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13 Revista do Advogado Sidnei Beneti Ministro aposentado do STJ. Advogado. M emórias Theotônicas. Sumário 1. O advogado 2. Palavra e ação 3. Os arquivos 4. O computador 5. Informática 6. Ética profissional 7. Sigilo profissional 8. Cliente de “má fama” 9. O “Livro dos casamentos” 10. As ementas do “óbvio ululante” 11. A criação do Superior Tribunal de Justiça 12. “Pode me dar na cabeça” 13. Um tanto de humor 14. Civilistas e criminalistas 15. “Máquina de arrazoar” 16. O semáforo na porta da sala 17. “Arrazoando” na siesta 18. Advogados “iam salvar o país” 19. Capricho no serviço 20. Uniformidade nas páginas gráficas 21. “Um rei na Rua Riachuelo” 22. Prazos 23. Os códigos no prazo 24. Perda de prazo e drama humano 25. Petições claras 26. Redação direta 27. Um revisor profissional 28. A aparência das petições 29. “Juiz monocrático” 30. Sustentações orais 31. Em audiência de desquite

emórias Theotônicas. - aaspsite.blob.core.windows.net · Vale a pena relembrar, ... Inseriu já na primeira edição do Código de Processo Civil (NEGRÃO, ... Lei nº 4.215, de

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Sidnei Beneti Ministro aposentado do STJ. Advogado.

Memórias Theotônicas.

Sumário

1. O advogado2. Palavra e ação3. Os arquivos4. O computador 5. Informática6. Ética profissional7. Sigilo profissional8. Cliente de “má fama”9. O “Livro dos casamentos”10. As ementas do “óbvio ululante”11. A criação do Superior Tribunal de Justiça12. “Pode me dar na cabeça”13. Um tanto de humor14. Civilistas e criminalistas15. “Máquina de arrazoar”16. O semáforo na porta da sala17. “Arrazoando” na siesta18. Advogados “iam salvar o país”19. Capricho no serviço20. Uniformidade nas páginas gráficas21. “Um rei na Rua Riachuelo”22. Prazos23. Os códigos no prazo24. Perda de prazo e drama humano25. Petições claras26. Redação direta27. Um revisor profissional28. A aparência das petições29. “Juiz monocrático”30. Sustentações orais31. Em audiência de desquite

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32. A importância do revisor e do debate colegiado33. Juiz eleitoral e quase-ministro do STF34. Amizade com Theotonio35. Aquele grupo de amigos!36. A publicação de A Linguagem do Advogado37. Uma aula na USP38. O Boletim da AASP39. Precisão doutrinária e jurisprudencial40. Dedicação aos amigos41. Um protesto contra a fúria legislativa42. “Quo Vadis?”43. Os códigos44. Mais uma nota pessoal45. Dois volumes de poesias!46. Theotonio sobrevive à própria morte Bibliografia

1 O advogado

Advogado por mais de 60 anos, Theotonio foi sempre advogado.1 Não foi professor universitário, jornalista, administrador, empresário, mas sempre advogado. Advogado intensamente militante, de-dicado, estudioso, competente e combativo.

Também uma usina de ideias, um fazedor de frases e um produtor de fatos, marcados por inteli-gência e cultura inexcedíveis.

Vale a pena relembrar, para que se perenizem, lições de utilidade perene. Afinal, exemplos clássi-cos, integrando a essência das coisas, sobrepairam à transitoriedade das contingências e vicissitudes de cada momento, servindo de orientação para a construção do futuro.

2 Palavra e ação

Ao falar, matinha fino humor e um sorriso matreiro. Pronunciava as palavras pausadamente, com todas as letras, como quem fala em sustenta-ção oral na tribuna.

Falava, agia, demonstrava, provava, com lin-guagem precisa, português absolutamente corre-

to, sem vulgaridade ou gíria, mesmo na conversa informal. Daí se compreende a razão de ser tão preciso no escrito e na sustentação oral: não pre-cisava mudar a linguagem justamente quando atuava como advogado, de modo que as palavras fluíam com naturalidade.

3 Os arquivos

Tinha arquivos imensos, com fichas que, gran-de redator e datilógrafo, de redigir direto peças processuais inteiras, sem precisar de correção, ao tempo em que um erro implicava refazer a página inteira datilografada, mantinha-os atualizados – e os exibia orgulhoso. Neles trabalhava desde a madrugada. Chegava ao escritório, no centro de São Paulo, Rua Riachuelo, ainda na escuridão do anteamanhecer. Inaugurado o metrô, passou a ir pelo primeiro trem da manhã, que tomava indo a pé de seu apartamento na Rua Brasílio Machado, em Higienópolis, até a estação Santa Cecília, para tomar o metrô até a Praça da Sé.

4 O computador

Quando começaram a usar o computador nos escritórios, comprou um, arranjou uma paciente professora e tratou de aprender. O computador era daqueles antigos, enormes. Sentado diante dele, parecia o capitão Nemo, do filme 20.000 lé-guas submarinas, executando ao órgão a “Tocata e Fuga em Ré Menor”, de Bach. Um dia perdeu a paciência com a máquina, que apelidara de “monstro”, e escreveu um saboroso texto: “Help, ou como lidar com o monstro”.2 Em uma parte ensinava a enganar o computador, disfarçando, fa-zendo de conta que não ligava para ele... e saía da mesa assobiando na direção da porta, como quem

1. Apenas no começo foi também professor secundário e inspetor do ensino público – notório, aliás, pelo rigor com que exercia a função.2. Arquivo pessoal.

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fosse embora e, de repente, retornava bruscamen-te e pressionava alguma tecla de surpresa, rindo sagaz: “Agora enganei ele!”.

5 Informática

Não informatizou o escritório, que permane-ceu artesanal e clássico até o fim. Não conheceu o processo eletrônico. Teria se aposentado diante da digitalização? O palpite é o de que não. Ia acabar aprendendo, embora reclamando ranzinza, pois sabia que o suporte material da profissão advocatí-cia mudava inexoravelmente.

Homem culto, pensaria em parodiar a célebre frase de Euclides da Cunha sobre a marcha da civilização: “Estamos condenados à informatiza-ção: ou progredimos, ou desaparecemos”. Quanta falta fazem os parâmetros de cultura brasileira daqueles tempos!

6 Ética profissional

Inseriu já na primeira edição do Código de Processo Civil (NEGRÃO, 1974a) o Código de Ética Profissional do Advogado, instituído por resolução do Conselho Federal da Ordem dos Ad-vogados, elaborado havia décadas,3 antes mesmo do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil.4

Louvava muito a redação do Código de Ética Profissional, direta, enxuta, à moda de manda-mentos bíblicos, cuja leitura se torna inesquecí-vel, e a ele constantemente recorria como segura orientação profissional.

7 Sigilo profissional

Respeitava pessoas vindas à consulta ou patro-cínio. Mantinha o mais estrito sigilo profissional.

Nunca devassava processos e clientes, próprios ou alheios. Dele nunca ouvi nenhum nome.

Uma vez teve uma renhida batalha em caso com cujo julgamento jamais se conformou. Não produziu espetáculo, mas perenizou suas razões, inclusive as críticas ao julgado, em publicação téc-nica em revista jurídica especializada.

8 Cliente de “má fama”

Sem dizer nomes, contava que certa vez um advogado lhe disse: “O seu cliente não presta”. A resposta veio fulminante: “Não tenho nada com isso, pois eu só defendo os direitos dele!”.

9 O “Livro dos casamentos”

Anotava e corrigia à mão os originais de seus códigos comentados. A editora lhe enviava textos impressos em grandes folhas, do tamanho de meia mesa de trabalho. Ia ele anotando ao lado dos textos.

Partia de anotações em um caderno à parte. O nome era pitoresco: “Livro dos casamentos”. União conjugal do texto originário com as novas notas.

10 As ementas do “óbvio ululante”

Em fichário de aço, mantinha milhares de fi-chas pequenas, em que anotava jurisprudência. Dois verbetes chamavam a atenção – e exibia-os irônico. Eram ementas de julgados. Um verbete era intitulado: “Óbvio” – com ementas que re-petiam o texto da lei, ou diziam o que ninguém nunca jamais seria capaz de questionar. Em outro verbete, o pior: “Óbvio ululante”...

Chegou a citar em escrito como exemplo de “óbvio ululante” a seguinte ementa, do Supremo Tribunal Federal (STF): “Ao início do processo, cada parte alega que tem razão; mas só no fim do processo é que o Tribunal dará razão a quem efetivamente a tem’ (RTJ 103/465)”.

3. Código de Ética Profissional, aprovado pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em sessão de 25/6/1934.4. Estatuto da OAB, Lei nº 4.215, de 27/4/1963.

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E comentou: “Ora, acho que não preciso dizer mais nada, não é? É duro ter que chegar até o Su-premo para ouvir isso!” (NEGRÃO, 1988, p. 86).

11 A criação do Superior Tribunal de Justiça

Tinha incontido orgulho de haver apresentado a sugestão de criação do Superior Tribunal de Jus-tiça (STJ) (NEGRÃO, 1974b, p. 3-7),5 reservando ao STF apenas a matéria constitucional e umas poucas matérias relativas aos poderes do Estado.

Via necessidade de simetria, no âmbito infra-constitucional, de um órgão superior competente para a Justiça Comum – estadual e federal – com o Tribunal Superior do Trabalho, o Tribunal Su-perior Eleitoral e o Superior Tribunal Militar, cujo nome, reverenciando, embora, a vetusta tradição de tribunal superior mais antigo do Brasil, mudaria para Tribunal Superior Militar – assim como tam-bém alteraria o nome Supremo Tribunal Federal para Supremo Tribunal Nacional, por julgar tanto matérias provindas da Justiça federal quanto da estadual e das demais.

12 “Pode me dar na cabeça”

Advogando ele muito no 1º Tribunal de Alça-da Civil, quando fui nomeado para esse tribunal, deixando o Tribunal de Alçada Criminal, em que não patrocinava nada, sem que eu perguntasse, disse-me, direto e firme:

“Não se preocupe quando julgar meus processos; ignore meu nome neles e julgue como você sempre faz; se precisar me ‘dar na cabeça’, assim faça; vou ler e, se não me convencer, procurarei recorrer”.

13 Um tanto de humor

Em volume de poesias, humor e ironia pipo-cam em textos de brilho de poder verbal sintético e fulgurante, de que se extraem três excertos:

“Hélio Bicudo e José Frederico Marques dis-cutem violentamente pelo ‘Estadão’. A Associação dos Advogados de São Paulo deve ou não patamar partido? Eis o meu voto:

Que a Associaçãonão meta o bicoentre Bicudoe Frederico”.6

“Discurso inoportuno.Burraldo faz um discurso E não sabe onde parar.Que diabo de amigo urso Mandou Burraldo falar?”.7

“A vida explodindo, lá fora, e eu, aqui dentro,citando o Código Civil e Pontes de Miranda!...”.8

14 Civilistas e criminalistas

Advogado civilista, administrativista e pro-cessualista civil, Theotonio admirava muito os criminalistas – advogados e juízes e promotores, muitos dos quais seus amigos próximos, como Manoel Pedro Pimentel, Raymundo Paschoal Barbosa, Márcio Thomaz Bastos, Arnaldo Ma-lheiros Filho, e havia trabalhado com o professor Noé Azevedo,9 que, sendo grande catedrático de Direito Penal, advogava no cível e apenas espo-radicamente no criminal.

Sustentava enfático, contudo, opinião peculiar, ou seja, a de que a experiência no cível contribua para o aperfeiçoamento do advogado e do juiz do criminal, porque quem trabalha no cível conhece os dois lados, ao passo que quem se limita ao penal cor-

5. Texto aprovado pelo Conselho do Instituto dos Advogados de São Paulo.6. “Neutralidade”, em Todo homem é uma constelação, ed. part., p. 17.7. “Discurso importuno, num almoço de aniversário do dia 11 de agosto” em Todo homem é uma constelação, p. 21.8. “Fragmentos”, em Todo homem é uma constelação, p. 64.9. Fui aluno do professor Noé Azevedo no terceiro ano da Faculdade de Direito da USP e me impressionou muito a imensa consideração que o meio jurídico lhe devotava, ao assistir na faculdade à homena-gem que recebeu por ocasião da aposentadoria.

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re o risco de pender para um só deles – o advogado, porque no geral defende o acusado; o juiz, porque, de tanto ver os mesmos fatos, pode contaminar-se de piedade ou de hostilidade para com os acusados.

15 “Máquina de arrazoar”

Certa época da vida, sobrecarregado de serviço, foi considerado “máquina de arrazoar”.

Chegou a produzir cinco ou seis arrazoados por dia (AZEVEDO; NOVAES FRANÇA, 1996, p. 19-22)!

16 O semáforo na porta da sala

Estando a arrazoar, fechava-se em sua sala, que tinha uma luz vermelha e outra verde à porta, como um semáforo.

Quando vermelha, ninguém entrava, nem rece-bia telefonemas – dizia que era como se fosse uma sala de cirurgia, com “paciente com barriga aberta”.

17 “Arrazoando” na siesta

Havia, contudo, coincidência em fechar a porta para “arrazoar” exatamente no horário da siesta, após o almoço. Um dia telefonei e a secretária me disse que o doutor Theotonio estava “arrazoando”. Não in-sisti. Disse que telefonaria mais tarde, mas que, quan-do ele abrisse a porta, informasse que havia percebido como ele estava “arrazoando muito bem”... pela altura do ronco!

18 Advogados “iam salvar o país”

Como dirigente da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), presidiu um Congresso de Associações de Advogados, em São Bernardo do Campo. Depois escreveu que advogados reunidos faziam muito mais que um congresso. Sincera-mente haviam se convencido de que “queriam salvar o país; só que não tomaram muito conhe-

cimento da nossa deliberação... mas a verdade é que fizemos o que estava ao nosso alcance” (NEGRÃO, 1988, p. 84).

19 Capricho no serviço

Tinha obsessão pelo capricho no serviço. No tempo em que as petições eram datilografadas, com cópias em “papel-carbono”, a correção do texto era feita com borracha! Não permitia rasuras nem entrelinhas. Dizia que o juiz confiava mais no trabalho caprichado, porque, se o advogado ti-nha sido cuidadoso com a apresentação do escrito, era indicativo de que também tinha tido cuidado em aceitar a causa e nela trabalhar, demonstrando confiança no direito do cliente.

20 Uniformidade nas páginas gráficas

Nas edições do CPC e do Código Civil (CC) insistia muito para que as notas sobre um artigo não se interrompessem no fim de uma página, para pros-seguir na outra. Um desafio terrível para o pessoal de editoração e gráfica. Não admitia o contrário.

21 “Um rei na Rua Riachuelo”

De vez em quando saia à rua para tomar um café no bar em frente, seguindo o velho hábito do advogado antigo – cujo escritório não tinha copa, garçons, nem mesmo modesta máquina de fazer café...

Ao café levava visitantes do escritório e ajunta-va outros ao caminhar na rua. Quando queriam pagar, o pessoal do café se recusava a receber. E vinha o decisum com humor e vaidade: “Não adianta querer pagar; nesta rua, mando eu!”.

22 Prazos

Como todo advogado, era um escravo dos pra-

zos. Mais que isso, era aterrorizado pelos prazos.

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Certa vez, sendo juiz auxiliar da Corregedo-ria-Geral, quando lhe telefonei dizendo que ia mandar-lhe, por um portador do tribunal, um tex-to para rever, pediu-me permissão para, pelo mes-mo portador, enviar-me uma petição para protoco-lar. Veio um envelope, que, nas correrias do serviço, não abri. Era fim de semana. Lembrei-me depois, já em casa, e fiquei aflitíssimo, imaginando: e se for uma petição com prazo? Na segunda-feira vi que era uma simples sugestão de redação de nor-ma de serviço, destinada ao corregedor. Depois lhe contei minhas preocupações no fim de semana. A resposta foi bem ao seu feitio: “Você acha que eu mandaria uma petição com prazo por meio de um portador? Essas petições vou protocolar pessoalmente, pois só assim fico tranquilo”.

23 Os códigos no prazo

Tinha como ponto de honra publicar seus có-digos no prazo, ao início do ano. Reviu as provas do CPC e do CC até as vésperas do falecimento. Sabia da gravidade da saúde.

Nos últimos dias de vida, obstinava-se em findar os trabalhos no tempo combinado. Cumpriu, rece-bendo-os já impressos no leito do hospital, no prazo!

24 Perda de prazo e drama humano

Certa vez me contou que um colega advogado adversário, que havia perdido um prazo para con-testar, procurou-o dizendo que havia se atrapalha-do devido a grave enfermidade em família e pôs em sua consciência alegar, ou não, a intempesti-vidade. Prezava o colega, confiava em sua serie-dade, conhecia a situação, sabia que era verdade, tanto que logo se seguiu o óbito.

O que fazer? Procurou o cliente, explicou o ocorrido. O cliente lhe perguntou: mas, se não alegar, vamos ganhar? Claro que não podia garan-tir. Mas desfilou os argumentos de sua convicção jurídica e humana e o cliente concordou em cor-

rer o risco de não alegar. Ganharam a causa. Mas viveu todo o tempo sob enorme preocupação.

Já aposentado na magistratura, posso confes-sar que, depois desse relato, passei a não controlar ex officio a tempestividade, se não questionada, imaginando sempre que, por trás da omissão de alegação, poderia haver um drama de consciência profissional como aquele.

25 Petições claras

Recomendava petições claras, curtas, fáceis de ler, começando com a afirmação do que pedia e terminando com a repetição, como se fosse um dispositivo de decisão.

Considerava o juiz destinatário sempre um “mau leitor”, devido à quantidade de serviço e à fadiga de leitura.

E concluía que toda petição “devia facilitar a vida do juiz”, oferecendo-lhe leitura cômoda, por-que assim beneficiava o cliente!

26 Redação direta

Na redação, ia direto ao assunto. Reto, sem desvios. Fugia da demasia de citações e transcri-ções. Não perdia o ritmo do texto por nada, nem com nada, muito menos inserções e digressões.

Não usou jamais a “colagem” ou pura transcri-ção de julgados, mas sempre resumiu o essencial. Quando transcrevia, fazia-o precedido de uma síntese – como havia aprendido nas maravilhosas ementas antigas da Revista dos Tribunais, na es-cola do mestre revisor-geral Afro Marcondes dos Santos.

27 Um revisor profissional

Aliás, como havia sido um grande revisor de impressão tipográfica, usava sinais gráficos espe-cializados de revisão, o que fazia a delícia dos pro-fissionais revisores das editoras.

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28 A aparência das petições

Odiava os períodos longos, as petições com margens “vazadas” variadas, em labirinto sinuoso, e os destaques e grifos em cores e letras de ta-manhos diversos. Achava que isso descontrolava a leitura do juiz, podia enervá-lo e prejudicar o patrocínio.

Quanto à extensão dos parágrafos, vivia falan-do que os parágrafos eram necessários, para que o leitor pudesse respirar. E deviam ser de aproxima-damente a mesma extensão, de modo que o leitor psicologicamente se cadenciasse, tornando mais cômoda a compreensão. Descobri esse conselho também em Winston Churchill, que, além de po-lítico, foi também um grande escritor.10

29 “Juiz monocrático”

Não usava a expressão “juiz monocrático”, por uma muito pitoresca razão cheia de humor: dizia que a expressão lhe apresentava à mente a ima-gem de um magistrado com “cara de mono...”.

30 Sustentações orais

Nas sustentações orais era direto, afiado, es-banjando convicção no direito do cliente. Sua re-gra era: se o advogado não mostrar que acredita no que pede, como vai pretender que o juiz creia?

Começava com saudação singela – dessas de “Eminentes ministros, ou desembargadores” e só. E falava pouco, fluente, concentrado, não vacila-va em palavras e frases, e não esgotava o tempo.

Mostrava conhecer muito o caso. Sempre co-meçava resumindo a causa e a pretensão. Passava a argumentar incisivamente sobre o direito, sim-plificando-o, sem digressões ou dúvidas, e ubican-

do-o expressamente nos artigos da lei, que citava de cor. E terminava com pontaria certeira, dizendo sinteticamente como devia ser julgado em prol do cliente. Praticamente construía um curto dispo-sitivo para o julgamento, como que sugerindo o dispositivo para o julgador – o que entendia utilíssimo, especialmente quanto a dispositivos complexos.

Naqueles tempos, toda sustentação era de pé. Quando viu o pleito de o advogado falar sentado, foi contra. Nunca lhe passou pela cabeça susten-tar prerrogativas quanto a isso, a ele, que por elas tanto zelava. Extremamente direto como profis-sional de resultados advocatícios em prol do clien-te, simplesmente pensava, prático, que o tribuno se qualificava melhor respeitando os julgadores e que seus argumentos eram mais veementes e con-venciam mais ao falar de pé...

31 Em audiência de desquite

À época em que a audiência de tentativa de conciliação no desquite consensual se fazia com a presença das partes, Theotonio apareceu na vara de que era eu titular, a 1ª da Família da Capital, para a audiência de desquite com uma procura-ção de um dos cônjuges. Explicou a impossibi-lidade de vinda pessoal, pois estava no exterior, em tratamento de grave enfermidade. A petição era absolutamente fiável, com poderes específicos translúcidos para a audiência de tentativa de con-ciliação, deixando clara a vontade irreversível de desquite.

Fiquei na dúvida. Perguntei a ele se já tinha visto algum caso assim. Ele disse que não, mas

10. Vide Churchill, Minha juventude, tradução de Carlos Lacerda, 2. ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 225, citado em meu escrito sobre a “Deontologia da Linguagem do Juiz” (BENETI, 1992, p. 138).

Nas sustentações orais era direto, afiado, esbanjando convicção no direito do cliente.

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que sustentava legítimo, em casos excepcionais, como aquele. Troquei ideias com o promotor de Justiça – Washington Epaminondas M. Barra – que vinha comigo dinamizando os trabalhos em vara muito pesada. E realizou-se o desquite. Ouvi o “casal” em conjunto e separadamente. Mantive a seriedade necessária ao caso, mas ria por dentro ao ver Theotonio manifestar-se como se fosse côn-juge! E saíram desquitados.

32 A importância do revisor e do debate colegiado

Aposentado como desembargador, Cornélio Vieira de Moraes Jr. foi convidado a compor o es-critório de Theotonio Negrão. A admiração vinha de antes, quando ambos haviam sido juízes do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo. Lem-bro-me do elogio a Cornélio, seu juiz-revisor no tribunal, muito rigoroso em examinar e debater, não deixando passar nada: “É um grande revisor, mesmo quando concorda, ajuda muito a evitar al-gum erro, de leitura dos autos, ou de interpretação do Direito”.

Um qualificado elogio, não só a Cornélio, mas também reconhecimento da importância do julgamento colegiado, razão pela qual os tribu-nais recursais são coletivos, visto que o trabalho em grupo mitiga o risco de algum equívoco in-dividual, sob aquilo que uma vez chamei de “ti-rania do relator” – como se fosse um julgamento unipessoal – ou “monocrático”, termo reprovado por Theotonio! O sistema processual, contudo, infelizmente caminha mais e mais no sentido da “descolegialidade” do julgamento recursal, com tantos males como os que se veem no dia a dia jurisdicional, na atualidade em todos os tribunais.

33 Juiz eleitoral e quase-ministro do STF

Tinha orgulho imenso de haver sido juiz do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo.11 Seus

julgamentos, aliás, haviam-no tornado notório para a classe política, que considerou seu nome o mais indicado para o cargo de ministro do STF.

Recusou, polidamente, a indicação. Pensava nas dificuldades de deixar a banca advocatícia, abandonar casos em andamento, frustrar espe-ranças de clientes... E deixar São Paulo, mudar de vida... Nunca se arrependeu de afastar a indica-ção, que teria a pacificidade da nomeação.

Infelizmente o Brasil perdeu um ministro que teria muito contribuído para a ordem jurídica nacional.

34 Amizade com Theotonio

Minha amizade com Theotonio começou com um amigo comum, meu compadre, padri-nho de meu filho Sidnei, Antonio Joaquim de Oliveira, de quem havia sido juiz substituto em Rio Claro, no início da carreira – tendo a ami-zade depois justificado uma das raras entrevistas... a um singelo jornal de alunos da Faculdade de Direito da PUC-SP, dada a minha filha, atual-mente advogada, Ana Carolina e ao colega, hoje magistrado, Fábio Pimenta, ambos maravilhados de perguntar ao grande autor dos comentários que a totalidade dos estudantes conhecia!

Foi o juiz Antonio Joaquim, aliás, então titu-lar da 6ª Vara Cível da Capital, quem me deu a notícia de que ia sair a primeira edição do Códi-go de Processo Civil de Theotonio Negrão. Por telefone, me disse: “Pode parar de fichar as revistas de jurisprudência; agora Theotonio trabalha por nós!”. Daí por diante colaborou com sugestões de julgados e comentários. Também por vezes co-laborei. Recebi as sucessivas edições dos códigos com dedicatórias de Theotonio, que, em ultra-ati-

11. No Tribunal Regional de São Paulo foi juiz suplente, classe ju-rista, nos biênios de 1953 a 1954, 1955 a 1956 e 1977 a 1978, e juiz titular na mesma classe nos biênios 1979 a 1980 e 1981 a 1982. Entre seus julgados como relator, esteve o registro da candidatura do pro-fessor Fernando Henrique Cardoso ao Senado Federal.

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vidade da própria vida, deixou meu nome na lista de destinatários permanentes de novas edições, o que vem sendo mantido por José Roberto Gouvêa e a competente equipe de juristas, que prossegue no excelente trabalho.12

35 Aquele grupo de amigos!

Havia um grupo de amigos, casais que saíam nos fins de semana para jantar, geralmente comer uma pizza no bairro do Bixiga, na Cantina Espe-ranza, que infelizmente não existe mais. E para conversar à vontade. Ao que me lembro, eram par-ticipantes frequentes Theotonio Negrão, Sydney Sanches, Antonio Joaquim de Oliveira, Cornélio Vieira de Moraes e Carlos Antonio Antonini. Ha-via outros, constantes ou eventuais. Que grupo! Ainda juiz do interior, não cheguei a participar. Se pudesse vir, seria capaz de pagar ingresso para simples presença!

36 A publicação de A Linguagem do Advogado

A meu convite, um dia deu uma aula na Faculdade de São Bernardo do Campo. Uma joia: A Linguagem do Advogado (NEGRÃO, 1988, p. 83-90). Ao final, foi aplaudido de pé.

Degravada a aula pelos estudantes, achou difí-cil corrigi-la, ante a linguagem coloquial, para pu-blicar. Insisti e fiz a primeira revisão. Recebendo-a, fez ele a segunda e submeteu a seu genro para a terceira. Devolveu-me, com bilhete dizendo que não valia a pena publicar. Revi de novo e ele no-vamente reviu e me devolveu. Relendo-a, desco-bri duas ou três imprecisões. Lembro-me bem de

uma: uma referência a sufixo, quando devia ser prefixo. Informei a ele.

Veio, então, novo bilhete incisivo assim: “Se de-pois de todas essas revisões ainda há defeitos como esse, não é para publicar”. Resolvi definir de vez. Às vésperas de ir para a Alemanha por longo perío-do, reconvim com um fato: enviei o texto à Revista dos Tribunais e fui para a Alemanha deixando um bilhete a Theotonio, mais ou menos nestes termos: “Reli, enviei à publicação e fui para a Alemanha. Se não concordar, telefone à RT recolhendo”.

Quando voltei, estava publicado. Uma bela e benfazeja aula, com conselhos práticos, que vale a pena ler.

37 Uma aula na USP

Deu uma aula com conselhos práticos de redação, oratória e conduta advocatícias a meu convite no curso de Instituições Judiciárias, então disciplina optativa do quarto ano na Faculdade de Direito da USP, em convênio com a Escola Pau-lista da Magistratura – de cuja cocoordenação era incumbido, como assistente voluntário, ao tempo do curso de doutoramento.

Na “Sala João Mendes” cheia, classes reuni-das, emocionou-se muito ao receber dos alunos da faculdade em que se formara13 um cartão de prata de agradecimento, que passou a lugar de destaque entre as lembranças no escritório.

38 O Boletim da AASP

Não sei se há lembrança disso, mas Theotonio foi o criador do Boletim da AASP. Em época de

12. Além de José Roberto F. Gouvêa, Luis Guilherme A. Bondioli e João Francisco N. da Fonseca.13. Turma de 1939, tendo como colegas de classe Jânio Quadros, Alfredo Buzaid, Bruno Affonso de André, José Luiz Vicente de Azevedo Franceschini, Mário Neves Guimarães, Sebastião Carneiro Giraldes, entre outros destacados integrantes do meio jurídico paulista.

Emocionou-se ao receber dos alunos da faculdade em que se formara um cartão de prata de agradecimento.

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dificuldades na circulação de exemplares de leis e jurisprudência, o boletim era o fiel conselheiro, munindo a advocacia de arsenal de legislação, juris-prudência e doutrinas atualizadas, para o dia a dia.

39 Precisão doutrinária e jurisprudencial

Sabia a doutrina em profundidade, conhecia a jurisprudência como velha companheira, sabia como redigir com clareza.

Várias vezes abusei-lhe da amizade, pedindo ajuda para a redação de um ou outro dispositivo de sentença ou acórdão mais complexo. Por isso, a ele recorri para orientar-me na discriminação de espécies de provimentos e mandados a expedir no cipoal dos dispositivos de sentenças possessórias e reivindicatórias de meu escrito sobre “Processos de Terras” (BENETI, 1968, p. 208-235).

40 Dedicação aos amigos

Era atento ao que se passava com os amigos, monitorando-os, fiel à regra de que “se os amigos não corrigem, os inimigos aproveitam”.

Uma vez, leu um texto de um advogado a quem admirava muito e o achou longo, mais de uma página sem parágrafo! Entrou em contato com ele, recomendando mudar o estilo. Um dia, estando na Alemanha, recebi uma carta dele, com um recorte de jornal, citando-me a participação estudantil em 1968 na ocupação da faculdade de Direito como presidente do Diretório Acadêmico. O bilhete era assim: “Enquanto ausente, seus ami-gos zelam por você!”.

41 Um protesto contra a fúria legislativa

Dirigindo, com os juízes Caetano Lagrasta e Wanderley Racy, e o jornalista Múcio Borges da Fonseca, a revista Decisão-Apamagis, pedi a

Theotonio uma poesia que criticava o abuso do “economês” em legislação caótica, texto de cuja existência fiquei sabendo por informação do já de-sembargador Joaquim de Oliveira. Após resistên-cia, veio ela, e foi publicada, com uma deliciosa justificativa, até mesmo da pronúncia – pois um verso “exige que se pronuncie ‘adevogado’, à boa maneira paulista”.14

O texto criticava a introdução avassaladora do “eco-nomês” e a absoluta imprecisão da redação das leis:

“Como aumentou! Antes se falava em ‘módulo’ e ‘fator K’. [...] Também se fala da legislação em ‘pro rata tempore’, o que nos faz pensar se teria sido cer-to suprimir o latim dos currículos escolares, onde logo de começo se ficava sabendo a diferença entre o ablativo e o genitivo. Mais pitoresca é a expressão ‘dia do aniversário’, pois é um aniversário que se repete a cada mês. Tudo isto leva a uma conclusão, que não deve ser esquecida: o Direito é um edifício multimilenar, onde as definições têm um significa-do preciso e tradicional, e cuja estrutura arquitetô-nica tem uma solidez granítica. O leigo que quiser fazer leis tem de recorrer a um jurisperito e tem de entender que qualquer conceito extrajurídico que ingresse no direito positivo perde as suas caracte-rísticas primitivas e passa a integrar o ordenamento jurídico, submetendo-se a seus comandos, à hierar-quia de suas normas e a seu sistema de exegese e preenchimento dos claros legislativos. Por outras palavras, o profano deve ter em mente a sábia advertência ‘Ne sutor supra crepidam’”.15

42 “Quo Vadis?”

Eis o poema crítico “Quo Vadis”, escrito em pleno regime militar:

“Por Ato Institucionalse altera a Constituição

14. A poesia “Quo Vadis?” consta do volume Todo homem é uma constelação, revista Decisão-Apamagis (1986, p. 28).15. Revista Decisão-Apamagis, revista de cultura da Associação Paulista de Magistrados (1986, p. 19-20).

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(isso, aliás, é normal, se houve uma revolução).Até aí, bem; mas, depoisvem o Ato nº 2...

E os atos Complementares; lhe seguem nos calcanhares; 40; mais 20 EmendasDa própria Constituição. Agora, já falta espaçopra fazer as corrigendas neste quadro de Picassoque é hoje a Carta da Nação.

E a sua interpretação? Quem a faz? São os juristasde japona e talabarte, os filhos de Bonaparte, tão consumados linguistas que, para eles, latrocínio é o mesmo que assassínio.16

A aumentar a confusão,leis e mais leis, às pamparras saem das prontas guitarrasdo Diário Oficial da União. Feitas por economistas...nem sequer os cabalistas, as entenderão, talvez. Entendê-las-á quem fez?Acaso alguém saberáo que é ‘módulo’ e ‘fator K’?

Vogamos ao deus-darádas leis experimentais. Não deu certo? Bastará Pedir ao Congresso mais:mais leis, e novas emendas

que calafetem as fendasdos diplomas federais.

Legislorreia tão densaparece, mais, certa doençaque jeito de governar.Amigos! Nem tanto ao mar, que mal pode o advogado,mesmo com o duro labor,saber, o pobre coitado, que leis estão em vigor.

Se um Ato complementar derroga a Constituição(na sábia interpretaçãode um jurista oracular);17 se a emenda conserta a emenda,na lei do imposto de renda; se a circular de um ministroproduz o efeito sinistrode revogar uma lei;se pode o decreto-leicassar a lei ordinária; se a alteração é diáriae agora, no fim do mês,já teremos o Ato 6,– não é melhor, afinal,que um ilustre general revogue tudo de vez?”18

43 Os códigos

Contou como veio a ideia de publicar o Código de Processo Civil e Legislação Processual Civil em Vigor – a que depois se seguiu o CC.

Em 1961 havia publicado, sob encomenda do MEC, o Dicionário da legislação federal (NEGRÃO, 1961), um alentado volume, a que se referia, com os amigos, como “O Tijolão”. Sempre nutrido do inte-resse de servir, pensava que devia oferecer ao meio jurídico e mesmo a cidadãos não juristas o volume total de leis, a baixo custo, dada a publicação oficial.

16. “Na televisão, o ministro da Guerra tinha confundido latrocínio com homicídio.”17. “O Ato Complementar nº 40, de 30.12.68, havia, por engano, alterado a Constituição.”18. Revista Decisão-Apamagis (op. cit., p. 21).

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Quando divulgado o Anteprojeto de CPC pelo professor Alfredo Buzaid, em 1962, ficou preocu-padíssimo com as alterações, imaginando, antes de mais nada, qual a repercussão que o novo diploma legal teria sobre os processos de seu patrocínio. E co-meçou a acompanhar os trabalhos da reforma, ano-tando e comentando, de início para o próprio uso. Promulgado o novo Código, em 1973, tinha pratica-mente preparado o volume que veio a ser publicado, em 1974 (NEGRÃO, 1974a). O CC, explicou, veio depois, sob parâmetro diverso, sem exaustiva exposi-ção doutrinária e jurisprudencial – embora também existente.

Ambos os códigos, atualmente atualizados se-gundo plano de colaboração estabelecido pelo pró-prio Theotonio Negrão,19 são presença obrigatória em todas as mesas de trabalho dos profissionais do meio jurídico. Ambos provieram da atividade advo-catícia e em função dela – na visão de um grande jurista que não abdicou jamais da condição de ad-vogado militante, preocupado em conhecer bem os instrumentos jurídicos para manejá-los com segu-rança em prol da defesa de seus constituintes.

Em suma: a origem de tudo situou-se no sen-so de responsabilidade profissional de um grande advogado militante, benfazejo em compartilhar seus conhecimentos, prestando auxílio a todos os profissionais do meio jurídico!

44 Mais uma nota pessoal

Impossível para mim arredar o caráter pessoal nes-ta homenagem a Theotonio Negrão, cuja amiza-de tanto me honrou. Saudei-o em nome do mode-lar 1º Tribunal de Alçada Civil (que a Reforma do

Judiciário da Emenda Constitucional nº 45/2004 fez tanto mal em extinguir), quando foi dado seu nome à Sala dos Advogados. Em nome do Tribu-nal de Justiça, falei em sua homenagem póstuma (BENETI, 2003a, p. 18; 2003b). Discursou na mi-nha posse como desembargador, representando a Ordem dos Advogados, a AASP e o Instituto dos Advogados de São Paulo (NEGRÃO, 1996, p. 341 e ss.).

E honrou-me com o prefácio de meu volume de Modelos de Despachos e Sentenças, o “Burrinho”, compreendendo o espírito da obra, cujo objetivo prático assim destacou:

“Muitos preferem o brilho das dissertações eruditas, escrevendo livros que só servem para demonstrar a cultura do autor, mas não resolvem problema algum com que se defronte o leitor em-basbacado com tanto saber”, bem compreenden-do que o autor não havia pretendido “obra de alto coturno, em que se embrenharia, com elegância e profundidade, por transcendentais problemas jurídico-filosóficos que não levam a nada e conti-nuarão insolúveis, talvez para sempre”, preferindo “ser útil, prestando serviço aos magistrados e, por extensão, à Justiça e a todos os jurisdicionados”.20

Só um grande jurista, advogado prático, mili-tante e bondoso, como Theotonio Negrão, pode-ria deixar-me esse eterno abraço de amizade, que busco, modestamente embora, retribuir-lhe com estas singelas linhas.

45 Dois volumes de poesias!

Um dia me mostrou no escritório dois volumes de poesias, pessoalmente datilografadas, formando volumes encadernados em folhas horizontais. Os nomes: Haicais? Talvez... e Todo homem é uma constelação, dedicado à “Querida filha”.

19. O trabalho iniciou-se com o acréscimo de José Roberto F. Gouvêa, que já havia trabalhado no escritório, somando-se, a seguir, a equipe de juristas já mencionados. 20. Prefácio (BENETI, 2004, p. VII).

Pensava que devia oferecer ao meio jurídico e a cidadãos não juristas o volume total de leis.

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Disse que havia escrito em muitos momentos da vida, por diletantismo, sem se considerar um poeta. Mas eram poesias muito boas. Muitas par-nasianas, perfeitas. Pedi os volumes. Recalcitrou muito, mas afinal o mandou, com uma dedica-tória de humildes embargos declaratórios anteci-pados,21 e garantiu minha promessa de aguardar muito tempo para divulgar.

Uma das poesias era de emocionada despedi-da de vida. Citei-a na homenagem póstuma pres-tada pelo TJSP. E Theotônio fez uso da palavra, na última sustentação oral naquela tribuna por ele tantas vezes ilustrada:

“Adeus!Pois que é hora de partir,e tenho de ir-me embora,farei força prá sorrir,enquanto minha alma chora. O destino, em sua trama,nos separa a todo instante,

mas só aquele que amanunca se sente distante.Na hora da despedida,aqui deixo, amigos meus,a saudação comovidado meu mais cordial adeus”.22

46 Theotonio sobrevive à própria morte

Theotonio Negrão nasceu a 6/4/1917, em Piraju,

Estado de São Paulo, e faleceu a 20/3/2003, em

São Paulo, capital. Seu nome permanece à fren-

te do edifício da sede da AASP. Seus ensinamen-

tos e o fulgor de sua personalidade residem para

sempre em sua obra, que prossegue, e no coração

dos familiares e amigos, que jamais o esquecem,

revivendo-o a cada instante.

Redigindo estas Memórias Theotônicas vejo-o

presente nos seus códigos em minha mesa de tra-

balho. Recordo-lhe a voz, revejo-o em seu escri-

tório. Que pena que se foi. Quanta falta faz aos

familiares, aos amigos, à intelectualidade jurídica

nacional e ao próprio país.

Vale a certeira frase de Agrippino Grieco (1931):

“Os Mortos, não raro mais vivos que os vivos!”.

21. “Meu caro Sidnei: ‘Fiat voluntas tua’. Atendo ao seu pedido. Aí estão os haicais. Peço desculpa por eles. Alguns, pelo menos, mere-ciam ser destruídos. Outros podiam ser melhorados (ficará para a próxima vez...) Um abraço do Theotônio. 24.4.97”.22. “Adeus!” em Todo homem é uma constelação, p. 70, arquivo pessoal.

Bibliografia

AZEVEDO, Erasmo Valladão; NOVAES FRANÇA. Vocação

para a atualidade. Tribuna do Direito, p. 19-22, jun. 1996.

BENETI, Sidnei. Processos de Terras. RePro, v. 41, p. 208-235,

jan./mar. 1968.

______. Deontologia da Linguagem do Juiz. In: NALINI,

José Renato (Org.). Curso de deontologia da magistratura.

São Paulo: Saraiva, 1992.

______. Saudades de Theotônio Negrão. Tribuna do Direito,

São Paulo, maio 2003a.

______. Homenagem a Theotônio Negrão. Discurso no Tri-

bunal de Justiça do Estado de São Paulo, em 11/6/2003b,

Revista dos Tribunais, 819/745-757; Revista Forense, v. 372,

p. 387-399.

______. Modelos de Despachos e Sentenças. 6. ed. São Paulo:

Saraiva, 2004.

GRIECO, Agrippino. Vivos e mortos. Rio de Janeiro: Schmidt, 1931.

NEGRÃO, Theotonio. Dicionário da legislação federal. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, Departa-mento Nacional de Educação, 1961.

______. Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor. São Paulo: Revista dos Tribunais; Saraiva, 1974a.

______. Uma nova estrutura para o Judiciário. RT-Informa, 1ª quinzena jul. 1974b, p. 3-7.

______. A Linguagem do Advogado. RePro, v. 49, p. 83-90, jan./mar. 1988.

______. Revista de Jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, v. 176, p. 341 e ss., jan. 1996.

REVISTA Decisão-Apamagis, Associação Paulista de Magis-trados, v. 3, out. 1986.