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MENU Plasticidades O que a linguagem é incapaz de alcançar, o que da beleza só pode ser silêncio, o que não pode ser dito, o que poderá ser escrito. As brechas incontornáveis que a linguagem nos deixa são os caminhos que serão percorridos pela invenção, e a arte tem aí seu lugar privilegiado. A experiência poética localiza-se, assim, em um litoral: ela escoa nos sulcos abertos pelos encontros com o estranhamento e seu exercício será de tradução, da árdua tarefa de encontrar palavras para escrever o que jamais foi dito. Lacan colocou a escritura ao lado do real e de um real que só poderá ser escrito a partir das suas peças soltas, fragmentadas e descontínuas. Taub, por sua vez, propõe que para escrever precisamos parar de pensar, que escrever está muito mais próximo do corpo que do pensamento: a intrusão da palavra no silêncio, a amplidão do silêncio na palavra, a abertura de uma ferida, ou o choque de um significante com o corpo. A produção de um ruído, um incômodo incapaz de ser capturado totalmente pela linguagem, que vaza e escapa pelo corpo, que nos comove nesse algo de inumano que aqui ganhou o nome de beleza, mas que também podemos chamar de desejo. Os enlaces e desenlaces entre beleza, linguagem e escritura são trabalhados nestas treze teses de Emmanuel Taub, filósofo e escritor argentino, que traduzi para o Plasticidades. Taub é autor de Mesianismo y redención: prolegómenos para una teología política judía, editor da Hecho Atómico e mantém uma conta bacaníssima no Twitter: <https://twitter.com/emmanueltaub>. Boa leitura! Flávia Cera Treze teses sobre a beleza, a linguagem e a escritura I. Ao realmente belo não é possível chamar de beleza, porque a linguagem não é suficiente para nomear o que nos comove. A beleza é inumana – aí reside seu mistério mais estimado e sua possibilidade de subsistência. O segredo do belo é seu silêncio. O silêncio do belo é a tragédia do homem. II. Para nomear o Nome não há palavra, não há linguagem humana que consiga transmitir aquilo que pertence ao silêncio. O belo é inapreensível; por isso, a linguagem humana é seu próprio limite. A totalidade do belo é inacessível para nossas linguagens. Neste sentido, a beleza é um universo para si, aberto a si mesmo. Pelas brechas daquela abertura a tarefa do homem é a tradução da beleza à linguagem. III. 1

Emmanuel Taub - Treze teses sobre a beleza, a linguagem e a escritura

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Tradução de Flávia Cera (Plasticidades)

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Page 1: Emmanuel Taub - Treze teses sobre a beleza, a linguagem e a escritura

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PlasticidadesO que a linguagem é incapaz de alcançar, o que da beleza só pode ser silêncio, o que não podeser dito, o que poderá ser escrito. As brechas incontornáveis que a linguagem nos deixa são oscaminhos que serão percorridos pela invenção, e a arte tem aí seu lugar privilegiado. Aexperiência poética localiza-se, assim, em um litoral: ela escoa nos sulcos abertos pelos encontroscom o estranhamento e seu exercício será de tradução, da árdua tarefa de encontrar palavraspara escrever o que jamais foi dito.

Lacan colocou a escritura ao lado do real e de um real que só poderá ser escrito a partir das suaspeças soltas, fragmentadas e descontínuas. Taub, por sua vez, propõe que para escreverprecisamos parar de pensar, que escrever está muito mais próximo do corpo que do pensamento:a intrusão da palavra no silêncio, a amplidão do silêncio na palavra, a abertura de uma ferida, ouo choque de um significante com o corpo. A produção de um ruído, um incômodo incapaz deser capturado totalmente pela linguagem, que vaza e escapa pelo corpo, que nos comove nessealgo de inumano que aqui ganhou o nome de beleza, mas que também podemos chamar dedesejo.

Os enlaces e desenlaces entre beleza, linguagem e escritura são trabalhados nestas treze teses deEmmanuel Taub, filósofo e escritor argentino, que traduzi para o Plasticidades. Taub é autor deMesianismo y redención: prolegómenos para una teología política judía, editor da Hecho Atómico emantém uma conta bacaníssima no Twitter: <https://twitter.com/emmanueltaub>. Boa leitura!

Flávia Cera

Treze teses sobre a beleza, a linguagem e a escritura

I.

Ao realmente belo não é possível chamar de beleza, porque a linguagem não é suficiente paranomear o que nos comove. A beleza é inumana – aí reside seu mistério mais estimado e suapossibilidade de subsistência. O segredo do belo é seu silêncio. O silêncio do belo é a tragédia dohomem.

II.

Para nomear o Nome não há palavra, não há linguagem humana que consiga transmitir aquiloque pertence ao silêncio. O belo é inapreensível; por isso, a linguagem humana é seu própriolimite. A totalidade do belo é inacessível para nossas linguagens. Neste sentido, a beleza é umuniverso para si, aberto a si mesmo. Pelas brechas daquela abertura a tarefa do homem é atradução da beleza à linguagem.

III.

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A tarefa do poeta é traduzir o mundo: apresentá-lo e transformá-lo em algo próximo, humano.Traduzir a beleza em linguagem. O que resta da linguagem é o que chamamos de deserto doreal. A poesia afugenta os monstros da razão. “E é que a poesia, foi em todo tempo, viversegundo a carne”, escreveu María Zambrano. “A palavra é uma escolha entre a morte e a vida”,respondeu Franz Kafka.

IV.

Nos limites da linguagem humana, a poética se centra na experiência pela palavra, na busca defazer próprio um instante de tempo. Para construir uma poética deve-se partir daimpossibilidade da linguagem absoluta: de uma linguagem capaz de dizer tudo, de apropriar-sedo mundo-natureza. O poeta é o estrangeiro na linguagem. Em sua estrangeiridade está omistério de sua sobrevivência.

V.

Só Deus conhece seu Nome. Diante desse conhecimento se edifica o mundo da escritura: dianteda pergunta pelo Nome, o homem escreve e traduz a beleza em linguagem apreensível. Todalinguagem é imperfeita, como a pergunta pela linguagem e pelo Nome. A única marca do divinoque nos resta é a linguagem.

VI.

Se o mundo foi obra da linguagem criadora de Deus, essa linguagem é uma linguagem que nuncafoi, a contração da linguagem sobre si mesmo, o tzimtzum da palavra antes de ser dita. Comoescreve Edmond Jabès: “Tudo estava à espera de Deus. / Assim a Criação precedeu ao Criador./ …assim Deus superou a Deus na Ideia de Deus. / Tudo estava à espera do Nada e o Nadaprecedia a espera”. Deus não é o Nada, senão que habita o Nada que faz, do não lugar e dolimiar, Sua morada. Neste sentido, talvez a tristeza de Deus seja esse espaço de obscuridade ondehabita a Ideia. Por isso, a linguagem é um grito silencioso e a escritura sempre parte da perguntapela morte, por esse espaço de escuridão.

VII.

O inefável fissura a linguagem dos homens, fere-a mortalmente. É o limite humano dalinguagem diante do infinito. A linguagem se afunda, mas é a impossibilidade humana dalinguagem frente ao inefável o que arrasta a palavra consigo. O homem fere a linguagem em seulimite, e ao mesmo tempo se libera de estar atado à palavra. A história é escrita pelos que sabeme podem escrever.

VIII.

Só um corpo ferido pode sentir o belo ao qual não acede a palavra. Um corpo em estado de lutapor aceder ao inefável. O inumano do mundo-natureza é, talvez, o último refúgio dahumanidade. A poesia (e as artes) nos desumanizam da humanidade do humano, nos abrem aoinefável da beleza.

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IX.

Todo arrebatamento de tempo é belo.

X.

A batalha do homem é com o tempo, o mal é somente outra circunstância. É preciso colonizar otempo. O mal, a fome, a dor. Um a um, vamos ficando sem heróis. O tempo nos retiralentamente a fantasia: a tritura com as horas, e tudo se torna um pouco mais plano, menor.Inclusive o horizonte.

XI.

Habitar o mundo como uma batalha que foi perdida ainda antes do começo. Habitar o mundocomo uma batalha que foi perdida ainda antes da primeira batalha. A linguagem não deve sercortês, deve incomodar. É disso que se trata escrever: a linguagem deve incomodar alguém, ooutro, o mundo. O problema é que temos domesticado a linguagem antes do homem; o homemé a consequência. O desafio da linguagem é o salto do homem para além da sua próprialinguagem.

XII.

Escrever é um exercício. Na palavra, a palavra aparece. Escrever é um jogo de palavras, umevento de criação que faz do caos da linguagem um sistema de construção de mundo. Jogar comas palavras é experimentar a potência da linguagem, da criação da escritura. É um gesto contra aburocratização moderna do saber, que extinguiu a conexão divina que faz da escritura potência enão uma consequência do pensamento. A escritura é um gesto de animalidade humanizada, oude humanidade animalizada. A potência daquilo que nos foi dado como um dom, e reconstruídoatravés da humana educação. Entretanto, o erro da busca colonizadora da modernidade foiconfundir pensamento com escritura.

XIII.

É preciso deixar de pensar para escrever: deixar que o corpo se transforme em traço que arrastaa ideia e decora a página em branco. Escrever é um gesto animal filtrado pela humanidade dohomem. Aí reside sua grande virtude. É preciso ser a paixão da tinta, a dança dos músculos quequase imperceptíveis fazem do braço e dos dedos o punhal que deixa sua ferida no universo.Escritura e pensamento são duas tarefas diferentes que se complementam. Mas confundi-las deucomo resultado o mundo burocrático que habitamos. Enterramos o mistério da escritura sob asfolhas secas da máquina moderna, da disciplinarização das ciências e dos saberes. Tememos airracionalidade da potência da linguagem e a escritura, porque para sermos modernos tivemosque perder a escritura como evento sagrado. O inferno é o excesso de razão. Crer na escritura ena divindade da linguagem nos deixa o horizonte de uma linguagem por descobrir.

1 Publicado no Espacio Murena em 29/07/2014. Disponível em: <http://www.espaciomurena.com/?p=7920>.