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1 Empreendedorismo pela Ótica da Teoria Ator-Rede: Explorando Alternativa às Perspectivas Subjetivista e Objetivista Autoria: Dany Flávio Tonelli, Mozar José de Brito, André Luiz Zambalde RESUMO. O objetivo é analisar o empreendedorismo explorando as implicações dos pressupostos teórico-metodológicos oportunizados pela Teoria Ator-Rede (TAR). Antes disso, buscando oferecer uma visão geral acerca da teoria do empreendedorismo, consideramos duas perspectivas teóricas: uma subjetivista e outra objetivista. A subjetivista privilegia o indivíduo, juntamente com as suas habilidades e seus traços inerentes de personalidade. Sob esse ponto de vista, o comportamento empreendedor é um processo que acontece de dentro para fora, ou seja, ele resulta de impulsos naturais e/ou de experiências acumuladas que se refletem nos ambientes onde as pessoas atuam. Já a perspectiva objetivista atribui as causas para o surgimento de comportamentos empreendedores aos aspectos materiais dos contextos. Ao contrário do ponto de vista anterior, a perspectiva objetivista considera que o empreendedorismo acontece de fora para dentro, ou seja, ele é resultante de causas exteriores que, por sua vez, passam a moldar as atitudes dos indivíduos conforme as necessidades impostas pelos espaços e recursos a eles disponibilizados. Considerando ambas as perspectivas, surge então uma limitação central que se coloca em torno da percepção assimétrica da realidade. Essa percepção diminui a importância do outro lado na análise acerca das iniciativas empreendedoras. A ótica da TAR rompe com essa dicotomia por meio do conceito de simetria. Partindo do Programa Forte de Sociologia do Conhecimento de David Bloor (1976), o tipo de simetria proposto pela TAR permite o entendimento de que, a priori, sociedade e natureza são constituintes do mesmo plano ontológico (Latour, 2005; Latour & Woolgar, 1997). Assim, todas as entidades são consideradas híbridas, ou seja, constituídas simultaneamente de subjetividade e de objetividade indissociáveis. Aqui está a diferença fundamental entre aquilo que existe na literatura habitual acerca do empreendedorismo e a visão oportunizada pela TAR. Algumas implicações refletem: (i) a perda de foco sobre os traços da personalidade de um lado e o contexto de outro, uma vez que a dinâmica das iniciativas passa a ser sempre investigada como ações coletivas e construção de performatividades e (ii) o entendimento de que para haver empreendedorismo é necessário haver também mobilização de atores humanos e não-humanos mediante o recrutamento de aliados que passam a integrar um movimento negociado e translacional. O descortinar da ação possibilita perceber conexões múltiplas de elementos, tais como políticos, sociais, econômicos, culturais, científicos e tecnológicos, dentre outros, todos vindos à tona por meio de uma imensa rede heterogênea. O seguir a ação tem o potencial de reintegrar perspectivas subjetivista e objetivista por meio de descrições multidimensionais e atentas aos mais diversos aspectos da realidade. A partir disso, a compreensão das ações coletivas de onde surgem os empreendedores emerge não mais como uma leitura parcial, alheia e imposta de dentro pra fora ou de fora para dentro, mas como resultado do êxito (ou fracasso) dos processos coletivos de interação, interpretação, negociação e resignificação.

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Empreendedorismo pela Ótica da Teoria Ator-Rede: Explorando Alternativa às Perspectivas Subjetivista e Objetivista

Autoria: Dany Flávio Tonelli, Mozar José de Brito, André Luiz Zambalde

RESUMO. O objetivo é analisar o empreendedorismo explorando as implicações dos pressupostos teórico-metodológicos oportunizados pela Teoria Ator-Rede (TAR). Antes disso, buscando oferecer uma visão geral acerca da teoria do empreendedorismo, consideramos duas perspectivas teóricas: uma subjetivista e outra objetivista. A subjetivista privilegia o indivíduo, juntamente com as suas habilidades e seus traços inerentes de personalidade. Sob esse ponto de vista, o comportamento empreendedor é um processo que acontece de dentro para fora, ou seja, ele resulta de impulsos naturais e/ou de experiências acumuladas que se refletem nos ambientes onde as pessoas atuam. Já a perspectiva objetivista atribui as causas para o surgimento de comportamentos empreendedores aos aspectos materiais dos contextos. Ao contrário do ponto de vista anterior, a perspectiva objetivista considera que o empreendedorismo acontece de fora para dentro, ou seja, ele é resultante de causas exteriores que, por sua vez, passam a moldar as atitudes dos indivíduos conforme as necessidades impostas pelos espaços e recursos a eles disponibilizados. Considerando ambas as perspectivas, surge então uma limitação central que se coloca em torno da percepção assimétrica da realidade. Essa percepção diminui a importância do outro lado na análise acerca das iniciativas empreendedoras. A ótica da TAR rompe com essa dicotomia por meio do conceito de simetria. Partindo do Programa Forte de Sociologia do Conhecimento de David Bloor (1976), o tipo de simetria proposto pela TAR permite o entendimento de que, a priori, sociedade e natureza são constituintes do mesmo plano ontológico (Latour, 2005; Latour & Woolgar, 1997). Assim, todas as entidades são consideradas híbridas, ou seja, constituídas simultaneamente de subjetividade e de objetividade indissociáveis. Aqui está a diferença fundamental entre aquilo que existe na literatura habitual acerca do empreendedorismo e a visão oportunizada pela TAR. Algumas implicações refletem: (i) a perda de foco sobre os traços da personalidade de um lado e o contexto de outro, uma vez que a dinâmica das iniciativas passa a ser sempre investigada como ações coletivas e construção de performatividades e (ii) o entendimento de que para haver empreendedorismo é necessário haver também mobilização de atores humanos e não-humanos mediante o recrutamento de aliados que passam a integrar um movimento negociado e translacional. O descortinar da ação possibilita perceber conexões múltiplas de elementos, tais como políticos, sociais, econômicos, culturais, científicos e tecnológicos, dentre outros, todos vindos à tona por meio de uma imensa rede heterogênea. O seguir a ação tem o potencial de reintegrar perspectivas subjetivista e objetivista por meio de descrições multidimensionais e atentas aos mais diversos aspectos da realidade. A partir disso, a compreensão das ações coletivas de onde surgem os empreendedores emerge não mais como uma leitura parcial, alheia e imposta de dentro pra fora ou de fora para dentro, mas como resultado do êxito (ou fracasso) dos processos coletivos de interação, interpretação, negociação e resignificação.

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1. Introdução O interesse pelo empreendedorismo está em pleno desenvolvimento. Como tema

promissor, ele vem atraindo pesquisadores oriundos de diversos ramos científicos. Das ciências sociais às ciências jurídicas, passando pela psicologia, economia e administração. Em todas as áreas é demonstrado que falar de empreendedorismo e do seu impacto em dinâmicas distintas da sociedade constitui alvo comum. Entretanto, ao mesmo tempo em que possibilitou a disseminação do uso do conceito, isso também contribuiu para sua maior plasticidade e fluidez (Pozen, 2008). Com efeito, a compreensão mais ampliada do empreendedorismo se desenvolve ao lado da busca por mais consolidação teórica dessa temática marcada pela transdisciplinaridade. Pretendendo seguir essa direção, o presente artigo busca explorar novas possibilidades teóricas e metodológicas que possibilitem contribuição adicional. No nosso entendimento, esse movimento passa pela superação das assimetrias que ainda marcam as perspectivas correntes acerca do empreendedorismo.

Nosso objetivo é analisar o empreendedorismo explorando as implicações dos pressupostos teórico-metodológicos oportunizados pela Teoria Ator-Rede (TAR). A Teoria Ator-Rede (TAR) se alinha ao que Peci e Alcadipani (2006) chamaram de construtivismo crítico, uma vez que ela procura rever criticamente as premissas do construtivismo social, especialmente a ênfase sobre o adjetivo social. Isso permite à TAR romper com a noção de realidades representadas por uma visão dualizada de mundo, a qual trata de modo assimétrico a natureza e a sociedade. Assim, a TAR possibilita análises menos influenciadas por polarizações voluntaristas versus estruturalistas herdadas da grande tradição sociológica. Mais do que uma ruptura teórica, A TAR oferece uma ruptura metodológica, uma vez que ela possibilita um olhar descritivo sobre o fenômeno a partir de lentes que permitem reconhecer que a ação e o movimento integram concomitantemente humanos (sociedade) e não-humanos (natureza) de modo simétrico (Latour & Woolgar, 1997).

Antes de explorar mais a fundo o objetivo central desse trabalho, duas perspectivas foram consideradas: uma subjetivista e outra objetivista. Elas permitem uma visão geral e parcial acerca do estado da arte sobre o empreendedorismo. A perspectiva subjetivista dedica maior importância à figura do indivíduo empreendedor. De modo geral, ela focaliza a atuação da pessoa, as suas habilidades, as suas capacidades inerentes e a construção de sua identidade (self). Sob esse ponto de vista, o comportamento empreendedor vem de dentro para fora, seja como manifestação de impulsos naturais, seja como o resultado de experiências acumuladas. Pela importância que ocupa, essa perspectiva constitui o coração do empreendedorismo (Kor, Mahoney, & Michael, 2007).

Em menor evidência na literatura, embora não menos importante, está a segunda perspectiva objetivista. O mais importante dessa perspectiva está no fato de ela colocar no centro das causas do empreendedorismo os aspectos materiais do ambiente onde ocorrem as iniciativas empreendedoras. Sob esse olhar, o contexto assume importância fundamental. Da ênfase nas estruturas decorre a noção de que determinados contextos materiais específicos criam as condições para o surgimento dos processos empreendedores. E isso acontece, muitas vezes, por razões acidentais, resultantes da combinação de tempo e lugar apropriados (Gorling & Rehn, 2008). Outra possibilidade dessa perspectiva é valorizar a ação estratégica de criação de ambientes favoráveis ao empreendedorismo. Um exemplo está na evidência de que spin-offs universitárias promovem empreendedorismo acadêmico (Costa & Torkomian, 2008). Uma visão geral dessa perspectiva permite perceber que o comportamento empreendedor é produto do meio, ou seja, acontece de fora para dentro.

Há uma principal limitação encontrada nessas duas perspectivas. Essa limitação está no tratamento assimétrico que ambas dedicam aos elementos subjetivo e objetivo. Isso se traduz na curta apreciação que cada lado faz acerca da influência do outro na compreensão do empreendedorismo. Essa afirmação possibilitou o espaço para a inserção de outra perspectiva

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orientada pela Teoria Ator-Rede (TAR). Ao desconsiderar a dualidade imposta pelas perspectivas iniciais, essa outra perspectiva permitiu a exploração de novas possibilidades. De modo geral, a TAR rejeita os essencialismos por meio do conceito de simetria entre subjetividade e objetividade. Isso conduz a algumas importantes implicações teóricas e metodológicas. Após explorar esse novo arcabouço, apontando as principais contribuições do estudo, ao final são apresentadas algumas reflexões, limitações e sugestões para futuras pesquisas.

2. A perspectiva subjetivista

A perspectiva subjetivista dedica maior importância à figura do indivíduo empreendedor. De modo geral, ela focaliza a atuação da pessoa, as suas habilidades, as suas capacidades inerentes e a construção de sua identidade (self). Sob esse ponto de vista, o comportamento empreendedor vem de dentro para fora, seja como manifestação de impulsos naturais, seja como o resultado de experiências acumuladas. Pela importância que ocupa, essa perspectiva constitui o coração do empreendedorismo (Kor, et al., 2007).

Isso leva à identificação de uma premissa básica, a qual está relacionada com o entendimento de que as iniciativas empreendedoras partem do sujeito, de sua inerente capacidade de percepção da realidade e de ação sobre ela (Barros, Fiúsa, & Ipiranga, 2005; Gorling & Rehn, 2008; Kor, et al., 2007). Dentro da perspectiva subjetivista, podemos encontrar duas abordagens: uma construída no âmbito da economia e outra no âmbito dos estudos comportamentais (Barros et al., 2005). Nesse trabalho, elas foram designadas como abordagens economicistas e abordagens comportamentalistas. Ao passo que na abordagem economicista a preocupação está centrada nos resultados da atuação empreendedora e seus reflexos nas economias de mercado, na abordagem comportamentalista, a preocupação está na busca por compreensão sobre a possibilidade de construção e o grau de inerência das habilidades do sujeito (self) empreendedor.

A abordagem economicista se firmou em torno do papel do empreendedor na economia. Ela tem origem nos trabalhos dos economistas Richard Cantilon (1680-1734), Jean-Baptiste Say (1767-1832) e Joseph Schumpeter (1883-1950) (Barros, et al., 2005; Pozen, 2008). Em grande parte, ela coloca em evidência os benefícios advindos da prática empreendedora para a manutenção e o crescimento das economias de mercado. Exemplo disso está no fato de Schumpeter posicionar o empreendedor como um criador de ordem na economia, restringindo com sua atuação o efeito das assimetrias de informação e das ineficiências de mercado (Görling & Rehn, 2008). Percebe-se que o foco volta-se para o resultado da ação. Na opinião de Kor et al. (2007), a ação empreendedora tem importância fundamental para as firmas e as agências governamentais, uma vez que em torno dela se encontram as dinâmicas do capitalismo moderno, se criam os investimentos, se introduzem novas tecnologias e se melhoram os padrões de vida e bem-estar das pessoas (Kor, et al., 2007).

Algumas formulações teóricas foram influenciadas por boa parte da abordagem economicista. A primeira delas, de acordo com Salem (2006) e Pozen (2008), está relacionada com a tendência em considerar empreendedor o empresário que inicia e organiza um empreendimento, administra de forma eficiente, atrai clientes e gera receita. Outro aspecto se relaciona com a pré-disposição do empreendedor para assumir riscos, investindo geralmente capital próprio e reputação em torno de uma idéia. Ao lado dessas características se encontra um conjunto de símbolos. No imaginário coletivo, criou-se a idéia do empresário como líder, inovador, pioneiro, solucionador de problemas, tomador de riscos. Ele manifesta como atributos inerentes ao seu caráter, a diligência, a persistência, o carisma, a dinamicidade e a criatividade. Uma compreensão sobre o “espírito empreendedor” necessariamente passa pelo resgate dos símbolos do guerreiro e do herói modernos (Pozen, 2008; Salem, 2006).

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O fenômeno da atuação empreendedora na abordagem economicista - visto sob a ótica da metáfora de (Latour, 2000) - é uma caixa-preta. Não há a preocupação em abrir a caixa e entender a origem da atuação empreendedora, ou como ela se manifesta nas pessoas e nas coisas, permanecendo apenas a idéia do empreendedor como um sujeito que, conforme Barros et al. (2005), possui qualidades naturais que o destacam nos negócios. Em outras palavras, a existência de pessoas com habilidades e competências extraordinárias na transformação de idéias em atitudes inovadoras, as quais repercutem positivamente na economia é um fato. Como afirma Salem (2006), assim como os artesãos que herdavam e desenvolviam habilidades manuais as quais permitiam lidar com os modos de produção da idade média, os empreendedores são vistos como privilegiados detentores de capacidades singulares para o comércio e a indústria, ocupando, assim, lugar de destaque na promoção do desenvolvimento do capitalismo.

Como exemplo dessa abordagem está o estudo de Kor et al. (2007). Partindo da noção de que o empreendedorismo é um fenômeno que surge a partir das habilidades intrínsecas do sujeito, os autores afirmam que ele deve ser compreendido a partir da ação humana propositada e inovadora dentro de um espaço social. Essa ação não necessariamente estaria relacionada com abertura de novas firmas, mas também com o fato de empregados poderem oferecer uma diversidade de serviços às organizações, como a idealização de novos produtos, introdução de novos processos administrativos e outros que efetivamente contribuem para a eficiência organizacional (Kor, et al., 2007). Essa perspectiva, embora muito disseminada, também é muito criticada. Hjorth (2005), por exemplo, afirma que a abordagem economicista marginaliza questões artísticas da criatividade, fortalecendo um olhar gerencialista e objetivista sobre um processo eminentemente subjetivista. Com isso, a abordagem economicista menospreza, por exemplo, a capacidade dos empregados de subverter a ordem estrita dos discursos sobre criatividade como produção de resultados maximizados (Hjorth, 2005).

A segunda abordagem da perspectiva subjetivista é a comportamentalista. Essa perspectiva busca responder (i) por que alguns indivíduos manifestam maior disposição ao empreendedorismo do que outros e (ii) se essas habilidades podem ser aprendidas. Sob esse ponto de vista, diversos métodos têm sido desenvolvidos com o objetivo de mensurar a pré-disposição psicológica de indivíduos para o empreendedorismo (Marcati, Guido, & Peluso, 2008). Uma das formas utilizadas está na identificação do grau de inovatividade de uma pessoa. Para Marcati e colaboradores, a inovatividade é um componente intrínseco do caráter humano e está relacionada com a personalidade empreendedora. A personalidade humana refere-se ao esquema de respostas de um indivíduo a um ambiente de estímulos e pode ser vista como um construto de imagens inter e intra-individuais, as quais tendem a ser relativamente estáveis no decorrer do tempo (Marcati, et al., 2008).

Numa visão um pouco distinta da idéia de inovatividade como atributo intrínseco do caráter humano, há também a noção de que o comportamento empreendedor pode ser aprendido com a experiência e os estímulos externos. Acerca desse processo de construção do self empreendedor a partir de estímulos externos, David McClelland oferece grande contribuição. McClelland buscava respostas para questões relacionadas com o motivo do sucesso dos chineses emigrados no comércio do sudeste asiático ou com a rapidez com que judeus se elevavam socialmente nos Estados Unidos. Partindo disso, McClelland afirmava haver três necessidades básicas variáveis de cultura para cultura chamadas de necessidade de realização; necessidade de poder e necessidade de afiliação (McClelland, 1961). Trazidas para explicar a formação do comportamento empreendedor, essas necessidades, quando potencializadas ou limitadas, também potencializariam ou limitariam atitudes empreendedoras por parte de indivíduos.

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De modo geral, a perspectiva subjetivista do empreendedorismo, especialmente aquela que decorre do abordagem comportamentalista, sugere uma conexão causal entre criatividade e desenvolvimento de aprendizado pelas pessoas empreendedoras a partir das dinâmicas variadas dos processos sociais (Kor et al., 2007). Além disso, Kor et al. (2007) chama a atenção para outro aspecto relacionado à capacidade do empreendedor de não apenas perceber oportunidades existentes, mas também a de criar oportunidades por meio de suas interações com clientes, tecnologias e outros stakeholders. É importante frisar que na perspectiva subjetivista, ambas as abordagens compartilham uma premissa em comum. Essa premissa está relacionada com a compreensão de que iniciativas empreendedoras são dirigidas a partir de ações humanas intencionais e meta-orientadas (Görling & Rehn, 2008).

Alguns problemas decorrem da predominância da perspectiva subjetivista. No que se refere à criatividade, o foco dos estudos tem sido direcionados à busca de como aumentar os resultados e a utilidade da criatividade organizacional e não em descrever as complexidades do processo criativo. Nessa perspectiva, criatividade tem como meta manipular as variáveis do contexto para maximizar os resultados e a utilidade (Driver, 2008). Driver (2008) faz uma imersão na teoria psicanalítica com o objetivo de investigar como os discursos sobre criatividade produzem e são produzidos pela atuação consciente e inconsciente das pessoas na construção de sua subjetividade. Os argumentos desenvolvidos pela autora sugerem a exploração dos espaços, os quais não são apenas espaços físicos, mas também espaços discursivos, por meio dos quais tem sido possível refletir sobre como as pessoas percebem as outras. A complexidade envolta no processo de criatividade a partir dos espaços de interação entre pessoas criativas e outras que passam a ter acesso a essa criatividade, embora de modo nenhum promova um afastamento da perspectiva subjetivista, inicia uma abertura de possibilidades de exploração a partir dos processos coletivos de geração de criatividade, em vez do foco centrado nas habilidades criativas individualísticas (Driver, 2008).

Além se afastarem da abordagem subjetivista, alguns autores promovem duras críticas a ela. Para Görling e Rehn (2008), por exemplo, o maior problema do discurso subjetivista decorre da manutenção da idéia arquetípica voltada à compreensão da ação do agente empreendedor. Sob esse enfoque, a ação é idealizada a partir da capacidade da pessoa empreendedora em identificar oportunidades e em agir intencionalmente na concretização de idéias ou na introdução de novos negócios no mercado (Görling & Rehn, 2008). Na opinião desses autores (p.94) esse fato reduz o campo de estudos sobre o empreendedorismo em torno dos limites impostos pelos conceitos como potencial, oportunidade e descoberta. O uso irrefletido e idealístico desses conceitos limita o avanço do campo do empreendedorismo. A compreensão do empreendedorismo, portanto, deve passar inclusive pela perspectiva objetivista, a qual focaliza o outro lado da realidade, o que descortinaria possibilidades plenas para avanços (Görling & Rehn, 2008).

3. A perspectiva Objetivista

Em menor evidência na literatura, embora não menos importante, está a segunda perspectiva objetivista (Gorling & Rehn, 2008). O mais importante dessa perspectiva está no fato de ela colocar no centro das causas do empreendedorismo os aspectos materiais do ambiente onde ocorrem as iniciativas empreendedoras.

Enquanto a perspectiva subjetivista coloca o indívíduo no centro das causas do empreendedorismo, a perspectiva objetivista se ocupa em entender a manifestação do empreendedorismo a partir das condições materiais a ele relacionadas (Cooper & Park, 2008; Gorling & Rehn, 2008). Na literatura econômica, espaços geográficos como os clusters regionais ocupam lugar de destaque no que se refere à potencialização de iniciativas inovadoras e à contribuição que eles efetivamente oferecem ao desenvolvimento econômico (Ferrary & Granovetter, 2009; Huggins, 2008; Parto, 2008; Reid, Smith, & Carroll, 2008).

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Para Cooper e Park (2008), as condições materiais do contexto revelam campos de interações sociais, de sinergias interpessoais e de ações coletivas que determinam capacidades inovativas em áreas locais específicas. Entretanto, embora haja muitas evidências acerca das influências desses espaços econômicos e relacionais, Cooper e Park (2008) afirmam que não são muitos os estudos que exploram o potencial desses contextos para a compreensão das iniciativas empreendedoras. Na mesma direção, Görling e Rehn (2008) afirmam que são raros os estudos que buscam compreender os processos empreendedores a partir das condições materiais que se reproduzem no contexto objetivo onde eles se inserem.

A partir do enfoque crítico de Görling e Rehn (2008), o conceito de potencial empreendedor tem sido desenvolvido sobre bases do que os autores chamam de idealismo metafísico irrefletido. Os fundamentos dessa crítica se posicionam contra as vertentes eminentemente voltadas para a compreensão da atuação e a construção de habilidades centradas nas características intrínsecas da pessoa, desconsiderando ou depreciando a importância das condições materiais onde os processos empreendedores acontecem. Göling e Rehn (2008) propõem um deslocamento ontológico (de uma ontologia subjetivista para uma ontologia materialista) a fim de compreender melhor as iniciativas empreendedoras. Isso requer o deslocamento do foco de análise centralizado em torno do sujeito empreendedor para os aspectos materiais e contextuais que cercam o fenômeno do empreendedorismo e favorecem o seu surgimento. O principal argumento tem a ver com a idéia de que empreendedorismo não necessariamente se refere à concepção de uma boa idéia ou à percepção de uma oportunidade, nem tampouco à noção da pré-existência de um potencial empreendedor do indivíduo. Para Görling e Rehn (2008), seria mais plausível explicar a maioria dos casos de iniciativas empreendedoras de sucesso a partir de fenômenos acidentais, de circunstâncias ao acaso que reuniram os recursos necessários em tempo e local certos.

A fim de firmar posição ao lado de uma visão materialista, Görling e Rehn (2008) pontuam as principais diferenças entre eles próprios (materialistas) e os idealistas. Ambos os lados divergem acerca do entendimento sobre a origem fundamental das coisas. Enquanto no materialismo se concebe a realidade como resultante das condições materiais do mundo, no idealismo se entende que a realidade material é vazia sem que antes haja o ato de pensar, o qual molda o mundo e lhe atribui significado (Görling & Rehn, 2008). Para esses autores, ao considerar o mundo material como resultado dos discursos em vez de causa deles, o subjetivismo idealizado privilegiou estudos metafísicos e abstratos do empreendedorismo, contribuindo para um afastamento entre teorias e realidades práticas. Como exemplo, Görling e Rehn (2008) avaliam o conceito de oportunidade. A noção de oportunidade implicitamente esconde uma categoria ontológica. Uma leitura materialista leva ao entendimento de que todas as oportunidades são contingentes e que o termo pode ser usado para representar fenômenos distintos, sem necessariamente significar que deva haver algo que os una. Em outros termos, as oportunidades são apenas representações lingüísticas: não existem antes das condições materiais que a geram. Enquanto isso, na perspectiva subjetivista, as oportunidades são pré-existentes e a capacidade de percebê-las difere de pessoa para pessoa (Gorling & Rehn, 2008).

Diversos estudos somam evidências que permitem a compreensão de que o empreendedorismo é fomentado a partir de estímulos resultantes da existência de estruturas ou contextos favoráveis (Stuart & Ding, 2006; Toole & Czarnitzki, 2007, 2009). Entretanto, Meyer (2003) afirma que, em contextos específicos, há certa limitação dos mecanismos objetivos de estímulo ao empreendedorismo. Eles não se apresentam eficientes o suficiente para estimular a criação de uma identidade empreendedora. Tais mecanismos criam, no máximo, um padrão de comportamento que pode estar mais associado com a noção deliberadamente imposta de empreendedorismo. Meyer (2003) investigou as tentativas de se criar um dado comportamento empreendedor entre cientistas e pesquisadores com o objetivo de fomentar a transferência de conhecimento para o mercado. Os resultados demonstram o

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alcance limitado dessas políticas governamentais e estratégias organizacionais. Entretanto, cientistas que a priori não estariam interessados em agir na direção empreendedora podem passar a fazê-lo. Isso habitualmente acontece porque, por meio dos mecanismos de incentivos diversos, eles começam a perceber avenidas oportunas nas quais podem desenvolver seus interesses mais importantes. Em geral, esses interesses estão relacionados com o avanço da pesquisa científica (Meyer, 2003). 4. Explorando Alternativa às Perspectivas Subjetivista e Objetivista

Uma alternativa às perspectivas subjetivista e objetivista pode ser encontrada por meio da Teoria Ator-Rede, também conhecida como sociologia da translaçãoi (Czarniawska, 2009). Ao aproximar o foco de onde de fato ocorrem as práticas cotidianas, a TAR procura compreensão sobre como elementos heterogêneos se juntam e passam a atuar por meio de redes, configurando as dinâmicas coletivas. A expressão “Ator-Rede”, segundo Law (1999), explora a tensão central em relação à noção de “ator” versus “rede”, por meio de um oximoro semiótico proposital, o qual combina e elimina a distinção entre agência e estrutura. A tensão se perde quando a idéia de “ator-rede” (com hífen) se converte numa “teoria” consistente e eufônica, capaz de ser facilmente disseminada, criticada, aplicada (John Law, 1999) e, também, transformada (J. Law, 2003). Como afirma Latour (1999), a TAR não tem o objetivo de superar o clichê estrutura versus agência. Contrário disso, a idéia original da TAR não é ocupar posição nesse debate, nem tampouco superá-lo, mas sim, simplesmente, ignorá-lo (Latour, 1999). “Ator-rede” representa uma única entidade circulante, em vez da idéia dualizada entre duas noções, micro versus macro; indivíduo versus estrutura, ou ainda, subjetivo versus objetivo (Latour, 1999).

“Ator-rede” significa a impossibilidade de existência do ator fora da rede. Os atores estão configurados conforme a posição que eles assumem. A percepção de sua existência só ocorre por meio da ligação com outros elementos humanos e não-humanos que constituem a rede. O fato de estarem imbricados em redes cria identidade aos atores e lhes provê motivações e recursos. Na rede, a priori, todos os atores (inclusive os artefatos tecnológicos) são atuantes. Fora da rede não pode haver atuação (Geels, 2005).

Assim sendo, a TAR se recusa a aceitar a idéia de que a compreensão dos fenômenos coletivos deve estar localizada dentro dos limites impostos pelas fronteiras das metáforas duais como, por exemplo, “agência” versus “estrutura” (Law, 1999). Acerca disso, Law (1999) comenta que os atributos das entidades não são intrínsecos, mas resultantes de suas relações com outras entidades. Vistos dessa forma, os atores (ou todas entidades atuantes) não têm qualidades inerentes. Elas trazem consigo atributos híbridos e inseparáveis de humanidade e inumanidade; conteúdo e contexto; sociedade e materialidade; atividade e passividade. Na a ação concreta é impossível separar uma coisa de outra. De um ou outro modo, todas as divisões são descartadas pela TAR. Embora a TAR compartilhe alguns de seus posicionamentos principais com ramos do pós-estruturalismo, com movimentos na teoria feminista e com os estudos culturais e antropologia social, Law (1999) chama a atenção para uma característica autêntica. Essa característica também ajuda a compreender o porquê da TAR se inserir numa linha construtivista crítica. Refere-se ao fato de que a TAR pode ser compreendida como uma semiótica da materialidade, o que envolve a idéia de que as entidades são produzidas nas relações. Isso se aplica também às relações com os aspectos materiais, diferentemente do que prevê o pós-estruturalismo foucaultiano, que privilegia apenas os aspectos lingüísticos e discursivos da realidade. Law (1999) afirma que a idéia de materialidade relacional capta bem a noção ontológica de materialidade implícita na TAR. Essa característica também possibilita afirmar que a TAR apresenta uma ontologia contingencialista: uma alternativa em relação à ontologia relativista e à ontologia materialista (Michael, 1996). Isso porque a TAR

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considera a realidade influenciada tanto por aspectos lingüísticos e discursivos, como também por aspectos materiais. Decorre, então, a resignação da TAR em relação ao termo social. No construtivismo social o adjetivo social e a abordagem como um todo escondem os aspectos não-sociais. Isso causa um viés semiótico de desconsiderar o lado não-humano e não-linguístico dessas dinâmicasii.

A idéia de materialidade relacional tem uma relação muito próxima com o conceito de simetria entre elementos humanos e não-humanos. Entretanto, até chegar ao ponto de considerar ontologicamente simétricos os humanos e os não-humanos, houve a necessidade de generalizar a aplicação da simetria de David Bloor (1976). O termo simetria foi inspirado no Programa Forte de Sociologia do Conhecimento (Bloor, 1976). Originalmente, ele se relaciona com dois princípios fundamentais para o estudo sociológico das ciências. O princípio de imparcialidade e o princípio da simetria. O primeiro afirma que verdade e falsidade, assim como racionalidade e irracionalidade e sucesso e falha, todos os lados dessas dicotomias devem ser explicados. Numa visão que considera que a ciência possui uma lógica e uma racionalidade internas, há a tendência de se prover explicações apenas daquilo que é socialmente considerado não verdadeiro, como a irracionalidade e o insucesso. Isso acontece, por exemplo, com a abordagem dos programas de pesquisa de Imre Lakatos (Lakatos, 1979). Lakatos, ao considerar a existência de uma lógica interna que dirige a consolidação das disciplinas, naturaliza a idéia da existência de uma racionalidade inerente em cada disciplina científica. Ao criticar a história interna da ciência, Bloor (1976: 6) afirma:

The general structure of these explanations stands out clearly. They all divide behavior or belief into two types: right and wrong, true or false, rational or irrational. They then invoke causes to explain the negative side of the division. Causes explain error, limitation and deviation. The positive side of the evaluative divide is quite different. Here logic, rationality and truth appear to be their owin explanation. Here causes do not need to be invoked.

O princípio de imparcialidade provê a base para o princípio da simetria. Bloor (1976)

afirma que o estilo da explicação deve ser simétrico. A mesma causa explicaria, por exemplo, crenças verdadeiras e crenças falsas. Assim, todas as explicações do desenvolvimento científico devem ser simétricas. Como Latour e Woolgar (1997: 23) afirmaram, “fazer sociologia para compreender por que os franceses acreditam na astrologia, mas não para compreender por que eles acreditam na astronomia” é assimétrico. “Fazer sociologia para entender o medo que os franceses têm do átomo, mas não fazê-la para a descoberta do átomo pelos físicos nucleares, isso é assimétrico”.

Latour e Woolgar (1997), buscando na noção de simetria a base moral de seu trabalho, também expandiram a idéia original de Bloor (1976). Diferentemente de Bloor, a simetria de Bruno Latour não cumpria apenas o papel de tratar, nos mesmos termos, os vencedores e os vencidos da história da ciência, mas, também, a sociedade e a natureza, a humanidade e a inumanidade (Latour, 2005; Latour & Woolgar, 1997). Resultante desse movimento, a TAR absorve a noção de que sociedade e natureza são constituintes do mesmo plano ontológico. Se de modo assimétrico é presumível considerar que apenas as pessoas podem ser agentes e performar o mundo, por meio da noção de simetria de Latour e Woolgar (1997), humanos e não-humanos são equânimes e cúmplices na geração de agenciamentos e performatividades (Marques, 2006). A performatividade explica porque (algumas vezes) os fenômenos coletivos adquirem durabilidade e perenidade (Law, 1999).

Dentro da idéia de performatividades, entidades heterogêneas são performizadas “nas” e “através” das relações nas quais elas se inserem. A heterogeneidade é central porque permite o entendimento de que os elementos são distintos e híbridos. Exemplo disso são as ideologias,

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os computadores, as políticas, a pesquisa científica e uma série de outras coisas. Todas elas são formadas concomitamente por coisas e pessoas indissociáveis. Todas alcançam performatividade porque estão inscritas em redes heterogenias de coletivos atuantes.

D´adderio (2008) possibilita um exemplo sobre como a noção de performatividade abre possibilidades de compreensão para os fenômenos organizacionais. A autora explora a questão da atuação das rotinas organizacionais e de como essas rotinas moldam o comportamento e a identidade das pessoas no interior das organizações. D´adderio (2008) também propõe mudar a ênfase das “rotinas organizacionais” como objetos monolíticos para rotinas como “sistemas gerais”, caracterizados por estrutura interna e dinâmica própria. A partir da noção de rotinas como entidades atuantes seria possível explorar melhor as dinâmicas da interação entre rotinas e o papel dos artefatos e das agências distribuídas. Sobre a idéia de agências distribuídas ou cognição distribuída, D´adderio (2008) comenta que, para compreender a cognição “em estado selvagem” é preciso ir além da análise do “indivíduo delimitada pela pele". Como, freqüentemente, cognição envolve múltiplos seres humanos colaborando e interagindo com artefatos, decorre disso a criação de sistemas locais funcionais compostos por uma ou mais pessoas em interação com uma ferramenta cognitiva. Por meio dessa abordagem, D´adderio (2008) demonstra que as propriedades das agências distribuídas entre humanos e não-humanos são radicalmente diferentes das propriedades cognitivas de uma pessoa sozinha. Vistas como artefatos dinâmicos, as rotinas são performáticas, ou seja, elas atuam, podendo criar e moldar o comportamento coletivo, impondo potencialidades e limitações à cognição das pessoas. Qualquer abordagem sobre a dinâmica das rotinas que descarta o papel das ferramentas e dos artefatos pode apenas prover, no máximo, um retrato parcial da realidade (D'Adderio, 2008).

A mesma noção de performatividade presente em D´adderio (2008), está também presente nos modelos e teorias científicas. Tais abstrações da realidade percebida não são meramente simples descrições. Em vez disso, essas abstrações transformam as coisas que elas descrevem. As pesquisas de Michel Callon mostram como a teoria econômica não apenas descreveu os fenômenos do mercado, mas criou o mercado tal qual o conhecemos (Michel Callon, 1999; M. Callon & Muniesa, 2005). Segundo Callon (1999), o Homo economicus não é pura invenção, nem tampouco, uma visão depreciada de uma pessoa normal. Ele realmente existe como conseqüência de um processo no qual a ciência econômica, como entidade performática, assume um papel ativo.

Diversos outros trabalhos se inserem na perspectiva da TAR. De modo geral, eles compartilham a idéia da influência das materialidades relacionais, além dos aspectos relacionados com as subjetividades pessoais na construção de performatividades, embora diferenças entre subjetividades e objetividades se percam por meio da noção híbrida que a realidade assume. Alguns exemplos desse tipo de abordagem estão nos trabalhos de Garud e Munir (2008), Parayil (2003) e Garud e Karnoe (2003). Nesse último, os autores investigam o empreendedorismo tecnológico, contrastando a idéia da descoberta com a prática da bricolagem. O tema é discutido com base no universo das agências distribuídas. Essa mesma perspectiva corrobora o argumento das influências circunstanciais, as quais consideram ou privilegiam não apenas os indivíduos como detentores de habilidades empreendedoras ou mesmo os contextos materiais que induzem o surgimento de iniciativas empreendedoras.

Tudo o que foi abordado abre possibilidades para a compreensão de que o empreendedorismo pode resultar de algo além de perspectivas que valorizam posições estanques. É bom explorar também a idéia de que o empreendedorismo possa ser mais bem compreendido a partir de agenciamentos mutuamente subjetivos e objetivos. Essas espécies de agenciamentos são impossíveis de serem purificadas.

5. Empreendedorismo na Ótica da Teoria Ator-Rede: Explorando Potenciais Analíticos

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Por meio do foco da TAR é possível perceber outro deslocamento ontológico, além daquele definido pelos materialistas acima. Ele acontece como alternativa às perspectivas subjetivistas e objetivistas de estudo do empreendedorismo. Isso não significa, entretanto (como bem lembra Latour, 1999), a superação do debate tradicional da sociologia entre agência e estrutura. Significa, em vez disso, deixar de lado as dualidades e concentrar-se nas dinâmicas híbridas que proporcionam performatividades. Essa discussão, levada ao âmbito do empreendedorismo, proporciona uma noção alternativa para a compreensão dessa ação coletiva.

Na perspectiva translacional da ANT, onde a realidade é contingente e as materialidades são relacionais, refuta-se o essencialismo na compreensão sobre como e por que surgem iniciativas empreendedoras. Isso quer dizer que não se reduz o entendimento ao eleger um foco privilegiado para a análise das ações coletivas: nem o foco em torno do indivíduo; nem tampouco o foco em torno dos recursos materiais que cercam as ações humanas.

Consideram-se, portanto, iniciativas empreendedoras resultantes de translações, as quais envolvem, conforme afirmam Garud e Karnoe (2003), agências distribuídas e tipos distintos de atores (humanos e não-humanos). Cada ator, entre os quais, adquire identidade ao se tornar entidade envolvida no processo, gerando inputs que resultam na transformação e consolidação de um determinado caminho emergente (Garud & Karnoe, 2003). A identidade do empreendedor é, portanto, resultante das relações nas quais ele se inscreve e que são interpostas em meio à diversidade de agentes. A fabricação da identidade empreendedora não está distinta da ação de outras entidades que podem estar em menor evidência, como, por exemplo, as oportunidades contextuais, as tecnologia disponíveis, os stakeholders e o ambiente institucional, dentre outras. Cada entidade traz consigo uma característica essencial: o hibridismo entre pessoas e coisas impossível de ser dissolvido. Cada uma está inscrita numa densa e dinâmica rede translacional. Todos os elementos que compõem a rede - assim como a própria rede - são atuantes. A dinâmica levada a cabo por essa extensa rede de agenciamentos potencializa ou limita o surgimento de iniciativas empreendedoras.

Uma importante implicação decorre dessa noção de empreendedorismo. Essa implicação vai além do foco sobre a inerência ou possibilidade de desenvolvimento de habilidades vocacionais em indivíduos, ou do foco sobre as influencias das condições materiais/estruturais impostas a eles pelas condições objetivas do ambiente no qual eles estão inseridos. Quando a existência de performatividade é levada ao âmbito da discussão, seria possível compreender, por exemplo, por que pessoas que nunca se imaginaram imersas em iniciativas empresariais são levadas a desenvolverem esse papel. Esse envolvimento não pode ser explicado por meio da perspectiva subjetivista, que consideraria o sucesso ou o insucesso desses casos focalizados em torno do fato de as pessoas manifestarem ou não características empreendedoras. De outro lado, a direção das perfomatividades que admite, a partir dos elementos híbridos e atuantes, o surgimento de iniciativas empreendedoras é inconsistente com a versão crítica materialista, que coloca o indivíduo como eterno refém da condição a ele imposta por fatores que estão fora do seu controle. Ambos os lados simplificam sobremaneira a natureza complexa acerca da qual as ações coletivas surgem e adquirem certa estabilidade, conciliando interesses diversos em torno de movimentos mais ou menos duráveis.

Há diversos exemplos da possibilidade de viabilidade dos argumentos principais defendidos nesse artigo. Escolhemos alguns estudos empíricos que focam o empreendedorismo de base tecnológica, surgidos no contexto de institutos de pesquisa. Lacetera (2006), por exemplo, em seu trabalho sobre uma série de questões relacionadas com as viabilidades dos empreendimentos lucrativos decorrentes da pesquisa científica, focaliza o sujeito pesquisador e sua própria capacidade de domínio sobre o objeto. Essa opção pode obscurecer a possibilidade de se buscar compreensão para além dos limites do indivíduo e de

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sua capacidade cognitiva de fazer decisões a favor ou contra a apropriação econômica dos resultados da pesquisa científica. Para o autor, que privilegia o foco intrínseco, poderia ser validada a hipótese da seleção adversa na qual os melhores cientistas são os piores empreendedores e os melhores empreendedores são os piores cientistas, fato esse que, ao verificar-se, encerra um dilema vocacional impossível de ser resolvido.

No segundo exemplo também vindo do ambiente da pesquisa científica, Stuart e Ding (2006) afirmam que o fato central que faz com que pesquisadores inseridos em universidades e institutos públicos se envolvam em atividades de pesquisa voltada para fins lucrativos está na socialização e legitimação desse comportamento no grupo social ao qual pertencem. Percebe-se, entretanto, sem prejuízo da argumentação sobre a dialética subjetividade-objetividade, que os autores compreendem esse processo de institucionalização a partir de uma lente que foca apenas o sujeito e o grupo social. Isso tira de cena uma gama de outras entidades que o adjetivo social esconde. Exemplos delas estão na importância das pressões políticas, da qualidade das descobertas e da potencialidade das tecnologias criadas entre outras coisas não menos importantes.

Em outro exemplo, Goldfarb et al. (2001) se dedicam a compreender as causas do fato da Suíça ter sucesso relativamente menor do que os Estados Unidos nos seus processos de transferência de conhecimento para o mercado, mesmo a Suíça sendo um dos países que mais produzem publicações científicas por habitante. A resposta desse desempenho superior na transferência de tecnologia não estava no fato de os Estados Unidos possuírem empreendedores mais eficientes dentro dos centros de pesquisa, mas sim, no contexto institucional, o qual permitiu a interação mais profícua entre empresas e universidades por meio da negociação de interesses diversos, particularmente pela existência ampla de elementos que atendiam às necessidades do processo empreendedor. Embora esse argumento possa também ser interpretado a partir de uma visão materialista, uma leitura descritiva que considerasse as possibilidades advindas das idéias de simetria ontológica e hibridismo entre elementos humanos e não-humanos certamente traria mais conteúdo compreensivo às práticas empreendedoras de base tecnológica nos dois países. Isso permitiria traçar as redes e as influências sobre as quais as performatividades se estabelecem, assim como permitiria entender como na prática ocorrem as negociações e a translação dos interesses entre os atores, ou como os atuantes se transformam em atores em cada contexto.

Outro aspecto é bastante pertinente. Explorando o tema do intra-empreendedorismo organizacional sob a ótica da TAR, Whittle e Mueller (2008) afirmam que as idéias inovadoras não florescem porque algumas pessoas são mais empreendedoras ou mais inovativas do que outras. Idéias florescem por causa dos sucessos e fracassos dos processos de inscrição em que as pessoas estão inseridas (Whittle & Mueller, 2008). Nesse caso, o termo inscrição faz parte do repertório introduzido pela TAR e refere-se a “todos os tipos de transformação que materializam uma entidade num signo, num arquivo, num documento, num pedaço de papel, num traço. Usualmente, mas nem sempre, as inscrições são bidimensionais, sujeitas a superposição e combinação. São sempre móveis, isto é, permitem novas translações e articulações ao mesmo tempo em que mantêm intactas algumas formas de relação. Por isso são também chamadas móveis imutáveis, termo que enfatiza o movimento de deslocamento e as exigências contraditórias da tarefa” (Latour, 2001: 350). Acerca disso, Whittle e Mueller (2008) chamam a atenção para as dinâmicas de disseminação de novas idéias, as quais são postas em prática por meio da atuação de mediadores que ativamente constroem e conseguem a inscrição de entidades a fim de manter uma rede de interesses, recursos técnicos e políticos em torno dela, permitindo assim o alcance de certa estabilidade.

Embora se tenha argumentado que não se pode explicar a complexidade dos processos empreendedores a partir da busca de compreensão sobre a atuação subjetiva do sujeito, Whittle e Mueller (2008) evidenciam como a compreensão da própria identidade

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empreendedora é ampliada a partir da abordagem da TAR. Nessa ótica, a idéia do indivíduo empreendedor está muito próxima da noção de uma pessoa construtora e mantenedora de redes. Essas redes assumem movimentos imprevisíveis, podendo tanto legitimar idéias aparentemente ruins como eliminar aquelas aparentemente boas. Tudo dependerá do movimento que os coletivos desenvolvem no decorrer das trajetórias trilhadas.

Conforme Latour (2000) afirma, a pessoa, por sua vez, luta para fazer com que o conhecimento que ela desenvolve adquira o status de verdade. Para isso, ela precisa de uma rede robusta de entidades tais como: fatos científicos, equipamentos, mesas, diagramas, assistentes e aliados políticos, dentre outras. Essa mesma atuação da pessoa que se fabrica e é fabricada a partir de uma rede mais ou menos estável é a atuação do empreendedor sob esse enfoque, o qual se constrói e é construído a partir da negociação e da legitimação de uma idéia inovadora.

Considerar empreendedorismo produto de performatividades formadas por elementos heterogêneos e híbridos abre espaços para a exploração de algumas implicações. Uma mais pragmática decorre do reconhecimento que o empreendedorismo pode não ser resultante assimetricamente do comportamento dos sujeitos ou das condições dos contextos, mas de ambos, ao mesmo tempo, no que consideramos uma espécie de indissociabilidade simultânea. Relacionado a isso está a limitação das tentativas de se criarem mecanismos de incentivo ou, melhor, de criação de cultura empreendedora. Talvez o maior problema dessa estratégia esteja no fato de a abordagem prescritiva pertencer ao mundo da assimetria. Considerando o papel do espaço onde as iniciativas empreendedoras acontecem, há de se perceber a atuação de humanos e não-humanos, simultaneamente e indissociáveis, simetricamente formados em parte por pessoas em parte por coisas. Quando isso é considerado, pode-se perder em importância a necessidade absoluta de existência de uma pessoa empreendedora ou de um contexto material. Isso porque iniciativas emprendedoras resultam das redes coletivas e das performatividades que decorrem dela. Quando consideradas imersas nos espaços coletivos, sempre de maneira negociada, intermediada e transformada, as iniciativas empreendedoras podem revelar que é pouco relevante o fato de a pessoa ou o ambiente apresentar ou não condições para o empreendedorismo. Isso porque a rede performática absorve o papel que antes estaria em torno da figura de uma pessoa ou do meio no qual ela se insere.

Uma implicação metodológica é destacável. A TAR veio dos estudos de ciência e tecnologia, particularmente utilizando métodos etnográficos na observação da prática dos pesquisadores na produção dos fatos científicos. Entretanto, os objetos produção de ciência e fabricação de empreendedorismo são diferentes. Além disso, o estudo do empreendedorismo (assim como os estudos sobre inovação sugeridos por Oliveira (2008)) requer a saída dos laboratórios para as redes cuja geometria e composição são variáveis e temporárias. Cada caso de iniciativa empreendedora é um caso que pode mobilizar atores muito distintos. Por isso, o foco deixa de estar sobre a pessoa como ator empreendedor e passa a estar na própria rede como entidade que empreende iniciativas. Uma limitação para os estudos empíricos de ordem etnográfica está relacionada com a dificuldade de identificar o início do processo de fabricação do empreendedor. Isso é devido à multiplicidade de elementos que fazem parte da rede na qual ele se inscreve. Ao mesmo tempo, esse fato abre a possibilidade de desvinculação dos estudos etnográficos, valorizando os estudos descritivos centrados em material documental e entrevistas (Oliveira, 2008).

Uma implicação de ordem teórica tem a ver com a possibilidade de avanços que algumas categorias trazidas pela TAR oportunizam às abordagens acerca do empreendedorismo. Entre elas, destaca-se o conceito de simetria, expandido a partir de Bloor (1976). Parafraseando Latour e Woolgar (1997), buscar compreender por que as pessoas são empreendedoras, mas não compreender por que as pessoas não são empreendedoras, isso é assimétrico. Não é assim, de modo assimétrico, que o assunto é muitas vezes abordado

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metodologicamente e também nos cursos de estímulo ao comportamento empreendedor? (Pense num empreendedor de sucesso! Agora aponte as suas características!). A idéia de simetria oferece novas possibilidades que permitem avançar para além de limitações herdadas da insistência no caminho da purificação das realidades. Algo que caracteriza profundamente as realidades das práticas cotidianas é justamente o oposto disso: a impureza. A impureza, nesse caso, representa a indissociabilidade entre o social e o natural. É isso que possibilita a existência de redes sociotécnicas.

Quando se contam as histórias das sagas empresariais depois que as caixas-pretas se fecharam, sempre há a tendência de privilegiar os heróis, nesse caso, os empreendedores. Entretanto, se pudermos entrar nas caixas-pretas antes de elas se fecharem, assim como fez Latour (2000) quando seguiu os cientistas antes dos fatos científicos serem produzidos, será possível perceber que em vez de um empreendedor existe uma infinidade de atores. Todos eles desempenhando um papel crucial sem o qual seria impossível sequer construir a caixa, muito menos fechá-la. Nesse caso, não apenas os casos de sucesso, mas também os de insucesso, os que foram vencidos pela história, certamente todos podem trazer alguma luz, algumas respostas para pelo menos parte dos dilemas aqui apresentados.

A Figura 1 abaixo sintetiza os principais pontos abordados nesse estudo. De modo geral, sob a ótica da TAR, ambas as perspectivas subjetivista e objetivista perdem sentido, uma vez que elas estão distantes de alcançar alguns elementos aqui identificados, os quais auxiliam a compreender um pouco acerca dos processos empreendedores sob a perspectiva da TAR. Eles são: (i) o foco sobre as redes sociotécnicas que se constroem em torno das iniciativas empreendedoras; (ii) a indissociabilidade e simultaneidade de agência humana e não humana nos atores constituintes das redes; (iii) a preocupação com o movimento de construção em vez do resultado daquilo que é construído.

Figura 1: síntese dos aspectos abordados no artigo. Fonte: elaborado pelos autores.

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6. Considerações Finais

Essa análise permitiu explorar algumas questões que são pertinentes para o avanço do empreendedorismo como tema transdisciplinar de pesquisa. Em torno da problemática fundamental, foram apontados alguns limites que a valorização de perspectivas estanques impõe à compreensão acerca de como de fato ocorrem iniciativas empreendedoras.

De modo geral, o artigo contribui para a valorização da busca de novos arcabouços que ofereçam luz a mais na compreensão do empreendedorismo. Dentro das perspectivas iniciais, mesmo os mais engajados são levados a reconhecer a necessidade de se buscar novas abordagens que permitam maior coerência, especialmente quando a teoria é confrontada com a prática cotidiana da atividade empreendedora. Isso requer não apenas novas teorias, mas também novas metodologias, as quais envolvam desde a valorização dos estudos descritivos até as formas de delimitação do objeto de estudo.

Outra contribuição desse artigo está no levantamento de limitações decorrentes do permanecer dentro das fronteiras impostas por visões dualistas. Isso não quer dizer que os estudos correntes têm se cegado dentro de sua visão extremamente limitada. Pelo contrário, é possível perceber a importância crescente que, por exemplo, a perspectiva subjetiva dedica à perspectiva objetiva e vice-versa. Entretanto, no presente estudo fica clara a insuficiência dessa “valorização” uma vez que o modo assimétrico de perceber as coisas não se extingue tão rapidamente quanto os preconceitos. Um exemplo desse tipo de visão dual é reconhecer que tanto aspectos subjetivos como aspectos objetivos contribuem para o sucesso ou o insucesso das iniciativas empreendedoras. Esse não é o posicionamento da TAR porque ainda trata as duas coisas de modo assimétrico. Sob a perspectiva da TAR, todas as entidades são híbridas, compostas ao mesmo tempo de subjetividade e de objetividade. Não dá pra separar uma coisa da outra. Humanidade e inumanidade se manifestam ao mesmo tempo por diversos meios. Essa é a diferença fundamental entre aquilo que existe na literatura habitual acerca do empreendedorismo e a visão oportunizada pela lente da TAR.

Como já dito, por meio da TAR, talvez se perca um pouco de foco a figura da pessoa empreendedora. Isso porque o surgimento as iniciativas empreendedoras passam a ser consideradas sempre como ações coletivas. Na construção dessas ações se integram múltiplas entidades indissociáveis, simultaneamente humanas e não-humanas, as quais atuam criando performatividades. Uma vez entendido dessa forma, o emprendedorismo requer a mobilização de diversos agenciamentos em torno de si, mediante o recrutamento de aliados que passam a integrar um movimento negociado, que requer translação constante de interesses. O descortinar desse movimento revela multiplicidade de relações e interesses políticos, sociais, econômicos, culturais, científicos e dos próprios protagonistas que, depois da história de sucesso acontecida, habitualmente são considerados os empreendedores. A TAR poderá contribuir para desmistificação de uma série de limitações que habitualmente transitam ao lado das perspectivas subjetivas e objetivas. Exemplos delas estão na dificuldade de explicar comportamento empreendedor onde não há manifestação de características empreendedoras, no entendimento acerca do que causa comportamento espontâneo (de dentro para fora) e do que causa comportamento induzido (de fora para dentro) e na possível incompatibilidade entre abordagens prescritivas e abordagens descritivas. A prescrição enquanto problema ocorre apenas no mundo da assimetria, onde objetivo e subjetivo andam separados, e a técnica reificada pretende ditar o que é bom ou não de se fazer. Recompor dicotomias e reintegrar visão técnica e demais permitiria descrições multidimensionais, holísticas e atentas aos mais diversos aspectos da realidade. A partir disso, as direções de ação emergem não mais como resultado alheio e imposto pelo empreendedor de dentro para fora, ou pelo contexto de cima para baixo, mas sim como resultado do êxito de processos coletivos de interação, interpretação, negociação e resignificação.

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Um contributo de cunho mais teórico está na crença de que a exploração dessa temática cumpre o objetivo de prover explicações sobre a ação coletiva empreendedora de maneira acionável, na mesma direção elaborada por (Hatchuel, 2005). Do ponto de vista teórico, estas reflexões podem ser acionadas e prover novos estudos e futuras análises que sirvam não apenas para inspirar trabalhos empíricos, mas também possibilitar avanços importantes para o empreendedorismo enquanto campo de conhecimento teórico e prático. Isso envolve, por exemplo, o empreendorismo social, o empreendedorismo institucional, o intra-empreendedorismo, o empreendedorismo empresarial e o empreendedorismo acadêmico de base tecnológica, dentre outras possibilidades.

Finalmente, reconhece-se que uma limitação importante resida no fato de esse estudo não apresentar resultados empíricos que possibilitem os suportes analíticos para as pressuposições aqui exploradas. Ao mesmo tempo, isso abre possibilidades para futuras pesquisas empíricas. Para isso, três princípios são bastante válidos (Michel Callon, 1986). O primeiro exige uma atitude agnóstica em relação ao tratamento que se deve dar aos atores sociais ou materiais que integram as redes investigadas. Callon (1986) afirma que isso requer que nenhum ponto de vista seja privilegiado e também requer que o pesquisador não fixe a identidade dos atores envolvidos se a sua identidade ainda estiver sendo negociada. (ii) O segundo princípio é a adoção da simetria generalizada. A meta aqui é não apenas tratar pontos de vistas e argumentos conflituosos de uma controvérsia científica ou tecnológica nos mesmos termos (assim como fez David Bloor). Como explorado acima, os ingredientes das controvérsias são uma mistura simultânea de elementos vindos dos âmbitos social e natural. (iii) O terceiro se refere ao princípio da livre associação. Nesse caso, o investigador deve abandonar a priori toda distinção entre eventos naturais e sociais. Isso requer a rejeição da hipótese de existência de uma fronteira definida, a qual separa os dois. A permanência da divisão é conflituosa e reflete o resultado de análises ao invés de causa delas. Callon (1986) adverte para a necessidade de o investigador considerar que o repertório das categorias, as entidades as quais são mobilizadas e os relacionamentos entre eles, todos são tópicos para discussão. Em vez de impor uma separação entre eles na análise, o investigador segue os atores com o objetivo de identificar a maneira pela qual eles atribuem significado e se associam a diferentes elementos por meio dos quais eles constroem e expandem seu mundo, não importando se seja o mundo natural ou o social.

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i Translação, “em suas conotações linguística e material, refere-se a todos os deslocamentos por entre outros atores cuja mediação é indispensável à ocorrência de qualquer ação. Em lugar de uma rígida oposição entre contexto e conteúdo, as cadeias de translação referem-se ao trabalho graças ao qual os atores modificam, deslocam e transladam seus vários e contraditórios interesses” (Latour, 2001): 356). Latour (2000: 178-199) trás alguns exemplos de situações em que há translação de interesses. Ela pode ocorrer: (i) quando alguém encontra e se associa a outras pessoas que querem a mesma coisa que ela: eu quero o que você quer; (ii) quando certa mobilização desperta interesses comuns em outras pessoas: eu quero; por que você não quer? (iii) quando, às vezes, para ser necessário alcançar um objetivo comum, alguém tem que ceder e desviar-se um pouco do seu objetivo inicial: se você desviasse um pouquinho... (iv) quando há remanejamento de todos os interesses e objetivos iniciais: deslocar objetivos; inventar novos objetivos; inventar novos grupos; tornar invisível o desvio; vencer as provas de atribuição e (v) quando todos os agentes passam a se mobilizar em torno de uma ação coletiva de modo voluntário, contribuindo para a propagação de uma tese no tempo e no espaço: tornar-se indispensável.

ii Para maiores detalhes acerca da impossibilidade de alocação dos não-humanos no construtivismo social da psicologia social, ver (Michael, 1996). Sobre a preferência da sociologia da translação pelo termo coletivo em vez do termo social, ver Latour (2001). Para este autor, coletivo se refere à associação de humanos e não-humanos, ao contrário de sociedade, que é um artefato imposto pelo acordo modernista. Peci e Alcadipani (2006) também oferecem uma base importante de contraste entre o construtivismo social e o construtivismo crítico. Este inclui tanto as críticas em relação à utilização corrente do conceito em estudos acerca, por exemplo, de gênero e imigrante, como também as limitações teóricas que a ontologia relativista impõe. É justamente na contraposição da ontologia puramente relativista é que a TAR se insere como abordagem construtivista crítica.