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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CCJS – CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO GUILHERME BORBA VIANNA A IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E SOCIAL DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOCIETÁRIA E SUA CRISE NA CONTEMPORANEIDADE CURITIBA 2007

EMPRESA E SOCIEDADE - Pesquisa Básicadominiopublico.mec.gov.br/download/teste/arqs/cp047767.pdf · 7 RESUMO Vianna, Guilherme Borba; Bertoldi, Marcelo Marco (orientador). A importância

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ CCJS – CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

GUILHERME BORBA VIANNA

A IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E SOCIAL DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOCIETÁRIA E SUA CRISE NA CONTEMPORANEIDADE

CURITIBA 2007

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GUILHERME BORBA VIANNA

A IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E SOCIAL DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOCIETÁRIA E SUA CRISE NA CONTEMPORANEIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Marco Bertoldi

CURITIBA 2007

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GUILHERME BORBA VIANNA

A IMPORTÂNCIA ECONÔMICA E SOCIAL DA PERSONALIDADE JURÍDICA SOCIETÁRIA E SUA CRISE NA CONTEMPORANEIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientador: Prof. Dr. Marcelo Marco Bertoldi

COMISSÃO EXAMINADORA

_____________________________

Prof. Dr. Marcelo Marco Bertoldi

_____________________________

Prof. Dr. Fábio Leandro Tokars

_____________________________

Prof. Dr. Antônio Carlos Efing

Curitiba, de julho de 2007.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização do autor, do orientador e da universidade.

Guilherme Borba Vianna

Graduou-se em direito na PUCPR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná) em janeiro de 1999. Especializou-se em Direito Processual Civil no IBEJ Cursos Jurídicos em janeiro de 2001. Especializou-se em Direito Societário na UFPR (Universidade Federal do Paraná) em fevereiro de 2003.

Ficha Catalográfica

Vianna, Guilherme Borba V617i A importância econômica e social da personalidade jurídica societária e sua 2007 crise na contemporaneidade / Guilherme Borba Vianna ; orientador, Marcelo Marco Bertoldi. – 2007. 245 f. ; 30 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2007 Inclui bibliografia 1. Personalidade (Direito). 2. Direito e economia. 3. Economia social. 4. Pessoa jurídica. 5. Livre iniciativa. I. Bertoldi, Marcelo Marco. II. Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. Dóris 4. ed. –341.222

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Para Maria Amélia,

companheira em todos os momentos,

com amor.

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AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador Prof. Dr. Marcelo Marco Bertoldi, pela confiança e estímulo na elaboração

desta dissertação.

À PUCPR, onde comecei meus estudos de graduação em 1994 e agora tenho a satisfação de

concluir mais uma etapa na minha caminhada acadêmica.

Ao PPGD, na pessoa da Eva, dos colegas e de todos os professores que de forma direta ou indireta

concorreram para o aprimoramento da minha formação, em especial aos Professores Dr. Antônio

Carlos Efing e Dra. Marcia Carla Pereira Ribeiro pela contribuição na abordagem socioeconômica

utilizada neste trabalho, através de particulares interpretações sobre os princípios constitucionais

da ordem econômica.

Aos professores que participaram da Comissão examinadora.

Ao Popp&Nalin Advogados, nas pessoas de Carlyle, Májeda e Paulo, pois além das palavras

amigas e incentivadoras, me franquearam a biblioteca e possibilitaram que eu me ausentasse do

escritório matutinamente na fase final deste trabalho.

Ao Prof. Adão Lenartovicz, à Dra. Márcia Pangracio, a Tânia Mehl, aos colegas advogados e

estagiários que de uma forma ou de outra me estimularam e ajudaram.

Aos amigos Guindani, Carlos e Gilmar, agradeço pela compreensão diante da minha ausência nas

pedaladas e trilhas de final de semana.

Aos meus pais Sérgio Artur e Lucélia, meus irmãos Fabiano e Hélia, minhas avós Iracema e Hélia,

a Maria Elena e ao Júlio Cezar, pelo apoio e confiança.

À minha mulher Maria Amélia, pela paciência, estímulo e companheirismo diante das inúmeras

horas que foram tomadas do nosso prazeroso convívio, sobretudo nos momentos derradeiros deste

estudo.

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RESUMO

Vianna, Guilherme Borba; Bertoldi, Marcelo Marco (orientador). A importância econômica e social da personalidade jurídica societária na contemporaneidade. Curitiba, 2007. 245p. Dissertação de Mestrado – Centro de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

O presente estudo tem por objetivo analisar a importância econômica e social da

personalidade jurídica societária na contemporaneidade. A livre-iniciativa empresarial constituiu-

se como um dos pilares de sustentação da Constituição de 1988, razão pela qual seu exercício

deve ocorrer dentro de uma visão que alie o econômico e o social, a fim de se promover riquezas e

consumo, gerar empregos e impostos, enfim, possibilitar que a sociedade viva de forma mais

digna, mais justa e mais feliz. Por outro lado, através da técnica da personalização societária o

Estado encontrou a fórmula ideal para estimular a iniciativa privada a investir na atividade

econômica. Em função disso é deveras importante manter e preservar a autonomia patrimonial das

sociedades personificadas como regra geral, cabendo seu afastamento esporádico apenas em

situações onde se verifique sua má utilização. Esse afastamento ocorre através da disregard

doctrine, que deve ser empregada pelo Poder Judiciário de modo a não ocasionar instabilidade ou

insegurança na atividade empresarial, já que para garantir a livre-iniciativa constitucional como a

mola propulsora do desenvolvimento socioeconômico do país, é imperativa a existência da

personalidade jurídica societária e da respectiva autonomia patrimonial.

Palavras-chave: Personalidade (Direito); Direito e economia; Economia social; Pessoa

jurídica; Livre iniciativa.

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ABSTRACT

Vianna, Guilherme Borba; Bertoldi, Marcelo Marco (orientador). The economic and social importance of the corporate legal entity and its crisis in the present days. Curitiba, 2007. 245p. MSc. Dissertation – Centro de Ciências Jurídicas e Sociais, Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

The aim of the present study is to analyze the economic and social importance of the

corporate legal entity nowadays. The free-initiative enterprise was constituted as one of the

sustaining pillars of the 1988 Constitution and for this reason its exercise should take place within

a vision that combines the economic and the social sides in order to promote wealth and

consume, to generate employment and taxes and finally to enable our society to like in a better,

more just and happier way. On the other hand, by applying the technique to create several types

of legal entities, the State found the ideal formula to stimulate the private initiative to invest in

the economic activity. Thus, it is really important to maintain and to preserve the asset autonomy

of the societies characterized in the rule, and its sporadic removal accepted only in situations

where mismanagement is verified. This removal happens through the disregard doctrine, that

should be used by the Judiciary Power in a way so as to not to cause instability or insecurity in

the managerial activity, since, in order to guarantee the constitutional free-initiative as the

propeller spring of the social-economic development of the country, the existence of the

personality juridical corporate and of the respective patrimonial autonomy is imperative.

Keywords: Personality (Law); Law and economy; Social economy; Legal entity; Liberate

initiative.

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Sumário

1. Introdução............................................................................................................................ 12

2. A atividade econômica sob a ótica constitucional................................................................ 16

2.1. Direito e Economia.............................................................................................................. 16

2.2. A intervenção do Estado na atividade econômica............................................................... 19

2.2.1. O Estado liberal................................................................................................................ 22

2.2.2. O Estado social................................................................................................................. 23

2.2.3. O Estado neoliberal......................................................................................................... . 26

2.3. A Constituição econômica e sua função transformadora................................................... . 28

2.3.1. Os fundamentos da atividade econômica......................................................................... 34

2.3.1.1 A livre-iniciativa econômica (liberdade de empresa)..................................................... 34

2.3.1.2. A dignidade da pessoa humana e sua coexistência com o princípio fundamental da livre-

iniciativa na ordem econômica brasileira................................................................................... 38

2.3.1.3 A valorização do trabalho humano................................................................................. 42

2.3.1.4 A justiça social como fim da ordem econômica............................................................. 45

2.3.2 Os princípios constitucionais econômicos......................................................................... 46

2.3.2.1 O princípio constitucional econômico da propriedade privada...................................... 46

2.3.2.2 O princípio constitucional econômico da função social da propriedade privada........... 52

2.3.2.2.1 A função social da empresa na Constituição de 1988................................................. 55

2.3.2.3 O princípio constitucional econômico da defesa do consumidor................................... 61

2.4 Considerações finais do capítulo.......................................................................................... 64

3. A atividade econômica sob a ótica empresarial................................................................... 67

3.1 A pessoa jurídica (histórico, conceito e teorias).................................................................. 67

3.1.1 A pessoa jurídica no Brasil................................................................................................ 76

3.1.2 A aquisição da personalidade jurídica............................................................................... 79

3.1.3 Efeitos da personalidade jurídica....................................................................................... 86

3.1.4 Término da personalização................................................................................................ 91

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3.1.5 Da separação patrimonial e limitação da responsabilidade............................................... 92

3.1.6 Opção do Código Civil de 2002 na classificação das sociedades..................................... 97

3.1.7 As espécies societárias diante da personalização das sociedades (autonomia

patrimonial)................................................................................................................................. 100

3.2 A personalização da pessoa jurídica como atividade promocional do Estado para o

desenvolvimento econômico e social (sanção positiva)............................................................. 106

3.3 A crise da pessoa jurídica..................................................................................................... 109

4. A disfunção da pessoa jurídica e a sanção imposta pelo Estado – disregard doctrine.......... 116

4.1 Origem da disregard doctrine.............................................................................................. 119

4.2 Fundamentação jurídica da disregard doctrine no direito brasileiro.................................. 121

4.3 Casuísticas na aplicação da disregard doctrine no Direito societário................................. 125

4.4 Visão clássica na aplicação da disregard doctrine no direito brasileiro............................. . 133

4.4.1 Artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor.............................................................. . 133

4.4.2 Artigo 18 da Lei Antitruste............................................................................................... 135

4.4.3 Artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho.............................................................. 135

4.4.4 Artigo 4º da Lei Ambiental............................................................................................... 137

4.4.5 Artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional............................................................ 137

4.4.6 Artigo 50 do Código Civil................................................................................................. 138

4.4.7 Projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional...................................................... 139

4.4.8 Disregard doctrine no Direito falimentar.......................................................................... 140

4.5 A disregard doctrine no direito alienígena........................................................................... 142

4.5.1 Direito norte-americano..................................................................................................... 143

4.5.2 Direito inglês...................................................................................................................... 145

4.5.3 Direito alemão.................................................................................................................... 147

4.5.4 Direito francês ................................................................................................................... 149

4.5.5 Direito italiano................................................................................................................... 150

4.5.6 Direito português............................................................................................................... 151

4.5.7 Direito espanhol................................................................................................................. 152

4.5.8 Direito argentino................................................................................................................ 153

4.5.9 Direito uruguaio................................................................................................................. 155

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4.6 A responsabilidade dos sócios e administradores nas sociedades personalizadas e a teoria

ultra vires.............................................................................................................................. 156

4.7 Aspectos processuais da disregard doctrine......................................................................... 161

4.7.1 Do sujeito passivo.............................................................................................................. 162

4.7.2 Da fundamentação da decisão judicial que aplica a disregard doctrine............................ 165

4.7.3 Dos recursos cabíveis contra a decisão.............................................................................. 167

5 A personalidade jurídica frente à nova ordem civil-constitucional e sua importância na

sociedade contemporânea..................................................................................................... 172

5.1 A importância da empresa na sociedade contemporânea..................................................... 177

5.2 A relativização da personalidade jurídica como forma de garantir os princípios gerais da

atividade econômica (Um exemplo: consumidor e meio ambiente).................................... 182

5.3 A estabilidade jurídica, o direito-custo e a personalidade jurídica nas relações

empresariais................................................................................................................................ 188

5.4 A pessoa jurídica e os reflexos no custo Brasil pela sua desconsideração assistemática..... 192

6 Casos práticos que reafirmam a importância da personalidade jurídica na sociedade

contemporânea...................................................................................................................... 198

6.1 A tentativa do Estado de aplicar a disregard doctrine de forma administrativa (o fiscal como

juiz)....................................................................................................................................... 198

6.2 A visão da jurisprudência antes e após o Código Civil de 2002.......................................... 201

6.2.1 Decisões anteriores ao Código Civil de 2002.................................................................... 203

6.2.2 Decisões posteriores ao Código Civil de 2002.................................................................. 207

7. Conclusões......................................................................................................................... 215

8. Referências bibliográficas................................................................................................. 219

8.1 Referências jurisprudenciais............................................................................................. 241

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1. Introdução

A presente dissertação está estruturada em cinco capítulos e se destina a analisar a

importância econômica e social da personalidade jurídica societária, bem como sua crise na

contemporaneidade. Para tanto, parte-se da premissa de que existe uma problemática diante da

interpretação correlata de duas situações distintas: primeiro, a inegável importância da

personalidade jurídica societária, conferida a determinadas pessoas jurídicas para serem titulares

nas relações interprivadas; segundo, quais os limites impostos pelo Estado ao regular o exercício

da livre-iniciativa econômica empresarial desenvolvida pela pessoa jurídica societária, a fim de

que sejam preservados os princípios e fundamentos estabelecidos na Constituição da República,

sem que, com isso, seja inviabilizado ou desestimulado o investimento na iniciativa privada.

Ou seja, no Estado Democrático de Direito vivenciado hodiernamente, o Estado deixou

para a iniciativa privada o exercício da atividade econômica, a qual se dá, preponderantemente

(com relevância econômica), através da pessoa jurídica societária (empresária). No entanto, o

fundamento empregado pelo revogado Código Civil de 1916, ao afirmar que a pessoa jurídica

não pode ser confundida com a pessoa dos sócios (societas distat singulis), não é o mesmo

utilizado na atualidade, sobretudo após a promulgação da Constituição de 1988.

Isso porque, quando o Código Civil de 1916 importou da Europa esta regra motriz do

Direito empresarial, vigoravam na maior parte dos países normas advindas do Estado liberal,

onde a função do Estado era a de proteger a liberdade da atividade econômica, privilegiando a

liberdade de contratar, a propriedade privada e a livre-iniciativa. No entanto, a partir do Estado

social (que teve início no século XX), as constituições republicanas passaram a reger cada vez

mais a atividade econômica, de modo a não mais privilegiar apenas a livre-iniciativa e o

desenvolvimento econômico, mas também o bem-estar social, através de uma sociedade mais

justa, mais humana e mais fraterna, corrigindo desigualdades sociais e garantindo direitos sociais.

Com efeito, a Constituição de 1988 procurou harmonizar o econômico com o social, pois,

ao colocar a dignidade da pessoa humana como fim da ordem econômica e financeira, destinada a

alcançar justiça social (art. 170, CR), demonstrou sua preocupação em solidarizar o modelo

capitalista vigente, não mais voltado para interesses individuais advindos do século XIX, mas

para satisfazer as necessidades da coletividade, através da construção de uma sociedade mais

livre, justa e solidária, que se desenvolva nacionalmente, erradicando a pobreza e a

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marginalização, reduzindo as desigualdades sociais e regionais, enfim, promovendo o bem-estar

de todos (art. 3º, CR).

A harmonização do econômico com o social é alcançada através do correto exercício da

livre-iniciativa empresarial pela exploração da atividade econômica privada, onde o Estado

possibilita que determinadas sociedades formadas por pessoas (físicas ou jurídicas) sejam

beneficiadas com personalidade jurídica, a fim de que possam exercer suas atividades de modo

autônomo e independente das pessoas que a criaram, incentivando, destarte, a atividade

econômica. Esta, por sua vez, gera benefícios sociais (empregos, desenvolvimento, consumo de

bens destinados à satisfação das necessidades humanas, tributos, tecnologia, erradicação da

pobreza etc.), formando um vínculo indissociável de promoção de relações socioeconômicas em

benefício de toda a coletividade.

Por outro lado, quando a livre-iniciativa empresarial, desenvolvida através da

personalidade jurídica societária pelas sociedades limitadas e anônimas (únicas sociedades que

possuem relevância na atualidade), for utilizada de modo a desvirtuar os fins para os quais foi

criada (através de fraude, abuso e/ou confusão patrimonial), a personalidade jurídica entra em

crise. Nesta hipótese, o Estado pode negar o caráter absoluto da personalização1 societária,

visando atingir o ente que esteja se escondendo indevidamente atrás da pessoa jurídica,

suspendendo a eficácia da personalização temporariamente, para, com isso, impedir que a

personalidade jurídica seja utilizada de forma contrária para a qual foi criada pelo ordenamento

jurídico.

Para tratar deste tema, o primeiro capítulo aborda a atividade econômica sob a ótica

constitucional, onde se procura demonstrar a fundamentação constitucional que serve de base

para toda a atividade econômica desenvolvida pela iniciativa privada, abordando não só a forma

como o Estado intervém nessa atividade para transformar a sociedade, como também os

fundamentos e princípios constitucionais que informam e balizam o exercício da livre-iniciativa

econômica.

Por conseguinte, o segundo capítulo parte para a análise da atividade econômica sob a

ótica empresarial, onde se entra nos conceitos de pessoa jurídica e de personalidade jurídica

societária, bem como nas formas, nos efeitos, no início e no término da personalidade, além de

1 Os termos “personalização” e “personificação” societária são sinônimos, razão pela qual serão utilizados indistintamente ao longo deste trabalho.

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abordar o tratamento vigente no Código Civil de 2002 para classificar as sociedades (tipos

societários), bem como a opção do legislador ao atribuir personalidade jurídica para algumas

sociedades e negar para outras, como forma de sanção positiva do Estado na promoção do

desenvolvimento econômico e social.

Termina o segundo capítulo com a constatação da existência de uma crise da pessoa

jurídica na sociedade contemporânea, constatação esta que não é nova, mas que pode e deve ser

analisada não apenas sob limitados fatores (v.g., crise de reconhecimento e crise de função), mas

também sob diversas perspectivas que interna e externamente influem através de políticas,

legislações, protecionismos, tributos etc., interferindo e estimulando a propagada crise da pessoa

jurídica na contemporaneidade.

Diante destas considerações, o terceiro capítulo parte da premissa de que, existindo uma

disfunção na utilização da personalidade jurídica societária (sendo inútil a personalização), a

sanção imposta pelo Estado é a disregard doctrine, através da qual se afasta temporariamente o

benefício da personalização societária para se atingir a pessoa que está agindo indevidamente por

trás da pessoa jurídica. Aborda-se a origem e a fundamentação jurídica da disregard doctrine no

direito brasileiro, como também casuísticas, a base legal da sua aplicação e o tratamento dado no

direito alienígena, além de outras formas de responsabilidade dos sócios e dos administradores

que não se confundem com a disregard doctrine, finalizando com os aspectos processuais da sua

aplicação no direito brasileiro.

Já o quarto capítulo passa a analisar a personalidade jurídica societária sob a nova ordem

constitucional contemporânea, reconhecendo-se que os benefícios e os problemas da

personalização societária foram evoluindo no decorrer dos séculos, razão pela qual é preciso

estudá-los sob uma nova exegese, consentânea com a evolução do Direito empresarial e da

própria empresa, esta como expressão maior da utilização da personalidade jurídica em benefício

de toda a coletividade que se relaciona direta ou indiretamente com a sua atividade.

Destarte, aborda-se a importância da empresa na sociedade contemporânea, a

relativização da personalidade jurídica como forma de garantir os princípios gerais da atividade

econômica diante das relações de consumo e de meio ambiente, como também os efeitos da

estabilidade jurídica e do direito-custo frente à personalidade jurídica nas relações empresariais,

finalizando pelo estudo dos efeitos do custo Brasil pela desconsideração assistemática da

personalidade jurídica societária.

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Por fim, o quinto e último capítulo trata de casos práticos (legislações e jurisprudências)

que reafirmam a importância da personalidade jurídica societária na sociedade contemporânea.

Aborda-se a tentativa do Poder Executivo de desconsiderar a personalidade jurídica societária

administrativamente (através dos fiscais da Super-Receita), como também a demonstração da

visão jurisprudencial antes e após a vigência do art. 50 do Código Civil de 2002 e a sua

importância e influência como fonte de incentivo ou de inibição de investimentos na atividade

econômica privada.

Enfim, a idéia principal desta dissertação é trabalhar um dos principais temas do Direito

societário (a personalidade jurídica) sob novos enfoques, consentâneos com a ordem

constitucional e empresarial vigentes após a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002,

respeitando a livre-iniciativa econômica e, por conseguinte, a personalidade jurídica societária,

pois, sem a pessoa jurídica personalizada (com existência distinta da de seus sócios), a sociedade

não teria atingido seu estágio atual de desenvolvimento socioeconômico.

2. A atividade econômica sob a ótica constitucional

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Para se examinar a importância econômica e social da personalidade jurídica na sociedade

contemporânea, pretende-se iniciar o estudo através da análise da atividade econômica

propriamente dita, bem como da intervenção (e regulação) estatal nesta atividade, sobretudo

porque a organização dos fatores de produção (capital e trabalho), desenvolvidos através da

pessoa jurídica2, com vistas ao desenvolvimento de uma atividade empresarial lucrativa, se dá

através do exercício da atividade econômica.

Por outro lado, num Estado Democrático de Direito,3 onde a ordem econômica está voltada

para a valorização do trabalho humano e da livre-iniciativa, com finalidade precípua de atingir

existência digna a todos os cidadãos, conforme os ditames da justiça social, é através da própria

Constituição que se deve buscar os fundamentos para o exercício da atividade econômica

empresarial.

2.1 Direito e Economia

Hodiernamente, é inquestionável a grande importância que a Economia e o Direito têm na

vida das pessoas, não obstante partirem de ciências distintas, fruto de pensamentos e estudos

baseados em premissas diversas, já que, enquanto a teoria econômica fundamentou sua base de

estudo na alocação de recursos e nas formas como estes recursos deveriam ser empregados (em

benefício do indivíduo, da empresa e da sociedade), a teoria jurídica está voltada para o conceito

de Justiça e da sua imperatividade para garantia da ordem social.4

2 A terminologia “pessoa jurídica” é muito vasta na doutrina e na legislação alienígena, podendo ser encontrada sob diversas formas, tal como enumera Sylvio Marcondes Machado: “pessoas morais, civis, fictícias, intelectuais, jurídicas, compostas, invisíveis, sociais, incorpóreas, impessoais, místicas, abstratas, de existência ideal, coletivas, universais; corpos morais, entes morais, universalidades, estabelecimentos públicos, instituições, institutos”. No entanto, prevaleceu no Código Civil brasileiro a corrente majoritária, que “inclina-se em favor da locução pessoa jurídica” (MACHADO, Sylvio Marcondes. Limitação da responsabilidade de comerciante individual. São Paulo : Max Limonad, 1956, p. 172-173). 3 “Estado de Direito [...] tem como princípio inspirador a subordinação de todo poder ao direito.” Por outro lado, para que o “Estado de Direito” seja um “Estado de Direito Material”, seu conteúdo tem que valer, tem que ser importante para a comunidade, representando realmente suas necessidades. Uma forma de se alcançar este status é acrescentando ao “Estado de Direito” o “Estado Democrático”. José Joaquim Gomes Canotilho sustenta inclusive que não há como concebê-los de forma separada, ou seja: “O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é de direito. O Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é Estado democrático” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição da República Portuguesa anotada. 2. ed. Coimbra: Almedina, v. I, p. 73). (Apud NUNES, Rizzatto. Manual de filosofia do direito. São Paulo : Saraiva, 2004, p. 134). 4 “Todo agrupamento humano tende para uma determinada forma de organização, a que se dá o nome de ordem social. Nesta visualizam-se regras de conduta e entidades cuja finalidade é garantir a observância daquelas regras e

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A inter-relação entre Direito e Economia é indissociável, ao menos sob o ponto de vista do

capitalismo, na medida em que falar em “capitalismo implica considerá-lo um sistema econômico,

mas também uma ordem jurídica”,5 já que os mesmos fatos regidos pelo Direito também se

encontram influenciados pela Economia.

O Direito tem por finalidade precípua reger as relações humanas em seu mais amplo leque

de manifestações, sem olvidar, contudo, que não se trata de mero servidor da Economia, mas deve

influenciar na conformação das relações sociais, ordenando e direcionando a própria Economia.6

É que, na visão moderna das estruturas do Direito, este não deve apenas servir como um elemento

de organização social estático, mas também deve interagir com a racionalidade sistêmica da

circulação econômica, junto à qual desempenha funções.7

Ou seja, nas palavras de Josué Petter Lafayete, “o Direito, pois, está a serviço da vida e da

justiça”,8 ao passo que não se pode conceber o Direito senão como um sistema regulador de

condutas sob um ideal de Justiça, através da regulação equânime entre as pretensões de uns e as

obrigações de outros.

Já a Economia “é uma ciência do comportamento e não normativa, por isso é definida

como ciência de aplicação de recursos escassos (com usos alternativos) a numerosos e possíveis

objetivos”.9 Destarte, cuida a Economia da explicação e demonstração (através de métodos que

tornam possível classificar os acontecimentos econômicos)10 do comportamento do homem frente

à atividade econômica.11

promover a criação de novas regras para reger situações novas que surgem e que se tornam pertinentes com o envolver do grupamento e da ordem. Toda ordem tem dentro de si mesma um elemento vinculante a que se dá o nome de imperatividade. Sem este componente toda ordem está fadada à desconstituição, ao enfraquecimento” (FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. Rio de Janeiro : Forense, 2005, p. 251). 5 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Sociedade de economia mista e empresa privada. Curitiba: Juruá, 1999, p. 58. 6 DERANI, Cristiane. Direito ambiental econômico. São Paulo: Max Limonad, 1996, P. 61. 7 LAFAYETE, Josué Petter. Princípios Constitucionais da ordem econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 67). Tércio Sampaio Ferraz Jr. Leciona que “o direito é um dos fenômenos mais notáveis na vida humana. Compreendê-lo é compreender uma parte de nós mesmos, é saber em parte por que obedecemos, por que mandamos, por que nos indignamos, por que aspiramos a mudar em nome de ideais, por que em nome de ideais conservamos as coisas como estão. Ser livre é estar no direito e, no entanto, o direito também nos oprime e nos tira a liberdade. Por isso, compreender o direito não é um empreendimento que se reduz facilmente a conceituações lógicas e racionalmente sistematizadas. [...] Para compreendê-lo é preciso, pois, saber e amar. Só o homem que sabe pode ter-lhe o domínio. Mas só quem ama é capaz de dominá-lo rendendo-se a ele” (FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo : Atlas, 1994, p. 21). 8 LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 67. 9 CARVALHOSA, Modesto Souza Barros. Direito econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 10. 10 Idem Ibidem, p. 11. 11 Para Seldom e Pennance, citado por Modesto Carvalhosa, “A Economia pode mostrar qual o meio mais econômico de se conseguir um dado fim, i.e., aquele que implica um menor custo ou menor sacrifício social, mas

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Por conseguinte, a interpretação conjunta do Direito e da Economia (através de métodos

econômicos para resolver problemas legais e, inversamente, através de regras legais que exercem

impactos sobre a economia) é traduzida segundo Armando Castelar Pinheiro e Jairo Saddi da

seguinte forma:

A abordagem de Direito & Economia permite uma visão do direito que é complementar e mais ancorada no cotidiano econômico e social do que a instrumental. Ao focar a lógica e o impacto das relações legais que governam a sociedade, a influência do direito na economia e, por seu turno, a da economia no direito, essa abordagem mostra que é mais fácil compreender as duas áreas, direito e economia juntas do que separadas.12

Em outras palavras, em que pese Direito e Economia partirem de conceitos e métodos

distintos para justificarem aspectos práticos e teóricos da vida socioeconômica, alcançam unidade

na medida em que devem se influenciar mutuamente, adquirindo “razão última de ser naquilo em

que podem desaguar para o humano ou que nele esteja refletido. Tanto melhor será uma Economia

quanto maior for o grau de satisfação proporcionado efetivamente aos sujeitos de uma

sociedade”.13

Destarte, é necessário que a economia de mercado esteja inspirada com o direito, da

mesma forma que o direito leve em consideração as regras de mercado, sob pena de termos regras

jurídicas e/ou econômicas utópicas, completamente dissociadas da praxis (sem efetividade).

Segundo Arnoldo Wald, se houver um mercado sem direito, teremos uma selva do mercado. Se,

ao contrário, tivermos um direito sem o funcionamento do mercado (é o contrário do brocardo fiat

justitia, pereat mundus – faça-se justiça ainda que o mundo pereça), haverá a paralisação do país e

não haverá desenvolvimento, “pois queremos que a justiça prevaleça para que o mundo sobreviva,

se desenvolva e progrida”.14

não diz que o meio mais econômico deva ser adotado, pois a Economia é somente um propósito da conduta humana, podendo entrar em conflito com o que os homens consideram bom, belo ou verdadeiro (...). O economista pode formular os seus próprios juízos de valor, mas, se assim o fizer, não o fará estribado na Economia, embora sua ciência pudesse proporcionar-lhe, mais do que os não iniciados, base para um julgamento mais bem informado e menos passional” (SALDOM e PENNANCE. Dicionário de Economia. Trad. Ed. Bloch, 1968, v. I, p. 108). (Apud CARVALHOSA, Modesto Souza Barros. Direito..., p. 20-21). 12 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. 86. 13 LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 73. 14 WALD, Arnoldo. Entrevista. Informativo IASP. n. 72, abr./mai. 2005, p 03. (Apud PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 05).

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Ou seja, o diálogo entre Economia e Direito é necessário e salutar para o progresso

econômico e da boa aplicação da Justiça, todavia, deve ser empregado com parcimônia, na medida

em que não se pode submeter o Direito à Economia, conforme afirma Arnoldo Wald:

Queremos uma justiça eficiente, no tempo e na qualidade, mas não uma justiça que esteja exclusivamente a serviço da economia, sacrificando os direitos individuais ou, em certos casos, afetando até o respeito dos contratos e a sua fiel execução. Entendemos que Economia e Direito se complementam, pois o direito sem o mercado é a imobilidade ou paralisia da sociedade, enquanto o mercado sem o direito é o caos (Alain Minc).15

O estudo do Direito e Economia é fruto da escola inglesa Law & Economics16, através da

qual aplica-se premissas econômicas para se analisar como a legislação afeta a conduta dos

agentes econômicos e as relações sociais. Ou seja,

Ao sobrepor à superestrutura legal as suposições tradicionais da análise econômica, a escola de

Direito & Economia é capaz de utilizar o ferramental econômico não apenas para teorizar e analisar o impacto do direito sobre a economia, mas também para avaliar a própria qualidade dos instrumentos legais, de acordo com métricas econômicas predefinidas.17

A Law & Economics teve origem nos estudos de economistas clássicos como Adam Smith

e Jeremy Bentham, como também de Pigou, Hayek, Leoni e Coase, além de Max Weber, que além

de economista era jurista. Apesar do Direito & Economia ser formado por uma única escola,

possui diversas correntes de interpretação, dentre as quais a Escola de Chicago, a Escola de Public

Choice, os Institucionalistas e os Neo-Institucionalistas, o Movimento dos Estudos Críticos, dentre

tantas outra correntes, não menos importantes.18

Por fim, deve-se ter em mente que embora o econômico e o jurídico possam se entrelaçar,

isso não importa em reciprocidade irrestrita e automática, na medida em que, enquanto para

determinados ramos do Direito o econômico guarda maior aproximação e influência (v.g. Direito

empresarial, contratual etc.), para outros a economia pode não guardar qualquer influência ou

15 WALD, Arnoldo. Prefácio. In: PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Direito, economia e mercados. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005, p. XXII. 16 “O movimento de Direito & Economia vem a ser uma corrente acadêmica de juristas e economistas que procura analisar o fenômeno jurídico sob uma óptica comum, baseada em princípios econômicos. Essa linha de pensamento concebida originalmente como uma vertente das escolas econômicas mais liberais, foi logo abarcada pelas faculdades de Direito. Seus enunciados olham o direito como um sistema que aloca incentivos e responsabilidades dentro do sistema econômico, e que pode, e deve, ser analisado à luz de critérios econômicos, como o da eficiência” (PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 84). 17 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 83. 18 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 84-85.

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repercussão direta, como ocorre por exemplo no âmbito do Direito de família, onde existe um

distanciamento visível (ou quando possui, se mostra de um modo muito esmaecido) de qualquer

relação com o econômico.19

2.2 A intervenção do estado na atividade econômica

A intervenção20 (atuação estatal em área de titularidade do setor privado e em área própria)

do Estado na atividade econômica (como forma de limitação – regulamentação - da atividade do

particular) atravessa os séculos desde que o mercantilismo tomou forma e passou a ser tutelado

pelo Estado.21 Em cada época histórica, Direito e Economia se relacionaram conforme uma

linguagem própria, que nada mais é do que “uma tomada de posição filosófica” e “uma decisão

por uma determinada linha política”22 na condução de políticas econômicas.

Guillermo Alfredo Pose, ao tratar do tema, afirma que Las relaciones entre el Estado y la economía es uno de los graves problemas que preocupan tanto a

los estadistas como a todos los pueblos del mundo. La acción del Estado en el mundo económico no constituye un menester nuevo, bastando recordar que desde la remota antigüedad se ha verificado su intervención en ese campo.23 O papel do Estado na ordem econômica atravessa três fases bem definidas durante os

séculos XIX e XX (Estado liberal, Estado social ou moderno, e Pós-modernidade ou modelo

neoliberal), variando, em cada uma, a intensidade com que o Estado se faz presente na seara

econômica (ou seja, variando com maior ou menor vigor, dependendo do modelo ideológico- 19 SOUZA, Washington Peluso Albino. Direito econômico e economia política. Belo Horizonte: Prisma, 1971, v. 1, p. 144. 20 Eros Roberto Grau leciona que “Intervenção indica, em sentido forte (isto é, na sua conotação mais vigorosa), no caso, atuação estatal em área de titularidade do setor privado; atuação estatal, simplesmente, ação do Estado tanto na área de titularidade própria quanto em área de titularidade do setor privado. Em outros termos, teremos que intervenção conota atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito; atuação estatal, ação do Estado no campo da atividade econômica em sentido amplo” (GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1990, p. 137). 21 Conforme lição de Tullio Ascarelli, “O direito mercantil começa a se afirmar na civilização comunal em contraposição com a civilização feudal, porém em forma diversa do direito romano comum que quase simultaneamente se constitui e impõe. O direito mercantil aparece-nos por isso [...] como fenômeno histórico, cuja origem está na consolidação de uma civilização burguesa e cidadã na que se desenvolve um novo espírito de empresa e uma nova organização dos negócios, como a de nossos municípios” (ASCARELLI, Tullio. Iniciação ao Estudo do Direito Mercantil. Sorocaba: Minelli, 2007, p. 42). 22 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 251. 23 POSE, Guillermo Alfredo. La intervención del Estado en Empresas Privadas. Depalma: Buenos Aires, 1985, p. 1. (Apud: DANTAS, Ivo. Direito constitucional econômico. 1. ed. Curitiba : Juruá, 2002, p. 81-82). Na tradução livre: “As relações entre o Estado e a economia é um dos graves problemas que preocupam tanto os governantes como a todos os povos do mundo. A ação do Estado no mundo econômico não constitui uma necessidade nova, bastando recordar que desde a Antigüidade sua intervenção foi verificada nesse campo”.

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político com que o Estado opte por programar determinada política econômica), através do

instituto da intervenção.

Este movimento intervencionista toma forma no século XIX, quando o liberalismo

econômico começa a enfrentar grande resistência (o contramovimento se propunha a enfrentar a

ação do mercado em relação aos fatores de produção – trabalho e terra)24 por parte das associações

dos titulares dos bens de produção (entidades patronais) e dos sindicatos dos trabalhadores

(entidades operárias), os quais passaram a pressionar o Estado para solução dos problemas

advindos da crise do liberalismo.25

No entanto, apesar de a intervenção estatal ter tomado maior desenvoltura e eficácia após o

liberalismo econômico, esteve presente em todas as fases da sociedade, variando ciclicamente26 de

forma qualitativa ou quantitativa, conforme o modelo jurídico-político adotado, pois “desde la

remota antigüedad se ha verificado su intervención en ese campo”.27

De forma sintética, é possível sistematizar a intervenção estatal, desde o liberalismo, em

três grandes fases, que chegaram aos dias atuais como um caminho intermediário entre os

extremos regimes da economia liberal e da economia intervencionista:

i) Estado Liberal ou Pré-modernidade – Teve início no final do século XVIII e durou

até a virada do séc. XIX para o séc. XX. No liberalismo procurava-se dispensar, tanto quanto

possível, a presença do Estado.28 Privilegiava-se a liberdade de contratar (igualdade), a

propriedade privada e a livre-iniciativa.29

ii) Estado Social ou Modernidade (Estado de Bem-Estar de Direito)30 – Teve início na

segunda década do século XX31. Restou superada a idéia de que “um mínimo de Estado

24 POLANYI, Karl. A grande transformação - as origens da nossa época. Trad. de Fanny Wrobel. 11. tir. Rio de Janeiro: Campus, 1980, p. 162. 25 Conforme explica Karl Polanyi, “foram precisamente os interesses sociais, e não os econômicos, de diferentes segmentos da população que se viram ameaçados pelo mercado, e pessoas pertencentes a vários estratos econômicos inconscientemente conjugaram forças para conjurar o perigo” (POLANYI, Karl. Op. cit., p. 188). 26 BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. O caráter cíclico da intervenção estatal. Revista de Economia Política. São Paulo. v. 9, n. 3, jul./set. 1989, p. 115-130. 27 POSE, Guillermo Alfredo. Op. cit., p. 01. Na tradução livre: “desde a Antigüidade remota sua intervenção foi verificada nesse campo”. 28 BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. São Paulo : Saraiva, 1988, p. 03. 29 BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 391. 30 CRUZ, Paulo Márcio. Estado, Intervenção, Regulação e Economia. In: Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.). Curitiba: Juruá, 2004, p. 311. 31 O Estado Social nasce na Alemanha, tendo como emblema a Constituição de Weimar de 1919.

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corresponderia a um máximo de liberdade”.32 O Estado assume diretamente alguns papéis

econômicos, visando atenuar distorções econômicas que colocavam à margem do progresso

econômico significativa parcela dos indivíduos.

iii) Pós-modernidade ou modelo neoliberal33– Teve início com o fim do período

ditatorial no Brasil. Logo de início, “enfrentou a crise existencial por ter nascido associado ao

primeiro governo constitucionalmente deposto da história do país”.34 Possui como discurso a

desregulamentação, as privatizações, as organizações não-governamentais, os direitos difusos

(proteção ao meio ambiente, ao consumidor e aos bens e valores históricos, artísticos e

paisagísticos) e coletivos.

Diante da importância destes três períodos do intervencionismo estatal para a visualização

do Direito constitucional econômico hoje em dia, trataremos com mais profundidade de cada um

deles.

2.2.1 O Estado liberal

O Estado liberal influenciou diretamente nas Constituições brasileiras do século XIX.

Tanto a Constituição de 1824 como a de 1891 tiveram como corolário o princípio básico do

liberalismo econômico que prevalecia na época. Neste período, o princípio da propriedade

individual dos bens de produção possuía caráter absoluto nestas duas Constituições brasileiras.35

A função do Estado na atividade econômica durante o Estado liberal servia exatamente

para garantir a liberdade de mercado (através da não-intervenção na atividade econômica), não

existindo qualquer referência à função social da atividade econômica e/ou ao exercício da

atividade para a consecução de fins comuns a toda a coletividade, pois, para isso, seria

pressuposto a limitação da atividade econômica, algo inconcebível na primeira metade do século

XIX.

No que concerne ao nascimento do credo liberal, Karl Polanyi assevera que

O liberalismo econômico foi o princípio organizador de uma sociedade engajada na criação de um sistema de mercado. Nascido como mera propensão em favor de métodos não burocráticos, ele evoluiu para uma fé verdadeira da salvação secular do homem através de um marcado auto-regulável. [...] Foi somente em

32 CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 311. 33 DANTAS, Ivo. Direito..., p. 82. 34 BARROSO, Luís Roberto. Temas..., p. 392. 35 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 256.

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1820 que ele passou a representar os três dogmas clássicos: o trabalho deveria encontrar seu preço de mercado, a criação do dinheiro deveria sujeitar-se a um mecanismo automático, os bens deveriam ser livres para fluir de país a país, sem empecilhos ou privilégios. Em resumo, um mercado de trabalho, o padrão-ouro e o livre-comércio.36

Foram, contudo, estes mesmos três dogmas clássicos do liberalismo que paulatinamente se

desassociaram e acabaram por colidir com os interesses de importantes setores da sociedade, ou

seja, o mercado de trabalho competitivo atingiu o possuidor da forma de trabalho (o homem), o

comércio-livre internacional ameaçou a maior indústria dependente da natureza (agricultura), e o

padrão-ouro ameaçou as organizações produtivas que dependiam do movimento relativo de preços

para o seu funcionamento.

Contudo, apenas no final do século XIX foi que o liberalismo incondicional passou a ser

questionado37, sobretudo através da percepção do Estado de que o capitalismo estava se

transformando diante do surgimento dos grupos econômicos. Segundo Gerard Farjat, a

concentração econômica (capitalista) surgida no liberalismo foi fator preponderante no surgimento

do Direito Econômico38, pois, É ela [a concentração capitalista] que está na origem de todas as grandes mutações das sociedades

industriais: a intervenção do Estado é uma conseqüência da concentração. Mas, além do direito econômico, o nascimento e o desenvolvimento do direito do trabalho e do direito social são também conseqüências da concentração. Enfim, o direito do consumo e o direito do meio ambiente da qualidade de vida o são também em grande medida.39

No entanto, mesmo os liberais mais ortodoxos apelaram para a intervenção do Estado para

garantir as condições de funcionamento de um mercado auto-regulável, como também o livre-

comércio e a competição exigiam uma forma de intervenção estatal para poderem funcionar

adequadamente, de modo que, ainda que a intervenção do Estado liberal não tenha os mesmos

36 POLANYI, Karl. Op. cit., p. 166. 37 A Constituição francesa de 1848 demonstra esta necessidade de intervenção estatal por meio de seu art. 13, através do qual o Estado intercala tanto a garantia da liberdade do trabalho e da indústria, como também aplica políticas de integração do trabalho aos menos favorecidos. 38 Segundo João Bosco Leopoldino da Fonseca, “o Direito Econômico pode ser visto como uma antítese do sistema liberal, deve sê-lo também como uma expressão de uma nova ordem econômica e social e, conseqüentemente, como um esforço constante de resposta adequada às exigências da realidade econômica e social do momento” (FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 273). 39 FARJAT, Gerard. Droit Économique. Paris: PUF, 1982, p. 143. (Apud: FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 258)

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objetivos da intervenção ocorrida no Estado social, não há como deixar de constatar a intervenção

estatal durante o liberalismo econômico.40

2.2.2 O Estado social

A intervenção estatal na atividade econômica apareceu de forma nítida na segunda década

do século XX (já no Estado social), resultando de “uma doutrina que representou a reação contra o

liberalismo ortodoxo e que passou a admitir a participação direta e efetiva dos órgãos estatais para

a efetivação de políticas econômicas e sociais destinadas a garantir iguais oportunidades a todos

os cidadãos”.41

Com a crise do Estado liberal, as Constituições passaram a dispor de um conteúdo cada

vez mais econômico, até se chegar ao conceito de Constituição econômica42, através da qual o

Estado encontrou instrumento hábil para promover condições de acesso dos indivíduos aos

benefícios sociais e econômicos da atividade produtiva. No Brasil, foi a Constituição de 1934 que,

pela primeira vez, incorporou normas de caráter econômico no texto legal.

Esta alteração do foco econômico inspirada no Estado social é bem delineada por Modesto

Souza Barros Carvalhosa, ut infra: Através do dirigismo racional, o Estado torna-se o agente externo de transformação das estruturas

socioeconômicas. Sua ação não mais reflete os interesses das entidades econômicas privadas, mas visa certas reformas que levam à economia do bem-estar social, o que contradiz muitos dos interesses e dos valores tipicamente neoliberais estabelecidos e, até então, juridicamente protegidos.43

O Estado social propiciou um modelo de intervenção pública que garantiu não só a

liberdade, mas também procurou garantir uma adequada condição social e econômica aos

cidadãos. A partir desses eventos, surge uma nova realidade que reclama a participação do Estado

para organizar a vida econômica, abalada por monopólios gigantes, respaldados que foram por

constituições concebidas pelo Liberalismo.44

40 Conforme explica Plauto Faraco de Azevedo, “a fórmula do laissez-faire, laissez-passer constitui uma das grandes mentiras do Estado Liberal, pois a pretexto de aplicá-la, o Estado interveio para evitar a organização dos trabalhadores e suas demandas de condições humanas de prestação de trabalho” (AZEVEDO, Plauto Faraco. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. Revista dos Tribunais, 1998, p. 82). (Apud: DANTAS, Ivo. Direito..., p. 130). 41 CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 310. 42 O conceito e as características da Constituição econômica serão tratados em capítulo próprio. 43 CARVALHOSA, Modesto Souza Barros. Direito..., p. 145. 44 CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 315 e 325.

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Esta intensiva participação social do Estado na vida econômica pode ser observada nas

palavras de Paulo Bonavides:

Quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede o crédito, institui comissões de abastecimento, provê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam à área da iniciativa individual, nesse instante o Estado pode com justiça receber a denominação de Estado social.45

Por outro lado, uma das características marcantes do Estado social na economia brasileira

foi o aparecimento crescente das empresas estatais, período esse que teve início na década de 1940

(v.g.: CSN, Vale do Rio Doce, FNM, CHESF), tendo se desenvolvido na década de 1950 durante

a Guerra Fria (v.g.: Petrobrás e BNDE) e atingido seu ápice no regime militar (v.g.: Eletrobrás,

Nuclebrás, Siderbrás etc.). Estudos realizados em 1981 dão conta de que, apenas no âmbito

federal, existiam 530 pessoas jurídicas públicas, de teor econômico, inclusive autarquias,

fundações e entidades paraestatais.46

Bem-Hur Rava define o intervencionismo estatal ocorrido neste período como “a forma

positiva de atuação do Estado na atividade econômica, direta ou indiretamente, através de um

conjunto de decisões jurídico-políticas capazes de programar planos e ações, objetivando garantir

o desenvolvimento e o bem-estar social”.47 Por sua vez, ao descrever e justificar o instituto da

intervenção estatal, Hely Lopes Meirelles afirma que,

Para o uso e gozo dos bens e riquezas particulares o Poder Público impõe normas e limites e, quando o interesse público o exige, intervém na propriedade privada e na ordem econômica, através de atos de império tendentes a satisfazer as exigências coletivas e a reprimir a conduta anti-social da iniciativa particular. Nessa intervenção estatal o Poder Público chega a retirar a propriedade privada para dar-lhe uma destinação pública ou de interesse social, através da desapropriação; ou para acudir a uma situação de iminente perigo público, mediante requisição; em outros casos, contenta-se em ordenar socialmente o seu uso, por meio de limitações e servidões administrativas; ou em utilizar transitoriamente o bem particular, numa ocupação temporária. Na ordem econômica o Estado atua para coibir os excessos da iniciativa privada e evitar que desatenda às suas finalidades, ou para realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, fazendo-o através da repressão ao abuso do econômico, do controle dos mercados e do tabelamento de preços”48

45 BONAVIDES, Paulo. O Estado Social e a Tradição Política Liberal do Brasil. Revista Brasileira de Estudos Políticos, nº 53. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, julho de 1981, p. 70. 46 TÁCITO, Caio. O retorno do pêndulo: serviço público e empresa privada. O exemplo brasileiro. RDA 202/1, p. 3. 47 RAVA, Bem-Hur. A reforma do estado brasileiro e as perspectivas e sua implementação: das mudanças efetivadas ao controle necessário. Juris Síntese IOB. CD, nº 44. nov./dez. 2003. 48 MEIRELLES, Hely Lopes. Curso de direito administrativo. 23. ed. Brasileiros, 1998, p. 481-482.

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Paulo Bonavides também exalta as benesses da atuação do Estado social a partir da década

de 1930:

Desde a terceira década do século XX que o constitucionalismo brasileiro se tem volvido para a construção de um País atado aos princípios do Estado social, à observância, tanto quanto possível rigorosa, de sua doutrina e ideologia, no afã de erguer uma sociedade mais justa, mais humana, mais fraterna, capaz de seguir a linha jurídica de propósitos fundamentais enunciados, em síntese, no art. 1º da Constituição Federal e, ao mesmo passo, corrigir as desigualdades sociais e regionais que lhe minam a estrutura e lhe obstaculizam as vias libertárias do desenvolvimento.49

No entanto, devido às mudanças econômico-sociais surgidas em decorrência do avanço da

globalização e da disseminação do neoliberalismo, o Estado social vai perdendo força e uma forte

corrente formada pelo capital privado de multinacionais acaba interferindo inclusive na soberania

de países inteiros (ocasionando o fenômeno da “desterritorialización”, onde o Estado perde o

poder de controle sobre suas fronteiras),50 relativizando a intervenção do Estado sempre que tal se

dê em prejuízo da livre circulação do comércio global.

2.2.3 O Estado neoliberal

A crise econômica do Estado social desencadeou mudanças na organização política e na

sua relação com os principais setores sociais, atingindo novamente a esfera dos direitos

individuais e dos grupos sociais. Com efeito, não foi mais possível ao Estado resolver, por si só, a

situação econômica e de resolver os problemas que transcendem às suas fronteiras, o que deu

49 BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial (A derrubada da Constituição e a recolonização pelo golpe de Estado institucional). São Paulo: Malheiros, 1999, p. 22. 50 José A. Estévez Araújo afirma, inclusive, que “con la globalización neoliberal, la concentración de poder económico se exacerba hasta el punto de que las 200 mayores empresas del mundo tienen, según la ONU, un volumen de negocios superior al PIB de los 150 Estados no miembros de la OCDE. Hoy en día, cuando un Estado trata con una multinacional, la relación se plantea como una negociación (en el mejor de los casos), o como una imposición (por parte de la empresa) y no como una decisión o conjunto de decisiones que el poder político está en condiciones de imponer unilateralmente”. (ARAUJO, José A. Estévez. Crisis de la soberanía y constitución multinivel. Revista Direito GV. nº 2, São Paulo: FGV, jul./dez. 2006, p. 149-164. Na tradução livre: “com a globalização neoliberal, a concentração de poder econômico é exacerbada até o ponto de que as 200 maiores companhias do mundo têm, de acordo com a ONU, um volume de negócio superior ao do PIB dos 150 Estados não sócios da OCDE. Hoje em dia, quando um Estado trata com uma multinacional, a relação se passa quase como uma negociação (no melhor nos casos), ou como uma imposição (por parte da companhia) e não como uma decisão ou grupo de decisões que o poder político está em condições de impor unilateralmente”).

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lugar ao nascimento de processos de integração e acordos econômicos internacionais, onde a

participação do indivíduo é praticamente ínfima.51

Destarte, em contraposição à intervenção estatal da Modernidade52, fortemente marcada

por diversos acontecimento políticos ocorridos entre os anos 30 e o final da década de 80 no

Brasil, a Pós-modernidade (neoliberalismo) surge com o discurso da “desregulamentação, da

privatização, das organizações não-governamentais e, no plano da cidadania, dos direitos difusos e

coletivos”.53

João Bosco Leopoldino da Fonseca afirma que estudos realizados a partir da década de 60

dão conta de que os pesados investimentos feitos pelo Estado social intervencionista foram

maiores do que se tivesse deixado o mercado se organizar através de mecanismos próprios,54 além

de ter provocado o inchamento dos órgãos estatais encarregados de intervirem na economia e o

esgotamento da capacidade estatal de investir em novas tecnologias, causando a deterioração dos

serviços públicos prestados.55

Contudo, ainda que o Estado neoliberal esteja imbuído de valores sociais em relação ao

cidadão (tal como a dignidade da pessoa humana, a valorização do trabalho etc.), a crítica que se

faz é contra o neoliberalismo ferrenho existente, fruto, sobretudo, da interferência dos EUA nos

países em desenvolvimento, através da troca de regalias comerciais por pesados investimentos

financeiros.

Paulo Bonavides demonstra com acuidade os efeitos do neoliberalismo (“capitalismo de

última geração”) no Estado Democrático de Direito, afirmando, inclusive, que a implementação

deste modelo no Brasil, irá gerar “a conversão do País constitucional em País neocolonial”,56 ou

seja, irá fazer o país retroceder aos tempos do neocolonialismo, o qual, hoje em dia, tenta

transformar o Brasil em “colônia de banqueiros, praça de negócios da China e mercado de

51 Exemplos destes entes externos na tomada de decisões são, v.g.: ONU, FMI, Banco Mundial, UE, Banco Central europeu, OMC etc. 52 “A modernidade teria começado com a Revolução de 30, institucionalizando-se com a Constituição de 1934 – que abriu um título para a ordem econômica e social – e se pervertido no golpe de Estado Novo, de 1937. Reviveu, fugazmente, no período entre 1946-1964. Findo o ciclo ditatorial, que teve, ainda, como apêndice, o período entre 1985-1990, chegou-se à pós-modernidade”. (BARROSO, Luís Roberto. Temas..., p. 391). 53 Id. Ibid., p. 391. 54 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 289. 55 Id. Ibid, loc. cit. 56 BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional..., p. 24. Em conclusão, continua o autor dizendo que além da perda da soberania, a desnacionalização, a desconstitucionalização, [...] o agravamento das desigualdades sociais e regionais do Brasil, o neoliberalismo provocará “o desfibramento daquela gente, que, ontem, foi povo e, hoje, é tão-somente, triste e vegetativa multidão de servos submissos e vassalos genuflexos que o globalizador arrogante e sem escrúpulos esmagou com o braço de ferro do poder neoliberal” (p. 25).

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especuladores internacionais, que lhe sugam as riquezas, lhe empobrecem o povo e criam a mais

injusta dívida externa e interna já contraída, este século, por um Estado”.57

Não restam dúvidas de que os efeitos da globalização desenfreada são maléficos às

pequenas economias, gerando desemprego, inflação e sucateamento da empresa nacional, que,

tomada de surpresa, não possui nem tempo nem recursos suficientes para fazer frente ao capital

internacional de multinacionais, ávidas por conquistar novos mercados, a qualquer preço social.58

As idéias iniciais que deram forma a esta nova concepção de intervenção estatal surgiram

nos EUA em 1960, a partir de estudos de Ronald Coase59, através do qual passou-se a “entender e

enxergar os problemas legais sob a ótica da eficiência econômica, ou seja, de como uma dada

regra legal deve ser considerada em termos de eficiência econômica”.60

Desde então, passa-se a “reordenar a posição estratégica do Estado na economia,

transferindo à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo setor público”61,

passando ao Estado um novo papel de otimizador (estabilizador das condutas econômicas) do

mercado, numa espécie de “intervencionismo liberal, destinado a respeitar as regras do jogo”.62

A partir de então ocorre uma espécie de minimização das economias nacionais, passando

aos grandes blocos econômicos e às instituições multinacionais o balizamento das novas regras do

mercado, relegando para o Estado um novo papel nas atividades de mercado, passando a gerir e

fiscalizar através de organismos intermediários (v.g., agências reguladoras etc.), os quais recebem

influência não só do Poder Executivo, mas também do Legislativo, do Judiciário, dos

consumidores etc.

2.3 A Constituição econômica e sua função transformadora

57 Id. Ibid., p. 30. 58 Evandro Lins e Silva, ao prefaciar a citada obra de Paulo Bonavides, relata a situação - entre a cruz e a espada - que se encontram as sociedades submetidas à globalização; in verbis: “É uma espécie de extorsão no plano universal, a que todos são compelidos a acompanhar, sob pena de exclusão do intercâmbio dos negócios da comunidade internacional. Mergulhamos muito fundo no processo e não é fácil revertê-lo. Estamos no meio de uma crise gravíssima – sim, no superlativo, gravíssima – e as perspectivas para vencê-la não são róseas, desgraçadamente. A injustiça social desta nova ordem é desanimadora (BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional..., p. 08). 59 The problem of social cost. The Journal of Law and Economics. The University of Chicago Press I, 1960. 60 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 108. 61 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 291. 62 Id. Ibid., loc. cit.

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Por Constituição econômica entende-se o conjunto de regras63 existentes na Constituição

de um país, que visam interferir e regular a atividade econômica da sociedade, de modo a que seja

garantido não só o livre funcionamento do mercado, mas também sejam garantidas aos cidadãos

condições de acesso aos benefícios sociais e econômicos do Estado.64

A utilização deste termo surgiu com a crise do Estado liberal (durante o século XIX) e

ganhou força e aplicabilidade durante o Estado social intervencionista (início do século XX),

quando o contramovimento existente conseguiu mudar a direção do liberalismo econômico para

um Estado voltado principalmente para a promoção social e a garantia dos direitos dos

trabalhadores, dos consumidores, do meio ambiente etc.

A Constituição brasileira de 1934 introduziu a “Ordem Econômica e Social” para

regulamentação da atividade econômica. Através dos artigos 115, 116 e 117, o Estado tanto

garante a liberdade econômica (art. 115), como ressalva que poderá monopolizar determinadas

atividades econômicas (art. 116) ou até mesmo determinando a constituição de sociedades

brasileiras às estrangeiras atuantes no país (art. 117).

Já a Constituição brasileira de 1937 dá um passo mais adiante, prevendo textualmente a

intervenção do Estado no domínio econômico (art. 135). Na Constituição de 1946 o texto garante

a liberdade de iniciativa e a valorização do trabalho humano, mas limita estas atividades através

da intervenção em favor do interesse público (art. 146). A Constituição brasileira de 1967 prevê

no art. 157, a intervenção no domínio econômico em favor do desenvolvimento econômico

nacional, enquanto que a de 1969 coloca a intervenção estatal na exploração das atividades

econômicas como suplementar as empresas privadas (art. 170).

No direito alienígena, as regras econômicas são observadas na Constituição francesa de

1946, na Lei Fundamental de Bonn de 1949, bem como na Constituição Italiana de 1948, todas

63 Num conceito amplo, “é a regulação jurídica da Economia”. (LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 149). 64 O termo “Constituição econômica” não é amplamente aceito pela doutrina, existindo controvérsia sobre seu alcance e emprego. Neste sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 670; DANTAS, Ivo. Direito..., p. 43; LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 149. Manuel Afonso Vaz, tratando da Constituição econômica como parte da Constituição política, afirma: “A Constituição econômica é, pois, uma parte da Constituição Política e o seu objetivo não se confunde com a ordenação total, global e acabada da sociedade. A Constituição econômica não se pode separar da Democracia nem das exigências de um Estado de Direito. A Constituição econômica é, no entanto, um conceito central em qualquer estudo de direito econômico, que não, propriamente, da Constituição. Concluindo, diremos que não é a expressão Constituição econômica que, de per si, se torna sujeita a certos reparos, mas sim o enfoque ideológico que se lhe queira referir. De resto, a expressão, em si mesma, fornece-nos até um quadro terminológico simples para significar os princípios jurídicos fundamentais da organização econômica de determinada comunidade política” (VAZ, Manuel Afonso. Direito Econômico: a Ordem Econômica Portuguesa. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 1990, p. 90-91). (Apud FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 94-95).

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destinando espaço para tratar das tarefas econômicas e sociais que o Estado deve desenvolver em

benefício da coletividade.65

A Constituição da República de 1988 já demonstra no Preâmbulo66 a vocação social do

texto constitucional, sem, contudo, ignorar as garantias individuais e liberais conquistadas no

Estado liberal, dispondo o seguinte: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir

um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem econômica e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.

Por conseguinte, dedica o “Título VII” à Ordem Econômica e Financeira, passando a

harmonizar princípios fundamentais da ordem econômica até então antagônicos, como o da livre-

iniciativa e da valorização do trabalho humano, ambos como condição de dignidade da pessoa

humana e da justiça social67. Sobre o sistema de intervenção vigente na Constituição de 1988,

Arnoldo Wald afirma que, No sistema constitucional brasileiro, a intervenção do Estado no campo econômico está balizada por

normas específicas e sempre dependente de leis em sentido formal que, direta ou indiretamente, a autorizem. As disposições contidas nos arts. 5º, II, 170 e 174 da Constituição de 1988 não têm simples sentido

65 No entanto, no início do século XX já se observava Constituições econômicas, como a Constituição mexicana de 1917 e a alemã de Weimar de 1919. 66 “O Preâmbulo funciona como Limite Implícito ao Poder de Reforma Constitucional, a partir do instante em que estabelece – e a repetição é proposital -, embora de forma sintética, toda a ideologia constitucional, expressa em um Estado Democrático, destinado a assegurar, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. Por outro lado, seu conteúdo encontra-se desenvolvido por todo o texto constitucional, a começar dos seus Princípios Fundamentais, o que nos permite afirmar que a interpretação a ser dada a qualquer norma contida na Constituição, não poderá desconhecer o conteúdo que se encontra nesta peça vestibular, isto sem falar em que deverá ser visto como limite implícito ao exercício da mudança constitucional formal, assim entendida aquela que se faz de acordo com o determinado no próprio texto, onde as regras do Poder de Reforma, como Poder Constituído, encontra seu funcionamento fixado pelo próprio Poder Constituinte, em uma opção político-ideológica que só poderá ser entendida corretamente quando visto o texto constitucional como um todo” (DANTAS, Ivo. Instituições de direito constitucional brasileiro. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2001, p. 344). 67 Conforme leciona Eros Roberto Grau, o conceito de justiça social é “indeterminado”, todavia, dentro da Constituição, deve ser interpretado como seu “dado ideológico”. Em razão disso, “justiça social, inicialmente, quer significar superação das injustiças na repartição, a nível pessoal, do produto econômico. Com o passar do tempo, contudo, passa a conotar cuidados, referidos à repartição do produto econômico, não apenas inspirados em razões micro, porém macroeconômicas: as correções na injustiça da repartição deixam de ser apenas uma imposição ética, passando a consubstanciar exigência de qualquer política econômica capitalista” (GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 240-241).

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programático, mas constituem os princípios básicos que delimitam as áreas e formas do dirigismo econômico no país.68

Desta forma, a intervenção estatal prevista na Constituição de 1988 se dá de forma

subsidiária69, pois, com a experiência ditatorial vivenciada no Brasil, as propostas neoliberais

vigentes procuram dar ênfase à maior eficiência da iniciativa privada e aos perigos que a

acumulação do poder econômico e político nas mãos do Estado representam para a liberdade

individual.70

Em suma, “os indivíduos podem realizar todas as ações cuja exclusividade não tenha sido

conferida ao Estado, com a conseqüente interdição da atuação privada”. É que, “em princípio, a

Constituição do Brasil reserva aos particulares a exploração de atividade econômica. O art. 170,

parágrafo único, diz ser livre o exercício de atividade econômica, independentemente de

autorização de órgãos públicos”.71

Ou seja, a atividade econômica é livre aos particulares, todavia, em determinadas e

excepcionais situações (v.g., segurança nacional → fabricação de armamento essencial à defesa

nacional; relevante interesse coletivo → fabricação de remédios para enfrentar epidemia; previsão

legal → Estado-Empresário que explora atividades econômicas privadas etc.), o constituinte

permitiu que o Estado interviesse direta (art. 173, CR) ou indiretamente (art. 174, CR) no domínio

econômico.72

68 WALD. Arnoldo. Dos princípios constitucionais e da limitação do poder regulamentar na área bancária. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Revista dos Tribunais, nº 88, out./dez. 1992, p. 5. 69 Neste sentido, Celso Ribeiro Bastos afirma que “o consectário natural deste princípio é que a atuação do Estado na economia é sempre subsidiária. O Estado não está habilitado a retirar dos particulares, transferindo, para a responsabilidade da comunidade, atribuições que aqueles estejam em condições de cumprir por si mesmos. A ação das coletividades públicas no âmbito da economia só se justifica, pois, onde os particulares não possam ou não queiram intervir” (BASTOS, Celso Ribeiro. Comentários..., p. 17). 70 Exemplo atual deste problema está sendo noticiado diariamente nos jornais televisivos, demonstrando a forma exacerbada (até mesmo ditatorial) com que o Presidente Hugo Chaves vem conduzindo a política econômica na Venezuela, tendo chegado ao extremo de não renovar a autorização de funcionamento para uma rede de televisão (RCTV) que lhe fazia oposição. Rachel Sztajn já sustentou inclusive que “normas jurídicas de expresso viés ideológico ou político-ideológico e regimes democráticos capitalistas combinam mal; elas atendem melhor aos interesses do Poder nos regimes ditatoriais, em que o governo, confundindo com o Estado, crê saber melhor que qualquer cidadão o que convém a todos e a cada um” (SZTAJN, Rachel. Função social do contrato e direito de empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 139, jul./set. 2005, p. 49). 71 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. São Paulo: Malheiros, 1992, p. 76-77. 72 Exemplo prático da forte intervenção estatal em determinados setores econômicos pode ser verificado nas seguintes ementas do TRF da 2. R. e do STF, respectivamente: “PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECEBIMENTO DE APELAÇÃO EM MANDADO DE SEGURANÇA APENAS NO EFEITO DEVOLUTIVO. RESTRIÇÃO IMPOSTA PELA ANP ÀS DISTRIBUIDORAS DE PETRÓLEO E DERIVADOS. SETOR DA ECONOMIA DE FORTE INTERVENÇÃO

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Nestas hipóteses, o Estado poderá suplantar a livre-iniciativa e adentrar a esfera do campo

econômico, pois, sendo um princípio maior o da livre-iniciativa73, apenas em hipóteses restritas e

constitucionalmente previstas poderá o Estado (União, Estados e Municípios) atuar diretamente

(v.g., autarquias, empresas públicas, sociedades de economia mista etc.) ou indiretamente (como

agente normativo e regulamentador)74 na atividade econômica.

A intervenção direta do Estado é cada vez menor na sociedade contemporânea

(permanecendo apenas alguns ícones da economia brasileira, tais como Petrobrás, Banco do

Brasil, Caixa Econômica Federal etc.), sobretudo porque no modelo neoliberal existente, a maior

parte das empresas públicas criadas no século XX foram privatizadas na tentativa (em vão) de

saneamento da dívida pública.

Já a intervenção indireta do Estado decorre da implementação de práticas de políticas

econômicas para regular e incentivar a atividade produtiva desenvolvida pelos particulares. Esta

forma de intervenção alcança seu ápice através da criação das agências reguladoras (surgidas nos

EUA no século XIX: Interstate Commerce Commission em 1889; Federal Reserve System em

1913; Federal Trade Commission em 1914 etc.)75, através das quais

O Estado não fiscaliza diretamente a atividade do mercado, mas se vale de organismos intermediários, que recebem influência do Poder Executivo, do Poder Legislativo, da palavra definitiva do

ESTATAL. AUSENTE A RELEVÂNCIA JURÍDICA DA FUNDAMENTAÇÃO. I. [ ...]. III. No caso dos autos, ausente tal relevância, uma vez que trata a hipótese de setor da economia de forte intervenção estatal, onde a administração vem, cautelosamente, concluindo um processo de paulatina desregulamentação e liberação econômica. IV. Sendo as portarias editadas pela ANP, normas dirigidas especificamente às empresas daquele setor, não há, por ora, que se falar em prejuízos unilaterais da agravante, que não possam aguardar a decisão final da lide. V. O próprio STF recentemente se posicionou no sentido de afastar a aplicação do art. 170, parágrafo único, da CRFB/88 no caso de transporte e distribuição de derivados de petróleo, reconhecendo a recepção dos Decretos-leis que disciplinavam a matéria e delegavam ao Poder Executivo poderes para fiscalizar e autorizar as referidas atividades (RE 229440/RN, rel. Min. Ilmar Galvão, DJ 05.11.1999). VI. Agravo improvido. Prejudicado o agravo interno” (TRF 2. R., AG 2002.02.01.006094-0/RJ, 4. T., rel. Des. Benedito Gonçalves, DJU 11.12.2002, p. 245). CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. DISTRIBUIÇÃO DE COMBUSTÍVEIS. TRR. REGULAMENTAÇÃO DL 395/38. RECEPÇÃO. PORTARIA MINISTERIAL. VALIDADE. 1. O exercício de qualquer atividade econômica pressupõe o atendimento aos requisitos legais e às limitações impostas pela Administração no regular exercício de seu poder de polícia, principalmente quando se trata de distribuição de combustíveis, setor essencial para a economia moderna. 2. O princípio da livre-iniciativa não pode ser invocado para afastar regras de regulamentação do mercado e de defesa do consumidor. 2. O DL 395/38 foi editado em conformidade com o art. 180 da CF de 1937 e, na inexistência da lei prevista no art. 238 da Carta de 1988, apresentava-se como diploma plenamente válido para regular o setor de combustíveis. [...]. 3. A Portaria 62/95 do Ministério de Minas e Energia, que limitou a atividade do transportador-revendedor-retalhista, foi legitimamente editada no exercício de atribuição conferida pelo DL 395/38 e não ofendeu o disposto no art. 170, parágrafo único, da Constituição. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido (STF, RE 349686 / PE, 2. T., rel. Min. Ellen Gracie, julgado em 14/06/2005, DJU 05/08/2005, p. 119). 73 O princípio da livre-iniciativa será abordado com mais profundidade nos capítulos seguintes. 74 BARROSO, Luís Roberto. Temas..., p. 397. 75 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 293.

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Poder Judiciário, mas também da atuação reivindicatória e controladora dos consumidores, principais destinatários da atuação dessas novéis entidades.76

Além das agências reguladoras, existem órgãos que auxiliam no controle e fiscalização do

mercado, sobretudo na concorrência empresarial, concentração de empresas e defesa do

consumidor, tais como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), a Secretaria de

Direito Econômico (SDE) e a Secretaria de Acompanhamento Econômico, todas com estruturas

definidas em lei.

Mesmo dentro de uma concepção moderna, que prega a mínima participação do Estado na

atividade econômica (através de uma economia de livre funcionamento do mercado e da livre

concorrência entre empresas), o papel das agências reguladoras e dos órgãos de defesa da

concorrência77 permanece como forma moderna e atual de o Estado exercer seu papel regulador

da atividade econômica, buscando sempre programar e proteger a atividade produtiva privada

como um todo, nas diversas esferas das relações socieconômicas que estão, de uma forma ou de

outra, vinculadas à atividade econômica.78

A Constituição de 1988 é fruto desta convivência harmoniosa entre o princípio da livre-

iniciativa e o da intervenção estatal na atividade econômica, pois a conjugação dos artigos 1º, IV,

170, caput, 173 e 174, demonstra ser possível, numa fase pós-moderna, interagir os diversos

princípios constitucionais que fundamentam a República Federativa do Brasil, constituída sob a

forma de Estado Democrático de Direito.

Entretanto, em que pese a necessária convivência entre opostos (Público x Privado) em

nome do domínio jurídico e econômico, João Bosco Leopoldino da Fonseca adverte que “hoje,

essa atuação, que vinha sendo aceita pacificamente, passou a ser questionada, de tal forma a

76 Id. Ibid., p. 309. 77 No Brasil, existem diversas agências reguladoras, todas criadas por lei, tais como: BACEN (1964); AEB (1994); ANEEL (1996); ANATEL (1997); ANP (1997); ANVISA (1999); ANS (2000); ANA (2000); ADA (2001); ANCINE (2001); ANTAQ (2001); ANTT (2001); DNIT (2001). 78 Por outro lado, vale a pena ressaltar que “mercados muito regulados tendem a reduzir a entrada de novos produtores. [...] Normas de ordem pública, cogentes, devem ser editadas sempre que o interesse público for superior ao dos agentes econômicos em razão do dano potencial que certas práticas podem causar à comunidade. Há mercados nos quais a convivência das normas sociais e institucionais é perfeita, característica de ser a instituição mercado resultado de práticas comerciais, apropriando-se, por isso, da característica de universalidade do direito comercial. Como nem toda norma indutora de comportamentos sociais precisa emanar do Estado, é razoável, em sociedades complexas, admitir que normas morais ou sociais, originadas do grupo que naquela comunidade é o centro de poder, sejam eficazes. O que importa é que não contrariem as normas produzidas pelo Estado” (SZTAJN, Rachel. Teoria jurídica da empresa: atividade empresária e mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 57).

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perguntar-se qual deve ser o papel do Estado na realização do fenômeno econômico, ou, por outra

forma, qual será o futuro do Estado numa economia de mercado”.79

Em outras palavras, Ivo Dantas afirma que o

Ponto essencial nos estudos referentes à Ordem Econômica é, sem dúvida, aquele referente aos Limites Constitucionais da Execução Direta da Atividade Econômica do Estado, o que significa dizer-se que, ao tratarmos da matéria, nos encontramos diante do tamanho do Estado, questão que nos impõe enfrentarmos variados aspectos.80

Por outro lado, na Europa ocidental já se observa um novo movimento que pode ser

definido como economia estatal de mercado (ou, economia estatal socializada), baseada na

propriedade privada, mas submetida a um significativo grau de intervenção e regulação estatal,

com o objetivo de garantir a estabilidade do Estado Democrático de Direito e dos interesses dos

grupos menos favorecidos.81

Enfim, é possível concluir que na atual fase pós-moderna (neoliberal) vivenciada no Brasil,

o intervencionismo estatal na economia deve respeitar os limites impostos pela própria

Constituição, pois, como a livre-iniciativa é princípio fundamental do Estado brasileiro (art. 1º,

IV, CR), esta premissa deve condicionar todo o processo de interpretação das normas

constitucionais, sobretudo na esfera da ordem econômica.

Destarte, a intervenção estatal, sempre que entrar em conflito com o princípio da livre-

iniciativa, somente terá legitimidade nas restritas e expressas hipóteses previstas na Constituição

da República, mediante comprovação efetiva do necessário afastamento do princípio da livre-

iniciativa em favor da atuação estatal.

2.3.1 Os fundamentos da atividade econômica 2.3.1.1 A livre-iniciativa econômica (liberdade de empresa)

79 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 241. 80 DANTAS, Ivo. Direito..., p. 90. 81 CRUZ, Paulo Márcio. Op. cit., p. 328.

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Quando a Constituição da República consagra princípios82 fundamentais do Estado

Democrático de Direito (arts. 1º a 4º da CR), o faz se baseando nos conceitos que estes princípios

possuem na cultura jurídica do país antes da promulgação do texto constitucional. É que

As leis, mas também a doutrina, a jurisprudência e a praxe jurídica, dotaram de forma e conteúdo a cada um desses princípios e direitos com antecedência a sua consagração no texto constitucional. Portanto, para sua reconstrução em chave constitucional, além das próprias referências constitucionais e do conteúdo normativo que lhes tenha outorgado ou lhes possa outorgar no futuro o legislador pós-constitucional, não pode perder-se de vista esse importante dado. [...] Portanto, para determinar esses conceitos, seu âmbito de aplicação e seu alcance, o intérprete deve acudir não só à própria Constituição, mas também a outros dados da experiência jurídica e às restantes fontes produtoras do Direito.83

Assim, para se falar em livre-iniciativa, é preciso primeiro colocá-la dentro de um campo

maior de aplicação, qual seja, o do princípio da liberdade84 propriamente dita, o qual é um dos

valores supremos da República Federativa brasileira, pois colocada tanto no Preâmbulo da

Constituição, como reiteradamente ao longo do seu texto legal, irradiando efeitos diversos na

ordem econômica.

A busca por um conceito85 de liberdade86 sempre foi motivo de estudo e objeto das mais

variadas interpretações e enfoques, atravessando os séculos desde a antiguidade até os dias

atuais.87 Conforme dispôs Jean-Jacques Rousseau,

82 “Mais do que um mero repositório de normas, que dão essência ou substância ao Estado, a Constituição consagra princípios. Estes podem estar explícita ou implicitamente contidos no seu texto. Mas é preciso atentar-se para o fato de que eles são a resposta da ordem jurídica aos anseios e às aspirações da comunidade num dado momento histórico. As constituições não criam esses valores do nada. Vão hauri-los justamente na formação cultural do povo nas últimas décadas” (BASTOS, Celso Ribeiro; Tavares, André Ramos. As tendências do direito público no limiar de um novo milênio. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 53-54). 83 GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Livre-iniciativa, autonomia privada e liberdade de contratar. In: NALIN, Paulo (Coord.). Contrato & sociedade: princípios de direito contratual. Curitiba: Juruá, 2006, p. 245-246. 84 “[...] O princípio constitucional da livre-iniciativa econômica só pode ser concebido como uma concreção de outro princípio constitucional mais geral: o princípio da liberdade. A liberdade é um dos valores supremos da sociedade brasileira e irradia seus efeitos na ordem econômica como carro chefe, por isso é aludido no Preâmbulo da Constituição e reiterado ao longo de seu corpo. Além disso, a liberdade se garante como direito fundamental individual de caráter subjetivo junto à propriedade, no caput do art. 5º. Mas a liberdade em abstrato é um conceito jurídico vazio, que não significa grande coisa. O que existe realmente são diversas manifestações da liberdade. A liberdade de fazer ou não fazer, de trabalhar ou de escolher a profissão, de manifestação do pensamento etc. A liberdade de iniciativa econômica e a liberdade contratual são só algumas dessas liberdades. Portanto, para que a liberdade de iniciativa seja tutelada não tem que interferir com nenhuma das restantes liberdades fundamentais” (GÓMEZ, J. Miguel Lobato. Op. cit., p. 246). 85 “Já Montesquieu advertia, no Espírito das Leis, não existir vocábulo ao qual se houvesse atribuído maior número de significações diferentes, e que tivesse impressionado de tantas maneiras os espíritos, e essa mesma desorientação vamos encontrar na generalidade dos autores modernos, cada um com suas concepções, seus conceitos e suas conclusões a respeito do problema da liberdade. [...] Assim, fala-se em liberdade tanto no sentido puramente físico, como no metafísico, ou ainda no sentido psicológico e, finalmente, na acepção político-jurídica” (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Curso de direito constitucional. Revisão Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p. 662).

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O homem nasceu livre e em toda a parte vive aprisionado. O que se julga o senhor dos outros não deixa de ser mais escravo do que eles. [...] Esta liberdade comum é uma conseqüência da natureza do homem. A sua primeira lei é a de vigiar pela própria conservação, os seus primeiros cuidados são os que deve a si próprio [...].88

Com essa introdução, Rousseau inicia a explicação preliminar sobre o “Contrato social”,

procurando demonstrar que todos nascem iguais e livres, só alienando a sua liberdade em

benefício próprio. Como exemplo, Rousseau cita o filho que permanece com o pai enquanto

precisa dele para conservar-se. Tão logo esta necessidade deixa de existir, o elo da sociedade

familiar se dissolve, e tanto o filho quanto o pai tornam-se independentes.

Norberto Bobbio disserta no mesmo sentido ao comentar sobre a “Justiça como liberdade”

na visão de Kant, demonstrando que foi o próprio homem quem alienou intencionalmente sua

liberdade para viver em sociedade, conforme se observa:

A justiça é liberdade. Com base nesta concepção, o fim último do direito é a liberdade (e entenda-se a liberdade externa). A razão última pela qual os homens se reuniram em sociedade e constituíram o Estado, é a de garantir a expressão máxima da própria personalidade, que não seria possível se um conjunto de normas coercitivas não garantisse para cada um uma esfera de liberdade, impedindo a violação por parte dos outros. O ordenamento justo é somente aquele que consegue fazer com que todos os consociados possam usufruir de uma esfera de liberdade tal que lhes seja consentido desenvolver a própria personalidade segundo o talento peculiar de cada um.89

Com efeito, as diversas formas de liberdade90 contextualizadas dentro da Constituição de

1988, não devem ser analisadas e interpretadas de modo isolado, mas sim, segundo uma visão

86 J. H. Meireles Teixeira define: “Liberdade é o direito de viver e de desenvolver e exprimir a nossa personalidade da maneira mais completa, conforme as leis da Natureza e da Razão e a essencial dignidade da pessoa humana, no que for compatível com igual direito dos nossos semelhantes e com as necessidades e interesses do Bem Comum, mediante o adequado conjunto de permissões e de prestações positivas do Estado” (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Op. cit., p. 672). 87 O artigo 1º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26/08/1789, já afirmava que os homens nascem e permanecem iguais em direito: Déclaration des droits de l'Homme et du citoyen. Article premier - Les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l'utilité commune. Na tradução livre: “Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Artigo primeiro: Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ter como fundamento a utilidade comum”. Da mesma forma, no campo da existência a liberdade também fomentou o aprofundamento de diversos filósofos, alguns objetivando demonstrar que é através da liberdade que se explica a distinção entre moral e direito, como Kant; outros, como Jaspers, para quem a liberdade explica a própria existência do homem, ainda, como Sartre, para quem a liberdade é transcendência, ou, como Heidegger, para quem a liberdade é uma característica do ser humano, através da determinação de que o “Ser-aí” (Dasein) se identifica e escolhe dentre as possibilidades que lhe são inerentes. 88 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social. Publicações Europa-América, 1981, p. 11-12. 89 BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Immanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. Brasília: Universidade de Brasília, 1984, p. 73. 90 V.g. liberdade de ir e vir da pessoa física, liberdade de pensamento (opinião, religião, informação, artística, conhecimento), liberdade de expressão coletiva (reunião e associação), liberdade de ação profissional (livre escolha

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contemporânea que privilegia tanto a livre-iniciativa como a valorização do trabalho humano,

ambos sustentáculos do regime capitalista vigente que, sob a ótica da Constituição, devem

convergir para uma justiça social.91

É no art. 1º, inciso IV, que a Constituição brasileira estabelece como princípio fundamental

do Estado brasileiro a livre-iniciativa.92 Segundo Miguel Reale, A livre-iniciativa não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e

distribuição das riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio de livre-iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170.93

O princípio da livre-iniciativa, ícone do Estado liberal e sustentáculo do modo de produção

capitalista, demonstra que o legislador abriu mão da concentração da atividade econômica estatal

em favor da atividade privada, alterando as balizas econômicas até então vigentes (marcadas,

sobretudo, pelo planejamento estatal através da produção de riquezas por meio do ente público).

Porém, não obstante a Constituição de 1988 eleger a livre-iniciativa como princípio

fundamental do Estado brasileiro, condiciona-o, em restritas hipóteses, à tutela do Estado em

razão de interesses públicos igualmente previstos na Constituição, como o dever do Estado de

promover o bem de todos (art. 3º, IV), a justiça social (art. 170, caput), dentre outros.94

do trabalho, ofício ou profissão), liberdade de conteúdo econômico e social (livre-iniciativa, liberdade de comércio, liberdade contratual, liberdade de ensino). 91 Por justiça social como fim da ordem econômica entende-se o interesse metaindividual e comum buscado pela Constituição, onde se busca atingir fins solidários, dignos, fraternais e igualitários de convivência (coexistência) social. De outro modo, ao comentar o art. 170 da CR, Luiz Edson Fachin afirma que o referido artigo “adota como princípio estruturante da atividade econômica a justiça social, que por sua vez matiza os princípios específicos decorrentes, em especial os da redução das desigualdades sociais, regionais e da proteção do consumidor”. (FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídico do Patrimônio mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 182). 92 José Afonso da Silva, ao comentar a “liberdade de iniciativa econômica”, afirma que: “a liberdade de iniciativa econômica privada, num contexto de uma Constituição preocupada com a realização da justiça social (o fim condiciona os meios), não pode significar mais do que ‘liberdade de desenvolvimento da empresa no quadro estabelecido pelo poder público, e, portanto, possibilidade de gozar das facilidades e necessidades de submeter-se às limitações postas pelo mesmo. É legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário” (SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 673). 93 REALE, Miguel. Questões de direito privado. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 95. 94 Neste sentido, vale a pena conferir interessante ementa do STF, relatada pelo Min. Eros R. Grau: “Ação Direta de Inconstitucionalidade. [...] Constitucionalidade. Livre-iniciativa e ordem econômica. Mercado. Intervenção do estado na economia. Artigos 1º, 3º, 170, 205, 208, 215 e 217, § 3º, da Constituição do Brasil. 1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial à livre-iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre-iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao

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Com isso, o constituinte procurou neutralizar e reduzir as distorções que possam advir do

abuso da liberdade de iniciativa, tal como exposto por Diogo de Figueiredo Moreira Neto: O princípio da liberdade de iniciativa tempera-se pelo da iniciativa suplementar do Estado; o

princípio da liberdade de empresa corrige-se com o da definição da função social da empresa; o princípio da liberdade de lucro, bem como o da liberdade de competição, moderam-se com o da repressão do poder econômico; o princípio da liberdade de contratação limita-se pela aplicação dos princípios de valorização do trabalho e da harmonia e solidariedade entre as categorias sociais de produção; e, finalmente, o princípio da propriedade privada restringe-se como o princípio da função social da propriedade.95

Neste contexto, a Constituição da República visa proteger não apenas o interesse

individual do empresário (liberdade de indústria ou comércio, liberdade de empresa, liberdade de

contrato etc.), mas igualmente procura vincular o desenvolvimento da empresa dentro de um

quadro social estabelecido pelo poder público, tendo como fim último à justiça social. Destarte, a

liberdade de iniciativa “será legítima, enquanto exercida no interesse da justiça social. Será

ilegítima, quando exercida com objetivo de puro lucro e realização pessoal do empresário”.96

A livre-iniciativa, como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito, serve de

base para a ordem econômica constitucional, todavia não pode concorrer nem entrar em colisão

com outros direitos fundamentais, igualmente tutelados na Constituição, v.g., ir contra o interesse

geral, a utilidade social, a liberdade e a segurança das pessoas, a dignidade da pessoa humana97

dentre outros direitos fundamentais constitucionalmente tutelados.

contemplá-la, cogita também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. 4. Se de um lado a Constituição assegura a livre-iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto (artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição). Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. [...] (STF, ADI nº 1950/SP, Tribunal Pleno, rel. Min. Eros R. Grau, j. em 03/11/2005, DJU de 02/06/2006, p. 04). 95 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Ordem econômica e desenvolvimento na Constituição de 1988. 1989, p. 28. (Apud: BARROSO, Luís Roberto. Temas..., p. 394-395). 96 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 673. 97 Sobre a análise correlata entre os princípios fundamentais da livre-iniciativa e da dignidade da pessoa humana, trataremos no próximo tópico. No entanto, desde logo urge destacar a diferença existente entre “dignidade da pessoa humana” e “dignidade humana”, o que se faz através da citação de Jorge Miranda: “Da mesma maneira que não é o mesmo falar em direito do homem e direitos humanos, não é exactamente o mesmo falar em dignidade da pessoa humana e em dignidade humana. Aquela expressão dirige-se ao homem concreto e individual; esta à humanidade, entendida ou como qualidade comum a todos os homens ou como conjunto que os engloba e ultrapassa. Declarando a comunidade política portuguesa ‘baseada na dignidade da pessoa humana’, a Constituição afasta e repudia qualquer tipo de interpretação transpersonalista ou simplesmente autoritária que pudesse permitir o sacrifício dos direitos ou até da personalidade individual em nome de pretensos interesses colectivos”. (MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo IV. Coimbra: Coimbra, 1988, p. 170). (Apud: POPP, Carlyle. Responsabilidade Civil Pré-Negocial: rompimento das tratativas. 1. ed. 5. tir. Curitiba: Juruá, 2006, p. 57).

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2.3.1.2 A dignidade da pessoa humana e sua coexistência com o princípio fundamental da livre-iniciativa na ordem econômica brasileira

Dentro do sistema que forma a Constituição, existem normas-princípio (princípios) e

normas-disposição (regras). Estas têm eficácia limitada às situações específicas às quais são

aplicadas. Já os princípios têm maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do

sistema.98 Não obstante inexistir hierarquia em sentido normativo entre as normas constitucionais

(diante do princípio da unidade da Constituição), “isso não impede, todavia, que normas de

mesma hierarquia tenham funções distintas dentro do ordenamento”.99

Consoante se extrai do capítulo anterior, a livre-iniciativa, exercida através da liberdade

individual dos sujeitos de direito, foi alçada pelo legislador constitucional como princípio

fundamental100 da República Federativa do Brasil, sendo necessária e indispensável para se atingir

o desenvolvimento econômico e social de um país capitalista, fundado sobre o regime

Democrático de Direito.

No entanto, tal como a livre-iniciativa, a dignidade da pessoa humana constitui-se também

em princípio fundamental (inserido no art. 1º, inciso III da Constituição de 1988), onde se

encontra o alicerce que sustenta o ordenamento jurídico brasileiro.101 Não é diferente o

fundamento utilizado em grande parte das sociedades ocidentais102, as quais “repousam sobre uma

base substancial unívoca e forte. Essa base é a pessoa humana”.103

98 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 141. 99 Id. Ibid., p. 142. 100 “São direitos fundamentais somente aqueles que podem valer como anteriores e superiores ao Estado; aqueles que o Estado não outorga, não cria, dando-lhes conteúdo através de suas leis, mas apenas reconhece e protege como dados anteriormente a ele, direitos ‘inatos’, na linguagem jusnaturalista” (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Op. cit., p. 694). 101 “Não se trata de um princípio qualquer, mas de um princípio fonte. E o é, pois inserido no Título I da Constituição pátria, onde constam os princípios fundamentais, ou seja, aqueles que alicerçam, que fundamentam, sustentam todo o ordenamento jurídico” (POPP, Carlyle. Liberdade negocial e dignidade da pessoa humana: aspectos relevantes. In: NALIN, Paulo; VIANNA, Guilherme Borba (Coord.). Direito em movimento por Popp&Nalin Advogados. Curitiba: Juruá, 2007, p. 63). 102 Conforme leciona José Joaquim Gomes Canotilho, “quando na Constituição Portuguesa se fala em respeito pela ‘dignidade da pessoa humana’ não se trata de definir ou consagrar um ‘homo clausus’, nem reconhecer metafisicamente a pessoa como ‘centro do espírito’, nem impor constitucionalmente uma ‘imagem unitária do homem e do mundo’, nem ainda ‘amarrar’ ou encarcerar o homem num mundo cultural específico, mas tornar claro que na dialética ‘processo-homem’ e ‘processo-realidade’ o exercício do poder e as medidas da praxis devem estar conscientes da identidade da pessoa com os seus direitos (pessoais, políticos, sociais e econômicos), a sua dimensão existencial e a sua função social” (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição dirigente e vinculação do legislador. Contributo para a compreensão das normas constitucionais programáticas. Reimpressão. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 34-35). A Constituição da República italiana também trata da dignidade da pessoa humana

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Destarte, a dignidade da pessoa humana decorre da afirmativa de que o homem seja visto

como um fim em si mesmo, e não apenas como um instrumento para se atingir algo, e, justamente

por isso, tem dignidade, é pessoa.104 Em outras palavras, “a dignidade da pessoa humana significa

a superioridade do homem sobre todas as demais coisas que o cercam; é o homem como

protagonista da vida social. Representa, então, a subordinação do objeto ao sujeito de direito”.105

Ainda nas palavras de Carlyle Popp:

Dignidade da pessoa humana não indica somente um dever do Estado, um conteúdo social-programático, mas sim, um norte interpretativo de todo o sistema jurídico, constitucional ou infraconstitucional. Em resumo, não é suficiente para um Estado Democrático de Direito somente ratificar o direito do homem de ser homem, mas, também, conceder instrumentos para preservar sua humanidade.106

A seu turno, Pietro Perlingieri desenvolve o tema no sentido de que num pluralismo de

formações sociais, não se pode colocar no mesmo patamar formas sociais diversas, como

sindicato, partido político, cooperativa, família, empresa etc., na medida em que estas diversas

formas devem ser vistas conforme a sua função socioeconômica.107 A idéia do jurista italiano pode

ser melhor compreendida através da seguinte passagem: As formações sociais, mesmo quando se colocam em planos diferentes, têm autonomia e capacidade

de auto-regulamentação, mas sempre no âmbito do ordenamento no qual são destinadas a ter precípua relevância. Homologar, aprovar, controlar atos e atividade de uma formação social, significa garantir no seio da comunidade, o respeito à dignidade das pessoas que dela fazem parte, de maneira que se possa consentir a efetiva participação às suas vicissitudes.

A liberdade de cada um deve ser compatível com o valor de tutela da pessoa, com a qual qualquer liberdade é obrigada a se medir; de outro modo, a liberdade individual torna-se prepotência com os ‘menores em sentido amplo’, arrogância contra pessoas não organizadas; afirmação que não pretende minimamente, ofender o pluralismo que, justamente, no respeito à minoria afunda as raízes históricas e ideais”.108

de forma similar à Constituição brasileira, só que de modo mais explícito, ou seja: “Art. 41. L’iniziativa economica privata è libera. Non può svolgersi in contrasto con l’utilità sociale o in modo da recare danno alla sicurezza, alla libertà, alla dignità umana. La legge determina i programmi e i controlli opportuni perché l’attività economica pubblica e privata possa essere indirizzata e coordinata a fini sociali”. Trad. de Maria Cristina De Cicco: É livre a iniciativa econômica privada. Não pode desenvolver-se em contraste com a utilidade social ou de modo a causar dano à segurança, à liberdade ou à dignidade humana. A lei determina os programas e os meios de fiscalização destinados à direção e coordenação da atividade econômica, pública e privada, para fins sociais (PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil. Trad. de Maria Cristina De Cicco. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 327). 103 ASCENSÃO, José de Oliveira. Pessoa, direitos fundamentais e direito da personalidade. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões controvertidas no Novo Código Civil. Parte geral do Código Civil. São Paulo: Método, 2007, v. 6, p. 106. 104 SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos, 1998, p. 27. 105 POPP, Carlyle. Liberdade negocial..., p. 65. 106 Id. Ibid., p. 64. 107 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 39. 108 Id. Ibid., p. 39-40.

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Como visto até o momento, não obstante a coexistência equânime destes dois princípios

fundamentais que alicerçam e fundamentam a República Federativa do Brasil (livre-iniciativa e

dignidade da pessoa humana), não é possível tratá-las com o mesmo grau de prevalência dentro

dos princípios gerais que capitaneiam a atividade econômica do país, ou seja, através da análise do

art. 170 da Constituição da República.

Tal se dá pela interpretação109 (atribuição da melhor interpretação aos vários princípios e

normas existentes em determinado ordenamento jurídico)110 principiológica e sistêmica do caput

do art. 170 da Constituição de 1988, o qual dispõe: A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, tem por fim

assegurar a todos existência digna, conforme os ditamos da justiça social, observados os seguintes princípios.

Como se observa, o objetivo da ordem econômica e financeira, fundamentada na

valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa, é assegurar a todos a existência digna,

conforme os ditames da justiça social. Ou seja, a própria Constituição acaba por limitar o

exercício da livre-iniciativa para que seja alcançada a existência digna. Tal se dá, porque o

princípio da livre-iniciativa não pode ser interpretado fora de um contexto maior que é o da Justiça

Social e o do bem-estar coletivo.

No entanto, para que se possa limitar a livre-iniciativa (princípio fundamental do Estado

Democrático de Direito), deve existir uma justificativa (valor) constitucional de maior grau de

importância para a sociedade (coletividade), pois, caso contrário (caso não exista outro valor ou

109 “Se interpretar o Direito é, invariavelmente, realizar uma sistematização daquilo que aparece como fragmentário e isolado, pois o ordenamento é apenas ordenamento em potência, um conjunto de possibilidades de interpretação, de normas potenciais, o intérprete jurídico estrutura, convém reiterar, uma cena de normas, princípios e valores como que disputando a primazia. Interpretando o objetivamente dado, o exegeta ordena a sua sistematização e, ao fazê-lo, transcende-o inevitavelmente, porquanto só na transcendência o imanente jurídico experimenta sentido, na órbita da valoração. Destarte, a interpretação faz escolhas, sim, ou seja, elege preferências, sem que tal fazer possa ser traduzido como substitutivo da atividade do legislador, mas certamente completando o seu trabalho, em atenção às múltiplas exigências da vida real, dinâmica e insuperável em desafiar lógicas estritas. Por isso que interpretar é bem hierarquizar e a hermenêutica há de ser tida como o processo dialógico de sistematização do Direito. Ao intérprete incumbe colocar a norma, formal e substancialmente, em harmonia com o sistema jurídico, concebido e pressuposto como garantidor da coexistência das liberdades e igualdades no presente vivo em que se dá a operação hermenêutica” (LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 137-138). 110 Juarez de Freitas conceitua a interpretação sistemática como “uma operação que consiste em atribuir, topicamente, a melhor significação, dentre várias possíveis, aos princípios, às normas estritas (ou regras) e aos valores jurídicos, hierarquizando-os num todo aberto, fixando-lhes o alcance e superando as antinomias em sentido amplo, tendo em vista bem solucionar os casos sob sua apreciação” (FREITAS, Juarez. A interpretação sistemática do direito. 2. ed. São Paulo : Malheiros, 1998, p. 57). (Apud: LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 138).

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bem maior tutelado pelo Estado), não se pode vislumbrar limitação ou interferência ao princípio

constitucional fundamental que garante a livre-iniciativa.111

A atividade econômica visa um fim maior que é o desenvolvimento econômico, o qual, a

seu turno, pressupõe a acumulação de riquezas. No entanto, o desenvolvimento econômico não é

um fim em si mesmo, mas deve estar atrelado, sobretudo, à melhoria da qualidade de vida das

pessoas e o que isso traz de felicidade112 para elas.

Neste ponto, volta-se à interpretação que se pretende dar aos princípios gerais da atividade

econômica (art. 170 CR), qual seja: a organização dos meios de produção e da livre-iniciativa, a

fim de assegurar a todos uma existência digna. Ou seja, “o capitalismo propicia o crescimento

econômico, mas o desenvolvimento econômico é aquele que afere a dignidade da existência de

todos, num ambiente de justiça social”.113

Com efeito, o atendimento da justiça social através da preservação do princípio da

dignidade humana114 deve ser um dos corolários da liberdade da atividade econômica exercida

pelo empresário, a qual deve ser interpretada em conformidade com os demais princípios que

informam a ordem econômica.115 “Significa dizer que a interpretação de qualquer princípio deve

111 VAZ, Manuel Afonso. Direito Econômico. 3. ed. Coimbra, 1994, p. 161. (Apud: POPP, Carlyle. Liberdade negocial..., p. 70). 112 José de Oliveira Ascensão trabalha com a idéia de um “Direito à Felicidade” como direito fundamental que ainda não foi positivado, talvez propositadamente, sustenta o jurista lusitano, já que a felicidade está cada dia mais distante da realidade, na medida em que a sociedade passa a forjar constantemente subterfúgios para disfarçar a promessa [de que o Estado atuará para trazer felicidade ao indivíduo] da realidade (ASCENSÃO, José de Oliveira. Op. cit., p. 112). Contudo, vale a pena lembrar que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (de 1789) já fazia referência à busca da felicidade, conforme se observa pela parte introdutória: “Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são a única causa dos males públicos e da corrupção dos governos, resolveram expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, sempre presente a todos os membros do corpo social, lhes recorde sem cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e os do Poder Executivo, podendo a cada momento ser comparados com finalidade de toda instituição política, sejam mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas de agora em diante sobre os princípios simples e incontestáveis, concorram sempre para a manutenção da Constituição e a felicidade de todos” (grifa-se) (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Op. cit., p. 684). 113 LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 83. 114 “A dignidade da pessoa humana continua, talvez mais do que nunca, a ocupar um lugar central no pensamento filosófico, político e jurídico, do que dá conta a sua já referida qualificação como valor fundamental da ordem jurídica, para expressivo número de ordens constitucionais, pelo menos para as que nutrem a pretensão de constituírem um Estado Democrático de Direito”. (SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 36-37) (Apud: LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 170-171). 115 Rachel Sztajn, ao comentar sobre a extensão da liberdade de iniciativa (prevista no art. 170 da CR) para organização da atividade econômica sob a forma empresarial, sustenta que “a atividade empresarial tem nessa liberdade seu pilar, que vem conformado por instrumentos de política legislativa, entre os quais a dignidade da pessoa humana” (SZTAJN, Rachel. Teoria..., p. 16).

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ser compreendida a partir de um todo, como parte integrante de um conjunto principiológico, cujo

ápice é o princípio da dignidade humana”.116

2.3.1.3 A valorização do trabalho humano

Juntamente com a livre-iniciativa, a Constituição de 1988 estabeleceu como fundamento

da ordem econômica a valorização do trabalho117 humano, a fim de assegurar a todos a existência

digna, conforme os ditames da justiça social.

A valorização do trabalho118 passou a ser mais bem tutelada com o advento do Estado

social, quando, “sensível aos movimentos operários que reivindicavam melhores condições de

vida para os trabalhadores [...], passou a intervir no plano social, com a finalidade de proteger a

pessoa do trabalhador diante do empregador”.119 A partir de então, a pessoa passa a prevalecer

sobre qualquer valor patrimonial (reconstrução do sistema segundo o valor da pessoa)120, pois “o

patrimônio deve servir à pessoa, e, portanto, as situações subjetivas patrimoniais são

funcionalizadas à dignidade da pessoa”.121

116 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Liberdade de contratar e livre-iniciativa. Direito civil constitucional: situações patrimoniais. Carmem Lucia Silveira Ramos (Coord.) Curitiba: Juruá, 2002, p. 109. Continua a autora citando alguns exemplos onde a própria Constituição dispõe expressamente acerca de algumas exceções à livre-iniciativa: 1) Art. 225, IV, que limita a instalação de atividade potencialmente causadora de degradação ao meio ambiente; 2) Art. 225, V, a qual controla a produção e comercialização que possam importar em risco para a vida ou do meio ambiente; 3) Art. 225, § 4º, a qual controla a utilização das áreas integrantes do patrimônio nacional para que não infrinjam a lei, degradem o meio ambiente ou os recursos naturais; 4) Art. 225, § 3º, limita o desenvolvimento de uma atividade econômica dentro dos padrões ecologicamente corretos (p. 110). 117 “O trabalho é para cada Homem ao mesmo tempo um direito e uma obrigação. Como direito deflui diretamente do direito à vida. Para viver, tem o homem de trabalhar. A ordem econômica que lhe rejeita a oportunidade de trabalho, ipso facto lhe recusa o direito à sobrevivência, porque lhe recusa os meios indispensáveis para essa mesma sobrevivência. A obrigação deriva do fato de viver o homem em sociedade, de tal sorte que o bem do todo depende da colaboração e do esforço de cada um” (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira. Saraiva, 1967, p. 508). (Apud: DANTAS, Ivo. Direito..., p. 67-68). 118 Conforme José Affonso Dallegrave Neto, “o contrato de emprego” pode ser visto como “uma relação jurídica complexa, dinâmica, social e solidária”, o que certamente ocasionará a repersonalização do sujeito, “vendo o empregado não apenas como sujeito abstrato de direito, mas também como cidadão que detém valor e uma pletora de direitos fundamentais” (DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Notas sobre a subordinação jurídica e a função social da empresa à luz do solidarismo constitucional. In: GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.). Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 204). 119 BARACAT, Eduardo Milléo. A boa-fé nas relações trabalhistas. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (Coord.). Direito civil constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, p. 43. 120 Neste sentido discorre Pietro Perlingieri ao dissertar sobre o “caminho da ‘despatrimonialização do Direito Civil’” (PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 33-34). 121 COUTINHO, Aldacy Rachid. Função social do contrato de trabalho. In: COUTINHO, A. R.; DALLEGRAVE NETO, J. A.; GUNTHER, L. E. (Org.). Transformações do Direito do Trabalho. Estudos em homenagem, ao Professor João Régis Fassbender Teixeira. Curitiba: Juruá, 2000, p. 50. (Apud: DALLEGRAVE NETO, José Affonso. Op. cit., p. 204).

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Forte nestas colocações, o trabalho não é mais visto como mera mercadoria para assunção

de energias físicas e intelectuais, mas o que deve prevalecer é a pessoa do trabalhador, como

direito social constitucionalmente tutelado, razão pela qual o constituinte incluiu o direito dos

trabalhadores como objetivo básico da ordem social nos arts. 7º e 193 da Constituição de 1988.

Assim, a valorização do trabalho humano consta como um dos fundamentos da República

Federativa do Brasil (art. 1º, IV CR). Da mesma forma, o art. 170 prevê que a ordem econômica

se funda na valorização do trabalho, enquanto que o art. 193 dispõe que a ordem social tem como

sustentáculo o primado do trabalho. A integração destes dispositivos é que torna possível

“reconhecer o direito social ao trabalho, como condição da efetividade da existência digna (fim de

ordem econômica) e, pois, da dignidade da pessoa humana, fundamento, também, da República

Federativa do Brasil (art. 1, III)”.122

Por outro lado, não obstante patrimônio e pessoa constituírem-se em realidades distintas123

(da mesma forma que os titulares de trabalho e de capital também o são),124 “o capitalismo

moderno, renovado, pretende a conciliação e composição entre ambos”125 (capital e trabalho), na

medida em que tanto um, como outro, fundamentam a ordem econômica prevista na Constituição

da República.

Neste sentido, vale a pena conferir o delineamento feito por Eros Roberto Grau: São fundamentos da República, isto é, do Brasil, entre outros, o valor social do trabalho e o valor

social da livre-iniciativa. A ordem econômica (mundo do ser) deve estar fundada na valorização do trabalho humano e na livre-iniciativa – a Constituição consagra, aí, note-se, a valorização do trabalho humano e livre-iniciativa, simplesmente. A livre-iniciativa, ademais, é tomada no quanto expressa de socialmente valioso; por isso não pode ser reduzida, meramente, à feição que assume como liberdade econômica, empresarial (isto é, da empresa, expressão do dinamismo dos bens de produção); pela mesma razão não se pode nela, livre-iniciativa, visualizar tão-somente, apenas, uma afirmação do capitalismo. Assim, livre-iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pelo capital, mas também pelo trabalho.126

Ademais, também não se pode perder de vista que a valorização do trabalho humano está

diretamente vinculada com o desenvolvimento econômico e social como um todo, pois, não

obstante o mercado poder substituir o trabalhador por máquinas (capital, tecnologia etc.), não

poderá sobreviver sem consumidores. E, o trabalhador de hoje desempregado ou subempregado,

122 SILVA, José Afonso. Op. cit., p. 261. 123 Neste sentido: FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 93-113, 154-190. 124 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 219. 125 Id. Ibid., p. 219. 126 Id. Ibid., p. 231.

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não se tornará o consumidor de amanhã, de modo que, da mesma forma que não pode haver

mercado sem consumidores, não pode haver consumidores sem emprego que os remunere

dignamente.

É frente a esta necessária engrenagem (capital – trabalho - consumidor) que o Estado pós-

moderno procura atuar nas relações socioeconômicas, procurando dar guarida tanto à garantia

social do trabalhador, como também garantir ao mercado (empresa) as condições necessárias para

o desenvolvimento de suas atividades produtivas. Isso sem nunca relegar para segundo plano a

valorização do trabalho humano, a qual é adotada como fundamento não só da ordem econômica

(art. 170 CR) e da ordem social (art. 193 CR), mas também da própria República Federativa do

Brasil (art. 1º CR), devendo ser entendida como um dos componentes necessários para se alcançar

justiça social e existência digna da pessoa humana.

2.3.1.4 A justiça social como fim da ordem econômica

Conforme visto anteriormente, a ordem econômica tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170 CR). Da mesma forma, a justiça

social também representa um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, pois

o art. 3º da Constituição de 1988 dispõe que uma das intenções do Estado brasileiro é “construir

uma sociedade livre, justa e solidária”.

Ao se colocar a justiça social como um ditame127, que deve ser observado para se

assegurar a existência digna dentro dos princípios gerais da atividade econômica, buscou-se

concretizar a eqüitativa distribuição da riqueza dentro do sistema capitalista vigente128, pois,

conforme leciona José Afonso da Silva, “um regime de justiça social será aquele em que cada um

deve poder dispor dos meios materiais de viver confortavelmente segundo as exigências de sua

natureza física, espiritual, política. Não aceita as profundas desigualdades, a pobreza absoluta e a

miséria”129.

Em outras palavras, se o fim da ordem econômica é assegurar a todos a existência digna

(remetendo ao princípio da dignidade da pessoa humana), conforme os ditames da justiça social, é

127 Ditame é: “1. Aquilo que se dita; 2. O que a consciência e a razão dizem que se deve ser. 3. Regra, aviso ordem, doutrina”. (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio básico da língua portuguesa. 1. ed. 4. impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988, p. 227). 128 SILVA, José Afonso. Op. cit., p. 669. 129 Id. Ibid., p. 669.

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possível concluir que a justiça social, por sua vez, representa uma forma de dignidade coletiva,

que atinge a todos, indistintamente.130 Ou seja, não basta que uma pessoa esteja vivendo com

dignidade se o seu próximo não está, pois é preciso diminuir a desigualdade social. Neste sentido

disserta Lafayete Josué Petter: Por isso que a justiça social está relacionada com a correção das grandes distorções que ocorrem

numa sociedade, diminuindo distâncias e diferenças entre as diversas classes que a constituem, favorecendo os mais humildes. Evitar que os ricos se tornem cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres e oferecer idênticas oportunidades a todos constituem variações semânticas do termo sob comento.131

A seu turno, Pietro Perlingieri trabalha a idéia de “igualdade na justiça social”, através de

uma filosofia de vida que não admite igualdade sem justiça social, nem justiça social sem

igualdade, pois, segundo o jurista italiano, “o princípio da igualdade é violado seja quando, sem

justificações constitucionalmente relevantes, cidadãos em situações iguais recebem um tratamento

diverso, seja quando cidadãos em situações diferentes e desproporcionadas recebem um

tratamento idêntico”132.

Destarte, por qualquer forma de interpretação que se faça quanto à justiça social

(perseguida pela Constituição de 1988 para ordenar a atividade econômica), é possível observar

que o constituinte procurou humanizar a ordem econômica, para que todos possam dela usufruir e

se beneficiar dignamente, realizando verdadeira justiça social.133

2.3.2 Os princípios constitucionais econômicos 130 “Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução das desigualdades sociais, juntamente com a previsão do § 2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direitos e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento” (TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 50). 131 LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 181. Celso Bastos e Ives Gandra da Silva Martins também dispõem no mesmo sentido: “A justiça social consiste na possibilidade de todos contarem com o mínimo para satisfazerem as suas necessidades fundamentais, tanto físicas como quanto espirituais, morais e artísticas” (BASTOS, Celso; MARTINS, Ives Grandra da Silva. Comentários à constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v. 7, p. 20). 132 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 48. 133 Conforme já sustentou Pontes de Miranda, “a ordem jurídica protege os interesses dos membros da comunidade enquanto entre si se harmonizam e coexistem; isto é, protege-os enquanto são dignos de proteção e necessitados dela” (MARTINS-COSTA, Judith. Os avatares do abuso do direito e o rumo indicado pela boa-fé. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. Parte geral do Código Civil. São Paulo: Método, 2007, v. 6. p. 505).

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2.3.2.1 O princípio constitucional econômico da propriedade privada

Juntamente com o princípio fundamental da livre-iniciativa, o princípio constitucional

econômico da propriedade privada134 forma o pilar de sustentação da “constituição econômica”,

na medida em que os demais princípios acabam se desenvolvendo a partir desses dois, para

enfatizar, para limitar, para distinguir contornos etc.135

Com efeito, a propriedade possui papel condicionante na sociedade, razão pela qual

sempre destinou grande interesse tanto na esfera pública, quanto na privada, sendo regulada

constitucionalmente de acordo com os movimentos sociais, políticos e econômicos vigentes em

cada período da história. Isso porque, dependendo da situação como a liberdade do indivíduo era

tratada dentro da sociedade136, a propriedade recebia correlato tratamento.137 “Se se reconhece o

direito de propriedade privada, se ela é um princípio da ordem econômica, disso decorre, só por si,

que se adotou um sistema econômico fundado na iniciativa privada”.138

Não se sabe ao certo quando nasceu o conceito de propriedade e nem quando foram

garantidos os primeiros direitos sobre a propriedade. No entanto, “existem indícios de que, com o

advento da escrita, cerca de 3100 a.C., já havia registros de venda de terras privadas. No período

histórico da Suméria, durante o reino de Uruk III (3100 a.C. – 2900 a.C.), direitos de propriedade

foram cedidos ou outorgados por editos ou tábuas, existindo provas de sanções contra a

propriedade alheia, inclusive no Código de Hamurabi (1792 a 1750 a.C.).139

134 Convém esclarecer a ressalva feita por José Afonso da Silva, para quem a Constituição trata de “propriedades” e não apenas de “propriedade”, ao passo que não obstante existir previsão sobre o direito de propriedade em geral (art. 5º, XXII); existe também sobre a propriedade urbana e a rural, a pública, a social e a privada, a agrícola e a industrial, a de bens de consumo e a de bens de produção, a de uso pessoal e a de propriedade/capital, cada qual possuindo regimes jurídicos próprios e disciplinas particulares, sobretudo porque “o princípio da função social atua diversamente, tendo em vista a destinação do bem objeto da propriedade” (SILVA, José Afonso. Op. cit., p. 248). 135 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 51. 136 “A importância das limitações e restrições ao direito de propriedade não precisa ser encarecida, quando se considere que é justamente na extensão dessas limitações, na maior ou menor intervenção do Estado na ordem econômica, no regime de propriedade adotado, que irá principalmente caracterizar-se o Estado burguês, capitalista, liberal, individualista, ou o Estado social, ou o Estado socialista, ou o Estado comunista. E o regime da propriedade, já o sabemos também, irá decisivamente influir na configuração de outras instituições, de outros institutos, de outros princípios políticos e jurídicos” (TEIXEIRA, José Horácio Meirelles. Op. cit., p. 711). 137 Segundo Erouths Cortiano Jr., “o indivíduo é proprietário de sua própria pessoa e tem capacidade de agir independentemente dos outros. Essa autonomia significa liberdade de agir, e liberdade confunde-se então com a propriedade. Ser proprietário significa ser livre. [...] Justifica-se a propriedade na liberdade, e a liberdade na propriedade. Também aqui vai a correlação que existe entre autonomia privada e direito de propriedade: ambas são expressões jurídicas da liberdade humana” (CORTIANO JR., Erouths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino de direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 91). 138 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 690. 139 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 95.

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No Direito romano, a propriedade pertencia fundamentalmente ao Estado, o qual as

repassava (arrendava) para as famílias patrícias (gens), as quais formavam grandes propriedades

coletivas (saltus – pastos e bosques; fundus ou villa – terrenos cultiváveis).140 Na época da

República, a propriedade romana poderia se apresentar como propriedade quiritária (dominium ex

jure quiritium), propriedade pretoriana ou bonitária e propriedade provincial. Já no direito

justiniano, o imperador Justiniano acabou com as distinções até então existentes, e unificou o

conceito de dominium ou proprietas, passando a existir o pleno poder sobre a coisa (plena in re

potestas).141

Na Idade média (feudalismo), a propriedade pertencia aos senhores feudais, os quais

concentravam não apenas o direito de propriedade, mas também a jurisdição política, aplicando a

cobrança de contribuições onerosas em desfavor dos vassalos, servos e semilivres, permanecendo

assim durante muitos séculos, só encontrando resistência no decurso das revoluções européias,

quando foram abolidos os remanescentes da servidão feudal.142

Contudo, foi através das reformas benthamitas (1830 e 1840) e, sobretudo, pela

Revolução Francesa143 (1789) que este quadro feudal foi definitivamente alterado, valendo a pena

140 ROLIM, Luiz Antonio. Instituições de direito romano. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 185. 141 “A propriedade quiritária era aquela que já existia nos primeiros séculos de Roma. Era regulada pelas normas rígidas e formais do jus civile ou direito quiritário, daí a sua denominação”. Já a propriedade pretoriana surgiu com a República, e “podia ser adquirida não só pelos cidadãos romanos, mas também pelos estrangeiros, e os modos de aquisição nem sempre eram aqueles solenes e formais exigidos pelo jus civile”. Por fim, na propriedade provincial, “os bens situados nas províncias eram de propriedade exclusiva do Estado romano ou do imperador (provinciali), mas podiam ser usados pelos particulares através do usus, do fructus da passessio ou habere possidere. O possuidor dessas terras, no entanto, deveria pagar ao Estado, pelo seu uso, um tributo anual denominado agri stipendiarii ou agri tributarii” (ROLIM, Luiz Antonio. Op. cit., p.185-186). 142 Conforme explica Karl Polanyi, “o novo sistema se organizou, de início, lado a lado com o antigo, que se tentou assimilar e absorver através da manutenção do controle daquela terra ainda ligada a laços pré-capitalistas. O seqüestro feudal da terra foi abolido. ‘O objetivo era a eliminação de todas as reivindicações por parte das organizações de vizinhança ou de parentesco, principalmente as da viril estirpe aristocrática assim como as da Igreja – reivindicações que isentavam a terra da comercialização ou da hipoteca’. Parte desse objetivo foi atingido pela força individual e a violência, parte por revoluções do alto ou de baixo, parte pela guerra e a conquista, parte pela ação legislativa, parte por pressão administrativa, parte pela ação espontânea de pessoas privadas, em pequena escala, ao longo de muito tempo. O fato desse transtorno ser rapidamente absorvido ou causar um ferimento aberto no corpo social dependeu basicamente das medidas tomadas para regular o processo. Os próprios governos introduziram fatores poderosos de mudanças e ajustamento. A secularização das terras da Igreja, por exemplo foi um dos fundamentos do estado moderno até a época o Risorgimento italiano e, bem a propósito, ele foi um dos meios principais da transferência ordenada da terra para as mãos de indivíduos privados” (POLANYI, Karl. Op. cit., p. 216). 143 “A Revolução Francesa decretou a destruição do feudalismo e a supressão da propriedade parcelada, criando um modelo proprietário de feição liberal-individualista que tem um significado histórico de destruição dos institutos feudais que a imobilizavam e de construção de um sentido de livre acesso e livre circulação da propriedade” (CORTIANO JR., Erouths. Op. cit., p. 92).

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destacar que “o Code Napoléon instituiu formas de propriedade para a classe média,

transformando a terra em bem comerciável e tornando a hipoteca um contrato civil privado”.144

Na França, através do art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão145

(1789), a propriedade ficou definida como um direito sagrado e inviolável, demonstrando bem a

prevalência do caráter individualista liberal da época (para o qual a preservação da propriedade

privada estava diretamente ligada à preservação da liberdade individual), pensamento este que só

foi alterado no alvorecer do Estado social, quando se constatou que a propriedade também poderia

significar falta de liberdade.146

Com efeito, a partir de então147 (v.g., Constituição de Weimar de 1919, Constituição

espanhola de 1932), a propriedade passou a conter limites e gerar obrigações,148 de modo que o

seu uso passou a ser vinculado ao proveito social em favor da coletividade.149 Como visto

anteriormente, foi durante o Estado social que as Constituições passaram a prever uma nova

definição para os direitos fundamentais. No Brasil, foi a Constituição de 1934 que iniciou esta

144 POLANYI, Karl. Op. cit., p. 216. 145 “Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização” (Art. 17 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão). 146 Jhering, citado por Lafayete Josué Petter, já apresentava sua crítica ao conceito puramente individualista de propriedade: “Quando for reconhecida à verdade a vitória no mundo, então virá a era em que a propriedade se investirá em uma outra forma que hoje, na qual a sociedade reconhecerá tão pouco o pretenso direito do proprietário de acumular bens deste mundo na qualidade que lhe aprouver, como o direito de desafio e o assalto de estradas dos cavaleiros medievais, como o direito corporativo da Idade Média” (LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 201). 147 Segundo Waldyr Grisard Filho, “a teoria jurídica, revolucionária, de que a propriedade privada deve cumprir sua função social, vem de Léon Duguit, expendida nas primeiras décadas do século passado. O proprietário não é, em verdade, titular de um direito subjetivo, mas apenas, o detentor da riqueza, uma espécie de gestor da coisa, que deveria ser socialmente útil” (GRISARD FILHO, Waldyr. A função social da propriedade (do direito de propriedade ao direito à propriedade). In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (Coord.). Direito civil constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, p. 235). 148 Exemplo desta dupla função (relativização do domínio) que recai hoje sobre a propriedade pode ser verificada no art. 1.228, caput e § 1º do Código Civil, pois, enquanto no caput atribui amplos poderes ao proprietário, o § 1º disciplina que tal direito deve ser exercido de acordo com as suas finalidades econômicas e sociais. Da mesma forma, o parágrafo único do art. 2.035 estabelece que “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos”. 149 Sobre a função social da propriedade destinaremos o próximo tópico. A “Convenzione Europea dei Diritti Dell’Uomo e Delle Libertà Fondamentali” (Na tradução livre: Convenção Européia dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”), através do Protocolo nº 1 (firmado pelos países membros do Conselho da Europa em 20/03/1952), já colocava a proteção da propriedade privada como direito fundamental do homem, ut infra: “Articolo 1 - Protezione della proprietà: Ogni persona fisica o giuridica ha diritto al rispetto dei suoi beni. Nessuno può essere privato della sua proprietà se non per causa di utilità pubblica e nelle condizioni previste dalla legge e dai principi generali del diritto internazionale.(...)”. Na tradução livre: “Artigo 1 - Proteção da propriedade: Toda pessoa física ou jurídica tem direito ao respeito dos seus bens. Ninguém pode ser privado da sua propriedade senão por força de utilidade pública e nas condições previstas pela lei e pelos princípios gerais do direito internacional.(...)”. (Apud: Studi per la pace. Disponível em: [http://www.studiperlapace.it/documentazione/europrot1.html]. Acesso em: 21/04/2007).

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mudança de paradigmas quanto à visão da propriedade no seio da sociedade, pensamento este que

foi observado pelas demais Constituições (guardadas as devidas peculiaridades), até chegar à

Constituição de 1988.

O texto constitucional vigente “inclui a propriedade privada entre os alicerces da Ordem

Econômica, juntamente com a função social da propriedade, esta também considerada

autonomamente (art. 170, II e III)”.150 Ou seja, a Constituição da República estabelece,

concomitantemente, a propriedade como direito fundamental do homem e princípio de ordem

econômica (arts. 5º, XXII e art. 170, II da CR), todavia, limita-o pelo atendimento a sua função

social (arts. 5º, XXIII e 170, III da CR).151

Por outro lado, importante destacar que existe diferença entre a limitação ao direito de

propriedade e a função social que está incorporada no seu conteúdo. Ou seja, os direitos de uso,

gozo e disposição (restrições impostas pelo sistema normativo), bem como o direito de

vizinhança, os direitos reais sobre coisas alheias e o exercício do poder de polícia (limitações ao

direito do proprietário), não se confundem com “a exigência constitucional principiológica da

função social da propriedade. Esta, antes de caracterizar mera limitação ao direito de propriedade,

como aqueles, incide no conteúdo do direito, fazendo parte de sua estrutura”.152

Ao comentar sobre os limites da autonomia privada sob a ótica constitucional vigente,

Paulo Nalin explica a distinção entre “ser” função social e “ter” função social:

O entendimento da força irradiante do princípio da autonomia privada, estruturado em base socialmente funcional, também conduz à conclusão de que os seus institutos derivados – dos atos e dos negócios jurídicos interprivados – ao contrário do que uma análise superficial poderia levar a imaginar, são função social; eles não têm função social. Não se trata de mera filigrana lingüística, haja vista que ao ser função social (diz-se: o contrato é função social, a propriedade é função social etc.), implicitamente, se reconhece que a finalidade social do instituto faz parte da sua própria estrutura ou significa a razão de ser do mesmo. Ao contrário, concebendo-se um instituto privado com função social (diz-se: o contrato tem função social, a propriedade tem função social etc.) remete-se ao exterior da sua estrutura o valor social do instituto.153

150 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 307. 151 José Afonso da Silva sustenta que a propriedade deveria estar inserida apenas como uma instituição de ordem econômica (como instituição de relações econômicas), como ocorre nas Constituições da Itália (art. 42) e de Portugal (art. 62), na medida em que diante da vinculação da mesma ao fim de “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, acaba por relativizar a previsão individualista do art. 5º, XXII da CR (grifa-se) (SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 245). 152 LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 203. 153 NALIN, Paulo. A autonomia privada na legalidade constitucional. In: NALIN, Paulo (Coord.). Contrato & sociedade princípios de direito contratual. Curitiba: Juruá, 2006, p. 33-34.

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Na mesma linha, só que tratando especificamente do direito real de propriedade, Orlando

Gomes traz a mesma concepção distintiva:

Registrando a evidente diferença estrutural e política existente entre propriedade que tem função social e propriedade que é função social, esclarece que, na primeira colocação, a propriedade permanece como uma situação subjetiva no interesse do titular, e que só ocasionalmente este é investido na função social, enquanto na outra perspectiva a propriedade é atribuída ao proprietário, não no interesse preponderante deste, mas no interesse público ou coletivo.154

Destarte, enquanto a função social atinge diretamente os valores constitucionais

fundamentais,155 o caráter negativo ao exercício do direito de propriedade repercute na limitação

imposta pelo Estado ao exercício dos poderes outorgados à situação proprietária. Neste sentido,

oportuna ainda é a citação de Fábio Konder Comparato, para o qual, A concepção privatista de propriedade [...] tem levado, freqüentemente, autores e tribunais à

desconsideração da verdadeira natureza constitucional da propriedade, que é sempre um direito-meio e não um direito-fim. A propriedade não é garantida em si mesma, mas como instrumento de proteção de valores fundamentais.156

Em outras palavras, a função social da propriedade visa promover os valores

constitucionais fundamentais (atinge a essência do direito de propriedade), enquanto que o caráter

restritivo (limitador) implica apenas a restrição ao exercício dos poderes outorgados à situação

proprietária. É, por assim dizer, um direito individual (visa proteger, v.g., o indivíduo e sua

família), outrora muito mais valorizado, na medida em que a propriedade garantia a subsistência

da família; hoje em dia encontra-se mais relativizado, diante das garantias do emprego e do salário

justo, das prestações sociais devidas ou garantidas pelo Estado (INSS), educação, habitação,

transporte etc.,157 direitos estes que possibilitam ao indivíduo garantir sua subsistência através de

outras formas e intervenções estatais.

154 GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 127. 155 André Osório Gondinho demonstra esta interpretação sob a ótica da propriedade: “Todavia, a função social da propriedade não se confunde com nenhuma dessas restrições. A função social não surge do texto constitucional como mero limite ao exercício do direito de propriedade, mas, como princípio básico que incide no conteúdo do direito, fazendo parte de sua estrutura. Não se pode elaborar um conceito de propriedade sem função social” (GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 419). 156 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do Centro de Estudos Jurídicos do Conselho da Justiça Federal. Brasília, v. 1, n. 3, set./dez. 1997, p. 98 (Apud: LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 203-204). 157 COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 25, n. 63, jul./set. 1986, p. 73.

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No entanto, esta visão atual (de relativização do direito individual da propriedade) em

favor da função social, não afasta a importância do instituto da propriedade privada, sobretudo

porque, sob o viés da Constituição de 1988, a autonomia privada158 (princípio básico do Direito

Privado que contempla tanto o contrato como a propriedade) pode ser analisada a partir do

princípio fundamental da livre-iniciativa e da sua indissociável vinculação com a justiça social,

demonstrando ser possível uma nova interpretação dos institutos privados do Direito Civil sob a

ótica da nova ordem normativa trazida pela Constituição.159

2.3.2.2 O princípio constitucional econômico da função social da propriedade

Não obstante apenas com o surgimento do Estado social a propriedade privada passou a

ser tratada sob um enfoque menos liberal e individualista, desde os primórdios já existiam formas

de o Estado intervir de maneira direta ou indireta na propriedade particular do cidadão.160 No

entanto, conforme visto anteriormente, a intervenção do Estado na propriedade privada não ocorre

apenas nas hipóteses pontuais que se relacionam com o uso e gozo dos bens próprios (descritas no

art. 1.228 do Código Civil), mas também em razão da nova função (dever-ser) que a propriedade

desempenha na sociedade contemporânea.

Com efeito, o termo função (deriva do substantivo latim functione, o qual, por sua vez,

deriva do verbo depoente fungor (functus sum, fungi) e significa cumprir algo, ou desincumbir-se

de um dever ou de uma tarefa),161 é utilizado, na análise institucional do direito, para designar a

finalidade legal de um instituto jurídico, ou seja, qual a importância ou qual o valor para a sua

existência. 158 Como “princípio fundamental de todo e qualquer sistema jurídico que se baseia na lógica da relevância da vontade humana ou no poder de autodeterminação da pessoa” (NALIN, Paulo. A autonomia..., p. 23). 159 Sobre o enquadramento da autonomia privada na legalidade constitucional vigente, conferir: NALIN, Paulo. A autonomia..., p. 13-43. 160 Luiz Antonio Rolim comenta que no Direito romano já existiam limitações diretas e indiretas ao direito de propriedade. Dentre as limitações de direito público, o autor cita casos onde o proprietário deveria deixar transitarem sob sua propriedade quando a via pública estivesse sofrendo reparos, ou quanto aos proprietários de terrenos às margens dos rios, os quais não podiam impedir que os barcos atracassem, ou mesmo quanto ao limite de altura das edificações, as quais não poderiam superar os 70 pés (na época de Augusto) e 60 pés (na época de Trajano). Quanto às limitações de interesse privado, existiam sobretudo quanto ao direito de vizinhança, pois os proprietários de prédios vizinhos deveriam suportar os galhos sobre seu terreno com altura superior a 15 pés, ou ainda permitir que os vizinhos entrassem em seu imóvel, dia sim, dia não, para recolher os frutos caídos no chão, ou ainda o impedimento de que alguém construísse um edifício que pudesse escurecer o prédio vizinho (ROLIM, Luiz Antonio. Op. cit., p. 189). 161 COMPARATO, Fábio Konder. Estado, empresa e função social. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 85, v. 732, p. 40, out. 1996.

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É de Leon Duguit um dos principais (e pioneiros) estudos sobre a função social, para quem

todo ser humano (que, por não ser auto-suficiente, precisa se harmonizar com os demais) teria

uma função social para desempenhar na coletividade. No que concerne à propriedade, Duguit

afirmava que esta não gozaria de um direito absoluto, pois a propriedade não é um direito, mas

sim uma função social, a qual, por ser uma fonte para atingir riquezas, apenas estaria garantida

pelo Estado enquanto seu proprietário estivesse atingindo esta função.162

Assim, a função social da propriedade guarda relação com a sua capacidade produtiva, ou

seja, a vinculação social que o proprietário deve dar para que a propriedade atinja a função

produtiva para a qual foi concebida na sociedade. Trata-se, na verdade, de uma “função social

ativa”, onde a função é um “poder-dever” (dever-poder) direcionado para um fim. Como assevera

Eros Roberto Grau, esta noção traz “ao Direito Privado algo até então tido como exclusivo do

Direito Público: o condicionamento do poder a uma finalidade”.163

Forte nestas distinções, não obstante a Constituição da República contemplar e garantir a

propriedade dotada de “função individual” (art. 5º, XXII e art. 170, II), vinculou-a juntamente

com a função social nos artigos subseqüentes (art. 5º XXIII e art. 170, III), razão pela qual a

primeira (individual) somente estará assegurada quando estiver em consonância com a segunda

(propriedade-função social), o que importa na análise conjunta das duas formas para se

compreender o alcance que o legislador quis empregar.164

Ademais, o constituinte colocou o princípio da função social da propriedade com conteúdo

definido (para uma adequada política urbana e uma justa política agrária)165 em relação à

propriedade urbana e à propriedade rural, prevendo inclusive sanções para o caso de não ser

162 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. A função social da empresa. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 92, v. 810, p. 36, abr. 2003. 163 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 249-250. Do mesmo modo, Gustavo Tepedino, citando P. Perlingieri e S. Rodotà, esclarece que “a função social parece capaz de moldar o estatuto proprietário na sua essência, constituindo ‘il titolo giustificativo,la sausa dell’atribuzione’ dos poderes do titular, ou seja, ‘il fondamento dell’attribuzione, essendo divenuto determinante, per la considerazione legislativa, il collegamento della posizione del singolo com la sua appartenenza ad um organismo sociale’.” E, no que a doutrina chega ao relativo consenso, a noção de função social pode ser entendida como “a capacidade do elemento funcional em alterar a estrutura do domínio, inserindo-se em seu ‘profilo interno’ e atuando como critério de valoração do exercício do direito, o qual deverá ser direcionado para um ‘massimo sociale’” (TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 318-319). 164 Grau, Eros Roberto. Op. cit., p. 250-251. 165 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Op. cit., p. 128.

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observada a função social. É o caso dos arts. 182 (urbanos) e 186 (rurais) da Constituição da

República.166

A Constituição italiana destina tratamento similar ao dado pela brasileira, conforme se

observa diante da análise feita por Pietro Perlingieri: O art. 44, na primeira parte, quando preceitua que, para fins de conseguir a racional exploração do

solo e de estabelecer justas relações sociais, a lei impõe obrigações e vínculos à propriedade da terra privada etc., fixa dois pontos fundamentais, dos quais o primeiro poderia também se identificar com a exigência produtivista (art. 838 Cód. Civ.), enquanto que o segundo é a expressão da função constitucional da propriedade. Para se estabelecer equânimes relações sociais a lei impõe obrigações e vínculos à propriedade rústica privada, fixa limites à sua extensão de acordo com as regiões e as zonas agrárias, promove e impõe a transformação do latifúndio etc. Mais que garantir a pequena propriedade, a Constituição limita a grande.167

Como se observa, a atuação do Estado sob o domínio econômico da propriedade não serve

apenas para garantir a propriedade ao indivíduo, mas também para assegurar que a propriedade “é

sempre um direito-meio e não um direito-fim. Ela não é garantida em si mesma, mas como

instrumento de proteção de valores fundamentais”.168 Tal se dá através da atuação do Estado no e

sobre o domínio econômico, através de técnicas de intervenção por absorção ou participação,

desempenhando um papel de sujeito no processo.169

Esse é o norte imposto pela Constituição vigente, pois, ao remodelar a estrutura do direito

de propriedade, o constituinte procurou enquadrá-la sob a ótica dos direitos fundamentais, ao

passo que, conforme dispôs Luiz Edson Fachin, “a função social da propriedade imobiliária

corresponde uma formulação contemporânea de legitimação do título que encerra a

dominialidade”,170 de modo que “futuro, ruptura e transformação seguem, pois, lado a lado, na

tentativa de construção desse caminho, novo ou renovado, nascido do choque inevitável entre a

realidade e as categorias jurídicas ultrapassadas; entre o novo que surge e o velho que declina”.171

166 Conforme Waldyr Grisard Filho, “a função social da propriedade urbana pontua-se na pessoa humana, pela proteção do direito fundamental da habitação e da salvaguarda ambiental da ampla proteção à natureza, local de sua vivência, e será cumprida mediante o atendimento das exigências fundamentais da ordenação urbana. A função social da propriedade rural, também centrada na pessoa humana, releva-se no seu bem-estar e se manifesta através do binômio posse-trabalho, na produtividade e na proteção ambiental. Tal função será cumprida mediante o aproveitamento racional e adequado dos recursos naturais” (GRISARD FILHO, Waldyr. Op. cit., p. 240). 167 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 219. 168 COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres..., p. 98 (Apud: TEIZEN JÚNIOR, Augusto Geraldo. A função social no Código Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 155). 169 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 101. 170 FACHIN, Luiz Edson. A cidade nuclear e o direito periférico (reflexões sobre a propriedade urbana). Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 85, v. 723, p. 108, jan. 1996. 171 FACHIN, Luiz Edson. Teoria..., p. 329.

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Destarte, quando o art. 170, inciso III, da Constituição de 1988 coloca a função social da

propriedade como princípio da ordem econômica, a sua importância dentro deste contexto deve

ser entendida como um dos elementos destinados à realização da existência digna e da justiça

social de todos. Contudo, como a função social da propriedade não pode ser vista isoladamente,

mas sim, inserida ao lado de outros princípios gerais da atividade econômica (v.g., valorização do

trabalho humano, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades

regionais e sociais e a busca do pleno emprego), observa-se a sua implicação direta com a

propriedade dos bens de produção, os quais são empregados através da empresa, que, por sua vez,

é capitaneada pela sociedade, provida de personalidade jurídica.

A empresa, como se verá no próximo tópico, também possui uma função social,

devidamente tutelada pela Constituição da República, e, não obstante existirem outros entes (v.g.

contrato)172 igualmente tutelados pela função social, abordaremos apenas o instituto diretamente

afim ao presente trabalho (empresa).

2.3.2.2.1 A função social da empresa na Constituição de 1988

A sociedade contemporânea não pode mais olvidar que a função da empresa, colocada

como uma das atividades promocionais do Estado, exerce também uma função social, a qual

encontra respaldo inclusive na própria Constituição de 1988.173 A empresa, como agente

econômico central do mercado, é peça fundamental na engrenagem das relações socioeconômicas

tuteladas pelo Estado. A sua importância pode ser vislumbrada nas palavras do jurista argentino

Jorge Mosset Iturraspe:

La producción de bienes no puede estar, en las circunstancias actuales, en manos de individuos aislados; ello no sería ni adecuado ni eficiente; se requiere la colaboración de muchos individuos, en distintos niveles. Organizar ese esfuerzo productivo, programar su duración en el tiempo, procurar que

172 Calixto Salomão Filho explica que, “segundo os teóricos clássicos da análise econômica do Direito a empresa é vista como um feixe de contratos (nexus of contracts). Em uma linguagem mais jurídica, a firma é vista como um único agente subscritor de um grupo de contratos, que começam pelos contratos com os sócios e vão desde contratos com fornecedores e clientes até contratos com trabalhadores e contratos de empréstimo necessários para suprir as necessidades de fundos da empresa” (SALOMÃO FILHO, Calixto. O Novo Direito Societário. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 31). Não obstante a vinculação direta entre contrato e empresa, ambos vinculados à propriedade constitucionalmente garantida e fontes indissociáveis do econômico e do social, a função social do contrato não será tratada em capítulo específico, tendo em vista a limitação do tema desta dissertação. 173 Conforme se verá adiante, este fundamento resulta do art. 170 da Constituição, quando trata da ordem econômica, porque é através do exercício da livre-iniciativa empresarial que se dá a liberdade de atuação da atividade econômica.

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corresponda de manera positiva a las necesidades que debe satisfacer, asumiendo los riesgos necesarios, ésa es la tarea de la empresa, fuente de riquezas en el mercado y en la sociedad actual. La empresa puede ser grande, nacional o multinacional, mediana o pequeña, sin perder su carácter de instrumento apto. Responde a las necesidades de la producción, a la capacidad de iniciativa de las personas y al provecho o beneficio de los consumidores, dentro del mecanismo del mercado, pieza básica o fundamental de la economía posmoderna.174

Pode parecer incongruente afirmar que a empresa possui uma função social na sociedade,

haja vista que seu principal intento é buscar o lucro, o qual seria mera conseqüência da atividade

econômica. O jurista Fábio Konder Comparato, em artigo publicado no ano de 1996 na Revista

dos Tribunais, fez sérias ressalvas à aplicação do conceito de função social na esfera da

empresa175, pois, segundo argumentou, além dos deveres negativos previstos no art. 116 da Lei

das Sociedades Anônimas e do rol de deveres positivos previstos no art. 7º da Constituição da

República, é duvidoso estender outros deveres positivos para as empresas, ou seja: Mas terá o empresário, também, deveres positivos? Fora do elenco de direitos trabalhistas do art. 7º

da Constituição, por exemplo, teriam as empresas o dever de desenvolver um plano de assistência social ou de previdência complementar para os seus empregados? O art. 116, parágrafo único, da Lei 6.404 obrigaria, porventura, o acionista controlador a fazer com que a companhia participasse de campanhas de recolhimento e amparo de menores abandonados, lançadas pelo governo do Município onde tem a sua sede? Mais especificamente, em caso de conflito entre o interesse próprio da empresa, como unidade econômica, e o interesse geral da coletividade, deve o empresário sacrificar o interesse empresarial em prol do bem comum, deixando, por exemplo, de aumentar os preços dos produtos ou serviços de primeira necessidade, sem estar a isso legalmente obrigado ?176

Como resposta aos questionamentos, Fábio Konder Comparato sustenta que não existe um

conceito de função social com este alcance sobre as empresas, pois a empresa capitalista é uma

organização produtora e distribuidora de lucros (intento irrenunciável no caso das Anônimas,

174 ITURRASPE, Jorge Mosset. Como contratar en una economía de mercado. Buenos Aires: Rubinzal, 1996, p. 200-201. Na tradução livre: “A produção de bens não pode estar, nas circunstâncias atuais, nas mãos de indivíduos isolados; isso não seria nem adequado nem eficiente; é necessária a colaboração de muitos indivíduos, em níveis diferentes. Organizar esse esforço produtivo, programar a sua duração no tempo, procurar que corresponda de maneira positiva às necessidades que deve satisfazer, assumindo os riscos necessários, essa é a tarefa da empresa, fonte de riquezas no mercado e na sociedade atual. A empresa pode ser grande, nacional ou multinacional, média ou pequena, sem perder seu caráter de instrumento capaz. Responde às necessidades da produção, à capacidade de iniciativa das pessoas e ao proveito ou benefício dos consumidores, dentro do mecanismo do mercado, peça básica ou fundamental da economia pós-moderna”. 175 O mesmo posicionamento pode ser extraído de Fábio Leandro Tokars ao concluir que, “ainda que seja socialmente exigida uma atuação empresarial que apresente preocupação social, a mera previsão normativa não se faz capaz de garantir materialmente os interesses da sociedade. A norma em si, está colocada como bandeira de conquista social, sem que, no campo concreto, tenha representado algo de relevante”. (TOKARS, Fábio. Função social da empresa. In: RAMOS, Carmem Lúcia Silveira (Coord.). Direito civil constitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, p. 96). 176 COMPARATO, Fábio Konder. Estado..., p. 45.

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conforme preceitua o art. 2º, caput da Lei 6.404/76), sendo incompatível com esta definição um

conceito de função social das empresas.

No entanto, entendemos que o conceito restritivo de função social da empresa não

comporta mais aplicação, sendo necessária uma interpretação num sentido sociológico177 do

termo, através do qual deve-se analisar o contexto social e econômico no qual a empresa está

inserida dentro da sociedade contemporânea.178 É de Ferdinand Lassalle os fundamentos de um

“sociologismo constitucional”, para quem, nas palavras de Luiz Roberto Barroso, “a Constituição

de um país é, em essência, a soma dos fatores reais do poder que regem a sociedade”. Ou seja, “o

conjunto de forças políticas, econômicas e sociais, atuando dialeticamente, estabelecem uma

realidade, um sistema de poder: esta é a Constituição real, efetiva do Estado”.179

Não é sem razão que Alfredo Lamy Filho afirma que a responsabilidade social da empresa

está diretamente ligada ao poder180 (que ela conquistou na sociedade), razão pela qual “a

existência desse poder empresarial, de tão extraordinário relevo na sociedade moderna, importa –

tem que importar – necessariamente em responsabilidade social. Este é o preço – dizia Ferdinand

Stone – que a empresa moderna terá que pagar em contrapartida ao poder que detém”.181

177 No sentido de um “estudo objetivo das relações sociais, i.e., das relações que só se estabelecem com fundamento na coexistência social, as quais se concretizam em normas, leia, valores e instituições consciente ou inconscientemente incorporados pelos indivíduos que constituem a sociedade” (FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário..., p. 607). Ou ainda através da Sociologia, a qual “é a única das ciências sociais que trata de maneira abstrata e geral (qualitativamente) o conjunto dos fatos que forma a sociedade humana. Embora seja independente das outras ciências sociais, está em correlação com elas, visto que seu campo de ação insere os fatos das outras ciências sociais, comungado com elas de princípios, postulados e leis” (MATTAR, Maria Olga. Organização e contexto social. Um modelo de análise da sociedade. Curitiba: Gráfica Ativa e Ativa Fotolitos, 1998, p. 34). 178 Gladston Mamede reconhece a opção do Estado de conferir através do ordenamento jurídico uma função social para as sociedades, tendo em vista “o papel que elas desempenham a bem da República que se fundamenta nos valores sociais do trabalho e da livre ação econômica (at. 1º, IV, da Constituição); as sociedades, entes voltados para a execução de atividades negociais, empresárias ou não, são meio para garantir o desenvolvimento nacional e, dessa maneira, erradicar a pobreza e a marginalização, constituindo via para a redução das desigualdades sociais e regionais, além da promoção do bem de todos, cumprindo os fundamentos republicanos estipulados no artigo 3º, II a IV, da Constituição Federal” (MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedades simples e empresárias. São Paulo: Atlas, 2004, v. 2, p. 176). 179 BARROSO, Luis Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 1990, p. 58-59. 180 “A empresa, pela sua importância econômica (unidade de produção da economia moderna) e significado humano (quadro de encontro dos homens para a ação em comum que lhes assegura a existência) ascendeu a um significado político e social, transformando-se no pólo de discussão e debates dos sociólogos, dos economistas, dos políticólogos, dos juristas, que sobre ela se debruçam em busca da inteligência e da solução dos problemas contemporâneos (LAMY FILHO, Alfredo. A função social da empresa e o imperativo da sua reumanização. Revista de Direito Administrativo. v. 190, p. 58) (Apud: TOKARS, Fábio. Função..., p. 78). 181 LAMY FILHO, Alfredo. Op. cit., p. 58.

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Na prática, a função da empresa pode ser interpretada de duas formas diferentes, ou seja: i)

a função social da empresa como imperativo normativo (infraconstitucional) e ii) a empresa vista

como propriedade e promotora da existência digna através da justiça social ou do exercício do

poder de controle (cf. Fábio Konder Comparato) (constitucional). Por todas as interpretações, a

nosso ver, será possível chegar à mesma conclusão, qual seja: a de que a empresa possui uma

função que implica a sua responsabilidade social.182

No que concerne à função social como imperativo normativo (infraconstitucional), existe

previsão neste sentido desde 1976, com a promulgação da Lei das Sociedades Anônimas

(6.404/1976), a qual estabelece no art. 116183 que o acionista controlador deve exercer o seu poder

“com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres

e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para a

comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.

Como bem observa Gladston Mamede, o exercício do poder de controle na empresa

implica tanto direitos como deveres (estes tanto para com a sociedade e os acionistas, como para

com terceiros) ao controlador, ou seja:

O controle da companhia implica deveres correspondentes, designadamente a obrigações de usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objetivo e cumprir a sua função social, como previsto no parágrafo único do mesmo artigo 116, o que determina, ainda segundo o dispositivo, deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender.184

Da mesma forma, através dos arts. 153185 (diligência do bônus paterfamilias ou do “bom

homem de negócios”)186 e 154187 da Lei das S/A, bem como do art. 1.011 do Código Civil, o

182 Responsabilidade social e função social geralmente são termos utilizados como sinônimos. No entanto, não o são. “Responsabilidade social das empresas consiste na integração voluntária de preocupações sociais e ambientais por parte das empresas nas suas operações e na sua interação com a comunidade. Além disso, seria uma forma de levar outras instituições a colaborar com o Estado na busca de justiça social, ao invés de ficar esperando que o Estado tome todas as providências nessas áreas. Do ponto de vista da administração, a responsabilidade social das empresas seria uma nova forma de gestão das mesmas”. Destarte, enquanto a “função social refere-se apenas às atividades econômicas que a empresa exerce, consubstanciadas no seu objeto social e exigíveis pela imposição de deveres jurídicos ao titular desse direito”, a responsabilidade social, “que não está relacionada ao objeto social da empresa, consiste no cumprimento de deveres que, tradicionalmente, competem ao estado, mas que, por inúmeras razões, são exigidos das empresas, por terem poder econômico na sociedade” (TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Op. cit., p. 46, 48-49). 183 “Art. 116. [Omissis]. Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”. 184 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 568. 185 Correspondente ao art. 1.011 do Código Civil, o qual trata dos deveres do administrador nas sociedades simples.

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administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins, e

no interesse da companhia, satisfazer as exigências do bem público e da função social da empresa

(estas últimas obrigações “alcançam o administrador eleito por grupo ou classe de acionistas, não

podendo, ainda que para defesa do interesse dos que o elegeram, faltar a esses deveres”).188 Ou

seja, “a obrigação do administrador abrange a gestão da sociedade com diligência, buscando

alcançar objetivos sociais, inclusive o interesse social e a função social da empresa (art. 154) da

melhor forma possível”.189

Por outra lado, a fundamentação constitucional para a função social da empresa decorre da

aplicação do art. 170 da Constituição da República, o qual vinculou a livre-iniciativa empresarial à

função social da propriedade, sem fazer qualquer distinção às formas de propriedade190, o que

implica a inclusão da propriedade empresária neste rol. Judith Martins-Costa disserta exatamente

neste sentido, ou seja:

[...] sendo certo que nem a Constituição brasileira nem o novo Código Civil traduzem a distinção, determinando apenas que ‘a propriedade (isto é, qualquer propriedade) atenderá à sua função social’. E se toda e qualquer propriedade ‘atenderá à função social’, assim não apenas a propriedade do solo ou dos bens de produção, mas também a propriedade imaterial e a propriedade da empresa, por exemplo.191

Ademais, tendo em vista que a propriedade privada é um princípio da atividade

econômica, num sistema capitalista como o brasileiro, “a apropriação privada dos meios de

produção constitui o modo principal de se atingir o desenvolvimento”.192 Em razão disso, “ao

estabelecer a propriedade privada e a função social da propriedade como princípios da ordem

econômica, conferiu à propriedade empresária uma função social”.193

186 Para aprofundamento do tema, ver Renato Ventura Ribeiro, Op. cit., p. 216. 187 “Art. 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa. 188 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 552. 189 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de diligência dos administradores de sociedades. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 221. Continua o autor dispondo que “não estão abrangidas na violação do dever legal ações de responsabilidade social (Lei 6.404/76, art. 154, § 4º), desde que devidamente autorizadas e em proporções razoáveis e compatíveis com a situação da companhia” (p. 231).190 José Afonso da Silva trabalha a idéia de que “a Constituição consagra a tese, que se desenvolveu especialmente na doutrina italiana, segundo a qual a propriedade não constituiu uma instituição única, mas várias instituições diferenciadas, em correlação com os diversos tipos de bens e de titulares, de onde ser cabível falar não em propriedade, mas em propriedades” (SILVA, José Afonso. Op. cit., p. 247). 191 MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz Carlos. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 151. 192 LAFAYETE, Josué Petter. Op. cit., p. 217. 193 Id. Ibid., p. 218. Eros Roberto Grau também coloca sob esta ótica a função social da empresa, pois “apenas em relação aos bens de produção se pode colocar o problema do conflito entre propriedade e trabalho e do binômio propriedade-empresa. Esse novo Direito – nova legislação – implica prospecção de uma nova fase (um aspecto, um

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Com efeito, como a livre-iniciativa foi colocada como meio para se atingir a existência

digna por meio dos ditames da justiça social, “o exercício da atividade econômica fica sujeito ao

cumprimento de diversos deveres”,194 ou seja, do atendimento à função social da propriedade (art.

170, III), da livre concorrência (art. 170, IV), da defesa do consumidor (art. 170, V), da defesa do

meio ambiente (art. 170, VI), da redução das desigualdade (art. 170, VII) etc., os quais, de forma

concatenada, implicam a propriedade dos bens de produção manuseados pela empresa

(destinatária).

Já para Fábio Konder Comparato, a função social da empresa é exercida através do poder

de controle (poder econômico), conforme se depreende da seguinte citação:

O poder econômico, portanto, é a regra e não a exceção. Ora, a finalidade última desse poder, do qual todos nós dependemos, não pode ser apenas, nem principalmente, a produção e partilha de lucros entre proprietários ou capitalistas; não deve ser, tampouco, assegurar ao empresário um nível de elevada retribuição econômica e social. O poder econômico é uma função social, de serviço à coletividade. [...]

Fundamento da legitimidade do poder de controle, no setor avançado da economia, ou seja, aquele que dita as leis de mercado, é o cumprimento dessa sua função social, conforme o princípio constante no art. 160, III, da Constituição. Isto significa, em estrita lógica, que, onde o controle se exerça em sentido contrário a essa sua finalidade, torna-se antijurídico, por violar mandamento constitucional.195

De uma forma ou de outra, é inarredável a existência da função social da empresa, seja

pela análise infraconstitucional retro desenvolvida, seja por qualquer uma das fundamentações

constitucionais elencadas, pois tanto vale falar de função social da propriedade dos bens de

produção, como de função social da empresa, como de função social do poder econômico.196

Destarte, “em relação à empresa, a função social permite que se exija de quem exerce o

direito de livre-iniciativa o cumprimento de deveres para com a sociedade, possibilitando um

perfil) do direito de propriedade, diversa e distinta da tradicional: a fase dinâmica. Aí, incidindo pronunciadamente sobre a propriedade dos bens de produção, é que se realiza a função social da propriedade. Por isso se expressa, em regra, já que os bens de produção são postos em dinamismo, no capitalismo, em regime de empresa, como função social da empresa” (GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 248-248). 194 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Op. cit., p. 43. 195 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 389, 391-392. A referência feita na citação ao art. 160, III da Constituição refere-se à revogada Constituição de 1969, vigente na época em que o livro foi escrito. Refere-se ao atual art. 170, III, da Constituição de 1988. 196 Márcia Carla Pereira Ribeiro sustenta que “relativamente à prática da atividade empresarial, o exercício da função social da empresa encontra um sem-número de justificativas, seja na possibilidade de o empresário lucrar pelo exercício da atividade, e de este lucro dever estar centrado não ma mais-valia em relação aos elementos que foram por ele organizados em benefício da atividade produtiva, mas um lucro respaldado no ganho social decorrente da mencionada prática, seja como decorrência da perda social que pode decorrer da utilização dos recursos naturais e sociais” (RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Século XXI, a era do não-contrato? Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 139, jul./set. 2005, p. 141).

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ganho econômico mais justo para todos”.197 Com efeito, existe uma indissociabilidade do

econômico com o social, pois, da mesma forma que todo fenômeno econômico interfere no social,

todo modo de ser da sociedade implica uma determinada forma econômica, razão pela qual deve-

se ratificar a posição de Pietro Perlingieri, para quem,

Em um sistema inspirado na solidariedade política, econômica e social e ao pleno desenvolvimento da pessoa (art. 2, Const.) o conteúdo da função social assume papel de tipo promocional, no sentido de que a disciplina das formas de propriedade e as suas interpretações deveriam ser atuadas para garantir e para promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento. E isso não se realiza somente finalizando a disciplina dos limites à função social. Esta deve ser entendida não como uma intervenção ‘em ódio’ à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um determinado sujeito’, um critério de ação para o legislador, e um critério de individuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situações conexas à realização de atos e de atividades do titular.198

De modo que, ausente a atuação empresarial conforme os ditames da função social

(prevista nos princípios gerais da atividade econômica - art. 170, CR), em benefício da coletivade

que aceitou a limitação de responsabilidade e de personificação das organizações199, falta-lhe

razão para que o Estado lhe garanta e reconheça o livre exercício da atividade empresarial.

2.3.2.3 O princípio constitucional econômico da defesa do consumidor

“O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”.200 Esta cláusula pétrea da

Constituição da República está encartada entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão

brasileiro201, razão pela qual sua matriz constitucional é formada por um núcleo intangível de

limitação material, não sendo atingida pelo “narcisismo constitucional, pelo qual cada governante

quer um texto à sua imagem e semelhança”.202

197 TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. Op. cit., p. 48. 198 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 226. 199 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A desconsideração da personalidade jurídica como forma de aplicação do princípio da preservação da empresa. Jurisprudência Brasileira 196 (Desconsideração da personalidade jurídica). Curitiba: Juruá, 2002, p. 88. 200 Art. 5º, XXXII da Constituição da República. 201 A tendência de atribuir status constitucional à proteção do Consumidor também se verifica em países como Portugal, Espanha e Argentina, ut infra: 1) Constituição Portuguesa de 1982 - revisada em 1989, dispõe no art. 102 que: "a proteção dos consumidores é um dos objetivos da política comercial” (CANOTILHO, J.J. e MOREIRA, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 2. ed. v. 1. Coimbra, 1984, p. 475). 2) O mesmo ocorre com a Constituição Argentina de 1994, em seu art. 42. 3) Por fim, a Constituição Espanhola de 1978 dispõe no art. 51: "os poderes públicos garantirão a defesa dos consumidores e usuários protegendo, mediante procedimentos eficazes, a segurança, a saúde e os legítimos interesses econômicos dos mesmos". 202 BARROSO, Luís Roberto. Temas..., p. 53.

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A Constituição da República reconhece que o povo brasileiro é predominantemente

pobre203 (em sentido amplo – cultura, bens, recursos, conhecimento etc.), razão pela qual, em

linhas gerais, a defesa do consumidor (art. 170, V, CR) é voltada, sobretudo, ao cidadão

desprovido de condições mínimas para se equiparar ao poder econômico dominante do

fornecedor.204

Fábio Konder Comparato destaca o alcance dos direitos e garantias fundamentais do

cidadão brasileiro na Constituição de 1988, ut infra:

Por outro lado, a defesa do consumidor é, indubitavelmente, um tipo de princípio-programa, tendo por objeto uma ampla política pública (public policy). A expressão designa um programa de ação de interesse público. Como todo programa de ação, a política pública desenvolve uma atividade, i.e., uma série organizada de ações, para a consecução de uma finalidade, imposta na lei ou na Constituição. A imposição constitucional ou legal de políticas é feita, portanto, por meio das chamadas ‘normas-objetivo’ [...].205

Desta forma, “não resta dúvida de que a proteção do consumidor somente adquiriu aspecto

relevante com a promulgação da Carta Magna de 1988, assumindo neste momento, a proteção ao

consumidor, status de garantia constitucional e princípio norteador da atividade econômica.”206

O Código de Defesa do Consumidor, fruto da própria Constituição de 1988, estatuiu um

sistema de garantias207 legais para assegurar os limites mínimos a serem observados pelo

fornecedor, eis que, pela natureza cogente das suas normas (art. 1º CDC), “não permite a previsão

de patamares inferiores aos previstos em seus dispositivos”.208 Ou seja, o sistema de garantias

203 Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais. 204 Paulo Luiz Netto Lobo, ao citar o argentino Roberto M. Lopez Cabana, reconhece esta necessidade de tutela do desfavorecido ao dispor: “...o dever de informar, imposto a quem produz, importa ou comercializa coisas ou presta serviços, se justifica em razão de se enfrentarem nessa peculiar relação, um profissional e um profano, e a lei tem um dever tuitivo com este último” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Estudos de direito do consumidor. nº 3. Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Centro de Direito do Consumo, 2001, p. 32-33). 205 COMPARATO, Fábio Konder. A proteção ao consumidor na Constituição brasileira de 1988. Revista de Direito Mercantil, n. 80, out./dez. 1990, p. 66-75. 206 EFING, Antônio Carlos. In: EFING, Antônio Carlos (Coord). Direito do Consumo. v. 1. Curitiba Juruá, 2001, p. 27. 207 “Garantia é a ‘sombra’ do dever contratual de prestar com qualidade (figura de linguagem de Karl Larenz: deveres imputados a um agente, fornecedor, são como ‘tijolos’ que constroem um ‘edifício’, denominado ‘obrigação’ ou primeira obrigação contratual de cumprimento voluntário, com boa-fé e qualidade adequada; este edifício contratual faz nascer uma sombra, a garantia contratual)”. (Apud: MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman V.; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 688). 208 EFING, Antônio Carlos. In: EFING, Antônio Carlos (Coord). Direito do Consumo. v. 2. Curitiba: Juruá, 2002, p. 66.

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legais do CDC contém matéria indisponível209, que não pode ser derrogada mediante convenção

das partes, tratando de verdadeira norma de conduta na regulamentação das relações jurídicas de

consumo.

Trata-se, em outras palavras, da garantia de boa qualidade que deve estar implícita nos

produtos ou serviços colocados no mercado de consumo, “vale dizer, sem vícios ou defeitos que

os tornem impróprios ao uso e consumo ou lhes diminuam o valor.”210

Com isso o CDC alterou a própria conduta do fornecedor brasileiro, pois impingiu a teoria

da qualidade211, segundo a qual os produtos e serviços colocados no mercado pelos fornecedores

deverão ter uma “qualidade-segurança” e uma “qualidade-adequação”, como uma verdadeira

garantia implícita de segurança razoável e de adequação conforme a confiança despertada.

O CDC também garante ao consumidor a reparação integral dos danos patrimoniais e

extrapatrimoniais ocasionados por produtos ou serviços (art. 6º, VI), mesmo após a extinção do

contrato. Trata-se dos deveres anexos - garantia implícita de segurança e adequação - que devem

persistir mesmo após a relação jurídica consumada.212

Com efeito, não obstante a proteção do consumidor vir estampada na Constituição de 1988

(arts. 5º, XXXII; 24, V; 170, V, e art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), foi

com a Lei 8.078/90 que o consumidor passou a ter a devida proteção legal no mercado de

consumo. No entanto, a inclusão da defesa do consumidor como princípio constitucional

econômico é de fundamental importância para equacionar um equilíbrio entre as empresas

(fornecedores) e os cidadãos consumidores de produtos e serviços (oferta x demanda), sobretudo

em razão da existência digna conforme os ditames da justiça social que pressupõe a ordem

econômica.

209 “A disponibilidade pode ser conceituada como agrupando aqueles direitos a que a lei expressamente dá ou nega este caráter ou os que se inscrevem dentre os direitos ou atos de natureza pública, que não comportam possibilidades ulteriores de disposição ou renúncia, ou, ainda, os de natureza cogente, a que, legalmente, as partes não podem renunciar nem dispor em termos negociais ou transnacionais” (GARCEZ, José Maria Rossani. A arbitragem internacional e a Lei Brasileira de Arbitragem – Lei 9.307/96. In: PUCCI, Adriana Noemi (Coord.). Aspectos atuais da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 171-205). 210 DENARI, Zelmo et al. Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p. 112. 211 Neste sentido: BENJAMIN, Antonio Herman. Comentários ao Código de Proteção do Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 45. 212 Segundo Fábio Konder Comparato, “a responsabilidade civil em matéria de consumidor, deu-se em razão de dois principais fatores: i) a produção em série e ii) o circuito de distribuição dos bens em massa” (COMPARATO Fábio Konder. A proteção..., p. 99).

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2.4 Considerações finais do capítulo

Como visto, a Constituição da República de 1988 possui um conjunto normativo que influi

direta e indiretamente na atividade econômica do país, representando o que alguns juristas

expressam como “Constituição econômica”. Seus fundamentos não estão apenas no caput e nos

incisos do art. 170 da Constituição, mas espalhados por todo o texto legislativo, valendo a pena

ressaltar, v.g., que o art. 3º da CR preceitua como objetivo fundamental da República garantir o

desenvolvimento nacional, com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, erradicando

a pobreza e a marginalização e promovendo o bem de todos com a conseqüente redução das

desigualdades sociais e regionais, o que certamente remete aos preceitos da atividade

econômica.213

Num Estado capitalista, formado pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do

Distrito Federal, constituído sob o regime de Estado Democrático de Direito, é através da

aplicação equânime de fundamentos e princípios que se procura dar efetividade e aplicação aos

mais variados direitos e deveres que repercutem sobre a sociedade.

E para a regulamentação da atividade econômica, o Estado colocou como interesse

principal de sua tutela intervencionista a pessoa humana, razão pela qual, nas relações jurídicas

econômicas (patrimoniais), “a dignidade da pessoa humana é o limite interno capaz de definir com

novas bases as funções sociais da propriedade e da atividade econômica”.214

Na verdade, todos os princípios que informam a ordem econômica no art. 170 da

Constituição possuem diretamente ou indiretamente relação com a pessoa humana (e, por

conseguinte, com a dignidade humana), pois o fim último da ordem econômica é assegurar a todos

a existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Em razão disso, os princípios constitucionais econômicos (art. 170, CR) não podem ser

interpretados isoladamente (sob pena de trazerem sentidos conflitantes), mas precisam ser

vislumbrados dentro de um todo sistemático que forma o texto constitucional. Conforme expôs

Eros Roberto Grau, “não se interpretam normas constitucionais isoladamente, mas sim a

213 A atividade econômica prevista na Constituição de 1988 repercute em todo o texto constitucional, seja através de princípios fundamentais (arts. 1º a 4º), seja de direitos e garantias fundamentais (art. 5º), seja de direitos sociais (arts. 6º a 11º), seja da ordem econômica (arts. 170 a 191), seja do mercado interno (art. 219), seja do meio ambiente (art. 225), seja das Disposições Finais e Transitórias, seja do próprio preâmbulo da Constituição, ou ainda de diversos outros dispositivos não citados. 214 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 52.

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Constituição, no seu todo.” Ou seja, “não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços. A

interpretação de qualquer norma da Constituição impõe ao intérprete, sempre, em qualquer

circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir dela – da norma – até a

Constituição”.215

Ademais, não se pode perder de vista que a Constituição não é apenas um ordenamento

jurídico máximo (alçado ao topo da pirâmide), imposto pelo Estado para ser cumprido e

obedecido de cima para baixo, no sentido de transformar uma realidade social preexistente. Ao

contrário, a Constituição é fruto de uma realidade e de conceitos preestabelecidos na sociedade.

Conforme assenta Konrad Hesse, a vontade da constituição baseia-se em três vertentes: i) na

compreensão da necessidade e do valor de uma ordem normativa inquebrantável, que proteja o

Estado; ii) na compreensão de que essa ordem constituída é mais do que uma ordem legitimada

pelos fatos; iii) na consciência de que essa ordem constitucional não logra ser eficaz sem o

concurso da vontade humana.216

Destarte, continua Konrad Hesse:

Aquilo que é identificado como vontade da Constituição ‘deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos que renunciar alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático’. Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, ‘maltrata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recuperado’.”217

Com efeito, a coexistência de princípios, valores e fundamentos jurídicos que informam a

Constituição da República Federativa do Brasil, deve ser interpretada de modo a se privilegiar a

coexistência dos mesmos, através de uma convivência sistemática harmônica, que é a base de um

Estado Democrático de Direito.

Por fim, vislumbrada a fundamentação constitucional da atividade econômica (exercida,

fundamentalmente, através da livre-iniciativa da empresa), sobretudo dentro do sistema de

coexistência harmônica que deflui da ordem constitucional vigente, passaremos a abordar a

atividade econômica sob a visão do Direito empresarial, para, ao final, cotejar os limites do

215 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 181. 216 HESSE, Konrad. Força normativa da constituição. Trad. de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 1991, p. 17-18. 217 Id. Ibid., p. 21-22.

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exercício da atividade econômica empresarial para garantir os princípios gerais da atividade

econômica e a personalidade jurídica societária.

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3. A atividade econômica sob a ótica empresarial

3.1 A pessoa jurídica (histórico, conceito e teorias)

Antes de se trabalhar a idéia de personalidade218 jurídica societária, urge traçar uma breve

conceituação da pessoa jurídica219 propriamente dita, como produto da vontade humana para

realização de determinados fins, para os quais o Estado lhe atribui, em determinadas hipóteses,

personalidade jurídica.

Como se sabe, são distintas as idéias de ser humano e de pessoa; aquele é um conceito biológico, ao passo que o conceito de pessoa, para o Direito, indica o sujeito com capacidade de titularizar direitos e deveres, o agente ou ator do cenário jurídico. E não há uma identidade entre a condição humana e a condição de pessoa, realidade que tem raízes milenares.220

Sobre o início da sociabilidade221 em prol de uma organização comum, Hernani Estrella

esclarece o seguinte: O princípio da sociabilidade é inerente aos seres humanos. Deriva da necessidade de

complementarem as próprias forças, conjugando-as, para vencerem as resistências formidáveis que lhes opõe o meio físico, que os circunda e envolve, a superarem obstáculos que lhes dificultava a obtenção dos fins os mais modestos e a satisfação das necessidades as mais elementares. Em todos os campos da atividade humana, com maior ou menor intensidade, em tempos e épocas diversas, sempre se manifestou o espírito associativo, para realização de fins religiosos, morais, artísticos, ou, designadamente, para facilitar a obtenção de resultados materiais.222

218 Miguel Reale explica que “o personalismo significa o reconhecimento do valor intocável do indivíduo enquanto este se põe como pessoa. A idéia de pessoa representa um elemento ético, que só se revela quando o indivíduo entra em relação com os demais indivíduos e, ao afirmar o seu próprio ‘eu’, é levado a reconhecer, concomitantemente, o valor do ‘eu’ dos demais, transcendendo os limites biopsíquicos de sua individualidade” (REALE, Miguel. Filosofia do direito. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p.279). 219 Conforme conceituou o jurista lusitano Carlos Alberto da Mota Pinto, “as pessoas colectivas são organizações constituídas por uma colectividade de pessoas ou por uma massa de bens, dirigidos à realização de interesses comuns ou colectivos, às quais a ordem jurídica atribui a personalidade jurídica. Trata-se de organizações integradas essencialmente por pessoas ou essencialmente por bens, que constituem centro autónomos de relações jurídicas – autónomos mesmo em relação aos seus membros ou às pessoas que actuam como seus órgãos.” (PINTO, Carlos Alberto da Mota. Teoria Geral do Direito Civil. 4. ed. António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto (atualizadores). Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 269). 220 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p.59. 221 Conforme leciona Renan Lotufo, “a garantia do direito de associação das pessoas naturais é de ordem constitucional, razão pela qual ninguém pode ficar obrigado a permanecer associado, também. O direito de associar-se é um dos direitos individuais expressivos da liberdade de atividade (art. 5º, XVII e XX, da CF)” (LOTUFO, Renan. In: CAMBLER, Everaldo Augusto (Coord.). Curso avançado de Direito Civil: parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v. 1, p. 111). 222 ESTRELLA, Hernani. Apuração dos haveres de sócio. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 10.

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Não obstante os romanos já utilizarem agrupamentos de pessoas para gerir negócios

comuns (antes dos romanos, porém, existiram contratos associativos que podem ser considerados

antecedentes remotos das sociedades),223 foi apenas após a República (por volta do ano 500 a.C.)

que as pessoas jurídicas tiveram reconhecimento. Neste sentido é a lição de Luiz Antonio Rolim:

Até a época da República os romanos entendiam como pessoa somente o ser humano, visível e concreto, que nascia, vivia e morria no seio da sociedade. Práticos e realistas, não podiam conceber que pudesse existir uma pessoa abstrata, incorpórea, sujeito de direitos e obrigações. Desta forma, o jus civile, que continha os fundamentos do Direito Romano, só entendia como sujeito de direitos uma pessoa física.

Um indivíduo sozinho, isolado, no entanto, nem sempre pode administrar grandes negócios nem enfrentar grandes desafios. É necessário se unir a outros para, juntos, administrarem melhor seus interesses. Essas uniões surgiram naturalmente também na Roma antiga. Pessoas passaram a se organizar e a trabalhar em equipes, formando corporações e associações visando a um interesse comum. Nasceram, desta forma, as pessoas jurídicas, ou seja, uma coletividade de pessoas ou de coisas devidamente organizadas que passou a ter vida autônoma, adquirindo direitos e contraindo obrigações em seu próprio nome, independentemente dos indivíduos que as compunham.224

Renato Ventura Ribeiro disserta que em Roma (durante a economia agrária dos tempos

primitivos), após a morte do paterfamilias, os herdeiros se reuniam para preservar o patrimônio

herdado e explorá-lo, formando uma espécie de consórcio familiar (consortium ercto non cito),

como uma espécie de sociedade natural. Concomitantemente surgiu uma subespécie de sociedade

“artificial”, que poderia ser constituída mediante autorização do pretor, como forma de consortium

voluntarium.225

No entanto, ainda que os romanos desenvolvessem algumas atividades através de espécies

sui generis de corporações, não se pode dizer que de fato faziam a necessária imputação de

direitos e deveres no campo negocial.226 Este é o entendimento de Calixto Salomão Filho após

discorrer sobre as 3 (três) principais formas de societas no direito romano (societas argentaria,

societas venaliciaria e societá di navigazione), concluindo que somente com o humanismo foi que 223 CAPUTO, Leandro Javier, Op. cit., p. 62. 224 ROLIN, Luiz Antonio. Op. cit., p. 177. 225 RIBEIRO, Renato Ventura. Op. cit., p. 76-77. Continuando, o autor arremata que “a evolução do consórcio familiar para o contrato de sociedade, portanto, passa por duas etapas. Inicialmente, há a introdução do elemento vontade, com a existência de uma sociedade consensual, regulada pelo ius gentium. Após, admite-se a participação de terceiros, não familiares, numa segunda forma de sociedade que podia ser criada pelo mero consentimento das partes” (p. 78). 226 Conforme lecionava Pontes de Miranda, “no direito romano, à diferença do direito grego, a sociedade não era pessoa distinta dos seus membros, a fortiori diante de terceiros. O direito moderno teve de enfrentar o problema e não foi fácil para os que se apegavam à concepção romana. Os sócios eram responsáveis contratual e extracontratualmente, e não a sociedade. Por outro lado, não se podia estabelecer responsabilidade limitada dos sócios, posto que se pudesse inserir cláusula de primeiro serem excutidos os bens sociais (L. 65, § 14, D., pro sócio, 17 2). Os sócios que entram posteriormente assumem as dívidas já existentes” (MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo XLIX (Contrato de sociedade. Sociedade de pessoas). 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972, 124).

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se passou a diferenciar o homo da persona, a fim de, já no iusnaturalismo, se cogitar pela primeira

vez em problemas das pessoas jurídicas.227

Contudo, continua Calixto Salomão Filho concluindo que, diante do impasse, deve-se

optar entre:

Manter a tese que o homem, enquanto era o único sujeito de direito com existência real, considerando conseqüentemente artificial todos os outros ‘sujeitos’; ou então tentar demonstrar que outros possíveis ‘sujeitos’ eram também dotados de existência e vontade reais. Não é, portanto, casual que a pandectística teoria da pessoa jurídica, tenha seguido estes dois filões, consubstanciados respectivamente na teoria da ficção e na teoria da realidade. Não é casual tão pouco que exatamente nesta época a locução pessoa jurídica seja empregada pela primeira vez.228

Pierangelo Catalano relata que foi a partir do séc. XVI e, sobretudo, do séc. XIX, que

surgiram abstrações modernas sobre o sujeito de direito, a pessoa jurídica e o Estado, dispondo

que Do conceito de populus que se encontra em Cícero como coetus multitudinis iuris consensu et

utilitaris communione sociatus (cuja pluralidade implícita explica que esse compreenda também a multidão reunida nos comícios) se passa a um conceito de Estado como unidade distinta do conjunto dos indivíduos; da identificação homines-personae se passa a um conceito jurídico de ‘pessoa’ pelo qual podem existir homens que não são pessoas e pessoas que não são homens (ou conjuntos de homens), mas apenas ‘entes’.”229

Por fim, interessante ainda mencionar que o jurista italiano Francesco Galgano, ao

discorrer sobre a pessoa jurídica, As vê como uma demonstração da soberba do homem diante do Criador porque esta obra humana,

pessoa jurídica, ultrapassa barreiras impostas aos seres humanos, como a morte por força de idade, ao mesmo tempo em que reproduz alguns atributos humanos, como ter filhos, formar famílias, embora não tenha corpo físico. Existem sem serem materiais. As famílias aparecem na formação de subsidiárias, coligadas, controladas. Possivelmente o substrato material necessário para a personificação explique o fato de terem essas criações intelectuais superado, em muito, o que, remotamente, se pretendia – a separação patrimonial.230

Verificado o surgimento da pessoa jurídica na concepção histórica, deve ser ressaltado,

desde logo, que jamais existiu consenso na conceituação da pessoa jurídica e da sua

227 SALOMÃO FILHO, Calixto. ‘Societas’ com relevância externa e personalidade jurídica. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Revista dos Tribunais, nº 81, jan./mar. 1991, p. 74-75. 228 SALOMÃO FILHO, Calixto. Societas..., p. 74. 229 CATALANO, Pierangelo. As raízes do problema da pessoa jurídica. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. Revista dos Tribunais. n. 73, jul./set. 1995, p. 43-44. 230 Apud: SZTAJN, Rachel. Terá a personificação das sociedades função econômica? In: PERIN JUNIOR, Elcio et al. (Coord.). Direito empresarial. Aspectos atuais de Direito Empresarial brasileiro e comparado. São Paulo: Método, 2005, p. 378).

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personalização. Com efeito, quando pessoas (físicas ou jurídicas) se reúnem para constituir uma

sociedade, “antes da personificação, já é patrimônio destinado e distinto, e a titularidade, embora

plúrima, já se vinculou. Com a personificação, que é obra da lei, há aglutinação do que as

vontades das pessoas físicas criaram. [...] Aliás, a sociedade que ainda não foi registrada já é

sociedade, embora ainda não seja pessoa jurídica.”231 Desta forma, enquanto não personalizada a

sociedade, os atos praticados em nome da sociedade vinculam quem os pratica. No entanto, após a

personificação, o ato é da pessoa jurídica, realizado pelos seus órgãos sociais, respondendo apenas

a pessoa jurídica.

Existem diversas teorias que procuram explicar a natureza da pessoa jurídica232, dentre as

quais a da ficção, da realidade orgânica, da realidade técnica, da instituição etc.233 José Lamartine

Corrêa de Oliveira foi um dos principais estudiosos deste tema (através das obras “Conceito de

pessoa jurídica” (1962) e “A dupla crise da pessoa jurídica” (1979)), tendo criado dois critérios 231 MIRANDA, Pontes. Tratado..., Tomo XLIX, p. 91-94. Continua o tratadista à p. 93: “Desde que se conclui o contrato social já se pensa em individualização, em imunidade objetiva e em localização. O patrimônio social já está concebido; já se discrimina, a despeito de ainda não haver a pessoa jurídica, o que é patrimônio social, patrimônio separado. O contrato social foi contrato básico e não só contrato causal. Como se marchou para a criação de nova entidade, a despeito da pluralidade de figurantes do contrato, marchou-se para a individualização dos bens. Embora não esteja ultimada a discriminação subjetiva, e os figurantes tenham os direitos, já os bens entram em patrimônio separado” (p. 93). 232 Por outro lado, existem ainda renomados juristas como Angelici (Giurisprudenza Commerciale, 1977) e Rubens Requião que desqualificaram a problemática do estudo da pessoa jurídica, pois, para eles, “o problema da personalidade jurídica das sociedades comerciais comporta um tratamento prático. Daí porque nos afastamos das abstratas preocupações científicas e doutrinárias, a respeito das teorias, dissertação imprópria em um compêndio de Direito Comercial. Valemo-nos, por isso, da destemida afirmativa de Messineo, que alheando-se das querelas que tanto afadigaram os juristas, considerou de somenos importância o problema sobre a realidade ou ficção das pessoas jurídicas, satisfazendo-se com a circunstância de possuírem elas uma realidade no e para o mundo jurídico” (REQUIÃO, Rubens. Curso de Direito Comercial. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 1, p. 385). Em outro texto, continua Rubens Requião: “Não é nosso objetivo, nem comporta o âmbito resumido deste estudo, digressões sobre as fatigantes polemicas sobre a teoria da pessoa jurídica, máxime quando elas, segundo o testemunho de Cunha Gonçalves, ‘longe de esclarecerem o problema, só tem servido para o tornarem mais confuso...” (REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica Disregard Doctrine. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 803, set. 2002, p. 754). 233 Vera Heleno de Mello Franco resume as principais teorias sobre a pessoa jurídica: Para a teoria finalista (teoria da ficção de Savigny), a pessoa jurídica é estabelecida (criada) artificialmente para que possa exercer a titularidade de um patrimônio, ou seja, para que possa ser sujeito de direito. A teoria do patrimônio de afetação dispõe que a personalidade moral apenas encobriria um patrimônio sem sujeito, de modo que se manteria pela destinação dos seus elementos a um determinado fim. Por outro lado, os adeptos da teoria da realidade (teoria orgânica de Gierke) defendem que a pessoa moral é uma realidade pretérita ao direito, o qual apenas a identifica. Em outras palavras, a pessoa moral poderia ser equiparada as pessoas individuais, possuindo um corpo, um organismo, no qual as células componentes perderam a sua individualidade. Em sentido semelhante discorre a teoria da instituição (Maurice Hariou), para a qual a pessoa moral seria uma construção destinada à execução de um serviço público ou privado, com uma destinação específica. No entanto, nem todas as instituições teriam personalidade, mas a pessoa moral seria sempre uma instituição. Por fim, existe a teoria da realidade técnica (Trobas e Waline), para os quais a realidade jurídica não se limita a ser uma simples cópia da realidade vulgar, razão pela qual a pessoa jurídica poderia existir sem qualquer suporte biológico, já que a personalidade seria uma aptidão para ser sujeito de direito e para adquirir direitos (FRANCO, Vera Helena de Mello. Manual..., v. 1, p. 291-293).

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distintos para o estudo das diversas teorias. Esta distinção pode ser verificada nas palavras de

Rodrigo Xavier Leonardo: Para tanto, J. Lamartine Corrêa de Oliveira elegeu dois critérios distintivos para as diversas teorias.

O primeiro deles diferenciava as teorias mediante a visão de sociedade dos diversos doutrinadores, especificamente quanto ao reconhecimento dos agrupamentos sociais. O segundo critério pautava-se pela concepção de direito subjetivo subjacente a cada uma das teorias votadas a explicar a natureza das pessoas jurídicas. Os dois critérios refletem algumas das mais importantes posições filosóficas do nosso autor.

Ao eleger a visão da sociedade como um dos divisores entre teorias da pessoa jurídica, o estudioso procurava destacar a necessidade de distinguir teorias jurídicas centralizadas na norma jurídica das demais doutrinas que procuravam soluções jurídicas com maior aderência à realidade social. Por outro lado, ao alertar para a concepção de direito subjetivo subjacente a cada uma das teorias, ao mesmo tempo, expressava a advertência teórica de uma prestigiosa doutrina e abria o campo para que as premissas jusnaturalistas, eleitas pelo autor como corretas, iluminassem suas conclusões.234

Através deste estudo, José Lamartine Corrêa de Oliveira esboçou a diferença entre a

pessoa humana e a pessoa jurídica, guardando uma forma “substancial” para a primeira e uma

forma “acidental” para a segunda. Ou seja, “quando falamos em substância e acidente, referimo-

nos à ordem do ser enquanto existente. Enquanto que substância é o ser que existe por si mesmo, o

acidente, que também é um ser, um ens, mas é um ens, entis, um ser que existe como

complemento ou acabamento de outro ser.”235

Contudo, não obstante renomados juristas ainda sustentarem que a natureza jurídica das

pessoas jurídicas decorre das teorias ficcionistas (para os quais a pessoa jurídica é mera criação

(ficção) da lei, não tendo existência real), prevalecem hodiernamente as teorias realistas, para as

quais a pessoa jurídica não decorre de uma simples criação legal, mas existem por si mesmas,

através de um fenômeno espontâneo e próprio. Ainda, dentro da teoria realista, se sobressai a

teoria da realidade técnica, “pois se entende que não só a pessoa jurídica tem existência diversa da

de seus membros, como sua vontade é diversa da de seus componentes. Por outro lado, sua

capacidade não é a de seus integrantes, mas a que lhe foi atribuído no ato constitutivo, ou

modificativo, admitido pelo direito positivo.”236

234 LEONARDO, Rodrigo Xavier. Pessoa jurídica : por que reler a obra de J. Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra hoje? In: CASTRO, Rodrigo Pironti Aguirre de (Org.). Concurso de Monografias Prêmio José Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra. Curitiba : Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, 2005, p. 35-36. 235 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa. Conceito de pessoa jurídica. Tese (Concurso de Livre-Docência de Direito Civil) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 1962, p. 162. 236 LOTUFO, Renan. Curso..., p. 111.

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Sob um viés positivo (art. 45 do Código Civil de 2002), a pessoa jurídica, via de regra,

surge com o registro do contrato ou estatuto social nos órgãos registrais237 (v.g., Juntas

Comerciais, Cartórios de Registro de Pessoas Jurídicas etc.).238 Disso extrai-se a lição de Vicente

Ráo sobre a qual o ordenamento jurídico reconhece aptidão tanto às pessoas físicas, como outorga

às pessoas jurídicas, para serem sujeitos de direitos.239

Para Alfredo de Assis Gonçalves Neto,

O que se contém de maior relevo na idéia de sociedade é, como dito anteriormente, a criação de uma entidade. A sociedade regularmente constituída destaca-se da figura dos sócios para ter, perante o direito, uma vida distinta da deles, com patrimônio e vontade próprios, capaz de exercer direitos e assumir obrigações como sujeito de direito nas relações jurídicas das quais vier a participar, seja com seus sócios, seja com terceiros.

Esse ente tem por função facilitar a prática de atos ou negócios jurídicos voltados à realização de certos fins econômicos por elas pretendidos. Para preencher tal função, o ordenamento jurídico pode atribuir-lhe, ou não, personalidade jurídica.240

Continuando, Alfredo de Assis Gonçalves Neto registra que segue a doutrina que atribui

um caráter atributivo da personalidade, pois, ao contrário de outros juristas (v.g., Trajano de

Miranda Valverde, Del Vecchio e José Lamartine Corrêa de Oliveira) que reconhecem a

existência de uma pessoa jurídica como realidade fática para regular-lhe a atuação, Assis

Gonçalves entende que o direito “outorga personalidade a certos centros de imputação de

interesses para que atuem na prática de atos da vida civil à semelhança da pessoa natural”.241

237 O Código Civil francês possui dispositivo similar: “L’article 1842, alinea 1ª, du Code Civil: C’est l’immatriculation de la société au Registre du Commerce et des Sociétés qui lui confere, sans rétroactivité, la personnalité morale” (JEANTIN, Michel. Droit des sociétés. 3. éd. Paris: Montchrestien, 1994, p. 79. Na tradução livre: “O artigo 1842, parágrafo 1ª, do Código Civil: É a inscrição da sociedade ao Registro do Comércio e das Sociedades que lhes confere, sem retroatividade, a personalidade jurídica”). 238 João Eunápio Borges dispõe que “duplo significado tem a palavra sociedade e duplo efeito gera o contrato de sociedade. Como qualquer contrato bilateral, o de sociedade cria relações obrigatórias entre as partes que o celebram, isto é, gera direitos e obrigações para os sócios. Além disso, efeito mais importante e que lhe é peculiar, ele dá nascimento a uma pessoa jurídica que, aos olhos da lei, tem existência real tão efetiva como a das pessoas naturais que, pelo contrato de sociedade, a geraram. E a palavra sociedade é empregada para designar tanto o contrato, que é causa da pessoa jurídica que ele fez nascer, como a própria pessoa, que é efeito daquele contrato” (BORGES, João Eunápio. Curso de Direito Comercial Terrestre. 5. ed. n. 246. Rio de Janeiro: Forense, 1975, p. 260). Por outro lado, registra-se que não obstante a regra registral prevalecer em grande parte dos países (v.g. Brasil, Argentina, Espanha, Suíça, Paraguai etc.), existem outros sistemas em que a personalidade jurídica nasce apenas pela via contratual, independentemente do registro (v.g., Uruguai). (Apud: RAFFO, Francisco M. López. El corrimento del velo societario: alcances del art. 54, último párrafo, de la Ley de Sociedades Comerciales. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2005, p. 50-56). 239 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 722. 240 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Lições de direito societário: regime vigente e inovações do novo Código Civil. 2. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004, p. 17. 241 Id. Ibid., p. 18.

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Com efeito, o ordenamento jurídico brasileiro distingue a responsabilidade da pessoa

jurídica da responsabilidade pessoal dos seus integrantes, haja vista que, ao admitir sociedades

personalizadas tanto para sócios com responsabilidade limitada (v.g., Ltda. e S/A) como para

sócios com responsabilidade ilimitada (v.g., sociedade em nome coletivo), ressalta a regra

distintiva do revogado art. 20 do Código Civil de 1916, segundo a qual “as pessoas jurídicas têm

existência distinta da dos seus membros”.242

Este é o entendimento vigente na atualidade, pois, “tratando-se de sociedades, a regra da

autonomia patrimonial não se altera, os bens sociais respondem pelas obrigações decorrentes do

exercício da atividade econômica”,243 na medida em que o verdadeiro critério para se levar em

consideração “é o referente aos próprios pressupostos da separação patrimonial, enquanto causa da

constituição das sociedades”, sejam eles formais (espécie societária) ou substanciais (objetivo

social), como “escopo inconfundível com o interesse ou a atividade dos sócios”.244

No direito norte-americano, a tendência é encarar a pessoa jurídica como ficção245

(desenvolvida e sistematizada por Savigny), enquanto no direito brasileiro a corrente majoritária

inclina-se a entendê-la como realidade técnica.246 Entretanto, em ambas é possível identificar a

personalidade jurídica societária e trabalhar sobre a sua aquisição, efeitos e término (inclusive no

que concerne à disregard doctrine), pois, enquanto para os ficcionistas a lei que criou poderá

também suspender seus efeitos, para os realistas, a desconsideração é enfocada como um

instrumento do direito positivo para ajustar as construções jurídicas e seus efeitos metajurídicos.

242 Ressalta-se, por outro lado, que o mesmo Código Civil considera não personificadas as sociedades de fato e as irregulares, assim como as sociedades em conta de participação, reforçando a idéia de que é o direito quem “outorga” personalidade a determinados entes, deixando de fazê-lo com relação a outros. 243 SOUZA, Sueli Batista de. Responsabilidade dos sócios na sociedade limitada. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 42. 244 COMPARATO, Fábio Konder. O poder..., p. 274-275. 245 Ao se referir ao sistema norte-americano de tratamento da pessoa jurídica, Albertino Daniel de Melo informa que foi “completado (...) por uma concepção ficcionista da pessoa jurídica. (...) Suas publicações realçam, em vários prismas, a concepção ficcionista da pessoa jurídica e o caráter subsidiário da responsabilidade que se alcança por via de desconsideração da personalidade” (MELO, Albertino Daniel de. Sanção civil por abuso de sociedade. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, p. 105-106). 246 Para o jurista francês René David, citado por João Casillo, “a pessoa jurídica, independentemente de todas aquelas teorias como a individualista, de ficção etc., se apresentava hoje em dia, em nosso cotidiano, principalmente no âmbito do Direito Comercial, como um procedimento técnico utilizado pelos juristas para agrupar e justificar certas dificuldades a eles impostas. Chega à conclusão, pela sua análise, que a pessoa jurídica é um instrumento criado pela lei para realizar determinadas atividades que a pessoa física, a pessoa natural, não poderia fazer” (CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná. (Semana de estudos em homenagem ao professor Rubens Requião – Tendências atuais do Direito Comercial). n. 29. Curitiba: O Instituto, 2000, p. 73-74).

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No direito italiano, Cesare Vivante demonstra a prevalência da posição realista da pessoa

jurídica, como ente jurídico distinto dos sócios e com vontade própria: “La società è quindi una

persona giuridica che ha un contenuto reale, cioè una volontà propria organizzata a difesa del

proprio scopo. La legge la riconosce ma non la crea. La legge riconosce come soggetto di diritto

un ente che già esiste nella realtà”.247

Já para o jurista francês Michel Jeantin, o fato de que a personalidade moral é subordinada

à realização de uma formalidade administrativa (registro) reforça a tese da ficção de

personalidade.248

Não se pode perder de vista que a pessoa jurídica (e a conseqüente atribuição da

personalidade jurídica às sociedades) sempre ocasionou pontos de vistas divergentes, pois,

conforme relata Rafael Mariano Manóvil, Para unos es la positiva culminación de un largo proceso de evolución jurídica, que sirve de

instrumento al progreso y a la eficacia de las relaciones económicas y sociales; para los otros, en cambio, constituye un artificio para otorgar privilegios a quienes utilizan ese instrumento, permitiéndoles, de ese modo, desentenderse de las consecuencias y responsabilidades derivadas de su actividad.249

Por outro lado, o jurista uruguaio Carlos Fernández Sessarego explica a existência da

pessoa jurídica através de uma visão “tridimensional” da pessoa jurídica, pois, segundo sustenta,

somente é possível distinguir a pessoa jurídica da pessoa dos sócios se analisada através da

interação dinâmica de três dimensões que existem reciprocamente. São elas:

1) Dimensión sociológica-existencial de la persona jurídica – la persona jurídica requiere

primariamente, como cualquier otra institución, de un substrato humano, el que está compuesto por las personas que la constituyen e integran. Sin la presencia actuante de estos seres humanos es imposible imaginarla o concebirla.

2) Dimensión axiológica de la persona jurídica – el grupo humano, que constituye primariamente la persona jurídica, actúa organizadamente para lograr un fin o un conjunto de fines valiosos. Es este fin

247 VIVANTE, Cesare. Trattato di Diritto Commerciale. Milão, 1906, v. 2, p. 4. Na tradução livre: “A sociedade é, portanto, uma pessoa jurídica que tem um conteúdo real, isto é, uma vontade própria organizada para defesa do seu próprio fim. A lei a reconhece, mas não a cria. A lei reconhece como sujeito de direito um ente que já existe na realidade”. (Apud: BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 14). José Edwaldo Tavares Borba cita também, no mesmo sentido, posicionamento do jurista francês Georges Ripert (RIPERT, Georges. Traité Élémentaire de Droit Commercial. Paris, 1948, p. 232). 248 “Le fait que la personnalité morale soit subordonnée à l'accomplissement de formalités administratives renforce la thèse de la personnalité fiction” (JEANTIN, Michel. Op. cit., p. 79. Na tradução livre: “O fato que a personalidade jurídica está subordinada à realização de formalidades administrativas reforça a tese da ficção da personalidade”). 249 MANÓVIL, Rafael Mariano. Prólogo. In: CAPUTO, Leandro Javier. Inoponibilidad de la personalidad jurídica societaria. Buenos Aires: Astrea, 2006, p. IX. Na tradução livre: “Para alguns é a culminação positiva de um processo longo de evolução legal, que serve de instrumento ao progresso e a efetividade das relações econômicas e sociais; para outros, entretanto, constitui um artifício para conceder privilégios àqueles que usam desse instrumento, permitindo-lhes, desse modo, ignorar as conseqüências e responsabilidades derivadas da sua atividade”.

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valioso, vivenciado por cada uno de sus componentes, el que aglutina a la comunidad de personas y otorga un sentido a su específica actividad.

3) Dimensión formal-normativa – la persona jurídica, en cuanto organización de personas que persigue fines valiosos, requiere que mediante un recurso propio de la técnica jurídica se le considere, pese a su pluralidad existencial, como una unidad formal para el efecto de lograr que los actos jurídicos que realizan sus miembros no se les impute a cada uno de ellos, en forma inmediata y directa, sino que se atribuyan a un centro ideal de referencia de situaciones jurídicas subjetivas. La persona jurídica tiene una especial regulación normativa.250

Desta forma, sustenta o jurista uruguaio que somente pela interação dinâmica das três

dimensões (sociológico-existencial, axiológica e formal-normativa) é possível compreender

unitariamente a pessoa jurídica (surgindo a visão “tridimensional” da pessoa jurídica), pois elas se

interagem dinamicamente, não sendo possível prescindir de alguma delas, sob pena de termos

apenas uma visão recortada, parcial e fragmentada da pessoa jurídica.

Em suma, as teorias, visões e interpretações da pessoa jurídica são imensuráveis, todavia,

não se pode perder de vista que o ente coletivo surge como forma/técnica de separação

patrimonial em que se atribui personalidade jurídica própria ao patrimônio segregado251 (o qual,

necessariamente, não pode se misturar com o dos sócios, sob pena de não se ter uma pessoa

jurídica). Com isso, passa-se a responsabilizar e titularizar direitos e deveres de um patrimônio

distinto em relação aos sócios e aos terceiros, independente do agrupamento de pessoas (físicas

e/ou jurídicas) que o criaram,252 visando facilitar as relações da vida em sociedade.253

250 SESSAREGO, Carlos Fernández. Visión tridimensional de la persona jurídica. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. Revista dos Tribunais, n. 77, jul./set. 1996, p. 10. Na tradução livre: “1) Dimensão sociológico-existencial da pessoa jurídica - a pessoa jurídica requer primeiramente, como qualquer outra instituição, um substrato humano, o qual é composto pelas pessoas que a constituem e a integram. Sem a presença atuante desses seres humanos é impossível imaginá-la ou concebê-la. 2) Dimensão axiológica da pessoa jurídica - o agrupamento humano que constitui a pessoa jurídica age organizadamente para alcançar um fim ou um conjunto de fins valiosos. É esse fim valioso, vivenciado por cada um dos seus componentes, o que aglutina a comunidade de pessoas e concede um sentido a sua atividade específica. 3) Dimensão formal-normativa - a pessoa jurídica, enquanto organização de pessoas que procura fins valiosos requer, por meio de um recurso próprio da técnica legal, que lhe seja considerado, apesar de sua pluralidade existencial, como uma unidade formal para o efeito de alcançar que os atos jurídicos realizados por seus membros não sejam imputados a cada um deles, de forma imediata e direta, mas que sejam atribuídos a um centro ideal de referência de situações jurídicas subjetivas. A pessoa jurídica tem um regulamento normativo especial”. 251 Por patrimônio segregado ou autônomo, entende-se “o substrato de uma sociedade mercantil (que é diferente do patrimônio que caracteriza uma fundação, uma massa falida, um espólio ou um condomínio, por exemplo) distingue-se de todas as demais realidades de fato ou de direito e ele comparáveis, essencialmente, pela função que, pragmaticamente, desempenha no modo de produção” (GEVAERD, Jair. O princípio da perfeição da vontade social – Introdução à ética e à principiologia da administração societária. In: GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.). Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 169). 252 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual de direito comercial. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 112. 253 Túlio Ascarelli, ao tratar da personalidade jurídica em relação aos contratos externos (ou seja, a comercialidade da sociedade com terceiros), dispõe que “o contrato plurilateral, com organização assim criada, constitui, por assim dizer, o substrato da pessoa jurídica: através desta, as várias relações jurídicas são, pois, concebidas e disciplinadas unitáriamente. Às relações de cada parte com ‘todas as outras’ sucedem, portanto, as de cada parte com a pessoa

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3.1.1 A pessoa jurídica no Brasil

O atual Código Civil disciplina a pessoa jurídica através do art. 40, dividindo-a em pessoas

jurídicas de direito público (interno ou externo) e pessoas jurídicas de direito privado. São pessoas

jurídicas de direito público interno a União, os Estados, os Municípios, os Territórios, o Distrito

Federal, as autarquias e associações públicas, além de outras entidades de caráter público criadas

por lei (art. 41 CC). Já as pessoas jurídicas de direito público externo são os Estados estrangeiros e

todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público, como a Santa Sé254, ONU,

OEA, UNESCO etc. (art. 42 CC).

Em curta síntese, são entidades abstratas que decorrem da organização legal e não se

enquadram como empresa, já que não visam o lucro ou o proveito econômico, tendo como fim

último o bem comum dos cidadãos nacionais.

Por outro lado, são pessoas jurídicas de direito privado as associações, as fundações, as

sociedades (art. 44 CC). Destas, as duas primeiras (associações e fundações) possuem finalidade

não econômica, pois, enquanto a associação não busca o lucro e seus membros podem alterar-se

livremente (sem maiores requisitos, diferentemente do que ocorre nas sociedades), as fundações

são constituídas em decorrência da destinação de patrimônio pela vontade do seu titular,

possuindo destinação filantrópica ou de utilidade pública (fins religiosos, morais, culturais ou de

assistência), igualmente sem o interesse lucrativo.

É certo que algumas associações possuem uma forma muito próxima à da empresa, com

verdadeiro empreendedorismo dos seus titulares, todavia, os recursos angariados devem ser

destinados (reinvestidos) na própria atividade desenvolvida, como ocorre, por exemplo, com as

Associações Comerciais dos Estados, alguns Hospitais (v.g., Albert Einstein), o Greenpeace etc.255

jurídica; às relações de ‘todas as partes’ para com os terceiros, as da pessoa jurídica para com os terceiros. Sem dúvida, o processo de personificação encontra, antes de mais nada, sua razão de ser nas relações para com os terceiros; pode, no entanto, ser aplicado também às relações internas, podendo-se distinguir, assim, tanto as relações da pessoa jurídica para com os terceiros, quanto as da pessoa jurídica para com os seus membros” (ASCARELLI, Tullio. Problemas das sociedades anônimas e direito comparado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1969, p. 294). 254 Tádio de Noronha explica que a Igreja Católica, “apresentando-se com a denominação de Santa Sé e tendo por chefe uma autoridade universalmente reconhecida, ela, na ordem pública, se reveste, como os demais Estados, dos característicos de uma pessoa jurídica internacional, e, na ordem privada, fraciona-se, para que possa alcançar os seus próprios fins, em corporações, igrejas, irmandades, as quais, à semelhança das outras pessoas jurídicas, são amparadas e protegidas pela lei” (NORONHA, Tádio de. Elementos de Direito. São Paulo: Lyceu Coração de Jesus, 1924, p. 29-30). 255 COSTA, Carlos Celso Orcesi. Código Civil na visão do advogado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 51.

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Por fim, quanto às pessoas jurídicas constituídas por sociedades, deve-se distinguir, desde

logo, que “todas as empresas são sociedades, porém nem todas as pessoas jurídicas são

empresas”256. Em razão disso é que o Código Civil reconhece personalidade jurídica para algumas

sociedades e não a reconhece para outras.257

Cabe aqui uma rápida distinção entre os conceitos de empresa, empresário, sociedade e

estabelecimento, eis que tais institutos formam a base do Direito societário, e muitas vezes são

utilizados como sinônimos, apesar das importantes e pontuais diferenças existentes.

A empresa, entende-se como uma abstração258, um “organismo econômico, que combina

os fatores natureza, capital e trabalho, para a produção ou circulação de bens ou serviços”259, que

não tem vida própria senão através do empresário.

Já o empresário é conceituado pelo ordenamento jurídico como quem “exerce

profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou

serviços” (art. 966, CC). Nas palavras de Fábio Tokars, “empresário é a pessoa que desenvolve,

em nome próprio, atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou

serviços”260, podendo ser pessoa física (empresário individual) ou uma pessoa jurídica (sociedade

empresária). A sociedade empresária é o próprio empresário, já que é a sociedade que irá exercitar

a atividade produtiva, e não, a empresa.261

A seu turno, “celebram contrato de sociedade as pessoas que reciprocamente se obrigam a

contribuir, com bens ou serviços, para o exercício de atividade econômica e a partilha, entre si,

dos resultados” (art. 981, CC). Alfredo de Assis Gonçalves Neto apresenta o seguinte conceito de

sociedade:

Sociedade é um negócio jurídico destinado a constituir um sujeito de direito, distinto daquele ou daqueles que o produziram, com patrimônio e vontade próprios, para atuar na ordem jurídica como novo ente, como um organismo, criado para a realização de uma finalidade econômica específica – ou, mais

256 Id. Ibid., loc. cit. 257 Alfredo Assis Gonçalves Neto informa que “embora a lei brasileira atribua personalidade jurídica às sociedades em geral (a esse ente), no plano teórico a criação de uma pessoa jurídica não é fator decisivo para caracterizá-la, pois em outras legislações, como a alemã, por exemplo, só as sociedades de capital são dotadas de personalidade jurídica; as sociedades de pessoas não o são, mas nem por isso deixam de se compor como entidades, isto é, como sujeitos de direitos e de obrigações na ordem jurídica” (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 17). 258 REQUIÃO, Rubens. Curso..., v. 1, p. 59. 259 Id. Ibid., p. 370. 260 TOKARS, Fábio. Sociedades limitadas. São Paulo: LTr, 2007, p. 441. 261 REQUIÃO, Rubens. Curso..., v. 1, p. 60.

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precisamente, para a prática de atos da vida civil, necessários a preencher os fins econômicos que justificaram sua celebração.262

O Código Civil não estabeleceu que com a criação regular (após o registro) da sociedade

surge a pessoa jurídica distinta da dos sócios, já que o Código admite também a existência de

sociedades sem personalidade jurídica, como é o caso da sociedade em comum (art. 986, CC) e da

sociedade em conta de participação (art. 991, CC).

Por fim, o estabelecimento empresarial (fundo de empresa) é conceituado pelo Código

Civil como “todo complexo de bens organizado, para exercício da empresa, por empresário, ou

por sociedade empresária” (art. 1.142, CC). Nas palavras de Oscar Barreto Filho:

Nessa conformidade, parece lícito admitir, segundo o consenso geral, que o estabelecimento comercial: 1º, é um complexo de bens, corpóreos e incorpóreos, que constituem os instrumentos de trabalho do comerciante, no exercício de sua atividade produtiva; 2º, não se configura como o complexo de relações jurídicas do comerciante, no exercício do comércio e, portanto, não constitui um patrimônio comercial distinto do patrimônio civil; 3º, é formado por bens econômicos, ou seja, por elementos patrimoniais, sendo duvidoso se compreende elementos pessoais; 4º, é uma reunião de bens ligados por uma destinação unitária que lhe é dada pela vontade do comerciante; 5º, apresenta um caráter instrumental em relação à atividade econômica exercida pelo comerciante. Diante dessas características, obtém-se a seguinte definição [...]: complexo de bens, materiais e imateriais, que constituem o instrumento utilizado pelo comerciante para a exploração de determinada atividade mercantil.263

Em suma, a empresa é a organização dos fatores de produção, destinada à exploração

econômica com fins lucrativos, capitaneada por pessoas físicas ou jurídicas. Já o empresário é a

pessoa (física ou jurídica) responsável pelo desenvolvimento da atividade empresária, ou seja, é o

sujeito de direito, enquanto que a empresa é o objeto de direito.

A sociedade é uma reunião de pessoas264 que destinam patrimônio (bens, dinheiro) para o

desenvolvimento de atividade econômica com finalidade lucrativa, para ulterior partilha dos

262 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 8. João Xavier Carvalho de Mendonça também dispõe de forma semelhante: “A sociedade comercial constitui um subjectum juris distinto das pessoas dos sócios; é ela o verdadeiro titular dos direitos e obrigações que promanam da sua atividade” (MENDONÇA, João Xavier Carvalho. Tratado de Direito Comercial Brasileiro. 5. ed. Rio de Janeiro : Freitas Bastos, v. III, livro II, parte III, 1954, p. 93). 263 BARRETO FILHO, Oscar. Teoria do estabelecimento comercial: fundo de comércio ou fazenda mercantil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 75. 264 Abre-se um parêntese aqui para ressaltar que o direito brasileiro não contempla a construção da sociedade originária unipessoal com responsabilidade limitada, diferentemente do que ocorre em outros países como Alemanha (1980), França (1985), Portugal (1986), Bélgica (1987), Itália (1993), Espanha (1995). A maior parte destes países europeus criou a sociedade unipessoal com responsabilidade limitada após a publicação das diretrizes da Comunidade Econômica Européia (CEE), recomendando a criação da sociedade com responsabilidade limitada com apenas um sócio. Na América do Sul, Paraguai e Peru também possuem esta espécie societária, enquanto que o Chile teve seu projeto de lei aprovado recentemente. Neste sentido: BRUSCATO, Wilges Ariana. Empresário..., p. 248-255. As exceções no Brasil são a sociedade unipessoal superveniente (art. 1.033, IV, CC e art. 206, I, d, S/A),

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resultados. E o estabelecimento é o complexo de bens organizado, para o exercício da empresa,

através da figura do empresário (pessoa física ou jurídica).

3.1.2 A aquisição da personalidade jurídica

Conforme dito anteriormente, a pessoa natural (o ser humano) é o centro do ordenamento

jurídico, de modo que, em razão disso, nada mais natural que a tutela legislativa se volte para ele,

razão pela qual da importância do princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento

jurídico brasileiro. No entanto, tendo em vista que é da natureza do homem se associar (para as

mais variadas finalidades), o Direito não se furta de programar regras e princípios para regular

esse fenômeno social, ou seja, a pessoa jurídica (como coletividade – podendo ser tanto

universitates personarum – associações e sociedades, como universitates bonorum – fundações,

embora esta última possa ser formada por apenas um único bem, não se exigindo, neste caso, uma

coletividade).265

Com efeito, toda pessoa natural é capaz de direitos e deveres na ordem civil (art. 1º, CC),

da mesma forma que possui personalidade266 civil, a qual, para as pessoas naturais, começa com o

nascimento com vida (não obstante existirem os direitos do nascituro desde a concepção) e vai até

a morte da pessoa. Os direitos de personalidade atribuídos a pessoa natural (v.g., direito a

integridade física, à integridade intelectual, integridade moral) são absolutos, extrapatrimoniais,

intransmissíveis, indisponíveis, vitalícios e necessários,267 encontrando previsão nos artigos 11 a

21 do Código Civil.

Por outro lado, o mesmo Código Civil que tutela os direitos de personalidade jurídica da

pessoa natural, estendeu os direitos de personalidade à pessoa jurídica, conforme se depreende do

art. 52 (“Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”).

quando restar apenas um sócio na sociedade (o qual tem prazo para constituir nova pluralidade) e na hipótese originária do art. 251 da Lei das S/A, através do qual cria-se a possibilidade de uma sociedade ser a única titular do capital social de outra sociedade (sua subsidiária integral), já no instante da criação, como também da empresa pública, da qual participa apenas o Estado (Dec.-lei 200/1967). 265 Neste sentido: MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 61. 266 “A palavra persona, em latim, significa máscara de teatro, em outras palavras, um papel que se atribui ao ator, sendo que, por força da evolução humana, as próprias pessoas passam a representar o próprio sujeito na relação jurídica, não como atores, mas sim como a si próprias, a representar um papel significativo dentro da vida em sociedade” (ESTEVES, Jean Soldi. Uma perspectiva civil-constitucional da imagem da pessoa jurídica. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões controvertidas no Novo Código Civil. Parte geral do Código Civil. São Paulo: Método, 2007, v. 6, p. 182). 267 LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. Parte Geral. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, v. I, p. 47-51.

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Por certo, nem todos os direitos personalíssimos da pessoa natural se aplicam à pessoa jurídica, já

que, v.g., a pessoa jurídica não possui integridade física (direito à vida, ao corpo, aos alimentos

etc.).

Todavia, outros se aplicam, como os que dizem “respeito à integridade intelectual, como

os direitos autorais (marca), artísticos, científicos e literários, e também a aplicação dos mesmos

no que diz respeito à integridade moral, como o segredo profissional da pessoa jurídica, sua

identidade (nome e marca) e, por conseguinte, o seu direito à imagem”268.

Exemplo disso é a Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça, a qual reconhece que a

pessoa jurídica pode sofrer dano moral269, pois inegável que as lesões atinentes às pessoas

jurídicas repercutem no desenvolvimento de suas atividades econômicas, as quais são um dos

instrumentos de promoção dos valores sociais e não-patrimoniais.

Não é diferente o entendimento no direito italiano. A Corte Suprema di Cassazione

italiana já entendeu que a pessoa jurídica societária também pode sofrer dano extrapatrimonial

quanto a sua imagem, podendo ser cumulado tanto o ressarcimento por danos patrimoniais, como

também pelos danos extrapatrimoniais.270

268 ESTEVES, Jean Soldi. Op. cit., p. 195. 269 “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral” (STJ, Súmula 227, Segunda Seção, julgado em 08.09.1999, DJ 20.10.1999, p. 49). A jurisprudência do STJ fundamenta o entendimento adotado na súmula, ou seja: “Responsabilidade civil. Dano moral. Pessoa jurídica. A honra objetiva da pessoa jurídica pode ser ofendida pelo protesto indevido de titulo cambial, cabendo indenização pelo dano extrapatrimonial dai decorrente. Recurso conhecido, pela divergência, mas improvido” (STJ, REsp 60033/MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, DJ 27.11.1995, p. 40893). 270 “PERSONE GIURIDICHE – DANNO NON PATRIMONIALE – RISARCIBILITÁ. Poiché anche nei confronti della persona giuridica ed in genere dell’ente collettivo è configurabile la risarcibilità del danno non patrimoniale allorquando il fatto lesivo incida su una situazione giuridica della persona giuridica o dell’ente che sia equivalente ai diritti fondamentali della persona umana garantiti dalla Costituzione, e fra tali diritti rientra l’immagine della persona giuridica o dell’ente, allorquando si verifichi la lesione di tale immagine, è risarcibile, oltre al danno patrimoniale, se verificatosi, e se dimostrato, il danno non patrimoniale costituito dalla diminuzione della considerazione della persona giuridica o dell’ente nel che si esprime la sua immagine, sia sotto il profilo della incidenza negativa che tale diminuzione comporta nell’agire delle persone fisiche che ricoprano gli organi della persona giuridica o dell’ente e, quindi, nell’agire dell’ente, sia sotto il profilo della diminuzione della considerazione da parte dei consociati in genere o di settori o categorie di essi con le quali la persona giuridica o l’ente di norma interagisca. E’ questo l’importante principio di diritto enunciato dalla Corte, la quale ha anche precisato che il suddetto danno non patrimoniale va liquidato alla persona giuridica o all’ente in via equitativa, tenendo conto di tutte le circostanze del caso concreto. In riferimento ad indebita segnalazione da parte di istituto bancario di una società alla Centrale Rischi della Banca d’Italia quale soggetto in posizione di c.d. sofferenza – è questo il caso venuto all’esame della III Sezione civile –, deve riconoscersi, pertanto, la risarcibilità a tale società di un danno non patrimoniale per lesione del diritto all’immagine sotto i due profili indicati, da liquidarsi in via equitativa secondo le circostanze concrete del caso. (Corte Suprema di Cassazione, Sezione Terza Civile, Presidente L. F. Di Nanni, Relatore R. Frasca, Sentença n. 12929 del 4 giugno 2007). Apud: (ITÁLIA. Corte Suprema di Cassazione italiana. Disponível em: [http://www.cortedicassazione.it/Notizie /GiurisprudenzaCivile/SezioniSemplici/SezioniSemplici.asp?ID=6#]. Acesso em: 13/06/2007). Na tradução livre: “PESSOAS JURÍDICAS – DANO EXTRAPATRIMONIAL – INDENIZAÇÃO”. Neste caso, a Corte Suprema di

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Darcy Arruda de Miranda, ao comentar a Lei de Imprensa em 1969, já demonstrava a

possibilidade de a pessoa jurídica ser sujeito passivo de crimes contra a honra, ou seja:

A pessoa jurídica tem no mundo contemporâneo uma consistência própria, e tende a alargar-se e estender-se; é sempre mais necessária e floresce abundantemente a forma da atividade associada. Subsistindo, assim, independentemente das pessoas que a compõem e manifestando-se como forma especial de atividade, ela pode ser sujeito passivo de difamação e injúria. A pessoa jurídica não é de nenhum modo uma ficção jurídica; é uma realidade palpitante, um elemento que integra a vida social e especialmente econômica, revestida de dignidade civil, rodeada de reputação.271

A imputação penal contra a pessoa jurídica sempre foi motivo de controvérsia na doutrina

e na jurisprudência (o ministro do STF Cordeiro Guerra, ao prolatar voto na Ação Penal nº 223-

RJ, publicado no DJ em 05/11/1975, demonstra a transição jurisprudencial sobre este tema na

Suprema Corte brasileira)272, contudo, prevalece hodiernamente que a pessoa jurídica pode ser

vítima de difamação, porém, não de injúria ou calúnia. Neste sentido é o posicionamento

majoritário do STF, conforme se observa pelo seguinte precedente:

CONSTITUCIONAL. ELEITORAL. PARLAMENTAR. CRIME ELEITORAL: DIFAMAÇÃO NA PROPAGANDA ELEITORAL. CÓD. ELEITORAL, ART. 325, CUMULADO COM O ART. 327, III. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. PESSOA JURÍDICA: CRIME CONTRA A HONRA. INOCORRENCIA DO CRIME DE DIFAMAÇÃO EM RELAÇÃO AO PARTIDO POLÍTICO. I. - Delito que teria sido praticado quando o denunciado estava no exercício do mandato de Deputado Federal: competência originaria do Supremo Tribunal Federal. Súmula 394. Não estando o ex-parlamentar no exercício do mandato, não há falar em licença previa da Câmara. II. - A pessoa jurídica pode ser sujeito passivo do crime de difamação, não, porem, de injuria ou calunia. Precedentes do Supremo Tribunal Federal. III. - Declarações, no caso, que configurariam o crime de calunia contra um vereador eleito na legenda do Partido dos Trabalhadores. Impossibilidade de ao declarante ser imputada a pratica do crime de difamação contra o Partido Político, dado que as declarações tiveram por alvo o vereador e não o partido. Ademais, configurando as declarações o crime de calunia, não poderiam ser estendidas a pessoa jurídica, vale dizer, ao Partido Político, dado que a pessoa jurídica não pode ser sujeito passivo do crime de calunia. As declarações do denunciado, referentemente ao Partido Político, traduzem, simplesmente, critica e não difamação. IV. - Denuncia rejeitada. (STF, Inq 800-RJ, Tribunal Pleno, rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 10/10/1994, DJ de 19/12/1994, p 35181).273

Ou seja, o legislador garantiu às pessoas jurídicas os direitos de personalidade, sem,

contudo, confundir a personalidade da pessoa natural com a personalidade da pessoa jurídica,

Cassazione italiana entendeu que a pessoa jurídica societária também pode sofrer dano extrapatrimonial quanto a sua imagem, hipótese em que cabe tanto o ressarcimento por eventuais danos patrimoniais, como também pelos danos extrapatrimoniais sofridos. 271 MIRANDA, Darcy Arruda de. Comentários a Lei de Imprensa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1969, v. 1, p. 375. Apud: RTJ 76/18. 272 RTJ 76/18. 273 No mesmo sentido: STF, Pet-AgR 2491/BA, Tribunal Pleno, rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 11/04/2002, DJ 14/06/2002, p. 00127; STF, RHC 83091/DF, Primeira Turma, rel. Min. Marco Aurélio, j. em 05/08/2003, DJ de 26/09/2003, p. 00013.

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permitindo a aplicação, por empréstimo, da técnica da tutela da personalidade, e apenas no que

couber, à proteção da pessoa jurídica.274

Destarte, através da técnica prevista no art. 52 do Código Civil, a pessoa jurídica tem

protegido seus direitos de personalidade atinentes à identidade da pessoa jurídica, seu nome (razão

social ou denominação, marca, sinais que identifiquem a pessoa jurídica, o título do

estabelecimento, seus símbolos), sua boa imagem pública (no mercado e junto aos consumidores)

etc., aplicando-se, dentro desta ótica, os artigos 16 a 21 do Código Civil275, razão pela qual,

havendo violação desses direitos, as pessoas jurídicas poderão pleitear, em juízo, a reparação

pelos danos patrimoniais ou extrapatrimoniais.

Antes da vigência do Código Civil de 1916, existia forte controvérsia na doutrina sobre o

momento em que a sociedade “comercial”276 adquiria a personalidade jurídica277, sobretudo diante

da omissão do revogado Código Comercial de 1850 quanto a este tema. Esta divergência pode ser

observada nas palavras de Egberto Lacerda Teixeira:

Dúvidas existiam, ainda, a respeito da personalidade jurídica das sociedades comerciais, não sendo, pois, de estranhar que em nenhum dos artigos do Código [Código Comercial de 1850] se lhes tenha dado esse reconhecimento. Posteriormente, a legislação do anonimato – a partir da Lei nº 3.150, de 4 de novembro de 1882 e a terminar no Decreto nº 434, de 4 de julho de 1891 que determinou a ‘consolidação das disposições legislativas e regulamentares sobre as sociedades comerciais. O reconhecimento amplo, geral, só se completaria, todavia, com a promulgação do Código Civil, em cujo artigo 16, II, expressamente se abrigaram entre as pessoas jurídicas de direito privado as sociedades mercantis, ‘que continuarão a reger-se pelo estatuído nas leis comerciais’ (§ 2º).278

Ainda, conforme leciona Marcelo Marco Bertoldi, antigamente apenas as sociedades

anônimas eram dotadas de personalidade jurídica, pois, 274 TEPEDINO, Gustavo. Op. cit., p. 55-56. 275 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 86. 276 Este era o termo utilizado antes da adoção da sociedade empresária pelo atual direito positivo. 277 Vivante, citado por Caputo, lecionava que “‘la personalidad jurídica de las sociedades mercantiles es una conquista del derecho medieval italiano’, enseñando que ‘cuando el campo de acción de la comanda se desplazó pasando de la nave a la tierra, cuando se constituyó a fin de llevar a cabo una duradera serie de negocios, con domicilio propio, con propio capital – como en Florencia junto a los Peruzzi, los Alberti, los Bardi, los Acciainoli – se agolpaban de todas las partes de Italia los proporcionadores de capitales, entonces se formó viva en la conciencia comúm la conviccíon de que existía un ente autónomo distinto de los socios’” (VIVANTE, Cesare. Tratato de derecho mercantil. t. II, Madrid: Reus, 1932, p. 09. Na tradução livre: “A personalidade jurídica das sociedades mercantis é uma conquista do direito medieval italiano, ensinando que, quando o campo de ação de comando se deslocou do navio para a terra, quando foi constituída a fim de realizar uma série duradoura de negócios, com endereço próprio, com capital próprio – como em Florença através do Peruzzi, do Alberti, do Bardi, do Acciainoli – agruparam-se de todas as partes de Itália os detentores de capitais, então se tornou viva na consciência comum a convicção de que existia um ente autônomo que é diferente dos sócios’”). (Apud: CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 68). 278 TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada. 2. ed. Atualizada por Syllas Tozzini e Renato Berger. São Paulo: Quartier Latin, 2006, p. 20.

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A idéia que se tinha de sociedade não passava da reunião de várias pessoas (pessoas físicas) em parceria para a exploração da atividade mercantil, sem que com isso surgisse uma nova pessoa (pessoa jurídica). Isso se dava especialmente pelo fato de nosso Código Comercial em nenhum de seus artigos ter afirmado a personalidade jurídica das sociedades comerciais.279

A divergência persiste até hoje em dia; de um lado encontram-se juristas como Waldemar

Ferreira280, Rubens Requião281, Fram Martins282, Alfredo de Assis Gonçalves Neto283, Maria

Helena Diniz284 dentre outros, os quais afirmam que a personalidade jurídica nasce apenas com o

registro dos atos constitutivos nos órgãos registrários (não podendo considerar pessoa jurídica

quem não faz o registro), ao passo que Carvalho de Mendonça285, João Eunápio Borges, José

Eduardo Tavares Borba286, Fábio Ulhoa Coelho287 (dentre outros) afirmam que mesmo a empresa

irregular, ausente de registro, possui personalidade jurídica, pois, desde o momento em que os

sócios constituem um ente para atuar em nome deles, já se pode considerar a existência de uma

pessoa jurídica.288

Com o advento do Código Civil de 1916, sobretudo em razão do seu art. 16, inciso II, foi

que as demais sociedades passaram a ser reconhecidas como pessoas jurídicas (“são pessoas

jurídicas de direito privado as sociedades mercantis”). Hoje em dia o legislador expressa esta

característica através do art. 45: “começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado

com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro...” e do art. 985: “A sociedade adquire 279 BERTOLDI, Marcelo M; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Curso avançado de direito comercial. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 143. 280 FERREIRA, Waldemar. Instituições de Direito Comercial. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1947, v. 1, p. 296. 281 REQUIÃO, Rubens. Curso..., v. 1, p. 393. 282 MARTINS, Fran. Curso de direito Comercial. 28. ed. Atualizada por Jorge Lobo. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 151. 283 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 18-19. 284 DINIZ, Maria Helena. In: FIUZA, Ricardo (Coord.). Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 58. 285 MENDONÇA, João Xavier Carvalho de. Op. cit., p. 84-85. 286 BORBA, José Tavares. Op. cit., p. 14-15. 287 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, v. 2, p. 16-17. 288 Essa diferença pode ser facilmente constatada pela análise das seguintes passagens de Fábio Ulhoa Coelho e Alfredo de Assis Gonçalves Neto, respectivamente: “A rigor, desde o momento em que os sócios passam a atuar em conjunto, na exploração da atividade econômica, isto é, desde o contrato, anda que verbal, de formação de sociedade, já se pode considerar existente a pessoa jurídica. Em outros termos, a melhor sistemática de disciplina da matéria não é a legal, que identifica no registro o ato responsável pela personalização da sociedade empresária, mas a compreensão de que o encontro de vontade dos sócios já é suficiente para dar origem a uma nova pessoa, no sentido técnico de sujeito de direito personalizado” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 17). “Vai daí que, se a sociedade não se aperfeiçoa segundo as regras que lhe são aplicáveis para sua regular constituição, ficando ela a meio caminho do fim visado (sem registro, por exemplo), não nasce a pessoa jurídica. Todavia, é preciso reconhecer que, nessa hipótese, algo acabou sendo produzido (uma comunhão de interesses, um ente) porém sem a estrutura e a autonomia de uma pessoa (jurídica); algo que, sem os atributos próprios de uma pessoa jurídica, age e ao qual o direito também atribui existência pontual (capacidade para figurar como sujeito em apenas algumas relações jurídicas), visando resolver certas e peculiares situações” (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 19).

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personalidade jurídica com a inscrição, no registro próprio e na forma da lei, dos seus atos

constitutivos (art. 45 e 1.150)”, ambos do Código Civil de 2002.289

Arnoldo Wald leciona exatamente neste sentido: Para a constituição de uma pessoa jurídica, é preciso que se cumpram certas formalidades prevista

na lei. De fato, de acordo com o sistema jurídico brasileiro e nos termos do artigo 45 do novo Código Civil, a pessoa jurídica nasce a partir da inscrição do respectivo ato constitutivo no registro competente.

[...] Da conjugação dos dois artigos citados (44 e 45) decorre, no direito empresarial, a incidência do

artigo 985, isto é, a sociedade somente é considerada pessoa jurídica se os seus atos constitutivos forem devidamente inscritos no registro competente, que é o Registro público de Empresas Mercantis, para as sociedades empresárias, e o Registro Civil de Pessoas Jurídicas, para as sociedades não-empresárias (sociedades simples em sentido amplo).

É com o registro do ato constitutivo que o direito reconhece a personalidade ao ente coletivo, dando-lhe capacidade para atuar, por intermédio dos seis órgãos, perante terceiros, constituindo direitos e obrigações em nome próprio.290

Como se observa, a pessoa jurídica nasce de um contrato (teoria contratualista italiana, em

que pese existirem teorias anticontratualistas, como a teoria do poder corporativo disciplinar,

teoria da disciplina taxativa legal e teoria institucionalista),291 o qual, hodiernamente, é

289 No direito francês a existência da pessoa jurídica também ocorre com o registro, ou seja: “Dès qu’elle est immatriculée au Registre du commerce et dès société, la société va bénéficier de tous les avantages attachés à la qualité de personne juridique. La personnalité morale fonde son autonomie par rapport aux associes qui l’ont constituée: la société acquiert un intérêt (l’intérêt social) qui si distingue de l’intérêt individuel de chacun de ses associés” (JEANTIN, Michel. Op. cit., p. 89. Na tradução livre: “Assim que for registrada no Registro do Comércio e da Sociedade, a sociedade vai se beneficiar de todas as vantagens compreendidas na qualidade de pessoa jurídica. A personalidade jurídica marca sua autonomia em relação ao sócio que a constituiu: a sociedade adquire um interesse (o interesse social) que se distingue do interesse individual de cada um de seus sócios”). 290 WALD, Arnoldo. In: Comentários ao novo Código Civil. v. XIV: livro II, do Direito de Empresa. TEIXEIRA, Sávio de Figueiredo (Coord.). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 87. Ainda, citando Sylvio Marcondes Machado na Exposição de Motivos complementar do anteprojeto do Código Civil, continua Arnoldo Wald na mesma obra: “A personificação, fenômeno posterior, do qual a existência da sociedade é pressuposto, constitui a fonte geratriz de um novo sujeito de direito, capacitado a ser titular do patrimônio especial que, previamente composto pelas partes separadas dos patrimônios individuais dos sócios, se desliga da titularidade destes, para transformar-se em patrimônio autônomo, objeto da nova titularidade” (p. 88). 291 “A teoria contratualista é a forma mais aceita pela doutrina e jurisprudência societária e a que melhor se adapta ao instituto da exclusão do sócio na sociedade por quotas de responsabilidade limitada. Criada e difundida pelo sistema italiano, essa teoria busca externar o interesse social da empresa como sendo o próprio interesse dos sócios contratantes, onde a exclusão do sócio nada mais é do que a manifestação de vontade dos sócios em face do inadimplemento de um consócio. No início, a teoria contratualista defendia o contrato social como uma forma de contrato bilateral (contrato de troca), onde os sócios contratantes regulamentavam através do estatuto as diretrizes que seriam seguidas pela sociedade. No entanto, com o aprofundamento do estudo, verificou-se que o contrato bilateral não se ajustava às características da sociedade, pois, via de regra, os interesses eram convergentes, não sendo possível falar em partes contrapostas, tal como ocorre num contrato de compra e venda” (VIANNA, Guilherme Borba. A exclusão do sócio no Código Civil (do rompimento da affectio societatis à necessidade de justa causa). In: NALIN, Paulo; VIANNA, Guilherme Borba (Coord.). Direito em movimento por Popp&Nalin Advogados. Curitiba: Juruá, 2007, p. 134).

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reconhecido como um contrato plurilateral pela formulação de Tullio Ascarelli292, “autor que vê

o seu traço distintivo no fato de nele participarem várias partes e de várias partes poderem, depois

da celebração do contrato, adquirir direitos e obrigações; cada sócio não se encontraria em face de

outro sócio, mas defronte de todos os outros sócios”.293

Através do contrato plurilateral, os sócios são instados a um mesmo plano de interesses

comuns (na busca de objetivos coincidentes), diferentemente do que ocorre nos contratos de

compra e venda (v.g.), onde os contratantes se colocam uns na frente dos outros, já que os

interesses não convergem para um mesmo fim.

Destarte, da organização constituída com o contrato social, devidamente inscrito no

registro competente, resulta a pessoa jurídica, sujeito de direito, distinto da pessoa dos sócios que

a criaram, dotada de personalidade jurídica e patrimônio separado, autônomo, independente do de

seus sócios.294

Conforme assinala Waldirio Bulgarelli, “a personalidade jurídica é um dos institutos mais

complexos, apresentando dificuldades de conceituação e ajustamento aos princípios gerais do

direito”,295 sendo certo que tal característica não é privativa do direito brasileiro, conforme se

depreende da seguinte passagem de Sylvio Marcondes Machado: A personalidade jurídica das sociedades não é assunto pacífico, nas legislações. Na França, onde o

Código Civil silenciou a respeito, a teoria da personalidade jurídica é obra da doutrina e da jurisprudência, tendo sido objeto de leis especiais a capacidade civil de algumas corporações. Na Itália, é largo o debate doutrinário sobre a matéria, tendo o Projeto de reforma do Código Comercial concedido personalidade jurídica às sociedades comerciais regularmente constituídas. Na Alemanha, as sociedades de direito civil não gozam de personalidade jurídica, a qual, porém, é concedida pelo direito comercial a algumas espécies como a sociedade anônima, de responsabilidade limitada e outras. Na Argentina, segundo Obarri, ‘com exceção das sociedades anônimas, as sociedades civis ou comerciais não podem considerar-se como pessoas jurídicas’, na ordem das disposições do direito positivo do seu país.296

292 Sobre o contrato plurilateral, ver: ASCARELLI, Tullio. Problemas..., p. 255-321. 293 NUNES, A. J. Avelãs. O direito de exclusão de sócios nas sociedades comerciais. São Paulo: Cultural Paulista, 2001, p. 52. 294 Conforme leciona Arnoldo Wald, “na sociedade, as partes estabelecem no contrato social o modo pelo qual irão regular as relações entre os sócios, ensejando relações de natureza contratual entre as partes, mas a sociedade, enquanto pessoa jurídica, só surge quando esta sociedade adquire personalidade jurídica” (WALD, Arnoldo. Comentários..., p. 89-90). 295 BULGARELLI, Waldirio. Sociedades comerciais: sociedades civis e sociedades cooperativas; empresas e estabelecimento comercial: estudos das sociedades comerciais e seus tipos, conceitos modernos de empresa e estabelecimento, subsídios para o estudo do direito empresarial, abordagens às sociedades civis e cooperativas. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 28. 296 MACHADO, Sylvio Marcondes. Ensaio sobre a sociedade de responsabilidade limitada. São Paulo, 1940, nº 37, p. 71-72. (Apud: BULGARELLI, Waldirio. Sociedades..., p. 28).

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No entanto, o art. 45 do Código Civil delimitou o reconhecimento da personalidade

jurídica a uma sociedade a partir de seu registro no Cartório de Registro Civil (para as sociedades

simples) ou na Junta Comercial (para as sociedades empresárias), tornando-se, a partir de então,

pública a sua existência, gerando efeitos erga omnes.

3.1.3 Efeitos da personalidade jurídica

Como visto até aqui, a personalização da pessoa jurídica é um expediente do direito

destinado a simplificar o relacionamento das pessoas naturais que optaram por constituir uma

pessoa jurídica para figurar nas relações jurídicas em sociedade. Tal se dá através da separação

patrimonial (autonomia patrimonial) decorrente do próprio conceito de pessoa jurídica, como ente

distinto dos membros que a integram.

Carmem Lucia Silveira Ramos aborda os efeitos da atribuição da personalidade jurídica na

separação da responsabilidade da empresa e a dos sócios na vigência do Código Civil de 1916, ut

infra:

A atribuição de personalidade jurídica às denominadas pessoas jurídicas, das quais as sociedades

são uma espécie, faz delas sujeitos de direito, e, como tal, centros de imputação de relações jurídicas, dotadas de autonomia relativamente aos seres humanos que delas fazem parte.

Assim sendo, possuem patrimônio próprio, separado do pertencente às pessoas dos sócios. São titulares de direitos e devedoras de obrigações que adquirem através de atos praticados em seu nome pelos órgãos que as representam.

No direito brasileiro, o artigo 20, do Código Civil, consagra, em seu caput, este princípio, ao referir que “As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”.297

O que distingue a pessoa jurídica das demais organizações sociais é o fato de nela existir

uma separação entre os direitos e obrigações da própria entidade e os direitos e obrigações dos

sócios ou acionistas. Com efeito, mediante a atribuição da personalidade, a organização social,

com o seu substrato (pessoal, patrimonial ou misto), e tendo um ou vários sujeitos de direito, passa

por uma metamorfose, pela qual é convertida em nova unidade, suscetível de ser centro de suas

próprias relações jurídicas.298

297 RAMOS, Carmem Lucia Silveira. Teoria da desconsideração: sua aplicação no direito societário. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná. n. 1. Curitiba: O Instituto, 1979, p. 189. 298 NORONHA, Fernando. Pessoas jurídicas, organizações sociais e patrimônios especiais. Revista da ESMESC. Florianópolis, 1999, v. 7, p. 71-100.

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Waldirio Bulgarelli, citando a Conferência do Direito Internacional Privado, reunida em

Haia (1951), fixa três requisitos básicos para se considerar a personalidade jurídica: i) capacidade

patrimonial; ii) capacidade de atuar na ordem jurídica, praticando atos, adquirindo direitos e

contraindo obrigações; iii) capacidade judiciária ativa e passiva, os quais, no caso das sociedades

empresárias, tornam-nas autônomas em relação aos seus membros.299

Com efeito, são inúmeros os efeitos advindos da personalização das pessoas jurídicas,

sendo que, dentre os principais, pode-se relacionar os seguintes: i) a pessoa jurídica personalizada

é um sujeito de direitos e obrigações; ii) a pessoa jurídica personalizada possui capacidade

postulatória, podendo figurar como parte processual; iii) a pessoa jurídica personalizada possui

autonomia patrimonial; iv) a pessoa jurídica personalizada (in casu a sociedade) pode modificar

sua estrutura, possui um nome, um domicílio próprio (sede) e uma nacionalidade;

O primeiro efeito relacionado acima diz respeito ao fato da sociedade ser sujeito de

direitos e obrigações (titularidade negocial)300, podendo, em razão da personalização, realizar

negócios jurídicos (v.g., celebrar contratos e assumir obrigações) em nome próprio. Tais relações

jurídicas são capitaneadas por um representante legal (v.g., sócio, administrador, procurador) da

sociedade, o qual apenas representa a sociedade, servindo como auxiliador físico para a pessoa

jurídica, que é uma realidade abstrata. Contudo, as obrigações assumidas serão da própria

sociedade, já que os representantes não fazem parte do negócio jurídico.

A capacidade processual é outro efeito advindo da personalização da pessoa jurídica, a

qual passa a ser titular (ativa e passivamente) na defesa judicial e extrajudicial dos seus interesses,

razão pela qual não são seus sócios ou representantes que são citados, mas a própria pessoa

jurídica, como sujeito de direito autônomo.

Talvez o efeito mais importante da personalização da pessoa jurídica seja sua autonomia

patrimonial, através do qual se torna titular de patrimônio próprio (patrimônio social) e

inconfundível com o dos sócios que a criaram, passando a responder com seu patrimônio pelas

obrigações que assumir ou de que for responsabilizada. Somente em casos excepcionais (que

serão vistos posteriormente), os sócios poderão ser responsabilizados pessoalmente pelas

obrigações contraídas pela sociedade.

299 BULGARELLI, Waldirio. Sociedades..., p. 31. 300 COELHO, Fábio Ulhoa. Manual..., p. 113-114.

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Quando é constituída uma sociedade empresária (já que, nas fundações, v.g., a constituição

se dá de outra forma), cada um dos sócios contribui para o novo ente com bens ou valores em

espécie, os quais serão destacados do patrimônio dos respectivos sócios e passam a formar o

patrimônio social da pessoa jurídica. Surge, desta forma, o capital social da pessoa jurídica.

No entanto, urge esclarecer que o capital social disponibilizado para dar início (no

momento da criação) ou suporte (aumento do capital) para a sociedade, não significa,

necessariamente, o patrimônio da sociedade, o qual será acumulado no decorrer de suas

atividades, e que já não se confunde com o capital social.301

Para o sócio ou acionista de uma sociedade, ocorre uma forma de conversão patrimonial,

já que os bens destinados para compor o patrimônio social do novo ente jurídico serão

incorporados ao patrimônio do sócio através de participação societária, a qual se dá por meio de

quotas ou ações, as quais integrarão o patrimônio da pessoa (natural ou jurídica, já que tanto

pessoas físicas como pessoas jurídicas podem ser sócios ou acionistas).

Com isso, passa a sociedade a responder de forma autônoma, patrimonialmente, pelas

obrigações que contrair, ocorrendo a limitação da responsabilidade dos sócios/acionistas pelos

bens que integralizaram (v.g., sociedade limitada) ou pelo preço de emissão das ações subscritas

ou adquiridas (v.g., sociedade anônima), fator este que representa a força motriz dos investimentos

de muitas pessoas que, na hipótese de não existir a fragmentação do risco, certamente não

participariam de empreendimentos voltados às sociedades empresárias.

Por fim, a pessoa jurídica personalizada (in casu a sociedade empresária) pode modificar

sua estrutura (jurídica - alterando o tipo societário, ou econômica – através do ingresso de novos

sócios ou da transferência de capital)302, além de possuir direito ao nome (art. 16 c/c 52, CC), ao

domicílio (sede) próprio (art. 75, inciso IV e §§ 1º e 2º, CC), bem como uma nacionalidade.303

Sobre a nacionalidade da pessoa jurídica, Alfredo Assis Gonçalves Neto afirma que a

Constituição de 1988 tratou exclusivamente da nacionalidade das pessoas naturais (art. 12, CR),

nada dispondo sobre as pessoas jurídicas. Contudo, para o jurista prevalece o entendimento

segundo o qual a nacionalidade das pessoas jurídicas é análoga à nacionalidade das pessoas

físicas, podendo, inclusive, através de interpretação do art. 170 da Constituição da República,

301 BRUSCATO, Wilges Ariana. Empresário…, p. 156. 302 REQUIÃO, Rubens. Curso…, v. 1, p. 395. 303 TOMAZETTE, Marlon. Direito Societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 56-61. No mesmo sentido: RECHSTEINER, Beat Walter. Direito internacional privado: teoria e prática. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 117-118.

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encontrar tal fundamento, já que o referido artigo não faz distinção quanto ao livre exercício de

qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos

casos previstos em lei.304

Para Irineu Strenger, existem três formas de se definir a nacionalidade da pessoa moral: i)

o local da constituição; ii) a nacionalidade dos sócios; iii) o local da sede administrativa.305 O mais

aceito é o da sede administrativa, embora o Brasil utilize o ato constitutivo da sociedade.306 Não

obstante existir acentuada controvérsia sobre a necessidade (ou até mesmo a existência)307 da

nacionalidade da pessoa jurídica, Jacob Dolinger explica que a doutrina francesa “sintetiza que as

sociedades dependem de sua lei nacional, daí ser necessário determinar sua nacionalidade, para

descobrir a lei que deve reger seu estatuto jurídico”.308

No Brasil, v.g., a sociedade estrangeira está autorizada a contrair direitos e obrigações,

todavia, tal providência não autoriza o funcionamento indiscriminado da sociedade estrangeira no

país (geralmente, uma multinacional), pois deve obter uma autorização do Poder Executivo, “o

qual poderá recusar ou condicionar a autorização ao cumprimento de requisitos adicionais que

julgar necessários à defesa dos interesses nacionais”.309 Por exemplo, a sociedade estrangeira

deverá acrescentar ao nome que tiver no país de origem a expressão “do Brasil” ou “para o

Brasil”, além de ter que possuir um representante no país com amplos e ilimitados poderes de

representação em nome da sociedade estrangeira, bem como deve se registrar na respectiva Junta

Comercial onde for instalar sua sede principal.

Por outro lado, caso a sociedade estrangeira pretenda atuar no Brasil através da

participação em outra empresa nacional, isto só será possível, por uma interpretação literal da

legislação atual, se for numa sociedade anônima, haja vista que o Código Civil limita sua atuação

304 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 29-30. 305 STRENGER, Irineu. Direito Internacional Privado. São Paulo: LTr, 2003, p. 889 e seguintes. A seu turno, Jacob Dolinger estabelece os seguintes critérios: “i) incorporação; ii) sede social; iii) controle” (DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado. (parte geral). 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 478-482). 306 Ou seja, o Brasil reconhece como pessoa jurídica estrangeira todas as sociedades que foram reconhecidas no seu país de origem. Destarte, o reconhecimento da personalidade e da capacidade das pessoas jurídicas no direito internacional privado brasileiro decorre da lei de sua nacionalidade e que esta é determinada pelo país de sua constituição, tal como ocorre no sistema britânico. 307 João Xavier Carvalho de Mendonça é enfático ao afirmar que “as sociedades comerciais têm nacionalidade, cujo reconhecimento é necessário para os efeitos extraterritoriais” (MENDONÇA, João Xavier Carvalho. Op. cit., p. 99). 308 DOLINGER, Jacob. Op. cit., p. 477. 309 GREBLER, Eduardo. GREBLER, Gustavo. O funcionamento da sociedade estrangeira no Brasil em face do novo Código Civil. In: RODRIGUES, Frederico Viana (Coord.). Direito de empresa no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 408.

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através do art. 1.134310. Contudo, a doutrina majoritária entende que também é possível a

participação estrangeira em sociedades limitadas.311 Além disso, já existe projeto de lei em

tramitação no Congresso Nacional312, através do qual se faculta a participação em qualquer

espécie societária.

Já para Beat Walter Rechsteiner, o direito brasileiro consagra, em princípio, a “teoria da

incorporação” (através da qual é aplicável a lei do lugar da constituição da pessoa jurídica) em

relação aos estatutos sociais das pessoas jurídicas para se aferir sua nacionalidade. Nas palavras do

autor:

O estatuto pessoal da pessoa jurídica está definido no art. 11, caput, da Lei de introdução ao Código Civil da seguinte forma: ‘As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem’, consagrando, expressamente, a teoria da incorporação. Por outro lado, de acordo com o art. 11, § 1º, da mencionada lei, a pessoa jurídica que quiser se instalar no Brasil, por meio de uma filial, uma agência ou um estabelecimento, deverá remeter seus atos constitutivos às autoridades brasileiras, ficando sujeita à lei brasileira no que tange ao seu funcionamento no país. Isso significa que, se uma pessoa jurídica constituída, segundo uma lei estrangeira, desejar se estabelecer no Brasil, deverá atender às normas específicas do direito interno que disciplinam o seu funcionamento no Brasil.313

Não se pode perder de vista, no entanto, que o art. 1.126 do Código Civil estabelece (para

as sociedades dependentes de autorização) que “é nacional a sociedade organizada de

conformidade com a lei brasileira e que tenha no País sede de sua administração”, razão pela qual

é indiferente a nacionalidade dos titulares das quotas ou ações (ressalvada a hipótese do parágrafo

único do mesmo artigo), pois o fator distintivo é o fato de ter adquirido personalidade pelo registro

dos seus atos constitutivos no Brasil.

Por fim, a definição do que seja sociedade estrangeira, neste contexto, deverá ser retirada

do art. 1.126 do Código Civil. Ou seja: “é uma sociedade simples ou empresária que não seja

310 Art. 1.134 do Código Civil: “A sociedade estrangeira, qualquer que seja o seu objeto, não pode, sem autorização do Poder Executivo, funcionar no País, ainda que por estabelecimentos subordinados, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionista de sociedade anônima brasileira”. 311 Fábio Tokars explica esta fundamentação sobre três fundamentos distintos: i) o art. 997, I, CC, o qual, ao exigir a nacionalidade do sócio no contrato social, acaba por admitir a participação estrangeira; ii) a Emenda nº 6 da CR eliminou a distinção entre empresa brasileira e empresa brasileira com capital nacional, demonstrando que não dá atenção à origem dos recursos que formam o capital social. iii) uma interpretação histórica do art. 64 do Decreto-Lei n. 2.627/40, que, por ser anterior à Lei das S/A, não contemplava outras formas societárias (TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 122-123). 312 Projeto de Lei nº 7.160, de 27 de agosto de 2002, de autoria do Dep. Federal Ricardo Fiúza, que pretende alterar esta sistemática, permitindo que a sociedade estrangeira possa ser “sócia, acionista ou quotista de sociedade brasileira”, tornando a participação independente da forma societária. 313 RECHSTEINER, Beat Walter. Op. cit., p. 117-118.

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organizada de conformidade com o Direito brasileiro, não tendo seu registro originário no país ou

não mantendo aqui a sede de sua administração”.314

3.1.4 Término da personalização

Da mesma forma que a personalidade jurídica do ente moral foi obtida com o registro dos

seus atos constitutivos no órgão competente (v.g., Ofício de Títulos e Documentos, Junta

Comercial), o término da personalidade jurídica ocorre com a respectiva averbação da dissolução,

levada a efeito após o término da liquidação da pessoa jurídica.

No entanto, até o término da personalidade, existem três etapas a serem percorridas pelos

sócios, acionistas ou administradores, quais sejam: i) dissolução judicial ou extrajudicial; ii)

liquidação; iii) partilha de bens eventualmente restantes após o levantamento do passivo. Estas

três etapas não podem ser suprimidas ou invertidas, devendo seguir esta ordem (dissolução-

liquidação-partilha), a fim de que os sócios não respondam perante os credores da sociedade pela

dissolução irregular da sociedade.

Ademais, deve-se frisar que a sociedade irregularmente dissolvida (e desde que o distrato

não seja arquivado no respectivo órgão registrário) não perde sua personalidade jurídica, de modo

que, diante da autonomia patrimonial, podem os credores optar por responsabilizar a sociedade ou

mesmo responsabilizar os sócios por ato ilícito.315

Com efeito, mesmo após o início do procedimento dissolutório, a personalidade jurídica

persiste, embora deva ser vista com ressalvas. Neste sentido, vale a pena conferir Gladston

Mamede:

A subsistência da personalidade jurídica, durante o procedimento de liquidação social, deve ser vista com certo cuidado, já que sua existência estará diretamente vinculada e comprometida com os procedimentos de sua liquidação extrajudicial ou judicial. A sociedade, todavia, não estará durante esse período apta à prática normal dos atos negociais decorrentes da definição de seu objeto social. Portanto, a manutenção da personalidade jurídica, da existência da pessoa jurídica, não é ampla ao ponto de, em regra, permitir o prosseguimento das atividades negociais.316

É que, nos termos do art. 1.036 do Código Civil, “ocorrida a dissolução, cumpre aos

administradores providenciar imediatamente a investidura do liquidante, e restringir a gestão

314 MAMEDE, Gladston. Op. cit. p. 69. 315 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 19. 316 MAMEDE, Gladston. Op. cit. p. 187.

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própria aos negócios inadiáveis, vedadas novas operações, pelas quais responderão solidária e

ilimitadamente”.

O Superior Tribunal de Justiça firmou posicionamento neste sentido, conforme se

depreende de ementa da lavra do Min. Ari Pargendler, onde se observa que, enquanto não

registrado o distrato, permanece a personalidade jurídica da sociedade:

PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO DE SENTENÇA. COISA JULGADA. [...]. COMERCIAL.

DISSOLUÇÃO E LIQUIDAÇÃO DA SOCIEDADE. A dissolução da sociedade não implica a extinção de sua personalidade jurídica, circunstância que se dá apenas por ocasião do término do procedimento de liquidação dos respectivos bens; se, todavia, o distrato social eliminou a fase de liquidação, partilhando desde logo os bens sociais, e foi arquivado na Junta Comercial, a sociedade já não tem personalidade jurídica nem personalidade judiciária. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 317255/MA, Rel. Min. Ari Pargendler, Terceira Turma, j. em 27.11.2001, DJ 22.04.2002, p. 202)

Destarte, apenas excepcionalmente a sociedade poderá manter algumas de suas atividades

durante o procedimento liquidatório, sobretudo em benefício dos credores ou da coletividade. Um

exemplo de continuidade provisória das atividades da pessoa jurídica durante a liquidação ocorre

no procedimento falimentar, tal como previsto no art. 99, XI, da Lei 11.101/2005,317 onde, em

benefício de terceiros (coletividade), a sociedade liquidanda poderá ser mantida, até ulterior

deliberação do Juízo universal da falência.

Como visto, a dissolução irregular da sociedade (v.g., simples inatividade ou interrupção

da atividade) não opera o efeito dissolutório, permanecendo a personalidade jurídica,

independentemente da responsabilização dos sócios por ato ilícito. Por outro lado, se, mesmo após

a regular dissolução, a sociedade permanecer atuante, tornar-se-á irregular, e, como tal, sujeitará

os sócios à responsabilidade subsidiária e ilimitada pelas obrigações sociais.

3.1.5 Da separação patrimonial e limitação da responsabilidade

317 “A continuação provisória das atividades do falido se justificam em casos excepcionais, quando ao juiz parecer que a empresa em funcionamento pode ser vendida com rapidez, no interesse da otimização dos recursos do falido. Se pela tradição da marca explorada ou pela particular relevância social e econômica da empresa, parecer ao magistrado, no momento da decretação da quebra, que o encerramento da atividade agravará não só o prejuízo dos credores como poderá produzir efeitos deletérios à economia regional, local ou nacional, convém que ele autorize a continuação provisória dos negócios” (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à nova Lei de Falências e de recuperação de empresas: (Lei n. 11.101, de 9-2-2005). 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 276).

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No que concerne à autonomia patrimonial, foi feliz o legislador de 2002 ao dividir as

sociedades em personificadas e não personificadas.318 Com efeito, a personalização societária

implica a separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a pessoa dos seus membros, razão pela

qual as obrigações de um, não se confundem com as do outro, surgindo daí, via de regra, a

limitação da responsabilidade societária.

Contudo, esta regra admite exceções, haja vista que nem sempre a personalização remete à

limitação da responsabilidade dos integrantes das sociedades. Isso, porque existem sociedades

personalizadas em que os sócios respondem ilimitadamente pelas obrigações da sociedade, como

ocorre, v.g., com a sociedade empresária em nome coletivo. Da mesma forma, a sociedade

empresária de conta e participação (embora alguns juristas consideram-na apenas como um

contrato de investimento comum, sem forma societária),319 despersonalizada, pode conter a

responsabilidade limitada do sócio, desde que previsto no contrato, que apenas o sócio ostensivo

irá responder pelas obrigações sociais.

Historicamente, a limitação da responsabilidade teve início no final do século XVI

(embora em 1600 a East India Co. já funcionasse como uma associação de fundos separados para

garantir o monopólio do comércio da Índia, mediante investimentos), todavia, foi apenas em 1693

que a East India Co. passou a ter vestígios da sociedade anônima moderna, com limitação da

responsabilidade dos sócios.320

A seu turno, foi na virada do século XIX para o século XX que “surgiu na Europa a figura

da sociedade por quotas de responsabilidade limitada, principal instrumento de incentivo à

empresariedade criado pelo legislador”,321 a qual foi rapidamente difundida nos principais países

europeus, até chegar ao Brasil através do Decreto 3.708/1919, o qual permaneceu vigente por mais

de 80 anos, até a entrada em vigor do Código Civil de 2002 (janeiro de 2003).

318 Abordaremos no próximo capítulo a distinção entre as sociedades personificadas e as não personificadas. 319 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 7. 320 Vera Helena de Mello Franco e Rachel Sztajn informam que “estas companhias eram corporações, dotadas de personalidade jurídica própria, o que, como assinala Hueck, era uma regalia concedida por um ato governamental. Uma concessão do Estado, consubstanciada num documento a Oktrooi, o que lhe dava uma conotação de Direito Público. Os diversos associados recebiam um comprovante correspondente à sua participação – a Aktie, livremente transferível e que lhes conferia o direito de acionar a companhia para haver sua participação no acervo comum ou nos lucros produzidos. A par disto, a responsabilidade de todos os sócios estava limitada ao montante subscrito” (FRANCO, Vera Helena de Mello; SZTAJN, Rachel. Manual de direito comercial: Sociedade anônima. Mercado de valores mobiliários. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, v. 2, p. 27). 321 TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 449

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Ernani Estrella identifica o surgimento da separação patrimonial exatamente quando,

diante da transferência dos investimentos das sociedades rurais para as comerciais (que tiveram

um crescimento vertiginoso), foi necessário delimitar a linha discriminadora entre a

responsabilidade da sociedade e a responsabilidade dos sócios. Destarte, “a solução desses

problemas vem conseguir-se pela teoria das pessoas jurídicas”, através da qual, “um passo a mais

conduzirá à consagração definitiva da autonomia patrimonial, elevando a coletividade à categoria

de sujeito de direito, que se não confunde, já agora, com as pessoas físicas de seus membros”.322

Com efeito, a personalização societária implica a principal característica obtida pela

separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a pessoa dos seus membros, e, num sistema

capitalista, este incentivo para a iniciativa privada é a base para o sucesso do desenvolvimento

econômico e social do país. Sem a separação patrimonial, e, por conseguinte, a limitação da

responsabilidade do empresário (como regra geral), o desenvolvimento nacional não atingiria os

níveis alcançados hodiernamente. Fábio Ulhoa Coelho, ao tratar da limitação da responsabilidade

na sociedade limitada, traduz com precisão esta característica: À limitação da responsabilidade dos sócios, na limitada, corresponde a regra jurídica de estímulo à

exploração das atividades econômicas. Seu beneficiário indireto e último é o próprio consumidor. De fato, poucas pessoas – ou nenhuma – dedicar-se-iam a organizar novas empresas se o insucesso da iniciativa pudesse redundar na perda de todo o patrimônio, amealhado ao longo de anos de trabalho e investimento, de uma ou mais gerações.

A limitação da responsabilidade do empreendedor ao montante investido na empresa é condição jurídica indispensável, na ordem capitalista, à disciplina da atividade de produção e circulação de bens ou serviços. Sem essa proteção patrimonial, os empreendedores canalizariam seus esforços e capitais a empreendimentos já consolidados.

Os novos produtos e serviços somente conseguiriam atrair o interesse dos capitalistas se acenassem com altíssima rentabilidade, compensatória do risco de perda de todos os bens. Isso significa, em outros termos, que o preço das inovações, para o consumidor, acabaria sendo muito maior do que costuma ser, sob a égide da regra da limitação da responsabilidade dos sócios, já que esses preços deveriam cobrir custos e gerar lucros extraordinários, capazes de remunerar o risco de perda total do patrimônio, a que se expôs o empreendedor. A limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais é, em suma, direito-custo.323

É cediço que toda atividade empresarial possui um risco, e, como tal, deve ser levado em

consideração tanto pelo empresário (sócio, acionista, investidor), como pelos que mantêm relações

322 ESTRELLA, Ernani. Op. cit., p. 87. E, citando José Xavier Carvalho de Mendonça, continua o autor para demonstrar o início da separação patrimonial: “A idéia da personalidade jurídica das sociedades comerciais teve o seu embrião na doutrina com as primeiras manifestações do comércio, quando, desenvolvendo-se o tráfico e criando-se as sociedades de responsabilidade limitada, se estabeleceu a separação entre os patrimônios dos sócios e o da sociedade sobre o fundo social, reservado para garantir os credores da sociedade. Se bem que o princípio da personalidade não fosse apreciado nas suas aplicações, não passou despercebido pelos patriarcas do Direito Comercial” (p. 87). 323 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade…, p. 4.

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jurídicas com a sociedade (parceiros comerciais, fornecedores, consumidores etc.). Ou seja, quem

contrata com a pessoa jurídica deve calcular os riscos da contratação, na medida em que deve-se

ter em mente que é a própria sociedade quem está contratando (e não seus representantes), razão

pela qual a própria sociedade deverá responder por eventuais prejuízos ou insucessos da atividade

econômica. 324

O economista inglês Ronald H. Coase (que em 1991 ganhou o prêmio Nobel de

Economia), desenvolveu, através do Teorema de Coase (1960)325, estudos no sentido de

demonstrar que, “quando os direitos de propriedade são bem definidos e o custo de transação é

igual a zero, a solução final do processo de negociação entre as partes será eficiente,

independentemente da parte a que se assinalam os direitos de propriedade”.326 Em outras palavras,

o Teorema de Coase disponibiliza meios para entender e enxergar os problemas legais sob a óptica

da eficiência econômica, de modo a se aplicar determinada regra legal em termos de eficiência

econômica.327

Por certo, não há como se colocar todo o leque de relações jurídicas que envolvem uma

empresa num mesmo plano de risco, pois, enquanto que os fornecedores e as instituições

financeiras têm muito mais meios para analisar o risco de uma determinada negociação com uma

sociedade (calculado, v.g., o risco e embutindo, no negócio, taxas que possam cobrir o risco),

outros segmentos não têm a mesma possibilidade, tal como ocorre no caso dos consumidores, dos

trabalhadores e do próprio Estado (fisco), para os quais, nas palavras de Fábio Ulhoa Coelho, a

limitação da responsabilidade dos sócios representa um “prejuízo”, na medida em que estes

credores não conseguem se preservar no caso de insolvência da sociedade.328

324 “Pelo senso comum, risco é aquilo que pode representar perigo ou possibilidade de perigo, ou aquilo que é impreciso, incerto e que traz dúvidas. Num sentido econômico ou financeiro, o risco reflete o fato de que, dependendo de como evoluem as coisas – ou, mais formalmente, de que ‘estado da natureza’ prevalece no futuro -, um mesmo empreendimento pode resultar em lucro ou em prejuízo financeiro. Num sentido jurídico mais amplo, pode significar mais precisamente a possibilidade de perda (ou ganho), ou a probabilidade de se inculcar responsabilidade pelo dano causado a outrem. Risco é, portanto, em igualdade de condições e com o cumprimento de regras determinadas, a possibilidade de perda concomitante à de ganho. Risco é álea, ou seja, aquilo que traz, ao mesmo tempo, a chance de prejuízo e a possibilidade de lucro. Mas, acima de tudo, é lançar-se sobre o desconhecido. Todos os agentes econômicos no mercado estão sempre exercendo suas atividades econômicas com o fito de obter lucros e, em face disso, correm os correspondentes riscos” (PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 124). 325 COASE, Ronald. The problem of social coast. The Journal of Law and Economics. The University of Chicago Press I, 1960. 326 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 105. 327 Id. Ibid., p. 108. 328 COELHO, Fábio Ulhoa. A Sociedade..., p. 6.

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96

Por outro lado, não há como se falar em separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a

pessoa dos sócios sem falar em patrimônio propriamente dito, o qual pode ser entendido como um

conjunto de relações jurídicas, passíveis de valoração econômica, dentro das quais estão incluídos

tanto os créditos, como os débitos, direitos reais e direitos de crédito, enfim, todas as relações

jurídicas de uma pessoa, que resultam no patrimônio líquido, como forma de expressão econômica

do patrimônio.

Os arts. 90 e 91 do Código Civil de 2002 separam os bens singulares e os coletivos

(considerados em si mesmos) em universitas facti (universalidade de fato) e universitas juris

(universalidade de direito), podendo ser assim conceituados: i) universitas facti é um conjunto de

bens singulares, corpóreos e homogêneos, ligados entre si pela vontade humana para a consecução

de um fim (v.g., uma biblioteca, um rebanho, uma galeria de quadros etc.); ii) universitas juris é

constituída por bens singulares corpóreos heterogêneos ou incorpóreos (complexo de relações

jurídicas), a que a norma jurídica (lei), com intuito de produzir certos efeitos, dá unidade, por

serem dotados de valor econômico (v.g., o patrimônio, a herança etc.).329

O Código Civil de 1916 já previa que cada pessoa possui um único patrimônio (art. 57,

CC-16), princípio este preservado no Código de 2002 (art. 91), só que, ao invés de utilizar a termo

“patrimônio”, empregou-o como “complexo de relações jurídicas, dotadas de valor econômico”,

mantendo, destarte, a característica universal do patrimônio.

Esta distinção tem influência direta para as sociedades, na medida em que o patrimônio

societário, compreendido como todos os bens e direitos que fazem parte do complexo de relações

jurídicas, de cunho econômico, da pessoa (individual ou coletiva), é que responde pelas

obrigações do ente societário.330

A individualização entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios estava muito bem disposta

no Código Civil de 1916, quando o art. 20 dispunha que “as pessoas jurídicas têm existência

distinta da dos seus membros”. Contudo, não obstante o novo Código Civil não ter aproveitado,

textualmente, este princípio já consagrado no direito brasileiro, a interpretação sistemática das

diversas normas que informam o Direito empresarial não deixa qualquer dúvida sobre a

manutenção desta distinção. Como exemplo, temos os seguintes dispositivos do Código Civil de

2002:

329 BARRETO FILHO, Oscar. Op. cit., p. 44. DINIZ, Maria Helena. Código..., p. 100-101. 330 NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1, p. 248-249.

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Art. 1.024: Os bens particulares dos sócios não podem ser executados por dívidas da sociedade, senão depois de executados os bens sociais. [sociedade simples]

Art. 1.052: Na sociedade limitada, a responsabilidade de cada sócio é restrita ao valor de suas

quotas, mas todos respondem solidariamente pela integralização do capital social. [sociedade limitada]

Situação análoga também pode ser encontrada no Código de Processo Civil (art. 596)331 e

na Lei das Sociedades Anônimas (art. 1º)332, de modo que, não obstante a supressão do texto do

revogado artigo 20 do Código Civil de 1916, não existe qualquer problema em se enxergar a

separação do patrimônio da pessoa jurídica do patrimônio dos sócios que a integram.333

Por fim, urge mencionar que a integralização de bens ou direitos do patrimônio do sócio na

sociedade, tem como contraprestação a aquisição da titularidade de quotas ou ações sociais para o

sócio. Uma vez integralizado todo o capital social, cessa para o sócio (salvo exceções legais) toda

e qualquer responsabilidade pelas dívidas da sociedade.

Ou seja, o sócio não será responsabilizado patrimonialmente pelas dívidas da sociedade

(da mesma forma que a sociedade não será responsabilizada pelas dívidas particulares do sócio),

no entanto, a sociedade responderá ilimitadamente com todo seu patrimônio pelas obrigações

contraídas no exercício da atividade empresarial. Por outro lado, mesmo que, por algumas das

exceções legais, o sócio seja atingido pessoalmente, tal responsabilidade será subsidiária, já que o

sócio pode exigir que primeiro sejam executados os bens da sociedade (art. 596 CPC).

3.1.6 Opção do Código Civil de 2002 na classificação das sociedades

As sociedades no Código Civil de 2002 podem ser classificadas sob diversas óticas,

dependendo apenas do enfoque com que se pretenda abordá-las. Como o tema tratado neste

trabalho diz respeito, principalmente, a um destes efeitos (autonomia patrimonial – personalização

societária), os demais enfoques tratados no Código Civil serão abordados apenas de forma

conceitual, já que muitos deles, mesmo que de forma indireta, acabam contribuindo para a

contextualização deste estudo. 331 Art. 596 do CPC: “Os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade senão nos casos previstos em lei; o sócio, demandado pelo pagamento da dívida, tem direito a exigir que sejam primeiro excutidos os bens da sociedade”. 332 Art. 1º da Lei 6.404/1976: “A companhia ou sociedade anônima terá o capital dividido em ações, e a responsabilidade dos sócios ou acionistas será limitada ao preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas”. 333 O Projeto de Lei 7.160/2002, em tramitação no Congresso Nacional, altera o art. 50 do Código Civil, incluindo no caput do artigo a previsão do revogado artigo 20 do Código Civil de 1916, contextualizando novamente a separação patrimonial entre sociedade e sócios.

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Sob o aspecto do objeto social, as sociedades podem ser qualificadas como sociedades

empresárias e como sociedades não-empresárias (ou simples), ambas elencadas como espécies

das sociedades personificadas.

O Código Civil de 2002 adotou definitivamente a teoria da empresa (de origem italiana) no

direito brasileiro, superando a antiga teoria dos atos de comércio (de origem francesa) que

prevaleceu durante muitas décadas no país (desde o Código Comercial de 1850).334 Antes,

prevalecia a distinção entre atividade civil e atividade comercial, quando se levava em

consideração o objeto da atividade. Agora, prevalece a distinção entre atividade empresária e não-

empresária, prevalecendo, para a caracterização da empresa, a verificação de como a atividade é

desenvolvida, ou seja, “a existência de sua organização para atuar no mercado com finalidades

industriais ou comerciais”.335

Destarte, conforme explica Tullio Ascarelli (ao comentar a atividade empresária prevista

no Código Civil italiano):

É pois a natureza (e o exercício) da atividade a que qualifica ao empresário (e não, pelo contrário, a condição do sujeito a que depois qualifica a atividade) e nesta prioridade da atividade exercida aos fins da qualificação do sujeito pode ficar de relevo a persistência de um elemento objetivo, como critério de aplicabilidade da disciplina especial ditada precisamente para a atividade e para quem a exerce.

[...] No sistema do código vigente, desaparecidos os atos de comércio, a empresa constitui a atividade

do empresário (artigo 2.082), por isso não pode ter em conta as modalidades do ato (como a empresa do código derrogado), a não ser a qualificação de uma atividade.336

Em suma, as sociedades empresárias têm como objeto o exercício de atividade própria de

empresário, desenvolvida de modo a estruturar recursos (materiais e pessoais) empregados na

atividade, para articulação de fatores de produção, com finalidades industriais ou comerciais. Já as

sociedades não-empresárias são as que têm por objeto o exercício de profissão intelectual, de

natureza científica, literária ou artística, sem o elemento de empresa (art. 966, parágrafo único,

CC).337

Prevalece, para os não-empresários (v.g., médicos profissionais liberais), a qualidade

intelectual do profissional, razão pela qual a organização de fatores de produção é meramente

334 Conforme afirma Idevan César Rauem Lopes, “o Código Comercial de 1850 utilizou o ato de comércio como elemento definidor da atividade comercial. Assim, quando um determinado ato jurídico constituir a prática de uma atividade comercial é chamado de ato de comércio” (LOPES, Idevan César Rauem. Empresa & Exclusão do Sócio. Curitiba: Juruá, 2003, p. 36). 335 WALD, Arnoldo. Comentários..., p. 32. 336 ASCARELLI, Tullio. Iniciação..., p. 178-179. 337 O Código Civil italiano de 1942 trata de forma idêntica ao brasileiro no art. 2.082 e seguintes.

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acidental, não se constituindo no elemento de empresa. Todavia, se o profissional não-empresário

(v.g., médico profissional liberal) resolve agregar valores a sua atividade intelectual, organizando

os fatores de produção, “isto é, une capital, trabalho de outros médicos, enfermeiros, ajudantes

etc., e se utiliza de imóvel e equipamentos para a instalação de um hospital [...], será considerado

empresário, porque, está, realmente, organizando os fatores da produção, para produzir

serviços”338.

Oportuna aqui a crítica feita por Arnoldo Wald sobre a opção do legislador brasileiro de

acolher a existência de leis especiais para tratar dos principais tipos societários. Segundo o autor,

na Itália o legislador acolheu todas as sociedades no Código Civil, abrangendo inclusive as

sociedades anônimas. Já em Portugal, foi elaborado um Código das Sociedades, tratando também

de forma unitária todas as espécies societárias, em apenas um código. Já o sistema adotado pelo

Brasil é uma solução “híbrida”, pois a legislação geral (CC), ao tratar de apenas uma parte das

sociedades, poderá criar conflitos com a legislação especial (S/A), trazendo insegurança jurídica

não só para os operadores do direito, como também para as relações societárias como um todo.339

No que concerne à estrutura econômica, as sociedades podem ser de pessoas ou capital.

As primeiras são constituídas com intuitu personae, ou seja, em razão do relacionamento entre os

sócios e as qualidades pessoais de cada um, existindo, em regra geral, a affectio societatis. Já nas

sociedades de capitais, a atração entre os sócios é motivada pelo intuitu pecuniae, bastando a

reunião de recursos para o desenvolvimento de atividade social lucrativa, independentemente da

afinidade existente entre os sócios.

Quanto à responsabilidade dos sócios, a sociedade pode ser por responsabilidade

limitada ou por responsabilidade ilimitada. Na primeira, a responsabilidade dos sócios é

limitada ao capital que se comprometeram investir na sociedade, não havendo responsabilidade

dos sócios pelas dívidas sociais (v.g., sociedades limitada e anônima). Na segunda, existe

responsabilidade solidária dos sócios por todas as dívidas sociais (v.g., sociedades em comum e

em nome coletivo). Por fim, existe ainda responsabilidade mista, onde alguns sócios respondem

ilimitadamente, e outros, limitadamente pelas obrigações da sociedade (v.g., sociedades em

comandita simples e por ações).

338 MACHADO, Sylvio Marcondes. Questões de direito mercantil. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 11. (Apud: WALD, Arnoldo. Comentários..., p. 45). 339 WALD, Arnoldo. Ibid., p. 34-35.

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Por conseguinte, a sociedade pode ser qualificada em relação à natureza do ato

constitutivo como de natureza contratual ou estatutária (institucional). Nas primeiras, o ato

constitutivo é um contrato plurilateral, no qual os sócios podem dispor livremente (prevalece a

autonomia da vontade, desde que não viole a lei ou o tipo societário) sobre a melhor forma de

regular os interesses individuais de sócios (v.g., sociedade limitada). Já nas estatutárias ou

institucionais, os estatutos devem regular interesses gerais e abstratos, que fogem dos interesses

singulares dos sócios, mas remetem aos interesses da própria pessoa jurídica (v.g., sociedades

anônimas e sociedades em comandita por ações).

Vera Helena de Mello Franco demonstra que a autonomia de vontade nas sociedades

institucionais encontra certos limites que fogem do interesse apenas dos sócios, ou seja, nestas

sociedades,

A autonomia da vontade não é tão ampla, pois a sociedade não existe somente para satisfazer aquele interesse dos sócios expresso na obtenção de lucro por meio da atividade descrita no contrato, com a sua conseqüente distribuição; mas, igualmente, interesses assim ditos extra-societários, que são próprios da sociedade como instituição. Por tal razão a interferência do legislador é grande.340

Por fim, as sociedades podem ser classificadas quanto à autonomia patrimonial em

personificadas e não-personificadas, cabendo às primeiras a regularidade legislativa

(arquivamento dos atos constitutivos etc.), e as segundas caracterizam-se pela irregularidade

formal, tal como ocorre com as sociedades em comum (sociedades de fato ou irregulares). Devido

à relevância deste tema para o presente estudo, trataremos no próximo tópico desta qualidade de

forma mais aprofundada.

3.1.7 As espécies societárias diante da personalização das sociedades (autonomia patrimonial)

Conforme exposto anteriormente, o Código Civil de 2002 optou por distinguir as

sociedades em personificadas e não-personificadas, razão pela qual o legislador acabou não

distinguindo quais sociedades estão aptas a se constituírem como pessoas jurídicas (v.g.,

sociedades por ações) daquelas em que a personificação depende apenas da vontade do legislador,

independente da sua estrutura.341 Ou seja, o Código de 2002 deixou muito clara a idéia de que a

340 FRANCO, Vera Helena de Mello. Manual..., v. 1, p. 200. 341 WALD, Arnoldo. Comentários..., p. 89.

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simples constituição de uma sociedade, através do contrato firmado entre os sócios, não resulta,

necessariamente, na constituição de uma pessoa jurídica, a qual somente surgirá quando a

sociedade adquirir personalidade jurídica, através dos registros necessários (artigos 45, 985 e

1.150 do Código Civil).342

As sociedades não-personificadas estão previstas nos artigos 986 a 996, e compreendem-

se nas sociedades em comum e nas sociedades em conta de participação.

A sociedade em comum (anteriormente chamada de sociedade de fato ou sociedade

irregular) é uma espécie de sociedade não-personificada, que pode ter sido constituída pelos

sócios para se manter eternamente despersonalizada (hipótese remota), ou que esteja em fase de

transição, aguardando determinadas providências para que seja efetivamente registrada e adquira

personalidade jurídica. Ou seja, com exceção das sociedades anônimas e das sociedades em

comandita por ações (que possuem regras próprias para constituição, anteriormente à

personalização), todas as demais sociedades podem passar transitoriamente pelas regras da

sociedade em comum.

Por não ter personalidade jurídica, o patrimônio especial (art. 988, CC) da sociedade em

comum pode ser identificado como um conjunto de bens e dívidas relacionados ao fim da

sociedade de fato que constituíram343, todavia, isso não implica responsabilidade limitada ao

patrimônio especial.

Com efeito, diante da possibilidade de identificação do patrimônio especial, é admitido o

benefício de ordem do art. 596 do Código de Processo Civil, a fim de que primeiro sejam

executados os bens da sociedade (a exceção ao benefício de ordem recai sobre o sócio que

contratou). No entanto, exauridos os bens sociais, respondem solidária e ilimitadamente os sócios

pelas obrigações da sociedade, cabendo apenas o direito de regresso do sócio que arcou com a

dívida contra os demais.

Já a sociedade em conta de participação também é uma espécie de sociedade344 não-

personificada, todavia, constituída por contrato social, o qual não será registrado perante os órgãos

342 Id. Ibid., p. 89-90. 343 Id. Ibid., p. 93. 344 Embora elencada como espécie de sociedade pelo Código Civil de 2002, boa parte da doutrina entende que a conta de participação não é uma sociedade no sentido próprio da expressão, pois não passa de um contrato de investimentos firmado entre os sócios comuns, tendo como principais características a despersonalização (não é pessoa jurídica) e a natureza secreta do seu ato constitutivo, já que não é levado a registro. Neste sentido: COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2. p. 479. GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 180. BERTOLDI, Marcelo M; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Op. cit., p. 177.

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registrários, existindo apenas entre as partes contratantes (possui vida interna). Nas palavras de

Arnoldo Wald, “é a única sociedade empresária que não ostenta personalidade jurídica, por

determinação legal e em razão da sua própria natureza”.345

Não possui nome, figurando nas relações jurídicas apenas o sócio ostensivo (pessoa física

ou jurídica), o qual contrai, em nome próprio, obrigações decorrentes das atividades sociais

resultantes do seu objetivo mercantil. Os demais sócios (sócios ocultos) não aparecem perante

terceiros, mas “exercem direitos perante o sócio ostensivo, que deverá prestar contas de suas

atividades e dividir” os “resultados da exploração empresarial”.346 Existe um patrimônio especial

destinado pelos sócios para consecução do objetivo social, o qual fica vinculado ao negócio, não

se confundindo com o patrimônio do sócio ostensivo.

Na hipótese de falência do sócio ostensivo, a sociedade será resolvida e os sócios ocultos

deverão se habilitar como credores quirografários (art. 994, § 2º CC). Já a falência do sócio oculto

não implica a resolução do contrato de sociedade, já que os negócios são sempre firmados em

nome do sócio ostensivo.

Carlos Celso Orcesi da Costa identifica a associação empresarial joint venture como

espécie de sociedade em conta de participação, através da qual as partes firmam um contrato

associativo, “detalhando acordo gerencial, prevendo todos os passos da parceria, tais como capital

social, os deveres recíprocos, a direção e administração, deveres formais de confidencialidade e

não-competição, garantias e hipóteses de rescisão”347 No entanto, enquanto o contrato associativo

não passar de uma relação interna corporis, apenas a sociedade aparente (sócio ostensivo) se

obriga perante terceiros.

Por conseguinte, uma vez pontuada a existência das sociedades não personificadas,

ressalta-se, novamente, a distinção feita pelo Código Civil no que concerne ao objeto social,

podendo distinguir as sociedades em empresárias e não-empresárias (ou simples), ambas

elencadas como espécies das sociedades personificadas.

Com efeito, existem seis sociedades personificadas no direito brasileiro: i) sociedade

simples; ii) sociedade em nome coletivo; iii) sociedade em comandita simples; iv) sociedade

limitada; v) sociedade anônima e vi) sociedade em comandita por ações.

345 WALD, Arnoldo. Comentários..., p. 97. 346 FIUZA, Ricardo. In: FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 896. 347 COSTA, Carlos Celso Orcesi da. Op. cit., p. 101.

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As sociedades simples não são empresárias, pois prevalece a natureza intelectual do

profissional, sem a identificação do elemento empresa. Por definição legal, as cooperativas

também são consideradas sociedades simples (art. 982, CC), assim como o empresário rural não

registrado na Junta Comercial.348 No entanto, nos termos do parágrafo único do art. 966 do

Código Civil, a sociedade simples pode se tornar sociedade empresária quando se constituir do

elemento empresa, momento em que se sujeitará ao regime jurídico do tipo adotado (v.g.,

sociedade limitada), embora o registro permaneça sendo feito no Registro Civil das Pessoas

Jurídicas (art. 1.150, CC).

Na sociedade simples, a responsabilidade dos sócios é subsidiária e ilimitada, razão pela

qual, uma vez exaurido o patrimônio social, o sócio responde pessoalmente e sem limitação de

valor, de acordo com sua participação societária.349 Já nas cooperativas, os cooperados podem ter

responsabilidade limitada (art. 11 da Lei 5.764/1971) ao capital subscrito, ou ilimitada (art. 12 da

Lei 5.764/1971), quando é atribuída aos cooperados, em caráter subsidiário, responsabilidade

pessoal e solidária pelas dívidas da cooperativa.

A seu turno, a sociedade em comandita pode ser dar sob a forma de comandita simples

(arts. 1.045 a 1.051, CC) ou comandita por ações (arts. 1.090 a 1.092, CC). A primeira regula-se

apenas pelo Código Civil, por se tratar de sociedade contratual de pessoas, e os sócios podem

responder solidária e ilimitadamente (comanditados) ou limitadamente ao valor das respectivas

quotas (comanditário). A segunda, por ser sociedade institucional de capital, regula-se também

pelo Código Civil, mas supletivamente (em caso de omissão, já que é tratada em apenas três

artigos pelo CC) pela Lei das Sociedades Anônimas.350

No que diz respeito à responsabilidade dos sócios (acionistas), somente o acionista pode

administrar a sociedade, sendo vedada a constituição de diretor estranho ao quadro social. Se o

acionista não participa da administração da sociedade, sua responsabilidade é limitada ao preço de

348 Quanto à atividade rural, o art. 984 do Código Civil dispõe: “A sociedade que tenha por objeto o exercício de atividade própria de empresário rural e seja constituída, ou transformada, de acordo com um dos tipos de sociedade empresária, pode, com as formalidades do art. 968, requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da sua sede, caso em que, depois de inscrita, ficará equiparada, para todos os efeitos, à sociedade empresária. Parágrafo único. Embora já constituída a sociedade segundo um daqueles tipos, o pedido de inscrição se subordinará, no que for aplicável, às normas que regem a transformação”. Ou seja, poderá se revestir tanto da forma simples como empresária, dependendo da estrutura de funcionamento, do interesse social e do tipo societário. 349 Conforme exemplifica Alfredo de Assis Gonçalves Neto, “se a sociedade não tem mais patrimônio e deve 1.000, o sócio que tem 10% de participação nas perdas pagará 100 e o que tem 90% pagará 900 dessa dívida. É bom ressaltar, no entanto, que é possível tornar solidária essa responsabilidade, bastando cláusula contendo tal ajuste (art. 1.023, parte final)” (GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 128). 350 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 476.

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emissão das ações que subscreveu ou adquiriu. Contudo, se exerce funções diretivas

(administrador), responde pelas obrigações constituídas durante sua gestão, “de forma subsidiária

(após o exaurimento do patrimônio social), ilimitada (sem qualquer exoneração) e solidária (com

os demais membros da diretoria)”,351 por expressa previsão legal (art. 1.090, CC).

A sociedade em nome coletivo foi durante muito tempo a principal modalidade societária,

e serviu como inspiração não só na orientação dada pelo Código Comercial de 1850 para as

normas societárias, como também “foi o ponto de partida da evolução que resultou no surgimento

das demais sociedades hoje conhecidas”.352

Hoje em dia, a sociedade em nome coletivo praticamente decaiu em desuso, pois diante da

responsabilidade subsidiária de seus sócios (sempre pessoas físicas), afasta o interesse de

empresários ou investidores em razão de o risco do negócio poder-lhes tomar todo o patrimônio,

já que a responsabilidade dos sócios é ilimitada, sem limitação de valor. Eventual limitação da

responsabilidade de algum sócio, estabelecida no contrato social, possui efeito apenas interna

corporis, já que não tem efeito para os credores da sociedade.

A sociedade limitada juntamente com a sociedade anônima são as únicas espécies de

sociedades que possuem relevância econômica na sociedade contemporânea. Conforme relata

Fábio Ulhoa Coelho, uma pesquisa desenvolvida pelas Juntas Comerciais do país, registra que no

ano de 2000 existiam 231.758 sociedades limitadas, 1.466 sociedades anônimas e apenas 369

sociedades de outros tipos (“tipos societários menores”).353

Na sociedade limitada, os sócios, de forma geral, respondem solidariamente pela

integralização do capital social perante terceiros (art. 1.052, CC), diferentemente do que ocorria

no revogado Decreto 3.708/19, onde a responsabilidade solidária era apenas para os casos da

falência.

Desse modo, perante a sociedade (interna corporis), a responsabilidade de cada sócio é

restrita ao valor de suas quotas, mas, perante terceiros, enquanto o capital social não estiver

totalmente integralizado, todos os sócios responderão solidariamente pela integralização, limitada

à importância total do capital social. E, no que concerne à exata estimação de bens conferidos ao

capital social, a responsabilidade dos sócios também é solidária, podendo ser impugnada em até 5

(cinco) anos, prazo contado da data do registro da sociedade (art. 1.055, § 1º, CC).

351 Id. Ibid., p. 477. 352 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 162. 353 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 23.

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Outra hipótese de responsabilidade do sócio ocorre nas deliberações sociais infringentes à

lei ou ao contrato social (art. 1.080, CC), hipóteses em que não há nenhuma limitação, por se

tratar de ato ilícito. Ou seja, o sócio que cometer o ilícito (legal ou contratual) responderá com seu

patrimônio particular (no limite do prejuízo causado) enquanto perdurar o prejuízo sofrido pela

sociedade.

A regra estabelecida no art. 1.080 atinge diretamente o sócio majoritário (controlador),

pois, levando-se em consideração que o quórum para deliberação social foi aumentado na maior

parte dos casos, a responsabilidade do sócio majoritário foi ampliada, já que grande parte das

alterações depende do seu voto.354

Os sócios também respondem solidariamente pelo recebimento de lucros ilícitos ou

fictícios (art. 1009, CC), bem como por perdas e danos das deliberações sociais onde ocorra

conflito de interesse em prejuízo da sociedade, sempre que o voto do sócio tenha sido

preponderante para a aprovação (art. 1.010, § 3º, CC).

Por fim, questão controvertida na jurisprudência é a responsabilidade do sócio pelas

obrigações trabalhistas, tributárias e previdenciárias, sobretudo diante da solidariedade imposta no

âmbito do CTN (arts. 134, VII e 135, III), da Lei 8.620/93 (art. 13) e do protecionismo ao

trabalhador, existente na Justiça do Trabalho. No entanto, as mais recentes decisões do STF e do

STJ têm procurado afastar a responsabilidade solidária dos sócios e dos administradores por toda e

qualquer situação, devendo existir comprovação da prática de ato contrário ao estatuto ou à lei,

bem como o efetivo exercício da administração empresarial.355

A sociedade anônima (ou companhia) é sociedade empresária (obrigatoriamente,

conforme art. 2º, § 1º, LSA) de capital, podendo se revestir da forma aberta ou fechada. Na

primeira, os valores mobiliários são admitidos à negociação nas bolsas de valores ou no mercado

de balcão (através da atividade junto ao mercado de capitais, as sociedades anônimas conseguem

captar recursos junto aos investidores em geral, sem a necessidade de tomarem empréstimos

354 Em discussões acadêmicas, comenta-se até, que a intenção do legislador foi desestimular a criação de novas sociedades limitadas, incentivando a formação de sociedades anônimas com capital aberto, a fim de que os recursos angariados pelas sociedades advenham do mercado acionário e não do mercado financeiro, estimulando, desta forma, a economia do país sem a necessidade de endividamento do empresário junto ao setor financeiro. Sem dúvida, angariar recursos através da emissão de ações ou de debêntures na bolsa de valores ou no mercado de balcão é uma opção muito mais inteligente e vantajosa para o empresário do que contrair empréstimos a juros altos nas instituições financeiras. 355 Neste sentido: STJ, REsp 571.740/RS, Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, j. em 02.06.2005, DJ de 08.08.2005, p. 253.

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bancários), enquanto que as fechadas não emitem valores mobiliários negociáveis, tendo que

captar recursos da mesma forma que as demais sociedades empresárias (v.g., limitadas).

Os acionistas (titulares da ação, que é o valor mobiliário representativo de uma parcela do

capital social da sociedade anônima) possuem responsabilidade pessoal pelo preço de emissão das

ações subscritas ou adquiridas. Uma vez fixado o preço de emissão, estará definido o limite da

responsabilidade dos subscritores. Para Modesto de Souza Barros Carvalhosa, “esta explicitação,

como já referida, justifica-se em face da possibilidade de emissão de ações sem valor nominal,

além da faculdade, já admitida no regime legal anterior, da emissão com ágio de ações de valor

nominal”.356

Cumprida esta obrigação, o acionista fica eximido de qualquer outra obrigação

(diferentemente do que ocorre entre os sócios da sociedade limitada, onde a responsabilidade pela

integralização das quotas é solidária – art. 1.052, CC), eis que o capital social é que responde pelas

obrigações sociais.

No que concerne à responsabilidade do administrador da sociedade, seja ela limitada ou

anônima, vale a regra geral segundo a qual, uma vez regularmente constituída a sociedade e

inscrito o ato constitutivo no registro (art. 45, CC), o administrador, no exercício regular de suas

funções, não responde pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade.357

3.2 A personalização da pessoa jurídica como atividade promocional do Estado para o desenvolvimento econômico e social (sanção positiva)

Ao permitir e regular a criação da pessoa jurídica, o Estado visa não só garantir a livre-

iniciativa econômica do particular, como também promover a atividade econômica e social da

coletividade. É que, dentre as diversas formas de intervenção do Estado na atividade econômica,

uma das mais importantes visa “incentivar” a atividade produtiva, através da qual é possível

356 CARVALHOSA, Modesto Souza Barros. Comentários à lei de sociedades anônimas: Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976. 2. ed. de 1997. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 4. Continua o autor na mesma página exemplificando que ”em ações de valor nominal de R$ 1,00, emitidas com um ágio de R$ 2,00, a responsabilidade dos acionistas ou subscritores será de R$ 3,00 por ação. Necessariamente, o princípio da responsabilidade pelo preço (e não pelo valor) aplica-se às ações que não possuem valor nominal.” 357 A responsabilidade dos sócios e administradores será tratada em capítulo próprio.

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“proteger, estimular, promover, apoiar, favorecer e auxiliar, sem empregar meios coativos, as

atividades particulares que satisfaçam necessidades ou conveniências de caráter geral”.358

Como visto anteriormente, a exploração da atividade econômica pelo Estado só se justifica

quando necessária para imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo (art.

173 CR), razão pela qual incumbe ao particular promover a atividade econômica, em consonância

com os princípios estatuídos no artigo 170 da Constituição de 1988.

Como exemplo da função promocional do Estado, pode-se destacar a previsão dada à

função social da propriedade, como forma de conduta esperada e desejada pela coletividade. Em

razão disso, através do Estatuto da Cidade (Lei 10.257/2001), o Estado revela sua atividade

promocional de proteger a propriedade imóvel, “estabelecendo diretrizes gerais da política urbana,

especificadas no art. 2º da citada lei, podendo determinar, inclusive, o parcelamento, a edificação

ou a utilização compulsória do bem”.359

A seu turno, foi através da personalização societária (como um expediente técnico que

viabiliza o compartilhamento dos riscos derivados do exercício da atividade empresarial e a

limitação desses riscos a um determinado patrimônio) que o Estado implementou e garantiu ao

particular investir na atividade econômica. Cria-se, com isso, um ente autônomo, com direitos e

obrigações próprias, não se confundindo com a pessoa de seus membros, os quais investem apenas

uma parcela do seu patrimônio, assumindo riscos limitados de prejuízo.

A personalidade jurídica conferida para as sociedades personificadas é, pois, a fórmula

encontrada para atingir o sucesso da atividade empresarial, proliferando cada vez mais como o

meio mais comum para exercício da atividade econômica. Destarte, nas palavras de Domingos

Afonso Kriger Filho, “a atribuição da personalidade corresponde assim a uma sanção positiva ou

premial, no sentido de um benefício assegurado pelo direito – que seria afastado caso a atividade

fosse realizada individualmente – a quem adotar a conduta desejada”360.

Foi o jurista Norberto Bobbio quem traçou a distinção entre a função repressiva e função

promocional do Direito, demonstrando que não basta ao Estado sancionar361 negativamente a

358 SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 686. 359 BANDEIRA, Gustavo. A relativização da pessoa jurídica. Niterói: Impetus, 2004, p. 25-26. 360 KRIGER FILHO, Domingos Afonso. Aspectos da desconsideração da personalidade societária na lei do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, nº 13, jan./mar. 1995, p. 80. 361 Não se pode deixar de considerar que a lei é um “instrumento importante de desenvolvimento e controle social, ou seja, a lei é o meio utilizado para esse controle e por intermédio dela se podem designar quais caminhos deverão ser seguidos pelo corpo social ou parte dele. É por ela que o Estado opera transformações econômicas, distribui (ou não)

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conduta do particular, mas deve, tanto mais, incentivar a prática de determinadas condutas, cujo

maior beneficiado, em última análise, será o interesse coletivo. Neste sentido, vale a pena conferir

a seguinte passagem do jurisfilósofo italiano: O fenômeno do direito promocional revela a passagem do Estado que, quando intervém na esfera

econômica, limita-se a proteger esta ou aquela atividade produtiva; ao Estado que se propõe também a dirigir a atividade econômica de um país, em seu complexo, em direção a este ou aquele objetivo; a passagem do Estado somente protecionista ao Estado programador.362

Para Norberto Bobbio, através da função repressiva, o Estado busca desestimular a adoção

de condutas desaprovadas pelo ordenamento, coagindo os cidadãos a certos comportamentos por

sancionar a conduta oposta. Já pela função promocional, o Estado estimula a prática de certas

condutas pelos cidadãos, premiando-as com determinados benefícios, por serem os seus resultados

desejáveis ao bem da coletividade.363

Ou seja, o sistema de incentivo promocional do Estado visa premiar a conduta lícita

desenvolvida pelo particular na promoção da atividade econômica, enquanto que a função

repressiva visa reprimir a conduta maléfica. Por certo, estas duas formas de atuação do Estado

devem se intercalar, pois não se evoluiu (ainda) a ponto de apenas incentivar as condutas lícitas,

devendo existir, concomitantemente, também a função repressiva do Estado.

A atribuição de personalidade jurídica corresponde, assim, a uma sanção positiva (no

sentido de um prêmio), pois “o desenvolvimento cultural e econômico propiciado pela união e

pela soma de esforços humanos interessa não apenas aos particulares, mas ao próprio Estado”,364 o

qual não conseguiria atingir, por si só, os mesmos resultados.365

Nas palavras de Gladston Mamede:

melhor a renda, gera novos direitos e obrigações, modifica hábitos e atitudes, aumenta o grau de liberdade e reprime. Enfim, a lei tem capital importância no controle da sociedade” (NUNES, Rizzato. Op. cit., p. 149). 362 BOBBIO, Norberto. Dalla strutura allá funzione. Milão: Di Comunità, 1977, p. 80. (Apud: JUSTEN FILHO, Marçal. Desconsideração da personalidade societária no direito brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 47). 363 No âmbito dos limites da autonomia privada em razão do interesse público tutelado pelo Estado, Pietro Perlingieri leciona que “o ato de autonomia privada não é um valor em si; pode sê-lo, e em certos limites, se e enquanto responder a um interesse digno de proteção por parte do ordenamento. Isso deve ser verificado, a cada vez, certificando-se depois, se possa ser, ainda que parcialmente, regulado por fonte que não seja a lei” (p. 279). E, no que concerne ao interesse público da atividade de empresa, continua o jurista italiano: “Sempre que existir uma atividade de empresa coadunada e regulada pelo ordenamento em função da satisfação do interesse do usuário pelo gozo dos resultados daquela atividade, pode-se aplicar a regra do art. 1.679 Cód. Civ., independentemente de aquela atividade qualificar-se, ou não, como serviço público em sentido técnico” (PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 279/288). 364 SILVA, Osmar Vieira da. Op. cit., p. 72. 365 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 49.

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Ao considerar em seu cenário a existência de entes escriturais, de estruturas políticas (pessoas jurídicas de Direito Público), de estruturas de pessoas (associações e sociedades) ou mesmo de bens jurídicos de expressão econômica (fundações), o Direito valoriza não só o espírito gregário, comunitário, do ser humano, mas também realça a importância da realização das finalidades, lembrando que as pessoas morais têm sua existência justificada pela realização de seus objetos lícitos.366

Destarte, a atribuição da personalidade jurídica societária pelo Estado é “uma técnica de

incentivação, pela qual o direito busca conduzir e influenciar a conduta dos integrantes da

comunidade”.367 É que os benefícios obtidos no âmbito socioeconômico pela associação de

pessoas (criação de pessoas jurídicas), permite a multiplicação de riquezas em todas as esferas da

sociedade, benefício este que interessa sobretudo ao Estado, razão por que investe e estimula,

através de uma sanção positiva, a sua utilização na atividade econômica pela iniciativa privada.

Em razão disso é que Marçal Justen Filho368 coloca a atribuição da personalidade jurídica

societária como uma forma de benefício a quem adotar a conduta desejada. Ou seja: a

personalização societária propicia que a conjugação de esforços e recursos para o exercício da

atividade econômica, seja juridicamente mais atraente e compensadora do que a mesma

exploração da atividade econômica pela forma individual (pessoa física), já que a atuação sob a

forma de pessoa jurídica oferece uma série de benefícios ou privilégios369, que a forma individual

não propicia.

Com efeito, se o próprio Estado incentiva a forma societária de atuação na atividade

econômica, como meio legítimo para se atingir o desenvolvimento do país, não há como se negar

a grande importância do instituto da personalização societária e da autonomia patrimonial370 no

exercício da atividade empresarial (art. 20 do CC-16), como forma de promoção da atividade

socioeconômica do Estado.

3.3 A crise da pessoa jurídica

366 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 240. 367 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 49. 368 Id. Ibid., loc. cit. 369 Em razão disso é que o jurista alemão Herbert Wiedemann, citado por José Lamartine Corrêa de Oliveira, afirma que “a limitação da responsabilidade não é nem um fenômeno de Direito Natural nem algo que pudesse aproximar-se da noção de liberdade ou garantia constitucional: seria antes um privilégio concedido pela ordem jurídica” (OLIVEIRA, J. Lamartine Correa de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 404). 370 Tullio Ascarelli reconhece a importância da limitação da responsabilidade societária como instrumento de progresso econômico, razão pela qual entende plenamente possível conciliar, através do princípio da responsabilidade limitada, tanto os interesses dos credores, como os interesses dos sócios e da própria coletividade beneficiada pela atuação da sociedade (ASCARELLI, Tullio. Iniciação…, p. 269).

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Verificada a importância econômica e social da pessoa jurídica na sociedade, cumpre

abordar o mau uso da personalidade jurídica e a sua crise no sistema legislativo e judiciário. Com

efeito, o ser humano está sempre buscando conquistar novos objetivos, todavia, nem sempre se

utiliza das boas regras de convivência, preferindo competir por melhores situações sociais através

do ilícito, do comportamento proibido, da fraude, ou de um meio fácil qualquer para aferir

vantagem indevidamente.

É que, nos dizeres de Gladston Mamede, “embora o ser humano e a sociedade realizem sua

plena potencialidade por meio do Estado, muitos sentem-se tentados a buscar a prevalência do

interesse pessoal sobre o interesse social e, rompendo com a estrutura de convivência que dá

sustentação à sociedade - o Direito - agem contra a lei ou em fraude à lei”.371

No campo do Direito societário, a personalização das sociedades e a autonomia

patrimonial constituem-se na forma encontrada pelo Estado para possibilitar e estimular o

investimento no setor produtivo (iniciativa privada).372 Através dele, o particular pode se

aventurar na exploração da atividade econômica com limitação da responsabilidade por prejuízos

pessoais.373

A opção do Estado foi positivada através do art. 20 do Código Civil de 1916, o qual previa

que “as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros”. Esta é a regra geral, que

separa e distingue as pessoas jurídicas das pessoas que estão por trás do ente coletivo, vigente até

hoje (apesar de não ter sido repetida no Código Civil de 2002), pois “a autonomia entre a

sociedade e a pessoa dos sócios está no âmago da noção de pessoa jurídica”.374

No entanto, a utilização da personalidade jurídica em sentido contrário à função para a

qual foi criada, contraria o seu escopo principal, que é o de incentivar o investimento privado na

371 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 242. 372 Evidentemente, este pensamento não é unânime, existindo, inclusive, quem alegue ser totalmente eliminável a pessoa jurídica, conforme relata Pierangelo Catalano: ‘“A eliminação do conceito de pessoa jurídica não tem nenhuma conseqüência danosa à nossa cultura jurídica’ – assim escreveu, no início do século 50, um romanista alemão: ‘A história do direito romano ensina o contrário. A posição jurídica do cidadão romano não foi prejudicada, nem na época republicana nem na imperial, pelo fato de que a pessoa jurídica fosse ou tivesse permanecido desconhecida do direito’” (CATALANO, Pierangelo. Op. cit., p. 38). 373 Conforme dispõe Fábio Ulhoa Coelho, “é, a rigor, um instrumento plenamente compatível com a ordem econômica desenhada pela Constituição, de natureza neoliberal, que reserva aos particulares a primazia na produção; isto porque o desenvolvimento desta para o atendimento das necessidades de todo corpo social exige, em tal sistema, mecanismos de motivação da iniciativa privada, entre os quais se ressalta a limitação do risco na exploração da atividade econômica através do princípio da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas” (COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário e os direitos do consumidor. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 216). 374 RAMOS, Carmem Lucia Silveira. Teoria..., p. 197.

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atividade produtiva375 para desenvolvimento do país. Destarte, sempre que a personalidade

jurídica não estiver atingindo sua função (v.g., estiver sendo empregada através de meios ilícitos

ou fraudatórios), o Direito não acolhe sua utilização, já que em confronto com o interesse público.

Em razão disso é que Fábio Konder Comparato afirma que a manutenção da separação

patrimonial, estabelecida para a consecução do objeto social previsto nos estatutos das sociedades,

só se justifica pela permanência deste escopo, de sua utilidade e de sua realização.376

Fábio Tokars também demonstra que uma das faces da crise da pessoa jurídica remete a

outra crise, a do crédito. Ou seja, “se a remuneração do crédito são os juros, estes aumentam em

proporção direta à elevação dos riscos, até o ponto de ruptura, em que o crédito simplesmente

deixa de ser ofertado, ou o é com a incidência de juros abusivos”.377 E tal ocorre em razão de

abusos praticados por certos empreendedores que se utilizam da limitação da responsabilidade

patrimonial para ocasionar prejuízos a credores mediante atos ilegais ou contrários ao contrato

social.

Dentre as várias hipóteses de utilização disfuncional da personalidade jurídica, Sylvio

Marcondes Machado, já em 1954, constatava a utilização indevida da personalidade jurídica pelo

empresário individual que, visando proteger seu patrimônio pessoal do patrimônio utilizado na

atividade empresária, criava uma fictícia sociedade, visando praticar o comércio com

responsabilidade limitada.378 Como é notório, este problema persiste até hoje em dia, já que a

legislação brasileira não admite o empresário individual de responsabilidade limitada.

375 Raúl Aníbal Etcheverry, ao comentar o alcance e o abuso da pessoa jurídica no direito argentino, leciona: “El ‘trato’ dispensado por el ordenamiento, contiene el deseo de regular pacíficamente la constitución, modificación, actuación, disolución y liquidación de las personas jurídicas o entes colectivos. De ahí que la ley, cuando dice ‘persona’, indica un alcance legal determinado de la expresión; un límite que no puede ir más allá de los fines que tuvo el derecho al estructurar tal o cual persona jurídica. De ahí que en el pensamiento de quienes concibieron la ley de sociedades comerciales 19.550, se hizo presente la necesidad de precisar aun más el alcance del art. 30 del Cód. Civil” (ETCHEVERRY, Raúl Aníbal. Derecho comercial y económico. Formas jurídicas de la organización de la empresa. 1. reimpresión. Buenos Aires: Astrea, 1995, p. 28. Na tradução livre: “O 'tratamento' dispensado pelo ordenamento, contém o desejo de regular pacificamente a constituição, modificação, atuação, dissolução e a liquidação das pessoas jurídicas ou entidades coletivas. Por essa razão que a lei, quando diz pessoa, indica determinado alcance legal da expressão; um limite que não pode ir além dos fins que teve o direito ao estruturar tal ou qual pessoa jurídica. Por essa razão que no pensamento daqueles que conceberam a Lei de Sociedades Comerciais 19.550, ficou presente a necessidade de especificar ainda mais o alcance da art. 30 do Código Civil”). 376 COMPARATO, Fábio Konder. O poder..., p. 270. 377 TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 450. 378 “Essas formas [comandita, anônima e por quotas de responsabilidade limitada] consagradas pelo direito constituído para limitação da responsabilidade no exercício do comércio. Criadas, entretanto, para favorecer a organização de sociedades, pela variedade de tipos adequados a congregar esforços e capitais a um fim comum, vêm, elas se prestando a objetivos não societários. A possibilidade acima indicada abriu caminho para que o comerciante individual procure obter, à custa da lei, aquilo que a lei lhe nega: praticar o comércio, com responsabilidade limitada. Se assim é, então interessa verificar, elucidando o tema deste trabalho, a maneira pela qual, perante o direito vigente

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Por outro lado, foi José Lamartine Corrêa de Oliveira quem estudou com profundidade a

crise da pessoa jurídica, identificando tanto uma i) crise de reconhecimento das pessoas jurídicas,

como uma ii) crise de função das pessoas jurídicas.

A primeira remete às deficiências dos sistemas jurídicos no reconhecimento das entidades

sociais como pessoas de direito, tal como ocorre com figuras como a massa falida, o espólio, a

herança jacente e vacante, o condomínio por unidades autônomas e as sociedades irregulares, as

quais, apesar de não serem reconhecidas como pessoas379, possuem capacidade para ser parte,

conforme previsão do art. 12 do Código de Processo Civil.

Ou seja, embora estes agrupamentos sociais tenham características reais que justificariam

sua personalização, o ordenamento jurídico apresenta um hiato, deixando de fora estes

agrupamentos, não obstante o ordenamento processual (CPC) lhes atribuir capacidade processual.

José Lamartine Corrêa de Oliveira, ao analisar cada um destes agrupamentos, atribui

qualidade de pessoa para uns (v.g., condomínio por unidades autônomas380, sociedades

irregulares) e nega para outros (v.g., massa falida, espólio e herança jacente), resumindo que,

quando a norma não mais qualifica adequadamente o ser que regula, o sistema entra em crise.381

Apesar de o Código Civil de 2002 ter estabelecido quando se dá o início da existência

legal das pessoas jurídicas no art. 45 (com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro),

bem como ter estabelecido que o início da personalidade jurídica da sociedade simples ou

empresária nasce com a inscrição do seu ato constitutivo no registro próprio (art. 985), deixou

mais uma vez de atender à crise de reconhecimento levantada por José Lamartine Corrêa de

Oliveira, ao não reconhecer como pessoa jurídica algumas entidades que a realidade acaba

apontando como tal (v.g. condomínio edilício).

Já a segunda crise apontada por José Lamartine Corrêa de Oliveira trata da crise de função

da personalidade jurídica, a qual, muitas vezes, acaba sendo utilizada para objetivos contrários ao

ordenamento jurídico, como anteparo para operações ilícitas, abusivas ou fraudulentas. É o que

nos diversos ordenamentos e à luz da doutrina, a limitação da responsabilidade pode atuar no exercício singular do comércio” (MACHADO, Sylvio Marcondes. Limitação..., p. 24). 379 Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda já lecionou que “não há representação sem haver pessoa que se represente e pessoa que represente” (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1973, p. 249). 380 “Não temos a menor dúvida em afirmar a personalidade jurídica do condomínio por unidades autônomas, uma vez que irrecusável sua aptidão à titularidade de direitos, deveres, obrigações, pretensões, no plano do direito material” (OLIVEIRA, J. Lamartine Correa de. A dupla crise..., p. 227). 381 Id. Ibid., p. 607.

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Marçal Justen Filho chama de incompatibilidade entre os fins do Direito e a conduta específica e

concreta de agrupamentos personificados.382

A crise de função da pessoa jurídica é muito bem retratada nas palavras do próprio José

Lamartine Corrêa de Oliveira: A pessoa jurídica é uma realidade que tem funções – função de tornar possível a soma de esforços e

recursos econômicos para a realização de atividades produtivas impossíveis com os meios isolados de um ser humano; função de limitação dos riscos empresariais; função de agrupamento entre os homens para fins religiosos, políticos, educacionais; função de vinculação de determinados bens ao serviço de determinadas finalidades socialmente relevantes. À medida, porém, que as estruturas sociais e econômicas evoluem, tipos legais previstos para determinadas funções vão sendo utilizados para outras – não previstas em contraste com os valores reitores da ordem jurídica, há uma crise da função do instituto.383

Ou seja, a crise de função significa a utilização do instituto da personalidade jurídica para

atingir finalidades contrárias em relação aos princípios básicos que fundamentam o ordenamento

jurídico. Márcia Carla Pereira Ribeiro explica que na metade do século passado (XX), “o Direito

vivencia a era dos fins e dos valores”, de modo que, “se os fins inegavelmente justificam a

investida estatal no domínio econômico, os resultados da opção intervencionista contemporânea

não têm fornecido conclusões incontroversas”384. Isso, no campo da personalização societária,

remete ao deslocamento da condição inicial de solução de problemas, para a condição atual de

causa dos problemas societários, problemática esta que hoje faz diversos juristas repensarem as

benesses e os malefícios gerados pela personalidade jurídica societária.385

Esta problemática origina, indubitavelmente, um desvio de função da pessoa jurídica, que

está muito ligada ao chamado “negócio indireto”, o qual, segundo Suzy Elizabeth Cavalcante

Koury, “é aquele em que as partes se propõem alcançar uma finalidade que não é a finalidade

típica, segundo a lei, do negócio jurídico escolhido”.386 Em outras palavras, o desvio de função da

382 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p.17. 383 OLIVEIRA, J. Lamartine Correa de. A dupla crise..., p. 608. 384 RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Sociedade..., p. 44. 385 Jair Gevaerd, na sua tese de doutorado, chega a afirmar que “paira uma certa aura em torno do conceito de desconsideração, referindo-se-o em regra, à personalidade jurídica. O presente trabalho propõe a simplificação do conceito e o trabalha sem enfatizar o aspecto da personalidade jurídica. A propósito, é de se constatar que todo o trabalho é desenvolvido sem qualquer recurso à noção de personificação. Nada mais natural, eis que em item introdutório da circunstância-problema que enseja todo o presente trabalho reputa-se o conceito de personalidade jurídica como não-funcional para o âmbito do sistema mercantil societário (embora se admita a sua utilidade como eventual locus de argumentação. Advoga-se, deveras, que tudo é muito mais simples do que parece, no que toca à desconsideração. A complexidade que se vislumbra no fenômeno, classificado como excepcional, é ilusória” (GEVAERD FILHO, Jair Lima. Direito societário: teoria e prática da função. Curitiba: Genesis, 2001, v. II, p. 449). 386 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine) e os grupos de empresa. 2º ed. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 68.

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pessoa jurídica ocorre quando seus integrantes buscam alcançar um fim que necessita de sua

existência para efetivar-se, mas que, não é o seu fim típico.

Nas palavras do jurista francês L. Josserand, o abuso de direito

Tem como critério básico e concreto o finalista, pois diz respeito à finalidade dos direitos, à sua relatividade em consideração e em função de seu fim. Dessa forma, o ato abusivo é o antifuncional, o ato contrário ao fim do instituto, ao seu espírito. Esse critério finalista, um tanto abstrato, concretiza-se através do motivo legítimo, de tal modo que o ato será normal ou abusivo conforme explique-se ou não por um motivo legítimo, sendo o desvio do direito denunciado exatamente pelos motivos ilegítimos, como dolo e a má-fé.387

Diferentemente do Código Civil de 1916, o atual positivou expressamente o abuso de

direito ao preceituar que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,

excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou

pelos bons costumes” (art. 187 CC), de modo que o exercício abusivo de qualquer direito

subjetivo passou a ser punido.

Ou seja, o abuso do direito remete aos prejuízos produzidos pelo uso anormal do direito.

Tal se dá, v.g., quando o titular usa o direito com o fim exclusivo de causar prejuízo a outrem, sem

obter qualquer vantagem ou utilidade, bem como, quando o exerce de má-fé. No campo do Direito

societário, tanto o abuso do direito como a fraude e a confusão patrimonial ocorrem pela

utilização indevida da personalidade jurídica para atingimento de fins outros que não os previstos

no estatuto social da empresa ou na legislação.

Destarte, quando a personalidade jurídica for utilizada indevidamente e resulte na

disfunção do ente coletivo, existem formas de se impedir que ela seja utilizada de forma anômala

àquelas que inspiraram o sistema jurídico. Nestas hipóteses, é possível levantar o véu que encobre

a pessoa jurídica, para, em excepcional suspensão dos efeitos da separação patrimonial que vige

entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios, atingir a pessoa desajustada que está agindo e/ou se

beneficiando diretamente da personalidade jurídica para fins escusos. Tal se dá, conforme será

abordado nos próximos capítulos, através da desconsideração da personalidade jurídica societária

(disregard doctrine).

Por fim, não se pode perder de vista que a crise da pessoa jurídica também pode ser

analisada em paralelo com a crise política e legislativa que assola diversos países, tal como se

depreende da lição de Rafael Mariano Manóvil, ut infra: 387 JOSSERAND, L. El espíritu de los derechos y su realidad. Trad. de Eligio Sanchez Larios e Jose M. Cajica Jr. México, 1946 (Apud: KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcante. Op. cit., p. 70).

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Cuando, como consecuencia de las crisis de los últimos años, en la Argentina crecieron la protesta, la litigiosidad, la abdicación de sus funciones de legislador por el Congreso, la politización del derecho de fondo y la vertiginosa decadencia en la calidad de la normativa producida en todos los niveles, no puede extrañar que uno de los terrenos más fértiles del desbarranque haya sido el de la aplicación indiscriminada, poco selectiva y, menos aún, reflexiva, de la inoponibilidad de la personalidad jurídica de las sociedades.388

Não é privilégio apenas dos argentinos constatar a inércia do legislativo, a politização do

direito e a decadência da qualidade das legislações produzidas ultimamente, fruto, também, dos

gigantescos lobbies realizados por segmentos fortes da sociedade (instituições financeiras,

sindicatos, ruralistas etc.), que procuram, nas palavras de Paulo Bonavides, “transformar o Brasil

de um país Constitucional em um país Colonial”389.

Com efeito, a crise da pessoa jurídica não pode ser vista como algo isolado no seio da

sociedade, provocado apenas pela crise de reconhecimento ou pela crise de função (nos dizeres de

José Lamartine Corrêa de Oliveira), mas deve ser considerada como uma crise fruto de diversos

outros fatores extra-societários (políticos, legislativos, protecionistas, fiscais etc.) que também

influem e estimulam a propagada crise da pessoa jurídica hodiernamente.

388 MANÓVIL, Rafael Mariano. Prólogo..., p. IX. Na tradução livre: “Quando, como conseqüência das crises dos últimos anos na Argentina cresceu o protesto, a litigiosidade, a abdicação das funções de legislador pelo Congresso, a politização do direito fundamental e a decadência vertiginosa na qualidade da norma em todos os níveis, não pode se estranhar que uma das terras mais férteis da crise tenha sido a da aplicação indiscriminada, pouco seletiva e, menos ainda, reflexiva, da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades”. 389 Neste sentido trata Paulo Bonavides na citada obra: BONAVIDES. Paulo. Do país..., p. 19-31.

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4. A disfunção da pessoa jurídica e a sanção imposta pelo Estado - Disregard doctrine 390

Conforme exposto até o momento, a personalização da sociedade implica a separação

patrimonial entre a pessoa jurídica e os seus membros, razão pela qual “as obrigações de um,

portanto, não se podem imputar ao outro. Desse modo, a regra é a da irresponsabilidade dos sócios

da sociedade limitada pelas dívidas sociais. Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das

quotas com que se comprometem, no contrato social. É esse o limite de sua responsabilidade”.391

No entanto, como a personalidade jurídica é outorgada (através da técnica legislativa) pelo

ordenamento jurídico para determinados entes, só pode ser mantida na medida em que o ente

beneficiado preencha os requisitos para os quais foi contemplado (sanção positiva),392 ou seja, os

interesses coletivos que emanam da pessoa jurídica.393 Em caso contrário (sendo inútil a

personalização),394 a personalidade pode ser desconsiderada, conforme se observa pela passagem

do jurista Rolf Serick (idealizador da teoria da desconsideração da personalidade jurídica), pois a

pessoa jurídica só pode encontrar pleno reconhecimento,

Na medida em que seja utilizada para os objetivos em função dos quais foi criada pelo ordenamento jurídico. Ela, pelo que toca o Direito Civil, foi criada para servir, no âmbito de honestas relações jurídicas,

390 “Disregard doctrine, disregard of legal entity, piercing the corporate veil, lifting the corporate veil - no direito anglo-americano, superamento della personalitá giuridica – no direito italiano, durchgriff der juristischen personen – no direito germânico, abus de la notion de personnalité sociale, mise à l’écart de la personnalité morale - no direito francês” (BRUSCATO, Wilges Ariana. Empresário individual de responsabilidade limitada. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 198). Teoría de la penetración o desestimación de la personalidad jurídica – no direito argentino. No direito brasileiro, emprega-se como desconsideração da personalidade jurídica, desestimação da personalidade jurídica ou superação da personalidade jurídica. 391 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada no novo Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 4. 392 Já abordada em capítulo precedente. 393 Marçal Justen Filho afirma que “na tentativa de formular os pressupostos para incidência da desconsideração, [...], a personalidade societária não se caracteriza como dado de inerência, mas exsurge como manifestação da atividade promocional do Estado. Concebendo a atribuição da personalidade jurídica (a instituição do regime das sociedades personificadas, melhor dizendo) com uma sanção positiva, pela qual o Estado busca incentivar os integrantes da comunidade a adotarem certas condutas mais desejáveis, fornecendo instrumental jurídico para o desenvolvimento econômico, suprimem-se os empecilhos para a definição dos pressupostos da desconsideração da personalidade jurídica” (JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 95). 394 Conforme leciona Rubens Requião (citando Rolf Serick) no seu célebre trabalho sobre a desconsideração da personalidade jurídica, “quem nega a personalidade jurídica é quem dela abusa, pois quem luta contra semelhante desvirtuamento é quem a afirma” (REQUIÃO, Rubens, Abuso..., p. 757). René David, citado por João Casillo, também disserta com o mesmo enfoque: “A personalidade jurídica técnica imaginada para favorecer a realização de certos interesses coletivos, nada tem a ver e não poderia ser invocada, quando o recurso a ela não tivesse qualquer utilidade. Nesse momento convém desprezar a pretendida personalidade jurídica e tomar em consideração somente os indivíduos agrupados sobre a pessoa jurídica” (CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista do Instituto..., p. 75).

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como instrumento que permita ao indivíduo participar da vida jurídica e econômica, com exclusão da própria responsabilidade pessoal (...). É esta função que justifica o princípio da nítida diferenciação entre pessoa jurídica e sócios, princípio que constitui elemento essencial e próprio da pessoa jurídica.395

Tal se dá porque, “como sujeito de direito distinto, a pessoa jurídica pode servir de

instrumento para fraudar o cumprimento da lei ou de obrigações. Transfere-se à titularidade de

uma pessoa jurídica a obrigação que seria da física que a integra ou de outra pessoa jurídica”396.

Nesses casos, quando a personalidade jurídica conferida às sociedades é usada para frustrar o

interesse público, justificar o errado, proteger a fraude ou defender o crime, a lei considerará a

pessoa jurídica como uma associação de pessoas, solidariamente responsáveis por determinadas

situações antijurídicas.

Arruda Alvim, ao citar Rolf Serick, discorre: “La nostra ricerca ha mostrato che la forma

della persona giuridica può essere disconosciuta in due gruppi di casi: in primo luogo quando di

essa abusa per il perseguimento di fini fraudolenti ed in secondo luogo quando ciò è necesario

per rendere applicabili allá persona giuridica determinante norme”.397

Para José Lamartine Correa de Oliveira: Se é em verdade uma outra pessoa que está a agir, utilizando a pessoa jurídica como escudo, e se é

essa utilização da pessoa jurídica, fora de sua função, que está tornando possível o resultado contrário à lei, ao contrato, ou às coordenadas axiológicas [...] é necessário fazer com que a imputação se faça com predomínio da realidade sobre a aparência.398

Nessas hipóteses, é possível atravessar o véu da personalidade jurídica399, a fim de evitar a

fraudulenta manipulação da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Assim,

exemplificativamente, ensina Tullio Ascarelli: É pacífico que, quando o diretor ou o acionista (ou mesmo o credor) se servir fraudulentamente da

sociedade para conseguir fins pessoais, será preciso prescindir da existência da sociedade e considerar o ato como se fosse praticado diretamente pelo interessado. Abundante é o número de casos a esse respeito, no direito norte-americano (...), na chamada teoria da dummy corporation. (...)

395 SERICK, Rolf. Forma e realtà della persona giuridica. Milano: Giuffrè, 1966, p. 276. Na tradução livre: “Nosso estudo mostrou que a forma da pessoa jurídica pode ser desconsiderada em dois grupos de casos: em primeiro lugar quando se abusa para fins fraudulentos e em segundo lugar quando é necessário para poder aplicar à pessoa jurídica determinada norma” (Apud: NORONHA, Fernando. Responsabilidade civil de pessoas jurídicas (em especialidades) e de seus administradores, por atos destes. Revista da ESMESC. Florianópolis, 1996, v. 2, p. 74). 396 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada..., p. 109. 397 SERICK, Rolf. Forma..., p. 275. (Apud: ALVIM, Arruda. Direito comercial: coleção estudos e pareceres. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 70). 398 OLIVEIRA, J. Lamartine Correa de. A dupla crise..., p. 613. 399 Neste sentido: BATALHA, Wilson de Souza Campos. Falências e concordatas: comentários à lei de falências: doutrina, legislação, jurisprudência. 2. ed. São Paulo: LTr, 1996, p. 159 e REQUIÃO, Rubens. Aspectos modernos de direito comercial: estudo e pareceres. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 1, p. 79.

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A constituição da sociedade e a teoria da pessoa jurídica não devem constituir um meio para iludir o funcionamento normal das normas jurídicas. A jurisprudência francesa fala justamente em ‘abus de la notion de personnalité sociale’ e justamente visa combater este abuso quer no domínio do direito internacional privado, quer no do direito interno.400

Nas palavras de Marcelo M. Bertoldi, através da disregard doctrine,

Permite-se que os credores invadam o patrimônio pessoal dos sócios que se utilizam maliciosamente da sociedade com o objetivo claro de prejudicar terceiros. Assinale-se que com a aplicação desta teoria não se pretende anular a personalidade jurídica, mas, tão-somente, afastá-la em situações-limites, onde comprovada a sua utilização em desconformidade com o ordenamento jurídico e mediante fraude.401

Ou seja, através da aplicação da disregard doctrine, o juiz não desconsidera o princípio da

autonomia patrimonial da pessoa jurídica, mas pode tornar ineficaz o princípio societas distat a

singulis para atingir o patrimônio pessoal do administrador ou do sócio de responsabilidade

limitada que está por trás de determinados atos sociais realizados (v.g., com abuso da

personalidade jurídica).402 Não obstante isso, permanece a causa que originou a sociedade, ou seja,

a criação de um patrimônio autônomo cujos ativo e passivo não se confundem com os direitos e

obrigações do sócio.

Já para Rubens Requião,

O que se pretende com a doutrina do disregard não é a anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei (fraude).”403

400 ASCARELLI, Tullio. Problemas..., p. 130. 401 BERTOLDI, Marcelo M; RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Op. cit, p. 144. 402 Para Rubens Requião, “se se abusa de uma sociedade para fins alheios à sua razão de ser, a disregard doctrine evita que o direito tenha que sancionar tão temerária empresa. Com isto no fundo não se nega a existência da pessoa, senão que se a preserva na forma com que o ordenamento jurídico a tem concebido” (REQUIÃO, Rubens. Abuso..., p. 756-757). 403 REQUIÃO, Rubens. Abuso..., p. 756. No mesmo sentido discorrem Fábio Konder Comparato e João Casillo, respectivamente: “A sanção jurídica, em tais casos, não deve ser, indistintamente, a nulidade (absoluta ou relativa) do ato, negócio, ou da relação, mas a ineficácia. Não deve ser a destruição da ‘entidade’ pessoa jurídica, mas a suspensão dos efeitos da separação patrimonial in casu” (COMPARATO, Fábio Konder. O poder... p. 270). “Resumidamente, o que estamos falando sobre desconsideração da pessoa jurídica: trata-se única e exclusivamente que, num determinado momento, por um determinado acontecimento, aquela pessoa jurídica que praticou um ato ou deixou de praticar um ato, enfim, que tenha por ação ou omissão, um significado no mundo jurídico, seja afastada, seja desconsiderada, para em relação àquele ato específico, se vá buscar um responsável (pessoa física ou jurídica) por aqueles atos. Diria que se conseguirmos entender esse aspecto, não precisaremos praticamente dizer mais nada” (CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista do Instituto..., p. 74).

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Ademais, importante destacar que a desconsideração da personalidade jurídica difere da

responsabilização pessoal dos sócios ou administradores,404 pois, “sempre que a vontade do agente

discrepar, em ato ou potência, da vontade perfeita da instituição incorporada, estar-se-á diante da

morbidez societária, capaz de levar à responsabilização do próprio agente, seus pares de

administração e gerência e de parte ou integralidade da coletividade de sócios.”405 Com efeito,

“quando a imputação pode ser direta, quando a existência da pessoa jurídica não é obstáculo à

responsabilização de quem quer que seja, não há por que se cogitar da desconsideração de sua

autonomia”.406

Em síntese, quando a lei societária responsabilizar o sócio/acionista ou o administrador por

determinados atos realizados na gestão empresarial, não será necessário desconsiderar a

personalidade jurídica da sociedade, pois a lei alcança a pessoa infratora sem transplantar a

personificação. Contudo, excepcionalmente, quando houver abuso da personalidade jurídica,

caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir pela

desconsideração da personalidade jurídica para atingir a pessoa dos sócios (pessoa física ou

jurídica).407

4.1 Origem da disregard doctrine

No Brasil, a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica foi introduzida através

de uma palestra proferida na Faculdade de Direito da UFPR por Rubens Requião, durante o

404 “Quando se fala em responsabilidade civil de pessoas jurídicas e seus administradores por atos deste, tem-se em vista apenas a obrigação de reparar danos: a) dos próprios administradores...; b) da pessoa jurídica, na condição de comitente, por estes mesmos atos, praticados por seus prepostos. Quando se fala em desconsideração da personalidade jurídica, tem-se em vista a quebra do princípio da autonomia (ou da separação) da pessoa jurídica em relação às pessoas (físicas ou jurídicas) suas integrantes – e em especial os sócios controladores – para forçar esta a responder por débitos daquela (desconsideração direta), ou para responsabilizar aquela por débitos desta (desconsideração invertida), ou ainda para permitir o exercício em benefício da pessoa jurídica de direito que é de pessoa sua integrante (desconsideração em favor da própria pessoa jurídica). As duas primeiras hipóteses contrapõem-se à terceira porque são de desconsideração contra os integrantes da pessoa jurídica, ou contra a própria pessoa jurídica” (NORONHA, Fernando. Responsabilidade..., Revista da ESMESC, p. 73). 405 GEVAERD, Jair. O princípio..., p. 178-179. 406 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários ao Código de Proteção ao Consumidor. São Paulo: Saraiva, 1991, v. 1, p. 142. 407 Neste sentido já decidiu o extinto TAPR: “A aplicação da disregard doctrine, a par de ser salutar meio para evitar a fraude via utilização de personalidade jurídica, há de ser aplicada com cautela e zelo, sob pena de destruir os incontestáveis direitos da pessoa física. Sua aplicação terá de ser apoiada em fatos concretos que demonstrem o desvio da finalidade social da pessoa jurídica, com proveito ilícito dos sócios” (RT 673/160).

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primeiro centenário de nascimento do Des. Vieira Cavalcanti Filho408. A referida palestra foi

publicada em 1969 na RT 410 (p. 12-24) e posteriormente republicada na RT 803 (p. 750-764) no

ano de 2002.409 Pontes de Miranda também não deixou de abordar a disregard doctrine, ainda que

sucintamente, no seu Tratado de Direito Privado.410

Narra Rubens Requião que tomou conhecimento do tema inicialmente através de

monografia da lavra do jurista italiano Piero Verrucoli (Il superamento della personalitá giuridica

delle società di capitali nella ‘Common Law’ e nella ‘Civil Law’), bem como do jurista germânico

Rolf Serick (Aparencia y Realidad en las Sociedades Mercantiles – El Abuso de Derecho por

Medio de la Persona Jurídica)411, os quais partiram da doutrina idealizada pelos tribunais norte-

americanos para formularem seus estudos.412

No entanto, desde 1912 o jurista norte-americano Maurice I. Wormser, através do artigo

“Piercing the veil of corporate fictio – When and Why”, publicado na Columbia Law Review, já

tratava do tema da disregard doctrine, todavia, sob um viés mais restrito do que é tratado

hodiernamente pela jurisprudência norte-americana, haja vista que o abuso de direito não

contemplava as hipóteses trazidas por Maurice I. Wormser no início do século passado.

O primeiro caso de que se tem notícia ocorreu nos EUA, em 1809, no julgamento do litígio

entre Bank of United States v. Deveaux, envolvendo sociedades anônimas, quando o Juiz

Marshall, “para preservar a jurisdição dos tribunais sobre as sociedades anônimas, proclamou os

acionistas como parte integrante e seus direitos e deveres como cidadãos reconhecidos para serem

alcançados pela jurisdição, aplicando a teoria da desconsideração.”413

408 Fundador da Faculdade e seu primeiro catedrático de Direito Comercial. 409 Por ocasião da referida palestra, Rubens Requião assinalou que, apesar de ter pesquisado longamente na jurisprudência nacional, não encontrou nenhum julgado brasileiro que tivesse aplicado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica, o que justifica o fato de que a primeira inserção do tema no Brasil se deu através de sua célebre palestra na UFPR. 410 Ao criticar as alterações dos sistemas jurídicos com a conseqüente “desdemocratização das sociedades por ações”, dispôs Pontes de Miranda que “o desprezo das formas de direito das pessoas jurídicas, o Disregard of Legal Entity, provém de influências, conscientes e inconscientes, do capitalismo cego, que chegando a negar, por vezes, a ‘pessoa’ jurídica privada, prepara o caminho para negar a ‘pessoa’ do Estado” (MIRANDA, Pontes. Tratado de direito privado. Parte especial. Tomo L. Direito das obrigações: sociedade por ações. 3. ed. Rio e Janeiro: Borsoi, 1972, p. 303). 411 Obra esta traduzida do alemão para o castelhano pelo jurista José Puig Brutau. 412 Na doutrina norte-americana, destaca-se o jurista Wormser, o qual, desde 1912, lecionava a possibilidade de os tribunais “prescindir da personalidade jurídica e considerar que a sociedade é um conjunto de homens que participam ativamente de tais atos e farão justiça entre pessoas reais” (REQUIÃO, Rubens. Abuso..., p. 753). 413 SILVA, Alexandre Couto. Desconsideração da personalidade jurídica no Código Civil. In: RODRIGUES, Frederico Viana (Coord.). Direito de empresa no Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 444.

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No entanto, um dos casos mais célebres da gênese da teoria da desconsideração é relatado

no direito inglês, através do julgamento do litígio entre Salomon vs. Salomon e Co., julgado em

1897, quando foi desconsiderada a personalidade jurídica da empresa para responsabilizar seu

principal e maior titular, sob a alegação de que na verdade a sociedade havia sido criada apenas

para encobrir os negócios do seu real proprietário (Aaron Salomon). Contudo, não obstante a

teoria ter sido aplicada em dois graus de jurisdição, foi reformada pela House of Lords, por

aplicação formalista da lei inglesa.414

Os estudos desenvolvidos pelo jurista Rolf Serick sobre os julgados norte-americanos

marcaram a teoria da desconsideração da personalidade jurídica até os dias de hoje, sendo certo

que seus fundamentos (impedir a fraude ou abuso do direito através da desconsideração da

personalidade jurídica para atingir - através da ineficácia - determinados atos) são mantidos

hodiernamente.

4.2. Fundamentação jurídica da disregard doctrine no direito brasileiro

Conforme exposto até o momento, não obstante decorrer da personalidade jurídica a

distinção entre a responsabilidade da pessoa jurídica e a responsabilidade dos entes que a

compõem, através da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, acaba-se com o

absolutismo do direito da personalidade jurídica que vigeu até o final da década de 60.

Desta forma, a “personalidade jurídica passa a ser considerada doutrinariamente um direito

relativo, permitindo ao juiz penetrar o véu da personalidade para coibir os abusos ou condenar a

fraude através de seu uso”.415 Com efeito, a personalidade jurídica passou a ser questionada como

forma de não servir além dos limites para o qual foi criada. Ou seja, se a pessoa jurídica foi criada

como um instrumento do ser humano, com a finalidade de servir ao homem e à sua vida em

sociedade,416 seu desvio de finalidade deve ser de pronto reprimido, em homenagem ao escopo

para a qual foi criada.

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi tratada através de duas

formulações doutrinárias. A primeira, defendida por Rolf Serik e Rubens Requião, intitulada de

teoria subjetiva da desconsideração, respaldada na fraude e no abuso de direito. Para a teoria

414 GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração da personalidade jurídica. Curitiba: Juruá, 2004, p. 10. 415 REQUIÃO, Rubens. Abuso..., p. 754. 416 RAMOS, Carmem Lucia Silveira. Teoria..., p. 200.

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subjetiva, a desconsideração da personalidade jurídica somente pode ocorrer em casos de fraude

ou abuso de direito, com intenção (ou consciência) de causar prejuízo. Por outro lado,

Erlinghagen e Fábio Konder Comparato trabalharam o tema através da teoria objetiva da

desconsideração, a qual contempla a separação patrimonial, o desvio de poder e a fraude à lei.

Baseia-se na distinção patrimonial, separando os negócios em interna corporis (desvio de poder e

fraude à lei) ou externa corporis (confusão patrimonial).

Não obstante a teoria subjetiva ser a corrente mais utilizada (sobretudo após a vigência do

novo Código Civil, o qual alocou o abuso de direito como espécie de ato ilícito através do art.

187), é possível uma coexistência de ambas as concepções, uma complementando a outra, tendo-

se como base, no entanto, a subjetiva, por abranger um número maior de hipóteses para aplicação

da desconsideração da personalidade jurídica.

Sob outro viés, é possível ainda trabalhar a formulação doutrinária da disregard doctrine

através de uma teoria maior e de uma teoria menor da desconsideração.417 A teoria maior é a

teoria aceita pelos juristas e estudiosos do Direito Empresarial, desde sua formulação no Brasil por

Rubens Requião, até sua positivação pelo atual Código Civil. Para a teoria maior, para que ocorra

a desconsideração, é necessária “a presença de fraude contra credores, abuso de direito ou desvio

de finalidade; e, ainda que, tais distorções estejam, de alguma forma, ligadas à manipulação da

autonomia patrimonial”.418

Já para a teoria menor da desconsideração, basta a possibilidade de frustração do credor da

pessoa jurídica, independentemente da existência de fraude ou abuso do direito, tratando-se de

verdadeira afronta ao princípio da separação patrimonial entre a pessoa jurídica e a pessoa dos

sócios. Em verdade, a teoria menor representa um desvirtuamento da disregard doctrine, já que

sua aplicação desmedida, sem os requisitos mínimos da identificação do abuso da personalidade

jurídica, afronta a própria existência e distinção entre a pessoa jurídica e as pessoas dos sócios que

a compõem.

De outra forma, mas com entendimento semelhante, Marçal Justem Filho diferencia a

desconsideração da personalidade jurídica através da “intensidade” (mínima, média e máxima)

com que se aplica o instituto, guardando para a máxima os casos em que se ignora a existência da

pessoa jurídica, para a média os casos em que se identifica o sócio e a sociedade (ou seja, duas

417 Esta formulação pode ser acompanhada com mais profundidade no Curso de Direito Comercial, de Fábio Ulhoa Coelho. (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v.2, p. 36-47). 418 SOUZA, Sueli Baptista. Op. cit., p. 129.

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pessoas com posição jurídica idêntica, sobretudo em relação à responsabilização). Por fim, a

manifestação menos intensa (mínima) ocorre quando se considera que sociedade e sócio têm uma

responsabilidade subsidiária.419

Continua o mesmo autor demonstrando que é extremamente difícil identificar a intenção

da conduta da pessoa jurídica na realização de determinado ato, pois, assumindo a pessoa jurídica

os contornos de uma verdadeira “máquina jurídica” (nas palavras de Ripert), o que é ético ou

moral para o ser humano, não precisa ter, necessariamente, a mesma conotação para a pessoa

jurídica.420 Tal fundamento, na visão do autor, se dá em razão da distinção que se faz entre a

instituição e a pessoa jurídica, de modo que não existiria interesse transindividual a superar os

limites de cada integrante.

Com efeito, independentemente da teoria (maior ou menor), da intensidade (mínima,

média e máxima) ou da confusão patrimonial (respeito à espécie societária e aos objetivos sociais,

inconfundíveis com os interesses ou atividades dos sócios)421 com que se pretenda aplicar a teoria

da desconsideração da personalidade jurídica, deve-se observar seus requisitos originários para

sua aplicação, quais sejam: i) o abuso do direito; ii) fraude à lei; iii) ambos relacionados à

autonomia patrimonial.

Através do abuso do direito, o titular de um direito emprega meios para a consecução de

um objetivo que provocam danos (não necessariamente intencional, mas decorrente do uso

inadequado da personalidade jurídica) a outrem, agredindo terceiros e ferindo o equilíbrio das

relações jurídicas e da própria sociedade. Nas palavras de Silvio Rodrigues, ocorre abuso de

direito (uso indevido de um direito) quando, “mesmo atuando dentro do âmbito de sua

prerrogativa, pode a pessoa ser obrigada a indenizar o dano deixado, se daquela fez um uso

abusivo.”422

Ou seja, abusa do direito aquele que, podendo realizar um ato, exerce-o “além daquilo que

o legislador tinha a intenção de assegurar quando editou o regramento legal. O abuso do direito

consiste no exercício irregular de um direito.”423

419 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 61-62. 420 Id. Ibid., p. 96. 421 COMPARATO, Fábio Konder. O poder..., p. 274-275. 422 RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1974, v. 1, p. 151. 423 GONTIJO, Vinícius José Marques. Responsabilização no Direito Societário de terceiro por obrigação da sociedade. Revista dos Tribunais. nº 854. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 39.

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Por outro lado, na fraude a intenção de causar prejuízo a terceiro (ou a qualquer sujeito de

direito lesado) está presente (embora hoje em dia seja possível trabalhar com a responsabilidade

em razão da consciência do agente na possibilidade de vir a causar um dano ou prejuízo a

terceiro), mediante o emprego de meio ardil ou fraudulento. Através da fraude, se consegue, pela

via oblíqua, o mesmo resultado que a lei quis impedir.424

Contudo, tanto o abuso do direito como a fraude devem estar relacionados com o ilícito na

utilização da personalidade jurídica (autonomia patrimonial), ou seja “deve o ilícito caracterizar-

se pelo uso da própria autonomia subjetiva da pessoa jurídica. [...] Somente ocorrendo ocultação

de pessoa atrás da personalidade jurídica de ente moral, para se furtar ao cumprimento de

obrigação legal ou contratual dela própria, é que se torna viável cogitar-se da desconsideração”.425

Ainda, como leciona Fábio Konder Comparato, “o verdadeiro critério no assunto, como

frisamos, é o referente aos próprios pressupostos da separação patrimonial, enquanto causa da

constituição das sociedades. [...] A falta de qualquer destes pressupostos torna ineficaz a separação

de patrimônio, estabelecida em regra.”426

Com efeito, no ato da instituição da sociedade personificada, deve ser definido o capital

social (art. 997, III CC), o qual, após o registro da sociedade nos órgãos registrários, forma um

patrimônio societário diverso do patrimônio dos sócios, servindo, com exclusividade e

independência para fazer frente ao complexo de relações jurídicas desenvolvidas no regular

exercício de suas atividades. No entanto, vão de encontro com este sistema as confusões

patrimoniais ocasionadas pelo embaralhamento de obrigações e faculdades da sociedade com as

relativas a outros patrimônios, designadamente o do sócio, administrador ou de outra entidade.427

No entanto, conforme enfatiza Oksandro Gonçalves, a confusão patrimonial428, por si só,

não representa um indicativo seguro para se aplicar a teoria da desconsideração, mas o que se

424 GONTIJO, Vinícius José Marques. Op. cit., p. 47. 425 COELHO, Fábio Ulhoa. O empresário..., p. 223. 426 COMPARATO, Fábio Konder. O poder..., p. 275. No mesmo sentido é o entendimento de Marlon Tomazette (TOMAZETTE, Marlon. Direito societário. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2003, p. 80). Em sentido mais amplo, José E. Tavares Borba sustenta que “a teoria da desconsideração da personalidade jurídica seria aplicável sempre que, por má-fé, dolo ou atitude temerária, a sociedade estivesse sendo empregada não para o exercício regular do comércio, mas para os desvios ou a aventura de seus titulares” (BORBA, José Edwaldo Tavares. Op. cit., p. 16). 427 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 250. 428 Com fundamento na confusão patrimonial entre empresas coligadas, o STJ já autorizou a desconsideração: “Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Falência. Sociedades distintas no plano formal. Confusão patrimonial perante credores. Desconsideração da personalidade jurídica da falida em processo falimentar. Extensão do decreto falencial a outra sociedade. Possibilidade. Terceiros alcançados pelos efeitos da falência. Legitimidade recursal. Caracterizada a confusão patrimonial entre sociedades formalmente distintas, é legitima a

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pretende afastar é a confusão patrimonial decorrente do uso abusivo da personalidade jurídica,

“em que se verifica que o sócio, gerente ou administrador, em benefício próprio, confundiu os

patrimônios de tal forma que não é possível distingui-los”.429

Pela análise detida da aplicação da disregard doctrine na legislação brasileira, nos diversos

institutos legais que de uma forma ou de outra tratam da responsabilização dos entes que se

escondem atrás do véu da personalidade jurídica para praticarem atos próprios, estranhos ao

objeto dos contratos sociais, será possível identificar facilmente onde a teoria da desconsideração

é aplicada corretamente e onde existe um distanciamento na sua aplicação.

4.3 Casuísticas na aplicação da disregard doctrine no Direito societário

Dentro da desconsideração da personalidade jurídica é possível abordar o tema através do

viés da desconsideração da personalidade societária (que nada mais é do que a aplicação da teoria

em relação às sociedades empresariais),430 sendo esta, uma variante dentro da figura mais ampla

que é a desconsideração da personalidade jurídica.

Com efeito, Francisco M. López Raffo separa a aplicação da teoria da desconsideração

societária em três hipóteses principais, quais sejam: i) quando deixa de lado definitivamente a

separação entre a pessoa societária e seus membros diante de uma nulidade (v.g., por possuir

objeto ilícito). Com isso, desaparece o ente societário da vida jurídica; ii) quando levanta o véu da

personalidade jurídica diante de determinados pressupostos concretos (v.g., atuação da sociedade

para encobrir fins extra-societários, constituição como mero recurso para violar a lei, o

ordenamento jurídico ou a boa-fé, para frustrar direitos de terceiros); iii) quando, em decorrência

da ação societária, ocorre a falência de uma pessoa, a qual se estende a outra por aplicação da

lei.431

desconsideração da personalidade jurídica da falida para que os efeitos do decreto falencial alcancem as demais sociedades envolvidas [...]” (STJ, RMS 16105/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19.08.2003, DJ 22.09.2003, p. 314). 429 GONÇALVES, Oksandro. A desconsideração da personalidade jurídica no novo Código Civil. In: Jurisprudência Brasileira 196 – Desconsideração da personalidade jurídica. Curitiba: Juruá, 2002, p. 13. 430 As sociedades empresárias possuem relação direta com o tema tratado neste artigo, não obstante outras pessoas jurídicas (v.g., associações, fundações, sociedades civis etc.) também possuírem personalidade jurídica, razão pela qual também estão sujeitas à disregard doctrine. Neste sentido: CABANELLAS DE LAS CUEVAS, Guillermo. Derecho societario. Parte general. La personalidad jurídica societaria. T. III. Buenos Aires: Heliasta, 1994, p. 67-68. 431 RAFFO, Francisco M. López. Op. cit., p. 71.

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Por sua vez, Calixto Salomão Filho, ao tratar da aplicação da teoria da desconsideração na

jurisprudência brasileira, distingue três grupos distintos: i) os que fundamentam a desconsideração

em dispositivos legais (CLT e CTN); ii) para os quais inexiste qualquer fundamento legal

(procura-se demonstrar a existência de abuso ou fraude à lei); iii) para os que aplicam a

desconsideração nas sociedades anônimas.432

O presente trabalho aborda com mais profundidade a segunda hipótese (tratada por

Francisco M. López Raffo), mais conhecida e aplicada no Direito brasileiro, decorrente da

aplicação da disregard doctrine em razão da fraude, do abuso de direito e da confusão

patrimonial, tudo em manifesto desrespeito à personalidade jurídica societária.

No entanto, a disregard doctrine pode ser invocada por diversas pessoas e formas, fruto de

uma vasta gama de relações jurídicas que cercam a vida societária, tanto interna corporis (relação

entre os sócios, administradores e controladores), como nas relações jurídicas externa corporis

(com terceiros contratantes com a sociedade e/ou com os próprios sócios).

Quando ocorrem conflitos com terceiros, a desconsideração pode se dar da seguinte

forma: i) desconsideração ativa, a qual, por sua vez, divide-se em desconsideração ativa direta (ou

frontal) e desconsideração ativa indireta (ou lateral); ii) desconsideração passiva, a qual pode ser

passiva direta (ou frontal) e passiva indireta (ou lateral).

Ainda, a desconsideração pode se dar com base em conflito interno da sociedade, a qual

também pode ocorrer através da i) desconsideração ativa ou ii) desconsideração passiva da

personalidade societária.

No que concerne à desconsideração da personalidade em virtude de conflitos com

terceiros, a forma ativa decorre de conflitos com terceiros, os quais solicitam a desconsideração

da personalidade para que as responsabilidades por determinadas relações jurídicas sejam

imputadas aos sócios433 que utilizaram indevidamente da personalidade jurídica societária. Dentro

da ativa, a forma ativa direta (ou frontal) ocorre quando terceiros credores da sociedade solicitam

a desconsideração contra a própria sociedade ou de determinados sócios.434

Já na forma ativa indireta (ou lateral), os credores dos sócios solicitam a desconsideração

contra estes ou contra a sociedade. Ou seja, os credores dos sócios pretendem atingir o patrimônio

432 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito..., p. 101-103. 433 Apesar da referência “aos sócios”, deve-se ter em mente que também o pedido de desconsideração é para se alcançar bens dos diretores e administradores não sócios. 434 Esta é a forma mais usual no Direito brasileiro, envolvendo a maior parte das relações jurídicas que desembocam num pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

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da sociedade da qual o sócio (devedor) faz parte (“el tercero pretenderá que la obligación del

socio o controlante sea imputada a la sociedad con cuya actuación se pretende evadir la

obligación”).435

Pode ocorrer também a desconsideração passiva436 da personalidade jurídica societária.

Nessa hipótese, os sócios ou a própria sociedade pedem que seja aplicada a desconsideração para

determinados atos da sociedade, a fim de que se imputem aos sócios determinados atos. A forma

passiva pode se dar direta (ou frontal), quando os sócios ou a própria sociedade solicitam a

desconsideração da sociedade contra credores da sociedade para que determinados atos sejam

imputados diretamente aos sócios em seu próprio benefício (do sócio solicitante). Ou ainda

indireta, quando a desconsideração é solicitada por sócios contra credores pessoais dos sócios, em

seu próprio benefício (do sócio solicitante).

Da mesma forma pode existir a desconsideração da personalidade jurídica com base em

conflitos internos da sociedade, ou seja, entre sócios, controladores não sócios etc., podendo, em

alguns casos, existir participação externa de terceiros cúmplices. A desconsideração ativa nestes

casos ocorre quando determinados sócios ou à própria sociedade pedem que a atuação societária

seja imputada não a própria sociedade, mas sim a determinado sócio.437 Já a desconsideração

passiva ocorre quando determinado sócio ou a sociedade pedem a desconsideração para que

determinado ato (ou bem) lhe seja imputado (ou adjudicado) diretamente (ao sócio que solicita a

desconsideração) e não, à sociedade.

Calixto Salomão Filho levanta ainda a hipótese de desconsideração em sentido inverso, a

qual ocorre “no caso em que o sócio tenha criado a aparência de negociar em nome da

sociedade”,438 existindo um sério conflito entre institutos civilísticos (v.g., teoria da aparência)

com a própria desconsideração. Em suma, com a desconsideração inversa, afasta-se o princípio da

435 CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 221. Na tradução livre: “O terceiro intentará que a obrigação do sócio ou do controlador seja imputada à sociedade com cuja atuação ele pretende escapar à obrigação”. 436 Segundo Leandro Javier Caputo, “En este caso, calificado como ‘desestimación pasiva’, los socios pretenden que los terceros no puedan ampararse en la existencia de la sociedad, pues ello constituiría un ejercicio abusivo de derecho” (CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 214. Na tradução livre: “Nesse caso, qualificado como 'desconsideração passiva', os sócios pretendem que os terceiros não possam buscar proteção na existência da sociedade, porque isso constituiria um exercício abusivo de direito”). 437 Pode ocorrer, por exemplo, quando o controle da sociedade é alterado e o novo controlador descobre que a sociedade está sendo apenada por ato de um diretor nomeado pelo antigo controlador. Nesta hipótese, poder-se-á cogitar na desconsideração da personalidade jurídica para se atingir os verdadeiros autores da conduta reprovável, porquanto nem seus novos controladores nem a própria sociedade são responsáveis pela atual situação. 438 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito..., p. 92. Por exemplo, no caso em que o sócio tenha desviado recursos pessoais para a sociedade, visando burlar credores da pessoa física.

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autonomia patrimonial da pessoa jurídica para responsabilizar a sociedade por obrigações

contraídas pelo sócio.439

Conforme explica Fábio Ulhoa Coelho, “a fraude que a desconsideração invertida coíbe é,

basicamente, o desvio de bens”,440 pois é muito comum o caso em que o devedor transfere seus

bens para a pessoa jurídica, da qual possui total controle, visando afastá-los da sua

responsabilidade patrimonial, contudo, continua usufruindo do patrimônio, só que através da

pessoa jurídica.

Casos freqüentes que justificam a desconsideração invertida ocorrem em situações

envolvendo direito de família e direito sucessório. No primeiro caso, um dos cônjuges, ao adquirir

um bem valioso, registra-o em nome da sociedade, afastando os direitos do outro cônjuge sobre o

mesmo, o que poderá prejudicar o cônjuge não sócio numa ação de separação judicial. Ou ainda,

após a integralização de bem familiar na sociedade, doa as quotas sociais para outro familiar (v.g.,

irmão, mãe), procurando afastar do outro cônjuge qualquer vinculação com os bens integralizados

na sociedade.441

No segundo caso, pode ocorrer que um pai constitui uma sociedade empresarial com

apenas dois de seus três filhos, e somente ele aporta bens na sociedade. Na hipótese de o pai vir a

falecer, o filho que não fazia parte da sociedade herdará as cotas, todavia, os demais (sócios)

também herdarão, só que em posição majoritária, visto que, além das quotas herdadas, já eram

sócios e provavelmente tomarão as rédeas da sociedade em prejuízo do outro herdeiro. O mesmo

439 A jurisprudência encontra resistência na aplicação da desconsideração invertida, conforme se extrai da seguinte ementa do extinto TAPR: “PENHORA - Pretensão de penhorar bem da sociedade, por dívida do sócio, efetivada como pessoa natural, por aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. Impossibilidade, vez que a teoria se refere, ao revés, aos casos em que o sócio, sob a máscara da pessoa jurídica, pratica atos contra o contrato social ou contra a lei. Ademais, não há a prova de qualquer fraude, e muito menos de que o contrato teria sido avençado para beneficiar a empresa em questão. Não havendo, ainda, penhora, qualquer questão a ela referida, poderá ser discutida, de futuro. Decisão correta. Recurso conhecido e desprovido” (TAPR, AI 0215536-2, 2. CC, rel. Marco Antonio Moraes Leite, j. em 18/12/2002, DJ 6310). 440 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v.2, p. 46. 441 Neste sentido, Rolf Madaleno cita um precedente do TJRS, 7. CC, AC 597135730, da relatoria do Des. Eliseu Gomes Torres. (MADALENO. Rolf. A disregard e a sua efetivação no juízo de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999, p. 65). Rachel Sztajn cita ainda a hipótese de “cônjuges, cujo regime de bens do casamento for o da separação obrigatória de bens, resolvessem constituir uma sociedade, na qual, mediante combinação, os bens fossem todos contribuídos por um deles e esforços pelo outro, o desvirtuamento do uso da personificação tem a mesma característica do caso Solomon. Chegar à comunhão parcial (ou total) contra vedação legal. A aplicação da norma contra vedação legal. A aplicação da norma do art. 50, desconsiderando-se a personalidade” (SZTAJN, Rachel. Terá a personificação..., p. 387).

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pode ocorrer para evitar que um filho gerado fora do casamento se beneficie da herança

legítima.442

Por conseguinte, Calixto Salomão Filho comenta a desconsideração em benefício do sócio,

citando interessante exemplo fruto da aplicação da Súmula 486 do STF,443 através da qual o sócio

proprietário de imóvel pode requerer o despejo para uso da sociedade (ocorrendo uma forma de

extensão dos efeitos da propriedade para a pessoa jurídica controlada pelo sócio).444

Situação corrente hodiernamente de aplicação da disregard doctrine ocorre nos

agrupamentos de empresas (grupos societários). Tal como a pessoa dos sócios não se mistura

com a pessoa jurídica societária, duas ou mais empresas pertencentes ao mesmo grupo também

possuem personalidade própria e independente. Contudo, “mediante la figura de la oponibilidad

se pretende extender la responsabilidad de la subsidiaria a la controlante o a outra integrante de

un grupo de sociedades.”445

Nas palavras de Vera Helena de Melo Franco e Rachel Sztajn,

Os grupos podem ser criados tanto pelo desenvolvimento interno (cisão) como pelo desenvolvimento externo (aquisição do controle). [...]

A relação pode tanto ser estabelecida entre sociedades do mesmo tipo societário como entre sociedades de tipos diferentes. Nada impede que uma sociedade limitada, ou em nome coletivo, tenha a posição de controladora ou de comando, embora o inverso não seja possível no que diz respeito à sociedade em nome coletivo (art. 1.039 CC).

Quanto à natureza do comando os grupos podem tanto ser públicos (quando a controladora seja uma pessoa jurídica de direito público), como privados.

Indiferente à origem, à composição ou à estrutura, a doutrina designa o fenômeno utilizando a expressão ‘grupos de sociedades’. Esta foi a terminologia introduzida no direito brasileiro pela Lei 6.404/76 e é de uso comum na doutrina para designar genericamente sociedades ligadas.

Mas, a expressão conforme a lógica da Lei 6.404/76, está reservada àqueles agrupamentos cuja criação está fundada num contrato (a convenção de grupo) e cuja unidade econômica repousa num vínculo de subordinação (controle ou coligação), decorrente da participação de uma sociedade no capital social de outra.446

A problemática na disciplina dos grupos societários na legislação brasileira foi percebida

tão logo a economia nacional começou a ganhar vulto com a abertura do mercado ao capital

442 MADALENO, Rolf. A desconsideração da personalidade jurídica na sucessão legítima. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueiredo (Coord.). Questões controvertidas no novo Código Civil. Parte geral do Código Civil. v. 6. São Paulo: Método, 2007, p. 281-282. 443 Súmula nº 486/STF: “Admite-se a retomada para sociedade da qual o locador, ou seu cônjuge, seja sócio, com participação predominante no capital social”. 444 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito..., p. 97. 445 CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 227. Na tradução livre: “Por meio da figura da desconsideração busca-se estender a responsabilidade da subsidiária para a controlante ou para outra integrante de um grupo de sociedades”. 446 FRANCO, Vera Helena de Mello. SZTAJN, Rachel. Op. cit., v. 2, p. 262-263.

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estrangeiro.447 Em decorrência disso, o Direito societário passou a gerir uma enorme contingência

de interligação de empresas, seja através de incorporações, de fusões, de cisões, de parcerias ou de

outras formas de agrupamento (concentração) do poder econômico.

Conseqüentemente busca-se a desconsideração da personalidade jurídica para que a

responsabilização atinja uma empresa coligada, “tomando-se coligação em seu sentido largo, a

significar tanto as figuras de controle, filiação (ou coligação em sentido estrito) ou mera

participação societária.”448

É que, conforme leciona Fábio Konder Comparato,

No seio do grupo econômico, o problema da disciplina do desvio de controle torna-se mais agudo, pois a própria mecânica de funcionamento do conjunto empresarial tende, como salientamos, não só à possibilidade de restrição ou supressão da distribuição de lucros, em uma ou em todas as sociedades que o compõem, como também a uma restrição na própria produção desses lucros. O interesse particular de uma sociedade pode ser sacrificado ao interesse geral do grupo.449

Os problemas decorrentes do poder de controle nos grupos econômicos podem ocorrer

tanto nas sociedades controladas, como nas controladoras. “É possível, inclusive, que a

desconsideração se faça para alcançar sociedade que não tenha relação de participação societária,

mínima que seja, com a sociedade devedora da obrigação, mas que faça parte da operação urdida e

que envolveu emprego ilícito ou abusivo da personalidade jurídica.”450

Contudo, deve-se levar em consideração que o abuso de poder resultante dos grupos

societários é dos mais caros aos estudiosos do Direito societário, sendo objeto de estudo e

tratamento em diversos países. Calixto Salomão Filho cita interessante experiência do Direito

alemão ao contemplar dentro do conceito de grupo não apenas as sociedades, mas também

447 Neste sentido leciona Rubens Requião: “Com o desenvolvimento da economia nacional e o maior dimensionamento das empresas, com seu ascendente poderia econômico, surgiu em nosso País o problema da interligação de empresas, as incorporações e fusões, do que não tem estado ausente a política oficial através, inclusive, de alentadores incentivos e subsídios legais” (REQUIÃO, Rubens. Aspectos modernos..., p. 288). 448 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 265. 449 COMPARATO, Fábio Konder. O poder..., p. 308. Continua o mesmo autor dispondo que “A concentração empresarial, como elemento do abuso de poder econômico, ocorre, segundo os termos legais, mediante ‘aquisição de acervos de empresas ou de cotas, ações, títulos ou direitos; coalizão, incorporação, fusão, integração ou qualquer outra forma de concentração de empresas; concentração de ações, títulos, cotas ou direitos em poder de uma ou mais empresas ou de uma ou mais pessoas físicas; acumulação de direção, administração ou gerência de mais de uma empresa’ (Lei n. 4.137, art. 2., n. I, alíneas b e e). Como se percebe, além do controlador acionário, a lei prevê, igualmente, a existência de grupo econômico unificado pelo controle administrativo ou gerencial (‘união pessoal’, interlocking directorate)” (p. 377). 450 MAMEDE, Gladston. Op. cit., p. 266. Neste sentido decidiu a Terceira Turma do STJ no RO em MS nº 14.856/SP.

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Todas aquelas pessoas, físicas ou jurídicas, que perseguem algum interesse empresarial fora da sociedade. É o caso não apenas das sociedades que controlam outras sociedades, mas também das pessoas físicas que sejam igualmente empresários individuais ou participem em maneira significativa de outras sociedades. Basta a concentração de mais de um interesse empresarial na mesma pessoa, de modo a fazer temer a utilização de um no interesse do outro, para caracterizar a fatispecie grupal.451

Uma das formas muito comuns hodiernamente de fraude mediante grupos societários

ocorre através da aquisição de uma offshore company em país estrangeiro (geralmente paraísos

fiscais, onde, além dos incentivos tributários, são admitidas ações ao portador representativas de

100% do capital social), para onde o empresário transfere seu patrimônio (v.g., titularidade da

empresa nacional), tornando muito difíceis a fiscalização e o rastreamento das atividades ilícitas

desenvolvidas pelo fraudador em nome da offshore.452

Outro exemplo advém da Itália através da “Reforma Biagi” (Lei-delegada nº 30 de 2003,

regulamentada pelo Decreto Legislativo nº 276 de 2003, e, posteriormente, modificada pelo

Decreto Legislativo nº 251, de 2004), onde foi criada uma forma de atuação para os grupos de

sociedade nas relações com os trabalhadores do grupo.

Através desta nova diretiva italiana, o grupo de empresas “não constitui um único centro

de imputação da relação de trabalho, mas as sociedades empresárias singularmente consideradas

que integram o grupo são unidades autônomas, ou seja, são os empregadores dos trabalhadores a

ela vinculados.”453 Com essa previsão, os grupos de sociedade podem se valer apenas do seu

respectivo número de empregados para dispensas individuais (sendo permitido até 15 empregados

por vez). Ademais, o art. 31 do Decreto nº 31 da legislação italiana Abriu um parágrafo que dispõe que as sociedades controladas e coligadas têm a faculdade de

delegar ao líder do grupo o desenvolvimento das obrigações em matérias de trabalho. [...] Em outros termos, trata-se das obrigações normais próprias da sociedade controlada ou coligada, na qualidade de empregador, e que no âmbito dos grupos de sociedade podem, de fato, ser desenvolvidas pela sociedade líder, por meio da concessão de delegação específica nesse sentido.454

No Direito brasileiro também já se observa preocupação do legislador com a formação dos

grupos societários, valendo a pena ressaltar que na reforma da Lei das Sociedades Anônimas (Lei

451 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo direito.... p. 170. 452 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 47-49. Por outro lado, Fábio Ulhoa Coelho esclarece que uma offshore company não é necessariamente fraudulenta, mas pode servir, como todas as demais sociedades, de instrumento para fraudes e abusos, razão pela qual, neste caso, pode ter a sua autonomia patrimonial desconsiderada (p. 49). 453 LEVI, Alberto. A disciplina italiana dos grupos de sociedade na conformidade da Reforma Biagi. In: PERIN JUNIOR, Elcio; KALANSKY, Daniel; PEYSER, Luis (Coord.). Trad. de Yone Frediani. Direito Empresarial. Aspectos atuais de Direito Empresarial brasileiro e comparado. São Paulo: Método, 2005, p. 411. 454 LEVI, Alberto. Op. cit., p. 412.

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10.303/2001), o legislador procurou delimitar as operações de incorporação de empresa controlada

pela controladora através do art. 264. Tal preocupação resulta da constatação de que “as

sociedades comerciais, em seus movimentos societários, podem optar por procedimentos de

reorganização societária que incluem a aquisição de controle de sociedade para formação de

grupos e também movimentos como os de fusão, incorporação e cisão”.455

O mesmo ocorre com os artigos 247, 250 e 276, § 2º, todos da Lei 6.404/76, através dos

quais as sociedades coligadas devem apresentar demonstrações contábeis levando-se em

consideração os investimentos em outras sociedades, sobretudo quando relevantes os

investimentos no capital da companhia.

No entanto, deve ser ressaltado, conforme já lecionou Tullio Ascarelli, que A participação de uma sociedade em outra, não é, por si só fraudulenta (...); pode, com freqüência,

visar fins lícitos o que, geralmente, se coaduna com a publicidade da participação. Nem, nessa hipótese, se pode falar de simulação, pois ambas as sociedades coexistem e podem coexistir efetivamente; cada qual pode ficar com uma personalidade jurídica autônoma e distinta, devendo então ser respeitada a distinção.456

Ou seja, “por si só, a dominação não justifica penetrar na personalidade para fins de

responsabilizar o controlador. O procedimento de penetração depende ainda de que o controle

prejudique a própria separação entre sócio e sociedade, ou entre matriz e filial; ou de que leve à

confusão de negócios, ou à ‘sucção’ do patrimônio da sociedade controlada”.457

Em suma, para os grupos societários, desde que preenchidos os requisitos para a disregard

doctrine,458 é possível desconsiderar a personalidade jurídica das sociedades agrupadas e da

negação de sua autonomia jurídica e patrimonial. Passam elas a ser consideradas não como

empresas isoladas e independentes, mas como partes ou seções de um todo, de um grupo, como

realmente o são.459 Tal se dá, porque, apesar de prevalecer a autonomia isolada das empresas

455 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. In: BERTOLDI, Marcelo Marco (Coord.). Reforma da lei das sociedades anônimas: comentários à Lei 10.303, de 31.10.2001. 2. ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 195. 456 ASCARELLI, Tullio. Problemas... p. 130. 457 MELO, Albertino Daniel de. Op. cit., p. 104-105. 458 Frise-se, desde que preenchidos os requisitos da disregard doctrine, pois “entre dos sociedades puede haber absoluta identidad de accionistas y directores y ser, sin embargo, entidades totalmente distintas e independientes a todos los efectos, como puede suceder que resulte necessario considerarlas como a un solo conjunto, aun cuando haya alguna diferencia en la composición de los respectivos directorios o grupos de accionistas” (PINEDO, Alejandro; WATERHOUSE, Enrique. Sobre el abuso de la personalidad jurídica de las sociedades comerciales. ED, 10-879. Na tradução livre: “Entre duas sociedades pode existir identidade absoluta de acionistas e diretores e ser, não obstante, organizações totalmente diferentes e independentes para todos os efeitos, como pode acontecer que seja necessário considerá-las como um único grupo, mesmo que haja alguma diferença na composição dos diretórios ou dos grupos respectivos de acionistas”). 459 REQUIÃO, Rubens. Aspectos modernos..., p. 291.

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agrupadas (diante da personalidade jurídica própria de cada uma), sua autonomia (decorrente da

personalização) não é absoluta, cedendo diante da realidade dos fatos e da teoria da disregard

doctrine.460

As casuísticas retro citadas não são aplicadas inteiramente no Direito brasileiro, existindo

hipóteses que são verificadas apenas em países onde existe a sociedade unipessoal; outras

verificadas em países como a Argentina (Desestimación) e a Alemanha (Durchgriff), onde a

disregard doctrine já é aplicada e reconhecida há mais tempo no ordenamento jurídico. Todavia,

de forma geral, grande parte dos casos já ocorreu no Direito brasileiro, sobretudo diante da

globalização que deságua no Brasil diversos problemas societários que anteriormente apenas eram

conhecidos pela doutrina alienígena, servindo a disregard doctrine como forma de minimizar a

utilização indevida da sociedade para a prática destes atos ilícitos ou fraudulentos.

4.4 Visão clássica na aplicação da disregard doctrine no direito brasileiro

Já se mencionou alhures que a primeira vez que se comentou sobre a teoria da

desconsideração da personalidade jurídica no Brasil foi durante a palestra ministrada por Rubens

Requião na UFPR (1969).

No entanto, a base para sua aplicação (mesmo que equivocada, conforme se verá adiante)

já existia desde o início do século passado no Brasil, sobretudo pela análise e interpretação

correlata dos seguintes artigos: Art. 20 do Código Civil de 1916; Art. 350 Código Comercial;

Arts. 596, 592, II do Código de Processo Civil; Arts. 134, VII e 135, III Código Tributário

Nacional.

Mais recentemente, Art. 28 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90); Art. 18

da Lei Antitruste (Lei 8.884/94); Art. 4º da Lei do Meio Ambiente (Lei 9.605/98); Art. 50 Código

Civil de 2002. Projetos de Lei: nºs 7160/02; 2.426/03 (ambos do Dep. Ricardo Fiúza) e 5140/05

(Dep. Marcelo Barbieri), os quais serão tratados mais detalhadamente a seguir.

4.4.1 Artigo 28 do Código de Defesa do Consumidor

460 Id. Ibid., p. 295.

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O artigo 28 Código de Defesa do Consumidor não trata apenas da desconsideração da

personalidade jurídica, mas aborda também uma miscelânea de formas de responsabilidades que

fogem da natureza jurídica da disregard doctrine. Apenas o abuso de direito (caput) é hipótese de

desconsideração. No mais (tanto no caput como nos §§ 2º, 3º e 4º), misturam-se os casos de

responsabilidade pessoal dos administradores com atos ultra vires, falência, estado de insolvência,

encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração etc., bem como

a responsabilização solidária ou subsidiária das coligadas. O § 5º amplia a desconsideração

sempre que o consumidor sofrer prejuízo patrimonial, de modo que, se nenhuma das hipóteses

previstas nos primeiros quatro parágrafos for aplicada, então se desconsidera a personalidade para

não impedir o ressarcimento dos prejuízos causados ao consumidor.461

Um dos autores do Anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor (Zelmo Denari),

sustenta, inclusive, que houve equívoco do Presidente da República ao vetar o § 1º do art. 28 (o

qual contribui para a aplicação da disregard doctrine no CDC), já que as razões apresentadas no

veto indicam que o veto seria do § 5º do mesmo artigo, pois incoerente com o caput do art. 28.462

Ou seja, a única hipótese na qual o Código de Defesa do Consumidor realmente prevê

causa para aplicação da disregard doctrine, conforme a doutrina é pelo abuso do direito,

“figurando os demais casos como de responsabilidade direta daquele que, por exemplo, infringe a

lei ou administra mal a sociedade”.463 De mais a mais, deve ser ressaltado que a regra do art. 28 do

Código de Defesa do Consumidor tem aplicação restrita nas relações de consumo, haja vista que

para as relações jurídicas abrangidas pelo Código Civil, existe previsão própria para aplicação da

disregard doctrine (art. 50 CC).

461 CDC - DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - Art. 28 - O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. § 1º - (Vetado.) § 2º - As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código. § 3º - As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código. § 4º - As sociedades coligadas só responderão por culpa. § 5º - Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores. 462 DENARI, Zelmo et al. Op. cit., p. 131-132. 463 SILVA, Osmar Vieira da. Desconsideração da personalidade jurídica: aspectos processuais. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 143.

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4.4.2 Artigo 18 da Lei Antitruste

Já o artigo 18 da Lei Antitruste (Lei 8.884/94), de certo modo, aproveitou as disposições e

hipóteses do Código de Defesa do Consumidor, pois inclui o excesso de poder, a falência ou

insolvência, o encerramento ou inatividade da pessoa jurídica por má administração, além do

abuso de direito.464

Destas hipóteses, novamente apenas o abuso do direito pode ensejar a aplicação da

disregard doctrine, já que as demais hipóteses (excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito

ou violação dos estatutos) dizem respeito à responsabilidade civil do sócio ou representante legal

por ato próprio, enquanto que a falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade

provocados por má administração dizem respeito à responsabilidade pessoal do administrador por

má gestão, não guardando vínculo ou relação com a teoria da desconsideração.

4.4.3 Artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho

O Direito do Trabalho é talvez um dos locais onde a aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica e da responsabilidade pessoal dos sócios e administradores gera mais

polêmica e insegurança jurídica para investimentos no meio empresarial. Com efeito, o artigo 2º, §

2º da Consolidação das Leis do Trabalho não trata da teoria da desconsideração, mas sim, da

responsabilização solidária entre empresas coligadas. No entanto, mesmo sem qualquer

fundamento legal, a Justiça do Trabalho aplica a teoria da desconsideração de forma assistemática,

sem qualquer critério, trazendo insegurança jurídica aos empresários que pretendem investir nas

relações econômicas.465

Oksandro Gonçalves observa que “a fórmula adotada pelo legislador trabalhista é

abrangente, atacando todas as sociedades que integram um determinado grupo econômico,

deixando de reconhecer a personificação autônoma de cada uma das empresas componentes de um

464 Lei Antitruste - Art. 18 – A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. 465 Art. 2º, § 2º da CLT – Sempre que uma ou mais empresas, tendo embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego, solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das subordinadas.

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conglomerado, bastando que haja vinculação através da qual, sendo uma delas empregadora, está

assegurada a responsabilização solidária”.466

De outra banda, a forma assistemática empregada pela Justiça do Trabalho preocupa até

mesmo magistrados trabalhistas, valendo a pena conferir interessante posicionamento do Min. do

TST Ives Gandra da Silva Martins Filho ao tratar do tema, in verbis:

Ora, tal teoria, como se vê, somente pode ser invocada quando comprovada fraude na formação ou dissolução da sociedade, levando à responsabilização dos sócios pelos passivo social, independentemente da sua participação maior ou menos no capital da sociedade.

[...] O que não se pode é, simplesmente, invocar a referida teoria para despir a sociedade de sua

personalidade jurídica, quando insuficiente o patrimônio social para arcar com as dívidas trabalhistas, de forma a atingir diretamente as pessoas físicas que a integram, carregando para os bens pessoais dos sócios os ônus que são exclusivamente da sociedade.467

Contudo, este não é o posicionamento vigente entre a maioria dos ministros do Tribunal

Superior do Trabalho (TST). Anteriormente, o TST havia editado o Enunciado nº 205, através dos

qual era afastada a responsabilidade da empresa coligada que não constava no título executivo

judicial. No entanto, em 2003 o TST baixou a Resolução nº 121, a qual cancelou o Enunciado nº

205, tornando novamente as empresas pertencentes aos grupos econômicos sujeitas à execução

trabalhista das coligadas.

Ao citar Mozart Victor Russomano, Marçal Justen Filho demonstra que na Justiça do

Trabalho existe uma vinculação do empregado à empresa, e não, à pessoa do empregador, o que

permite uma “despersonalização do empregador”. Em razão disso, “basta a vinculação entre

pessoa, sendo uma delas empregadora, para assegurar a sua solidariedade trabalhista.”468

Em suma, no Direito do Trabalho, de forma similar como ocorre no Direito do

Consumidor, não se admite qualquer obstáculo ao integral ressarcimento do trabalhador, mesmo

que, para isso, seja necessário desconsiderar a personalidade jurídica da empresa sem qualquer

técnica ou fundamento legal (abuso, fraude ou confusão patrimonial), bastando a mera

possibilidade de impedimento à integral satisfação dos direitos do trabalhador.

466 GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração..., p. 59. 467 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. A responsabilidade solidária dos sócios ou administradores ante as dívidas trabalhistas da sociedade. Revista Jurídica Virtual. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_15/IvesGandra.htm]. Acesso em: 21/03/2007. 468 JUSTEN FILHO, Marçal. Op. cit., p. 102.

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4.4.4 Artigo 4º da Lei Ambiental

Por conseguinte, a Lei Ambiental (9.605/1998) trata no art. 4º, da desconsideração sempre

que o ressarcimento dos prejuízos causados à qualidade do meio ambiente for obstaculizado pela

personalidade jurídica. Ao não procurar definir situações preestabelecidas para aplicação da

desconsideração (tal como ocorre no CDC), o legislador deixou ao intérprete a faculdade de

aplicar a teoria da desconsideração nas condutas lesivas ao meio ambiente. Destarte, desde que

interpretado de acordo com a teoria maior (fraude, abuso de direito ou desvio de finalidade) da

desconsideração, ou seja, apenas nos casos em que estejam presentes os requisitos autorizadores,

este dispositivo se coaduna com a teoria da desconsideração.469

4.4.5. Artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional

No Direito Tributário também existe bastante resistência na aplicação da disregard

doctrine, tendo em vista que o Código Tributário Nacional não possui previsão taxativa a respeito,

abordando apenas a responsabilidade direta do sócio ou administrador por ato ilícito (v.g., não

recolhimento de tributo). Como é cediço, no Direito Tributário o sujeito passivo do tributo é eleito

por definição legislativa, sendo aquele a quem a lei atribui uma hipótese de incidência tributária.

Tanto é que os artigos 134, VII, e 135, III, do Código Tributário Nacional não tratam (nem foram

concebidos para esta finalidade) da teoria da desconsideração, mas sim, da responsabilização do

sócio, diretor ou administrador por dívida alheia (da sociedade).470

Na verdade, não pode ocorrer situação análoga à que ocorre na Justiça do Trabalho, onde a

simples possibilidade de prejuízo ao trabalhador (in casu ao Fisco) justifica a superação da

personalidade jurídica do empregador. Ademais, diante dos princípios que regem o Direito

469 Art. 4º da Lei Ambiental – Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente. 470 Art. 134 do CTN – Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis: I – os pais...; II – os tutores...; III – os administradores de bens de terceiros; IV – o inventariante...; V – o síndico...; VI – os tabelião, escrivão...; VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. Art. 135 do CTN – São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos: I – as pessoas referidas no artigo anterior; II – os mandatários, prepostos e empregados; III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.

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Tributário (legalidade, isonomia etc.),471 não se mostra possível a desconsideração sem que a

legislação tributária expressamente a autorize.

Destarte, como sustenta José Lamartine Correa de Oliveira, “não tem sentido o Direito

brasileiro enxergar em dispositivos como o do art. 134, VII e 1325, III, do CTN [...] indícios que

revelem a presença entre nós das teses da desconsideração. [...] Não envolve qualquer quebra ao

princípio da separação entre o ser da pessoa jurídica e o ser da pessoa-membro”.472

4.4.6 Artigo 50 do Código Civil

A mais recente previsão legal sobre a disregard doctrine está prevista no artigo 50 do

Código Civil de 2002, o qual trata da desconsideração da personalidade jurídica de acordo com a

teoria maior (embora não faça referência expressa a sua nomenclatura), nas hipóteses em que se

verificar o abuso da personalidade jurídica (desvio da finalidade ou confusão patrimonial, a qual

ocorre nas hipóteses de abuso de direito ou fraude), incidindo sobre os bens dos administradores

ou sócios que efetivamente participaram na prática do abuso ou fraude na utilização da pessoa

jurídica.473

Antes de tomar a feição atual, a previsão da desconsideração da personalidade jurídica no

Anteprojeto do Código Civil (art. 49)474 sofreu diversas alterações e críticas, sobretudo porque

previa excessiva punibilidade a pessoa jurídica, culminando, inclusive, com sua dissolução e

471 Ao tratar da responsabilidade do administrador por débitos tributários (INSS), o Min. José Delgado demonstra a preocupação com o princípio da legalidade na aplicação do art. 135 do CTN; in verbis: “Não há como se aplicar à questão de tamanha complexidade e repercussão patrimonial, empresarial, fiscal e econômica, interpretação literal e dissociada do contexto legal no qual se insere o direito em debate. Deve-se, ao revés, buscar amparo em interpretações sistemática e teleológica, adicionando-se os comandos da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional e do Código Civil para, por fim, alcançar-se uma resultante legal que, de forma coerente e juridicamente adequada, não desnature as Sociedades Limitadas e, mais ainda, que a bem do consumidor e da própria livre-iniciativa privada (princípio constitucional) preserve os fundamentos e a natureza desse tipo societário” (STJ, REsp 757065/SC, Rel. Min. José Delgado, Primeira Seção, j. em 28.09.2005, DJ 01.02.2006, p. 424). 472 OLIVEIRA, J. Lamartine Correa de. A dupla crise..., p. 520. 473 Art. 50 do Código Civil. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica. 474 Art. 49 do Anteprojeto: A pessoa jurídica não pode ser desviada dos fins que determinam a sua constituição para servir de instrumento ou cobertura à prática de atos ilícitos, ou abusivos, casos em que caberá ao juiz, a requerimento do lesado ou do Ministério Público, decretar-lhe a dissolução. Parágrafo único. Neste caso, sem prejuízo das sanções cabíveis, responderão, conjuntamente com os da pessoa jurídica, os bens pessoais do administrador ou representante que dela se houver utilizado de maneira fraudulenta ou abusiva, salvo se norma especial determinar a responsabilidade solidária de todos os membros da administração.

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responsabilização solidária dos sócios, administradores ou representantes. Diante das críticas, o

Anteprojeto sofreu novas modificações, prevendo então no art. 48 que nas hipóteses antes

previstas no art. 49 do Anteprojeto anterior, ao invés da dissolução da sociedade, poderia ser

excluído o sócio responsável, ou, dependendo das circunstâncias, dissolver a sociedade.

Novamente o Anteprojeto se afastou da essência da disregard doctrine, pois, ao invés de

afastar a autonomia da pessoa jurídica nos casos específicos da sua aplicação (confusão

patrimonial, fraude ou abuso de direito), procurava dissolver a sociedade e/ou excluir o sócio,

independentemente do desvio de função da pessoa jurídica.

Contudo, a redação atual corrigiu a maior parte das imperfeições dos Anteprojetos

anteriores, vinculando a teoria da desconsideração ao afastamento temporário da personalidade

jurídica, a fim de atingir a pessoa que está utilizando a personalidade jurídica como instrumento

para a fraude, o abuso de direito ou a confusão patrimonial em prejuízo de terceiros.

Esse entendimento não escapa, todavia, da crítica ao art. 50 do Código Civil, na medida

em que o “desvio de finalidade” poderia ser confundido com atos ultra vires (violação do objetivo

social – atividade fim – da sociedade), ou mesmo porque a extensão da responsabilidade aos bens

particulares dos gestores refere-se à responsabilidade solidária e não à da disregard doctrine.475

No entanto, desde que o art. 50 do Código Civil seja interpretado de forma coerente com a

teoria da desconsideração, as imprecisões técnicas existentes na redação do dispositivo certamente

serão relevadas pelos aplicadores da norma. Isso porque, desde que seja respeitado o instituto da

personalidade jurídica e de que se estabeleça a superação da mesma nas hipóteses pontuais de

repressão a fraudes, ao mau uso da pessoa jurídica e à confusão patrimonial (afastando sua

aplicação para os casos de impossibilidade do credor receber seu crédito), estar-se-á privilegiando

o instituto da disregard doctrine na sua essência.

4.4.7 Projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional

Existem diversos projetos de lei que procuram regulamentar e/ou alterar a disregard

doctrine no Direito brasileiro. Dentre eles, merece destaque o PL nº 7.160/2002 que altera o art.

475 SILVA, Alexandre Couto. Op. cit., p. 460.

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50 do Código Civil476 e coloca novamente a previsão de que “as pessoas jurídicas têm existência

distinta da de seus membros”, reativando o princípio da societas distat a singulis.

Já o PL nº 2426/2003 visa regulamentar o art. 50 do Código Civil através de nove artigos

dispostos de forma clara e precisa para a correta aplicação da disregard doctrine. Dentre outras

previsões, estipula que “a parte que postular a desconsideração da personalidade jurídica indicará,

necessária e objetivamente, em requerimento específico, quais os atos por eles praticados (...)”.

Ainda, dispõe que, antes de o juiz decretar a desconsideração, o magistrado deverá estabelecer “o

contraditório, assegurando-lhes o prévio exercício da ampla defesa.” Estabelece também que não

pode ser aplicada a desconsideração nas hipóteses de mera insuficiência de bens da pessoa

jurídica, bem como de que os efeitos da desconsideração deverão atingir apenas os sócios ou

administradores que tenham praticado ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores

da pessoa jurídica ou em proveito próprio.

Já na esfera da Justiça do Trabalho, existe interessante proposição do Dep. Marcelo

Barbiere (PL nº 5140/05), a qual visa acrescentar o art. 883-D na CLT, com a seguinte redação:

Art. 883-D. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, à execução da sentença trabalhista, exige prévia comprovação de ter ocorrido abuso de direito, desvio de finalidade, confusão patrimonial, excesso de poder, ocorrência de fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social.

Como se observa, se aprovados os projetos de lei retro citados, certamente estar-se-á

respeitando o instituto da pessoa jurídica e contribuindo enormemente para a correta aplicação da

disregard doctrine no Direito brasileiro, trazendo segurança jurídica aos empresários para

investirem na atividade econômica do país.

4.4.8 Disregard doctrine no Direito falimentar

476 PL nº 7.160/2002: Art. 50. As pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros. § 1º Nos casos de desvio de finalidade ou confusão patrimonial, praticados com abuso da personalidade jurídica, pode o juiz declarar, a requerimento da parte prejudicada, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica, que lhes deram causa ou deles obtiveram proveito, facultando-lhes o prévio exercício do contraditório; § 2º O requerimento deve indicar objetivamente quais os atos abusivos praticados pelos administradores ou sócios da pessoa jurídica; § 3º Nos casos de fraude à execução, não será desconsiderada a personalidade jurídica antes de declarada a ineficácia dos atos de alienação, com conseqüente excussão dos bens retornados ao patrimônio da pessoa jurídica.

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No que concerne à execução concursal, a disregard doctrine possui total aplicação no

âmbito do Direito Falimentar, pois a falência é o local apropriado para se apurar o abuso da

personalidade empresarial (desvio de finalidade e confusão patrimonial) em proveito de

determinados sócios/acionistas ou administradores.477

O Superior Tribunal de Justiça já teve oportunidade de aplicar a teoria da desconsideração

da personalidade jurídica em processos falimentares, conforme se observa pela seguinte ementa:

FALÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURIDICA. DUAS RAZÕES SOCIAIS, MAS UMA SÓ PESSOA JURÍDICA. QUEBRA DECRETADA DE AMBAS. INEXISTÊNCIA DE AFRONTA AO ART. 460 DO CPC. - O Juiz pode julgar ineficaz a personificação societária, sempre que for usada com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros. - Consideradas as duas sociedades como sendo uma só pessoa jurídica, não se verifica a alegada contrariedade ao art. 460 do CPC. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp 63652/SP, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, j. em 13.06.2000, DJ de 21.08.2000, p. 134)

E mesmo tratando de falência de sociedade anônima, também existem precedentes no STJ;

in verbis: PROCESSUAL CIVIL. COMERCIAL. FALIMENTAR. RECURSO ESPECIAL. OFENSA À

NORMA CONSTITUCIONAL. INTERESSE DE AGIR. PREQUESTIONAMENTO. DECISÃO. FUNDAMENTAÇÃO. REEXAME FÁTICO-PROBATÓRIO. FALÊNCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INDISPONIBILIDADE DE BENS. EX-DIRETOR DE SOCIEDADE ANÔNIMA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. OMISSÃO. CONTRADIÇÃO. INEXISTÊNCIA.

[...] Está correta a desconsideração da personalidade jurídica da Sociedade Anônima falida quando utilizada por sócios controladores, diretores e ex-diretores para fraudar credores. Nesse caso, o juiz falimentar pode determinar medida cautelar de indisponibilidade de bens daquelas pessoas, de ofício, na própria sentença declaratória de falência, presentes os requisitos do fumus boni iuris e os do periculum in mora. A contrariedade do julgado com o disposto na lei não se confunde com omissão ou a contradição que

477 Em sentido contrário, Calixto Salomão Filho apresenta diversas justificativas para não se aplicar a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito da falência, concluindo que “o real motivo que deve guiar a não vinculação da teoria da desconsideração à falência é teleológico. Desconsideração e falência são conceitos antinômicos. A desconsideração é, como se verá, um método para permitir exatamente a continuação da atividade negocial” (SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo..., p. 84). Por outro lado, a jurisprudência tem aplicado a teoria da desconsideração nos processos falimentares, conforme expõe Diva Carvalho de Aquino: “Assim o que se verifica é que os Tribunais pátrios têm aplicado a teoria da desconsideração da personalidade jurídica no processo falimentar, para estender os efeitos da quebra às pessoas dos sócios, sejam elas pessoas naturais ou jurídicas, sempre que fiquem evidenciados, entre outros, atos fraudulentos e desvio de bens, em prejuízo dos credores” (AQUINO, Diva Carvalho de. Dos efeitos da decretação da falência em relação aos bens e pessoas do devedor e administradores. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de. (Coord.). Direito Falimentar e a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 391). Da mesma forma, Oksandro Gonçalves entende que “é possível admitir a aplicação da teoria da desconsideração na falência, se adotada a teoria da empresa, ocasião em que os institutos – desconsideração e falência – terão como objetivo principal a conservação e não a extinção da empresa viável” (GOLÇALVES, Oksandro. Desconsideração..., p. 121). Por fim, dispõe Adalberto Simão Filho: “3. Por outro lado, casos existem onde manifesta é a fraude e o abuso do direito de personificação, reconhecendo-se a possibilidade de aplicação da teoria da superação da personalidade jurídica no procedimento falimentar, em caráter extraordinário, específico e com as necessárias cautelas” (SIMÃO FILHO, Adalberto. A superação da personalidade jurídica no processo falimentar. In: SIMÃO FILHO, Adalberto; DE LUCCA, Newton (Coord.). Direito Empresarial contemporâneo. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 25).

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enseje embargos de declaração. Recurso Especial não conhecido. (STJ, REsp 370.068/GO, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 16.12.2003, DJ 14.03.2005, p. 318)

Por outro lado, os efeitos da falência de uma empresa também podem ser estendidos à

outra, sempre que restar demonstrado que duas ou mais pessoas jurídicas distintas estejam agindo

com promiscuidade nos negócios de modo a transparecer, na prática, tratar-se da mesma pessoa,

com intenção de prejudicar credores.478

Neste sentido afirma Carlos Roberto Claro; in vebis:

A jurisprudência já consolidou entendimento de que, ‘sendo evidenciada a fraude por parte de sócios de empresa falida, consistentes em desviar o patrimônio da sociedade para o seu próprio e para empresa sucessora, tudo com o objetivo de lesar os interesses dos credores, mostra-se acertada a decisão, proferida nos próprios autos da falência, afastando a proteção patrimonial da personalidade jurídica, que determinou a arrecadação dos bens pessoais dos mesmos, reunindo-os aos da massa falida, inclusive mediante concessão cautelar de seqüestro, busca e apreensão desses bens’. Portanto tratando-se especificamente de caso que envolva a possibilidade de desconsideração de personalidade jurídica, e tal pleito é formulado no âmbito do processo falimentar, inexiste motivo bastante para deslocar a discussão para outro processo, como poder-se-ía pensar, a princípio.479

Desta forma, quando ficar evidenciado que foram empregados atos fraudulentos (v.g.,

desvio de bens sociais) para frustrar a falência, pode o juiz determinar a desconsideração da

personalidade jurídica da sociedade para estender os efeitos da quebra às pessoas dos sócios

(pessoas naturais ou jurídicas) ou para atingir sociedades coligadas.

4.5 A disregard doctrine no direito alienígena

Conforme visto anteriormente, a disregard doctrine surgiu no direito norte-americano, de

onde se tem notícia de precedentes jurisprudenciais do início do século XIX, embora alguns

478 Neste sentido: “FALÊNCIA – EXTENSÃO DOS SEUS EFEITOS ÀS EMPRESAS COLIGADAS – TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – POSSIBILIDADE – REQUERIMENTO – SÍNDICO – DESNECESSIDADE – AÇÃO AUTÔNOMA – PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO DESTA CORTE. I - O síndico da massa falida, respaldado pela Lei de Falências e pela Lei 6.024/74, pode pedir ao juiz, com base na teoria da desconsideração da personalidade jurídica, que estenda os efeitos da falência às sociedades do mesmo grupo, sempre que houver evidências de sua utilização com abuso de direito, para fraudar a lei ou prejudicar terceiros. II – A providência prescinde de ação autônoma. Verificados os pressupostos e afastada a personificação societária, os terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus direitos e interesses. Recurso especial provido” (STJ, REsp 228.357/SP, Rel. Min. Castro Filho, Terceira Turma, j. em 09.12.2003, DJ 02.02.2004, p. 332). 479 CLARO, Carlos Roberto. A extensão da falência e seus jurídicos efeitos a empresa pertencente a grupo econômico – anotações. In: Boletim Informativo Juruá. Ano 15, nº 429, período 01 a 15/02/2007, p. 19.

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juristas afirmem que teria surgido na jurisprudência inglesa.480 O velho continente trata da

desconsideração da personalidade jurídica muito tempo antes de ela chegar ao Brasil, haja vista

que o próprio Rubens Requião, ao proferir sua célebre palestra em 1969, admitiu não ter visto, até

então, “doutrina nacional ou estudos sobre o uso abusivo ou fraudulento da pessoa jurídica”.481

Destarte, como a disregard doctrine surgiu, inicialmente, no direito estrangeiro (sendo

aplicada no Brasil através da teoria desenvolvida pelo jurista alemão Rolf Serik), nada mais

natural que seja analisado, mesmo que sucintamente, o tratamento dado por outros países nos

casos de abuso da personalidade jurídica societária.

4.5.1 Direito norte-americano

Nos Estados Unidos funciona um sistema federalista autônomo, de modo que os Estados

americanos482 apresentam significativas diferenças no âmbito legislativo, não existindo uma

unicidade na aplicação do direito.483 Contudo, “o direito dos Estados Unidos pertence, pela sua

estrutura, à família da common law.484 Na Inglaterra e nos Estados Unidos existe a mesma

concepção geral do direito e da sua função; (...) O direito, quer para um jurista americano, quer

para um jurista inglês, é concebido essencialmente sob a forma de um direito jurisprudencial”.485

Ou seja, é fundamental para o jurista americano que exista um precedente jurisprudencial

(case law) sobre determinada lei, sob pena de a lei não pegar, ou, nas palavras dos próprios

americanos, “there is no law on de point” (não há direito sobre a questão).486 Não é preciso ir

muito longe, haja vista que a Constituição americana possui apenas sete artigos e vinte e três

emendas, deixando claro que a common law prescinde de leis para regular as relações sociais 480 VERRUCOLI, Piero. Il superamento della personalitá giuridica delle società di capitali nella ‘Comon Law’ e nella ‘Civil Law’. Milano: Giufrè, 1964. (Apud: REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito..., p. 757). 481 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito..., p. 752. 482 Albertino Daniel de Melo destaca que a aplicação da disregard of legal entity nos Estados Unidos depende muito do ordenamento de cada Estado-Membro, além das características do caso concreto e da interpretação jurisprudencial (MELO, Albertino Daniel de. Op. cit., p. 106). 483 René David explica que, quando a common law foi finalmente implementada nos Estados Unidos, o território de New Orleans (posteriormente Estado da Loisiana) não aderiu ao sistema (DAVID. René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad. de Hermínio A. Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1986, p. 367). 484 “O sistema da common law é um sistema de direito elaborado na Inglaterra, principalmente pela ação dos Tribunais Reais de Justiça, depois da conquista normanda. A família da common law compreende, além do direito inglês, que está na sua origem, e salvo certas exceções, os direitos de todos os países de língua inglesa. Além dos países de língua inglesa, a influência da common law foi considerável na maior parte dos países, senão em todos, que politicamente estiveram ou estão associados à Inglaterra” (DAVID, René. Op. cit., p. 279). 485 Id. Ibid., p. 367. 486 Id. Ibid., loc. cit.

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(recentemente os Estados Unidos passaram a adotar a Federal Rules, embora não possa ser

considerada como um Código de Processo Civil), tendo muito maior peso as decisões pretéritas

sobre questões já decididas.

Foi assim que os tribunais norte-americanos começaram a aplicar a disregard doctrine em

decisões proferidas desde o século XIX, valendo a pena ressaltar que os pressupostos de aplicação

da desconsideração da personalidade jurídica nos Estados Unidos são aplicados casuisticamente,

independentemente de requisitos positivados na legislação.487

Ademais, conforme explica Carmem Lucia Silveira Ramos,

Nos Estados Unidos, há algumas peculiaridades que não se pode deixar de considerar

preliminarmente: não se distinguem sociedades comerciais e sociedades civis e mesmo a diferença entre sociedades e associações só interessa ao direito tributário. De outra parte, é da maior relevância a diferença entre sociedades não incorporadas (partnerships, joint stock companies, joint ventures e syndicates) e sociedades incorporadas (corporations, reguladas por leis gerais que enumeram os requisitos básicos para que seja possível a incorporation, ato de reconhecimento estatal), pois só estas últimas são consideradas dotadas de personalidade jurídica. (...) Neste passo, a jurisprudência norte-americana firmou alguns princípios, como: corporate entity privilege, o privilégio da personalidade jurídica, que não pode ser usado pela corporation com o fim de eximir-se do cumprimento dos contratos – ‘purpose of evasion of contracts’.”488

Segundo Alexandre Couto e Silva, a teoria da desconsideração é aplicada nas cortes norte-

americanas indistintamente em companhias abertas, fechadas e também nas sociedades

limitadas489. E, quanto aos critérios utilizados para sua aplicação, são comuns os casos onde

ocorre fraude à lei, fraude ao contrato, fraude contra credores, em casos de sociedades coligadas

ou dependentes, inadequada capitalização, sociedade unipessoal, questões envolvendo a

nacionalidade da pessoa jurídica e em matéria de impostos.490.

Em pesquisa realizada pelo jurista norte-americano Robert B. Thompson, foi possível

catalogar os casos de aplicação da disregard doctrine desde a década de 60, tendo apurado,

estatisticamente, os seguintes fundamentos, em ordem decrescente: a) instrumentality (quando uma companhia torna-se subsidiária “de fato” de outra) – 97,33%; b) alter ego (quando uma companhia é utilizada como “fachada” para condução dos negócios dos

acionistas) – 95,58%; c) misrepresentation (declarações ou garantias falsas) – 94,08%; d) agency (relação de fidúcia onde uma parte outorga poderes para outra representá-la, auferindo

lucros desta relação) – 92,31%;

487 COMPARATO, Fábio Konder. O poder..., p. 272. 488 RAMOS, Carmem Lucia Silveira. Teoria..., p. 190-191. 489 SILVA, Alexandre Couto. Op. cit., p. 446. 490 CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista dos Tribunais. São Paulo, v. 528, out. 1979, p. 28.

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e) dummy (quando determinada companhia é constituída somente com o objetivo de ocultar/acobertar as operações dos acionistas individuais) – 89,74%;

f) lack of substantive separation (confusão patrimonial) – 85,71%; g) intertwining (também decorrente de confusão patrimonial) – 85,11%; h) undercapitalization (subcapitalização) – 73,33%; i) informatilies (vícios formais de constituição ou regularidade) - 73,33%; j) domination & control (controle por apenas um único acionista para perpetrar fraudes) –

56,99%.491

Como se observa, a linha adotada nos Estados Unidos, de modo geral, não se afasta

daquela que inspirou o atual Código Civil brasileiro (fraude, simulação, subcapitalização etc.), no

entanto, na common law, a solução de situações idênticas às brasileiras é muito diferente, pois,

enquanto para os norte-americanos não existe uma normativa que especifique as hipóteses de

aplicação da teoria (prevalecendo o interesse coletivo), no direito brasileiro existem situações

pontuais de aplicação, variando, inclusive, de legislação para legislação.

Por fim, deve ser destacado que existe uma corrente doutrinária nos Estados Unidos que

vem pregando o fim da disregard doctrine, de onde sobressaem os excertos do jurista Stephen M.

Bainbridge, professor titular da UCLA (Universidade Católica de Los Angeles), o qual sustenta

que a disregard doctrine deixa para os juízes uma grande discricionariedade, o que vem

provocando incerteza e falta de previsibilidade, aumentando os custos de operações comerciais,

sobretudo para pequenas empresas, além de não existirem provas de que a disregard doctrine

tenha sido utilizada para proporcionar efeitos sociais benéficos, já que os juízes somente se

preocupam com os casos concretos, em detrimento das implicações sociais causadas pela

responsabilidade pessoal dos acionistas.492

4.5.2 Direito inglês

Foi no direito inglês que surgiu a common law, sendo também um dos precursores da

sistematização da disregard doctrine, a qual tem aplicação através da jurisprudência (case law).

Como regra geral, os acionistas de uma companhia inglesa, seus diretores e executivos não são

pessoalmente responsáveis pelas dívidas de companhia, o que, segundo o jurista canadense Brian

492 BANBRIDGE, Stephen M. Abolishing Veil Piercing. United States, 2000, p. 2. Disponível em: [www.lexisnexis.com]. Acesso em 12/05/2007. (Apud: NUNES, Márcio Guimarães. Desconstruindo..., p. 111-112).

491 THOMPSON, Robert B. Piercing the Corporate Veil: An Americal Study. (Apud: NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Desconstruindo a desconsideração da personalidade jurídica. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 107).

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R. Cheffins, faz com que os credores tenham que levar em conta o risco de fracasso dos negócios

(não recebimento) ao contratarem com uma companhia.493

Um dos primeiros casos tratados na doutrina é o “Salomon vs. Salomon & Co.”, julgado

em 1897 na justiça inglesa, quando foi desconsiderada a personalidade jurídica da companhia para

atingir a pessoa do sócio (Aaron Salomon), que teria criado a sociedade apenas para evitar o

pagamento de dívidas com credores. Não obstante as cortes iniciais terem aplicado a disregard

doctrine para atingir o patrimônio do sócio, a “Casa dos Lordes” reverteu a situação, julgando de

forma conservadora e entendendo que a companhia havia sido criada validamente.494

Tanto no direito inglês, como no direito norte-americano, “a personificação das sociedades

decorre, juridicamente, de um ato individual de concessão do poder político, podendo ser

desconsiderada, no caso de abuso, para serem os sócios responsabilizados pessoalmente”.495

Tal como ocorre no direito norte-americano, a solução encontrada na Inglaterra decorre do

fato de os juízes não encontrarem “uma solução legal (ou por considerarem injusta a solução

legal),” razão pela qual “procuram construir uma solução jurídica, baseada na equidade, para

reprimir o abuso e a fraude que pudessem ser perpetrados com a utilização artificiosa (embora

formalmente legal) de uma pessoa jurídica”.496

A facilidade com que a jurisprudência da common law desenvolveu a doutrina da

disregard decorre, nas palavras de João Casillo, da característica herdada do direito inglês, através

da qual antes que determinado instituto tenha uma sistematização doutrinária, é tratado pela

jurisprudência, fonte principal das Cortes de common law e de equity.497

493 “In the ordinary course, a company's shareholders, directors, and officers are not personally liable for the company’s debts. (…) Since shareholders and managers are not personally liable for corporate debts, when a company ceases to carry on business and is unable to pay all that it owes, all or some of the creditors will fail to receive payment in full for what is due to them. Thus, in a financial sense, creditors bear much of the risk associated with business failure” (CHEFFINS, Brian R. Company law: theory, structure, and operation. Great Britain: Oxford, 1996, p. 496. Na tradução livre: “No curso ordinário, os acionistas de uma companhia, diretores e executivos não são pessoalmente responsáveis pelas dívidas da companhia (…). Como os acionistas e gerentes não são pessoalmente responsáveis pelas dívidas corporativas, quando uma companhia deixa de continuar o negócio e não pode pagar toda a sua dívida, todos ou alguns dos credores não receberão o pagamento total do que lhes é devido. Assim, em um sentido financeiro, credores carregam muito do risco associado com o fracasso empresarial”). 494 REQUIÃO, Rubens. Curso..., v.1, p. 390. 495 HENTZ, Luiz Antonio Soares. Notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica: A experiência portuguesa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Revista dos Tribunais, nº 101, jan./mar. 1996, p. 110. 496 AMARO, Luciano, Desconsideração da pessoa jurídica no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Revista dos Tribunais, nº 88, out.dez. 1992, p. 73. 497 CASILLO, João. Desconsideração da pessoa jurídica. Revista dos Tribunais..., p. 25.

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Por fim, João Casillo enumera alguns casos onde ocorre a aplicação da disregard doctrine

no direito inglês: “1. Casos de fraudes e declarações inexatas; 2. Controle em tempo de guerra; 3.

Direito fiscal; 4. Sociedades subordinadas; 5. Imunidade de entidades privadas controladas por

Estados estrangeiros;4986. Expropriação.

Como se observa, apesar de o direito inglês não possuir uma forma sistematizada de

aplicar a disregard doctrine (a Rules of Civil Procedure, uma espécie de Código de Processo Civil

inglês, não faz qualquer referência à disregard doctrine), sua aplicação vem ocorrendo em casos

limitados e excepcionais, geralmente em relação a sociedades subordinadas.

4.5.3 Direito alemão

Inicialmente, deve-se ressaltar que nem todos os sistemas jurídicos atribuem personalidade

jurídica aos tipos de sociedades empresariais previstos na legislação. Conforme afirma Rubens

Requião, “na Alemanha e, posteriormente, na Itália, o direito positivo nega às sociedades

personalistas a qualidade de pessoa jurídica, que é atribuída por decreto às sociedades por

ações”.499

O direito alemão adota o sistema da civil law, e as regras do direito societário encontram-

se não apenas na legislação específica, mas também na legislação codificada. Os dois principais

códigos que regularam a atividade societária são o Código Civil (BGB) e o Código Comercial

(HGB), ambos em vigor desde o dia 1º de janeiro de 1900 (todavia, com várias alterações no

decorrer dos anos). As grandes empresas adotam a forma de sociedade anônima (AG), enquanto

que as médias e pequenas empresas constituem-se, normalmente, sob a forma de limitadas

(GmbH). A legislação alemã não recepcionou a teoria ultra vires, de modo que os atos praticados

pelo administrador vinculam a sociedade.500

Apesar de as primeiras aplicações da desconsideração da personalidade jurídica terem

ocorrido no direito da common law (Estados Unidos e Inglaterra), foi na Alemanha que, pela

primeira vez, a doutrina foi sistematizada através do jurista Rolf Serick, o qual elaborou (na

metade da década de 50) um estudo dogmático pioneiro a respeito da disregard doctrine,

498 Id. Ibid., p. 26. 499 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito..., p. 756. 500 CARVALHO, Lucila de Oliveira. Responsabilidade da sociedade limitada: atualizada de acordo com o novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 95-98.

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intitulado “Rechtsform und Ralität Juristicher Personen” (“Aparência e realidade nas sociedades

mercantis”), que ficou conhecido como a teoria unitarista da desconsideração.

Rolf Serick procurou sistematizar a disregard doctrine através de uma solução unitária,

atribuindo quatro princípios para aplicação da teoria: a) configura abuso quando, através da pessoa

jurídica, procura-se burlar uma lei, inadimplir obrigações contratuais ou prejudicar

fraudulentamente terceiros; b) não basta a simples insatisfação do credor; c) as normas que se

baseiam nas qualidades ou capacidades das pessoas físicas devem ser aplicadas às pessoas

jurídicas quando sua finalidade corresponda à desta classe de pessoas; d) desconsidera-se a pessoa

jurídica para aplicar as normas que a diferenciam dos entes.

Com estes princípios, Rolf Serick visou “preservar uma noção unitária da pessoa jurídica

de direito privado, abrangente das várias modalidades, de sorte a estabelecer princípios gerais que

claramente determinassem quais os casos em que se poderia ignorar o princípio da separação entre

pessoa jurídica e pessoa do sócio”.501 Neste sentido, afirma Rolf Serick:

Se se abusa de uma sociedade para fins alheios à sua razão de ser, a disregard doctrine evita que o

direito tenha que sancionar tão temerária empresa. Com isto, no fundo, não se nega a existência da pessoa jurídica, senão que se preserve na forma com que o ordenamento jurídico a tem concebido.502

Por outro lado, após Rolf Serick, outros juristas alemães trabalharam o tema da disregard

doctrine na Alemanha, valendo a pena destacar Rehbinder, Muller-Freienfels e Rudol Reinardt. O

primeiro apresentou três hipóteses de aplicação: a) a teoria unitarista; b) a baseada na

jurisprudência de interesses; c) a teoria institucional.503

Já Muller-Freienfels é defensor da “teoria dos centros de imputação”, hoje dominante na

Alemanha504, através da qual é de somenos importância a personalidade jurídica, devendo ser

analisada a finalidade na norma específica, vista no quadro da ordem jurídica, econômica e social

e seus princípios básicos.505 Se houver conflito de normas, deve prevalecer o interesse da lei em

atender à norma pública. Nas palavras de Calixto Salomão Filho, Esse posicionamento permite uma visão menos rígida da desconsideração, que passa a incluir não

apenas situações de fraude mas também, quando necessário, situações em que, à luz da importância e do objetivo da norma aplicável, é conveniente não levar em conta a personalidade jurídica. A desconsideração

501 RAMOS, Carmem Lucia Silveira Ramos. Op. cit, p. 193. 502 SERICK, Rolf. Aparencia y realidad em las sociedades mercantiles. Barcelona: Ariel, 1958, p. 242 (Apud: BANDEIRA, Gustavo. Op. cit., p. 52). 503 OLIVEIRA, José Lamartine Corrêa de. A Dupla crise..., p. 295-296. 504 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo..., p. 85. 505 RAMOS, Carmem Lucia Silveira Ramos. Op. cit., p. 193-194.

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não é, portanto, apenas uma reação a comportamentos fraudulentos, mas também uma técnica legislativa ou uma técnica de aplicação das normas (...) que permite dar valor diferenciado aos diversos conjuntos normativos.506

Destarte, na Alemanha prevalece também a separação entre a pessoa jurídica e a pessoa

dos sócios, todavia, se constatado o abuso na utilização da personalidade jurídica societária,

cabível será a desconsideração da personalidade jurídica.

4.5.4 Direito francês

No direito francês, tal como ocorre no brasileiro, existem sociedades com personalidade

jurídica e outras sociedades sem personalidade jurídica, e a responsabilidade dos sócios, nas

sociedades limitadas (S.A.R.L.), é limitada à sua contribuição para o capital.507 A personalidade

jurídica é adquirida com o registro de comércio, ou seja: Dès qu’elle est immatriculée au Registre du Commerce et des Sociétés, la société va bénéficier de

tous les avantages attachés à la qualité de personne juridique. La personnalité morale fonde son autonomie par rapport aux associés qui l´ont constituée: la société acquiert un intérêt propre (l’intérêt social) qui se distingue de l’intérêt individuel de chacun de ses associés.508

Quanto à desconsideração da personalidade jurídica, a Lei de 13 de julho de 1967 permite

que seja atingido o patrimônio do dirigente da pessoa jurídica, falida ou em concordata, quando

tenha agido de forma a obter benefício indevido. Por outro lado, o art. 99 da mesma lei faculta ao

juiz, em caso de falência ou de concordata na hipótese de restar insuficiente o ativo para pagar o

passivo, responsabilizar os dirigentes, no todo ou em parte, solidariamente ou não, pelo débito

falimentar.509

Ou seja, conforme comenta Luiz Roldão de Freitas Gomes, a jurisprudência francesa

acolhe a tese da “mise en écrit de la personne morale”, em que ora declara que a sociedade e a

506 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo..., p. 86. 507 A legislação francesa, em 1985 (Lei 85.697), passou a admitir a sociedade unipessoal de responsabilidade limitada (Entreprises unipersonalles à responsabilité limitée – E.U.R.L), assim como a sociedade agrícola de responsabilidade limitada (Exploitations agricoles à responsabilité limitée – E.A.R.L.). (Apud: CARVALHO, Lucila de Oliveira. Op. cit., p. 105). 508 JEANTIN, Michel. Op. cit., p. 89. Tradução na nota 289. 509 RAMOS, Carmem Lucia Silveira Ramos. Op. cit., p. 196.

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personalidade são puramente aparentes, fictícias, ou fraudulentas, ora, que a sociedade tem

existência certa, porém é controlada por certos dirigentes que detêm o seu poder econômico.510

João Casillo, comentando a doutrina de Jean Foyer (o qual levava em consideração

principalmente as relações econômicas entre sócio e pessoa jurídica, pois, quanto maior fosse a

participação do sócio nos lucros da empresa, maior seria o fundamento para a desconsideração),

assevera:

Não nos parece que seja a relação patrimonial (bens, lucros, dividendos etc.) entre sócio e sociedade que deva ser o fundamento da teoria da consideração, mas a própria maneira de utilização da pessoa jurídica, em desacordo com o fim a que se destina. (...)

Cabe, ainda, notar que a participação do sócio com seu capital não tem o caráter precário que pretende dar Foyer e nem mesmo se pode falar que o patrimônio da sociedade é patrimônio do sócio, pois basta ver que nada impede relações jurídicas entre sócio e sociedade, inclusive de transferência patrimonial.511

Como lembra Oksandro Gonçalves, a orientação de Jean Foyer está dissociada das

hipóteses clássicas da disregard doctrine (fraude e abuso de direito), não se podendo validar a tese

que pretende responsabilizar o dirigente por mero prejuízo ocasionado aos credores.512

4.5.5 Direito italiano

O direito italiano não possui uma lei especial para tratar das sociedades, as quais são

regidas pelo próprio Código Civil (arts. 2.472 a 2.497 para as limitadas, e 2.381 a 2.386, 2.388 a

2.396 e 2.334 para as anônimas).513

Na Itália, sobressai a doutrina do jurista Piero Verrucoli, catedrático de Pisa, que escreveu

em 1964 a obra “Il Superamento della Personalittà Giuridica delle Società di Capital nella

‘Common Law’ nella ‘Civil Law’”, no qual defendeu a superação da personalidade jurídica para

responsabilizar o sócio e atingir seu patrimônio pessoal.

Piero Verrucoli faz um comparativo entre os dois sistemas jurídicos (civil law e common

law), buscando fixar princípios básicos e gerais para ambos os sistemas no campo da

desconsideração. Neste sentido, leciona Luiz Roldão de Freitas Gomes:

510 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Desconsideração da personalidade jurídica. Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial. São Paulo, v. 12, n. 46, out./dez. 1988, p. 34. 511 CASILLO, João. Desconsideração... Revista dos Tribunais, p. 33-34. 512 GONÇALVES, Oksandro. Desconsideração..., p. 18. 513 CARVALHO, Lucila de Oliveira. Op. cit., p. 102.

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Numa visão comparatista do tema, expõe dever a superação dar-se em decorrência de: 1) direta realização de interesses do Estado (de natureza tributária, política, v.g., no atinente à nacionalidade da sociedade); 2) da repressão a fraudes; 3) também à fraude contratual; 4) da realização de interesses de terceiros, quando não milite fraude até o momento inicial da operação (constituição de sociedade; estipulação do contrato); 5) da realização dos interesses dos sócios ut singuli.514

Tullio Ascarelli, por sua vez, defendeu a personalidade jurídica da sociedade unipessoal e

da subsidiária integral, através das quais se daria um “negócio indireto”, ou seja, uma forma

encontrada pelas partes para alcançar finalidades diversas daquelas que lhes seriam atribuídas

normalmente. Com isso, Tullio Ascarelli sustenta que deveria ser examinado “o ato concretamente

realizado, para evitar uma utilização fraudulenta da sociedade em detrimento de acionistas ou

terceiros, ou para evitar a formação de monopólios”.515

Ainda, destaca-se na doutrina italiana o jurista Nicola Distaso, através da obra

“Superamento della persanalità giuridica nei casi di abuso della stessa e ordenamento giuridico

italiano”. Nicola Distaso, diferentemente de Tullio Ascarelli, sustenta que o superamento não

poderia ficar preso aos conceitos de negócio indireto ou simulação, necessitando de uma estrutura

própria, fundada na boa-fé e no combate ao abuso e à fraude, o que, no entanto, depende de uma

intervenção do legislador, problema enfrentado pelos países da civil law.

Neste sentido, João Casillo afirma que “isto se dá não só no sistema italiano, mas em todos

os sistemas que não têm a elasticidade da common law, isto se dá nos sistemas onde o juiz está

sempre preso à lei, quando a jurisprudência caminha a passos lentos”.516

Por fim, deve se destacar que o direito italiano “descartou-se da extensão da personalidade

jurídica às sociedades de pessoas. E é por isso que a monografia citada pelo Prof. Verrucoli alude,

tão-somente, ao superamento da personalidade jurídica nas sociedades por ações”.517

4.5.6 Direito português

No direito português, vale também a regra personificadora, segundo a qual “as sociedades

gozam de personalidade jurídica e existem como tais a partir da data do registro definitivo do

514 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Op. cit., p. 34. 515 RAMOS, Carmem Lucia Silveira Ramos. Op. cit., p. 196-197. 516 CASILLO, João. Desconsideração..., Revista dos Tribunais, p. 32. 517 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito..., p. 756.

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contrato pelo qual se constituem, sem prejuízo do disposto quanto à constituição de sociedades por

fusão, cisão ou transformação de outras”518 (art. 5º do Código das Sociedades Comerciais).

Nas sociedades limitadas, “só o patrimônio social responde para com os credores pelas

dívidas da sociedade, salvo o disposto no artigo antecedente” (art. 197, 3 do Código das

Sociedades Comerciais), da mesma forma que nas anônimas, onde “o capital é dividido em acções

e cada sócio limita a sua responsabilidade ao valor das acções que subscreveu”.519 (art. 271 do

Código das Sociedades Comerciais).

Segundo informa Luiz Antonio Soares Hentz, Portugal copiou o sistema francês de

“estabelecimento individual de responsabilidade limitada”, através do Dec.-lei 248/1986, para o

qual existe uma separação do patrimônio destinado para a atividade empresarial. Contudo, se o

patrimônio se confundir, a responsabilidade será ilimitada.520 Por outro lado, deixou a legislação

portuguesa de tratar diretamente da desconsideração, assim como também não adotou a teoria

ultra vires, vinculando a sociedade ao ato realizado pelo administrador.

Isso não impede, contudo, sua aplicação através da doutrina e da jurisprudência, valendo a

pena destacar, na obra de José Lamartine Corrêa de Oliveira, três pareceres da lavra de juristas

lusitanos (Ferrer Correia, Antunes Varela e Inocêncio Galvão Telles) que, de uma forma ou de

outra, tratam do tema da desconsideração, contudo, sua aplicação ainda é muito restrita na praxis.

4.5.7 Direito espanhol

No direito espanhol as sociedades limitadas foram disciplinadas apenas em 1953, enquanto

que as sociedades anônimas foram delimitadas em 1951. “Antes dessa primeira regulamentação,

havia grande incerteza sobre a natureza e caráter das sociedades limitadas e, portanto, do regime

jurídico aplicável, o que levou a jurisprudência a classificações diversas daquele tipo

societário”.521 Hoje em dia está em vigor uma lei de 1995 (nº 2), que disciplinou de forma

pormenorizada as sociedades de responsabilidade limitada.

Luiz Roldão de Freitas Gomes, citando o jurista Puig Brutau, informa que a doutrina da

disregard doctrine não foi objeto de aberta discussão, nem de positivação, razão pela qual coube

518 CUNHA, Paulo Moreira da. Código das sociedades comerciais anotado. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 1990, p. 61-62. 519 Id. Ibid., p. 210. 520 HENTZ, Luiz Antonio Soares. Op. cit., p. 111. 521 CARVALHO, Lucila de Oliveira. Op. cit., p. 106.

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aos precedentes jurisprudenciais oferecer o balizamento necessário sobre o tema.522 São comuns

casos como: a transferência do local de negócio; a sociedade unipessoal; a relatividade do

conceito de pessoa jurídica nas diferentes categorias societárias, a incongruência entre a estrutura

jurídica e a base econômica da sociedade e a nacionalidade das sociedades.

Segundo Fernando Sánchez Calero, a jurisprudência espanhola se baseia sobre três

princípios: atos efetuados em fraude; boa-fé; e exercício abusivo ou anti-social de direitos,523

contudo, a ausência de positivação da disregard doctrine acaba por dificultar bastante a aplicação

do instituto pela jurisprudência, o qual, muitas vezes, acaba julgando de forma eqüitativa,

provocando insegurança jurídica.524

4.5.8 Direito argentino

Na Argentina a disregard doctrine foi positivada muito antes do que no Brasil, datando de

1983 a reforma da Ley de Sociedades Comerciales que alterou o art. 54 e incluiu expressamente a

inoponibilidad de la personalidad jurídica societaria. Este artigo, porém, deve ser analisado

juntamente com o art. 2º do da mesma Lei, o qual preceitua que “la sociedad es un sujeto de

derecho con el ancance fijado en esta ley”. Como comenta Raúl Aníbal Etcheverry,

522 GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Op. cit., nota 3, p. 17-18. 523 CALERO, Fernando Sánchez. Instituciones de derecho mercantil. Madrid: McGraw-Hill, 1997, p. 229. (Apud: CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 133). 524 Neste sentido, dispõe Rafael Mariano Manóvil, comentando a jurisprudência “del Tribunal Supremo” da Espanha: “La extraordinaria dificultad que entraña la formulación de un criterio rector firme que indique en qué casos puede prescindir-se o no de la forma de la persona jurídica para aprehender la realidad que bajo la misma se oculta. Esta dificultad es fuente de incertidumbre, de la misma manera que aquel mal uso de un instrumento como la persona jurídica, cuando no responde a los fines que la informan, es origen de natural insatisfacción para los juristas (...) toda ponderación en esta materia ha de considerarse insuficiente. Los riesgos que amenazan la seguridad jurídica cuando se pierde el respeto a la figura formal de la persona colectiva para, ‘penetrando’ a través de ella, alcanzar a su patrimonio y a sus individuos, no pueden ser silenciados ni desconocidos. Cuando el derecho ofrece los cuadros de una institución y les atribuye unas determinadas consecuencias jurídicas, el daño que resulta de no respetar aquéllas, salvo casos excepcionales, puede ser mayor que el que provenga del mal uso que de las mismas se haga” (MANÓVIL, Rafael Mariano. Grupos de sociedades. Buenos Aires: Ad-Hoc, 1991, p. 970. Na tradução livre: “A dificuldade extraordinária que envolve a formulação de um critério reitor firme que indique em que casos pode-se prescindir ou não da forma da pessoa jurídica para empreender a realidade que atrás da mesma se esconde. Esta dificuldade é fonte de incerteza, da mesma forma que aquele mau uso de um instrumento como a pessoa jurídica, quando não responde aos fins que a informam, é origem de descontentamento natural para os juristas (...) toda ponderação neste assunto tem que se considerar insuficiente. Os riscos que ameaçam a segurança legal quando se perde o respeito à figura formal da pessoa coletiva para, 'penetrando' através dela, alcançar o seu patrimônio e dos seus indivíduos, não podem ser silenciados nem desconhecidos. Quando o direito oferece os retratos de uma instituição e lhes atribui determinadas conseqüências jurídicas, o dano que resulta de não se as respeitar, com exceção de casos excepcionais, pode ser maior do que o mau uso que é feito das mesmas”). (Apud: CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 133. ).

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154

Con esta regla, se quiso dar el primer paso legal que permitiera a nuestros jueces aplicar la doctrina de la penetración de la personalidad societaria, es decir, la desestimación de ésta por incumplirse – através de la sociedad personalizada – la licitud buscada por el ordenamiento en su pautación de conductas humanas.525

Ou seja, através do art. 2º da Ley de Sociedades Comerciales, é possível extrair a

separação entre a pessoa jurídica e seus membros, todavia, esta separação não é absoluta, pois

“cede en determinados supuestos”.526

E estas hipóteses de superação da personalidade jurídica encontram-se previstas no art. 54,

§ 3º da referida Lei, a qual dispõe: La actuación de la sociedad que encubra la consecución de fines extrasocietarios, constituya un

mero recurso para violar la ley, el orden público o la buena fe o para frustrar derechos de terceros, se imputará directamente a los socios o a los controlantes que la hicieron posibile, quienes responderán solidaria e ilimitadamente por los prejuicios causados.527

Anteriormente a positivação da disregard doctrine no direito argentino, o tema já era

tratado nos tribunais daquele país, “tanto en situaciones concursales como en juicios individuales;

también se había producido doctrina al respecto”528, o que autorizava a aplicação da disregard

doctrine “sobre la base de principios generales del derecho, lo cual no impide ponderar el avance

que implicó la específica normativa societaria con sus grandes virtudes”.529

Após a positivação, a jurisprudência argentina priorizou a aplicação da disregard doctrine

apenas nos casos excepcionalmente previstos na lei, conforme se depreende das seguintes

ementas: 525 ETCHEVERRY, Raúl Aníbal. Op. cit., p. 29. Na tradução livre: “Com esta regra, se pretendeu dar o primeiro passo legal que permitiu que nossos juízes aplicassem a doutrina da penetração da personalidade societária, ou seja, a desconsideração desta por não cumprir - através da sociedade personalizada - a licitude perseguida pelo ordenamento em sua regulação das condutas humanas”. 526 RAFFO, Francisco M. López. Op. cit., p. 83. 527 Na tradução livre: “À atuação da sociedade que esconde a realização de finalidades extra-societárias, constitui um mero recurso para violar a lei, a ordem pública, a boa-fé ou para frustrar direitos de terceiros, será imputada diretamente aos sócios ou aos controladores que fizeram isto possível, os quais responderão solidária e ilimitadamente pelos prejuízos causados”. Analisando o art. 54 da Lei das Sociedades Comerciais argentinas, Raúl Aníbal Etcheverry sustenta que “No fue la aceptación de la teoría del disregard of legal entity, ni la pretensión de establecer un ‘sistema’ de desestimación de la personalidad como estructura legal, lo que llevó a la normativa que integra el art. 54: simplemente atacó del modo más indirecto y suave posible, el tema que se iniciara con la creación del art. 2º de la Ley 19.550” (ETCHEVERRY, Raúl Aníbal. Op. cit, p. 30. Na tradução livre: “Não foi a aceitação da teoria da disregard of legal entity, nem a pretensão de estabelecer um 'sistema' de desconsideração da personalidade como estrutura legal, o que levou à norma que integra a art. 54: simplesmente atacou da maneira mais indireta e mais suave possível, o tema que começou com a criação da art. 2º da Lei 19.550”). 528 CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 109. Na tradução livre: “Tanto em situações coletivas como em julgamentos individuais; também se produzira doutrina a respeito.” 529 Id. Ibid., p. 109-110. Na tradução livre: “Respaldado em princípios gerais do direito, que não impede ponderar sobre o avanço que implicou a norma específica com as suas grandes virtudes”.

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1) La prescindencia de la persona jurídica sólo puede admitir-se de manera excepcional. Solamente cuando ha quedado configurado en abuso de la personalidad jurídica puede llegarse al resultado de equiparar a la sociedad con el socio y solo en esta hipótesis será lícito atravesar el velo de la personalidad para pactar la auténtica realidad que se oculta detrás de ella con la finalidad de corregir el fraude (LL, 1988-B-2147). 2) Los tribunales carecerán de la facultad de prescindir de la forma de la persona jurídica y de sus consecuencias que de ella resultan, excepto cuando han sido empleadas con fines reprochables por lo que la desestimación de la misma debe quedar limitada a casos concretos y verdaderamente excepcionales (CNCom, Sala B, 15/2/84, LL, 1987-A-659, 37.519-S). 3) La llamada ‘teoría de la penetración’ ha sido elaborada a propósito del uso desviado de la personalidad societaria, cuando prevaliéndose de dicha figura, se afectasen los intereses de terceros, de los mismos socios o los de carácter público (LL, 1989-A-977).530

Assim, sempre que a personalidade societária for utilizada de forma fraudulenta, com

simulação ilícita ou exercício abusivo do direito, para atingimento de fins extra-societários (com

vícios da figura societária), é possível aplicar, em caráter excepcional531 a regra geral da distinção

entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios, a inoponibilidad de la personalidad jurídica

societaria no direito argentino.532

4.5.9 Direito uruguaio

No direito uruguaio também existe a distinção entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios

(art. 78 do Código Civil), nos moldes do art. 20 do revogado Código Civil brasileiro de 1916.

Quanto a disregard doctrine, os uruguaios antecederam até mesmo os argentinos, tratando “de la

inoponibilidad de la personalidad jurídica”, hoje em dia, em capítulo próprio na Lei das

Sociedades Comerciais (Lei 16.060/1989), conforme se observa pelos artigos 189 a 191:

530 RICHARD, Efraín Hugo; MUIÑO, Orlando Manuel. Derecho societario. Sociedades comerciales, civil y cooperativa. 1. reimpresión. Buenos Aires: Astrea, 1998, p. 736-737. Na tradução livre: “1) A desconsideração da pessoa jurídica só pode ser admitida de modo excepcional. Somente quando restar configurado o abuso de a personalidade jurídica se pode chegar ao resultado de equiparar a sociedade com o sócio e só nesta hipótese será lícito atravessar o véu da personalidade para fazer aparecer a realidade autêntica que se esconde atrás dela com o propósito de corrigir a fraude (LL, 1988-B-2147). 2) Os tribunais abdicarão da faculdade de dispensar a forma da pessoa jurídica e das suas conseqüências que dela resultam, exceto quando for usada com fins reprováveis razão pela qual a desconsideração da mesma deve ser limitada aos casos concretos e verdadeiramente excepcionais (CNCom, B Salts, 15/2/84, LL, 1987-PARA-659, 37.519-S). 3) A chamada teoria da desconsideração foi elaborada diante do uso desviado da personalidade societária, quando aproveitando-se esta figura, forem afetados os interesses de terceiros, dos próprios sócios ou interesses de caráter público (LL, 1989-PARA-977)”. 531 Federico R. Highton ressalta a excepcionalidade na aplicação da disregard doctrine, pois “la desestimación de la forma de la persona jurídica debe quedar limitada a casos concretos verdaderamente excepcionales, pues cuando el derecho ofrece los cuadros de una institución y les atribuye determinadas consecuencias jurídicas, el dano que resulta de no respetar aquéllas, salvo casos excepcionales, puede ser mayor que el que provenga del mal uso que de ellas se haga” (HIGHTON, Federico R. Responsabilidad patrimonial solidaria de directores, administradores, síndicos y socios en las leyes de sociedades y concursos. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p. 33). 532 CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 116.

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DE LA INOPONIBILIDAD DE LA PERSONALIDAD JURÍDICA: Artículo 189. (Procedencia) - Podrá prescindirse de la personalidad jurídica de la sociedad,

cuando ésta sea utilizada en fraude a la ley, para violar el orden público, o con fraude y en perjuicio de los derechos de los socios, accionistas o terceros.

Se deberá probar fehacientemente la efectiva utilización de la sociedad comercial como instrumento legal para alcanzar los fines expresados. Cuando la inoponibilidad se pretenda por vía de acción, se seguirán los trámites del juicio ordinario.

Artículo 190. (Efectos) - La declaración de inoponibilidad de la personalidad jurídica de la sociedad, sólo producirá efectos respecto del caso concreto en que ella sea declarada. A esos efectos, se imputará a quien o a quienes corresponda, conforme a derecho, el patrimonio o determinados bienes, derechos y obligaciones de la sociedad. En ningún caso, la prescindencia de la personalidad jurídica podrá afectar a terceros de buena fe. Lo dispuesto se aplicará sin perjuicio de las responsabilidades personales de los participantes en los hechos, según el grado de su intervención y conocimiento de ellos.

Artículo 191. (Inscripción) - El Juez interviniente en un proceso en el cual se pretenda la prescindencia de la personalidad jurídica de una sociedad, ordenará, si correspondiera, la inscripción del testimonio de la pretensión en la Sección Reivindicación del Registro General de Inhibiciones, a los efectos previstos en el artículo 38 de la ley 10.793, de 25 de setiembre de 1946; sin perjuicio de otras medidas cautelares que pueda adoptar.533

Como se observa, a lei uruguaia é bastante ampla, abordando tanto a desconsideração da

personalidade jurídica ativa (em favor de terceiros credores), como também prevê a forma passiva,

ou seja, naqueles casos em que a desconsideração é solicitada pelos próprios sócios, acionistas e

em alguns casos, pela própria sociedade, para que a atuação indevida seja imputada diretamente às

pessoas que estão atuando sob a veste da personalidade jurídica para atingir fins extra-

societários.534

4.6 A responsabilidade dos sócios e administradores nas sociedades personalizadas e a teoria ultra vires

533 Na tradução livre: “A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA: Artigo 189. (Origem) – Poderá desconsiderar-se a personalidade jurídica da sociedade, quando esta for usada em fraude à lei, para violar a ordem pública, ou com fraude e em prejuízos aos direitos dos sócios, acionistas ou terceiro. Dever-se-á provar o uso efetivo da sociedade comercial convincentemente como instrumento legal para chegar aos fins expressados. Quando a desconsideração é buscada por via de ação, serão observados os requisitos do julgamento ordinário. Artigo 190. (Efeitos) - A declaração da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, só produzirá efeitos relativos ao caso concreto em que ela seja declarada. Para esses efeitos, será imputada a quem corresponda, de acordo com o direito, o patrimônio ou certos bens, direitos e obrigações da sociedade. Em nenhum caso, a manutenção da personalidade jurídica poderá afetar a boa-fé de terceiros. O disposto será aplicado sem prejuízo das responsabilidades pessoais dos participantes nos fatos, de acordo com o grau da sua intervenção e do conhecimento deles. Artigo 191. (Inscrição) - O Juiz condutor de um processo no qual se pretenda a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade, ordenará, se necessário, a inscrição da pretensão na Seção Reinvidicatória do Registro Geral de Inibições, para os efeitos previstos no artigo 38 da Lei 10.793, de 25 de setembro de 1946; sem prejuízo de outras medidas acautelatórias que possa adotar”. 534 RAFFO, Francisco M. López. Op. cit., p. 86.

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Como visto anteriormente, a personalização da sociedade implica a separação patrimonial

entre a pessoa jurídica e os seus membros, razão pela qual “as obrigações de um, portanto, não se

podem imputar ao outro. Desse modo, a regra é a da irresponsabilidade dos sócios da sociedade

limitada pelas dívidas sociais. Isto é, os sócios respondem apenas pelo valor das quotas com que

se comprometeram no contrato social. É esse o limite de sua responsabilidade.”535

Assim, sempre que a responsabilidade puder ser direta e pessoal, sem necessidade de se

recorrer à separação patrimonial existente entre a sociedade e os sócios ou administrador, não se

poderá utilizar a disregard doctrine, haja vista que a responsabilização pessoal dos

administradores é tratada no Direito societário através de disposição própria, que não se confunde

com os atos praticados indevidamente pela pessoa jurídica.

Neste contexto, Trajano de Miranda Valverde observa que nas sociedades com

responsabilidade limitada, os sócios-gerentes não respondem pessoalmente pelas obrigações

contraídas em nome da sociedade. Respondem, porém, para com esta e para com terceiros,

solidária e ilimitadamente, pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do

contrato ou da lei.536

Fábio Tokars trata da responsabilidade dos administradores através de cinco hipóteses: 1)

responsabilidade pelas dívidas sociais; 2) responsabilidade pessoal por atos ilícitos; 3)

responsabilidade por atos ultra vires; 4) responsabilidade por débitos tributários e previdenciários;

5) responsabilidade por danos ambientais.537

Antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002, a responsabilidade do pessoal na

sociedade limitada era regida pelo art. 10 do Decreto 3.708/19,538 onde os sócios não respondiam

pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, ressalvado o excesso de mandato e a violação

do contrato ou da lei. Tal dispositivo encontrava “respaldo doutrinário em França, onde foram

instituídas as teorias do ‘excès de pouvoir’ (excesso de poder) e ‘détournement de pouvoir’

(desvio de poder)”.539

535 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade..., p. 4. 536 VALVERDE, Trajano de Miranda. Comentários à lei de falências. 4. ed. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999, v. 1, p. 121. 537 TOKARS, Fábio. Sociedades... p. 276. 538 “Os sócios-gerentes ou que derem nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem para com esta e para com terceiro solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei”. 539 CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Sociedade limitada no novo Código Civil. São Paulo: Atlas, 2003, p. 147.

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Contudo, o Código Civil de 2002 alterou a responsabilidade dos administradores sociais,

estabelecendo uma solidariedade entre os administradores em relação à sociedade e a terceiros,

desde que atuem com culpa ou dolo no exercício de suas funções dentro da sociedade, nos termos

do art. 1.016 do Código Civil: “Os administradores respondem solidariamente perante a sociedade

e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções”.540

Outra inovação no âmbito da responsabilidade dos administradores introduzida pelo

Código Civil decorre da regra do art. 1015,541 que trata dos atos de gestão dos administradores. Na

vigência do Decreto 3.708/19, a sociedade respondia solidariamente com o administrador nos atos

realizados dolosamente, com excesso de mandato, por violação ao contrato ou à lei. No entanto, o

Código Civil de 2002 alterou significativamente o trato da matéria, abandonando a construção

doutrinária e jurisprudencial que já se encontrava estabelecida542, procurando implantar a já

superada teoria ultra vires543no direito brasileiro.

540 Conforme relata Arnoldo Wald, o art. 1.016 do Código Civil brasileiro encontra semelhança com o art. 2.260 do Código Civil italiano, o qual preceitua: “Gli amministratori sono solidalmente responsabili verso la società per l’adempimento degli obblighi ad esse imposti dalle legge e dal contratto sociele. Tuttavia la responsabilità non si estende a quelli che dimostrino di essere esenti da colpa” (WALD, Arnoldo. Comentários..., p. 188. Na tradução livre: “Os administradores são solidariamente responsáveis em relação à sociedade pelo cumprimento das obrigações a eles impostas pelas leis ou pelo contrato social. Não obstante a responsabilidade não é estendida àqueles que demonstrem estar isentos de culpa”). 541 Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir. Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II - provando-se que era conhecida do terceiro; III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. 542 Rubens Requião, ao comentar o Projeto do Código Civil, já sustentava este posicionamento: “O Projeto, como se percebe, abandonou a construção doutrinária e jurisprudencial, elaborada por nossos juristas e pelos tribunais, para se inspirar na lei italiana (...) é exigir demais que no âmbito do comércio, onde as operações se realizam em massa, avessas ao formalismo, que, a todo instante, o terceiro que contrata com uma sociedade solicite desta a exibição do contrato social, para verificação dos poderes do gerente. A doutrina que dá validade a tal cláusula é evidentemente contrária às tendências e espírito do direito comercial” (REQUIÃO, Rubens. Aspectos Modernos..., p. 244). 543 Por teoria ultra vires, entende-se que são nulos os atos praticados pela sociedade que não estiverem em consonância com seu objeto social, pois, nesta hipótese, considera-se que a sociedade não teria capacidade legal para praticar o negócio jurídico. Conforme relata Manoel de Queiroz Pereira Calças, “a doutrina ultra vires vem, gradativamente, deixando de ser aplicada regidamente na Inglaterra [onde se originou] e nos demais países de origem britânica, em face da tutela dos interesses dos terceiros de boa-fé, bem como em razão da segurança das relações jurídicas” (CALÇAS, Manoel de Queiroz Pereira. Op. cit., p. 151).

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Com efeito, o art. 1.015 do Código Civil de 2002544 passa a admitir que a sociedade se

exima da responsabilidade pelos atos realizados pelos administradores, nas hipóteses descritas nos

incisos I a III. Disso decorrem dois entendimentos: 1º) que a teoria ultra vires “serve para a

proteção dos interesses dos acionistas”, pois “eles têm o direito de esperar que não sejam os

poderes ultrapassados e a sociedade seja responsabilizada por atos sem relação com o objeto para

o qual ela foi fundada”.545 2º) que a teoria ultra vires certamente provocará insegurança jurídica

nas obrigações contraídas pelas sociedades, haja vista que não era admitida pelo direito positivo.

Por certo, nas práticas comerciais do dia-a-dia (salvo exceções), não se costuma consultar

o contrato social para verificar os poderes dos administradores nem a atividade social (fim) da

sociedade. É que a boa-fé objetiva, como princípio geral de direito, devidamente

instrumentalizada no Código Civil brasileiro546, deve prevalecer como forma de orientação ética

nas relações jurídicas interprivadas. Em razão disso, não se mostra mais possível hodiernamente

privilegiar a atuação fraudulenta e de má-fé, esquivando a sociedade de cumprir suas obrigações

contraídas por seus administradores, apenas em razão da ausência de poderes específicos para

tanto.

Esta pendenga não pode ser extraída das relações internas da sociedade (interna corporis),

prejudicando terceiros (credores) e enfraquecendo as próprias relações jurídicas firmadas com

uma sociedade. Em razão disso, não obstante a positivação da previsão legal em comento, deve

prevalecer na jurisprudência o entendimento até então vigente, responsabilizando a sociedade

pelos atos de seus representantes legais, cabendo, pois, à sociedade buscar o ressarcimento junto

ao seu administrador em ação de regresso.

Por outro lado, não se deve entender que a responsabilidade é objetiva547 ou solidária entre

todos os administradores, pois a solidariedade deve ser analisada de acordo com o tipo de

544 Art. 1.015: No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir. Parágrafo único: O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses: I – se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade; II – provando-se que era conhecida do terceiro; III – tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade. 545 ABRÃO, Carlos Henrique. Penhora das quotas de sociedade de responsabilidade limitada. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 56-57. 546 A boa-fé é citada quarenta e oito vezes no Código Civil de 2002, servindo de norte para as mais variadas espécies de relações sociais e patrimoniais reguladas pelo Código que regula as relações jurídicas privadas no Brasil. 547 Conforme dispõe Lucíola Fabrete Lopes Nerilo, “a responsabilidade subjetiva exige que o comportamento do agente tenha sido culposo ou doloso; só a partir deste pressuposto é que nasce a obrigação de indenizar” (NERILO, Lucíola Fabrete Lopes. Responsabilidade civil dos administradores nas sociedades por ações. Curitiba: Juruá, 2002, p. 92).

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administração (disjuntiva ou conjunta), conforme previsão no contrato social. Destarte, para

responsabilização dos administradores em face do art. 1.016 do Código Civil (culpa), é necessária,

para verificação da culpa, a análise concreta de suas modalidades (imprudência, imperícia,

negligência in vigilando ou in eligendo), além da ocorrência de prejuízos à sociedade ou a

terceiros, hipótese em que responderão pessoalmente pelos danos causados.

Ademais, não se pode perder de vista que, uma vez regularmente constituída a sociedade e

inscrito o ato constitutivo no registro (art. 45 CC), o administrador, no exercício regular de suas

funções, não responde pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da empresa.

No entanto, os preceitos gerais incorporados pela Lei das Sociedades Anônimas

(diligência, lealdade e informação – transparência) foram igualmente incorporados ao Código

Civil de 2002, na parte em que trata da sociedade simples (arts. 1.011, 1.016 e 1.017 CC), os

quais, por remissão ao art. 1.053 do Código Civil, podem ser aplicados como dever geral de

conduta às sociedades limitadas.

Em razão disso, para Carlos Celso Orcesi da Costa, os administradores devem “se

comportar conforme o padrão médio do diligens pater famílias, aquele razoável modo de proceder

que qualquer pessoa interessada assumiria ao dirigir semelhante empreitada. Dever-ser de

diligência e lealdade que acresce na limitada, porque se trata de atividade baseada na cooperação

dos sócios.”548

De tal responsabilidade sobressai o paradigma do administrador diligente, ou seja, aquele

com comportamento profissional ilibado549, já que, quando o administrador lesar a sociedade por

ausência de cumprimento dos deveres de diligência (art. 1.011, CC) e lealdade, além de ser

destituído do cargo, responderá à ação indenizatória proposta pela sociedade e/ou por terceiros

que se sintam prejudicados.

No âmbito das sociedades anônimas, Modesto Souza Barros Carvalhosa distingue a

obrigação de meio da obrigação de resultado, ao comentar o art. 158 da Lei das Sociedades

Anônimas:

548 COSTA, Carlos Celso Orcesi da. Op. cit., p. 223. Para Waldirio Bulgarelli, a regra do bonus pater famílias “é regra típica do mandato, não se coadunando com a concepção de órgão, e também é totalmente inócua em termos de eficiência, pois se o administrador cuidar mal dos seus negócios, não se quer que da mesma forma aja com a companhia” (BULGARELLI, Waldirio. Manual das sociedades anônimas..., p. 160). 549 COELHO, Fábio Ulhoa. A sociedade limitada..., p. 52.

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Essa matéria é relevante, pois há uma tendência de se argüir a responsabilidade dos administradores pelos insucessos da companhia, decorrentes da política e dos métodos administrativos adotados, ou ainda por erro de avaliação mercadológica ou de investimentos. Nesses casos não se configura responsabilidade.

É hoje pacífico em nosso direito a distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado. Assim, há certas obrigações cujo conteúdo consiste na atividade ou na conduta do administrador dirigidas a um determinado resultado almejado. Esse resultado, no entanto, não cria para o administrador vínculo obrigacional. Suas obrigações na gestão e representação da companhia são de meio.550

Com efeito, o Código Civil de 2002 também estabelece a responsabilidade do

administrador que participar da distribuição de lucros ilícitos ou fictícios (art. 1.009, CC), ou

quando realizar operações sabendo ou devendo saber que estava agindo em desacordo com a

vontade da maioria (art. 1.013, § 2º, CC). Responde o administrador, igualmente, sempre que

restar comprovada a culpa551 no desempenho de suas funções (art. 1.016, CC) ou quando se

apropriar de bens ou créditos sociais em benefício próprio ou de terceiros, sem o consentimento

escrito dos sócios (art. 1.017, CC).

Nas sociedades anônimas, onde, via de regra, existe uma grande estrutura administrativa

para gerir o interesse de dezenas de acionistas, os deveres dos administradores sempre foram

devidamente destacados dos deveres dos acionistas (arts. 153 a 157, LSA), tendo como baliza,

segundo Marcia Carla Pereira Ribeiro, os seguintes princípios: i) dever de diligência; ii) dever de

lealdade; e iii) dever de informar. A partir destes princípios, é possível extrair: iv) dever de não

agir em conflito de interesses com a sociedade, bem como o de v) agir conforme as atribuições

que lhe foram conferidas e confiadas pela lei e pelo estatuto social da empresa.552

Destarte, ainda que a sociedade anônima esteja regularmente constituída, o administrador

que não cumprir os deveres supra elencados, responde civilmente pelos prejuízos que causar à

companhia, sempre que restar configurada culpa ou dolo nos atos de gestão e representação

praticados (art. 158 LSA).553

4.7 Aspectos processuais da disregard doctrine

550 CARVALHOSA, Modesto Souza Barros. Comentários..., v. 3, p. 315. 551 É o caso de responsabilidade aquiliana, onde a prova de responsabilidade do administrador no evento danoso é requisito essencial para responsabilizá-lo pessoalmente por agir abusivamente ou ilicitamente. Neste sentido: AQUINO, Diva Carvalho de. Op. cit., p. 409. 552 RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Reforma..., p. 144-151. 553 No sentido de ser necessária a demonstração da culpa ou dolo do diretor de sociedade anônima por prejuízo decorrente de negócio da sociedade, vale a pena conferir a seguinte decisão: TJSP, 4. CC, AC n. 174.723, j. em 31.7.1969, rel. Des. Carvalho Neves, v.u., RT 410/156-157.

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162

A disregard doctrine no direito brasileiro não está devidamente regulamentada no contexto

processual, haja vista que as previsões legais existentes (art. 50, CC, art. 28, CDC, art. 18 da Lei

Antitruste, art. 4º da Lei Ambiental) abordam apenas a questão material, deixando de lado a forma

como se deve proceder nas hipóteses de desconsideração da personalidade jurídica societária.554

Em razão disso, em que pese o esforço da jurisprudência e da doutrina na delimitação de

algumas balizas necessárias para que a desconsideração seja posta em prática no processo judicial,

existem posicionamentos que admitem tanto a possibilidade do reconhecimento incidental

(independentemente de processo autônomo),555 no curso do processo de execução de título

extrajudicial, de execução de sentença, em despacho interlocutório em processo de falência556 ou

insolvência, como até mesmo posições diametralmente opostas, somente admitindo a

desconsideração em processo de conhecimento, fruto de uma ação autônoma557, dirigida tanto

contra a sociedade como contra o sócio (sócios, administradores, sociedades coligadas etc.).558

4.7.1 Do sujeito passivo

554 Não obstante isso, existem projetos de lei em andamento que visam estabelecer a necessária regulamentação da disregard doctrine no direito brasileiro. 555 CIVIL. LOCAÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONFUSÃO PATRIMONIAL. CABIMENTO. SÚMULA 7/STJ. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL. COTEJO ANALÍTICO. FALTA. SIMILITUDE FÁTICA. FALTA. I - A aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica dispensa a propositura de ação autônoma, podendo ser concedida incidentalmente no próprio processo de execução desde que verificados os pressupostos de sua incidência. Precedentes. [...] (STJ, AgRg no REsp 798.095/SP, Rel. Min. Felix Fischer, Quinta Turma, j. em 06.06.2006, DJ 01.08.2006, p. 533). 556 FALÊNCIA – EXTENSÃO DOS SEUS EFEITOS ÀS EMPRESAS COLIGADAS – TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – POSSIBILIDADE – REQUERIMENTO – SÍNDICO – DESNECESSIDADE – AÇÃO AUTÔNOMA – PRECEDENTES DA SEGUNDA SEÇÃO DESTA CORTE. [...] II – A providência prescinde de ação autônoma. Verificados os pressupostos e afastada a personificação societária, os terceiros alcançados poderão interpor, perante o juízo falimentar, todos os recursos cabíveis na defesa de seus direitos e interesses (STJ, REsp 228.357/SP, Rel. Min. Castro Filho, Terceira Turma, j. em 09.12.2003, DJ 02.02.2004, p. 332). 557 AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO POR QUANTIA CERTA CONTRA DEVEDOR SOLVENTE – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – COMPROVAÇÃO INEXISTENTE – NECESSÁRIA INSTAURAÇÃO DE PROCESSO COGNITIVO – RECURSO PROVIDO – Para a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, por ser medida excepcional, possibilitando a penhora de bens particulares dos sócios, é indispensável a dilação probatória pela propositura de processo de conhecimento, no qual se busca comprovar que os sócios agiram, alternativamente, com abuso de direito, desvio de poder, fraude à Lei, violação aos estatutos ou ao contrato social ou em palmar prejuízo a terceiros (TJSC, AI 2005.014928-0, Caçador, 3. CDCom., Rel. Des. Fernando Carioni, j. em 03.11.2005). 558 “Ora, se é assim, o juiz não pode desconsiderar a separação entre a pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios ou seus controladores” (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 56).

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A prática cotidiana (praxis) demonstra que a ação é ajuizada contra a pessoa jurídica, e,

após o credor ver frustrado o recebimento do seu crédito pela inexistência de bens da sociedade

(independentemente da constatação dos requisitos da “teoria maior” descrita por Fábio Ulhoa

Coelho), formula requerimento para que seja desconsiderada a personalidade jurídica societária

para atingimento dos bens dos sócios ou administradores.

Segundo Fábio Ulhoa Coelho, feita a constatação dos requisitos que autorizam a

desconsideração da personalidade jurídica societária (seja pela “teoria maior”, seja pela “teoria

menor”), o processo deveria ser julgado extinto contra a sociedade, sem julgamento de mérito,

sendo “inafastável a exigência de processo de conhecimento de que participe, no pólo passivo,

aquele cuja responsabilização se pretende, seja para demonstrar sua conduta fraudulenta (...), seja

para condená-lo, tendo em vista a insolvabilidade da pessoa jurídica (...)”.559

Hipótese diversa, para o mesmo autor, ocorre quando desde logo o credor da sociedade

verifica as hipóteses da disregard doctrine, quando então a demanda deverá ser ajuizada tanto

contra a sociedade, como contra o agente que perpetrou a fraude na manipulação da personalidade

jurídica, através do litisconsórcio passivo.560

Por outro lado, Fábio Tokars afirma que, mesmo quando o credor tenha fundadas razões

que legitimem a disregard doctrine, não se justifica a inclusão, desde logo, dos sócios no pólo

passivo da ação, pois “a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica é apenas uma

expectativa de direito (...), de forma que, se os sócios foram de início incluídos no pólo passivo da

execução, estará configurada a ilegitimidade passiva destes”.561

O Superior Tribunal de Justiça possui uma decisão exatamente no sentido da doutrina de

Fábio Tokars, conforme se observa pela seguinte ementa:

PROCESSO CIVIL. PESSOA JURÍDICA. DESPERSONALIZAÇÃO. A despersonalização da

pessoa jurídica é efeito da ação contra ela proposta; o credor não pode, previamente, despersonalizá-la, endereçando a ação contra os sócios. Recurso especial não conhecido. (STJ, REsp 282266/RJ, Rel. Min. Ari Pargendler, Terceira Turma, j. em 18.04.2002, DJ 05.08.2002, p. 328)

Desta forma, tendo o sócio sido incluído indevidamente no pólo passivo da inicial, para

execução de título subscrito pela pessoa jurídica, pode pleitear, ab initio, sua exclusão da lide, pois

ausentes os requisitos necessários para regular processamento do feito. Tal exclusão, conforme já

559 Id. Ibid., p. 57. 560 Id. Ibid., p. 56. 561 TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 467.

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decidiu o Superior Tribunal de Justiça, pode ser requerida inclusive através da exceção de pré-

executividade (objeção de pré-executividade), conforme se observa:

RECURSO ESPECIAL – DÍVIDA DE SOCIEDADE LIMITADA – EXECUÇÃO FRUSTRADA –

REDIRECIONAMENTO AOS BENS DE SÓCIO – ARTS. 592, II, E 596 DO CPC – RESPONSABILIZAÇÃO SECUNDÁRIA, OU SUBSIDIÁRIA, QUE EXIGE SITUAÇÃO ESPECÍFICA, PREVISTA EM LEI – 1. Normalmente, os bens do sócio não respondem por dívidas da sociedade. 2. Apenas em casos previstos em Lei deve ser aplicada a responsabilização secundária, ou subsidiária, estabelecida nos arts. 592, II, e 596 do CPC. 3. Tais artigos contêm norma em branco, vinculada a outro texto legal. Não podem - E não devem - Ser aplicados de forma solitária. Por isso é que em ambos existe a expressão "nos termos da Lei". 4. A desconsideração da personalidade jurídica é artifício destinado à profilaxia e terapêutica da fraude à Lei. (STJ, RESP 401081/TO, 3. T., Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 15.05.2006, p. 00200)

Na motivação do acórdão, concluiu o Min. Humberto Gomes de Barros:

Se o Tribunal de origem afastou expressamente a desconsideração, nada justifica a manutenção do recorrente no pólo passivo da execução. Em verdade, o redirecionamento indevido ocorreu com base em simples petição (fl. 25), sem qualquer argumento, por menos robusto que fosse, da exeqüente. Dou provimento ao recurso especial para restabelecer a decisão de 1º grau, que acolheu a exceção de pré-executividade, e excluir o recorrente da execução movida pela recorrida. Deixo em aberto a possibilidade de se comprovar a fraude capaz de levar à desconsideração da personalidade jurídica.

Com efeito, a visão moderna do processo civil impede que a técnica processual sirva como

obstáculo para obstruir o pleno exercício do direito das partes. O processo civil deve servir para a

efetividade do processo, relacionada, diretamente, à eficácia do provimento jurisdicional. Por

outro lado, também não se pode ignorar o processo, violando direitos constitucionais previstos no

art. 5º (como garantias fundamentais estabelecidas pela Constituição da República), tal como os

princípios do contraditório e da ampla defesa (inciso LV), do devido processo legal (inciso LIV)

etc.562

Como visto, a ausência da devida regulamentação processual da disregard doctrine no

direito brasileiro provoca os mais variados entendimentos doutrinários e jurisprudenciais, trazendo

insegurança jurídica e provocando, até mesmo, o descrédito da teoria da desconsideração da

personalidade jurídica.

Desta forma, em que pese às divergências sobre o tema, pactuamos do entendimento de

que a desconsideração não pode ser previamente levada a efeito pelo credor, sendo o momento 562 Sobre a necessidade de se observar o devido processo legal na disregard doctrine, o Ministro José Delgado do STJ já se pronunciou: “[...] A desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que só pode ser decretada após o devido processo legal, o que torna a sua ocorrência em sede liminar, mesmo de forma implícita, passível de anulação. [...] (STJ, AgRg no REsp 422583/PR, Rel. Min. José Delgado, Primeira Turma, j. em 20.06.2002, DJ 09.09.2002, p. 175).

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adequado para se analisar seus pressupostos na fase de execução (extrajudicial ou judicial) e/ou

insolvência (falência), quando, na hipótese de não existirem bens da sociedade para saldar o

débito (já que, caso a sociedade possa suprir o credor com seus próprios bens, não faz diferença se

houve ou não, manipulação da personalidade jurídica, pois tal fato deverá ser apurado apenas

interna corporis), e, verificados os requisitos legais da sua aplicação, direcionar a execução contra

os bens dos sócios, administradores ou terceiros, através de decisão judicial, devidamente

fundamentada.563

No entanto, como adverte Fábio Tokars, tal não poderá ocorrer automaticamente,

penhorando-se, desde logo, os bens particulares das pessoas que estão utilizando indevidamente

da personalidade jurídica societária. Ou seja, imperiosa a observância do art. 214 do Código de

Processo Civil, na medida em que é inválido o processo que não observa a citação do réu.564

Destarte, antes de qualquer providência restritiva sobre o patrimônio do sócio, deve ser

oportunizada a citação do mesmo, a fim de que possa tomar ciência do processo e oferecer defesa.

Se for uma execução de título extrajudicial, poderá opor embargos no prazo de quinze dias

contado da juntada do mandado de citação aos autos (art. 738 CPC). Se for uma execução de título

judicial (cumprimento de sentença), poderá oferecer impugnação no prazo de quinze dias (contado

da penhora – art. 475-J, § 1º CPC). No entanto, em ambos os casos, caberá exceção de pré-

executividade (objeção de pré-executividade), diante da nulidade absoluta do processo em relação

a quem não é parte.

4.7.2 Da fundamentação da decisão judicial que aplica a disregard doctrine

Por outro lado, anteriormente à vigência do Código Civil de 2002, existia certa

controvérsia quanto à possibilidade de a disregard doctrine ser aplicada ex officio pelo

magistrado. Contudo, após a previsão do art. 50 do Código Civil, a controvérsia até então

563 O Tribunal de Justiça do Paraná já anulou decisão judicial que aplicou a disregard doctrine sem a devida fundamentação: AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – MEDIDA EXCEPCIONAL – AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE DETERMINA A CITAÇÃO – NULIDADE RECONHECIDA E DECRETADA – RECURSO CONHECIDO E PROVIDO – 1. É preceito constitucional que todas as decisões judiciais têm que ser fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX da CF/88). 2. É nula a r. decisão singular imotivada que, no processo executivo, por simples despacho, determina a citação do sócio da empresa devedora, não apontando os atos abusivos ou fraudulentos praticados pelo mesmo, como integrante daquela pessoa jurídica (TJPR, AI 0307186-9, 13. CC, Rel. Des. Milani de Moura, j. em 22.03.2006). 564 TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 467-468.

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existente perdeu força, na medida em que “pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do

Ministério Público quando lhe couber intervir no processo.” Ou seja, deve existir um requerimento

da parte ou do Parquet para que a tutela jurisdicional seja prestada pelo Juízo condutor do

processo.

Neste sentido se pronunciou o Tribunal de Justiça do Paraná, conforme ementa elaborada

pelo Des. Milani de Moura: APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR FURTO DE VEÍCULO EM

ESTABELECIMENTO COMERCIAL - EMBARGOS À EXECUÇÃO - PENHORA DE BENS PARTICULARES DO SÓCIO - DESCONSIDERAÇÃO DA PESSOA JURÍDICA - MEDIDA EXCEPCIONAL QUE EXIGE PROVA DO ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA (DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO PATRIMONIAL) - AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO "DECISUM" QUE AUTORIZA A CONSTRIÇÃO - NULIDADE - DESRESPEITO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL - APELO CONHECIDO E PROVIDO. 1. É preceito constitucional que todas as decisões judiciais têm que ser fundamentadas, sob pena de nulidade (art.93, IX da CF/88). 2. Em não sendo motivada, é nula a r. decisão singular que permite a constrição dos bens do sócio, sem apontar os atos abusivos ou fraudulentos praticados por este, como integrante da pessoa jurídica. 3. Por se tratar de medida excepcional à regra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, exige-se decisão fundamentada do órgão julgador, não se admitindo o acolhimento e aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma tácita. Os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros devem estar demonstrados de forma inequívoca, tudo sob o crivo do devido processo legal (TJPR, AC 143.707-0, 6. CC, Rel. Des. Milani de Moura, j. em 29/09/2004, DJ 18/10/2004, p. 149).565

Na motivação do acórdão, continua o desembargador relator:

No caso dos autos, observa-se às fl. que a r. decisão singular que permitiu a penhora de bens de

propriedade exclusiva do sócio [...], ora apelante, não conta com o mínimo teor de fundamentação. Verifica-se, a contrario sensu, que o r. despacho que permitiu a expedição de carta precatória para a

constrição dos bens do apelante consiste em mero carimbo, sem qualquer apreciação acerca de eventual fraude ou ato ilícito praticado pelo sócio no intento de prejudicar o direito do credor.

Ora, é preceito constitucional que todas as decisões judiciais têm que se fundamentadas, sob pena de nulidade (art. 93, IX da CF/88).

Assim, é nula porque imotivada, a r. decisão que permite a constrição dos bens do sócio sem apontar os atos abusivos ou fraudulentos praticados por ele como integrante da pessoa jurídica.

No caso em exame, por se tratar de medida excepcional à regra da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, exige-se do órgão julgador, como já enfatizado, decisão fundamentada, não se admitindo o acolhimento e aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de forma tácita, do modo como ocorreu nos autos.

Os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros devem estar demonstrados de forma inequívoca, tudo sob o crivo do devido processo legal.

Não há dúvida que nesta esteira, a decisão não fundamentada que restringe direito do indivíduo, configura violação ao devido processo legal.566

565 RT 832/329. 566 RT 832/331.

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Destarte, imperiosa é a motivação da decisão judicial que aplica a teoria da disregard

doctrine, sobretudo porque é necessário abstrair os requisitos encontrados pelo magistrado para

possibilitar o exercício de defesa da pessoa atingida pela decisão.

4.7.3 Dos recursos cabíveis contra a decisão

Por fim, para análise do recurso cabível em razão da decisão que determina a

desconsideração da personalidade jurídica, é necessário analisar a situação processual do sócio ou

administrador atingido. Se já for parte no processo, caberá recurso de agravo de instrumento ou

até mesmo embargos à execução.567 Todavia, se não for parte e, desde logo, for atingido pela

constrição de seus bens pessoais em processo onde figura como devedora a pessoa jurídica, poderá

tanto opor embargos de terceiro (art. 1.046, CPC), como agravo de instrumento na qualidade de

terceiro interessado (art. 499, CPC).

No que toca à primeira hipótese (embargos de terceiro), existe farta jurisprudência

admitindo a sua interposição pelo terceiro prejudicado (vg., sócio, administrador).568

Por outro lado, hipótese controvertida emerge quando a própria sociedade opõe embargos

de terceiro diante da penhora de quota social de sócio, sobre o fundamento de que, apesar de a

quota pertencer ao sócio, constitui um direito sobre o patrimônio da sociedade. Neste sentido, vale

a pena conferir os seguintes precedentes: Art. 1.046:1. ‘Representando as cotas os direitos do cotista sobre o patrimônio da sociedade, a

penhora que recai sobre elas pode ser atacada pela sociedade via embargos de terceiro’ (RSTJ 62/250) Sociedades cooperativas. Embargos de terceiro. Legitimidade ativa. Possibilidade de penhora das

quotas de capital. 1. Já assentou a jurisprudência das duas Turmas que compõem a Seção de Direito Privado desta Corte, que a sociedade tem legitimidade ativa para opor embargos de terceiros com o objetivo de afastar a penhora incidente sobre as quotas de sócio. 2. Recurso especial conhecido e provido. (STJ, REsp 285735/MG, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, j. em 20.08.2001, DJ 01.10.2001, p. 210)

567 PROCESSUAL CIVIL – CIVIL – LOCAÇÃO – DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA – INCLUSÃO DOS SÓCIOS NO PÓLO PASSIVO DA EXECUÇÃO – EMBARGOS DE TERCEIROS – NÃO CABIMENTO – PRECEDENTES – AUSÊNCIA DE CONDUTA CULPOSA POR PARTE DO SÓCIO MINORITÁRIO – 1. Havendo desconsideração da personalidade jurídica, os sócios passam a ser parte no processo de execução, pelo que se mostra cabível o oferecimento de embargos do devedor, e não de terceiros. Precedentes. [...] (STJ, AGRAGA 200500162032 (656172 SP), 5. T. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, DJU 14.11.2005, p. 383). 568 APELAÇÃO CÍVEL – EMBARGOS DE TERCEIRO – PENHORA DE BENS DO SÓCIO – IMPOSSIBILIDADE – RECURSO NÃO PROVIDO – A desconsideração da personalidade jurídica só deve ocorrer nos casos de abuso da personalidade jurídica ou confusão patrimonial, segundo regra do artigo 50 do Código Civil. Recurso não provido (TJPR, AC 0298848-3, Curitiba, Rel. Des. Dimas Ortencio de Mello, j. em 08.02.2006).

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Art. 1.046:3. ‘É legítima a sociedade comercial para opor embargos de terceiro visando desconstituir penhora incidente sobre cotas sociais’ (STJ-RT 727/135).569

A questão envolvendo a penhora de quotas já suscitou muita controvérsia doutrinária e

jurisprudencial, sobretudo porque, nas sociedades de pessoas, onde a affectio societatis aflora

como um dos principais requisitos para o bom relacionamento entre os sócios, a entrada de um

sócio estranho ao quadro social, certamente provocaria a desestabilização da estrutura societária.

Por outro lado, nas sociedades por ações (onde a affectio societatis é baixa), a substituição de um

sócio por outro, em regra (v.g., sendo o sócio minoritário), não provocaria qualquer problema para

a sociedade.570

No entanto, hoje em dia esta controvérsia foi em parte amenizada, haja vista que o Código

Civil de 2002 prevê (art. 1.026)571 a possibilidade de penhora dos lucros sociais ou o do que lhe

tocar na liquidação das quotas. Ou seja, o credor não adquirirá o status socii, mas tão-somente

obterá os lucros ou o valor patrimonial das quotas que caberiam ao sócio. Com isso, prevaleceu a

corrente segundo a qual “a quota é um bem patrimonial do devedor, que não está excluída por lei

de constrição legal para garantir o pagamento de suas dívidas”572, preservando, desta forma, tanto

o direito do credor (de ser ressarcido no crédito inadimplido pelo sócio) como os interesses da

sociedade (de não ser invadida por terceiros, estranhos ao seu quadro social).

Por outro lado, embora preservada a sociedade de pessoas do não ingresso de terceiro, isso

não afasta o prejuízo da sociedade pela sua descapitalização (na hipótese de liquidação da quota

social), pois, conforme afirma Rubens Requião, “os fundos sociais não pertencem ao quotista, mas

à sociedade. Sustentar-se o contrário é pôr-se abaixo toda a teoria da personificação jurídica e

negar-se a autonomia do seu patrimônio em relação aos seus componentes”.573

Não se pode afirmar,

Calcados numa imprecisão terminológica, que o capital social pertence única e exclusivamente à

sociedade. Esta colocação não espelha a verdade; com efeito o capital é formado pelas contribuições

569 NEGRÃO, Theotonio. GOUVÊA, José Roberto Ferreira. Código de processo civil e legislação processual em vigor. 39. ed. São Paulo : Saraiva, 2007, p. 1.055-1.056. No mesmo sentido: STJ, REsp 248417/SP, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, j. em 27.04.2000, DJ 14.08.2000, p. 168. 570 TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 218. 571 Art. 1.026. O credor particular de sócio pode, na insuficiência de outros bens do devedor, fazer recair a execução sobre o que a este couber nos lucros da sociedade, ou na parte que lhe tocar em liquidação. Parágrafo único. Se a sociedade não estiver dissolvida, pode o credor requerer a liquidação da quota do devedor, cujo valor, apurado na forma do art. 1.031, será depositado em dinheiro, no juízo da execução, até 90 (noventa) dias após aquela liquidação. 572 GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Op. cit., p. 215. 573 REQUIÃO, Rubens. Curso..., v. 1, p. 504-505.

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individuais dos sócios que o integralizaram. A sociedade se estabelece e se estrutura justamente pelas quotas que são trazidas pelos sócios, que têm um crédito em relação à empresa. Estes créditos são direitos que formam os patrimônios individuais dos sócios. A proibição da penhora da quota significa, portanto, a possibilidade de, mediante a constituição de uma sociedade limitada, pôr o devedor todo o seu patrimônio a salvo da responsabilidade em que possa incidir, contrariando os termos do art. 591 do Código de Processo Civil.574

Destarte, havendo mau uso da pessoa jurídica, tal como na hipótese de o sócio transferir

para a sociedade todo o seu patrimônio pessoal para, fraudulenta e maliciosamente, se eximir da

responsabilidade por dívida pessoal contraída, será o caso de aplicação da disregard doctrine para

impedir que a personalidade jurídica seja utilizada de forma a encobrir a fraude,575 já que a teoria

da desconsideração “visa impedir que o sócio, que agiu com abuso de direito ou fraude à lei, não

se esconda no anteparo da pessoa jurídica e responda patrimonialmente com as suas obrigações e

compromissos realizados”.576

Controvérsia também existe quanto ao cabimento de mandado de segurança contra a

decisão que responsabiliza o sócio por débitos da sociedade. O Tribunal Superior do Trabalho

possui uma interessante decisão onde admite que o ex-sócio (que já havia se retirado da sociedade

por ocasião do ajuizamento da reclamatória trabalhista) utilize o mandado de segurança para

obstaculizar que seus bens sejam penhorados em processo movido contra a empresa: MANDADO DE SEGURANÇA – EXECUÇÃO CONTRA EX-SÓCIO. A só existência de recurso

processual cabível não afasta o mandado de segurança, se esse recurso é insuficiente para coibir a ilegalidade ou abuso de poder por ato de autoridade pública, ainda que judiciária, praticado contra direito líquido e certo do impetrante. De acordo com o Decreto nº 3.708, de 10 de janeiro de 1919, combinado com o art. 592 do CPC, os bens dos sócios de sociedade por quotas de responsabilidade limitada sujeitam-se à execução, pelas dívidas decorrentes do contrato de trabalho, desde que a empresa não tenha idoneidade financeira, ainda que no limite do valor do capital social. Todavia, se ao tempo do ajuizamento da ação, o sócio contra o qual se volta a execução já havia se retirado da sociedade, não pode ter seus bens respondendo pela dívida, sobretudo quando não se alega fraude à execução, nem se comprova que a empresa executada não tinha bens. Com o patrimônio ameaçado de penhora, nesta hipótese, cabível é o mandado de segurança para colocar fim ao ato ilegal. Recurso ordinário a que se dá provimento (TST-RO-MS 141.049/94, Rel. Min. Indalécio Gomes Neto, DJU de 09/02/96, p. 2247).577

Já o Superior Tribunal de Justiça possui entendimento contrário ao do Tribunal Superior

do Trabalho, ou seja:

PROCESSO CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. EXECUÇÃO

CONTRA SÓCIO DE EMPRESA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA

574 ABRÃO, Carlos Henrique. Op. cit., p. 58. 575 REQUIÃO, Rubens. Curso..., v. 1, p. 504-505. 576 ABRÃO, Carlos Henrique. Op. cit., p. 62. 577 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Op. cit., p. 7.

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EMPRESA. ARRESTO DE BENS. MANDADO DE SEGURANÇA. INADMISSIBILIDADE. DILAÇÃO PROBATÓRIA. CABIMENTO DE EMBARGOS DE TERCEIRO À EXECUÇÃO. O mandado de segurança é ação constitucional que tem por objeto a proteção de direito líquido e certo contra ato ilegal ou abusivo de autoridade, não se prestando para o deslinde de questão controvertida, cuja compreensão plena dependa de dilação probatória e se é cabível, na hipótese, a ação de embargos de terceiro à execução. Recurso ordinário em mandado de segurança a que se nega provimento (STJ, RMS 19.633/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 06.10.2005, DJ 24.10.2005, p. 305).

Por fim, é muito comum no processo civil atinente à disregard doctrine que o patrimônio

de terceiro, que não participou do processo de cognição, seja objeto de constrição judicial na fase

de execução de sentença, situação esta que, nas palavras de Flávia Lefévre Guimarães, Implica em alto grau de excepcionalidade, pois, de certa forma, contraria o princípio do due process

of law, bem como outros princípios constitucionais, entre os quais o da ampla defesa, previsto no art. 5º, LV, da Constituição Federal, e, ainda, o art. 472, do Código de Processo Civil, que estabelece o limite subjetivo da coisa julgada dispondo: ‘a sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não beneficiando, nem prejudicando terceiros (...)’.578

Com efeito, pode se dizer, inclusive, que nesta hipótese a coisa julgada estaria alcançando

terceiros, o que certamente vai de encontro com a própria definição de coisa julgada, já que esta,

ordinariamente, somente pode alcançar aquele que tenha integrado o processo de conhecimento.579

Nesta hipótese, é possível cogitar na propositura de ação rescisória por quem não foi parte

no processo de cognição, com base no art. 487, II do Código de Processo Civil, na qualidade de

terceiro juridicamente interessado, pois, conforme sustenta o Min. Ives Gandra da Silva Martins

Filho, “não se concebe que possa ser responsabilizado o sócio não gerente, quando a sociedade foi

omissa em sua defesa na fase de conhecimento e a decisão transitada em julgado foi proferida com

algum vício não atacado pela empresa reclamada”.580

Em suma, enquanto a desconsideração da personalidade jurídica não receber o devido

tratamento legislativo no âmbito procedimental, inúmeras controvérsias continuarão existindo. No

578 GUIMARÃES, Flávia Lefévre. Desconsideração da personalidade jurídica no Código do Consumidor: aspectos processuais. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 138. 579 Neste sentido: EMBARGOS À EXECUÇÃO DE MULTA COMINATÓRIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA PARA ATINGIR EMPRESA QUE NÃO FOI PARTE NA AÇÃO ANTERIOR. IMPOSSIBILIDADE. Nula, a teor do artigo 472, CPC, a decisão que estende a coisa julgada a terceiro que não integrou a respectiva relação processual. A desconsideração da pessoa jurídica é medida excepcional que reclama o atendimento de pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito em prejuízo de terceiros, o que deve ser demonstrado sob o crivo do devido processo legal. Recurso especial conhecido e provido (STJ, REsp 347.524/SP, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Quarta Turma, j. em 18.02.2003, DJ 19.05.2003, p. 234). 580 MARTINS FILHO, Ives Gandra da Silva. Op. cit., p. 08. Theotonio Negrão cita um precedente neste sentido: “Todavia, há um acórdão entendendo que o herdeiro de sócio é terceiro juridicamente interessado em propor rescisória contra sentença proferida em ação de que foi parte a sociedade (JTA 107/206)” (NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto F. Op. cit., p. 617).

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entanto, a fim de que não ocorram violações aos mais comezinhos princípios constitucionais,

deve-se aplicar a disregard doctrine no processo judicial com parcimônia e atenção, procurando

coibir a prática de atos abusivos através da personalidade jurídica societária, mas sem criar

arbitrariedades e violações aos princípios fundamentais do ordenamento jurídico brasileiro.

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5. A personalidade jurídica frente à nova ordem civil-constitucional e sua importância na sociedade contemporânea

Como visto até o momento, é inegável a importância da personalidade jurídica para o

desenvolvimento da sociedade nos últimos dois séculos, podendo se afirmar, sem medo de errar,

que a civilização contemporânea não teria atingido seus níveis de desenvolvimento social e

econômico sem que o Estado houvesse estabelecido a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas

em relação aos sócios através da criação da personalidade jurídica societária.

Por outro lado, também não se pode negar que os problemas da personalidade jurídica

sempre caminharam paralelamente com o seu desenvolvimento, datando da segunda metade do

século XIX as polêmicas surgidas “na conferência de Nuremberg e no Senado Italiano, quando

elaboraram os Códigos comerciais da Alemanha e da Itália”.581

No entanto, os benefícios e os problemas da personalização societária foram evoluindo no

decorrer dos séculos, sendo possível analisá-los sob uma nova exegese, consentânea com a

evolução do Direito empresarial e da própria empresa, esta como expressão maior da utilização da

personalidade jurídica em benefício de toda a coletividade que se relaciona direta ou indiretamente

com a sua atividade.

O Direito empresarial no Brasil ainda reclama profundas mudanças legislativas e

doutrinárias, todavia, o seu reconhecimento e importância para a sociedade também evoluiu

paralelamente com o capitalismo moderno, ainda que a passos lentos em relação ao crescimento

da economia. Arnoldo Wald relata de forma objetiva alguns pontos da evolução legislativa

empresarial no último século: Revendo a nossa história, verificamos que a República ensejou a elaboração da Constituição de

1891 e do Código Civil de 1916, cujo projeto data do fim de século passado, refletindo a sociedade rural da época, ainda dominada pelo chamado ‘privatismo doméstico’, e que Orlando Gomes considerou atingido de ‘uma senilidade precoce’. Meio século depois, no século XX, os anos quarenta permitiram a implantação do direito do trabalho, a renovação do processo e do direito penal, a modernização do direito societário e falimentar, retratando a fase inicial do nosso capitalismo industrial. Em seguida, nas décadas de sessenta e setenta, a reforma bancária de 1964 e a nova Lei Societária de 1976 indicavam os novos rumos do País, que pretendia alcançar o nível de potência econômica mundial.

581 MENDONÇA, José Xavier Carvalho de. Op. cit., p. 77. Continua o jurista afirmando que “a idéia da personalidade das sociedades comerciais teve o seu embrião na doutrina com as primeiras manifestações do comércio, quando, desenvolvendo-se o tráfico e criando-se as sociedades de responsabilidade limitada, se estabeleceu a separação entre os patrimônios dos sócios e o da sociedade e se excluíram os credores particulares dos sócios de quaisquer direitos sobre o fundo social, reservado para garantir os credores da sociedade” (p. 82).

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Atualmente, a ruptura tecnológica e as transformações características de um mundo que foi considerado como sendo o da mudança constante e o da imprevisibilidade ensejaram, com a revolução tecnológica nas comunicações e a Internet, a nova economia, que, como vimos, subsiste ao lado da velha e, muitas vezes, com ela se funde ou a complementa. Essa terceira revolução industrial modifica tanto a estrutura social e a própria concepção do trabalho quanto o fez a do século XIX. O papel da informática como catalisadora das mudanças estruturais no mundo de hoje é tão ou mais importante quanto foi o da eletricidade e da máquina a vapor no século passado. E, do mesmo modo que já se disse que a sociedade anônima foi o grande instrumento jurídico dos progressos realizados no passado, os grupos societários e as novas técnicas jurídicas, concebidas tanto pelo legislador como pela jurisprudência e pela prática, apresentam-se, atualmente, como os instrumentos necessários para alcançar o desenvolvimento sustentado.582

Com efeito, no início da comercialização em massa (surgida pela revolução industrial com

a produção em série), a personalização societária foi importante para atrair investimentos no setor

produtivo e criar uma nova forma de incentivo para a atividade econômica. Com o passar dos

séculos, “sem qualquer sinal de retrocesso e com o avanço da tecnologia, os investimentos se

fizeram cada vez mais necessários e vultosos, estimulando os empresários e agentes econômicos

em geral a constituírem sociedades para a busca dos fins comuns”.583

O que se alterou com o passar do tempo, na verdade, foi a necessidade cada vez maior de

se preservar o risco dos empreendedores, pois, conforme relata Marcia Carla Pereira Ribeiro,

“quanto maior o investimento e maior o volume de negócios jurídicos realizados, (...), maior o

interesse em se buscar, para a organização dos agentes econômicos, limitação dos riscos a que

estariam sujeitos em razão dos negócios”.584

E a personalidade jurídica societária foi a fórmula encontrada, na sociedade capitalista

(desde o século XIX até o século XXI), para amenizar os riscos dos investimentos no setor

produtivo e propiciar que a livre-iniciativa empresarial cumpra sua função, como veículo de

geração de empregos e de riquezas do país. Como relata o jurista italiano Pierangelo Catalano, “a

pessoa jurídica (ou melhor, o benefício da responsabilidade limitada) assume a função não mais

apenas de eximir o patrimônio pessoal dos riscos da empresa, mas também de eximir o capital

investido em algum ramo ou setor dos riscos relativos a cada um dos outros ramos ou setores”.585

582 WALD, Arnoldo. Um novo direito para a nova economia: a evolução dos contratos e o Código Civil. In: DINIZ, Maria Helena Diniz; LISBOA, Roberto Senise (Coord.). O direito civil no século XXI. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 79. 583 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A desconsideração..., p. 88. 584 Id. Ibid. Da mesma forma, Rachel Sztajn afirma que outro efeito derivado da personificação societária é a segregação de riscos, a qual constitui uma das faces da separação patrimonial, sendo possível reconhecer que sua gênese esteja na origem recente da sociedade por ações, porque, ao reconhecer a limitação da responsabilidade dos sócios ao montante do investimento feito, limita o risco assumido (SZTAJN, Rachel. Terá a personificação..., p. 383). 585 CATELANO, Pierangelo. Op. cit., p. 51.

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No que toca à importância da personalidade jurídica societária no capitalismo

contemporâneo, Georges Ripert também já pontuou que, diante do surgimento das sociedades por

ações, Desde um século, não são mais os homens que detêm as grandes posições do comércio e da

indústria, foram eliminados pelas sociedades por ações. Nenhum fato é mais importante do que este para a compreensão do regime capitalista. Sobre tal ponto, os economistas contemporâneos estão de acordo, e em todos os países. Cito alguns ao acaso. Dizem eles: ‘O capitalismo moderno não teria podido se desenvolver se a sociedade por ações não existisse’ (WALTER LIPPMANN, A cidade livre, 1938, p. 329). Ou ainda: ‘Em nenhuma parte algures o capitalismo teria encontrado melhor meio para aumentar seu poder, nenhum outro instrumento poderia melhor assegurar sua supremacia’ (J. LHOMME, Capitalismo e economia dirigida na França contemporânea, 1942, p. 15). Foi ‘a maior descoberta dos tempos modernos, mais preciosa que a do vapor e da eletricidade’ (NICHOLAS MURRAY BUTLER, citado por WALTER LIPPMANN, op. cit., 1938, p. 32). A grande produção ‘não seria melhor concebida sem esse achado jurídico do que sem as grandes invenções das ciências físicas’ (NOGARO, Elementos de economia política, 4. ed., 1936, t. I, p. 25)’.586

Por outro lado, a importância da personalidade jurídica societária não é a mesma no

transcurso destes últimos séculos587 (existindo um longo caminho entre as formulações de

Savigny, passando por José Lamartine Corrêa de Oliveira Lyra e Rubens Requião, até chegar aos

estudos realizados neste século XXI), devendo ser analisada e interpretada, hodiernamente, tanto

sob a ótica dos fundamentos e princípios estabelecidos na Constituição de 1988 e no Código Civil

de 2002, como também pela realidade econômica e social que leva algumas empresas, geralmente

multinacionais, a tratar em pé de igualdade (ou até de superioridade) com os Estados.

Como visto na primeira parte deste estudo, a atividade econômica encontra seu tripé de

sustentação no art. 170 da CR, para o qual a ordem econômica é fundada na valorização do

trabalho humano e na livre-iniciativa, com a finalidade de assegurar a todos existência digna,

conforme os ditames da justiça social.

Ou seja, não se pode assegurar uma livre-iniciativa empresarial senão através da

coexistência com os demais fundamentos e princípios gerais da atividade econômica. E é a pessoa

humana (base do sistema jurídico na maior parte dos países ocidentais) quem está por trás da

586 RIPERT, George. Aspectos jurídicos do capitalismo moderno. Trad. de Gilda G. de Azevedo. Rio Janeiro: Freitas Bastos, 1947, p. 58. 587 Ou seja, enquanto que a limitação da responsabilidade atribuída aos armadores (na época dos grandes descobrimentos), decorrida de fatores ligados à imprevisibilidade dos fatores da natureza e em razão da eleição dos capitães dos navios não serem escolhidos pelos armadores, hoje a limitação da responsabilidade não decorre preponderantemente de fatores naturais ou da escolha dos condutores do negócio, já que a tecnologia existente ameniza a imprevisibilidade natural, enquanto que os administradores das empresas representam os titulares do controle do empreendimento, geralmente não sofrendo interferências dos minoritários. Neste sentido: RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A desconsideração..., p. 90.

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pessoa jurídica, sendo, por isso mesmo, o maior beneficiário da sua criação e manutenção até hoje

em dia.

Da mesma forma, é também em razão da pessoa humana que se privilegia a personalidade

jurídica societária e que se aplica a própria disregard doctrine, pois, como bem resumiu J. X.

Carvalho de Mendonça, A sociedade comercial, como toda a pessoa jurídica, não tem vida natural, fisiológica; não pode ter

atividade psíquica própria, não pode querer, não pode manifestar exteriormente uma vontade. Ela, entretanto, obtém a capacidade de agir para obtenção dos seus fins por meio das pessoas naturais que lhe servem de órgão, e a vontade e a atividade destas pessoas, encaminhadas em conseguir ou realizar os fins sociais, pode-se dizer vontade e atividade da sociedade. É assim que a sociedade consegue ter e tem uma vontade e uma atividade.588

Neste sentido Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa, parafraseando Tullio Ascarelli, afirma

o seguinte: Reforçando a tese de que a disciplina normativa da personalidade jurídica é sempre concernente a

relações entre seres humanos, Ascarelli lembra uma frase cunhada por Ihering, segundo o qual pode-se dizer que ‘pessoa jurídica’, é, como terminologia técnica, um conceito análogo ao dos parênteses, na linguagem algébrica. Isto quer dizer que, resolvendo-se os parênteses chega-se ao seu cerne, ou seja, ao homem. A personalidade jurídica não corresponde a um dado normativo fático preexistente, mas, na realidade, ao código de uma disciplina normativa, que deve ser aberto pelo aplicador da lei. É nesse sentido que Ascarelli estabeleceu a concepção instrumental da pessoa jurídica, ou seja, relacionada com atos e interesses humanos.589

Em razão disso, “os fins perseguidos pelas pessoas jurídicas devem ser socialmente

desejáveis, funcionalmente indispensáveis para a estabilidade de certas relações jurídicas ou

econômico-jurídicas, para que se justifiquem os efeitos dela decorrentes”,590 sobretudo em razão

dos interesses tutelados em favor da pessoa humana, destinatária direta das benesses produzidas

pela atividade dos entes coletivos.

Da mesma forma, os princípios incorporados ao Direito empresarial pelo Código Civil de

2002 também refletem o novo cenário jurídico vigente no Direito privado brasileiro, fazendo coro

(guardadas as devidas proporções), com os princípios constitucionais regentes da ordem

econômica nacional.

588 MENDONÇA, João Xavier Carvalho. Op. cit., p. 86. 589 VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. A desconsideração da personalidade jurídica na prática de ilícito cambial administrativo. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. nº 100. Revista dos Tribunais, out./dez. 1995, p. 51. 590 SZTAJN, Rachel. Terá a personificação..., p. 379.

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Com efeito, Wilges Ariana Bruscato demonstra que o novo Código Civil brasileiro

incorporou três princípios norteadores das relações jurídicas privadas, quais sejam: i) princípio da

socialidade; ii) princípio da eticidade; iii) princípio da operabilidade.591

Segundo a autora, a socialidade é o carro-chefe axiológico do Código Civil de 2002,

revelando a prevalência dos valores coletivos sobre o individual (geralmente indicado por

expressões como ‘bem comum’, ‘interesse coletivo’, ‘justiça social’, ‘interesse público’ etc.),

sobretudo porque é indissociável da função do Direito sua aptidão para possibilitar ao cidadão a

sua realização plena como pessoa.592

Já o princípio da eticidade revela-se na preocupação com a boa-fé, a eqüidade, os bons

costumes e outros critérios éticos também estabelecidos no novo Código. Por fim, o princípio da

operabilidade almeja viabilizar e programar os demais princípios (socialidade e eticidade) nas

relações jurídicas, facultando ao magistrado lançar mão de maior discricionariedade para conferir

efetividade ou concretude à decisão.593

No entanto, embora a Constituição da República de 1988 e o Código Civil de 2002 tenham

procurado dar execução a novas concepções e diretrizes legais para tratamento do Direito

empresarial, não se deve perder de vista que o Direito empresarial possui peculiaridades próprias

que muitas vezes não se encaixam numa diretiva geral que pretenda aplicar a todos os ramos do

direito, indistintamente, novas fórmulas de regência econômica e social.

Isso porque, ao se aplicarem princípios regentes da atividade econômica sobre contratos

firmados entre particulares (v.g., contrato de locação) e sobre contratos de associação empresarial

(v.g., joint venture), a repercussão social destas duas hipóteses de relações jurídicas possui formas

próprias de expressão no mundo jurídico. Em razão disso, “há que se ter em mente que toda

interpretação aplicável às lides decorrentes do exercício da empresa deve privilegiar a

estabilidade, a confiança e a preservação da empresa”,594 na medida em que a função social de um

contrato de joint venture é notoriamente mais relevante para a sociedade do que a função social de

um simples contrato de locação firmado entre particulares.

Prova disso é que, mesmo com a unificação do direito obrigacional no mesmo Código

(CC), o Direito empresarial não perdeu sua autonomia e nem suas particularidades, da mesma

591 BRUSCATO, Wilges Ariana. Os princípios do Código Civil e o Direito de empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Revista dos Tribunais, nº 139, jul./set. 2005, p. 50. 592 Id. Ibid., p. 52. 593 Id. Ibid., p. 53-54. 594 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A desconsideração..., p. 90.

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forma como sucedeu na Itália (em que o fenômeno data de 1942), onde o Direito civil e o Direito

comercial permanecem distintos,595 embora tratados no mesmo Codice Civile italiano.596

Destarte, para que a ordem econômica brasileira continue sendo incentivada e

desenvolvida em prol da coletividade, sobretudo, por meio do exercício da atividade empresarial,

é imprescindível que seja assegurado tanto o reconhecimento da personalidade jurídica societária

(aos modelos previstos no Código Civil de 2002), como também sejam mantidos os “níveis de

segurança para os que contratam com a empresa”, pois, “quanto mais as relações econômicas

forem estáveis e pautadas na confiança, maior a perspectiva de investimento em atividade de

produção”.597

5.1. A importância da empresa na sociedade contemporânea

A empresa, concebida como “atividade econômica organizada, exercida profissionalmente

pelo empresário, através do estabelecimento”,598 é uma das formas de se demonstrar a importância

da personalidade jurídica societária, haja vista que, sem o reconhecimento da regra fundamental

societas distat singulis, o empresário (sociedade empresária limitada ou anônima) não teria

motivação para investir seus recursos na atividade empresarial. Esta atividade ocorre de forma

preponderantemente relevante para a sociedade, através da empresa.

Em outras palavras, empresário (sociedade empresária), empresa e estabelecimento “são

três movimentos ou expressões do mesmo fenômeno comercial, econômico-social e jurídico”,599

onde se tem o estabelecimento ao centro, constituído pelos bens corpóreos e incorpóreos

(universalidade de fato), a empresa ao redor, como organização do trabalho e disciplina da

atividade no objetivo de produzir riqueza (a fim de pô-la em circulação para obter lucro), e o

595 SZTAJN, Rachel. Teoria..., p. 145. 596 O jurista argentino Jorge Mosset Iturraspe demonstra esta preocupação ao se pretender tratar com as mesmas regras relações comerciais e civis: “No debemos perder de vista que las relaciones entre la regulación civil y la comercial de los contratos nunca alcanzaron una interpretación pacífica: ¿ la ‘teoria general’ civil es plenamente aplicabile a lo comercia? ¿No puede calificarse al contrato comercial como autónomo con base en una regulación propia? ¿ Buena fe, lesión, imprevisión y abuso son aplicables a negocios comerciales?” (ITURRASPE, Jorge Mosset. Op. cit., p. 107. Na tradução livre: “Não se deve perder de vista que as relações entre o ordenamento civil e o comercial dos contratos nunca alcançou uma interpretação pacífica: a ‘teoria geral civil’ é completamente aplicável a comercial? Não pode ser qualificado o contrato comercial como autônomo com base em um regulamento próprio? Boa-fé, lesão, imprudência e abuso são aplicáveis aos negócios comerciais”?). 597 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A desconsideração..., p. 90-91. 598 BULGARELLI, Waldirio. Sociedades..., p. 294. 599 Id. Ibid., p. 293.

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empresário (sociedade empresária) à frente de tudo isso, impondo sua vontade e traçando suas

diretrizes na condução dessa organização produtiva, sendo o sujeito ativo e passivo nas relações

jurídicas tecidas pela empresa.600

Destarte, conforme explica Calixto Salomão Filho, a organização produtiva destes fatores

fundamenta a personalidade jurídica e leva necessariamente ao pluralismo, já que o ordenamento

jurídico reconhece e atribui capacidade segundo os diferentes tipos e graus de organização, os

quais, abstraídos da existência da organização societária, constituem o conceito de personalidade

jurídica.601Ou seja: Ao buscar seu fundamento último na organização, o conceito de personalidade jurídica assume

aquele caráter pluralístico necessário à obtenção do equilíbrio entre os impositivos dogmáticos, nem sempre capazes de fornecer resposta adequada às rápidas mutações do direito societário, e aqueles pragmáticos, que trazem consigo o perigo de aplicação livre e arbitrária das normas.602

Mesmo antes da vigência do Código Civil de 2002 (que consagrou a empresa e o

empresário no direito positivo brasileiro, embora a doutrina e a jurisprudência especializadas já os

tratassem sob esta ótica, sobretudo em decorrência dos ensinamentos de Alberto Asquini

produzidos em 1943),603 a empresa já vinha se firmando e fortalecendo como a grande mola

propulsora da atividade econômica contemporânea.

Em razão disso, o Estado (Estado-Providência) foi deixando de atuar em diversos setores

da sociedade que até pouco tempo atrás eram abocanhados pela máquina estatal, em prejuízo do

empresário, que tinha que se contentar com as atividades que não interessavam ao Estado.604

600 Id. Ibid., p. 294. 601 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo..., p. 39. 602 Id. Ibid., loc. cit. 603 Não obstante Asquini representar um marco na formulação da teoria jurídica da empresa, outros juristas do Velho Continente também trataram do tema, v.g.: Michel Despax na França; Wieland e Endemann na Alemanha; Vivante e Ferri na Itália, dentre outros. Para o jurista italiano Asquini, “o conceito de empresa é o conceito de um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um, mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que o integram. As definições jurídicas de empresa podem, portanto, ser diversas, segundo o diferente perfil, pelo qual o fenômeno econômico é encarado” (ASQUINI, Alberto. Perfis da Empresa. Trad. de Fábio Konder Comparato. Revista de Direito Mercantil. n. 104. Revista dos Tribunais, p. 109-110, 1996). 604 Segundo Vera Helena de Mello Franco, “A constituição de 1988, na melhor tradição liberal, reservou o exercício da atividade econômica para os particulares. A atuação do Estado neste setor somente seria admitida quando necessária aos ‘...imperativos da segurança nacional ou a relevante interesses coletivo, conforme definido em lei...’ (art. 173, CF) e na forma da empresa pública e da sociedade anônima de economia mista, as quais se submeteriam, quando no exercício desta mesma atividade, ao mesmo regime jurídico das empresas privadas (art. 173, §§ 1º e 2º CF)” (FRANCO, Vera Helena de Mello. Manual de direito comercial, v 1: o empresário e seus auxiliares, o estabelecimento empresarial, as sociedades. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 52). Com entendimento análogo sobre os limites da atuação direta do Estado na economia, Márcia Carla Pereira Ribeiro dispõe que, “Partindo-se novamente da premissa segundo a qual o equilíbrio social não seja obtido pela simples atuação da iniciativa privada na economia, vale destacar as alternativas à atuação direta do Estado que, conforme demonstrado,

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Fábio Konder Comparato, em 1983, já demonstrava a importância da empresa na

sociedade contemporânea: Se se quiser indicar uma instituição que, pela sua influência, dinamismo e poder de transformação,

sirva como elemento explicativo e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável: essa instituição é a empresa.

É dela que depende, diretamente, a subsistência da maior parte da população ativa deste país, pela organização do trabalho assalariado.

É das empresas que provém a grande maioria dos bens e serviços consumidos pelo povo, e é delas que o Estado retira a parcela maior de suas receitas fiscais.

É em torno da empresa, ademais, que gravitam vários agentes econômicos não assalariados, como os investidores de capital, os fornecedores, os prestadores de serviços.

Mas a importância social dessa instituição não se limita a esses efeitos notórios. Decisiva é hoje, também, sua influência na fixação do comportamento de outras instituições e grupos sociais que, no passado ainda recente, viviam fora do alcance da vida empresarial. Tanto as escolas quanto as Universidades, os hospitais e os centros de pesquisa médica, as associações artísticas e os clubes desportivos, os profissionais liberais e as forças armadas – todo esse mundo tradicionalmente avesso aos negócios, viu-se englobado na vasta área de atuação da empresa.605

No mesmo sentido é a lição de Waldirio Bulgarelli: Já se tornou notório que a empresa domina o panorama da economia moderna, principalmente

porque é ela a responsável pela produção e comercialização em massa; mas também pelos progressos tecnológicos verdadeiramente revolucionários que utiliza e, conseqüentemente, pela dimensão extraordinária que alcançou. De um lado, tem-se, pois, as chamadas macroempresas, dotadas de um poder econômico inimaginável, chegando a ignorar as fronteiras dos países, no que se converteu na chamada multinacional. De outro, tanto a pequena e a média empresa completam o ciclo de produção e distribuição dos produtos no mercado, do que resulta que a economia moderna está estruturada em volta das empresas que constituem o seu centro, o pólo irradiador dos bens e serviços.606

O próprio conceito de empresa neste século evoluiu, importando mais a credibilidade da

sociedade empresária no mercado em que atua do que o seu patrimônio material propriamente

dito.

Houve um tempo em que os empresários se orgulhavam de instalar suas empresas em sede própria

(sinal de solidez) e de financiar seu crescimento com recursos próprios (indicador de independência). As percepções sobre solidez e independência nos negócios, ligadas à idéia de propriedade, foram substituídas pelo conceito de credibilidade. Atualmente, há o consenso de que a melhor empresa é aquela capaz de atrair investidores, mistura de acionistas e auditores. Mudaram as empresas, mas mudou também a visão que se tinha da Bolsa de Valores, até outro dia, compreendida por muitos como um ambiente de apostas que contrapunha duas forças: o especulador e o investidor mais ingênuo. O mercado de ações passou finalmente,

não logrou resultados suficientemente positivos em termos de benefícios sociais, além do reconhecimento de estar a situação conjuntural a exigir o desafogamento do ente público, retirando-lhe o ônus de agente exclusivo de financiamento do bem-estar social” (RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. Sociedade..., p. 166). 605 COMPARATO, Fábio Konder. A reforma da empresa. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Revista dos Tribunais, nº 50, abr.jun. 1983, p. 56. 606 BULGARELLI, Waldirio. Sociedades..., p. 291.

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a ser tido pela função para o qual foi criado: a de financiar os investimentos produtivos. É um cenário onde todos ganham. Investidores e empresários.607

É sob esta mesma ótica que a teoria moderna na visão dos tribunais e da doutrina vem

privilegiar a continuidade da empresa em detrimento da vontade individual do sócio ou do credor,

dados os múltiplos interesses que sobre essa convergem, tais como os dos trabalhadores, dos

consumidores, dos fornecedores e do próprio fisco, irradiando relações jurídicas de naturezas

diversas pela sociedade.608

A empresa atual é fruto de uma sociedade pós-moderna609, onde se verifica uma relação

multidisciplinar entre os micro e os macrossistemas que orbitam ao redor da Constituição da

República, a qual preceitua no art. 170, que a atividade econômica deve ser incentivada e

estimulada pelo Poder Público, estruturando-se sobre alguns princípios fundamentais (v.g., a livre-

iniciativa, a valorização do trabalho humano, o pleno uso da propriedade privada, a livre

concorrência, dentre outros preceitos gerais) que regem a produção e circulação de bens e serviços

no país. A empresa no terceiro milênio representa Essa nova fase de transição da humanidade, ligada a modificações tecnológicas, como as

decorrentes do uso do computador, das novas formas de energia, da modernização dos sistemas de transporte e comunicações e da implantação em rede das recentes estruturas comerciais e financeiras, enseja a globalização da economia mundial e enfatiza a importância crescente da empresa como coração da vida econômica na sociedade contemporânea.

É pois, o elemento central da economia moderna, caracterizada pelas suas várias facetas: entidade econômica, por ser centro de produção ou de circulação de bens, entidade social, por desenvolver uma verdadeira parceria entre capital e trabalho e, por fim, entidade jurídica, por constituir um complexo de direitos e de obrigações, sujeito de direito que mereceu um tratamento próprio no Código Civil.

A transformação da empresa passa pelas mudanças dos antigos conceitos e das práticas econômicas e empresariais que evoluíram da antiga esteira de produção para a fase digital e da substituição do comando centralizado pela cooperação entre parceiros.610

607 OINEGUE, Eduardo. Apresentação. Análise Companhias Abertas (Brazilian Publicly-Traded Companies). São Paulo: Análise Editorial, 2007, p. 13-14. Anuário. 608 BULGARELLI, Waldirio. Problemas de direito empresarial moderno: contratos comerciais, falências e concordatas, propriedade industrial, concorrência desleal e proteção ao consumidor, responsabilidade civil, títulos de crédito, sociedades. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989, p. 277. 609 Nas palavras de Carlyle Popp, “por pós-modernismo, pelo menos no campo do Direito, deve-se compreender uma revisão dos postulados clássicos oriundos do Estado Liberal e do Estado Social, passando-se a privilegiar a confiança e a ética, com um renascimento da importância do ser humano. O pós-modernismo reflete uma crise, crise no Direito posto e como usualmente interpretado, convidando o intérprete a uma releitura do ordenamento jurídico em face da nova realidade social, compelindo-o a uma alteração na forma de pensar o Direito” (POPP, Carlyle. Considerações sobre a boa-fé objetiva no Direito Civil vigente - Efetividade, relações empresariais e pós-modernidade. In: GEVAERD, Jair; TONIN, Marta Marília (Coord.) Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 18-19). 610 WALD, Arnoldo. A empresa no terceiro milênio. In: WALD, Arnoldo; FONSECA, Rodrigo Garcia da (Coord.). A empresa no terceiro milênio: aspectos jurídicos. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2005, p. 5-6.

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Ainda segundo Arnoldo Wald, o Código Civil de 2002 (após revogar o ultrapassado

Código Comercial na parte primeira) passa a tratar do empresário e da sociedade empresária de

forma consentânea à realidade atual, não existindo mais como se separar o econômico do social,

ou seja: A visão realista do mundo contemporâneo considera que não há mais como distinguir o econômico

do social, pois ambos os interesses se encontram e se compatibilizam na empresa, núcleo central da produção e da criação da riqueza, que deve beneficiar tanto o empresário como os empregados e a própria sociedade de consumo. Não há mais dúvida que são os lucros de hoje que, desde logo, asseguram a sobrevivência da empresa e a melhoria dos salários e que ensejam a criação dos empregos de amanhã.611

A mesma visão moderna da atividade empresária pode ser extraída de Rachel Sztajn, ut

infra: A atividade empresária não se restringe aos ciclos naturais, salvo exceções, [...]; a exigência atual é

garantir a segurança da circulação da riqueza e a estabilidade das relações jurídicas de modo a promover a produção/circulação de bens e serviços, satisfazer as necessidades sociais e criar riquezas.

As relações são socieconômicas, devendo-se reconhecer não só a presença da economia, como também o espaço por ela ocupado no desenvolvimento de novas relações, de estruturas sociais, de negócios predispostos para atender às novas exigências das pessoas.612

Esta reconhecida valorização da empresa na atualidade não teria alcançado seu escopo

principal se não fosse a regra de ouro do Direito societário,613 ou seja, a existência da limitação da

responsabilidade dos sócios pelas dívidas contraídas pela sociedade,614 através da personalização

das sociedades.

Por certo, como toda atividade empresarial, existe um risco615 de insucesso no regular

desenvolvimento de suas atividades. É sobretudo em razão disso que as sociedades com

611 Id. Comentários..., p. 2. 612 SZTAJN, Rachel. Teoria..., p. 11. 613 Osmar Brina Corrêa-Lima afirma que a vida empresarial (sociedade) é regida por dois princípios capitais: 1º) as pessoas jurídicas têm existência própria e distinta da dos seus membros; 2º) o patrimônio da sociedade e o de seus membros não se confundem. A correlação destes dois princípios é que faz surgir o “efeito benéfico de encorajar o aparecimento e estimular o desenvolvimento da empresa privada nacional” (CORRÊA-LIMA, Osmar Brina. Responsabilidade civil dos administradores de sociedade anônima. Rio de Janeiro: Aide, 1989, p. 140-141). 614 Nesse sentido afirma Leandro Javier Caputo: “Al ingresar en la temática de la inoponibilidad de la personalidad jurídica de una sociedad debe tenerse presente que la idea de la personalidad de la sociedad, como distinta de la de sus socios, es considerada por la doctrina como el punto final de una elaboración cada vez más concluyente lograda tanto en el plano doctrinal como en el legislativo” (CAPUTO, Leandro Javier. Op. cit., p. 1. Na tradução livre: “Ao entrar na temática da desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade, deve ter-se presente que a idéia da personalidade da sociedade, como diferente da dos sócios, é considerada pela doutrina como o ponto final de uma elaboração cada vez mais conclusiva, alcançando tanto a visão doutrinária como a legislativa”). 615 “Exceto por espírito aventureiro, dificilmente alguém comprometeria em investimentos econômicos a totalidade de seus recursos ou bens. Se há risco de ganho, existe o de perda, e apenas considerando-se um elemento subjetivo –

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responsabilidade ilimitada dos sócios praticamente não existem mais na atualidade, sendo tratadas

apenas doutrinariamente nos cursos de graduação das faculdades de direito. 616

Destarte, se não existisse a limitação da responsabilidade pessoal do sócio, o risco da

atividade teria que ser todo carreado à atividade empresarial, refletindo diretamente no produto ou

serviço realizado, em prejuízo de toda a cadeia das relações socioeconômicas.

Da mesma forma, se não existisse a limitação da responsabilidade, quem investiria em

ações de uma S/A se o patrimônio do investidor estivesse sujeito ao risco do negócio? Ou ainda,

qual empresário colocaria em risco todo o seu patrimônio pessoal (amealhado muitas vezes

durante décadas) numa sociedade limitada, se o mero insucesso do negócio (muitas vezes

provocado por crises econômicas públicas, concorrência acirrada, globalização, insolvência de

credores, de fornecedores ou de clientes etc.) pudesse lhe tomar todo o seu patrimônio pessoal?

Sem a pessoa jurídica personalizada (com existência distinta da de seus sócios) e com

responsabilidade ilimitada, a atividade empresarial não teria atingido seu estágio atual. Num

mundo capitalista globalizado, onde cada vez mais é necessário investir e aprimorar a organização

empresarial, as pessoas jurídicas empresárias representam um dos mais significativos fatores para

a compreensão do regime capitalista.

5.2 A relativização da personalidade jurídica como forma de garantir os princípios gerais da atividade econômica (Um exemplo: consumidor e meio ambiente)

O reconhecimento da personalidade jurídica societária hodiernamente não representa mais

apenas uma concessão legislativa advinda do pensamento individualista do Estado liberal, fruto de

uma época em que a propriedade individual dos bens de produção possuía caráter absoluto, tal

como prevaleceu nas Constituições brasileiras de 1824 e 1891.

Com efeito, a intervenção estatal na atividade econômica, iniciada com o advento do

Estado social no início do século XX, impôs uma nova ordem econômica e social na sociedade aversão ou propensão ao risco – é que se poderia levar adiante certos empreendimentos econômicos” (SZTAJN, Rachel. Terá a personificação..., p. 383). 616 Segundo Marcos de Barros Lisboa et al., “no curso normal, uma empresa financia a sua produção sob a premissa de que a renda auferida com a venda de seus produtos ou serviços será suficiente para pagar seus credores e também remunerar adequadamente o capital e o trabalho próprios invertidos. Os credores, por sua vez, só se prestam a financiar a empresa se existe uma expectativa de que o devedor conseguirá quitar suas obrigações ao final do ciclo” (LISBOA, Marcos de Barros et al. A racionalidade econômica da nova lei de falências e de recuperação de empresas. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (Coord.) Direito Falimentar e a nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 33).

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brasileira, através da qual o Estado deixou de ser um mero garantidor dos interesses individuais

dos cidadãos, buscando também garantir o bem comum e a justiça social, o que implica,

invariavelmente, a possibilidade de limitação do direito subjetivo quando entrar em conflito com o

direito coletivo.

Conforme exposto até o momento, a personalidade jurídica societária interessa não só aos

empreendedores que pretendem limitar o risco dos seus investimentos, mas ao próprio Estado

(como visto, é uma atividade promocional do Estado), pois, se assim não fosse, não teria mantido

a regra fundamental da societas distat singulis até hoje em dia, através da qual os bens pessoais do

empresário não se confundem com aqueles destinados ao exercício da atividade empresarial

(autonomia patrimonial) através da pessoa jurídica.

Ocorre que o direito constitucional vigente, tutelando novos interesses e garantias que até

então não se valoravam com tanta intensidade no ordenamento jurídico (v.g., direito ao meio

ambiente, aos consumidores etc.), acaba por fazer surgir um hiato entre o direito codificado e as

necessidades sociais. Essa situação já foi percebida por Orlando Gomes em 1955, quando,

visionariamente, escreveu o artigo “A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica”,

reproduzido recentemente na Revista Direito GV.617

Relata o jurista que, diante do surgimento de fatos novos, em dissonância com o direito

codificado e as necessidades sociais, ao invés de o jurista elaborar novos sistemas jurídicos,

adequados à regulação destas novas necessidades sociais, acaba aproveitando o velho arcabouço

legislativo para, paliativamente, empregar a mesma técnica jurídica para os novos problemas

surgidos.

Nas palavras do autor: Quando o jurista se depara com uma dificuldade, oriunda de tendência nova que reclama a

reconstrução, vai buscar, nas legislações mortas, termos técnicos sepultados, cometendo, inclusive, o erro de supor que o problema consiste unicamente numa questão de terminologia. Esta forma de transpor obstáculos sepultados, seja pelo recurso ao vocabulário do Direito extinto, seja pelo apelo abusivo a neologismos rebarbativos, não altera, na sua substância, a técnica jurídica. Permanece em pé, em conseqüência, a sentença de Morin, proferida há vinte anos, segundo a qual, sobre o terreno conceitual, isto é, nas fórmulas e nos conceitos da técnica jurídica, a ordem nova não aparece.

Entretanto, aí está, visível a olho nu. A incapacidade dos juristas para recobri-la com os conceitos e as fórmulas que estejam em concordância com as novas necessidades decorre, principalmente, da fidelidade às matrizes filosóficas do Direito privado, tal como foram fundidas ao calor dos ideais triunfantes no crepúsculo do século XVIII. (...). Os juristas insurgem-se, com maior ou menor veemência, contra o

617 GOMES, Orlando. A evolução do direito privado e o atraso da técnica jurídica. Revista Direito GV. Fundação Getúlio Vargas. v. 1, n. 1, mai-2005, p. 121-134.

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individualismo jurídico, mas, no fundo, conservam o respeito, a admiração e o fervor por essa harmoniosa racionalização de interesses privados.618

Ainda, na mesma linha de raciocínio, continua o jurista conclamando a doutrina para que

assuma seu papel, como fonte indireta do Direito: Esse é o papel da doutrina. Nesta fase da história, reconhecendo que os conceitos extraídos do

Direito positivo do século XIX não coincidem com a realidade social dos dias hodiernos, não atendem às atuais exigências econômicas, não respondem às novas necessidades sociais e não satisfazem aos reclamos da consciência coletiva, a missão dos juristas é substituí-los corajosamente. Adaptar o novo ao velho, tomando as suas idéias e os seus preconceitos como a medida das coisas, é processo de frustração.619

Trazendo para o campo do Direito empresarial contemporâneo os ensinamentos de

Orlando Gomes, é possível verificar também que, Na interpretação do direito comercial hodierno, é absolutamente indispensável que o estudioso se

aprofunde no exame de sua gênese, no estudo dos fatos econômicos que lhe deram origem, pois, por cento, na maioria das vezes, sobretudo quando se tratar de um novo instituto jurídico (como, no Brasil, o franchising, o cartão de crédito etc.) o intérprete ver-se-á compelido a um enorme esforço de criação, já que a lei escrita não prevê, claramente, solução para o problema, dele exigindo, portanto, grande tirocínio e capacidade de resposta a uma situação não contemplada pelo legislador.620

Ou ainda, nas palavras de Waldirio Bulgarelli: Os mecanismos jurídicos existentes revelam-se a cada dia insuficientes de tornar efetiva a proteção

que deve ser dispensada àqueles que se encontram em situação de inferioridade perante as empresas, tanto no que toca à reparação dos danos causados, como no que se refere à prevenção.621

Para o presente estudo, sobressai a impropriedade da utilização da técnica da disregard

doctrine para solucionar novas questões que não dizem respeito aos pressupostos da teoria maior

da desconsideração da personalidade jurídica. Com efeito, não se ignora que “a aplicação da teoria

da desconsideração da personalidade jurídica independe de previsão legal”, pois,

independentemente da matéria tratada (Código Civil, Lei do Meio Ambiente, Lei Antitruste,

Código de Defesa do Consumidor etc.), “está o juiz autorizado a ignorar a autonomia patrimonial

da pessoa jurídica sempre que ela for fraudulentamente manipulada para frustrar interesse legítimo

de credor”.622

618 Id. Ibid., p. 122. 619 Id. Ibid., p. 132. 620 LOBO, Jorge. Interpretação do direito comercial. Revista de Direito Privado. Revista dos Tribunais. n. 5, jan./mar. 2001, p. 147. 621 BULGARELLI, Waldirio. Direito empresarial moderno. Rio de Janeiro: Forense, 1992, p. 52. 622 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 55.

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Contudo, o que não se deve pactuar é com a utilização da disregard doctrine para regência

de novas situações onde seus pressupostos não estão previstos, mas sim, previsões outras que,

independentemente de qualquer coisa, também são relevantes, porém não legitimam a

desconfiguração da técnica da disregard doctrine, nos moldes previstos desde sua origem, ou seja,

para hipóteses de abuso de direito, fraude à lei e confusão patrimonial, este último inserido mais

recentemente, como resultado dos demais.

Em razão disso, a situação que se coloca é a seguinte: como tratar as previsões legais

alocadas no art. 28, § 5º da Lei 8.078/90 (CDC) e no art. 4º da Lei 9.605/98 (Meio Ambiente), as

quais prevêem, respectivamente, a possibilidade de “ser desconsiderada a pessoa jurídica

sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos

causados aos consumidores” (CDC) e de “ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua

personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio

ambiente” (Meio Ambiente)?623

Ambos os institutos (defesa do consumidor e defesa do meio ambiente) constituem-se

como princípios gerais da atividade econômica, nos termos do art. 170, incisos V e VI da

Constituição da República, razão pela qual devem ser interpretados em conjunto com os demais

princípios, para se chegar à definição de um sistema e de um modelo econômico, ambos definidos

pelo Direito Econômico vigente através das expressões “relações econômicas” ou “atividade

econômica”.624

Por outro lado, concomitantemente com estes princípios que devem ser observados, existe

a livre-iniciativa empresarial, a qual, juntamente com a valorização do trabalho humano,

fundamenta a atividade econômica (como também a própria República Federativa do Brasil – art.

1º, IV), para assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social.

Ocorre que a livre-iniciativa, que fundamenta a atividade econômica na Constituição de

1988, não é a mesma vigente durante a revolução industrial, quando “a ordem econômica voltava-

se exclusivamente para o desenvolvimento da própria indústria, estimulando a produção em

623 Não existem os grifos no original legislativo. Notes-se que as referidas legislações pretendem a desconsideração da própria pessoa jurídica, sequer mencionando a personalidade, como ocorre, por exemplo, no caput do art. 28 do CDC. 624 GRAU, Eros Roberto. Op. cit., p. 138.

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massa, o lucro e o crescimento da economia, resultando num capitalismo selvagem, em detrimento

dos empregados, dos consumidores, do bem-estar social e do meio ambiente”625

Em razão disso, quando se estiver diante de um impasse como o de um obstáculo ao

ressarcimento de prejuízos causados ao consumidor ou à qualidade do meio ambiente, utilizando-

se da nova ordem constitucional de 1988, poder-se-á responsabilizar, dependendo das

circunstâncias concretas de cada caso (v.g., da repercussão social do caso e do ato praticado contra

o consumidor ou o meio ambiente), a pessoa responsável pelo prejuízo ou mesmo seus dirigentes

que estão agindo em nome da pessoa jurídica.

Todavia, tal responsabilidade não se dará através da aplicação da disregard doctrine como

impropriamente prevê o Código de Defesa do Consumidor e a Lei do Meio Ambiente (nos artigos

supra referidos), mas sim, através de uma nova técnica jurídica, que, não obstante ainda não ter

merecido o devido tratamento doutrinário, já foi chamada de “relativização da pessoa jurídica” por

parte da doutrina,626 definida da seguinte forma: A relativização da pessoa jurídica significa que, à luz dos princípios gerais da atividade econômica

previstos na CF e da função social da pessoa jurídica, os danos causados aos consumidores ou ao meio ambiente devem ser reparados, independentemente da pessoa jurídica, ou seja, ainda que esta não possua patrimônio suficiente ou adequado à indenização, hipótese em que os bens do sócio, que aceitou os riscos de explorar aquela determinada atividade econômica, devem responder pelos prejuízos causados.627

Ou seja, esta formulação doutrinária (relativização da pessoa jurídica), muito próxima da

“teoria menor” tratada por Fábio Ulhoa Coelho628, ignora a existência da personalidade jurídica

concedida à pessoa jurídica, responsabilizando diretamente os administradores (sócios etc.) da

sociedade sempre que restar obstaculizado o integral ressarcimento do consumidor ou do meio

ambiente.

O Superior Tribunal de Justiça, julgando um caso envolvendo o ressarcimento de

consumidores lesados por um shopping center, já teve oportunidade de aplicar entendimento

análogo ao presente (teoria menor da desconsideração), conforme se observa pela seguinte

ementa:

RESPONSABILIDADE CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. SHOPPING CENTER DE OSASCO-SP. EXPLOSÃO. CONSUMIDORES. DANOS MATERIAIS E MORAIS. MINISTÉRIO PÚBLICO. LEGITIMIDADE ATIVA. PESSOA JURÍDICA.

625 BANDEIRA, Gustavo. Op. cit., p. 61. 626 Id. Ibid., p. 64. 627 Id. Ibid., p. 199. 628 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 2, p. 47.

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DESCONSIDERAÇÃO. TEORIA MAIOR E TEORIA MENOR. LIMITE DE RESPONSABILIZAÇÃO DOS SÓCIOS. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. REQUISITOS. OBSTÁCULO AO RESSARCIMENTO DE PREJUÍZOS CAUSADOS AOS CONSUMIDORES. ART. 28, § 5º. [...]

- A teoria maior da desconsideração, regra geral no sistema jurídico brasileiro, não pode ser aplicada com a mera demonstração de estar a pessoa jurídica insolvente para o cumprimento de suas obrigações. Exige-se, aqui, para além da prova de insolvência, ou a demonstração de desvio de finalidade (teoria subjetiva da desconsideração), ou a demonstração de confusão patrimonial (teoria objetiva da desconsideração).

- A teoria menor da desconsideração, acolhida em nosso ordenamento jurídico excepcionalmente no Direito do Consumidor e no Direito Ambiental, incide com a mera prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial.

- Para a teoria menor, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.

- A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.

- Recursos especiais não conhecidos. (STJ, REsp 279273/SP, Rel. Min. Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. em 04.12.2003, DJ 29.03.2004, p. 230)

O Tribunal de Justiça do Paraná, ao julgar caso onde afastou a aplicação da disregard

doctrine por ausência de preenchimento dos seus pressupostos, também fez ressalva ao dispor que,

com exceção das relações trabalhistas, consumeristas e ambientais, é necessária a comprovação de

fraude ou desvio de finalidade para se desconsiderar a personalidade jurídica:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA EXECUTADA COM BASE NA SUA PRESUMIDA DISSOLUÇÃO IRREGULAR E NA INEXISTÊNCIA DE BENS PARA GARATIR A DÍVIDA EXEQÜENDA – IMPOSSIBILIDADE – NECESSIDADE DA COMPROVAÇÃO DE QUE HOUVE UTILIZAÇÃO FRAUDULENTA OU DESVIO DE FINALIDADE. DECISÃO CASSADA. 1. Aforante as relações trabalhistas, de Direito do Consumidor e de Direito Ambiental, é pressuposto inafastável da desconsideração da personalidade jurídica a ocorrência de fraude, abuso ou mau uso, não bastando a simples prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações 2. O fato de não terem sido encontrados bens da agravante para serem penhorados não significa, por si só, tenha ocorrido uma das situações ensejadoras da desconsideração da personalidade jurídica. De igual forma, o fato de a sociedade empresária estar presumidamente com a sua atividade econômica paralisada não significa que ocorreu a sua dissolução de forma irregular, de modo a autorizar a responsabilidade subsidiária e solidária dos sócios pela dívida social. O insucesso da sociedade no desenvolvimento da atividade econômica, por si só não gera a responsabilidade, principalmente quando não evidenciados atos de malícia ou de fraude, visando acobertar os sócios. (TJPR, AI 0319879-0, 17. CC, Rel. Des. Lauri Caetano da Silva, j. 01.02.2006)

Como se observa, nas hipóteses em que resulte dano ao consumidor ou ao meio ambiente,

independentemente da ocorrência de abuso no exercício da liberdade negocial, aliado a

repercussão social que o ato originou (v.g., se um acidente de carro resultou na queda de uma

árvore ou se um fornecedor vendeu um produto com defeito para apenas um consumidor, tais

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hipóteses não repercutem socialmente, diferentemente do que ocorre quando uma empresa polui

com agentes tóxicos um rio ou pela explosão de um shopping center, ambos provocando danos

imensuráveis à coletividade), é possível dar respaldo aos artigos 28, § 5º do CDC, e 4º da Lei do

Meio Ambiente, com fulcro nos princípios constitucionais que regem e delimitam a ordem

econômica.

Todavia, não se estará aplicando a disregard doctrine, mas sim, uma nova hipótese legal,

que vise impedir que a personalidade jurídica societária “sirva de obstáculo ao exercício de

direitos considerados essenciais pelo ordenamento jurídico (caso das hipóteses de co-

responsabilização previstas no Direito do Trabalho, do Consumidor e Tributário)”629

constitucional.

5.3 A estabilidade jurídica, o direito-custo e a personalidade jurídica nas relações empresariais

Como visto no capítulo antecedente, existem novas fórmulas de se responsabilizar os

sócios, além das já conhecidas responsabilidade direta por ato próprio e desconsideração da

personalidade jurídica. Ocorre que no âmbito do Direito econômico (em que a atividade

empresarial atua e se desenvolve), precisam existir regras jurídicas claras e precisas para que o

empresário continue apostando seus recursos nesta atividade econômica produtiva.

Ao longo deste trabalho, procurou-se demonstrar que o direito brasileiro adota a regra da

separação patrimonial entre a pessoa dos sócios e a pessoa jurídica societária, sendo este o

principal estímulo para que sejam feitos investimentos na atividade econômica, na medida em que

pouquíssimas pessoas arriscariam investir todo o seu patrimônio em determinado empreendimento

sem que houvesse a regra fundamental societas distat singulis.

Quando um empresário resolve destinar recursos (que antes estavam imobilizados em

imóveis, v.g.) na atividade econômica empresarial, procura abstrair a exata noção dos riscos que a

atividade possui. Para tanto, muitas vezes procura um profissional do direito, o qual, Ao prestar assessoria para a constituição de uma sociedade empresária, ocupa-se, não apenas, com

os aspectos do direito contratual, mas também com as normas relacionadas ao direito do trabalho, do

629 RIBEIRO, Marcia Carla Pereira. A desconsideração..., p. 91.

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tributário, do consumidor, do meio ambiente, com o fim de esclarecer as repercussões que delas poderão advir na responsabilização patrimonial dos sócios.630

Essa preocupação com fatores relacionados à atividade econômica que podem trazer

prejuízos a terceiros, marca as idéias iniciais surgidas a partir dos estudos de Ronald H. Coase,

através do qual se passou a entender e enxergar os problemas legais sob a ótica da eficiência

econômica, ou melhor, qual o reflexo que determinada legislação implica na eficiência

econômica.631

O Teorema de Coase632 procurou demonstrar que, “quando os direitos de propriedade são

bem definidos e o custo de transação é igual a zero, a solução final do processo de negociação

entre as partes será eficiente, independentemente da parte a que se assinalam os direitos de

propriedade”.633

Ou seja, o Teorema de Coase disponibiliza meios para entender e enxergar os problemas

legais sob a óptica da eficiência econômica, de modo a se aplicar determinada regra legal em

termos de eficiência econômica.634 Desse modo, o Teorema de Coase vem demonstrar ao jurista

que o direito não pode se esquecer das conseqüências das suas regulamentações (ou mesmo

ausência delas), sobretudo no campo do Direito econômico.635

É cediço que toda atividade econômica empresarial pressupõe um certo risco (como

pressuposto na busca do lucro), todavia, é a quantificação deste risco que irá pautar a decisão do

empresário em investir ou não, seus recursos em determinada atividade. Conforme explica Wilges

Ariana Bruscato, Os riscos da atividade empresarial podem ser divididos em dois tipos: os decorrentes do exercício

da atividade e os relativos ao comprometimento do patrimônio de seus titulares. Toda atividade empresarial é uma atividade de risco. Tanto isso é verdade, que todos os sistemas jurídicos do mundo têm algum tipo de regulação falimentar. Quando alguém pretende iniciar uma empresa, necessita de meios materiais mais ou menos vultosos, dependendo do ramo de atividade a ser desenvolvido e do porte do empreendimento. O risco está no insucesso da empresa e na perda do investimento, de toda ordem, feito.636

630 SOUZA, Sueli Baptista de. Op. cit., p. 157. 631 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 108. 632 COASE, Ronald. The problem of social coast. The Journal of Law and Economics. The University of Chicago Press I, 1960. 633 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 105. 634 Id. Ibid., p. 108. 635 KLEIN, Vinícius. Apontamentos sobre a análise econômica do direito. In: FRANÇA, Phillip Gil (Coord.). Revista do Instituto dos Advogados do Paraná. nº 34. Curitiba, 2006, p. 410. 636 BRUSCATO, Wilges Ariana. Os princípios..., p. 63.

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Por outro lado, o risco da atividade econômica também está lastreado no lucro que o

empresário vislumbra através de seus investimentos. É através desta interface entre lucro x risco

que o empresário irá se pautar na hora de decidir por investir ou não, na atividade econômica

produtiva. Alberto Asquini, ao analisar a doutrina econômica da empresa, leciona neste sentido:

O risco da empresa – risco técnico inerente a cada procedimento produtivo, e risco econômico,

inerente à possibilidade de cobrir, os custos do trabalho (salários) e dos capitais (juros) empregados, com os resultados dos bens ou serviços produzidos para a troca – faz com que o empresário se reserve um trabalho de organização e de criação para determinar de acordo com adequadas previsões o modo de atuação da produção e da distribuição de bens. É esta a contribuição típica do empresário; daí aquela especial remuneração do empresário chamada lucro (margem diferencial entre os resultados e os custos) e que constitui o motivo normal da atividade empreendedora no plano econômico.637

Disso se extrai o que os economistas chamam de “externalidades”, ou seja, os efeitos

positivos (externalidades positivas aumentam o bem-estar, v.g., reduzindo os custos de produção)

ou os efeitos negativos (externalidades negativas reduzem o bem-estar, v.g., aumentando os

custos de produção) que surgem involuntariamente sobre a atividade econômica.

Através da análise econômica do direito, Ronald Coase assevera que as externalidades

podem ser estudadas através da Teoria dos Custos de Transação, a qual compreende cinco

atividades necessárias para viabilizar a concretização de uma negociação: a) busca de informação;

b) negociação; c) realização e formalização de contratos; d) monitoramento; e) correta aplicação

do contrato e a cobrança de indenizações por prejuízos.638 O manejo destas cinco atividades

possibilita ao empresário obter os custos de uma determinada transação, ou seja, quanto sai para

adquirir, proteger e transferir direitos de propriedade.

Por certo, esta teoria desenvolvida na década de trinta, não possui aplicação no direito

vigente, todavia, serve de “inegável contribuição para a reflexão jurídica, qual seja, a

impossibilidade de ignorar que algumas normas jurídicas, como as obrigações jurídicas impostas

aos empresários, repercutem diretamente no custo da atividade econômica; têm, portanto, a

natureza de elemento custo”.639

637 ASQUINI, Alberto. Op. cit., p. 110-111. Ou ainda, nas palavras de Rachel Sztajn, “o termo risco, medida estatística, desvio padrão ou variância, mede a probabilidade de ocorrência de um evento ou resultado. No tocante à empresa, o resultado consiste no êxito ou insucesso do empreendimento. Tanto é risco a apuração de lucros (resultado positivo) quanto de prejuízos (resultado negativo); a associação de risco à só possibilidade de perda, de fracasso, de perigo, que é a comum, não é o móvel deste estudo que foca a separação de riscos e como a ficção da personalidade jurídica de sociedades atende a tal desiderato” (SZTAJN, Rachel. Terá a personificação..., p. 384). 638 PINHEIRO, Armando Castelar; SADDI, Jairo. Op. cit., p. 62. 639 SOUZA, Sueli Batista de. Op. cit., p. 154.

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Assim, quando o empresário se vê diante de uma instabilidade legislativa e jurisprudencial,

onde a personalidade jurídica societária é suprimida (misturando-se a responsabilidade

patrimonial da pessoa jurídica com a da pessoa física) sem maiores requisitos ou fundamentações,

por evidente que o desenvolvimento da atividade econômica será afetado, em prejuízo de toda a

coletividade que se beneficia (dos impostos pagos, dos postos de trabalho gerados, dos

investimentos em pesquisa e criação de produtos e serviços adequados ao mercado de consumo,

dentre tantas outras funções (notoriamente reconhecidas) que a atividade empresarial gera na

sociedade).640

A separação patrimonial e a responsabilidade limitada dos sócios de sociedade empresária,

devidamente registrada e detentora de personalidade jurídica, permite a distinção entre o

patrimônio dos sócios e o da sociedade, existindo, em decorrência disso, uma norma de direito-

custo que interfere na escolha do empresário no momento de destinar recursos para organizar uma

atividade empresarial.

No âmbito do direito contratual, ferramenta indispensável no exercício da atividade

empresarial, “quanto maior o reconhecimento, pela ordem jurídica, da validade e eficácia das

cláusulas constantes dos instrumentos de contrato”, ou seja, “quanto menor a definição, em

normas positivas, de direitos e obrigações de contratantes, mais facilmente será calculado pelo

empresário o impacto da responsabilidade contratual nos custos da atividade econômica”.641

Ademais, numa economia globalizada que dispensa fronteiras, com o avanço de

multinacionais ávidas por investir recursos em países em desenvolvimento (como é o caso do

Brasil), um baixo direito-custo para o empresário estrangeiro é de suma importância para o

desenvolvimento do país. Destarte, quanto maior for a segurança jurídica e a liberdade de atuação

dos agentes econômicos no regular exercício de seus direitos e obrigações, maior será a atração de

investimentos.642

640 O Brasil ainda não conseguiu solucionar graves entraves internos que prejudicam a economia, “a começar pela brutal carga tributária, a lentidão do Poder Judiciário e ineficiência histórica do Estado. Há muito a desregulamentar, muito a desburocratizar, muito a profissionalizar. Ninguém acha que o Brasil se transformou num tigre. Ocorre que, ainda que ande devagar e em ziguezague, o país conseguiu abandonar uma longa história de protecionismo, vem se expondo à competição global e já atingiu um grau de consistência macroeconômica tão diferente de certos vizinhos quanto a água e o óleo”. [sic.]. (OINEGUE, Eduardo. Op. cit., p. 14). 641 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso..., v. 3, p. 14. 642 Id. Ibid., p. 16.

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Com efeito, “a boa, coerente e racional aplicação da lei é condição básica do

desenvolvimento”643 socioeconômico do país, não sendo possível, “de um momento para o outro,

fechar-se os olhos a essa realidade, pois o perigo para o desenvolvimento econômico do país é

gigantesco”, já que “o investidor desprotegido opta por não investir. A economia do Brasil sofrerá

as duras conseqüências (...)”644 se o Estado não oferecer estabilidade e segurança jurídica ao

empresário, e a preservação da personalidade jurídica societária é uma forma de se investir neste

campo.

5.4 A pessoa jurídica e os reflexos no custo Brasil pela sua desconsideração assistemática

Como visto nos últimos capítulos, num regime capitalista, a empresa, gerida pela

sociedade empresária, é de suma importância para o desenvolvimento sólido e sustentável de um

país, onde o emprego de receitas (através da destinação de bens do empresário ou do investidor)

para a geração de uma atividade econômica organizada, gera o trabalho assalariado, produz bens e

serviços para o mercado de consumo e cria as mais significativas receitas tributárias para que o

Estado possa desenvolver suas atividades sociais em prol da coletividade.645

No entanto, para que o empresário possa exercer sua atividade de forma profissional e com

garantias próprias destinadas à regulação do Direito empresarial, o legislador possibilita a criação

da pessoa jurídica (como forma de separação patrimonial) em que se atribui personalidade própria

ao patrimônio autônomo, o qual passa a ser titular de direitos e deveres, respondendo diretamente

por seus atos com um patrimônio distinto do patrimônio dos seus criadores.

Como resultado direto da criação desta nova pessoa surge a personalidade jurídica

concedida pelo Estado, através da qual sobressai a nítida separação patrimonial e a limitação dos

643 WALD, Arnoldo. A estabilidade do Direito e o custo Brasil. Revista Jurídica Virtual. vol. 1. n. 6, out./nov. 1999, p. 2. Disponível em: [http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_06/Estabilidade_direito.htm]. Acesso em 03/03/2007. 644 BRUSCATO, Wilges Ariana. Os princípios..., p. 65. 645 Neste sentido: “A grande figura dos últimos séculos – pessoa jurídica – destaca-se como um norte a ser considerado nas mínimas alterações que se possam promover na relação de direito travada entre os sujeitos. Como mencionado, a pessoa jurídica representa a perene contemporaneidade do homem, que passa por ela deixando suas idéias e seu trabalho, que dela pode se valer para relações comerciais, resguardando seu patrimônio e propagando o desenvolvimento econômico” (FOLMANN, Melissa; FALEIRO, Márcia Bataglin Dascastel. Desconsideração da personalidade jurídica. Jurisprudência Brasileira 196 (Desconsideração da personalidade jurídica). Curitiba: Juruá, 2002, p. 62).

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riscos para os empresários e os investidores que fomentam a atividade econômica na sociedade

capitalista. Destarte, se não existisse a limitação da responsabilidade, devidamente regulada pelo

ordenamento jurídico, os riscos da atividade empresarial seriam todos transportados para os

produtos e serviços produzidos, o que inviabilizaria o amplo desenvolvimento da maior parte do

setor produtivo da sociedade.

Com efeito, Arnoldo Wald resumiu a importância do vínculo existente entre “a

estabilidade do Direito e o custo Brasil”: A recente polêmica a respeito do falso dilema entre a estabilidade econômica e o desenvolvimento

acabou ensejando o consenso do Governo e da opinião pública no sentido de reconhecer que a estabilidade é condição do desenvolvimento, não constituindo, todavia, um fim em si, mas um dos ingredientes necessários e essenciais para o progresso do país. (...)

Não se deu, todavia, a devida atenção a um outro ingrediente necessário e indispensável ao desenvolvimento que é a segurança jurídica, abrangendo duas vertentes que são, respectivamente, a estabilidade legislativa e a estabilidade judiciária. (...)

Ora, a insegurança jurídica não se coaduna nem com o Estado de Direito nem com o desenvolvimento nacional. Ao contrário, a incerteza quanto ao direito vigente representa uma incontestável causa do chamado "custo Brasil", risco interno e internacional que onera o país e, conseqüentemente, todos os brasileiros.646

Ou seja, os empresários somente investem recursos na atividade empresarial produtiva se

estiverem seguros dos exatos termos em que se emprega a responsabilidade pelo exercício da

atividade empresarial e dos lucros que tal investimento irá gerar.647 É possível afirmar, inclusive,

que a quantidade (e qualidade) do investimento no setor produtivo é proporcional à segurança

jurídica que o ordenamento confere ao empresário (ou investidor).

O empresário probo e consciente das suas responsabilidades na coletividade não pode ficar

sujeito a toda sorte da atividade produtiva. A separação patrimonial é regra que interessa tanto ao

empresário como a toda coletividade que interage (direta ou indiretamente) com a sociedade

empresária, pois quem contrata com uma pessoa jurídica sabe que não está contratando com a

pessoa física administradora da sociedade, ao passo que o empresário também sabe dos limites

646 WALD, Arnoldo. A estabilidade..., p. 02-03. 647 Com efeito, ”a empresa capitalista – importa reconhecer – não é, em última análise, uma unidade de produção de bens, ou de prestação de serviços, mas sim uma organização produtora de lucros. É esta a chave, lógica para compreensão de sua estrutura e funcionamento. O objetivo da empresa, ou seja, o exercício de uma atividade econômica de produção ou distribuição de bens, ou de prestação de serviços, está sempre subordinado ao objetivo final de apuração e distribuição de lucros” (COMPARATO, Fábio Konder. Estado..., p.44-45).

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onde pode atuar, tendo em vista o patrimônio648 destinado para o exercício da atividade

empresarial.

Calixto Salomão Filho demonstra o que deve ser levado em consideração por um

empresário que deseja investir recursos na atividade produtiva empresarial:

Um sócio que queira assegurar-se de não ver seu patrimônio pessoal envolvido no insucesso do seu negócio deve dotar a sociedade do mínimo de capital necessário ao exercício de sua atividade, assegurar a rigorosa separação de sua esfera patrimonial pessoal da esfera social, bem como não usar da forma societária para benefício próprio. Deve, portanto, assegurar que a organização societária constitua realmente um centro autônomo de decisões, como presumido pelo ordenamento.649

No entanto, não basta apenas ao empresário agir conforme o ordenamento jurídico,

acautelando-se através das práticas citadas por Calixto Salomão Filho. É preciso,

concomitantemente, que o empresário não seja surpreendido diante dos inevitáveis riscos do

negócio, sobretudo quando não tiver contribuído para o insucesso da atividade.

Em razão disso, Vinícius José Marques Gontijo afirma que, A personalidade jurídica e a limitação da responsabilidade dos sócios permitem proteger o

empreendedor do riscos não aceitáveis no empreendimento societário, prefixando sua participação nos prejuízos da sociedade, sendo que, se isso não se desse, a maioria das pessoas não se disporia a atuar no mercado, trazendo, como conseqüência, aumento no desemprego e na criminalidade, mitigação no desenvolvimento do País, menor contribuição fiscal etc.650

Destarte, desde que a pessoa jurídica atue dentro da legalidade, não incorrendo em abuso

de finalidade (abuso de direito e fraude à lei) nem em confusão patrimonial, deve ser observada a

autonomia entre a pessoa jurídica e a pessoa dos sócios que a integram (conforme preceituava o

art. 20 do revogado Código Civil de 1916). Contudo, se verificadas as hipóteses justificadoras da

648 Conforme dispõe Ricardo Luiz Lorenzetti, a noção atual de patrimônio “desvinculou-se da pessoa, para ser um instrumento de atuação econômica. Surgem assim os patrimônios separados, as sociedades unipessoais, os patrimônios de afetação. O problema mais importante não é o sujeito, sim a proteção dos terceiros. Para tanto, é de pouca serventia a noção de ‘atributo da pessoa’” (LORENZETTI, Ricardo Luiz. Fundamentos do Direito Privado. Trad. de Vera Maria Jacob de Fradera. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 62). Vale a pena acrescentar que no Direito brasileiro ainda não existe o instituto jurídico da “sociedade unipessoal”, não obstante a doutrina já reivindicar sua criação há mito tempo, inclusive como forma de acabar com a simulação a que empresários têm que se submeter, ao colocar laranjas como sócios apenas para ficarem garantidos pela regra da limitação da responsabilidade. Seria muito mais coerente admitir que o empresário destinasse parte do seu patrimônio pessoal para, através da criação de uma sociedade unipessoal, pudesse realizar sua atividade empresarial garantida pela limitação da responsabilidade. 649 SALOMÃO FILHO, Calixto. O novo..., p. 117. 650 GONTIJO, Vinícius José Marques. Op. cit., p. 48. No mesmo sentido dispõe Ricardo Luiz Lorenzetti: “a personalidade jurídica e a responsabilidade limitada são forma de limitar o risco empresarial; é permitido arriscar, atribuindo-lhe só alguns dos danos que causa; os demais, ainda que existam, são suportados por outros setores” (LORENZETTI, Ricardo Luiz. Op. cit., p. 581).

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disregard doctrine, ficará o empresário sujeito a responder com seus bens pessoais pelas práticas

indevidas empregadas em desrespeito à própria personalidade jurídica da pessoa coletiva.

O que se critica, no entanto, é a utilização indiscriminada e assistemática da disregard

doctrine, muitas vezes empregada apenas para satisfazer a pretensão dos credores, em prejuízo

não só dos empresários que investem na atividade produtiva do país, mas também de toda a

sociedade que deixará de receber investimentos e fomentar riquezas, haja vista inclusive a função

social da empresa na coletividade em que atua.651

Neste sentido emerge o comentário de Sillas Tozzini e Renato Berger na atualização da

obra “Das sociedades por quotas de responsabilidade limitada”, de Egberto Lacerda Teixeira:

Temos notado, em alguns casos, uma extensão exagerada na aplicação da desconsideração da

personalidade jurídica, principalmente naquelas situações específicas que não seguem a regra geral do CC/02 e cuja regulamentação dá margem a interpretações mais amplas sobre as hipóteses de desconsideração. [...]

O problema que vemos nesse uso indiscriminado da desconsideração da personalidade jurídica é serem desencorajadas a atividade empresarial e a assunção de riscos pelos empresários. A limitação da responsabilidade dos sócios serve exatamente para estimular o desenvolvimento econômico. Claro que é injusto e razoável impedir que tal benefício seja convertido em instrumento de fraude, conforme proposto pela teoria da desconsideração da personalidade jurídica, mas a análise deve ser feita caso a caso e de forma criteriosa.652

Não se tem notícia ainda de estudos mais aprofundados para se apurar o efetivo prejuízo

imposto ao país diante da insegurança jurídica (fruto também da assistemática utilização da

disregard doctrine) gerada aos investidores do setor produtivo da economia brasileira.653 Mas

certamente, os números serão estarrecedores, não só pela fuga de capital estrangeiro para outros

países onde existam regras mais claras e precisas, como também pela ausência de aplicação no

setor produtivo dos capitais já existentes no país, os quais acabam sendo redirecionados para a

poupança do investidor ou para a especulação imobiliária.

651 No que concerne à função social da empresa, vale a pena conferir as palavras de Jeanne D’Arc Anne Marie Lucie Blanchet: “Se se pugna verdadeiramente por construir uma sociedade justa, baseada na valoração da dignidade humana, o caminho a ser seguido não é nem o do caos legislativo, nem tampouco o do desrespeito a direitos consagrados, mas de critérios norteadores capazes de conferir ao cidadão com clareza seus direitos e deveres. Deseja-se sim viver em uma sociedade em que todos cumpram suas ‘funções-sociais’ (as empresas inclusive, tendo em vista sua vultosa importância na Sociedade como um todo), empregados e patrões, mas funções estas que não lhes sejam árduas ou vagas a ponto de se ofender o fundamento constitucional do Estado Democrático de Direito denominado de dignidade da pessoa humana” (BLANCHET, Jeanne D’Arc Anne Marie Lucie. A função social da empresa, a liberdade econômica e o bem comum. (de acordo com o Código Civil de 2002). Curitiba: Genesis, 2004, 113). 652 TEIXEIRA, Egberto Lacerda. Das sociedades..., p. 30-31. 653 Arnoldo Wald comenta apenas da existência de um “Relatório” elaborado pelo Banco Mundial que faz referência ao caos legislativo em que vivemos, o qual traz incerteza jurídica em virtude do “emaranhado de leis” que tratam de determinadas matérias (WALD, Arnoldo. A estabilidade...).

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No âmbito da economia, estudos realizados já deram conta de que os custos do crédito

consignado disponibilizado pelo mercado financeiro são muito inferiores ao crédito pessoal

concedido ao consumidor. Isso porque “a satisfação do crédito consignado independe da

intervenção do Judiciário (e do moroso processo de cobrança que é disparado em casos tais),

trazendo uma certeza jurídica muito mais clara sobre o adimplemento da obrigação devida”.654

Jairo Saddi demonstra, na prática, os efeitos deste fenômeno na economia nacional,

representado por direito-custo com externalidades negativas: Segundo dados do Banco Central, os empréstimos com desconto em folha atingiram, em maio de

2004, R$ 7,8 bilhões, cerca de 5% da oferta de crédito. De março a maio, o crescimento foi de 25,1%, ante um crescimento de 11,9% do crédito pessoal, representando um vigoroso aumento no período. O juros médio das operações consignadas ficou em 39,1% ao ano, ante a taxa de crédito pessoa média de 72,7%.

Há, assim, evidências demasiadas para não se frustrar este produto bancário, agora no nascedouro.655

O exercício da atividade empresarial é indissociável da segurança e da estabilidade

jurídicas, pois as decisões tomadas no âmbito das empresas não permitem vacilos ou oscilações,

muitas vezes tomadas de uma hora para outra, sendo de suma importância a garantia de que suas

diretivas não comportarão digressões subjetivas, pegando de surpresa o empresário e os que com

ele contratam.

Arnoldo Wald, por diversas vezes, vem insistindo na necessidade de o Direito brasileiro se

sustentar em bases sólidas e seguras, não permitindo a malfadada insegurança jurídica, que acaba

depondo contra o desenvolvimento nacional, deixando o país na retaguarda dos novos contratos e

investimentos que surgem a cada momento na sociedade globalizada, ou seja: No momento em que o Brasil acaba de ingressar no terceiro milênio, comemorando quinhentos anos

do seu descobrimento, os meios jurídicos e a opinião pública reconhecem a necessidade de uma grande reforma no plano do direito. Após ter restaurado o regime democrático e conquistado, nos últimos cinco anos, a estabilidade monetária, abrindo a sua economia, o País precisa agora alcançar a estabilidade jurídica que dê ao cidadão um mínimo de garantias quanto ao seu presente e seu futuro, permitindo o planejamento empresarial a curto, médio e longo prazos, que caracteriza o Estado de Direito no mundo hodierno.656

E, quanto à necessidade de se garantir tanto a justiça quanto a segurança jurídica, continua

o jurista:

654 NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Op. cit., p. 262. 655 SADDI, Jairo. O crédito consignado em folha de pagamento. Revista de Direito Bancário e do mercado de Capitais. Ano 7, n. 25, jul./set. 2004, São Paulo, p. 25. (Apud: NUNES, Márcio Tadeu Guimarães. Op. cit., p. 262-263). 656 WALD, Arnoldo. Um novo direito..., p. 78.

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Por outro lado, se o direito tem a dupla finalidade de garantir tanto a justiça quanto a segurança, é preciso encontrar o justo equilíbrio entre as duas aspirações, sob pena de criar um mundo justo, mas inviável, ou uma sociedade eficiente, mas injusta, quando é preciso conciliar a justiça e a eficiência.

Não devem prevalecer nem o excesso de conservadorismo, que impede o desenvolvimento da sociedade, nem o radicalismo destruidor, que não assegura a continuidade das instituições. O momento é de reflexão e construção para o jurista, que, abandonando o absolutismo passado, deve relativizar as soluções, tendo em conta tanto os valores éticos quanto as realidades econômicas e sociais. Entre princípios antagônicos, num mundo dominado pela teoria da relatividade, cabe adotar, também no campo do direito, o que alguns juristas passaram a chamar os princípios de geometria variável, ou seja, o equilíbrio entre justiça e segurança, com a prevalência da ética mas sem desconhecer a economia e os seus imperativos.657

A correta aplicação da disregard doctrine no Direito brasileiro certamente contribuirá para

o desenvolvimento socioeconômico do país, chamando investidores estrangeiros e atraindo a

atenção dos investidores locais, colocando o Brasil em posição de destaque não só perante o

Mercosul, como também perante a comunidade global, afastando meros investidores especulativos

e trazendo capital sólido para assegurar o desenvolvimento da atividade econômica organizada,

em benefício de toda a coletividade que direta ou indiretamente se beneficia da atividade

empresarial.

657 Id. Ibid., p. 93.

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6. Casos práticos que reafirmam a importância da personalidade jurídica na sociedade contemporânea 6.1 A tentativa do Estado de aplicar a disregard doctrine de forma administrativa (o fiscal como juiz)

Tomou de sobressalto a comunidade jurídica nacional a tentativa do Governo Federal de

aplicar a disregard doctrine através dos fiscais da chamada Super-Receita, instituída recentemente

pelo Projeto Lei 6.272/2005, que se transformou na Lei 11.457 (de 16/03/2007), criando a

Secretaria da Receita Federal do Brasil, a qual abrange e unifica as atividades da Secretaria da

Receita Federal e da Secretaria da Receita Previdenciária.

Em suma, o Congresso Nacional incluiu no referido PL, a Emenda 3, acrescentando o § 4º

ao art. 6º da Lei 10.593/2002, com a seguinte redação: “§ 4º No exercício das atribuições da

autoridade fiscal de que trata esta Lei, a desconsideração da pessoa, ato ou negócio jurídico que

implique reconhecimento de relação de trabalho, com ou sem vínculo empregatício, deverá

sempre ser precedida de decisão judicial.”

No entanto, após o texto da Emenda 3 ser aprovado por dois terços dos deputados e

senadores da República, vinculando a desconsideração da personalidade jurídica ao prévio crivo

do Poder Judiciário (tal como disposto no art. 50 do Código Civil), foi encaminhado para sanção

presidencial, quando o Presidente da República vetou a emenda, acolhendo os reclamos dos

auditores fiscais e do Ministro da Fazenda (Guido Mantega) de que não poderiam ter sua atividade

limitada, sob pena de prejuízo na arrecadação do Estado.658

Após o veto, o Ministro da Fazenda encaminhou para o Congresso um Projeto Lei (536),

onde, sob a justificativa de regulamentar o art. 116 do Código Tributário Nacional, pretende

autorizar, definitivamente, a desconsideração da personalidade jurídica no âmbito administrativo, 658 Na Carta da Unafisco (Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal) enviada aos parlamentares do Congresso Nacional, é nítida a intenção dos fiscais de afastarem do crivo judicial as decisões administrativas relacionadas ao reconhecimento de vínculo de trabalho as empresas que forem reconhecidas de fachada, ou seja: “Nesse sentido, advertimos que condicionar a desconsideração de ato, negócio ou personalidade jurídica à decisão judicial tornará excessivamente moroso o procedimento administrativo, podendo resultar em decadência do crédito tributário. O trabalho diário de combater a sonegação, desconsiderar atos ou negócios jurídicos, bem como a personalidade jurídica, quando fraudulentos, significa cobrar o tributo do verdadeiro contribuinte e não do "laranja". Portanto, vedar o Fisco de desconstituir a personalidade jurídica significa dificultar ou até impedir o lançamento do crédito tributário, em face do prazo decadencial”. Disponível em: [http://www.reporterbrasil.com.br/conteudo.php?id=100]. Acesso em: 29/05/2007.

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provendo os auditores fiscais das prerrogativas de fiscalizar, autuar e julgar uma pessoa jurídica

quando avaliarem que o contrato de prestação de serviços firmado entre empresas encobre, na

verdade, uma relação trabalhista, gerando sonegação de tributos.

Com efeito, se prevalecer o veto à Emenda 3, concomitantemente com a aprovação do PL

536 na forma como foi enviado ao Congresso Nacional pelo Poder Executivo, além da violação de

diversos dispositivos legais (v.g., na Constituição da República: devido processo legal, ampla

defesa, contraditório; no Código Civil: art. 50; na Lei 11.196/05: art. 129) estar-se-á usurpando a

atividade jurisdicional pelos fiscais da Super-Receita, tal como já constatado por decisão do TRT-

2. R:

FISCAL DO TRABALHO. COMPETÊNCIA FUNCIONAL. LIMITES. USURPAÇÃO DE ATIVIDADE JURISDICIONAL. Se os auditores fiscais do trabalho têm por atribuição assegurar, em todo o território nacional, o cumprimento das disposições legais e regulamentares no âmbito das relações de trabalho e de emprego - e esta atribuição obedece ao princípio da legalidade - daí, entretanto, não se infere que possuam competência para lavrar autos de infração assentados em declaração de existência de contrato de emprego, derivada unicamente de sua apreciação da situação fática subjacente. A transmutação da natureza jurídica dos diversos tipos de contrato que envolvem a prestação de trabalho - como os prestação ou locação de serviços, de empreitada e outros, inclusive o que decorre de associação cooperativa - em contratos individuais de trabalho, depende de declaração expressa, que se constitui em atividade jurisdicional, exclusiva do Poder Judiciário. Recurso Ordinário provido, para se conceder a segurança (TRT-2.R, RO nº 01096200601702008, Rel. Des. Maria Aparecida Duenhas, j. em 31/01/2007, Acórdão nº 20070036823).

Por outro lado, deve-se ressaltar que a pretensão do Executivo de atribuir à Super-Receita a

função do Poder Judiciário de desconsiderar a personalidade jurídica societária, encontra óbice

inclusive em outras legislações federais, como é o caso do art. 129 da Lei 11.196, conhecida

inicialmente como “MP do Bem”, ou seja: Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de

natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002o - Código Civil.

Como se observa, o art. 129 da Lei 11.196/2005 (que permanece em vigor), ao vincular a

atividade fiscal e previdenciária às diretrizes do art. 50 do Código Civil, está respeitando a

atividade jurisdicional, sem que, com isso, ocorra qualquer limitação à atividade do agente fiscal,

na medida em que, guardados os trâmites fazendários, o fisco poderá requerer ao juiz que

desconsidere a personalidade jurídica da sociedade que esteja agindo com abuso de direito, fraude

à lei ou confusão patrimonial.

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200

Por certo, o agente fazendário não possui margem discricionária para praticar atos relativos

à análise (jurídica) que disponha qual pessoa jurídica societária está sendo utilizada de forma

abusiva e qual está regular, ou ainda, qual contrato de prestação de serviços entre sociedades

encobre uma relação trabalhista e quais não encobrem, já que, nesta última hipótese, só a Justiça

do Trabalho pode definir vínculos e conceitos desta natureza jurídica.

Em artigo publicado no site da Bovespa, Márcio Tadeu Guimarães Nunes e André

Carvalho analisam os efeitos sociais do veto presidencial à Emenda 3, conforme se observa: Lembre-se, ademais, que o agente fazendário pratica atos vinculados, não tendo margem

discricionária e pessoal para ‘entender’ qual sociedade/pessoa jurídica é dissimulada e qual é regular, atribuições pessoais que, verdadeiramente, quando mal empregadas, podem equivaler a dissolver a pessoa jurídica criada com propósito específico (ex: prestar serviços de natureza intelectual/artística).

Esta atuação indiscriminada e arbitrária dos auditores fiscais produzirá indesejáveis reflexos sociais, tendo em vista que o ônus por eles ocasionado poderá abalar a viabilidade, o planejamento e a gestão das empresas, empurrando-as para a zona da informalidade, além de gerar desemprego generalizado.

Meras suspeitas não devem ensejar medidas inconstitucionais capazes de desconsiderar pessoas jurídicas constituídas de forma legal, aumentando sobremaneira custos empresariais, validamente calculados, mediante planejamentos tributários lícitos, tudo a produzir nocivos reflexos sócio-econômicos.659

O empresário brasileiro mais uma vez é atingido pela volúpia arrecadadora do fisco

brasileiro encabeçada pelo Poder Executivo, para o qual a personalidade jurídica societária é

apenas um óbice ao aumento da arrecadação tributária. No entanto, diversas entidades

representativas da sociedade civil e de sociedades de classe (Sescon, Fiesp, Ciesp, Fecomércio,

ACSP, CNS, OAB, Abracom, Anefac, Fenacon etc.) estão se mobilizando para combater mais

esta investida contra a livre-iniciativa econômica e a própria sociedade em geral, devido à

relevante importância da personalidade jurídica societária para o desenvolvimento do país.660

659 NUNES, Márcio Tadeu Guimarães; CARVALHO, André. Supressão da emenda pode ampliar uso da Desconsideração da Personalidade Jurídica. Espaço Jurídico Bovespa. Disponível em: [http://www.bovespa.com.br/Investidor/Juridico/070508NotA.asp]. Acesso em: 29/05/2007. 660 Situação semelhante também poderá acorrer na da Lei Estadual 15.340/06, em vigor desde 23/03/2007, pela qual o Estado do Paraná estabeleceu normas sobre licitações, contratos administrativos e convênios no âmbito dos seus poderes estaduais. A preocupação decorre da aplicação do art. 158, através do qual poderão ser estendidos os efeitos das penalidades de “suspensão do direito de contratar com a Administração ou da declaração de idoneidade às pessoas físicas que constituíram a pessoa jurídica, as quais permanecem impedidas de licitar com a Administração Pública enquanto perdurarem as causas da penalidade, independentemente de nova pessoa jurídica que vierem a constituir ou de outra em que figurem como sócios” ou ainda penalizar “as pessoas jurídicas que tenham sócios comuns com as pessoas físicas referidas no inciso anterior”. Como se observa, é mais uma tentativa, agora no âmbito estadual, do Poder Executivo fazer às vezes do Judiciário, exorbitando sua competência para adentrar em seara que compete exclusivamente ao juiz. Por outro lado, urge mencionar a existência de um precedente isolado do STJ que admite a desconsideração da personalidade jurídica na esfera administrativa, em acórdão relatado pelo Min. Castro Meira no ano de 2003: STJ, RMS 15.166/BA, Rel. Min. Castro Meira, Segunda Turma, j. em 07.08.2003, DJ 08.09.2003, p. 262.

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201

6.2 A visão da jurisprudência antes e após o Código Civil de 2002

Embora o Direito brasileiro adote o sistema da civil law, não há como se negar a grande

importância que a jurisprudência representa tanto na interpretação legislativa, como também,

quando omissa a legislação, cobrindo a lacuna da lei, sobretudo hodiernamente, diante do rápido

avanço e surgimento de novas relações jurídicas, muitas delas sequer mencionadas ou previstas

em qualquer legislação nacional. Por outro lado, também deve se levar em consideração que

“muitas vezes a intervenção judicial acaba por facilitar ou favorecer comportamentos

oportunistas”661, na medida em que uma visão prevalecente na jurisprudência sobre determinada

matéria pode provocar uma enxurrada de ações que certamente não seriam ajuizadas sem que o

Poder Judiciário tivesse exarado seu posicionamento sobre determinado litígio.

Com efeito, a importância da jurisprudência em outros países que também têm origem

romano-germânica já foi objeto de estudos,662 não existindo qualquer dúvida sobre a importância

da jurisprudência na interpretação das leis aos casos concretos. Pietro Perlingieri leciona neste

sentido: É preciso considerar o papel da jurisprudência, o valor do precedente judiciário (as sentença dadas

precedentemente sobre um caso que o juiz considera análogo àquele a ser decidido) que, mesmo em sistemas diversos daquele italiano, nem sempre é vinculante. Se se analisa o papel da jurisprudência como fonte, verificar-se-á que não é tanto o ato jurisdicional a criar o direito, mas sim, a sua ratio decidendi, isto é, o princípio que representa a idéia sobre a qual se funda a sentença; idéia, aliás, sempre ligada à fattispecie concreta, às suas peculiaridades que, frequentemente, são únicas.663

No entanto, ainda que a jurisprudência possa ser considerada como fonte do direito, não se

pode esquecer que no direito romano-germânico a jurisprudência deve se submeter à lei, razão

pela qual os juízes “persistem na sua atitude de submissão quotidiana à lei, ainda que o legislador

reconheça, expressamente, que a lei pode não ter previsto tudo”. Ou seja, “o juiz deve, neste caso,

nos nossos países, pronunciar uma decisão; não se pode refugiar atrás da fórmula do non liquet,

como era permitido ao juiz, na época romana, quando o direito era incerto”.664

661 SZTAJN, Rachel. Função social do contrato..., p. 40. 662 Conforme relata René David: “Realizou-se uma pesquisa na Itália, sob os auspícios do Consiglio Nazionale delle Ricerche, no sentido de esclarecer o papel desempenhado pela jurisprudência como fator de evolução do direito. Cf. Gorla, G. artigo Giurisprudenza. In: Enciclopedia del Diritto (1969)” (DAVID, René. Op. cit., p. 117). 663 PERLINGIERI, Pietro. Op. cit., p. 20. 664 DAVID, René. Op. cit., p. 118-119.

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Por outro lado, entre as diversas espécies de ciências jurídicas existentes (v.g., filosofia do

Direito, teoria do Direito, sociologia do Direito, história do Direito, Jurisprudência), a

Jurisprudência ocupa posição privilegiada, ligada às atividades jurídicas práticas, ou seja,

enquanto as demais ciências se ocupam do Direito em geral (ou também de todos os ordenamentos

jurídicos surgidos ao longo da História), a jurisprudência tem em vista sempre um ordenamento

jurídico determinado ao qual os seus enunciados referem o seu sentido de imediato,

independentemente deste ou daquele ordenamento jurídico.665

Como informado anteriormente, a disregard doctrine surgiu na common law da Inglaterra

e dos Estados Unidos no século XIX, tendo sido fundamentada através da jurisprudência daqueles

países, como forma de se limitar a autonomia da pessoa jurídica nos casos de utilização

fraudulenta da pessoa jurídica.

No Brasil, segundo relata Rubens Requião (no seu célebre artigo que introduziu

definitivamente a disregard doctrine no país)666, até o final da década de 60 não se tinha notícia de

qualquer decisão que tivesse aplicado a doutrina da desconsideração, ao menos nos moldes como

sistematizada pelo jurista Rolf Serik na Alemanha. Diante disso, se levado em consideração que

apenas em 1990 (através da Lei 8.078/90) a disregard doctrine foi efetivamente positivada no

Direito brasileiro, observa-se a grande importância que a jurisprudência exerceu durante todas as

décadas em que não existia previsão legal.

Todos os litígios envolvendo a má utilização da pessoa jurídica para prática de atos que

encobrissem o real agente do ilícito eram decididos pela jurisprudência sem qualquer respaldo

legal, tal como acontece até hoje em dia com a defesa do executado através da objeção de pré-

executividade, a qual também não se encontra positivada na legislação nacional, restando à

jurisprudência o importante papel de resolver as questões que lhe são dirigidas,

independentemente da positivação dos assuntos.667

665 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. 2. ed. Trad. de José Lamego. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 226-227. 666 RT 410/12. 667 Ao comentar a influência de decisões judiciais tomadas pelo mesmo tribunal sem instabilidade nos julgamentos, Márcia Carla Pereira Ribeiro afirma: “Os elementos factuais devem ser considerados de forma atenta quando da atividade do Poder Judiciário de qualificação jurídica dos mesmos, evitando-se uma instabilidade nos posicionamentos emanados do Poder Judiciário, especialmente quando provenientes dos Tribunais Superiores, sob pena de não-estabelecimento de uma verdadeira cultura de formação de jurisprudência como fonte do direito brasileiro” (RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Educação e Cultura: Direito ou Contrato? Revista Direito GV, v. 2, n. 2, p. 135, jul./dez. 2006).

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203

Por outro lado, não se pode deixar de ressaltar que a inexistência de positivação da

disregard doctrine no Direito brasileiro ocasionou diversos julgamentos contrários ao real sentido

da disregard doctrine, muitos deles misturando responsabilidade direta dos sócios e dos

administradores à desconsideração, outros autorizando a disregard doctrine em situações

totalmente inaplicáveis, permitindo a desconsideração com os mais variados fundamentos, o que

certamente também contribuiu para a sua reiterada aplicação assistemática.

O que se pretende demonstrar é a evolução jurisprudencial no decorrer dos últimos anos,

sobretudo em relação às decisões proferidas anteriormente à vigência do art. 50 do Código Civil

de 2002, e às proferidas após, com a sua devida sistematização, quando a jurisprudência passou a

tratar da matéria com maior observância aos requisitos estampados na disregard doctrine e no

próprio art. 50 do Código Civil.

6.2.1 Decisões anteriores ao Código Civil de 2002

A primeira decisão analisada é do extinto TAPR (AC 0146610-4). Através da sentença de

primeiro grau, foi indeferida a desconsideração da personalidade jurídica contra uma sociedade

limitada, vendedora de produtos agropecuários na cidade de Marechal Cândido Rondon, tendo em

vista que as provas levadas a efeito nos autos demonstraram que a sociedade estava ativa,

recolhendo seus impostos, apenas não possuía estabelecimento comercial próprio, o qual se

confundia com a residência de um dos sócios.

No entanto, o TAPR deu provimento ao recurso da sociedade credora para desconsiderar a

personalidade jurídica da devedora, conforme segue:

APELAÇÃO CÍVEL. EMBARGOS À EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. HIPÓTESE DE APLICAÇÃO EM CASO NO QUAL A SOCIEDADE PERMANECE ATIVA, MAS RESTA CONFIGURADO O ABUSO DE DIREITO. LEGITIMIDADE PASSIVA DOS SÓCIOS. RECURSO PROVIDO. É de ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica embora a sociedade limitada permaneça ativa, recolhendo os tributos pelo Darf-Simples e mantendo endereço idêntico ao residencial de seu sócio-gerente, pois se presta unicamente a dar personificação jurídica à atividade autônoma de seus sócios, vez que, não possuindo estabelecimento próprio, bens imóveis e móveis e nem estoques para assegurar suas obrigações para com os credores, propicia que seja usada com abuso de direito, para prejudicar e ilaquear a boa fé de terceiros (TAPR, AC 0146610-4, 5. CC, rel. Augusto Lopes Cortes, j. em 28/11/2001, Acórdão nº 12858).

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Prevaleceu, neste caso, o entendimento do TAPR segundo o qual o fato de a sociedade não

possuir sede própria, com patrimônio destacado do patrimônio pessoal do sócio majoritário, seria

fundamento suficiente para demonstrar o abuso da personalidade jurídica societária.

A segunda decisão também é do extinto TAPR (AC 0178096-1). Trata de execução de

título extrajudicial movida por empresa anunciante de listas telefônicas contra empresa que atua

no ramo de alimentos. A decisão de primeiro grau acolheu o pedido da credora e desconsiderou a

personalidade jurídica de uma terceira empresa, que não havia feito o anúncio, mas que pertencia

à mesma família dos sócios e procuradores da devedora, o que levou o TAPR ao entendimento de

que teria sido aberta apenas para fraudar os credores da outra empresa. Segue a ementa: EXECUÇÃO - PESSOA JURÍDICA - INEXISTÊNCIA DE BENS PARA SUPORTÁ-LA -

CONSTITUIÇÃO DE NOVA EMPRESA - MANOBRA FRAUDULENTA CARACTERIZADA - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE - DISREGARD DOCTRINE - ADMISSIBILIDADE - AGRAVO DE INSTRUMENTO DESPROVIDO. Diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deve desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos ou abusivos (Rubens Requião) (TAPR, AC 0178096-1, 6. CC, rel. Augusto Lopes Cortes, j. em 28/11/2001, Acórdão nº 12858).

O que chama a atenção nesta decisão é que a desconsideração da personalidade jurídica foi

deferida diante da inexistência de bens da empresa devedora, para atingir terceira sociedade, que,

embora pertença à mesma família dos sócios da executada, sequer foi beneficiada diretamente

pelo anúncio realizado, já que o anúncio foi feito pela sociedade devedora, a qual encontrava-se

ativa e atuante, tanto é que estava contratando anúncios de sua marca na lista telefônica.

Por certo, esta decisão não se coaduna com os requisitos da disregard doctrine

estabelecidos no art. 50 do Código Civil.

A próxima decisão é do STJ (REsp 256292/MG). Nesta decisão, o STJ manteve a

posicionamento do extinto TAMG, o qual também havia indeferido o pedido de desconsideração

da personalidade jurídica, por entender que o simples fato de a empresa estar inadimplente com a

entrega das declarações de rendimentos à Receita Federal, não implica as hipóteses de incidência

da disregard doctrine. Dispõe a ementa: SOCIEDADE COMERCIAL. Responsabilidade dos sócios. Inexistência dos pressupostos.

Admitida pela doutrina e pela lei a desconsideração da sociedade para atingir os bens dos sócios, a sua decretação somente pode ser deferida quando provados os seus pressupostos, o que não aconteceu no caso dos autos. Art. 10 do Dec. 3708/19. Recurso não conhecido (STJ, REsp 256292/MG, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, j. 15.08.2000, DJ 25.09.2000, p. 107).

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Interessante observar neste caso, que a fundamentação utilizada pelo credor (e refutada

pelos Tribunais, respectivamente) para obter a desconsideração da personalidade jurídica da

sociedade devedora, está lastreada no art. 10 do revogado Dec. 3.708/1919, o qual não trata da

disregard doctrine, mas sim, da responsabilidade pessoal do sócio por atos praticados com

excesso de mandato ou por violação da lei ou do contrato. Nestas hipóteses, respondia o sócio (na

antiga Lei das sociedades limitadas), solidária e ilimitadamente perante a sociedade e terceiros.

Situação análoga é citada por Fábio Tokars668 (RT 654/182), onde também foi

desconsiderada a personalidade jurídica de uma sociedade limitada para atingir a pessoa do sócio-

gerente que emitiu cheques sem fundos em nome da sociedade. O fundamento utilizado também

foi o da parte final do art. 10 do Dec. 3.708/1919, não guardando, com efeito, qualquer relação

com a disregard doctrine.

A próxima ementa é do TJRS (AI 70003946506). Nesse caso, igualmente julgado antes da

entrada em vigor do Código Civil de 2002, interessante observar que, na ausência de requisitos

sistematizados, a jurisprudência colaciona diversas hipótese para aplicar a disregard doctrine, tais

como: “Prova inconteste de fraude, de prática de atos com finalidade premeditadamente ilícita, de

abuso de direito, de desonestidade, de ato criminoso e outras hipóteses igualmente fortes, como

encerramento irregular das atividades da empresa e a incapacidade financeira ou patrimônio para

garantir o débito”. A ementa oficial dispõe: AÇÃO MONITÓRIA CONTRA PESSOA JURÍDICA. NÃO LOCALIZAÇÃO DESTA. PEDIDO

DE CITAÇÃO DOS SÓCIOS. TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA. INAPLICABILIDADE.

A desconsideração da personalidade jurídica não pode ser tratada em termos radicais. Há uma regra geral que distingue entre o patrimônio da empresa e o de seus sócios, princípio este que cede somente ante circunstâncias especiais e excepcionais, diante de prova inconteste, de fraude, de prática de atos com finalidade premeditadamente ilícita, de abuso de direito, de desonestidade, de ato criminoso e outras hipóteses igualmente fortes, como encerramento irregular das atividades da empresa e a incapacidade financeira ou patrimônio para garantir o débito (TJRS, AI 70003946506, 5. CC, rel. Des. Marco Aurélio dos Santos Caminha, j. em 04.04.2002).669

Ou seja, a discricionariedade da jurisprudência era a regra em muitos julgamentos,

podendo ser desconsiderada a personalidade jurídica até mesmo em casos de incapacidade

financeira ou patrimonial para garantir o débito, situações estas que hoje em dia não implicam, via

de regra, as hipóteses previstas no art. 50 do Código Civil brasileiro.

668 TOKARS, Fábio. Sociedades..., p. 277. 669 Jurisprudência Brasileira – JB 196/189.

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A próxima ementa é do TJPR (AC 109.977-4). Este caso envolve relação de consumo,

onde a empresa executada (execução de título judicial) vendeu dois veículos ao consumidor

(autor), sendo que um deles estava alienado e o vendedor não conseguiu obter a desalienação,

mesmo após efetuar a venda. A ação foi movida diretamente contra a empresa vendedora e o

sócio, sob alegação de que teria sido dissolvida irregularmente. O juízo de primeiro grau julgou

procedentes os pedidos (cominatórios e indenizatórios), condenando tanto a sociedade como o ex-

sócio, legitimando a desconsideração da personalidade jurídica realizada pelo próprio autor, já que

moveu desde o início a ação contra a pessoa jurídica e a pessoa do sócio. Tal questão foi refutada

tanto na sentença como no acórdão. A ementa possui a seguinte redação:

INDENIZAÇÃO. VENDA DE AUTOMÓVEL COM ÔNUS. IMPOSSIBILIDADE DO NOVO PROPRIETÁRIO DE DISPOR DO BEM. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL E MATERIAL DEVIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA DO SÓCIO MAJORITÁRIO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. MÁ ADMINISTRAÇÃO. A GRAVE SITUAÇÃO FINANCEIRA NÃO IMPEDE A CONDENAÇÃO DE INDENIZAÇÃO, QUANDO DEVIDA. RECURSO IMPROVIDO, UNÂNIME (TJPR, AC 109.977-4, 6. CC, rel. Des. Cordeiro Cléve, j. em 24/10/2001, Acórdão 7917).

Um dos fundamentos utilizados pelo TJPR foi o de que a precária situação financeira do

sócio implicaria a sua má gestão societária, o que seria motivo para aplicar a desconsideração da

personalidade jurídica da sociedade, haja vista sua manifesta insolvência para arcar com o

pagamento da indenização em que a empresa e o sócio foram condenados. Na motivação do voto,

dispôs o relator:

Por outro lado, o próprio apelante confirmou seu possível estado de insolvência, já que, em grau de recurso, relatou que suas condições financeiras não são boas, estando a sofrer algumas execuções. Assim, além de se observar a má administração da empresa, também há que se considerar a fraude existente, induzido o apelado em erro, pois pensou estar comprando um bem livre e desembaraçado de qualquer ônus.

Analisando os aspectos fáticos ocorridos no caso em comento, percebe-se que existiram

outros fundamentos que justificam a aplicação da disregard doctrine, sobretudo por se tratar de

relação de consumo, onde a extenso rol de situações previstas no art. 28 do Código de Defesa do

Consumidor, legitimaria uma das hipóteses de utilização indevida da personalidade jurídica

societária.

Por fim, não se pode desconsiderar, contudo, que diversas decisões proferidas antes da

sistematização da disregard doctrine no Código Civil já se espelhavam nos requisitos específicos

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da desconsideração, ou seja, fraude à lei, abuso de direito, estes com finalidade ou conseqüência

de confusão patrimonial.

As próximas duas ementas do TAPR (AC 0170723-1 e AI 0126952-1) demonstram a

preocupação da jurisprudência com a preservação do instituto da personalidade jurídica: EMBARGOS DE TERCEIRO - PENHORA INCIDENTE SOBRE BENS DA PESSOA JURÍDICA

- TÍTULO EXECUTADO EMITIDO POR UMA DE SUAS SÓCIAS - DÍVIDA PARTICULAR - AUTONOMIA PATRIMONIAL DA EMPRESA E DAS PESSOAS FÍSICAS QUE A COMPÕEM - INSUBSISTÊNCIA DA CONSTRIÇÃO - AUSÊNCIA DE PROVA DE EXERCÍCIO DE ATOS DE GESTÃO - AFASTADA APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - SENTENÇA REFORMADA NESSE SENTIDO - INVERSÃO DO ÔNUS DA SUCUMBÊNCIA - APELO CONHECIDO E PROVIDO. São inconfundíveis as pessoas jurídicas e as pessoas físicas que a compõem, não respondendo os bens daquelas pelas dívidas particulares de seus sócios. Aplicação do art. 20, do Código Civil, que dita regra de suma importância para o regime das sociedades comerciais, cuja personalidade jurídica é distinta da de seus sócios, tendo autonomia patrimonial (TAPR, AC 0170723-1, 6. CC, rel. Anny Mary Kuss, j. em 25/06/2001, Acórdão 11959).

EXECUÇÃO POR TÍTULO EXTRAJUDICIAL - INEXISTÊNCIA DE BENS. PEDIDO DE

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA EXECUTADA - INDEFERIMENTO - AUSÊNCIA DE PROVA DE UTILIZAÇÃO FRAUDULENTA E COM ABUSO DE DIREITO. AGRAVO IMPROVIDO. A simples ausência de bens, por si só, não autoriza o deferimento a pedido de desconsideração da pessoa jurídica, havendo necessidade de comprovação de utilização fraudulenta e com abuso de direito (TAPR, AI 0126952-1, 6. CC, rel. Costa Barros, j. em 08/02/1999, Acórdão 8453).

Com efeito, a jurisprudência que precede a vigência do Código Civil de 2002 aborda sob

diversas formas a disregard doctrine, algumas se afastando nitidamente dos requisitos formulados

por Rolf Serick e posteriormente trabalhados na doutrina de José Lamartine Corrêa de Oliveira

Lyra e Fábio Konder Comparato, outras buscando fundamento no art. 28 do Código de Defesa do

Consumidor, mesmo diante da ausência de relação de consumo. Todavia, conforme se verificará

pelo cotejo deste tópico com o seguinte, é inegável que a sistematização da disregard doctrine no

Código Civil de 2002 influenciou a jurisprudência a partir de janeiro de 2003, com a entrada em

vigor do art. 50 do Código Civil.

6.2.2 Decisões posteriores ao Código Civil de 2002

A primeira decisão que se comenta após a vigência do Código Civil de 2002 é do extinto

2º TACivSP (AI 879131-0/7) e aborda uma questão de Direito intertemporal, atinente à aplicação

do art. 50 do Código Civil para fatos ocorridos anteriormente à sua vigência. Dispõe a ementa:

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DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. Sociedade comercial. Pretendida responsabilização pessoal do administrador por atos praticados durante sua gestão. Inadmissibilidade se os fatos ocorreram antes da vigência da norma do art. 50 do CC (de 2002).

A responsabilidade pessoal do administrador por atos praticados na gestão da sociedade limitada, decorrente da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do CC de 2002, não abrange os fatos ocorridos no período anterior à vigência desse diploma, que não pode tingir situações aperfeiçoadas anteriormente (2º TACivSP, AI 879131-0/7, 6. CC, rel. Thales do Amaral, j. em 23.03.2005).670

Na motivação do acórdão, após afastar a desconsideração da personalidade societária de

pessoa que não era sócia (apenas diretora administrativa), fundamentou ainda a decisão com a

impossibilidade de aplicar a disregard doctrine sobre fatos ocorridos na vigência do Código Civil

de 1916, ou seja: De outro lado, na contraminuta a agravada invocou o art. 50 do novo CC, para embasar o pedido de

desconsideração e conseqüentemente responsabilização da agravante na condição de administradora. Porém, esse dispositivo, que realmente autoriza a responsabilização não apenas do sócio, mas também do administrador, não se aplica ao caso concreto, pois os pretensos atos praticados pela agravante, como administradora, se deram em 1997 e 1998, muito anteriormente à vigência do novo estatuto civil, que se deu em janeiro de 2003. Assim, esse diploma não pode gerar efeitos relativamente aos atos anteriores.

O art. 2.035 do Código Civil de 2002 estabelece que “a validade dos negócios e demais

atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis

anteriores...”, contudo, entende-se que esta questão não guarda tanta relevância em relação à

disregard doctrine, haja vista que sua aplicação “prescinde da expressa previsão legislativa porque

foi criado pela doutrina e jurisprudência”.671 Ou seja, se a desconsideração sempre foi aplicada

com fundamento na doutrina e na jurisprudência, não existe óbice para aplicá-la hoje em dia,

sobre fatos ocorridos antes da vigência do art. 50 do Código Civil.

As próximas duas decisões do TJPR (AI 0325776-1 e AI 329245-7) demonstram a

aplicação da teoria maior672 da desconsideração da personalidade jurídica, em observância aos

requisitos legais que privilegiam a manutenção da personalidade jurídica:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. Execução. Desconsideração da personalidade jurídica. Ausência de bens. Circunstância insuficiente. Obstáculo à satisfação do crédito. Ausência de prova. Precedentes. Recurso não provido (TJPR, AI 0325776-1, 2. CC, Rel. Juiz Conv. Vicente Misurelli, J. 13.03.2006).

EXECUÇÃO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA EMPRESA. IMPOSSIBILIDADE. FALTA DE COMPROVAÇÃO DE PRÁTICA DE ILÍCITO OU ABUSO DE PODER. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. "Nas relações civil e comercial aplica-se a

670 RT 836/211. 671 GONÇALVES, Oksandro. A desconsideração..., p. 14. 672 Já estudada em capítulo precedente.

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teoria maior, isto é, para que o juiz venha a desconsiderar a pessoa jurídica e responsabilizar patrimonialmente seus sócios, pela dívida dela, mister que esteja demonstrado que cometeram ato ilícito, que se utilizaram da pessoa jurídica para fins diversos dos que justificaram sua criação". 2. "O insucesso da sociedade no desenvolvimento da atividade econômica, por si só não gera a responsabilidade dos sócios pelas dívidas por ela contraídas, se não ficar evidenciado ter sido ela utilizada como instrumento para realização de fraude ou abuso de direito" (TJPR, AI 329245-7, 13. CC, Rel. Des. Airvaldo Stela Alves, j. 28.06.2006).

Ao fundamentar a prevalência da personalidade jurídica das sociedades como regra geral a

ser observada na análise dos casos concretos, dispôs o relator do último acórdão citado (AI

329245-7):

Nesta perspectiva, não podem os sócios responder por obrigações titularizadas pela pessoa jurídica, restando patente sua ilegitimidade passiva. Assim sendo, no momento da execução promovida contra a pessoa jurídica, em linha de princípio, a constrição não pode atingir bens particulares dos sócios que não respondem pelas dívidas da sociedade.

Outrossim, como se verifica da doutrina específica, a atribuição de personalidade jurídica às sociedades corresponde a uma sanção positiva ou premial, no sentido de um benefício assegurado pelo direito - que seria afastado caso a atividade fosse realizada individualmente - a quem adotar a conduta desejada. Esse benefício é dominado por alguns princípios fundamentais, que foram se firmando com o tempo, dentre os quais ressalta a doutrina moderna: a) não atribuição à pessoa dos sócios das condutas praticadas pela sociedade; b) distinção entre patrimônio da sociedade e patrimônio dos sócios - quod debet universitas non debet singuli; c) vida própria e distinta da de seus membros.

Ou seja, os “sócios responderão não pela circunstância de a sociedade estar em débito,

nem simplesmente pelo fato de serem sócios, mas pelo cometimento de ato ilícito, de utilizarem a

pessoa jurídica para fins diversos dos que justificaram a sua criação pelo ordenamento jurídico”, o

que resulta na aplicação da disregard doctrine nos termos como foi concebida, visando resguardar

a personalidade jurídica das sociedades.

Outras decisões proferidas pelo TJPR na vigência do Código Civil de 2002 também

confirmam a mudança no entendimento jurisprudencial ocorrida nos tribunais, sobretudo no que

concerne aos requisitos utilizados para afastar a aplicação da disregard doctrine nos casos em que

não se encontrem os requisitos do art. 50 do CC:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE FALÊNCIA - DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E EXTENSÃO DOS EFEITOS DA QUEBRA A OUTRAS SOCIEDADES - AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE CONFUSÃO PATRIMONIAL COMO FUNDAMENTO PARA A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA - ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL - RECURSO PROVIDO. Impossível desconsiderar-se a personalidade jurídica quando inexiste comprovação objetiva de que houve confusão patrimonial capaz de configurar a fraude exigida pelo art. 50 do Código Civil (TJPR, AI 350502-0, 18. CC, Rel. Des. Rubens Oliveira Fontoura, j. 24.01.2007).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL.

AUSÊNCIA DE BENS PENHORÁVEIS. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DE DESVIO DE FINALIDADE OU CONFUSÃO

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PATRIMONIAL. INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 50 DO CÓDIGO CIVIL. RECURSO DESPROVIDO. A simples inexistência de bens penhoráveis e do encerramento das atividades da empresa não autorizam, por si, a desconsideração da personalidade jurídica, sendo necessária a comprovação do desvio de finalidade ou confusão patrimonial (TJPR, AI 0325502-1, 2. CC, Rel. Juíza Maria Aparecida Blanco de Lima, j. 13.03.2006).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CONTRATO DE FIANÇA LOCATÍCIA. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA DA FIADORA. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DE ABUSIVIDADE E DOS REQUISITOS PREVISTOS NO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. PRETENSÃO DE INCLUSÃO DE SÓCIO-GERENTE NO PÓLO PASSIVO. IMPOSSIBILIDADE. DECISÃO MANTIDA. RECURSO NÃO PROVIDO. 1. Por se caracterizar em medida considerada extrema, a desconsideração da personalidade jurídica pode ser deferida somente "em caso de abuso de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial", consoante dispõe o art. 50 do Código Civil. 2. À empresa que presta fiança a um contrato de locação cabe a responsabilidade solidária pelas obrigações assumidas pela locatária. O sócio gerente que representa a empresa fiadora nesta relação, por sua vez, nada pode ser responsabilizado com o seu patrimônio pessoal (TJPR, AI 0324923-6, 14. CC, Rel. Des. Celso Seikiti Saito, j. 15.03.2006).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. Pleito de

desconsideração da pessoa jurídica. Ausência de prova segura da ocorrência de abuso da personalidade caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial. Inteligência do art. 50 do código civil brasileiro (TJPR, AI 0323256-6, 14. CC, Rel. Des. Guido Döbeli, j. 15.03.2006).

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CIRCUNSTÂNCIA DE NÃO SER ENCONTRADA NO ENDEREÇO INDICADO PARA SER CITADA. ENCERRAMENTO IRREGULAR. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DOS REQUISITOS. ABUSO, FRAUDE E INSOLVÊNCIA. DECISÃO CORRETA. RECURSO DESPROVIDO. Mostra-se precipitada e prematura a pretensão de que seja prontamente desconsiderada a personalidade jurídica da empresa devedora, providência que consiste em exceção à regra, a simples circunstância de não ter sido lograda a sua citação no endereço do estabelecimento, sem qualquer outra diligência de sua citação através de seu representante legal, não demonstrando de modo razoável ter havido abuso ou prática de ato fraudulento por parte dos sócios e a inexistência de bens societários para responder pela dívida (TJPR, AI 0320005-7, 13. CC, Rel. Juiz Conv. Augusto Lopes Cortes, j. 22.03.2006).

A mudança de posicionamento também pode ser percebida nas decisões proferidas no

âmbito da Justiça Federal, onde até pouco tempo atrás prevalecia a ampla e irrestrita

desconsideração da personalidade jurídica para responsabilização dos sócios e administradores

pelo inadimplemento de tributos.

As decisões abaixo demonstram que a sistematização da disregard doctrine inserida no art.

50 do Código Civil interferiu não apenas nas relações privadas regidas pelo novo Código Privado

brasileiro, mas também nas relações tributárias, fiscais e até mesmo trabalhistas (embora estas

decisões não sejam a regra nestas matérias):

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. PRESSUPOSTOS. ART. 51 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Na hipótese dos autos, não se a afigura juridicamente possível a adoção da desconsideração da personalidade jurídica, uma vez que não houve comprovação da ocorrência dos pressupostos necessários ao seu deferimento. Precedentes

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jurisprudenciais do Superior Tribunal de Justiça. 2. Nos termos do art. 51 do Código Civil, mesmo nos casos de cassação da autorização de funcionamento a pessoa jurídica, esta subsistirá para os fins de liquidação, até que se conclua. 3. Agravo de instrumento improvido (TRF 1. R., AG 200301000358601–MG, 5. T., Rel. Des. Fed. João Batista Moreira, DJU 13.06.2005, p. 65).

NÃO CABIMENTO. Não restando provados casos de abuso de desvio de finalidade, pela confusão

patrimonial, descabe ao juiz intervir no processo para estender a relação obrigacional aos bens dos administradores ou sócios da pessoa jurídica (TRT 8. R., AP 01000-1993-007-08-00-6, 2. T., Rel. Juíza Sulamir Palmeira Monassa de Almeida, j. 14.12.2005).

No entanto, até mesmo o TJPR, que possui hoje um posicionamento amplamente

majoritário sobre a restrição ao uso da disregard doctrine, possui decisões proferidas na vigência

do Código Civil de 2002 que aplicam a teoria menor da desconsideração:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL CONTRA PESSOA JURÍDICA. INEXISTÊNCIA DE BENS PARA GARANTIR A EXECUÇÃO. TEORIA DA MENOR DESCONSIDERAÇÃO. ENCERRAMENTO IRREGULAR DAS ATIVIDADES. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. POSSIBILIDADE. BENS DOS SÓCIOS E ADMINISTRADOR DEVERÃO GARANTIR A DÍVIDA. LEGITIMIDADE PASSIVA MANTIDA. RECURSO PROVIDO. 1. "Na ausência de bens para garantir dívida da pessoa jurídica, a penhora recairá sobre bens de propriedade dos sócios; hipótese perfeitamente possível ante a doutrina da Desconsideração da Personalidade Jurídica, haja vista que a pessoa jurídica não possui lastro patrimonial para suportar as dívidas contraídas. Recurso conhecido e provido" (TJPR, 17. Câm. Cív., AC. 852, Rel. Des. Rosana Amara Girardi Fachin, j. 10/06/05); 2. A aplicação da teoria menor da desconsideração às relações de consumo está calcada na exegese autônoma do § 5º do art. 28, do CDC, porquanto a incidência desse dispositivo não se subordina à demonstração dos requisitos previstos no caput do artigo indicado, mas apenas à prova de causar, a mera existência da pessoa jurídica, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores (STJ, 3. T., REsp 279.273-SP, Rel. Min. Nancy Adrighi); 3. Além da ausência de patrimônio capaz de pagar a dívida, a empresa não encerrou suas atividades de forma regular, o que também autoriza a desconsideração de sua personalidade jurídica, devendo os sócios e administrador garantir o débito, permanecendo no pólo passivo da demanda (TJPR, AI 0321836-6, 16. CC, Rel. Des. Hélio Henrique Lopes Fernandes Lima, j. 01.02.2006).

Por outro lado, preocupantes são as decisões proferidas no âmbito da Justiça do Trabalho

que aplica a desconsideração da personalidade jurídica (através da teoria menor e/ou da

relativização da pessoa jurídica) para atingir bens particulares dos administradores (ou ex-

administradores) da sociedade anônima. Neste sentido:

DESCONSIDERAÇÃO DE PERSONALIDADE JURÍDICA. ADMINISTRADOR. Nos termos do que dispõe o art. 50 do Código Civil Brasileiro, em se configurando o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, podem ser atingidos pela penhora, tanto os bens particulares do sócio da pessoa jurídica executada, como os do administrador não sócio (TRT 8. R., AP 00534-2005-009-08-00-2, 1. T., Rel. Juiz Mário Leite Soares, j. 06.12.2005).

PENHORA DE BEM DE ADMINISTRADOR DE SOCIEDADE ANÔNIMA. TEORIA DA

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ART. 50 DO CC/2002. De acordo com a teoria da desconsideração da personalidade jurídica e o art. 50 do CC/2002, o administrador de sociedade anônima responde pela dívida contraída pela sociedade anônima insolvente à época em que ele integrava o

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Conselho de Administração (TRT 12. R., AG-PET 00283-2005-026-12-00-0, (11941/2005), Florianópolis – 1. T., Rel. Juiz Marcus Pina Mugnaini, j. 12.09.2005).

Com a estabilidade da moeda e a atração de investimentos estrangeiros para o mercado

nacional, as sociedades anônimas vem ganhando força e cada vez mais novas sociedades abrem o

capital e passam a operar na Bolsa de Valores. A profissionalização da administração das

sociedades anônimas de capital aberto é requisito indispensável para o sucesso da companhia,

sendo que as práticas de “Governança Corporativa” implementadas nos últimos anos representam

um dos mais importantes avanços para o crescimento sustentável das companhias abertas.

Dados divulgados recentemente nos jornais econômicos dão conta de que já existem mais

de 100 companhias que integram os níveis de governança corporativa da Bovespa, as quais

movimentam, juntas, mais da metade do volume de recursos e negócios realizados na bolsa.

Apenas em março de 2007 o volume das companhias com governança corporativa atingiu 65,2%

do volume financeiro que alcançou R$ 76,8 bilhões de reais.673

Ademais, com a profissionalização crescente da administração das companhias, são

contratados especialistas em gestão empresarial para fazerem parte do Conselho de Administração

das sociedades anônimas, os quais, para atuarem (mesmo que administrativamente), precisam

receber ao menos uma ação da companhia (pois a LSA obriga que sejam acionistas), o que acaba

lhes ocasionando enormes prejuízos com decisões como as duas proferidas pelos TRTs supra

citadas.

Como sustenta Norma Parente, “um bom Conselho de Administração valoriza o

investimento”.674 Ademais, Um mercado de capitais fragilizado acarretou, e ainda causa, perdas sociais. A retomada de nosso

crescimento só se tornará possível com a efetiva democratização do capital. Um mercado de capitais forte gerará mais investimentos e, conseqüentemente, mais empregos, maior produção, maior riqueza, resultando no crescimento do País.675

O reflexo no desenvolvimento da sociedade é direto, pois, se os especialistas contratados

pelas companhias começarem a rejeitar os cargos de Conselheiros de Administração por receio de

serem vítimas da aplicação assistemática da disregard doctrine e/ou de outra forma qualquer de

responsabilidade baseada na teoria menor da desconsideração (para penhora de seus bens 673 Gazeta Mercantil. Finanças & Mercados. São Paulo, 05/04/2007, p. 04. 674 PARENTE, Norma. Governança corporativa. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem. Ano 5, n. 15, São Paulo : Revista dos Tribunais, jan./mar. 2002, p. 85. 675Id. Ibid., p. 89-90.

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particulares), o desenvolvimento econômico e social gerado pelas companhias irá esmaecer,

afastando o investimento na atividade produtiva e a profissionalização das companhias,

prejudicando toda a coletividade.

Por isso é que também se pode imputar à jurisprudência importante papel no

desenvolvimento da sociedade, pois, além da forma como a lei de um país trata da personalidade

jurídica societária, o posicionamento jurisprudencial adotado na responsabilização dos sócios,

acionistas e administradores, pode ser o ponto decisivo entre um investidor alocar seus recursos no

país ou transferi-los para países vizinhos, que respeitem a personalidade jurídica societária.

Finalmente, diante da importância econômica e social da personalidade jurídica societária,

deve-se privilegiar decisões como a do Min. do Superior Tribunal de Justiça José Delgado, a qual

preceitua: TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO FISCAL. DÉBITOS PARA COM A

SEGURIDADE SOCIAL. RESPONSABILIDADE DO ADMINISTRADOR (SOCIEDADE POR QUOTAS DE RESPONSABILIDADE LTDA). SOLIDARIEDADE. PREVISÃO NA LEI 8.620/93, ART. 13. NECESSIDADE DE LEI COMPLEMENTAR (CF, ART. 146, III, B). INTERPRETAÇÕES SISTEMÁTICA E TELEOLÓGICA. CTN, ARTS. 124, II, E 135, III. CÓDIGO CIVIL, ARTS. 1.016 E 1.052. MATÉRIA INSERTA NOS ARTS. 202, DO CTN, 2º, § 5º, I E IV, E 3º DA LEI 6.830/80. AUSENTE DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 282/STF. INCIDÊNCIA. DIVERGÊNCIA JURISPRUDENCIAL NÃO-DEMONSTRADA. SITUAÇÃO FÁTICA DIVERSA. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E, NESTA PARTE, NÃO-PROVIDO.

1. Tratam os autos de embargos à execução fiscal movidos por Luiz Paulo Ely objetivando a desconstituição de penhora de bem de família e que fosse excluída sua responsabilidade pelo pagamento de créditos tributários, em face da qualidade de sócio-gerente da Massa Falida da empresa Jeancarlo Indústria de Calçados Ltda. e Outros. Pleito julgado parcialmente procedente, apenas quanto à desconstituição da penhora incidente sobre o bem de família. Inconformado, o particular interpôs apelação tendo o Tribunal a quo dado provimento ao recurso sob a égide do art. 135, III, do CTN, à luz do entendimento segundo o qual o inadimplemento do tributo não constitui infração à lei capaz de ensejar a responsabilidade solidária dos sócios. Recurso especial interposto pela Autarquia apontando negativa de vigência dos arts. 135 e 202, do CTN, 2º, § 5º, I e IV, e 3º da Lei 6.830/80, além de divergência jurisprudencial.

[...]. 4. A solidariedade prevista no art. 124, II, do CTN, é denominada de direito. Ela só tem validade e

eficácia quando a lei que a estabelece for interpretada de acordo com os propósitos da Constituição Federal e do próprio Código Tributário Nacional.

5. Inteiramente desprovidas de validade são as disposições da Lei nº 8.620/93, ou de qualquer outra lei ordinária, que indevidamente pretenderam alargar a responsabilidade dos sócios e dirigentes das pessoas jurídicas. O art. 146, inciso III, b, da Constituição Federal, estabelece que as normas sobre responsabilidade tributária deverão se revestir obrigatoriamente de lei complementar.

6. O CTN, art. 135, III, estabelece que os sócios só respondem por dívidas tributárias quando exercerem gerência da sociedade ou qualquer outro ato de gestão vinculado ao fato gerador. O art. 13 da Lei nº 8.620/93, portanto, só pode ser aplicado quando presentes as condições do art. 135, III, do CTN, não podendo ser interpretado, exclusivamente, em combinação com o art. 124, II, do CTN.

7. O teor do art. 1.016 do Código Civil de 2002 é extensivo às Sociedades Limitadas por força do prescrito no art. 1.053, expressando hipótese em que os administradores respondem solidariamente somente por culpa quando no desempenho de suas funções, o que reforça o consignado no art. 135, III, do CTN.

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8. A Lei 8.620/93, art. 13, também não se aplica às Sociedades Limitadas por encontrar-se esse tipo societário regulado pelo novo Código Civil, lei posterior, de igual hierarquia, que estabelece direito oposto ao nela estabelecido.

9. Não há como se aplicar à questão de tamanha complexidade e repercussão patrimonial, empresarial, fiscal e econômica, interpretação literal e dissociada do contexto legal no qual se insere o direito em debate. Deve-se, ao revés, buscar amparo em interpretações sistemática e teleológica, adicionando-se os comandos da Constituição Federal, do Código Tributário Nacional e do Código Civil para, por fim, alcançar-se uma resultante legal que, de forma coerente e juridicamente adequada, não desnature as Sociedades Limitadas e, mais ainda, que a bem do consumidor e da própria livre-iniciativa privada (princípio constitucional) preserve os fundamentos e a natureza desse tipo societário.

10. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, não-provido (STJ, REsp 757065/SC, Rel. Min. José Delgado, Primeira Seção, j. em 28.09.2005, DJ 01.02.2006, p. 424).

Ou seja, nas palavras do Min. José Delgado, a questão da personalidade jurídica e da

disregard doctrine é de relevante complexidade e repercussão patrimonial, empresarial, fiscal e

econômica, interpretação literal, razão pela qual se deve buscar amparo em interpretações

sistemáticas e teleológicas, adicionando-se os comandos da Constituição da República, do Código

Tributário Nacional e do Código Civil para, por fim, alcançar-se uma resultante legal que, de

forma coerente e juridicamente adequada, não desnature as sociedades limitadas e, mais ainda,

que a bem do consumidor e da própria livre-iniciativa privada (princípio e fundamento

constitucional) preserve os fundamentos e a natureza desse tipo societário.676

Esta é a contribuição coerente e responsável da jurisprudência em relação ao Direito

empresarial, respeitando a livre-iniciativa econômica e, por conseguinte, a personalidade jurídica

societária, o que não implica incentivo aos atos fraudulentos ou abusivos na utilização da

personalidade, já que, nas hipóteses em que os requisitos da disregard doctrine estiverem

presentes, é dever da jurisprudência aplicar o art. 50 do Código Civil para atingir o ente que está

agindo indevidamente sob o manto da personalidade jurídica.

676 STJ, REsp 757065/SC, Rel. Min. José Delgado, Primeira Seção, j. 28.09.2005, DJ 01.02.2006, p. 424.

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7. Conclusões

O presente estudo procurou demonstrar a importância econômica e social da personalidade

jurídica societária através de um novo enfoque, que privilegia não só o econômico ou o

empresarial, mas também os princípios e fundamentos da Constituição de 1988, de onde sobressai

tanto a livre-iniciativa econômica quanto a valorização do trabalho humano, ambos como

princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito. Com efeito, a livre-iniciativa

econômica presente hodiernamente não é a mesma que vigorou no Estado liberal, quando os

direitos sociais eram relevados a favor do desenvolvimento capitalista que sustentava a sociedade

daquela época.

A visão contemporânea da livre-iniciativa econômica tem por fim assegurar a todos

existência digna, conforme os ditames da justiça social, razão pela qual a Constituição da

República visa proteger tanto o interesse individual do empresário como também procura vincular

o desenvolvimento da empresa dentro de uma visão que alie de forma indissociável o econômico

com o social677, pois é através da livre-iniciativa da empresa que se promovem riquezas e

consumo, geram-se empregos e impostos, enfim, possibilita-se que a sociedade viva de forma

mais digna, mais justa e mais feliz.

Concomitantemente, foi nosso objetivo aprofundar o estudo da personalidade jurídica

societária dentro da visão do Direito empresarial, demonstrando que desde o início da civilização

o homem sempre procurou se organizar coletivamente para superar com mais facilidade os

desafios e as necessidades econômicas e sociais cotidianas, nos mais variados fins (materiais,

religiosos, morais, artísticos etc.). Destarte, através da técnica da personalização societária

(máscara da pessoa jurídica), o Direito encontrou a fórmula ideal para regular e promover a

iniciativa privada no desenvolvimento da atividade econômica. É através da inscrição da

sociedade empresária nos órgãos registrais (art. 45, CC) que a pessoa jurídica adquire

personalidade, decorrendo daí seu amplo leque de direitos e deveres que devem ser observados e

cumpridos, a fim de que tenha justificativa a personificação societária concedida ao agrupamento

de pessoas.

677 “O perfil do ‘Estado de bem-estar’, que assegura e promove, é o modelo de Estado capaz de compatibilizar o predomínio da iniciativa privada e a busca de resultados sociais positivos” (RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. Sociedade..., p. 184).

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Ademais, outro fator importante que decorre da personalização societária é a autonomia

patrimonial das sociedades (societas distat singulis), na medida em que, sem esta regra

fundamental do Direito empresarial, não haveria interesse privado no investimento de recursos na

atividade econômica por intermédio da pessoa jurídica. O próprio Código Civil de 2002 reconhece

a importância da personalidade jurídica societária, tanto é que divide as sociedades em

personificadas e não personificadas, sendo cediço que apenas as sociedades com personalidade

jurídica (v.g., sociedades limitadas e sociedades anônimas) possuem relevância econômica e social

no mundo contemporâneo.

Demonstrou-se também que a personalização societária encontra fundamento na atividade

promocional do Estado, pois os benefícios obtidos para a coletividade (pela criação de pessoas

jurídicas com personalidade) decorre de uma espécie de sanção positiva (prêmio para a iniciativa

privada), já que permite o desenvolvimento socioeconômico do país, razão pela qual o próprio

Estado tem interesse em promover a criação das pessoas jurídicas personificadas.

Por conseguinte, procuramos demonstrar que tal como ocorre em qualquer atividade

desenvolvida pelo ser humano, existem pessoas nem sempre partidárias das boas regras de

convivência social. Na utilização das pessoas jurídicas não poderia ser diferente, ocorrendo

situações em que o ente coletivo é utilizado para fins diversos para o qual foi criado, escondendo

pessoas mal-intencionadas por detrás do véu da pessoa jurídica para práticas contrárias à lei, em

fraude à lei ou em confusão patrimonial. Disso decorre um dos efeitos da crise da pessoa jurídica

(crise de função), embora não seja o único, já que diversos outros aspectos também contribuem

hoje em dia para que a pessoa jurídica seja repensada (v.g., crise de reconhecimento, de política

legislativa, de jurisprudência etc.).

Não obstante isso, a solução encontrada pelo mesmo legislador que concede personalidade

jurídica à sociedade é igualmente inteligente ao limitar (suspender) sua autonomia em

determinadas situações concretas, quando restar verificada a má utilização deste importante

instituto legal, pois nessas hipóteses exaurem-se as justificativas para a sanção positiva concedida

pelo Estado. Para tanto, o legislador estabelece que em processo judicial seja declarada ineficaz a

personalização societária (através da disregard doctrine) quando a mesma for utilizada em

situações antijurídicas.

Apesar de somente em 2002 o instituto da disregard doctrine ter obtido expressa previsão

no Código de Direito Privado brasileiro, há muito tempo já vinha sendo utilizado pela

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jurisprudência como forma de superação da personalidade jurídica para se alcançar bens

patrimoniais dos sócios ou administradores que estão desvirtuando o instituto da personalidade

societária em benefício próprio. No entanto, muitas vezes a disregard doctrine é empregada de

forma equivocada, já que ausentes os requisitos para sua aplicação, tratando-se de casos de

responsabilidade direta, atos ultra vires etc., mas não, da utilização abusiva da pessoa jurídica.

Noutras vezes é a falta de previsão legal (processual) para a sua aplicação que origina o

desvirtuamento da teoria, ocasionando decisões e entendimentos variados sobre a mesma matéria,

refletindo inclusive insegurança jurídica para os operadores do direito e para a própria atividade

econômica empresarial.

Verificados estes fundamentos que alicerçam o Direito empresarial societário, procuramos

demonstrar uma visão contemporânea da personalidade jurídica frente à nova ordem

constitucional, ou seja, a inegável importância da personalidade jurídica para a sociedade, na

medida em que a civilização pós-moderna não teria atingido seus níveis atuais de

desenvolvimento socioeconômico sem que o Estado houvesse estabelecido a autonomia

patrimonial das pessoas jurídicas em relação aos sócios, por intermédio da criação da

personalidade jurídica societária.

Por outro lado, embora a autonomia patrimonial das sociedades também possa ser

desconsiderada em determinadas e específicas situações em que não se verificam os requisitos da

disregard doctrine (v.g., Direito do Consumidor e Direito Ambiental), não se pode ignorar que o

Direito empresarial possui regras próprias que visam preservar e estimular o desenvolvimento da

empresa, sem as quais não existiria estímulo necessário para que o empresário destinasse parte de

seu patrimônio para esta atividade. É claro que toda e qualquer atividade empresarial implica

aceitar riscos, pois tal premissa está implícita na livre-iniciativa econômica empresarial como

pressuposto para a busca do lucro, todavia, quanto maior for o risco e menor for a segurança

jurídica (proteção) do empresário, menos capital (patrimônio) será destinado para o

desenvolvimento da atividade econômica do país.678

A personalidade jurídica societária faz com que a atividade econômica empresarial se

desenvolva e assuma papel fundamental dentro do sistema capitalista vigente, pois a manutenção

da empresa se justifica diante da sua relevante função social na ordem econômica brasileira,

678 Ou seja, “quanto mais as relações econômicas forem estáveis e pautadas na confiança, maior a perspectiva de investimento em atividade de produção, o que dependeria dos investidores optarem por esta modalidade em substituição ao investimento financeiro” (RIBEIRO, Márcia Carla Pereira. A desconsideração..., p. 91).

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constituindo-se como o meio adequado para se aliar desenvolvimento econômico e social em

benefício de toda a coletividade que direta ou indiretamente se beneficia do seu imenso leque de

atividades.679

Assim, quando o empresário se vê diante de uma instabilidade legislativa e jurisprudencial,

onde a personalidade jurídica societária é suprimida (misturando-se a responsabilidade

patrimonial da pessoa jurídica com a da pessoa física) sem maiores requisitos ou fundamentações,

por certo que o desenvolvimento da atividade econômica será afetado, em prejuízo de toda a

coletividade que dela se beneficia (através dos impostos pagos, dos investimentos em pesquisa e

criação de produtos e serviços adequados para o mercado de consumo, dos postos de trabalho

gerados, dentre tantas outras funções que a atividade empresarial propicia para a sociedade).

A estabilidade legislativa e jurisprudencial em relação ao Direito empresarial é uma das

formas de se privilegiar o crescimento econômico e social do país, não se podendo ratificar

posições que impliquem injustiça ou insegurança na atividade econômica privada (o que depõe

contra os próprios princípios e fundamentos da República Federativa do Brasil), a qual,

fundamentada na existência da personalidade jurídica societária e na autonomia patrimonial,

representa a mola propulsora do desenvolvimento socioeconômico do país.

679 “A natureza e a função social das sociedades comerciais é que faz delas factores de enorme interesse social, saltando para fora do âmbito dos contratos de mero interesse dos particulares. As empresas comerciais representam um valor econômico de organização que é necessário conservar, para salvaguarda do esforço organizador dos empresários, do direito dos empregados ao trabalho, dos direitos dos sócios a ver frutificar o seu capital” (NUNES, A. J. Avelãs. Op. cit., p. 58).

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244

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_____. TJPR, AI 350502-0, 18. CC, Rel. Des. Rubens Oliveira Fontoura, j. em 24.01.2007.

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_____. TJPR, AI 0324923-6, 14. CC, Rel. Des. Celso Seikiti Saito, j. em 15.03.2006.

_____. TJPR, AI 0323256-6, 14. CC, Rel. Des. Guido Döbeli, j. em 15.03.2006.

_____. TJPR, AI 0320005-7, 13. CC, Rel. Juiz Conv. Augusto Lopes Cortes, j. em 22.03.2006.

RIO DE JANEIRO. TRF 2. R., AG 2002.02.01.006094-0/RJ, Quarta Turma, Rel. Des. Benedito

Gonçalves, DJU 11.12.2002, p. 245.

RIO GRANDE DO SUL. TJRS, AI 70003946506, 5. CC, Rel. Des. Marco Aurélio dos Santos

Caminha, j. em 04/04/2002.

SANTA CATARINA. TJSC, AI 2005.014928-0, 3. CDCom., Rel. Des. Fernando Carioni, j. em

03.11.2005.

SÃO PAULO. 2º TACivSP, AI 879131-0/7, 6. CC, Rel. Thales do Amaral, j. em 23.03.2005

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SÃO PAULO. TJSP, 4. CC, AC n. 174.723, Rel. Des. Carvalho Neves, j. em 31.7.1969, v.u., RT

410/156-157.

SÃO PAULO. TRT-2.R, RO nº 01096200601702008, Rel. Des. Maria Aparecida Duenhas, j. em

31/01/2007, Acórdão nº 20070036823.