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Paulo Pena (*) Em Kirkenes , no Árctico norueguês, com a Rússia e a Finlândia como vizinhos, vivem apenas cinco chine- ses: o dono do restaurante Xangai, a mulher, o cozi- nheiro e duas mulheres que casaram com noruegueses da terra. Mas em Fevereiro, a cidade descreveu-se como a “Chinatown mais a norte do Mundo”. Em Komarna, uma aldeia em colina íngreme da Croá- cia, junto ao Adriático, a população local de cento e poucas pessoas mais do que dobrou, do dia para a noite, com a chegada de trabalha- dores chineses. Em poucos anos, depois da crise eco- nómica que abalou a Europa, os investimentos chineses cresceram. Do norte ao sul do continente. Nesses anos, Kirkenes passou a sonhar com um porto gigantesco, que vai ser o ponto de chegada da nave- gação da China pelo Árctico, quando o degelo o permitir. E Kormana vê nascer uma ponte que pretende sarar as feridas da guerra da ex- Jugoslávia, ligando o país (Croácia) ao enclave croata de Dubrovnik, sem as cercas da fronteira com a Bósnia- Herzegovina. Linhas ferroviárias, pon- tes e auto-estradas, portos, centrais e redes eléctricas, fábricas de alta tecnologia, empresas turísticas e bancos - em todos estes sectores, as empresas chinesas, públi- cas e privadas, já investiram mais de 300 mil milhões de euros na Europa, escreve a American Heritage Founda- tion, que mantém uma base de dados de todos os inves- timentos directos chineses no estrangeiro acima dos 100 milhões de dólares. Em Por- tugal, a China investiu mais de nove mil milhões, com- prando posições dominantes na EDP, da REN, no Millen- nium BCP, na Fidelidade... E é muito mais do que muito dinheiro. Este inves- timento pôs vários cantos da Europa a imaginar o futuro, como Kirkenes, ou a resolver o passado, como Kormana. Foi a solução para as maiores privatizações em Portugal, durante a troika. Foi disputado pela França e pela Alemanha. Mas agora parece começar a causar dúvidas. Recentemente, diri- gentes políticos da UE mani- festaram-nas. A concorrência entre a China e a Europa "não é justa", queixou-se o Pre- sidente da Comissão Euro- peia, Jean-Claude Juncker. “O tempo da ingenuidade europeia tem de acabar”, exige o Presidente francês, Emmanuel Macron. Pela pri- meira vez, em Março pas- sado, um relatório da UE definiu a China como “um parceiro com quem a UE prossegue objectivos comuns”, mas também como um “rival sistémico que pro- paga um tipo diferente de governação”. A Europa começa a recear que os milhares de milhões que recebeu da China a tornem, de alguma forma, depen- dente de Pequim. A Europa está, ainda, no meio de um dilema. Os Esta- dos Unidos não. Já decidiram considerar que a China é um inimigo comercial. Os EUA são o maior parceiro de negócios europeus. A China, o segundo. É esse perigo – o da guerra comer- cial entre esses dois maiores parceiros – que preocupa o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva: “Para nós, europeus, esse é um dos grandes riscos que o mundo corre. Um cenário de guerra comercial traria efeitos muito negativos sobre o crescimento económico mundial e tem hipóteses de provocar efeitos indesejáveis também na geopolítica.” (ver entrevista). Foi para perceber se este dilema é real, e se houve, de facto, “ingenuidade” na Europa, que o consórcio Investigate Europe (que o DN integra) visitou, nos últimos meses, alguns dos principais locais onde o investimento chinês é mais relevante. Entrevistámos governantes, diplomatas, economistas, historiadores, empresários chineses e retivemos uma das perguntas mais frequentes: deve a Europa temer a China? Gestores e sindicatos elogiam Os investidores da China compraram mais de 160 empresas europeias de EMPRESAS JÁ INVESTIRAM MAIS DE 300 MIL MILHÕES DE EUROS NA EUROPA Wang Qunbin, 50 anos, é o CEO da Fosun. Perguntamos- lhe se considera uma forma de proteccionismo este meca- nismo de avaliação do inves- timento estrangeiro, criado recentemente pela União Europeia. Qunbin parece des- valorizar: “A cooperação é um dos pilares das relações China-Europa. A China e a Europa têm uma parceria estratégica global e a China continuará a ser um parceiro fiável e importante da UE. A China e a UE não estão a tor- nar-se rivais. Apesar do novo mecanismo de avaliação do investimento, as empresas chinesas, nomeadamente a Fosun, continuarão a procurar oportunidades de desenvol- vimento na Europa.” A Fosun, que tem sede em Lisboa, no Palácio do Loreto, no Chiado, é o maior inves- tidor chinês privado em Por- tugal (Millennium BCP, Fidelidade, Luz Saúde). Wang Qunbin elogia o país: “Portugal dá estabilidade à Fosun: temos activos muito bons e tequipas de gestão for- tes no país, o ambiente polí- tico é muito estável, mesmo depois da mudança de Governo, e a economia recu- perou muito bem.” Mas por que decidiu a Fosun fazer de Portugal, como diz Qunbin, a “porta de entrada para o investimento na Europa”? Luís Mah, docente em Estudos de Desenvolvimento no ISEG e autor de um livro sobre o modelo de desenvolvimento chinês, explica: “Quando a Fosun compra a Fidelidade (seguradora por- tuguesa) recebe mil milhões de euros em prémios de segu- ros de saúde. Isso permite- lhe comprar cá e ao mesmo tempo responder ao desen- volvimento da classe média da China. Permite-lhe comprar o Club Med e ter um programa de férias para 200 milhões de chineses. Ou quando compra a Luz Saúde (saúde privada) tem a hipótese de levar o modelo de hospital privado para a China.” Essa é, também, a explica- ção para os investimentos na EDP, sugere Raquel Vaz Pinto, investigadora do Instituto Por- tuguês de Relações Interna- cionais da Universidade Nova de Lisboa e professora de Estu- dos Asiáticos na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. “O que comanda o inves- timento chinês é a lógica interna. O que explica a lide- rança da China é o bem-estar doméstico. Por exemplo: o que torna a China tão inte- ressada na preservação do ambiente? Há um problema, na China, com o alastramento de doenças respiratórias. A poluição dos rios e das terras tornou-se um problema grave. Por isso, a China vê a questão ambiental como cru- cial. E por isso investe na EDP, para ter acesso a tec- nologia de ponta nas energias renováveis.” A estratégia da Fosun ponta, por preços entre os 100 milhões e os 50 mil milhões de dólares. O pico dessa chegada em força da nova China “global” foi em 2016. De então para cá, o investimento directo tem diminuído, na proporção inversa do receio europeu. Por isso, fomos ouvir ges- tores e funcionários dessas empresas compradas pela China, da Noruega à Itália. A apreciação é positiva: as empresas compradas estão em melhor situação hoje do que antes da venda. Além disso, os investidores chi- neses “geralmente aderem às leis e acordos colectivos”, explica o sindicalista alemão Rüdiger Luz, chefe do Departamento de Política Empresarial do poderoso sindicato IG Metall. Em Portugal, António Mexia chegou a temer que a chegada da China Three Gorges significasse uma mudança profunda na admi- nistração da EDP e talvez a sua saída. Mas não é essa a rotina. Os investidores chi- neses tentam ser discretos, mesmo quando os seus milhões causam espanto. Um exemplo disso é a empresa estatal chinesa ChemChina. Com vendas anuais de cerca de 30 mil milhões de euros, a empresa comprou o grupo italiano de pneus Pirelli, o especialista francês em enzimas Adisseo, o produtor norueguês de sili- cone Elkem, o fabricante suíço de produtos químicos agrí- colas Syngenta e o líder do mercado mundial alemão de máquinas de processamento de plástico Kraus-Maffei. Após a aquisição da marca italiana, por mais de sete mil milhões de euros, em 2015, o CEO da Pirelli, Tronchetti Provera, está convencido de que o negócio foi “o melhor” possível. “Caso contrário, teríamos caído nas mãos dos concorrentes e isso teria sido o fim da Pirelli.” Frank Stiehler, chefe da Krauss-Maffei, fabricante de máquinas sediada em Munique, também vê a sua empresa em boas mãos: “Hoje, investimos duas vezes mais por ano do que nos anos sob a liderança de investidores financei- ros”, disse Stiehler ao Investigate Europe. Estão a ser planeadas e construí- das quatro novas fábricas, três das quais na Alemanha. Foram já criados 800 postos de trabalho. China: parceiro ou rival? Quando em Pequim se comemoram, no próximo dia 1 de Outubro, 70 anos de regime comunista, é a globalização do capital chinês que agita a Europa. Com um conflito latente com os Estados Unidos, e muitos milhares de milhões investidos de Lisboa a Atenas, há razões para temer o poder da China? 10 DESTAQUE Sábado 28 de Setembro de 2019 Um exemplo disso é a empresa estatal chinesa ChemChina. Com vendas anuais de cerca de 30 mil milhões de euros, a empresa comprou o grupo italiano de pneus Pirelli, o especialista francês em enzimas Adisseo, o produtor norueguês de silicone Elkem, o fabricante suíço de produtos químicos agrícolas Syngenta e o líder do mercado mundial alemão de máquinas de processamento de plástico Kraus-Maffei

EMPRESAS JÁ INVESTIRAM MAIS DE 300 MIL MILHÕES DE …imgs.sapo.pt/jornaldeangola/img/704039672_suplemento_28.pdf · ponta, por preços entre os 100 milhões e os 50 mil milhões

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Paulo Pena (*)

Em Kirkenes, no Árcticonorueguês, com a Rússia ea Finlândia como vizinhos,vivem apenas cinco chine-ses: o dono do restauranteXangai, a mulher, o cozi-nheiro e duas mulheres quecasaram com norueguesesda terra. Mas em Fevereiro,a cidade descreveu-se comoa “Chinatown mais a nortedo Mundo”.

Em Komarna, uma aldeiaem colina íngreme da Croá-cia, junto ao Adriático, apopulação local de cento epoucas pessoas mais do quedobrou, do dia para a noite,com a chegada de trabalha-dores chineses. Em poucosanos, depois da crise eco-nómica que abalou a Europa,os investimentos chinesescresceram. Do norte ao suldo continente.

Nesses anos, Kirkenespassou a sonhar com umporto gigantesco, que vai sero ponto de chegada da nave-gação da China pelo Árctico,quando o degelo o permitir.E Kormana vê nascer umaponte que pretende sararas feridas da guerra da ex-Jugoslávia, ligando o país(Croácia) ao enclave croatade Dubrovnik, sem as cercasda fronteira com a Bósnia-Herzegovina.

Linhas ferroviárias, pon-tes e auto-estradas, portos,centrais e redes eléctricas,fábricas de alta tecnologia,empresas turísticas e bancos- em todos estes sectores,as empresas chinesas, públi-cas e privadas, já investirammais de 300 mil milhões deeuros na Europa, escreve a

American Heritage Founda-tion, que mantém uma basede dados de todos os inves-timentos directos chinesesno estrangeiro acima dos 100milhões de dólares. Em Por-tugal, a China investiu maisde nove mil milhões, com-prando posições dominantesna EDP, da REN, no Millen-nium BCP, na Fidelidade...

E é muito mais do quemuito dinheiro. Este inves-timento pôs vários cantos

da Europa a imaginar ofuturo, como Kirkenes, oua resolver o passado, comoKormana. Foi a solução paraas maiores privatizações emPortugal, durante a troika.Foi disputado pela França epela Alemanha. Mas agoraparece começar a causardúvidas. Recentemente, diri-gentespolíticos da UE mani-festaram-nas. A concorrênciaentre a China e a Europa "nãoé justa", queixou-se o Pre-

sidente da Comissão Euro-peia, Jean-Claude Juncker.

“O tempo da ingenuidadeeuropeia tem de acabar”,exige o Presidente francês,Emmanuel Macron. Pela pri-meira vez, em Março pas-sado, um relatório da UEdefiniu a China como “umparceiro com quem a UEp ro s s e gue ob j e c t ivo scomuns”, mas também comoum “rival sistémico que pro-paga um tipo diferente de

governação”. A Europacomeça a recear que osmilhares de milhões querecebeu da China a tornem,de alguma forma, depen-dente de Pequim.

A Europa está, ainda, nomeio de um dilema. Os Esta-dos Unidos não. Já decidiramconsiderar que a China éum inimigo comercial. OsEUA são o maior parceirode negócios europeus. AChina, o segundo. É esseperigo – o da guerra comer-cial entre esses dois maioresparceiros – que preocupa oministro português dosNegócios Estrangeiros,Augusto Santos Silva:

“Para nós, europeus, esseé um dos grandes riscos queo mundo corre. Um cenáriode guerra comercial trariaefeitos muito negativos sobreo crescimento económicomundial e tem hipóteses deprovocar efeitos indesejáveistambém na geopolítica.”(ver entrevista).

Foi para perceber se estedilema é real, e se houve, defacto, “ingenuidade” naEuropa, que o consórcioInvestigate Europe (que o DNintegra) visitou, nos últimosmeses, alguns dos principaislocais onde o investimentochinês é mais relevante.Entrevistámos governantes,diplomatas, economistas,historiadores, empresárioschineses e retivemos umadas perguntas mais frequentes:deve a Europa temer a China?

Gestores e sindicatos elogiamOs investidores da Chinacompraram mais de 160empresas europeias de

EMPRESAS JÁ INVESTIRAM MAIS DE 300 MIL MILHÕES DE EUROS NA EUROPA

Wang Qunbin, 50 anos, é oCEO da Fosun. Perguntamos-lhe se considera uma formade proteccionismo este meca-nismo de avaliação do inves-timento estrangeiro, criadorecentemente pela UniãoEuropeia. Qunbin parece des-valorizar: “A cooperação éum dos pilares das relaçõesChina-Europa. A China e aEuropa têm uma parceriaestratégica global e a Chinacontinuará a ser um parceirofiável e importante da UE. AChina e a UE não estão a tor-nar-se rivais. Apesar do novomecanismo de avaliação doinvestimento, as empresaschinesas, nomeadamente aFosun, continuarão a procuraroportunidades de desenvol-vimento na Europa.”

A Fosun, que tem sede emLisboa, no Palácio do Loreto,no Chiado, é o maior inves-tidor chinês privado em Por-tuga l (M i l l enn ium BCP,Fidelidade, Luz Saúde). WangQunbin elogia o país:

“Portugal dá estabilidadeà Fosun: temos activos muitobons e tequipas de gestão for-tes no país, o ambiente polí-tico é muito estável, mesmodepo i s da mudança deGoverno, e a economia recu-perou muito bem.”

Mas por que decidiu a Fosunfazer de Portugal, como dizQunbin, a “porta de entradapara o investimento na Europa”?Luís Mah, docente em Estudosde Desenvolvimento no ISEGe autor de um livro sobre omodelo de desenvolvimentochinês, explica:

“Quando a Fosun compraa Fidelidade (seguradora por-tuguesa) recebe mil milhõesde euros em prémios de segu-ros de saúde. Isso permite-lhe comprar cá e ao mesmotempo responder ao desen-volvimento da classe médiada China. Permite-lhe compraro Club Med e ter um programade férias para 200 milhões dechineses. Ou quando compraa Luz Saúde (saúde privada)

tem a hipótese de levar omodelo de hospital privadopara a China.”

Essa é, também, a explica-ção para os investimentos naEDP, sugere Raquel Vaz Pinto,investigadora do Instituto Por-tuguês de Relações Interna-cionais da Universidade Novade Lisboa e professora de Estu-dos Asiáticos na Faculdade deCiências Sociais e Humanas.

“O que comanda o inves-timento chinês é a lógicainterna. O que explica a lide-rança da China é o bem-estardoméstico. Por exemplo: oque torna a China tão inte-ressada na preservação doambiente? Há um problema,na China, com o alastramentode doenças respiratórias. Apoluição dos rios e das terrastornou-se um problemagrave. Por isso, a China vê aquestão ambiental como cru-cial. E por isso investe naEDP, para ter acesso a tec-nologia de ponta nas energiasrenováveis.”

A estratégia da Fosun

ponta, por preços entre os100 milhões e os 50 milmilhões de dólares. O picodessa chegada em força danova China “global” foi em2016. De então para cá, oinvestimento directo temdiminuído, na proporçãoinversa do receio europeu.Por isso, fomos ouvir ges-tores e funcionários dessasempresas compradas pelaChina, da Noruega à Itália.A apreciação é positiva: asempresas compradas estãoem melhor situação hoje doque antes da venda. Alémdisso, os investidores chi-neses “geralmente aderemàs leis e acordos colectivos”,explica o sindicalista alemãoRüdiger Luz , che fe doDepartamento de PolíticaEmpresarial do poderososindicato IG Metall.

Em Portugal, AntónioMexia chegou a temer quea chegada da China ThreeGorges significasse umamudança profunda na admi-nistração da EDP e talvez asua saída. Mas não é essa arotina. Os investidores chi-neses tentam ser discretos,mesmo quando os seusmilhões causam espanto.

Um exemplo disso é aempresa estatal chinesaChemChina. Com vendasanuais de cerca de 30 milmilhões de euros, a empresacomprou o grupo italiano depneus Pirelli, o especialistafrancês em enzimas Adisseo,o produtor norueguês de sili-cone Elkem, o fabricante suíçode produtos químicos agrí-colas Syngenta e o líder domercado mundial alemão demáquinas de processamentode plástico Kraus-Maffei.

Após a aquisição da marcaitaliana, por mais de sete milmilhões de euros, em 2015,o CEO da Pirelli, TronchettiProvera, está convencido deque o negócio foi “o melhor”possível. “Caso contrário,teríamos caído nas mãos dosconcorrentes e isso teria sidoo fim da Pirelli.”

Frank Stiehler, chefe daKrauss-Maffei, fabricantede máquinas sediada emMunique, também vê a suaempresa em boas mãos:“Hoje, investimos duasvezes mais por ano do quenos anos sob a liderançade investidores financei-ros” , d i sse S t iehler aoInvestigate Europe. Estãoa ser planeadas e construí-das quatro novas fábricas,três das quais na Alemanha.Foram já criados 800 postosde trabalho.

China: parceiro ou rival?

Quando em Pequim se comemoram, no próximodia 1 de Outubro, 70 anos de regime comunista, é aglobalização do capital chinês que agita a Europa.Com um conflito latente com os Estados Unidos,e muitos milhares de milhões investidos de Lisboaa Atenas, há razões para temer o poder da China?

10 DESTAQUE Sábado28 de Setembro de 2019

Um exemplo dissoé a empresa estatal

chinesa ChemChina.Com vendas anuaisde cerca de 30 milmilhões de euros,

a empresa comprou ogrupo italiano de pneusPirelli, o especialistafrancês em enzimasAdisseo, o produtor

norueguês de siliconeElkem, o fabricantesuíço de produtosquímicos agrícolas

Syngenta e o líder domercado mundial

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O recorde destas aquisi-ções sonantes aconteceu naSuíça e com isso a Chem-China espantou o mundodos negócios. Em 2015, todosos grandes grupos químicosentraram num leilão paraadquirir a fabricante de agro-químicos Syngenta.

“Era a nata da indústriae todos a queriam”, recordaum gestor alemão. Inicial-mente, a Monsanto ofereceu35 mil milhões e os outrosgigantes químicos, da BASFà Dow Chemical, fizeramofertas de até 38 mil milhões.Mas os chineses propuseramum valor ainda mais alto: 43mil milhões. E ganharam.

As críticas ao “modelo chinês”É precisamente isso queassusta os líderes económicosda Europa - a dimensão dasapostas. A associação indus-trial alemã BDI alertou pelaprimeira vez, no início doano, publicamente para o“modelo chinês de uma eco-nomia com forte influênciaestatal”, que está "em com-petição sistémica com eco-nomias de mercado liberais".

“A indústria alemã temuma grande preocupação”,disse ao IE o chefe do depar-tamento da BDI, FridolinStrack. “A economia híbridachinesa está a mobilizarenormes recursos para aqui-s i ções e s t ra tég i ca s naEuropa.” Estas “distorçõesde mercado” têm de ser “eli-minadas”, defende.

“A reciprocidade é a basede todas as relações comer-ciais”, afirma Pierre Defraigne,do Colégio da Europa de Bru-ges, e antigo chefe de gabinetedo Comissário Europeu doComércio, Pascal Lamy.

“Se demos demasiadoespaço à China nos nossosmercados, temos de a res-tringir novamente. Mas a UEdeve falar com a China a umasó voz. Agora, os dirigenteschineses falam sobretudocom os Estados-Membros eas reuniões com a UE sãouma formalidade”.

Como se pode “restringir”a China? Em termos concre-tos, a Comissão apresentouduas propostas. A primeiraé um regulamento que exige,desde Março, que os Esta-dos-Membros analisem oinvestimento directo estran-geiro. O serviço de estudosda Comissão publicou umrelatório sobre esse inves-timento na UE. Mas os núme-ros não parecem bater certocom a preocupação. O rela-tório analisava todas asempresas europeias detidaspor estrangeiros.

Em 2016, 29 por cento eramdetidos por empresas e cida-dãos dos EUA e apenas 9 porcento por chineses. Esta dife-rença é ainda maior quandose considera o valor dos activoseuropeus com propriedadeestrangeira. Nesse caso, osEUA estão na liderança com62 por cento e a China emsexto lugar com apenas 3 porcento. Em 2017, 46 por centodas aquisições na Europaforam feitas por empresasnorte-americanas ou cana-dianas e apenas 7 por centopor empresas chinesas.

*Jornalista do Diário deNotícias e membro do

consórcio Investigate Europe

Há umaexplicação simples paraas razões que levam a China acomprar, de acordo com LuísMah: “A China funciona muitobem no mercado capitalista.Tem uma lógica de investimentoseficientes.” Mais difícil é, talvez,conhecer as razões que levarama União Europeia a pressionaralgumas vendas em Portugal.

“É irónico, fomos obrigadosa privatizar, numa lógica deeconomia de mercado liberal,duas empresas que represen-tam o capitalismo estatal. Paramim, estrategicamente, é umerro”, avalia raquel Vaz Pinto,falando da EdP e da rEN, que,nas últimas eleições europeias,foi candidata pelo CdS ao Par-lamento Europeu. A mesmaposição tem o ministro socialistaAugusto Santos Silva.

Ainda mais surpreendenteé vermos Emmanuel Macron asubscrever essa mesma ideia:“A Europa, na sua resposta àcrise económica e financeira,empurrou vários Estados paraprivatizações forçadas sem umaopção europeia e decidiu, meto-dicamente, reduzir a sua sobe-rania através da entrega aos

chineses de uma série de infra-estruturas essenciais no sul daEuropa. Não vamos culpar oschineses por serem inteligentes,podemos culpar-nos a nós pró-prios por sermos estúpidos.”

Esta declaração de Macronfoi feita em Julho passado,numa reunião com diplomatasfranceses, e coincide com onovo tom do discurso europeuque nos foi reforçado por umdos seus conselheiros, o ex-Primeiro-Ministro francês JeanPierre raffarin. “O que nosfalta é uma estratégia para aChina”, reconhece.

A segunda medida tomadapela Comissão Europeia parareagir ao investimento da Chinaparece dar razão à crítica deraffarin: restringir o acesso dasempresas chinesas ao mercadoeuropeu de contratos públicos.O argumento usado para defen-der esta medida é a “reciproci-dade”, uma vez que as empresaseuropeias não podem investirna China em sectores como aagricultura, a aviação e os meiosde comunicação social.

“A China está ainda a abriros seus mercados. É uma ques-

tão de paciência", explica-nosZhang Yu, diplomata da missãochinesa na UE, em Bruxelas.

A ponte mais barataO melhor exemplo da pouca uti-lidade desta tentativa de impediras empresas chinesas de acedera concursos públicos na UE é aponte que está a ser construídaem Komarna. Na pitoresca baíado Adriático, os trabalhadoreschineses constroem estruturasde aço a 120 metros de profun-didade no fundo do mar, comenormes torres de perfuração.Em breve, será inaugurada aponte Pelješac, de dois quiló-metros e meio, para l igarKomarna ao enclave croata dedubrovnik - separados desdea guerra da Jugoslávia.

Por todas as razões, práticas,diárias, ou culturais e identi-tárias, esta ponte é uma soluçãopara um problema grave. Mastardou. E só foi possível porquea União Europeia a financiou,com 357 milhões de euros.Houve um concurso públicointernacional, ganho pelo grupoestatal chinês CCCC.

Os construtores chinesesimportam 60 mil toneladas deaço da sua distante terra natal.Os mais de 200 trabalhadoreschineses cumprem horários

extenuantes e “fazem-no muitobem”, diz Nikola dobroslavić,chefe do governo local. Acimade tudo, são baratos e nenhumconcorrente europeu conse-guiu acompanhá-los.

“Pagamos o menor preçopossível pelo melhor resultadopossível”, destaca o político,que só tem elogios para a novagrande potência no mercadointernacional da construção.

Bem mais acima, no centrode Kirkenes, no Árctico, as placasdas ruas têm os nomes escritosem norueguês e em russo, emalfabeto cirílico. É uma memóriada Guerra Fria, a realidade queimperou ali durante mais demeio século. Agora, a terra temtambém um pórtico chinês.

Kirkenes quer ser o pontode entrada na Europa da pre-vista rota Polar da Seda, ocaminho marít imo que a“fábrica do Mundo” está a pre-parar para tornar mais rápidasas viagens dos seus navios atéao grande mercado de 500milhões de europeus.

Com o degelo nos maresárcticos, a distância entre oNorte da Europa e a China será40% mais curta do que atravésdo Canal de Suez e 60% maiscurta do que pelo Cabo da BoaEsperança. Em 2040, segundoameaçam os estudos, as alte-rações climáticas deixarão todoo norte navegável nos verões,do Mar de Bering ao Mar deBarents onde está Kirkenes.

O “erro” português

Sábado28 de Setembro de 2019 11DESTAQUE

A pouco mais de 500 quilómetros deKirkenes para Sul, fica rovaniemi - acélebre terra onde a publicidade fin-landesa nos quer fazer crer que viveo Pai Natal – e que será o eixo da linhaférrea que ligará o futuro supre-portonorueguês, destino dos cargueiroschineses, à União Europeia. Mais paraSul ainda está em projecto um túnel,também ele nos planos das autoridadeschinesas, para ligar Helsínquia, na Fin-lândia, a Talin, na Estónia, em menosde meia hora.

Por tudo isso, Mike Pompeu, o secre-tário de Estado dos EUA, esteve emrovaniemi, em Maio, precisamentepara elogiar a rota do Árctico – “oscanais de Suez e Panamá do século21”, nas suas palavras. E, é claro, paracriticar a China.

“Queremos que as infra-estruturascruciais do Árctico acabem como asestradas construídas pela China naEtiópia, desmoronando-se e tornando-se perigosas ao fim de apenas algunsanos? Queremos que o oceano Árcticose transforme num novo Mar do Sulda China, com militarização e reivin-dicações territoriais? Queremos o frágilambiente do Árctico exposto à mesmadevastação ecológica causada pelafrota pesqueira da China nos maresao largo da sua costa, ou a actividadeindustrial não regulamentada no seupróprio país? Acho que a resposta ébem clara…”

do futuro para o presente é apenasum passo. Nos últimos meses, a diplo-macia americana tem feito pressãosobre todos os estados europeus paraque limitem o acesso da empresa chi-nesa Huawei à gestão tecnológica danova rede móvel 5G. A Huawei, parceiratecnológica chinesa da Altice, em Por-tugal, está no centro dos esforços bemvisíveis da Embaixada americana emLisboa – e em quase todas as capitaiseuropeias. Até agora, só a Polónia e a

república Checa aceitaram os argu-mentos americanos. Mas as pressõessão intensas.

da mesma forma, em Portugal, aconcessão do novo terminal XXI doporto de Sines é uma matéria diplo-mática. A China, através da COSCO, ogigante estatal de transportes marí-timos, já se reuniu, por diversas vezes,com a ministra do Mar, Ana Paula Vito-rino. O próprio Presidente da repúblicareforçou o aviso, num encontro comempresários americanos, em Junho.

“Os chineses têm sempre um minis-tro a visitar Sines, quase todos osmeses”, disse Marcelo rebelo deSousa, que acrescentou um pormenor:o embaixador dos EUA em Lisboasabe que “o tempo está a esgotar-se”. O concurso para a concessão donovo terminal de Sines ainda não foiaberto. E a China já controla 14 portosimportantes na Europa. de roterdão(Holanda) e Antuérpia (Bélgica), noNorte, ao Pireu (Grécia) e Valência(Espanha), no Mediterrâneo.

A dependência da AlemanhaQuando a maior empresa naval chinesa,a COSCO, comprou o Pireu, o portogrego estava em 37º lugar na lista dosmaiores da Europa. Agora, dez anosdepois, ocupa a 6ª posição. No finalde 2019, será o maior porto do Medi-terrâneo. Os políticos locais e as peque-nas empresas protestam contra o facto

de a COSCO querer impor um mono-pólio no Pireu, onde tudo, desde asgruas aos parafusos, é chinês. A nívelpolítico, a COSCO parecia ter um canaldirecto com o gabinete do ex-Pri-meiro-Ministro Alexis Tsipras. Mas aprincipal ajuda que a empresa recebeuveio da troika, revela-nos ChristosLambridis, ex-secretário geral doMinistério da Navegação:

“A pressão da troika de financiadoressobre a Grécia para acelerar as priva-tizações deu à China uma vantagemextra durante a negociação, porqueeles sabiam bem que a Grécia era for-çada a terminar o mais rápido possívelcom a privatização, a fim de obter apróxima parcela do empréstimo.”

Há também "uma parte de hipo-crisia", diz Panayotis Kouroumblis,dirigente do Syriza: “À medida que arelação da Grécia com a China se apro-funda, vejo mais gente preocupadacom isso, levantando questões e sus-peitas. Mas não posso deixar de obser-var que essas pessoas têm os seuspróprios laços privilegiados com aChina. Veja-se, por exemplo, Hamburgoou duisburgo.”

Nenhum país da UE é mais depen-dente da China do que a Alemanha,de quem é o parceiro comercial maisimportante. As empresas listadas noíndice dAX-30, da bolsa alemã, geram15% das suas receitas com a China. ABMW e a daimler-Benz vendem aliquase um terço dos automóveis queproduzem, mais do que em qualqueroutro país. Na Volkswagen, o númerosobe para quatro em cada dez veículos- quase metade do lucro do grupo ale-mão é gerado em negócios com a China.

Por isso, poucos estranharamquando o CEO da daimler, dieter Zets-che, veio a público pedir desculpaspelo "sofrimento e a dor causados aopovo chinês por um erro insensato enegligente". Numa publicação do Ins-tagram, um agente de marketing dadaimler divulgou uma citação do dalaiLama. E isso é a clara linha vermelhaque a China não permite que ninguémcruze, nem o CEO de um dos maioresfabricantes automóveis do mundo: aintegridade territorial.

Exemplos como este não são fre-quentes (embora o responsável máximo

da Wolkswagen também tenha ditoque desconhecia qualquer problemacom a população uigure). O que sobres-sai de toda esta relação económicarecente entre a UE e a China é a depen-dência real dos investidores europeusque estão a fazer negócios na China.

Esta é uma das principais razõespara se temer um conflito comercial:os seus efeitos serão generalizados.Augusto Santos Silva reforça a impor-tância desse facto para Portugal.Uma crise comercial penalizará sem-pre o país:

“Basta fazer raciocínios deste tipo.Qual é o maior parceiro comercialdentro da Europa da China? É a Ale-manha. Qual é o motor económico daZona Euro? É a Alemanha. Qual é opeso da Zona Euro no conjunto dasexportações portuguesas? É pratica-mente de três quartos. É fácil perceberque não ficaremos imunes.”

Intermináveis comboios de con-tentores com caracteres chinesesviajam 11mil quilómetros até ao seudestino final nas margens do reno,em duisburgo. Muitos camiões e naviosestão prontos para distribuir merca-dorias - do mais recente modelo desmartphone à roupa made in China.A cena repete-se cerca de 30 vezes porsemana e dá à estação de carga nobairro industrial aborrecido de duis-burgo um título imponente: dirigentespolíticos e funcionários da cidadefalam sobre o "fim da rota da Seda",enquanto elogiam o crescente êxitodo seu centro de transbordo de mer-cadorias chinesas, que encurta osprazos de entrega em três semanasem comparação com o transportemarítimo. A China, diz Erich Staake, ocriador e chefe do projecto, "é umcomponente central para o nossodesenvolvimento futuro".

Por tudo isso, os economistas JeanPisani-Ferry, conselheiro do PresidenteMacron, e Guntram Wolff, chefe dogrupo de reflexão Bruegel, de Bruxelas,escreveram um memorando para afutura Comissão Europeia:

"A tarefa central da UE será, porconseguinte, defender a sua indepen-dência económica e, ao mesmo tempo,permanecer fortemente ligada aosEUA e à China.”

Secretário de Estado dos EUA

Chineses trabalham longas horas para cumprir os contratos

A pressãoamericana

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