Upload
cintia-peixoto
View
219
Download
2
Embed Size (px)
DESCRIPTION
Emissão de Carbono em uma Usina Hidroelétrica
Citation preview
dezembro de 2004 C I N C I A H O J E 4 1
Gases de efeito estufaem hidreltricas da Amaznia
Quem abre uma garrafa de refrigerante v minsculas bolhas emer-girem do lquido. Nesse caso, o gs carbnico (CO2)est dissolvido na gua, que compe a maior parteda bebida. A solubilidade do gs mais alta sobpresso na garrafa fechada do que quando ela aberta, de acordo com o princpio qumico conheci-do como Lei de Henry, que estabelece que a solu-bilidade de um gs em um lquido diretamenteproporcional presso parcial do gs. Os mergulha-dores, vale lembrar, esto familiarizados com ofato de que a queda sbita de presso pode liberarbolhas de nitrognio no sangue, pondo em risco avida daqueles que sobem rapidamente superf-cie da gua.
No caso da gua que emerge do fundo de umahidreltrica, o efeito da presso age em conjuntocom o efeito da temperatura (segundo o Princpiode Le Chtelier, o aquecimento da gua tambmreduz a solubilidade dos gases nela dissolvidos).O efeito causado pela liberao da presso gran-de e imediato, mas requer um curto perodo detempo para que o Princpio de Le Chtelier seestabelea e a temperatura se reequilibre.
A diferena de presso entre uma garrafa derefrigerante fechada e aberta pequena se compa-
Os chamados gases-estufa, entre os quais se destacam o dixido de carbono
e o metano (tambm conhecido como gs do pntano), dificultam a dissipao
da radiao refletida pela Terra. Embora a discusso sobre as reais conseqncias
do aumento da concentrao desses gases na atmosfera seja polmica, provvel
caso as emisses se mantenham nos nveis atuais que no futuro o planeta enfrente
catstrofes ocasionadas por mudanas climticas. Ao apresentar neste artigo dados
sobre o lanamento de gases-estufa por hidreltricas da Amaznia brasileira,
o autor traz importante contribuio para um debate imparcial do tema.
Philip M. FearnsideInstituto Nacional de Pesquisas da Amaznia
C L I M A T O L O G I A
rada presso no fundo do reservatrio de umahidreltrica. A 34,6 m (profundidade das tomadasdgua das turbinas na hidreltrica de Tucuru), apresso alta (aproximadamente trs atmosferas).A 10 m h uma estratificao da gua em camadasde temperaturas diferentes: a gua mais fria dascamadas baixas no se mistura com a gua maisquente das camadas superiores, impedindo o mo-vimento do CH4 (metano) para a superfcie.
O METANO
medida que a profundidade aumenta na colunadgua, a concentrao de CH4 tambm aumenta(figura 1). No reservatrio de Tucuru, a concen-trao desse gs a 30 m de profundidade era, emmaro de 1989, de 6 mg por litro de gua (mg/l),uma estimativa conservadora para a concentraonessa poca do ano a 34,6 m. O valor sobe para 7,5mg/l aps ajuste para o ciclo anual, com base emmedidas tomadas pela equipe de Corinne Galy-La-caux na represa de Petit Saut (Guiana Francesa).
Os dados desse reservatrio, onde se tomammedidas ao longo de todo o ano, so mais comple-
dezembro de 2004 C I N C I A H O J E 4 1
42 C I N C I A H O J E v o l . 3 6 n 2 1 1
C L I M A T O L O G I AFO
TOS
P.M
. FEAR
NS
IDE
tos que os relativos s hidreltricas da Amazniabrasileira. Embora os dados de Petit Saut possamser usados para ajustar valores pontuais brasilei-ros, com base em nmeros relativos (percentagens),no se pode lanar mo de valores absolutos porcausa da diferena de idade entre os reservatrios.
Logo que a gua emerge das turbinas, a pressocai at o nvel de uma atmosfera, e a maior parte dogs nela dissolvido imediatamente liberada. A guacolhida no fundo de um reservatrio e trazida at asuperfcie em um frasco de amostragem espumafeito refrigerante quando ele aberto. Gases assimliberados incluem o CO2 e o CH4. Embora presentena gua em menor quantidade que o CO2, o CH4 que torna as hidreltricas uma preocupao no quese refere ao aumento do efeito estufa.
O metano tambm liberado no percurso dagua pelo vertedouro, onde a liberao de gs causada no s pela mudana de presso e tempe-ratura, mas tambm pela proviso sbita de umavasta rea da superfcie, quando a gua pulveri-
zada em pequenas gotas. No vertedouro da hidre-ltrica de Tucuru, a gua sai em um jato a partirde uma fenda horizontal estreita a 20 m de pro-fundidade. Nessa profundidade a gua tem umacarga significativa de metano: 3,1 mg/l, em mdia,ao longo do ano.
Em forma de salto de esqui, o vertedouro foiprojetado para maximizar a oxigenao do rio ajusante da barragem (figura 2). Em conseqncia,o metano presente na gua imediatamente libe-rado. Considerando que 353,6 trilhes de litrosdgua, em mdia, passam anualmente pelas tur-binas e vertedouros da barragem de Tucuru, ve-rifica-se que a quantidade de CH4 exportada poressas estruturas tremenda.
Levando-se em conta as suposies relativas spercentagens de CH4 liberadas dessa gua, em 1991foi lanado um total de 0,7-1,2 milho de tonela-das de CH4 em Tucuru, o equivalente a 4-7,1milhes de toneladas de carbono na forma de CO2,computado com base no potencial de aquecimentoglobal de 21, adotado para o metano pelo Protocolode Kyoto isso significa que cada tonelada de CH4tem, sobre o aquecimento global, o impacto de 21toneladas de CO2. A equivalncia conservadora,j que clculos atuais do Painel Intergovernamentalde Mudanas Climticas indicam um valor de 23para o potencial de aquecimento global do metano,o que aumentaria o impacto da emisso desse gspelas hidreltricas em 12% em relao aos valoresadotados pelo Protocolo de Kyoto. H propostas al-ternativas para o clculo da equivalncia entre osdiferentes gases, mas os clculos aqui apresentadosse baseiam na metodologia adotada pelo Protocolode Kyoto, por ser internacionalmente aceita.
A presso parcial do CH4 na atmosfera muitobaixa: 1,5 10-6 (em cada milho de molculaspresentes no ar, apenas 1,5, em mdia, de me-tano). Dada a constante da Lei de Henry para o me-tano, o equilbrio de CH4 presso de uma atmos-fera e temperatura de 25oC de apenas 0,035mg/l. Quando a gua emerge das turbinas de Tu-curu com uma concentrao de 7,5 mg de metanopor litro, 99,5% se perdem em razo do efeitocombinado da queda da presso, at o nvel deuma atmosfera, e da elevao da temperatura, atcerca de 25oC. O papel da temperatura nesse pro-cesso pode ser visto a partir da relao entre atemperatura e a solubilidade de CH4: um aumentona temperatura de 15oC para 25oC, por exemplo,reduz a solubilidade de CH4 na gua em 18,3%.
Figura 2. Em forma de salto de esqui,o vertedouro da hidreltrica de Tucuru oxigenaa gua mas simultaneamente libera metano
Figura 1. Perfil da concentrao de metano (CH4)na usina hidreltrica de Tucuru em maro de 1989,com ajuste para um ciclo anual
FON
TE J.G
.TUN
DIS
I
dezembro de 2004 C I N C I A H O J E 43
solo erodido e de carbono orgnico dissolvido quealcana o rio a partir do lenol fretico. O carbonode CO2 derivado da fotossntese no reservatrio apenas reciclado da atmosfera; o proveniente daterra firme est sujeito a decomposio aerbica.
O carbono da represa que no oxidado podedepositar-se em sumidouros (como os sedimentosdo fundo do reservatrio), a jusante (na vrzea oufoz) ou em sedimentos ocenicos, podendo aindapermanecer como carbono orgnico dissolvido porum longo perodo. A remoo de carbono por de-posio no reservatrio no pode ser vista comobenefcio, uma vez que o carbono dos sedimentosprovavelmente ter-se-ia acumulado em outros su-midouros na ausncia de barragens.
No clculo do impacto lquido causado por re-servatrios, deve-se levar em conta o CO2 liberadopela decomposio de partes das rvores inunda-das que se projetam para fora dgua (figura 3).Aps o enchimento do reservatrio, a quantidadede carbono envolvida significativa na primeiradcada. Uma estimativa das emisses dessa fontefeita pelo autor deste artigo durante o ano de 1990indicou um total de 10 milhes de toneladas decarbono para as represas da Amaznia brasilei-ra: 2,55 em Tucuru; 6,43 em Balbina; 1,13 emSamuel; e 0,01 em Curu-Una.
Figura 3. Vista parcial do lago da hidreltricade Samuel, em Rondnia, 13 anos aps o fechamentoda barragem. Partes de rvores mortas permanecemacima da gua, e a decomposio dessa biomassalibera CO2, sobretudo na primeira dcada apsa formao da represa
C L I M A T O L O G I A
Algumas estimativas do impacto de hidreltri-cas consideram desprezveis as emisses de gasespelas turbinas e vertedouros, com base na medidado fluxo de gases na superfcie da gua, feitas devrias centenas de metros a vrias dezenas dequilmetros a jusante da barragem. Infelizmentepara o ambiente, a liberao de gs da gua queemerge das turbinas ocorre em questo de segun-dos. O fato de que pouco ou nenhum metano sejaliberado rio abaixo irrelevante. A quantidade deCH4 liberado nas turbinas e no vertedouro ade-quadamente calculada por meio da diferena en-tre a concentrao de CH4 na gua profundidadeda tomada dgua das turbinas atrs da barrageme a concentrao na gua do rio a jusante da bar-ragem. Como o novo equilbrio alcanado rapi-damente, logo que a gua emerge das turbinas, noh tempo para as bactrias reduzirem o CH4 a CO2antes de o gs ganhar a atmosfera.
Com o sobe-e-desce do nvel de gua, inundan-do e expondo grandes reas de terra ao redor damargem, as represas se tornam verdadeiras fbri-cas de metano. A vegetao cresce depressa nalama exposta e se decompe em condies anae-rbicas no fundo do reservatrio quando a guavolta a subir. Isso converte gs carbnico atmosf-rico em metano, com um impacto muito maiorsobre o efeito estufa do que o CO2 retirado daatmosfera por ao das plantas (21 vezes mais portonelada de gs ou 7,6 vezes mais por tonelada decarbono). A emisso natural desse gs ao longo deum rio sem barragens pequena se comparada emisso de um reservatrio.
O DIXIDO DE CARBONO
A emisso de gs carbnico de reservatrios bas-tante diferente da emisso de metano no que serefere ao impacto lquido sobre o efeito estufa.Diferente do metano, s uma poro do gs car-bnico emitido pode ser considerada impactante,pois grande parte do fluxo de CO2 cancelada pormeio de absores que ocorrem no reservatrio. Ometano no entra em processos fotossintticos,embora seja reduzido lentamente a CO2, que podeser removido na fotossntese. Durante os cerca de10 anos que cada molcula de metano permanecena atmosfera, o efeito estufa que isso causa deve serconsiderado um impacto lquido da represa.
O CO2 liberado na superfcie do reservatrio,bem como o CO2 liberado em turbinas e verte-douros, no pode ser considerado emisso lquida.O carbono desse CO2 ter entrado na gua a partirde fontes de fotossntese no reservatrio, comofitoplncton e macrfitas, de material orgnico e
44 C I N C I A H O J E v o l . 3 6 n 2 1 1
C L I M A T O L O G I A
Em Tucuru, o impacto total das emisses esumidouros dos diferentes gases de efeito estufasomava em 1990 (seis anos aps o fechamento dabarragem) o equivalente a 7-10,1 milhes de tone-ladas de carbono de CO2. Um cenrio alto e outrobaixo refletem uma larga faixa de incerteza, quese deve sobretudo s suposies acerca da percen-tagem de CH4 liberada pelas turbinas (figura 4).
A magnitude dessa emisso pode ser entendidapor comparao com a que se verifica na cidadede So Paulo. Em 1990, o Brasil emitiu 53 milhesde toneladas de carbono de combustveis fsseis,segundo clculos do especialista em energia Em-lio La Rovere, da Universidade Federal do Rio deJaneiro. Portanto, a emisso de 7-10,1 milhes detoneladas de carbono equivalente a CO2 de Tucuruem 1990 representava de 13% a 19% da emissode combustvel fssil produzida na poca pela po-pulao do pas (170 milhes de habitantes). Aemisso de Tucuru era de 1,3 a 1,9 vezes maiorque a do combustvel fssil queimado pelos 17milhes de habitantes da rea metropolitanade So Paulo (10% da populao brasileira).
GS FONTE DE EMISSO C EQUIVALENTE A CO2 CONTRIBUIO
(MILHES DE T)* RELATIVA (%)
CENRIO CENRIO CENRIO CENRIO
ALTO BAIXO ALTO BAIXO
CH4 EBULIO + DIFUSO 0,537 0,537 5% 8%
DECOMPOSIO ACIMA DGUA 0,003 0,003 0,03% 0,04%
PERDA DE SUMIDOUROS NO SOLO DA FLORESTA 0,001 0,001 0,01% 0,01%
PERDA DE CUPINS DA FLORESTA -0,015 -0,015 -0,15% -0,22%
TURBINAS 4,023 0,945 40% 13%
VERTEDOURO 3,066 3,066 30% 44%
CH4 TOTAL 7,61 4,54 75% 64%
CO2 DECOMPOSIO ACIMA DGUA** 2,55 2,55 25% 36%
DECOMPOSIO ABAIXO DGUA 0,03 0,03 0,30% 0,43%
PERDA DE ABSORO DA FLORESTA 0,06 0,06 1% 1%
CO2 TOTAL 2,64 2,64 26% 38%
N2O*** PERDA DE FONTES NO SOLO DA FLORESTA -0,14 -0,14 -1% -2%
TOTAL 10,11 7,03 100% 100%
*Potencial de aquecimento global de CH4 = 21; N
2O = 310.
**Baseada na decomposio acima do solo, em rea de floresta derrubada para implantao de atividades agropecurias.***xido nitroso.
Figura 4. Emisses de gases-estufa na hidreltricade Tucuru em 1990. Os componentes so de anosdiferentes: reas de hbitat e nveis de gua(1988); emisso por unidade de rea por ebulioe difuso (1996-1997); fluxos de gua das turbinase do vertedouro (1991); contedo de CH4 na gua(1989); emisses de decomposio (1990)
HIDRELTRICAS E OUTRAS FONTESDE ENERGIA: UMA COMPARAO
Emisses de vrias fontes se concentram no incioda vida de uma hidreltrica, e o efeito estufa queprovoca para gerar energia tem um perfil temporalbem diferente do perfil das emisses causadas pelaproduo da mesma quantidade de energia a partirde combustveis fsseis. As emisses em uma bar-ragem ocorrem at vrios anos antes de ela comeara produzir energia, resultando tambm da fabrica-o de cimento e ao empregados na sua constru-o. A liberao de CO2 pela decomposio de r-vores mortas acima da gua e do CH4 resultante dadecomposio das partes macias da vegetao ini-cial e das macrfitas mais alta nos primeiros anos,aps o enchimento do reservatrio. Qualquer pon-derao das emisses por tempo (atualmente noincludas no Protocolo de Kyoto) favoreceria a alter-nativa dos combustveis fsseis, em comparao coma gerao de energia hidreltrica.
Mesmo sem considerar as emisses decorrentesda construo da barragem e as ponderaes acer-ca do tempo, expressiva a emisso de gases deefeito estufa por hidreltricas amaznicas. Isso seaplica no s a barragens com potncia muito baixapor rea inundada, como Balbina e Samuel (verBalbina: lies trgicas na Amaznia, em Cin-cia Hoje no 64), mas tambm a barragens comoTucuru, cuja potncia por metro quadrado inun-dado superior mdia das barragens planejadasna Amaznia em geral.
SUGESTESPARA LEITURA
FEARNSIDE, P.M.Greenhousegas emissionsfrom Amazonianhydroelectricreservoirs:
The exampleof Brazils TucuruDam as comparedto fossil fuelalternatives, in
EnvironmentalConservation,24: 64-75,1997.
FEARNSIDE, P.M.Greenhouse gasemissions froma hydroelectricreservoir (Brazils
Tucuru Dam) andthe energy policyimplications,in Water,Air and SoilPollution,
133: 69-96,2002.
FEARNSIDE, P.M.Greenhouse gasemissions fromhydroelectric dams:controversies
provide aspringboard forrethinking asupposedly cleanenergy source,in Climatic
Change (no prelo).GALY-LACAUX, C.,
DELMAS, R.,KOUADIO, J.,RICHARD, S., &GOSSE, P.Long-termgreenhouse gasemissions fromhydroelectricreservoirsin tropical forestregions,in GlobalBiogeochemicalCycles,13: 503-517,1999.