No podemos escolher a forma de nossas casas,
como tampouco a de nossas roupas; pelo menos, uma obrigatria na mesma
medida que a outra. As vias de comunicao determinam de maneira imperiosa o
sentido no qual se fazem as migraes interiores e as trocas, e mesmo a
intensidade dessas trocas e dessas migraes, etc., etc. Em conseqncia, seria,
quando muito, o caso de acrescentar lista dos fenmenos que enumeramos
como possuidores do sinal distintivo do fato social uma categoria a mais; e, como
essa enumerao no tinha nada de rigorosamente exaustivo, a adio no seria
indispensvel.
Mas ela no seria sequer proveitosa; pois essas maneiras de ser no so
seno maneiras de fazer consolidadas. A estrutura poltica de uma sociedade no
seno a maneira como os diferentes segmentos que a compem se habituaram
a viver uns com os outros. Se suas relaes so tradicionalmente prximas, os
segmentos tendem a se confundir; caso contrrio, tendem a se distinguir. O tipo
de habitao que se impe a ns no seno a maneira como todos ao nosso
redor e, em parte, as geraes anteriores se acostumaram a construir suas casas.
As vias de comunicao no so seno o leito escavado pela prpria corrente
regular das trocas e das migraes, correndo sempre no mesmo sentido, etc.
Certamente, se os fenmenos de ordem morfolgica fossem os nicos a apresen-
tar essa fixidez, poderamos pensar que eles constituem uma espcie parte. Mas
uma regra jurdica um arranjo no menos permanente que um modelo
arquitetnico, e no entanto um fato fisiolgico. Uma simples mxima moral ,
seguramente, mais malevel; porm ela possui formas bem mais rgidas que um
simples costume profissional ou que uma moda. H assim toda uma gama de
nuances que, sem soluo de continuidade, liga os fatos estruturais mais
caracterizados s correnteslivres da vida social ainda no submetidas a nenhum
molde definido. que entre os primeiros e as segundas apenas h diferenas no
grau de consolidao que apresentam. Uns e outras so apenas vida mais ou
menos cristalizada. Claro que pode haver interesse em reservar o nome de
morfolgicos aos fatos sociais que concernem ao substrato social, mas com a
condio de no perder de vista que eles so da mesma natureza que os outros.
Nossa definio compreender portanto todo o definido se dissermos: fato social
toda maneira de fazer, fixada ou no, suscetvel de exercer sobre o indivduo uma
coero exterior; ou ainda, toda maneira de fazer que geral na extenso de uma
sociedade dada e, ao mesmo tempo, possui uma existncia prpria, independente
de suas manifestaes individuais.
REGRAS RELATIVAS OBSERVAO
DOS FATOS SOCIAIS
A primeira regra e a mais fundamental considerar os fatos sociais como
coisas.
No momento em que uma nova ordem de fenmenos torna-se objeto de
cincia, eles j se acham representados no esprito, no apenas por imagens
sensveis, mas por espcies de conceitos grosseiramente formados. Antes dos
primeiros rudimentos da fsica e da qumica, os homens j possuam sobre os
fenmenos fsico-qumicos noes que ultrapassavam a pura percepo, como
aquelas, por exemplo, que encontramos mescladas a todas as religies. que, de
fato, a reflexo anterior cincia, que apenas se serve dela com mais mtodo.
O homem no pode viver em meio s coisas sem frmar a respeito delas idias;
de acordo com as quais regula sua conduta. Acontece que, como essas noes
esto mais prximas de ns e mais ao nosso alcance do que as realidades a que
correspondem, tendemos naturalmente a substituir estas ltimas por elas e a fazer
delas a matria mesma de nossas especulaes. Em vez de observar as coisas,
de descrevlas, de compar-las, contentamo-nos ento em tomar conscincia de
nossas idias, em analis-las, em combinlas. Em vez de uma cincia de
realidades, no fazemos mais do que uma anlise ideolgica. Por certo, essa
anlise no exclui necessariamente toda observao. Pode-se recorrer aos fatos
para confirmar as noes ou as concluses que se tiram. Mas os fatos s intervm
ento secundariamente, a ttulo de exemplos ou de provas confirmatrias; eles
no so o objeto da cincia. Esta vai das idias s coisas, no das coisas s
idias.
claro que esse mtodo no poderia dar resultados objetivos. Com efeito,
essas noes, ou conceitos, no importa o nome que se queira dar-lhes, no so
os substitutos legtimos das coisas. Produtos da experincia vulgar, eles tm por
objeto, antes de tudo, colocar nossas aes em harmonia com o mundo que nos
cerca; so formados pela prtica e para ela. Ora, uma representao pode ser
capaz de desempenhar utilmente esse papel mesmo sendo teoricamente falsa.
Coprnico, h muitos sculos, dissipou as iluses de nossos sentidos referentes
aos movimentos dos astros; no entanto, ainda com base nessas iluses que
regulamos correntemente a distribuio de nosso tempo. Para que uma idia
suscite exatamente os movimentos que a natureza de uma coisa reclama, no
necessrio que ela exprima fielmente essa natureza; basta que nos faa perceber
o que a coisa- tem de til ou de desvantajoso, cie que modo pode nos servir, de
que modo nos contrariar. Mas as noes assim formadas s apresentam essa
justeza prtica de uma maneira aproximada e somente na generalidade dos
casos. Quantas vezes elas so to perigosas como inadequadas! No portanto
elaborando-as, pouco importa de que maneira o faamos, que chegaremos a
descobrir as leis da realidade. Tais noes, ao contrrio, so como um vu que se
interpe entre as coisas e ns, e que as encobre tanto mais quanto mais
transparente julgamos esse vu.
Tal cincia no apenas truncada; falta-lhe tambm matria de que se
alimentar. Mal ela existe, desaparece, por assim dizer, transformando-se em arte.
De fato, supese que essas noes contenham tudo o que h de essencial no
real, j que so confundidas com o prprio real. Com isso, parecem ter tudo o que
preciso para que sejamos capazes no s de compreender o que , mas de
prescrever o que deve ser e os meios de execut-lo. Pois bom o que est de
acordo com a natureza das coisas; o que contrrio a elas mau, e os meios
para alcanar um e evitar o outro derivam dessa mesma natureza. Portanto, se a
dominamos de sada, o estudo da realidade presente no tem mais interesse
prtico, e, como esse interesse a razo de ser de tal estudo, este se v desde
ento sem finalidade. A reflexo , assim, incitada a afastar-se do que o objeto
mesmo da cincia, a saber, o presente e o passado, para lanar-se num nico
salto em direo ao futuro. Em vez de buscar compreender os fatos adquiridos e
realizados, ela empreende imediatamente realizar novos, mais conformes aos fins
perseguidos pelos homens. Quando se cr saber em que consiste a essncia da
matria, parte-se logo em busca da pedra filosofal. Essa intromisso da arte na
cincia, que impede que esta se desenvolva, alis facilitada pelas circunstncias
mesmas que determinam o despertar da reflexo cientfica. Pois, como esta s
surge para satisfazer necessidades vitais, natural que se oriente para a prtica.
As necessidades que ela chamada a socorrer so sempre prementes, portanto a
pressionam para obter resultados; elas reclamam, no explicaes, mas remdios.
Essa maneira de proceder to conforme tendncia natural de nosso
esprito que a encontramos inclusive na origem das cincias fsicas. ela que
diferencia a alquimia da qumica, bem como a astrologia da astronomia. por ela
que Bacon caracteriza o mtodo que os sbios de seu tempo seguiam e que ele
combate. As noes que acabamos de mencionar so aquelas notiones vulgares
ou praenotioneslque ele assinala na base de todas as cincias, nas quais elas
tomam o lugar dos fatos. So os idola, fantasmas que nos desfiguram o
verdadeiro aspecto das coisas e que, no entanto, tomamos como as coisas
mesmas. E por esse meio imaginrio no oferecer ao esprito nenhuma
resistncia que este, no se sentindo contido por nada, entrega-se a ambies
sem limite e julga possvel construir, ou melhor, reconstruir o mundo com suas
foras apenas e ao sabor de seus desejos.
Se foi assim com as cincias naturais, com mais forte razo tinha de ser
com a sociologia. Os homens no esperaram o advento da cincia social para
formar idias sobre o direito, a moral, a famlia, o Estado, a prpria sociedade;
pois no podiam privar-sedelas para viver. Ora, sobretudo em sociologia que
essas prenoes,para retomar a expresso de Bacon, esto em situao de
dominar os espritos e de tomar o lugar das coisas. Com efeito, as coisas sociais
s se realizam atravs dos homens; elas so um produto da atividade humana.
Portanto, parecem no ser outra coisa seno a realizao de idias, inatas ou no,
que trazemos em ns, seno a aplicao dessas idias s diversas circunstncias
que acompanham as relaes dos homens entre si. A organizao da famlia, do
contrato, da represso, do Estado, da sociedade vista assim como um simples
desenvolvimento das idias que temos sobre a sociedade, o Estado, a justia, etc.
Em conseqncia, esses fatos e outros anlogos s parecem ter realidade nas e
pelas idias que so seu germe e que se tornam, com isso, a matria prpria da
sociologia.
O que refora essa maneira de ver que, como os detalhes da vida social
excedem por todos os lados a conscincia, esta no tem uma percepo
suficientemente forte desses detalhes para sentir sua realidade. No tendo em ns
ligaes bastante slidas nem bastante prximas, tudo isso nos d facilmente a
impresso de no se prender a nada e de flutuar no vazio, matria em parte irreal
e indefinidamente plstica. Eis por que tantos pensadores no viram nos arranjos
sociais seno combinaes artificiais e mais ou menos arbitrrias. Mas, se os
detalhes, se as formas concretas e particulares nos escapam, pelo menos nos
representamos os aspectos mais gerais da existncia coletiva de maneira
genrica e aproximada, e so precisamente essas representaes esquemticas e
sumrias que constituem as prenoes de que nos servimos para as prticas
correntes da vida. No podemos portanto pensar em pr em dvida a existncia
delas, uma vez que a percebemos ao mesmo tempo que a nossa. Elas no
apenas esto em ns, como tambm, sendo um produto de experincias
repetidas, obtm da repetio - e do hbito resultante - uma espcie de
ascendncia e de autoridade. Sentimos sua resistncia quando buscamos
libertarnos delas. Ora, no podemos deixar de considerar como real o que se ope
a ns. Tudo contribui, portanto, para que vejamos nelas a verdadeira realidade
social.
E, de fato, at o presente, a sociologia tratou mais ou menos
exclusivamente no de coisas, mas de conceitos. Comte, verdade, proclamou
que os fenmenos sociais so fatos naturais, submissos a leis naturais. Deste
modo, ele implicitamente reconheceu seu carter de coisas, pois na natureza s
existem coisas. Mas, quando, saindo dessas generalidades filosficas, ele tenta
aplicar seu princpio e extrair a cincia nele contida, so idias que ele toma por
objeto de estudo. Com efeito, o que faz a matria principal de sua sociologia o
progresso da humanidade no tempo. Ele parte da idia de que h uma evoluo
contnua do gnero humano que consiste numa realizao sempre mais completa
da natureza humana, e o problema que ele trata descobrir a ordem dessa
evoluo. Ora, supondo que essa evoluo exista, sua realidade s pode ser
estabelecida uma vez feita a cincia; portanto, s se pode fazer dessa evoluo o
objeto mesmo da pesquisa se ela for colocada como uma concepo do esprito,
no como uma coisa. E, de fato, to claro que se trata de uma representao
inteiramente subjetiva que, na prtica, esse progresso da humanidade no existe.
O que existe, a nica coisa dada observao, so sociedades particulares que
nascem, se desenvolvem e morrem independentemente umas das outras. Se pelo
menos as mais recentes continuassem as que as precederam, cada tipo superior
poderia ser considerado como a simples repetio do tipo imediatamente inferior,
com alguma coisa a mais; poderse-ia, pois, alinh-las umas depois das outras, por
assim dizer, confundindo as que se encontram no mesmo grau de
desenvolvimento, e a srie assim formada poderia ser vista como representativa
da humanidade. Mas os fatos no se apresentam com essa extrema simplicidade.
Um povo que substitui outro no simplesmente um prolongamento deste ltimo
com algumas caractersticas novas; ele outro, tem algumas propriedades a mais,
outras a menos; constitui uma individualidade nova, e todas essas individualidades
distintas, sendo heterogneas, no podem se fundir numa mesma srie contnua,
nem, sobretudo, numa srie nica. Pois a seqncia das sociedades no poderia
ser figurada por uma linha geomtrica; ela assemelha-se antes a uma rvore cujos
ramos se orientam em sentidos divergentes. Em suma, Comte tomou por
desenvolvimento histrico a noo que dele possua e que no difere muito da que
faz o vulgo. Vista de longe, de fato, a histria adquire bastante claramente esse
aspecto serial e simples. Percebem-se apenas indivduos que se sucedem uns
aos outros e marcham todos numa mesma direo, porque tm uma mesma
natureza. Alis, como no se concebe que a evoluo social possa ser outra coisa
que no o desenvolvimento de uma idia humana, parece natural defini-Ia pela
idia que dela fazem os homens. Ora, procedendo assim, no apenas se
permanece na ideologia, mas se d como objeto sociologia um conceito que
nada tem de propriamente sociolgico.
Esse conceito, Spencer o descarta, mas para substitulo por outro que no
formado de outro modo. Ele faz das sociedades, e no da humanidade, o objeto
da cincia; s que ele d em seguida, das primeiras, uma definio que faz
desaparecer a coisa de que fala para colocar no lugar a prenoo que possui dela.
Com efeito, ele estabelece como uma proposio evidente que "uma sociedade s
existe quando justaposio acrescenta-se a cooperao", sendo somente ento
que a unio dos indivduos se torna uma sociedade propriamente dita. Depois,
partindo do princpio de que a cooperao a essncia da vida social, ele
distingue as sociedades em duas classes, conforme a natureza da cooperao
que nelas predomina. "H, diz ele, uma cooperao espontnea que se efetua
sem premeditao durante a perseguio de fins de carter privado; h tambm
uma cooperao conscientemente instituda que supe fins de interesse pblico
claramente reconhecidos." s primeiras, ele d o nome de sociedades industriais;
s segundas, de militares, e pode-se dizer dessa distino que ela a idia-me
de sua sociologia.
Mas essa definio inicial enuncia como coisa o que to-s uma noo
do esprito. Com efeito, ela se apresenta como a expresso de um fato
imediatamente visvel e que basta observao constatar, j que formulada
desde o incio da cincia como axioma. No entanto, impossvel saber por uma
simples inspeo se realmente a cooperao a essncia da vida social. Tal
afirmao s cientificamente legtima se primeiramente passarmos em revista as
manifestaes da existncia coletiva e se mostrarmos que todas so formas
diversas da cooperao. Portanto, ainda certa maneira de concebera realidade
social que substitui essa realidade. O que assim definido no a sociedade,
mas a idia que dela faz o Sr. Spencer. E, se ele no tem o menor escrpulo em
proceder deste modo, que, tambm para ele, a sociedade no e no pode ser
seno a realizao de uma idia, isto , dessa idia mesma de cooperao pela
qual a define. Seria fcil mostrar que, em cada um dos problemas particulares que
aborda, seu mtodo permanece o mesmo. Assim, embora d a impresso de
proceder empiricamente, como os fatos acumulados em sua sociologia so
empregados para ilustrar anlises de noes e no para descrever e explicar
coisas, eles parecem estar ali apenas para figurar como argumentos. Em
realidade, tudo o que h de essencial na doutrina de Spencer pode ser
imediatamente deduzido de sua definio da sociedade e das diferentes formas de
cooperao. Pois, se s pudermos optar entre uma cooperao tiranicamente
imposta e uma cooperao livre e espontnea, evidentemente esta ltima que
ser o ideal para o qual a humanidade tende e deve tender.
No somente na base da cincia que se encontram essas noes
vulgares; vemo-las a todo instante na trama dos raciocnios. No estado atual de
nossos conhecimentos, no sabemos com certeza o que o Estado, a soberania,
a liberdade poltica, a democracia, o socialismo, o comunismo, etc.; o mtodo
aconselharia, portanto, a que nos proibssemos todo uso desses conceitos,
enquanto eles no estivessem cientificamente constitudos. Entretanto, as
palavras que os exprimem retornam a todo momento nas discusses dos
socilogos. Elas so empregadas correntemente e com segurana como se
correspondessem a coisas bem conhecidas e definidas, quando apenas
despertam em ns noes confusas, misturas indistintas de impresses vagas, de
preconceitos e de paixes. Zombamos hoje dos singulares raciocnios que os
mdicos da Idade Mdia construam com as noes de calor, de frio, de mido, de
seco, etc., e no nos apercebemos de que continuamos a aplicar esse mesmo
mtodo ordem de fenmenos que o comporta menos que qualquer outro, por
causa de sua extrema complexidade.
Nos ramos especiais da sociologia, esse carter ideolgico ainda mais
pronunciado.
o caso sobretudo da moral. De fato, pode-se dizer que no h um nico
sistema em que ela no seja representada como o simples desenvolvimento de
uma idia inicial que a conteria por inteiro em potncia. Essa idia, uns crem que
o homem a encontra inteiramente pronta dentro dele desde seu nascimento;
outros, ao contrrio, que ela se forma mais ou menos lentamente ao longo da
histria. Mas, tanto para uns como para outros, tanto para os empiristas como
para os racionalistas, ela tudo o que h de verdadeiramente real em moral. No
que concerne ao detalhe das regras jurdicas e morais, elas no teriam, por assim
dizer, existncia por si mesmas, mas seriam apenas essa noo fundamental
aplicada s circunstncias particulares da vida e diversificada conforme os casos.
Portanto, o objeto da moral no poderia ser esse sistema de preceitos sem
realidade, mas a idia da qual decorrem e da qual no so mais que aplicaes
variadas. Assim, todas as questes que a tica se coloca ordinariamente se
referem, no a coisas, mas a idias; o que se trata de saber em que consiste a
idia do direito, a idia da moral, e'no qual a natureza da moral e do direito
considerados em si mesmos. Os moralistas ainda no chegaram concepo
muito simples de que, assim como nossa representao das coisas sensveis
provm dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos exatamente, nossa
representao da moral provm do prprio espetculo das regras que funcionam
sob nossos olhos e as figura esquematicamente; de que, conseqentemente, so
essas regras, e no a noo sumria que temos delas, que formam a matria da
cincia, da mesma forma que a fsica tem como objeto os corpos tais como
existem, e no a idia que deles faz o vulgo. Disso resulta que se toma como base
da moral o que no seno o topo, a saber, a maneira como ela se prolonga nas
conscincias individuais e nelas repercute. E no apenas nos problemas mais
gerais da cincia que esse mtodo seguido: ele permanece o mesmo nas
questes especiais. Das idias essenciais que estuda no incio, o moralista passa
s idias secundrias de famlia, de ptria, de responsabilidade, de caridade, de
justia; mas sempre a idias que se aplica sua reflexo.
No diferente com a economia poltica. Ela tem por objeto, diz Stuart Mill, os
fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da
aquisio de riquezas. Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser
designados, enquanto coisas, observao do cientista, seria preciso pelo menos
que se pudesse indicar por qual sinal possvel reconhecer aqueles que satisfa-
zem essa condio. Ora, no incio da cincia, no se tem sequer o direito de
afirmar que existe algum, muito menos ainda se pode saber quais so. Em toda
ordem de pesquisas, com efeito, somente quando a explicao dos fatos est
suficientemente avanada que possvel estabelecer que eles tm um objetivo e
qual esse objetivo. No h problema mais complexo nem menos suscetvel de
ser resolvido de sada. Portanto, nada nos garante de antemo que haja uma
esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente
esse papel preponderante. Em conseqncia, a matria da economia poltica,
assim compreendida, feita no de realidades que podem ser indicadas, mas de
simples possveis, de puras concepes do esprito; a saber, fatos que o
economista conceb como relacionados ao fim considerado, e tais como ele os
concebe. Digamos, por exemplo, que ele queira estudar o que chama a produo.
De sada, acredita poder enumerar os principais agentes com o auxlio dos quais
ela ocorre e pass-los em revista. Portanto, ele no reconheceu a existncia
desses agentes observando de quais condies dependia a coisa que ele estuda;
pois ento teria comeado por expor as experincias de que tirou essa concluso.
Se, desde o incio da pesquisa e em poucas palavras, ele procede a essa
classificao, que a obteve por uma simples anlise lgica. Parte da idia da
produo; decompondo-a, descobre que ela implica logicamente as de foras
naturais, de trabalho, de instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma ma-
neira essas idias derivadas.
A mais fundamental de todas as teorias econmicas, a do valor,
manifestamente construda segundo o mesmo mtodo. Se o valor fosse estudado
como uma realidade deve s-lo, veramos primeiro o economista indicar em
apenas essa noo fundamental aplicada s circunstncias particulares da vida e
diversificada conforme os casos. Portanto, o objeto da moral no poderia ser esse
sistema de preceitos sem realidade, mas a idia da qual decorrem e da qual no
so mais que aplicaes variadas. Assim, todas as questes que a tica se coloca
ordinariamente se referem, no a coisas, mas a idias; o que se trata de saber
em que consiste a idia do direito, a idia da moral, e'no qual a natureza da
moral e do direito considerados em si mesmos. Os moralistas ainda no chegaram
concepo muito simples de que, assim como nossa representao das coisas
sensveis provm dessas coisas mesmas e as exprime mais ou menos
exatamente, nossa representao da moral provm do prprio espetculo das
regras que funcionam sob nossos olhos e as figura esquematicamente; de que,
conseqentemente, so essas regras, e no a noo sumria que temos delas,
que formam a matria da cincia, da mesma forma que a fsica tem como objeto
os corpos tais como existem, e no a idia que deles faz o vulgo. Disso resulta
que se toma como base da moral o que no seno o topo, a saber, a maneira
como ela se prolonga nas conscincias individuais e nelas repercute. E no
apenas nos problemas mais gerais da cincia que esse mtodo seguido: ele
permanece o mesmo nas questes especiais. Das idias essenciais que estuda
no incio, o moralista passa s idias secundrias de famlia, de ptria, de
responsabilidade, de caridade, de justia; mas sempre a idias que se aplica sua
reflexo.
No diferente com a economia poltica. Ela tem por objeto, diz Stuart Mill, os
fatos sociais que se produzem principalmente ou exclusivamente em vista da
aquisio de riquezas. Mas, para que os fatos assim definidos pudessem ser
designados, enquanto coisas, observao do cientista, seria preciso pelo menos
que se pudesse indicar por qual sinal possvel reconhecer aqueles que satisfa-
zem essa condio. Ora, no incio da cincia, no se tem sequer o direito de
afirmar que existe algum, muito menos ainda se pode saber quais so. Em toda
ordem de pesquisas, com efeito, somente quando a explicao dos fatos est
suficientemente avanada que possvel estabelecer que eles tm um objetivo e
qual esse objetivo. No h problema mais complexo nem menos suscetvel de
ser resolvido de sada. Portanto, nada nos garante de antemo que haja uma
esfera da atividade social em que o desejo de riqueza desempenhe realmente
esse papel preponderante. Em conseqncia, a matria da economia poltica,
assim compreendida, feita no de realidades que podem ser indicadas, mas de
simples possveis, de puras concepes do esprito; a saber, fatos que o
economista conceb como relacionados ao fim considerado, e tais como ele os
concebe. Digamos, por exemplo, que ele queira estudar o que chama a produo.
De sada, acredita poder enumerar os principais agentes com o auxlio dos quais
ela ocorre e pass-los em revista. Portanto, ele no reconheceu a existncia
desses agentes observando de quais condies dependia a coisa que ele estuda;
pois ento teria comeado por expor as experincias de que tirou essa concluso.
Se, desde o incio da pesquisa e em poucas palavras, ele procede a essa
classificao, que a obteve por uma simples anlise lgica. Parte da idia da
produo; decompondo-a, descobre que ela implica logicamente as de foras
naturais, de trabalho, de instrumento ou de capital, e trata a seguir da mesma ma-
neira essas idias derivadas.
A mais fundamental de todas as teorias econmicas, a do valor,
manifestamente construda segundo o mesmo mtodo. Se o valor fosse estudado
como uma realidade deve s-lo, veramos primeiro o economista indicar em que
se pode reconhecer a coisa chamada com esse nome, depois classificar suas
espcies, buscar por indues metdicas as causas em funo das quais elas
variam, comparar enfim os diversos resultados para obter uma frmula geral. A
teoria portanto s poderia surgir quando a cincia tivesse avanado bastante. Em
vez disso, encontramola desde o incio. que, para faz-la, o economista
contenta-se em recolher, em tomar conscincia da idia que ele tem do valor, ou
seja, de um objeto suscetvel de ser trocado; descobre que ela implica a idia do
til, do raro, etc., e com esses produtos de sua anlise que constri sua
definio. Certamente ele a confirma por alguns exemplos. Mas, quando se pensa
nos inumerveis fatos que semelhante teoria deve explicar, como atribuir o menor
valor demonstrativo aos fatos, necessariamente muito raros, que so assim
citados ao acaso da sugesto?
Por isso, tanto em economia poltica como em moral, a parte da
investigao cientfica muito restrita; a da arte, preponderante. Em moral, a parte
terica se reduz a algumas discusses sobre a idia do dever, do bem e do direito.
Mesmo essas especulaes abstratas no constituem uma cincia, para falar
exatamente, j que tm por objeto determinar no o que , de fato, a regra
suprema da moralidade, mas o que ela deve ser. Do mesmo modo, o que mais
preocupa os economistas a questo de saber, por exemplo, se a sociedade
deve ser organizada segundo as concepes dos individualistas ou segundo as
dos socialistas; se melhor o Estado intervir nas relaes industriais e comerciais
ou abandon-las inteiramente iniciativa privada; se o sistema monetrio deve ser
o monometalismo ou o bimetalismo, etc., etc. As leis propriamente ditas so pouco
numerosas nessas pesquisas; mesmo as que nos habituamos a chamar assim
geralmente no merecem essa qualificao, no passando de mximas de ao,
preceitos prticos disfarados. Eis, por exemplo, a famosa lei da oferta e da
procura. Ela jamais foi estabelecida indutivamente, como expresso da realidade
econmica. Jamais uma experincia, uma comparao metdica foi instituda para
estabelecer, de fato, que segundo essa lei que procedem as relaes
econmicas. Tudo o que se pde fazer e tudo o que se fez foi demonstrar
dialeticamente que os indivduos devem proceder assim, caso entendam bem
seus interesses; que qualquer outra maneira de proceder lhes seria prejudicial e
implicaria, da parte dos que se entregassem a isso, uma verdadeira aberrao
lgica. lgico que as indstrias mais produtivas sejam as mais procuradas; que
os detentores dos produtos de maior demanda e mais raros os vendam ao mais
alto preo. Mas essa necessidade inteiramente lgica em nada se assemelha
quela que apresentam as verdadeiras leis da natureza. Estas exprimem as
relaes segundo as quais os fatos se encadeiam realmente, e no a maneira
como bom que eles se encadeiem.
O que dizemos dessa lei pode ser dito de todas as que a escola econmica
ortodoxa qualifica de naturais e que, por sinal, no so muito mais do que casos
particulares da precedente. Elas so naturais, se quiserem, no sentido de que
enunciam os meios que ou que pode parecer natural empregar para atingir
determinado fim suposto; mas elas no devem ser chamadas por esse nome, se,
por lei natural, se entender toda maneira de ser da natureza, indutivamente
constatada. Elas no passam, em suma, de conselhos de sabedoria prtica, e, se
foi possvel, mais ou menos especiosamente, apresent-las como a expresso
mesma da realidade, que, com ou sem razo, acreditou-se poder supor que tais
conselhos eram efetivamente seguidos pela generalidade dos homens e na
generalidade dos casos.
No entanto, os fenmenos sociais so coisas e devem ser tratados como
coisas. Para demonstrar essa proposio, no necessrio filosofar sobre sua
natureza, discutir as analogias que apresentam com os fenmenos dos reinos
inferiores. Basta constatar que eles so o nico datum oferecido ao socilogo.
coisa, com efeito, tudo o que dado, tudo o que se oferece ou, melhor, se impe
observao. Tratar fenmenos como coisas trat-los na qualidade de data que
constituem o ponto de partida da cincia. Os fenmenos sociais apresentam
incontestavelmente esse carter. O que nos dado no a idia que os homens
fazem do valor, pois ela inacessvel; so os valores que se trocam realmente no
curso de relaes econmicas. No esta ou aquela concepo da idia moral;
o conjunto das regras que determinam efetivamente a conduta. No a idia do
til ou da riqueza; toda a particularidade da organizao econmica., possvel
que a vida social no seja seno o desenvolvimento de certas noes; mas,
supondo que seja assim, essas noes no so dadas imediatamente. No se
pode portanto atingi-Ias diretamente, mas apenas atravs da realidade fe-
nomnica que as exprime. No sabemos a priori que idias esto na origem das
diversas correntes entre as quais se divide a vida social, nem se existe alguma;
somente depois de t-las remontado at suas origens que saberemos de onde
elas provm.
preciso portanto considerar os fenmenos sociais em si mesmos, separados
dos sujeitos conscientes que os concebem; preciso estud-los de fora, como
coisas exteriores, pois nessa qualidade que eles se apresentam a ns. Se essa
exterioridade for apenas aparente, a iluso se dissipar medida que a cincia
avanar e veremos, por assim dizer, o de fora entrar no de dentro. Mas a soluo
no pode ser preconcebida e, mesmo que eles no tivessem afinal todos os
caracteres intrnsecos da coisa, deve-se primeiro trat-los como se os tivessem.
Essa regra aplica-se portanto realidade social inteira, sem que haja motivos para
qualquer exceo. Mesmo os fenmenos que mais parecem consistir em arranjos
artificiais devem ser considerados desse ponto de vista.. O carter convencional
de uma prtica ou de uma instituiro jamais deve ser presumido. Alis, se nos for
permitido invocar nossa experincia pessoal, acreditamos poder assegurar que,
procedendo dessa maneira, com freqncia se ter a satisfao de ver os fatos
aparentemente mais arbitrrios apresentarem, aps uma observao mais atenta
dos caracteres de constncia e de regularidade, sintomas de sua objetividade.
De resto, e de uma maneira geral, o que foi dito anteriormente sobre os
caracteres distintivos do fato social suficiente para nos certificar sobre a natureza
dessa objetividade e para provar que ela no ilusria. Com efeito, reconhece-se
principalmente uma coisa pelo sinal de que no pode ser modificada por um
simples decreto da vontade. No que ela seja refratria a qualquer modificao.
Mas, para produzir uma mudana nela, no basta querer, preciso alm disso um
esforo mais ou menos laborioso, devido resistncia que ela nos ope e que
nem sempre, alis, pode ser vencida. Ora, vimos que os fatos sociais tm essa
propriedade. Longe de serem um produto de nossa vontade, eles a determinam de
fora; so como moldes nos quais somos obrigados a vazar nossas aes. Com
freqncia at, essa necessidade tal que no podemos escapar a ela. Mas ainda
que consigamos super-la, a oposio que encontramos suficiente para nos
advertir de que estamos em presena de algo que no depende de ns. Portanto,
considerando os fenmenos sociais como coisas, apenas nos conformaremos
sua natureza.
Em suma, a reforma que se trata de introduzir em sociologia em todos os
pontos idntica que transformou a psicologia nos ltimos trinta anos. Do mesmo
modo que Comte e Spencer declaram que os fatos sociais so fatos de natureza,
sem no entanto trat-los como coisas, as diferentes escolas empricas h muito
haviam reconhecido o carter natural dos fenmenos psicolgicos, *embora
continuassem a aplicar-lhes um mtodo puramente ideolgico*. Com efeito, os
empiristas, no menos que seus adversrios, procediam exclusivamente por
introspeco. Ora, os fatos que s observamos em ns mesmos so demasiado
raros, demasiado fugazes, `demasiado maleveis para poderem se impor s
noes correspondentes que o hbito fixou em ns e estabelecer-lhes a lei.
Quando estas ltimas no so submetidas a outro controle, nada lhes faz
contrapeso; por conseguinte, elas tomam o lugar dos fatos e constituem a matria
da cincia. Assim, nem Locke, nem Condillac consideraram os fenmenos
psquicos objetivamente. No a sensao que eles estudam, mas uma certa
idia da sensao. Por isso, ainda que sob certos aspectos eles tenham
preparado o advento da psicologia cientfica, esta s surgiu realmente bem mais
tarde, quando se chegou finalmente concepo de que os estados de
conscincia podem e devem ser considerados de fora, e no do ponto de vista da
conscincia que os experimenta. Tal foi a grande revoluo que se efetuou nesse
tipo de estudos. Todos os procedimentos particulares, todos os mtodos novos
que enriqueceram essa cincia, no so mais que meios diversos de realizar mais
completamente essa idia fundamental. o mesmo progresso que resta fazer em
sociologia. preciso que ela passe do estgio subjetivo, raramente ultrapassado
at agora, fase objetiva.
Essa passagem, alis, menos difcil de efetuar do que em psicologia. Com
efeito, os fatos psquicos so naturalmente dados como estados do sujeito, do
qual eles no parecem sequer separveis. Interiores por definio, parece que s
se pode trat-los como exteriores violentando sua natureza. preciso no apenas
um esforo de abstrao, mas todo um conjunto de procedimentos e de artifcios
para chegar a consider-los desse vis. Ao contrrio, os fatos sociais tm mais
naturalmente e mais imediatamente todas as caractersticas da coisa. O direito
existe nos cdigos, os movimentos da vida cotidiana se inscrevem nos dados
estatsticos, nos monumentos da histria, as modas nas roupas, os gostos nas
obras de arte. Em virtude de sua natureza mesma eles tendem a se constituir fora
das conscincias individuais; visto que as dominam. Para v-los sob seu aspecto
de coisas, no preciso, portanto, tortur-los com engenhosidade. Desse ponto
de vista, a sociologia tem sobre a psicologia Uma sria vantagem que no foi
percebida at agora e que deve apressar seu desenvolvimento. Os fatos talvez
sejam mais difceis de interpretar por serem mais complexos, mas so mais fceis
de atinar. A psicologia, ao contrrio, no apenas tem dificuldade de elabor-los,
como tambm de perceb-los. Em conseqncia, lcito imaginar que, no dia em
que esse princpio do mtodo sociolgico for unanimemente reconhecido e
praticado, veremos a sociologia progredir com uma rapidez que a lentido atual de
seu desenvolvimento no faria supor, e inclusive reconquistar a dianteira que a
psicologia deve unicamente sua anterioridade histrica.
Mas a experincia de nossos predecessores nos mostrou que, para
assegurar a realizao prtica da verdade que acaba de ser estabelecida, no
basta oferecer uma demonstrao terica nem mesmo compenetrar-se dela. O
esprito tende to naturalmente a desconhec-la que recairemos inevitavelmente
nos antigos erros, se no nos submetermos a uma disciplina rigorosa, cujas regras
principais, corolrios da precedente, iremos formular.
1) O primeiro desses corolrios que: preciso descartar
sistematicamente todas as prenoes. Uma demonstrao especial dessa regra
no necessria; ela resulta de tudo o que dissemos anteriormente. Alis, ela a
base de todo mtodo cientfico. A dvida metdica de Descartes, no fundo, no
seno uma aplicao disso. Se, no momento em que vai fundar a cincia,
Descartes impe-se como lei pr em dvida todas as idias que recebeu
anteriormente, que ele quer empregar apenas conceitos cientificamente
elaborados, isto , construdos de acordo com o mtodo que ele institui; todos os
que ele obtm de uma outra origem devem ser, portanto, rejeitados, ao menos
provisoriamente. J vimos que a teoria dos dolos, em Bacon, no tem outro
sentido. As duas grandes doutrinas que freqentemente foram opostas uma
outra, concordam nesse ponto essencial. preciso, portanto, que o socilogo,
tanto no momento em que determina o objeto de suas pesquisas, como no curso
de suas demonstraes, proba-se resolutamente o emprego daqueles conceitos
que se formaram fora da cincia e por necessidades que nada tm de cientfico.
preciso que ele se liberte dessas falsas evidncias que dominam o esprito do
vulgo, que se livre, de uma vez por todas, do jugo dessas categorias empricas
que um longo costume acaba geralmente por tornar tirnicas. Se a necessidade o
obriga s vezes a recorrer a elas, pelo menos que o faa tendo conscincia de seu
pouco valor, a fim de no as chamar a desempenhar na doutrina um papel de que
no so dignas.
O que torna essa libertao particularmente difcil em sociologia que o
sentimento com freqncia se intromete. Apaixonamo-nos, com efeito, por nossas
crenas polticas e religiosas, por nossas prticas morais, muito mais do que pelas
coisas do mundo fsico; em conseqncia, esse carter passional transmite-se
maneira como concebemos e como nos explicamos as primeiras. As idias que
fazemos a seu respeito nos so muito caras, assim como seus objetos, e
adquirem tamanha autoridade que no suportam a contradio. Toda opinio que
as perturba tratada como inimiga. Por exemplo, uma proposio no est de
acordo com a idia que se faz do patriotismo, ou da dignidade individual? Ento
ela negada, no importam as provas sobre as quais repousa. No se pode
admitir que seja verdadeira; ela rejeitada categoricamente, e a paixo, para
justificar-se, no tem dificuldade de sugerir razes que so consideradas
facilmente decisivas. Essas noes podem mesmo ter tal prestgio que no
toleram sequer um exame cientfico. O simples fato de submetlas, assim como os
fenmenos que elas exprimem, a uma anlise fria e seca, revolta certos espritos.
Quem decide estudar a moral a partir de fora e como uma realidade exterior
visto por esses delicados como desprovido de senso moral, da mesma forma que
o vivissecionista parece ao vulgo desprovido da sensibilidade comum. Em vez
de admitir que esses sentimentos so do domnio a* da cincia, a eles que se
julga dever apelar para fazer a cincia das coisas s quais se referem. "Infeliz o
sbio", escreve um eloqente historiador das religies, "que aborda as coisas de
Deus sem ter no fundo de sua conscincia, no fundo indestrutvel de seu ser, l
onde dorme a alma dos antepassados, um santurio desconhecido do qual se
eleva por instantes um perfume de incenso, uma linha de salmo, um grito doloroso
ou triunfal que, criana, lanou ao cu junto com seus irmos e que o repe em
sbita comunho com os profetas de outrora!""
Nunca nos ergueremos com demasiada fora contra essa doutrina mstica
que como todo misticismo, alis no , no fundo, seno um empirismo disfarado,
pegador de toda cincia. Os sentimentos que tm como objetos as coisas sociais
no tm privilgio sobre os demais, pois no outra sua origem. Tambm eles
so formados historicamente; so um produto da experincia humana, mas de
uma experincia confusa e inorganizada. Eles no se devem a no sei que
antecipao transcendental da realidade, mas so a resultante de todo tipo de
impresses e de emoes acumuladas sem ordem, ao acaso das circunstncias,
sem interpretao metdica. Longe de nos proporcionarem luzes superiores s
luzes racionais, eles so feitos exclusivamente de estados fortes, verdade, mas
confusos. Atribuir-lhes tal preponderncia conceder s faculdades inferiores da
inteligncia a supremacia sobre as mais elevadas, condenar-se a uma
logomaquia mais ou menos oratria. Uma cincia feita assim s pode satisfazer os
espritos que gostam de pensar com sua sensibilidade e no com seu
entendimento, que preferem as snteses imediatas e confusas da sensao s
anlises pacientes e luminosas da razo. O sentimento objeto de cincia, no o
critrio da verdade cientfica. De resto, no h cincia que, em seus comeos, no
tenha encontrado resistncias anlogas. Houve um tempo em que os sentimentos
relativos s coisas do mundo fsico, tendo eles prprios um carter religioso ou
moral, opunham-se com no menos fora ao estabelecimento das cincias fsicas.
Pode-se portanto supor que, expulso de cincia em cincia, esse preconceito
acabar por desaparecer da prpria sociologia, seu ltimo refgio, para deixar o
terreno livre ao cientista.
2) Mas a regra precedente inteiramente negativa. Ela ensina o socilogo
a escapar ao domnio das noes vulgares, para dirigir sua ateno aos fatos;
mas no diz como deve se apoderar desses ltimos para empreender um estudo
objetivo deles.
Toda investigao cientfica tem por objeto um grupo determinado de
fenmenos que correspondem a uma mesma definio. O primeiro procedimento
do socilogo deve ser, portanto, definir as coisas de que ele trata, a fim de que se
saiba e de que ele saiba bem o que est em questo. Essa a primeira e a mais
indispensvel condio de toda prova e de toda verificao; uma teoria, com
efeito, s pode ser controlada se se sabe reconhecer os fatos que ela deve
explicar. Alm do mais, visto ser por essa definio que constitudo* o objeto
mesmo da cincia, este ser uma coisa ou no, conforme a maneira pela qual
essa definio for feita.
Para que ela seja objetiva, preciso evidentemente que exprima os
fenmenos, no em funo de uma idia do esprito, mas de propriedades que lhe
so inerentes. preciso que ela os caracterize por um elemento integrante da
natureza deles, no pela conformidade deles a uma noo mais ou menos ideal.
Ora, no momento em que a pesquisa vai apenas comear, quando os fatos no
esto ainda submetidos a nenhuma elaborao, os nicos desses caracteres que
podem ser atingidos so os que se mostram suficientemente exteriores para
serem imediatamente visveis. Os que esto situados mais profundamente so,
por certo, mais essenciais; seu valor explicativo maior, mas nessa fase da cincia
eles so desconhecidos e s podem ser antecipados se substituirmos a realidade
por alguma concepo do esprito. Assim, entre os primeiros que deve ser
buscada a matria dessa definio fundamental. Por outro lado, claro que essa
definio dever compreender,sem exceo nem distino, todos os fenmenos
que apresentam igualmente esses mesmos caracteres; pois no temos nenhuma
razo e nenhum meio de escolher entre eles. Essas propriedades so, ento, tudo
o que sabemos do real; em conseqncia, elas devem determinar soberanamente
a maneira como os fatos devem ser agrupados. No possumos nenhum outro
critrio que possa, mesmo parcialmente, suspender os efeitos do precedente.
Donde a regra seguinte: Jamais tomarporobjeto de pesquisas seno um grupo de
fenmenos previamente definidos por certos caracteres exteriores que lhes so
comuns, e compreender na mesma pesquisa todos os que correspondem a essa
definio. Por exemplo, constatamos a existncia de certo nmero de atos que
apresentam, todos, o carter exterior de, uma vez efetuados, determinarem de
parte da sociedade essa reao particular que chamada pena. Fazemos deles
um grupo sui generis, ao qual impomos uma rubrica comum; chamamos crime
todo ato punido e fazemos do crime assim definido o objeto de uma cincia
especial, a criminologia. Do mesmo modo, observamos, no interior de todas as
sociedades conhecidas, a existncia de uma sociedade parcial, reconhecvel pelo
sinal exterior de ser formada de indivduos consangneos uns dos outros, em sua
maior parte, e que esto unidos entre si por laos jurdicos. Fazemos dos fatos
que se relacionam a ela um grupo particular; so os fenmenos da vida
domstica. Chamamos famlia todo agregado desse tipo e fazemos da famlia
assim definida o objeto de uma investigao especial que ainda no recebeu
denominao determinada na terminologia sociolgica. Quando, mais tarde,
passarmos da famlia em geral aos diferentes tipos familiares, aplicaremos a
mesma regra. Quando abordarmos; por exemplo, o estudo do cl, ou da famlia
maternal, ou da famlia patriarcal, comearemos por defini-los, e de acordo com o
mesmo mtodo. O objeto de cada problema, geral como particular, deve ser
constitudo segundo o mesmo princpio.
Ao proceder dessa maneira, o socilogo, desde seu primeiro passo, toma
imediatamente contato com a realidade. Com efeito, o modo como os fatos so
assim classificados no depende dele, da propenso particular de seu esprito,
mas da natureza das coisas. O sinal que possibilita serem colocados nesta ou
naquela categoria pode ser mostrado a todo o mundo, reconhecido por todo o
mundo, e as afirmaes de um observador podem ser controladas pelos outros.
verdade que a noo assim constituda nem sempre se ajusta, ou, at mesmo, em
geral no se ajusta, noo comum. Por exemplo; evidente que, para o senso
comum, os casos de livre pensamento ou as faltas etiqueta, to regularmente e
to severamente punidos numa srie de sociedades, no so vistos como crimes,
inclusive em relao a essas sociedades. Assim tambm, um cl no uma
famlia, no sentido -usual da palavra. Mas no importa; pois no se trata
simplesmente de descobrir um meio que nos permita verificar com suficiente
certeza os fatos a que se aplicam as palavras da lngua corrente e as idias que
estas traduzem. O que preciso constituir inteiramente conceitos novos,
apropriados s necessidades da cincia e expressos com o auxlio de uma
terminologia especial. No, certamente, que o conceito vulgar seja intil ao
cientista; ele serve de indicador. Por ele, somos informados de que existe em
alguma parte um conjunto de fenmenos reunidos sob uma mesma denominao
e que, portanto, devem provavelmente ter caractersticas comuns; inclusive, como
o conceito vulgar jamais deixa de ter algum contato com os fenmenos, ele nos
indica s vezes, mas de maneira geral, em que direo estes devem ser
buscados. Mas, como ele grosseiramente formado, natural que no coincida
exatamente com o conceito cientfico, institudo em seu lugar.
Por mais evidente e importante que seja essa regra, ela no muito observada
em sociologia. Precisamente por esta tratar de coisas das quais estamos sempre
falando, como a famlia, a propriedade, o crime, etc., na maioria das vezes parece
intil ao socilogo dar-lhes uma definio preliminar e rigorosa. Estamos to
habituados a servir-nos dessas palavras, que voltam a todo instante no curso das
conversaes, que parece intil precisar o sentido no qual as empregamos. As
pessoas se referem simplesmente nao comum. Ora, esta muito freqente-
mente ambgua. Essa ambigidade faz que se renam sob um mesmo nome e
numa mesma explicao coisas, em realidade, muito diferentes. Da provm
inextricveis confuses. Assim, existem duas espcies de unies monog-
micas:umas o so de fato, outras de direito. Nas primeiras, o marido s tem uma
mulher, embora, juridicamente, possa ter vrias; nas segundas ele legalmente
proibido de ser polgamo. A monogamia de fato verifica-se em vrias espcies
animais e em certas sociedades inferiores, no de forma espordica, mas com a
mesma generalidade como se fosse imposta por lei. Quando a populao est
dispersa numa vasta superfcie, a trama social mais frouxa, portanto os
indivduos vivem isolados uns dos outros. Por isso, cada homem busca
naturalmente obter uma mulher e uma s, porque, nesse estado de isolamento,
lhe difcil ter vrias. A monogamia obrigatria, ao contrrio, s se observa nas
sociedades mais elevadas. Essas duas espcies de sociedades conjugais tm
portanto uma significao muito diferente, no entanto a mesma palavra serve para
design-Ias; pois comum dizer de certos animais que eles so mongamos,
embora nada exista entre eles que se assemelhe a uma obrigao jurdica. Ora, o
sr. Spencer, abordando o estudo do casamento, emprega a palavra monogamia,
sem defini-Ia, com seu sentido usual e equvoco. Disso resulta que a evoluo do
casamento lhe parece apresentar uma incompreensvel anomalia, j que ele cr
observar a forma superior da unio sexual j nas primeiras fases do
desenvolvimento histrico, ao passo que ela parece desaparecer no perodo
intermedirio para retornar a seguir. Ele conclui da que no h relao regular
entre o progresso social em geral e o avano progressivo em direo a um tipo
perfeito de vida familiar. Uma definio oportuna teria evitado esse errol3.
Em outros casos, toma-se o cuidado de definir o objeto sobre o qual incidir a
pesquisa; mas, em vez de abranger na definio e de agrupar sob a mesma
rubrica todos os fenmenos que tm as mesmas propriedades exteriores, faz-se
uma triagem entre eles. Escolhem-se alguns, espcie de elite, que so vistos
como os nicos com o direito a ter esses caracteres. Quanto aos demais, so
considerados como tendo usurpado esses sinais distintivos e no so levados em
conta. Mas fcil prever que dessa maneira s se pode obter uma noo
subjetiva e truncada. Essa eliminao, com efeito, s pode ser feita com base
numa idia preconcebida, uma vez que, no comeo da cincia, nenhuma pesquisa
pde ainda estabelecer a realidade dessa usurpao, supondo-se que ela seja
possvel. Os fenmenos escolhidos s o podem ter sido porque estavam, mais do
que os outros, de acordo com a concepo ideal que se fazia desse tipo de
realidade. Por exemplo, o sr. Garofalo, no comeo de sua Criminologie, demonstra
muito bem que o ponto de partida dessa incia deve ser "a noo sociolgica do
crime". S que, para constituir essa noo, ele no compara indistintamente todos
os atos que, nos diferentes tipos sociais, foram reprimidos por penas regulares,
mas apenas alguns dentre eles, a saber, os que ofendem a parte mdia e imutvel
do senso moral. Quanto aos sentimentos morais que desapareceram durante a
evoluo, eles no lhe parecem fundados na natureza das coisas, por no terem
conseguido se manter; por conseguinte, os atos que foram considerados
criminosos porque os violavam, lhe parecem dever essa denominao apenas a
circunstncias acidentais e mais ou menos patolgicas. Mas em virtude de uma
concepo inteiramente pessoal da moralidade que ele procede a essa
eliminao. Ele parte da idia de que a evoluo moral, tomada em sua fonte
mesma ou nos arredores, arrasta todo tipo de escrias e de impurezas, que ela
elimina a seguir progressivamente, e de que somente hoje ela conseguiu
desembaraar-se de todos os elementos adventcios que, primitivamente,
perturbavam-lhe o curso. Mas esse princpio no nem um axioma evidente nem
uma verdade demonstrada; apenas uma hiptese, que nada inclusive justifica.
As partes variveis do senso moral no so menos fundadas na natureza das
coisas do que as partes imutveis; as variaes pelas quais as primeiras
passaram testemunham apenas que as prprias coisas variaram. Em zoologia, as
formas especficas s espcies inferiores no so vistas como menos naturais do
que as que se repetem em todos os graus da escala animal. Do mesmo modo, os
atos tachados de crimes pelas sociedades primitivas, e que perdelam essa
qualificao, so realmente criminosos para essas sociedades, tanto quanto os
que continuamos a reprimir hoje em dia. Os primeiros correspondem s condies
mutveis da vida social, os segundos s condies constantes; mas uns no so
mais artificiais que os outros.
E tem mais: ainda que esses atos tivessem adquirido indevidamente o carter
criminolgico, nem por isso deveriam ser separados radicalmente dos outros; pois
a natureza das formas mrbidas de um fenmeno no diferente da natureza das
formas normais e, por conseqncia, necessrio observar tanto as primeiras
quanto as segundas para determinar essa natureza. A doena no se ope
sade; trata-se de duas variedades do mesmo gnero e que se esclarecem
mutuamente. Essa uma regra h muito reconhecida e praticada, tanto em
biologia como em psicologia, e que o socilogo no menos obrigado a respeitar.
A menos que se admita que um mesmo fenmeno possa ser devido ora a causa,
ora a uma outra, isto , a menos que se negue o princpio de causalidade, as
causas que imprimem num ato, mas de maneira anormal, o sinal distintivo do
crime no poderiam diferir em espcie das que produzem normalmente o mesmo
efeito; elas distinguem-se apenas em grau ou porque no agem no mesmo
conjunto de circunstncias. O crime anormal ainda , portanto, um crime e deve,
por conseguinte, entrar na definio do crime. Assim, o que ocorre? O sr. Garofalo
toma por gnero o que no seno a espcie ou mesmo uma simples variedade.
Os fatos aos quais se aplica sua frmuIa da criminalidade no representam seno
uma nfima minoria entre os que ela deveria compreender; pois ela no convm
nem aos crimes religiosos, nem aos crimes contra a etiqueta, o cerimonial, a
tradio, etc., que, se desapareceram de nossos cdigos modernos, preenchem,
ao contrrio, quase todo o direito penal das sociedades anteriores.
a mesma falta de mtodo que faz que certos observadores-recusem aos
selvagens qualquer espcie de moralidade15. Eles partem da idia de que nossa
moral a moral; ora, evidente que ela desconhecida dos povos primitivos ou
que s existe neles em estado rudimentar. Mas essa definio arbitrria.
Apliquemos nossa regra e tudo se modifica. Para decidir se um preceito moral
ou no, devemos examinar se ele apresenta ou no o sinal exterior da moralidade;
esse sinal consiste numa sano repressiva difusa, ou seja, numa reprovao da
opinio pblica que vinga toda violao do preceito. Sempre que estivermos em
presena de um fato que apresenta esse carter, no temos o direito de negar-lhe
a qualificao de moral; pois essa a prova de que ele da mesma natureza que
os outros fatos morais. Ora, regras desse gnero no s se verificam nas
sociedades inferiores, como so mais numerosas a do que entre os civilizados.
Uma quantidade de atos atualmente entregues livre apreciao dos indivduos
so, ento, impostos obrigatoriamente. Percebe-se a que erros somos levados
quando no definimos, ou quando definimos mal.
Mas, diro, definir os fenmenos por seus caracteres aparentes no ser
atribuir s propriedades superficiais uma espcie de preponderncia sobre os
atributos fundamentais? No ser, por uma verdadeira inverso da ordem lgica,
fazer repousar as coisas sobre seus topos, e no sobre suas bases? assim que,
quando se define o crime pela pena, corre-se quase inevitavelmente o risco de ser
acusado de querer derivar o crime da pena ou, conforme uma citao bem
conhecida, de ver no patbulo a fonte da vergonha, no no ato expiado. Mas a
objeo repousa sobre uma confuso. Como a definio cuja regra acabamos de
dar est situada no comeo da cincia, ela no poderia ter por objeto exprimir a
essncia da realidade; ela deve apenas nos pr em condies de chegar a isso
ulteriormente. I-ia tem por nica funo fazer-nos entrar em contato com as coisas
e, como estas no podem ser atingidas pelo esprito a no ser de fora, por seus
exteriores que ela as exprime. Mas isso no quer dizer que as explique; ela
apenas fornece o primeiro ponto de apoio necessrio s nossas explicaes.
Claro, no a pena que faz o crime, mas por ela que ele se revela exteriormente
a ns, e dela portanto que devemos partir se quisermos chegar a compreend-
lo.
A obje ao s seria fundada se esses caracteres exteriores fossem ao mesmo
tempo acidentais, isto , se no estivessem ligados s propriedades fundamentais.
De fato, nessas condies, a cincia, aps t-los assinalado, no teria-meio algum
de ir mais adiante; no poderia aprofundar-se mais na realidade, j que no
haveria nenhuma relao entre a superfcie e o fundo. Mas, a menos que o
princpio de causalidade seja uma palavra v, quando caracteres determinados se
encontram identicamente e sem nenhuma exceo em todos os fenmenos de
certa ordem, pode-se estar certo.de que eles se ligam intimamente natureza
destes ltimos e que so solidrios com eles. Se um grupo dado de atos
apresenta igualmente a particularidade de uma sano penal estar a eles
associada, que existe uma ligao ntima entre a pena e os atributos
constitutivos desses atos. Em conseqncia, por mais superficiais que sejam,
essas propriedades, contanto que tenham sido metodicamente observadas,
mostram claramente ao cientista o caminho que ele deve seguir para penetrar
mais fundo nas coisas; elas so o primeiro e indispensvel elo da cadeia que a
cincia ir desenrolar a seguir no curso de suas explicaes.
Visto ser pela sensao que o exterior das coisas nos dado, pode-se
portanto dizer, em resumo: a cincia, para ser objetiva, deve partir, no de
conceitos que se formaram sem ela, mas da sensao. dos dados sensveis que
ela deve tomar diretamente emprestados os elementos de suas definies iniciais.
E, de fato, basta pensar em que consiste a obra da cincia para compreender que
ela no pode proceder de outro modo. Ela tem necessidade de conceitos que
exprimam adequadamente as coisas tais como elas so, no tais como til
prtica conceb-las. Ora, aqueles conceitos que se constituram fora de sua ao
no preenchem essa condio. preciso, pois, que ela crie novos e que, para
tanto, afastando as noes comuns e as palavras que as exprimem, volte
sensao, matria-prima necessria de todos os conceitos. da sensao que
emanam todas as idias gerais, verdadeiras ou falsas, cientficas ou no.
Portanto, o ponto de partidarda cincia ou conhecimento especulativo no poderia
ser outro que o do conhecimento vulgar ou prtico. somente alm dele, na
maneira pela qual essa matria comum elaborada, que as divergncias
comeam.
3) Mas a sensao facilmente subjetiva. Assim de regra, nas cincias
naturais, afastar os dados sensveis que correm o risco de ser demasiado
pessoais ao observador, para reter exclusivamente os que apresentam um
suficiente grau de objetividade. Eis o que leva o fsico a substituir as vagas
impresses que a temperatura ou a eletricidade produzem pela representao
visual das oscilaes do termmetro ou do eletrmetro. O socilogo deve tomar as
mesmas precaues. Os caracteres exteriores em funo dos quais ele define o
objeto de suas pesquisas devem ser to objetivos quanto possvel.
Pode-se estabelecer como princpio que os fatos sociais so tanto mais
suscetveis de ser objetivamente representados *quanto mais completamente
separados dos fatos individuais que os manifestam.
De fato, uma sensao tanto mais objetiva quanto maior a fixidez do objeto
ao qual ela se relaciona; pois a condio de toda objetividade a existncia de um
ponto de referncia, constante e idntico, ao qual a representao pode ser
relacionada e que permite eliminar tudo 0 que ela tem de varivel, portanto, de
subjetivo. Se os nicos pontos de referncia dados forem eles prprios variveis,
se forem perpetuamente diversos em relao a si mesmos, faltar uma medida
comum e no teremos meio algum de distinguirem nossas impresses o que
depende de fora e o que lhes vem de ns. **Ora, a vida social, enquanto no
chegou a isolar-se dos acontecimentos particulares que a encarnam para
constituir-se parte, tem justamente essa propriedade, pois, como esses
acontecimentos no tm a mesma fisionomia de uma vez a outra, de um instante
a outro, e como ela inseparvel deles, estes transmitem-lhe sua mobilidade. Ela
consiste ento em livres correntes** que esto perpetuamente em via de
transformao e que o olhar do observador no consegue fixar. Vale dizer que no
por esse lado que o cientista pode abordar o estudo da realidade social. Mas
sabemos que esta apresenta a particularidade de, sem deixar de ser ela mesma,
ser capaz de cristalizar-se. Fora dos atos individuais que suscitam, os hbitos
coletivos exprimem-se sob formas definidas, regras jurdicas, morais, ditos
populares, fatos de estrutura social, etc.Como essas formas existem de uma
maneira permanente, *como no mudam comas diversas aplicaes que delas
so feitas,* elas constituem um objeto fixo, um padro constante que est sempre
ao alcance do observador e que no d margem s impresses subjetivas e s
observaes pessoais. Uma regra de direito o que ela , e no h duas
maneiras de perceb-la. Por outro lado, visto que essas prticas nada mais so
que vida social consolidada, legtimo, salvo indicaes contrriasl6, estudar esta
atravs daquelas.
Quando, portanto, o socilogo empreende a explorao uma ordem
qualquer de fatos sociais, ele deve esforarse em consider-los por um lado em
que estes se apresentem isolados de suas manifestaes individuais. em virtude
desse princpio que estudamos a solidariedade social, suas formas diversas e sua
evoluo atravs do sistema das regras jurdicas que as exprimem. Do mesmo
modo, se se tentar distinguir e classificar os diferentes tipos familiares com base
nas descries literrias que deles nos oferecem os viajantes e, s vezes, os
historiadores, corre-se o risco de confundir as espcies mais. diferentes, de
aproximar os tipos mais afastados. Se, ao contrrio, tomar-se por base dessa
classificao a constituio jurdica da famlia e, mais especificamente, o direito
sucessrio, ter-se- um critrio objetivo que, sem ser infalvel, evitar no entanto
muitos erros. Queremos classificar os diferentes tipos de crimes? Ento nos
esforaremos por reconstituir as maneiras de viver, os costumes profissionais
praticados nos diferentes mundos do crime, e reconheceremos tantos tipos
criminolgicos quantas forem as formas diferentes que essa organizao
apresenta. Para identificar os costumes, as crenas populares, recorreremos aos
provrbios, aos ditados que os exprimem. Certamente, ao proceder assim,
deixamos provisoriamente fora da cincia a matria concreta da vida coletiva, e no
entanto, por mais mutvel que esta seja, no temos o direito de postular a priori
sua ininteligibilidade. Mas, se quisermos seguir uma via metdica, precisaremos
estabelecer os primeiros alicerces da cincia sobre um terreno firme e no sobre
areia move