Encaramujando - Uma Viagem de Kombi Pelo Brasil

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    ENTRE SETEMBRO DE 2006 E DEZEMBRO DE

    2007, HABITEI UM DOMICLIO NADA IMVEL.

    AO VOLANTE DE CASA, NO CHEGUEI A

    DESCER TANTO AT O CHU. MAS AO NORTE,

    SIM: CRAVEI PRESENA NO OIAPOQUE.

    POR UMA CENTENA DE MUNICPIOS EM QUINZE

    ESTADOS, ACUMULEI MAIS DE TRINTA MIL

    QUILMETROS DE ANDANAS PELO BRASIL.

    ISSO SEM CONTAR UMA OUTRA DISTNCIA:

    ALM DA ROTA QUE FUI COLORINDO NAS

    PGINAS DO MEU GUIA RODOVIRIO,

    DESBRAVEI TAMBM UM MAPA IMPOSSVEL

    DE SE MARCAR COM ALFINETES. ERA UM

    CAMINHO INDITO, NUNCA ANTES PERCORRIDO.

    E QUE ME LEVOU AO INTERIOR: DURANTE

    UM ANO E TRS MESES, ENCARAMUJADO

    NUMA KOMBI, O MAIS LONGE QUE VIAJEI

    FOI MESMO PELOS CAFUNDS DE MIM.

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    ENCARAMUJADOUMA VIAGEM DE KOMBI PELO BRASIL (E PELOS CAFUNDS DE MIM)

    ANTONIO LINO

    1 edio

    So Paulo, 2011

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    Ao meu pai

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    Trecho deDiz que fui por a,samba de Z Kti e Hortncio Rocha

    Se quiserem saber se volto, diga que simMas s depois que a saudade se afastar de mim

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    Logo sada, enquanto brindvamos minha despe-

    dida numa festa em casa, alguns amigos me surpreenderamcom um presente coletivo: como nos tempos do colgio,

    quando se encerrava o ano letivo e os estudantes trocva-

    mos assinaturas nos uniformes uns dos outros, ganhei uma

    camiseta toda autografada com mensagens que antecipavam

    saudades, aconselhavam prudncias e me abenoavam com

    protees. Vesti agradecido aquele carinho tamanho GG. Efiquei estampado com uma caprichada ilustrao em serigra-

    fia: dirigindo uma Kombi voadora, minha caricatura flutuava

    sobre letras coloridas VIAGEM AO CENTRO DO EU,

    assim ficou, escrito bem no meu peito.

    A oportuna frase no tecido me fez lembrar de uma

    outra, grifada no papel. Nas noites daquela poca, um livro

    costumava se abrir do criado-mudo para falar aos meus olhos.Era o que eu queria ouvir:

    No necessariamente em casa o melhor lugar

    para encontrar nosso verdadeiro eu. A moblia in-

    siste em que no podemos mudar porque ela no

    muda; o cenrio domstico mantm-nos atrelados pessoa que somos na vida comum, mas que pode

    no ser quem somos na essncia.

    Contando 27 anos, decidi comprovar na estrada a fi-

    losofia do Alain de Boon.

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    Para me distanciar da vida comum e me aproximar

    da pessoa que eu era, na essncia, o primeiro passo no foipara a frente: foi para cima. Antes de comear a andar, preci-

    sei me levantar. que a minha posio era bastante cmoda:naquele momento, eu estava bem esparramado sobre as al-

    mofadas macias da minha zona de conforto.

    Demorei mais de um ano para erguer todas as nco-ras que me pesavam a ficar em So Paulo. Os abacaxis at que

    descasquei bem. Resistir s mas que foi o mais complica-do: entre outras renncias, quando eu j estava me empaco-tando para a viagem, escolhi recusar um trabalho que prome-

    tia suculenta remunerao. Tentando me manter no mesmo

    lugar, vrias tentaes frutificaram. (S consegui escorregardos tentculos musculosos do cotidiano porque eu estava

    todo besuntado de convico).Para engordar um p-de-meia, afivelei um cintoapertado no meu oramento. Aplicado nas lies de eco-

    nomia, aprendi que certas subtraes tambm podem adi-

    cionar. Pois dizem que o viajante deve se reduzir ao bsico.Mas eu opino diferente. No que o viajante se reduza: ao

    se livrar dos excedentes, pelo contrrio, o viajante se amplia

    ao essencial. Dessa maneira fui engrandecendo, conforme me

    despertencia das coisas. Um desapego muito forte me ergueu

    pelas canelas e chacoalhou todas as tralhas que eu carregava.At que nos meus bolsos restou apenas uma chave: foi ento

    que torci a ignio. E, finalmente, me arranquei partida.

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    Com as rodas na estrada, vesti aquele presente que eu

    ganhara na minha festa de despedida. Depois de tantos pre-parativos, l estava eu, entregue ao desconhecido. Sem lugarcerto para ir. Nem hora marcada para voltar. Meu roteiro era

    aberto, imprevisvel. Mas eu no estava desorientado: aquela

    camiseta rabiscada pelos meus amigos funcionava para mimcomo uma placa de pano. Uma placa que indicava ao centro

    do eu o verdadeiro sentido do meu movimento.

    Viajar sair para dentro.

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    Sou um carcereiro cruel e implacvel. H muitosanos mantenho presa, neste ambiente frio e insalubre, uma

    pequena alma.

    Ao longo dos tempos, fui erguendo as paredes emvolta do sujeito e, at hoje, fao rotina desse ofcio, tijolo por

    tijolo, numa labuta diria. Quando o prisioneiro enfim se deuconta, j era tarde. Estava cercado. No h trancas nas portas nem correntes que o pren-

    dam: a minha presena basta para mant-lo aqui dentro.

    Insistente, ele sempre tentou sair mas, graas minhadedicao, nunca foi bem-sucedido. Permaneo sem folga

    uma constante e atenta viglia. Prezo tambm pela aparncia do crcere. Uma facha-da bonita e bem cuidada afasta as suspeitas de que isto uma

    priso. Espalho flores de plstico pelo jardim para distrair os

    olhares curiosos. No deixo que nada atrapalhe a convivnciaamena que mantenho com o meu eterno hspede.

    Em meio a tanto trabalho, devo admitir que, s vezes,

    me sinto s. Quando isso acontece, por experincia, j sei umalvio: paro diante do espelho e fito profundamente os meus

    olhos. O que vejo por trs das retinas o que me acalma: ele

    ainda est aqui.

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    1 BEBEDOURO 2 RIBEIRO PRETO 3 BRASLIA 4 PIRENPOLIS

    5ALTO PARASO 6CAVALCANTE 7PARACATU 8ARAX 9SO PAULO

    SETEMBRO A DEZEMBRO DE 2006

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    SADA DE EMERGNCIA

    15 Distrito Policial. Bairro nobre de So Paulo. Do

    outro lado da rua, tomo um caf com o William, taxista. Apadaria vazia, como a cidade toda, naquela noite de feriado.

    Sete de setembro. Por falta de clientes, os balconistas ficam por perto,

    passando um pano mido pra l e pra c. Vcio do ofcio. Aos

    poucos, discretamente, entram na conversa.

    Falvamos sobre as circunstncias do nosso encon-tro, o William e eu. Uma histria que foi parar na delegacia.

    E que, antes de ns, j havia passado em frente padaria: umdos atendentes nos conta que viu o Alfa Romeo preto atra-

    vessar o cruzamento em alta velocidade. O sinal: vermelho.

    No instante daquela escandalosa infrao de trnsi-to, h poucas horas, eu devia estar na Nove de Julho, prestes

    a entrar na So Gabriel. O William devia estar na Faria Lima,conversando com a passageira sentada no banco de trs. Paraencurtar a corrida, ele decidiu pegar um atalho, desses que os

    taxistas conhecem. Chegamos quase juntos a uma travessa

    da Santo Amaro. E esperamos o semforo abrir. S ns dois.E a passageira. Eu na Kombi. Os dois no txi.

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    Eu estava distrado, com o celular na orelha. Foi

    quando um estrondo me abalou: sem que eu percebesse a suadesenfreada aproximao, o Alfa Romeo preto passou rpido

    ao meu lado, batendo com fora na lataria da Kombi. No lembro o que vi primeiro: se o ladro abrir a

    porta e sair correndo. Ou o reflexo das viaturas no retrovisor.

    Mas quando ouvi os tiros, enchi os olhos com a parte de bai-xo do painel do meu Volkswagen zerinho. Agora, pensava eu,

    todo amassado. Depois de algum silncio, desci e encontrei o Williamcom a passageira que, assustada, logo foi embora noutro txi.

    Os curiosos iam e viam.

    O soldado voltou ofegante, sozinho. O ladro s veiomais tarde, algemado dentro de uma viatura. Fora capturado

    num ponto de nibus prximo dali: sua chegada despertouum truculento sentimento de desforra dentro das fardas. O dono do Alfa Romeo apareceu ainda alarmado,

    depois de aproveitar um descuido do assaltante para abrir a

    porta do carro e fugir correndo do que seria, na melhor dashipteses, um sequestro relmpago. Ao volante, o criminoso

    fugiu em acelerada imprudncia, tentando despistar o com-

    boio de Corsas 1.0 que nunca o alcanariam se no estivsse-mos o William e eu parados ali, naquele sinal fechado, naque-

    le exato momento.

    O estrago no txi foi considervel. Na Kombi, nemtanto. O William vai ficar umas duas semanas sem trabalhar.

    E eu peguei a estrada na manh seguinte, pensando nas pe-

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    quenas e poderosas circunstncias que afastam e aproximam

    vidas (e automveis). O dono do Alfa Romeo foi alugar um filme na Blo-ckbuster. O William escolheu um caminho diferente para

    chegar Brigadeiro. E, no final, acabamos todos juntos ali,

    sentados num banco gelado de delegacia... Com a viagem, comeo tambm uma ntima relao

    com o acaso.

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    A KOMBI

    Depois de quatro anos de adiamentos forados, no

    outono de 1982, Julio Cortzar e sua esposa, Carol Dunlop,

    finalmente partiram para uma viagem de trinta dias pela Fran-a. Bem ao estilo do imaginoso escritor (que quela altura,

    entre outras faanhas, j havia cumprido A Volta ao Dia em

    80 Mundos), o esperado passeio a dois se guiou por um ro-teiro nada convencional: em pouco mais de um ms, o casal

    percorreu os 800 quilmetros entre Paris e Marselha estacio-

    nando em todos os 65 parkings encravados s margens darodovia, a uma mdia de duas paradas por dia, sin salir jams

    de la autopista. Sem pressa, numa deliberada lentido, a expe-

    dio un tanto alocada y bastante surrealista acumulou des-cobertas importantssimas. Tudo foi cientificamente anota-

    do pelos aventureiros que, ao modo dos grandes exploradores

    do passado, escreveram juntos um relato delicioso sobre a sua

    viagem atemporal. Duas dcadas mais tarde, devorei o tal li-vro como um cronpio faminto mastigando um sanduche de

    queijo. E foi por isso, por ter lido Os Autonautas da Cosmo-pista com tanta avidez, que me afirmei numa deciso: pegan-

    do carona na histria alheia, decidi que, a exemplo do priplo

    do Cortzar, minha viagem tambm seria numa Kombi.

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    Escolhido o modelo da carruagem, empreendi uma

    caada obstinada minha prpria Fafner, ou El Dragn,como ficou rebatizado o Volkswagen vermelho pilotado peloautor de O Jogo da Amarelinha. Farejei com afinco as feiras

    de automvel que acontecem periodicamente em So Paulo.

    Mas nada: das minhas incontveis investidas, voltei semprecom as mos vazias, sem um volante para segurar.

    que o utilitrio que escolhi para ser meu transporte

    e minha hospedagem, geralmente, serve aos seus condutorescomo burro de carga. Judiadas de tanto frete, as opes que

    me apareceram demandavam uma recauchutagem capricha-

    da e, portanto, demorada. Mas eu no queria esperar. A sadame exigia, ansiosa. Uma poro de vezes, por outros peque-

    nos inconvenientes, a viagem havia sido adiada. O ponteiro

    marcando o nvel da minha pacincia j deitava na reserva.Foi ento que desisti de cobiar antiguidades: para sair logo

    do ponto morto, acabei completando o investimento numa

    Kombi nova, pronta para a estrada. Alm do mais, o zero quilmetro me protegeria me-

    lhor de uma ignorncia: no entendo nada de rebinbocas

    de parafusetas. E no pretendo aprender na marra. Em todo

    caso, vai saber, vou com munio para o pior: obedecendo sorientaes do Bahia, levo um cabo do acelerador, um flex-

    vel de embreagem, um suporte do flexvel, alicate de pressoe vrias chaves 8x10, 12x13, 16x17, chave de fenda, chave

    estrela e por a vai. Segundo o preventivo mecnico, monto e

    desmonto a Kombi com esse aparato.

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    ALTO PARASO

    Desde que sa de So Paulo, a companhia de parentes

    e amigos (e amigos de amigos) vinha estendendo sob mim

    uma rede social protetora. Mas eu queria dar piruetas no va-zio do anonimato: How does it feel to be on your own, a com-plete unknown?. Viajei 230 quilmetros para fora do retngu-lo federal. E fui ser um joo-ningum em Alto Paraso. Alm de polo ecoturstico, por conta da proximidade

    com o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, a cidade

    goiana tambm um centro mstico que h algumas dcadastem atrado hippies, artistas e religiosos do mundo todo (e

    tambm de outros mundos: vide o inusitado aeroporto paradiscos voadores!). Aqui, na altura do paralelo 140748 de latitude

    sul (o mesmo que passa por Machu Picchu, no Peru), brotam

    cristais de quartzo da terra. Depois de uma noite fresca den-

    tro da Kombi, acordei em cima dessa ddiva subterrnea. Efui pisando o manancial energtico a caminho de alimentar

    minha matria na padaria. Foi ento que parei para ver: emfrente rodoviria, um pequeno grupo se esticava em core-

    ografia graciosa e sincrnica, numa espcie de ginstica zen.Deixei o desjejum para depois. E me juntei a eles

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    As noites anteriores na Kombi haviam sido revigoran-

    tes. Mas eu j comeava a sentir falta de uma ducha quente. Ede um liquidificador para misturar frutas pela manh. Eis-meaqui ento, na casa pequena de quintal grande da Patrcia.

    Defendo sem descuido a tigela de rao do Zum: os

    outros gatos da rua aproveitam que o bichano caolho paratentar fazer uma boquinha. Dia e noite, monto guarda. Sou

    implacvel com os gatunos. Mas generoso com as crianas: o

    Iuri e o Jnior encheram um saquinho plstico com jabutica-bas, brincaram um pouco no balano pendurado sob o p de

    seriguela e voltaram para a rua satisfeitos, antes que as nuvens

    escuras desabassem. Agora, enquanto a gua batuca forte no telhado de

    amianto, aproveito para ler. Trouxe uma caixa de livros na

    Kombi. Fim de um captulo... penso nesses anjos todos queme receberam no (Alto) Paraso, olhando dentro dos meus

    olhos e me abraando apertado.

    No sinto falta das trombetas.

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    ADELINE

    Eu tinha acabado de arrumar minha casa quandoconheci a Adeline. No o meu lar com rodas (esse tambm

    precisa de uma boa faxina), mas outro, de fantasia, em cimade uma rvore: uma casa que eu constru na imaginao para

    ser minha, durante uma sesso de meditao em grupo. Era

    dia das crianas. Fui seguindo as orientaes de uma voz suave que

    sugeria imagens nossa concentrao. Queimei os exceden-

    tes, colori as paredes e arrumei o balano. Brinquei comigomesmo quando moleque. Pega-pega, esconde-esconde e

    pula-pula. Brinquei at cansar. Quando me dei por satisfeito,

    abri os olhos, bem devagarinho. E fiquei barbudo de novo. Voltei andando noite, pelas ruas de Alto Paraso,

    chupando um pirulito sabor Coca-Cola. Foi ento que co-

    nheci a Adeline.

    H quatro anos, ela viveu a mesma idade e decisoque vivo agora: aos 27, largou a carreira de advogada crimi-

    nalista na Blgica e saiu de mochila nas costas, com o filhopequeno a tiracolo, para viajar pelo mundo. Entrou no Bra-

    sil pela Bolvia. Ms que vem completa um ano morando

    em Gois.

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    Nos ltimos dias, vivemos juntos na minha casa na r-

    vore. Fiz algumas adaptaes para acomod-la. Costurei maispano no cobertor. Dobrei a medida das receitas que cozinhavas para mim. E pendurei um balano novo ao lado do meu.

    Quando ouvia um cuco agudo vindo da porta, sabiaque era ela se anunciando antes de entrar. Gostava de quandoela falava em francs para eu no entender. Trocvamos care-

    tas para ficar nos olhando.

    Enchemos a Kombi de crianas e fomos comer jabu-ticaba e tomar banho de rio no Moinho. Mergulhamos nas

    guas termais num dia de chuva fria. E exploramos o Vale da

    Lua num dia de sol. Sempre que saamos para um passeio, a Shanti corria

    atrs do carro at algum trecho na subida da rua principal,

    quando suas pernas se entregavam, cansadas que j estavamde tanto coar as feridas deixadas pelas pulgas.

    Pensei na Shanti enquanto acompanhava com os

    olhos o nibus que levou a Adeline. Eu poderia estar na Bahiaagora, com ela e o Romain. E com sua me e sua irm, que

    vieram da Blgica para um ms de frias em famlia.

    Mas decidi ficar. A rvore que sustenta minha casa

    inspira cuidados. O tronco e os galhos esto fracos. Aindano comportam o peso de duas histrias.

    Fiquei para adubar-me com silncio e solido.

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    MOINHO

    O Moinho um lugar to sossegado que faz Alto Pa-

    raso parecer metrpole. Entre um e outro, doze quilmetros

    de estrada de terra, remendados de vez em quando por peque-nas pontes de madeira. Pelo volume dos rios, logo se v que as

    chuvas j chegaram, cheias de vontade.

    Os moradores mais velhos da comunidade no come-ram a farinha de trigo que era produzida pela mquina movida

    gua que deu nome ao lugar. Isso foi h muitos anos, quando

    essas terras todas eram uma fazenda s.Os ancies s sabem dizer que a moenda funcionava

    ao lado de onde hoje a casa da Marla, justamente o local em

    que passei os ltimos dias, na companhia de outros sete via-jantes: o William da Colmbia, a Ins e o Ale da Argentina, o

    Kido e a Marlene do Chile e a Miriam e o Daniel da Espanha.

    Todos vindos do estrangeiro, para comprovarmos juntos uma

    irmandade sem fronteiras. Meditamos todos os dias, ora em casa ora em alguma

    cachoeira das redondezas, quando o sol nos convidava. Nos

    finais de tarde, sentvamos em roda para cantar mantras tibe-

    tanos que alguns haviam aprendido com um monge que esti-

    vera em Alto Paraso poucos dias antes de nos encontrarmos.

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    Enquanto praticvamos Chi Kung no campinho de

    futebol, a crianada ficou em volta, dando risada. Depois medeixaram um conselho, escrito com o dedo na lataria empo-eirada da Kombi:

    lava ceu carro

    A lenha para o fogo estava sempre cortada, o cho

    varrido e a loua lavada. Nunca houve voz de comando quedividisse tarefas. Cada um sabia a hora certa de ser formigaou cigarra.

    Antes de cada refeio, agradecamos juntos a mesa

    farta que as rvores e os moradores do Moinho nos proporcio-navam. Ao caminharmos, ramos atacados por jabuticabeiras,

    amoreiras e abacateiros generosos, que nos prendiam entreseus galhos at que enchssemos de frutas as barrigas e as sa-colas que improvisvamos estendendo a barra das camisetas.

    Junto com o William, tomei ch de favacona e apre-

    ciei o Ananias dedilhando msicas de igreja no violo, en-quanto sua me, a Dona Dica, atiava a lenha para torrar o

    caf que levaramos para todos.

    Na casa da Dona Alzira, deixamos uma falha no can-teiro de grama, bem debaixo da janela da cozinha. Era ali que

    a gente se apoiava, na ponta dos dedos, para comprar p-de-

    moleque feito com rapadura. As velas queimavam por pouco tempo depois que

    escurecia. Costumvamos nos recolher cedo, embalados na-

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    quele breu sem eletricidade. A nica vez em que entramos

    pela madrugada foi na noite em que nos despedimos, dan-ando salsa e comendo pizza na varanda da casa da Jurema.

    Confesso que, assim que cheguei ao Moinho, fiqueimeio contrariado. Eu queria estar sozinho e em silncio por

    alguns dias. No esperava tanta gente. Mas acabei mudando

    de ideia: no h eremita que resista ao sorriso preto de geleiade jabuticaba em pessoas to aucaradas.

    Por fim, depois desses dias com essa minha famliainesperada, me sinto diferente: acho que j no preciso tan-to de almofadas para meditar. E nem de solido para estar

    comigo mesmo.

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    MUTIRO

    Sa do Moinho para participar de um mutiro agrco-la numa fazenda a cinco quilmetros de Alto Paraso. O con-

    vite veio da Marla, que orientou nossos trs dias de trabalho.Limpamos o terreno criando uma mandala de oito

    ptalas, cada uma apontando para um eixo cardeal ou cola-

    teral. Cuidei da ponta do norte, onde plantei vrias rvores,mandioca, milho, abacaxi, arruda e uma bananeira. No miolo

    do roado em forma de flor, enterrei umas mudas de amora

    trazidas do Moinho. Um humilde agradecimento generosafartura que eu aproveitara de bom grado nos ltimos dias.

    Aprendi que o jatob demora pelo menos cinquenta

    anos para dar os primeiros frutos. Desde ento, senti mais sa-borosos os jatobs que comi.

    Capinei, tirei raiz, abri semente, cavei buraco, carre-

    guei esterco e piquei capim. Contei dez calos na mo direita

    que, por ter nascido mais esperta que a outra, sempre acabarecebendo mais trabalho.

    Para recompensar nosso esforo, uma pequena ser-pente escapou s enxadadas e brotou da terra. Comemora-

    mos esse smbolo de renovao. Um prenncio de safras pro-

    missoras. Que partiu, rastejando.

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    BAILES DA VIDA

    Vivi dias de saltimbanco com o William e com aNdia, delicada cantora de Minas. Em So Jorge, vila de

    entrada para o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros,tocamos no restaurante do Messias, chefque deixou umaconceituada cozinha em So Paulo para abrir um desses

    buffets participativos, em que o cliente escolhe os ingre-dientes para o molho da massa e acompanha toda a prepa-rao do prato.

    Afinamos voz, pandeiro e violo e improvisamos

    jazz e MPB para poucos ouvidos. O final de semana chuvo-so afastou os turistas. Mas contamos com a generosidade

    do Messias (que garantiu o macarro) e dos escassos fre-

    gueses, que acabaram deixando quase cinquenta no cha-pu mgico do Willy.

    Na Oca Lila, em Alto Paraso, tocamos para um

    nico casal e ganhamos beirutes.

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    CONSTRUO

    Juntei madeira com madeira num desenho lgico

    e constru um pequeno galpo para a Tilasmine. Agora ela

    tem um lugar apropriado para preparar a terra, de acordocom as rigorosas exigncias que seus cogumelos comest-

    veis impem para crescer.

    Trabalhei com o William, meu parceiro de msica,e com o Joviano, o homem mais forte do mundo. Os tron-

    cos parecem ocos no ombro dele:

    - Mais, moo! Ganhei uns trocados. E novas palavras no vocabu-

    lrio: esteio, linha, trava, pontalete, caibro e ripa.

    Nessa viagem, j trabalhei em duas das ocupaesque mais admiro: por uns breves dias, experimentei as fun-

    es de agricultor e peo-de-obra. Agora, s falta descolar

    um bico de lixeiro para que eu alcance, de vez, a minha

    realizao profissional.

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    ANJO CADO

    Tem um sino de vento pendurado no batente da por-

    ta da casa da Adeline. E era sempre assim: eu s me lembra-

    va de abaixar a cabea quando as hastes de metal j haviamanunciado minha passagem.

    Nos ltimos dias, toquei com frequncia essa cam-

    painha involuntria. Nesse perodo, fui acometido algumasvezes por uma falsa certeza: semana que vem saio de Alto Pa-

    raso. Mas o prazo vencia e l estava a despedida, fujona, me

    esperando com cara de promessa alguns dias adiante. verdade que no dediquei muito esforo persegui-

    o. Tenho gozado de um prazer sdico quando vejo os pla-

    nos tombarem diante do acaso. E assim fui ficando. At quepassei a encontrar gente conhecida toda vez que percorria o

    curto trajeto para buscar o almoo no supermercado. Outro

    dia, me peguei ensinando caminhos para um motorista per-

    dido. A decidi, resoluto: completo vinte e oito anos e partopara um lugar de ruas desconhecidas, onde terei meu anoni-

    mato de volta. Comemorei meu aniversrio tocando tamborcom rastafris em volta da fogueira, embaixo da lua cheia. E

    no dia seguinte, finalmente, peguei a estrada, esbarrando meu

    derradeiro tilintar no sino de vento da casa da Adeline.

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    PEDAO DE PAI

    No dia em que sa de Alto Paraso, fui eu quem acor-

    dou o Romain. Geralmente, era ele o despertador carinhoso,

    que nos colocava em p com ataques de ccegas. Mas naque-le dia, no. Ao sair, bem cedo, inverti o costume. E fui abra-

    lo embaixo das cobertas, no quarto rosa que pintamos de azul

    para ele criar seu espao de menino e dormir sozinho. Uma vez, no comeo, estranhei quando o Romain

    me ligou da rua, pedindo para encontr-lo na lan house. A

    Adeline estava em Braslia, como acontecia toda semana,para fazer algum dinheiro com aulas particulares de francs.

    Fui desconfiando problemas. Mas ele s queria que eu o le-

    vasse de Kombi para a escola. Busquei-o na sada tambm. E fomos tomar sorvete. De limo, por favor, porque

    esse menino no como os outros, que atendem com pressa

    ao chamado do bvio chocolate. Ele inventa canes, come

    cebola crua e faz fila com os garotos grandes para mergulharde cabea do alto da cachoeira So Bento, enquanto seus ami-

    gos s assistem. Puxou a me, que tambm no tem medo dealtura e pulou l da Europa, no corao da Amrica do Sul.

    Ao longo dos meus dias de convivncia com essa du-

    pla corajosa, mesmo sem entender as broncas e carinhos em

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    francs, fui desenvolvendo uma profunda admirao pelo

    jeito como a Adeline educa seu filho. Mas eu estava muitoperto para ser um mero espectador admirado. Um dia coubea mim decidir se o Romain poderia usar o computador de-

    pois do jantar. A me assustei, confesso. De repente, virara

    pai. Ou, pelo menos, um pedao de pai, desses que o Ro-main foi recolhendo com o tempo para compor uma figura

    paterna prpria, que preenche o espao que seu genitor bio-

    lgico no ocupou. Me assustei porque achava que por estar de passa-

    gem no poderia assumir certas responsabilidades. Grande

    bobagem... a responsabilidade uma condio da presena. Entre todos os templos de Alto Paraso, foi na casa da

    Adeline que me senti mais espiritualizado. Como ela, sou um

    devoto do cotidiano. Acreditamos na Providncia Divina.Mas ao mesmo tempo, sabemos que os portais de luz no vo

    manter as lmpadas acesas se a CELG cortar a energia por

    falta de pagamento. Os anjos no vo tirar a roupa do varalquando comear a chover. E os discos voadores no vo virar

    aspirador de p para limpar a casa.

    Sigo amando a guerreira csmica, que veio das es-

    trelas para questionar com intrepidez e vencer batalhas do-msticas, todos os dias. Quanto ao Romain... como esquecer

    uma criana que diz, num abrao de despedida, que no vaime esquecer?

    On vous souhaite, tout le bonheur du monde!

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    PROPAGANDA

    Eu estava escrevendo, sentado numa praa de Ca-

    valcante, a noventa quilmetros de Alto Paraso, quando

    ouvi uma voz pomposa de locutor de rdio anunciar pelocarro de som:

    Ateno, senhores moradores desta cidade de Ca-valcante. Na feira coberta se encontra um caminho carrega-

    do de galinhas. O caminho estava indo para o Maranho e

    quebrou. O motorista foi autorizado a vender as galinhas apreo de custo. So cinco galinhas a dez reais! O caminho

    encontra-se na feira coberta. Cinco galinhas a dez reais!.

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    KALUNGA

    Eles foram cuspidos do poro de um navio negrei-

    ro em Salvador e trazidos para terras do Centro-Oeste como

    mercadoria de algum fazendeiro.

    Que noite mais funda, Kalunga!

    L pelas tantas, decidiram procurar a liberdade.E a encontraram, bem escondida, tomando banho no rio

    Capivara e chupando mangas num chapado, a trinta qui-lmetros de onde fica hoje o municpio de Cavalcante, emGois. L fundaram um quilombo e fizeram descendentes.

    Fui conhec-los.

    Apesar da dificuldade de acesso, os Kalungas noesto isolados. Por causa do turismo, uma pequena placa foi

    pintada mo para indicar o caminho da casa do Seu Ciri-

    lo, onde os forasteiros encontram informaes, cafezinho emais coisas. O movimento cresce muito entre junho e julho,

    quando a comunidade celebra uma festa aberta para Santo

    Antnio, seu padroeiro. O governo tambm chegou aqui, anunciando suas

    aes em grandes placas. A luz eltrica veio em 2004, junto

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    Numa torneira da escola, enchi um balde com gua e

    tomei um banho de sopapo antes de dormir. No dia seguinte,enquanto eu amassava bananas na minha cuia de bambu, sen-

    tado ao lado da Kombi, recebi a visita do Seu Cirilo.Ele chegou se apresentando como lder da comuni-

    dade, uma credencial oral de autoridade para me cobrar um

    pedgio, exigido de todos os turistas, em benefcio da as-sociao. Mas depois de alguma conversa ele percebeu que

    eu no faria arruaa e me isentou da taxa. Em troca, mecomprometi a levar Kalungas cidade, quando eu voltassepara Cavalcante.

    Estranhei um pouco a sisudez dos Kalungas, acostu-

    mado que estava com a acolhida afetuosa dos alternativos deAlto Paraso. Mas no posso reclamar, de forma alguma. No

    ganhei colo, mas recebi coquinhos de macaba de uma se-nhora, uma manga-rosa dos meninos e um convite para jan-tar do Seu Cirilo.

    E, enquanto eu esperava as panelas virem do fogo

    lenha, tentei ver o Fausto com olhos de quem novato nohbito de perder tempo frente da telinha. Com a chegada

    da luz eltrica, os Kalungas podem admirar bailarinas num

    programa dominical: - A moreninha a mais ertica, no ? Retribu o jantar com um punhado de amendoins

    que demorei a torrar no meu fogareiro a lcool. Alis, nos l-

    timos dois meses, o nico lcool que consumi foi mesmo esteem barras. Tenho estado pela sobriedade ultimamente. De tal

    providncia que, apesar de ter estacionado a Kombi perto do

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    bar, procurei manter uma saudvel distncia do distinto esta-

    belecimento. Mas sabia, desde o incio, que viraria assunto debbado. De longe, me divertia imaginando as hipteses queeles criavam para justificar minha presena. At que um dia,

    no pude evitar o contato. E se no fui eu at o bar, o bar veio

    at mim, s onze da manh de uma segunda-feira, cambalean-te, cheirando a pinga e se apresentando como Miranda:

    - O pessoal acha estranho efica falando: O que aque-

    le hom t fazendo aqui? Mas eu acho que todo mundo temo direito de sair e arejar a cabea.

    A viagem tem sido muito generosa comigo. Mas por

    essa eu no esperava: ganhei uma advogada de defesa entreos bebuns! Retribu o prestimoso servio com uma banana e

    um punhado de bolachas gua e sal. Me recusei a pagar qual-

    quer bebida. Eu j ouvira falar da Miranda, algumas horas antes.

    Enquanto improvisava meu desjejum, ia observando, com os

    olhos ainda inchados de sono, o caminho barulhento sair va-zio e voltar cheio de terra. O cachorro branco com uma orelha

    preta, esperando migalhas ao meu lado, ia vendo tambm.

    Depois de matar a fome, quis dar um jeito na curiosi-

    dade e pedi uma carona, s para saber como era essa histriade puxar areia. Senti que meu interesse gerou no motorista

    uma surpresa que, depois, foi virando orgulho e coloriu asrespostas que ele me dava sobre seu trabalho.

    O Luiz nos esperava na escavadeira, num trecho do

    rio que a enxurrada encheu de areia fina, boa para piso. Me

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    ZEZINHO

    O Zezinho veio correndo perguntar se era eu que

    morava na ambulncia. Confirmei sua suspeita mostrando

    minha cama. E ensinei o nome certo do carro. Desde en-to, sempre que me encontrava, ele pedia:

    - Vamo l na sua combis?

    Mas eu preferia ficar com ele longe do carro por-que me cansava ter de procurar maneiras delicadas para

    negar seus pedidos. Tudo ele queria. A panela. O foga-

    reiro. A manga que ele mesmo trouxe para mim. O trigopara quibe que eu hidratei como almoo... at shoyu puro

    ele bebeu, fazendo cara de desgosto, mas sempre pedin-

    do mais, numa compulso infantil por receber, o que querque fosse, nessa sua vidinha de carncias.

    Queria estabelecer com ele uma relao em outras

    bases e fomos passear. Inventamos uma pequena bola de

    palha de bananeira para chutar bem alto. A trocamos osps por varinhas para jogar bete. At que a bola cedeu s

    tacadas e mudamos de brincadeira.A diverso agora era subir nos meus ombros e cor-

    rer atrs dos que ficavam, distantes, l embaixo. A amigui-

    nha do Zezinho ainda me advertiu, quando eu j estava

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    com o moleque pendurado pelos sovacos, a meio metro

    do cho:- Mas ele t todo sujo!Era o que eu queria: me sujar tambm.

    Antes de ir embora, passei na escola para me des-

    pedir do Zezinho. Cheguei justamente na hora do recreioe fui cercado por ele e por seus coleguinhas que faziam,

    todos ao mesmo tempo, um pedido insistente que eu no

    me cansava de atender: abraos. Foi o Zezinho quem me ensinou que eu podia ir

    alm nos coquinhos de macaba. Pegou os frutos chupa-

    dos que espalhei perto da Kombi e com uma pedra merevelou, escondida dentro da casca resistente, a pequena

    polpa branca, doce e macia que eu estava desperdiando.

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    A PUREZA DA RESPOSTA DAS CRIANAS

    A missa na comunidade quilombola dos Kalungas

    acontece uma vez por ms. O padre chega, benze os enfermos,

    celebra o culto e vai embora. Por ordem das professoras, a crianada em peso atra-

    vessa a rua carregando os bancos da escola. Todos se amonto-

    am na pequena capela que no tem cruz, altar nem imagensque indiquem sua santidade. So s paredes sem reboco e ja-

    nelas sem vidro.

    Num certo momento do sermo, o padre pregava asupremacia da essncia sobre a aparncia. Falava que a alma

    que tem que estar limpa e, num esforo didtico, seguia:

    - No importa se a pessoa est mal vestida e toda suja.Porque a pior sujeira no essa de fora. A pior sujeira a...

    - Micose! - gritou, sem maldade, um menino entre os fi-

    is. Provavelmente vtima, ele prprio, de coceiras interminveis.

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    LANCHONETE PORTUGAL

    Na altura do quilmetro 117 da rodovia GO 118,

    que liga Cavalcante a Braslia, encostei para esticar as pernas

    e morder um desjejum. Pelas paredes da lanchonete, cartazes tursticos de

    Portugal, terra natal do Seu Z, que esperava meu pedido do

    outro lado do balco. O cafezinho e a estalada na coluna souma cortesia da casa.

    Sentei num banquinho de madeira. O patrcio atrs,

    num banco mais alto, com os joelhos nas minhas costas: - Cruza os braos. Me d as mos. Agora relaxa...

    TRRR!

    E segue viagem, ora pois.

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    1 SO PAULO 2 SACO DO MAMANGU 3 ANGRA DOS REIS 4 SANA 5 RIO DE JANEIRO

    6 ITATIAIA 7 SO LOURENO 8 CAXAMBU 9 CARMO DA CACHOEIRA 10 CARRANCAS

    11CONCEIO DE IBITIPOCA 12JUIZ DE FORA 13VISCONDE DO RIO BRANCO 14ALTO CAPARA

    15 FEIRA NOVA DO IMIGRANTE 16 DOMINGOS MARTINS 17 VITRIA 18 IBIRAU 19 SO

    MATEUS 20 ITANAS 21 CARAVELAS 22 ABROLHOS 23 CUMURUXATIBA 24 MONTE PASCOAL

    25 CARAVA 26 TRANCOSO 27 ARRAIAL DAJUDA 28 PORTO SEGURO 29 SANTA CRUZ

    CABRLIA 30 ILHUS 31 ITACAR 32 BARRA GRANDE 33 VALENA 34 FEIRA DE SANTANA

    35CALDAS DO JORRO 36MONTE SANTO 37CANUDOS 38JUAZEIRO 39PETROLINA 40CASA

    NOVA 41 SO RAIMUNDO NONATO 42TERESINA 43 CAMPO MAIOR 44 PIRIPIRI 45 PARNABA

    46TUTIA 47 PAULINO NEVES 48BARREIRINHAS 49SO LUS 50ALCNTARA 51SANTA HELENA

    JANEIRO A MAIO DE 2007

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    Vez ou outra, tenho que ancorar para tomar um pouco de pai-

    sagem: meu analgsico. Embriagado de exausto, acumulo altura. Sou umcorpo dbil a reboque da teimosia. At que, finalmente, piso

    sobre o derradeiro entre os 396 degraus. Durante uma tera

    parte do dia, icei minhas toneladas at aqui. Agora, descereipela via expressa.

    Arrasto-me at o ilustre veculo. Consumido. Man-

    quitolante. E encantado com a descoberta que acabo de fa-zer: dentro de mim, guardo um guindaste.

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    Meus esforos para encontrar uma alternativa mais

    segura me suaram em vo. S me restava pular e cair na mata,que devia estar a uns trs metros abaixo de mim. Ou esperar

    o resgate. Preferi pular. Joguei a mochila e me sentei na rocha, encaixando a

    bacia numa das valas que a gua, h milhes de anos, vem ca-

    vando para descer. Fui deslizando meu corpo aos poucos. Que-ria diminuir qualquer centmetro na altura do salto inevitvel.

    At que alcancei um ponto em que a gravidade medescolou da pedra, e eu, com a plena presena que se abatesobre ns diante do perigo, ca em p sobre um pedao plano

    de cho.

    Arranhes superficiais nas ndegas e no antebrao. Enada mais.

    Passado o susto, comecei a perceber que no estavafrustrado, de maneira alguma. Se eu tivesse contratado umguia, certamente teria chegado ao topo. No caderno que al-

    guma associao de alpinismo colocou l em cima, dentro de

    uma caixa de metal, eu gravaria meu nome com tinta esfero-grfica, entre tantos outros que alcanaram merecido xito.

    Mas optei por ser meu prprio guia num caminho

    desconhecido: a gente no precisa chegar ao cume quandoaprende a reconhecer a glria de procurar.

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    A mensagem essencial que foi se descortinando a

    mim por trs das palavras do Trigueirinho e das idiossincra-sias da Figueira me fez lembrar daquele samba do Hermnio:

    A vida no s isso que se v. um pouco mais. Fui procurar esse invisvel no servio incondicional.

    Assumi agradecido todos os pequenos trabalhos de Hrcules

    que me eram oferecidos: limpei sanitrios como se fossemestbulos em ugias. Plantei laranja valena, caqui taubat

    e carambola como quem um dia vai colher frutos de ouro.Cada armrio cheio de mofo que perscrutei, armado com umpedao de pano e um balde com hipoclorito, era meu prprio

    ftido pntano de Lerna. Os cips que desenlacei das rvores

    eram longos pescoos de hidra. No encontrando pssaros devastadores, acudi um co-

    libri que entrou na casa sem saber sair. Quando abri a mo, eleficou imvel sobre o meu dedo por alguns instantes, paralisadono sei se por cansao, pavor ou gratido, como que se deixan-

    do contemplar recompensasse minha oportuna interferncia.

    Fiz po, fiz leite de soja, fiz tofu. Lavei pano, laveiloua, lavei cho. E conforme instalava no canteiro de rosas a

    mangueira preta feita para vazar em finos esguichos, me irri-

    guei com aromas. Quando olhei para o cu na minha ltima noite em

    Carmo da Cachoeira, me surpreendi com um eclipse. Com-

    pletei vinte e oito dias na Figueira: o tempo de uma lua. Como os astros, eu tambm experimentei um alinha-

    mento raro, que deixou minhas sombras escancaradas. Nesse

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    CARRANCAS

    Em Carrancas, onde alto-falantes pendurados na igre-

    ja fazem as vezes de sino e berram badaladas distorcidas a cada

    quinze minutos, acordei com o sol nascendo. Meditei meiahora. Estudei a leitura da vez. Estiquei o corpo numa srie

    de alongamentos. E agradeci em silncio o desjejum que me

    aguardava na colher: estou tentando manter no meu cotidia-no de andejo algo da rotina monstica que vivi na Figueira.

    Depois de aliviar minhas urgncias num terreno bal-

    dio, sa procura de guas geladas para tomar banho. Compressa de me lavar, subestimei um vo coberto por areia fina

    na estrada de terra, poeirenta pela falta de chuvas, no cami-

    nho para a Cascata da Zilda. Pela primeira vez, em quase dezmil quilmetros rodados, os pneus da Kombi giraram em fal-

    so, sem me tirar do lugar.

    Caando pedras e galhos beira da pista para endu-

    recer o cho farinhento, pulei para trs ao descobrir uma co-bra preta, que logo serpenteou ligeira na direo do mato. O

    episdio me deixou aguado: durante uns dois dias, ainda meocorreram sobressaltos sempre que eu ouvia o farfalhar de pe-

    quenas fugas pelas trilhas por onde andei. Traumatizada, mi-

    nha imaginao transmutou muito calango em jararaca.

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    IBITIPOCA

    Em Lima Duarte, Minas Gerais, segui placas que me

    levaram a uma estrada de terra. Depois de vinte e oito quil-

    metros de sacolejo, alcancei Conceio do Ibitipoca, todo en-volto em p, temperado de marrom como os pes de canela

    tpicos dessas bandas.

    No comeo do ano, as hortas estavam morrendo afo-gadas. Agora, queimam. A estiagem j completa semanas. O

    tempo paga com o mesmo tempo, me ensinou uma senhora.

    Numa sexta-feira, bem cedo, eu estava mexendo nacarteira, diante da portaria do Parque Estadual, procurando

    os cinco reais que me comprariam algumas horas de convi-

    vncia com a Natureza. O guarda, para me precaver, avisouque aos finais de semana a entrada era mais cara: dez. Em fe-

    riados, passa a quinze.

    As filas vinham se tornando frequentes. Cada vez

    mais pessoas viajavam de longe, querendo aproveitar seusdias de cio nesse cercado de Mata Atlntica com Cerrado.

    Aconteceu do Parque engolir dois mil e, saciado na sua lota-o mxima, ainda ter de fechar os portes para outros mil,

    que ficaram esperando do lado de fora. Quando os preos

    aumentaram, repeliu-se quem no pode pagar. Problema re-

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    solvido... Infelizmente, no Brasil ainda muito assim: os di-

    reitos, de preferncia, aos abonados.Funguei fundo, airando pensamentos de revoluo, e

    caminhei para o Pico do Peo. Os liquens manchando rvo-

    res me diziam com sua presena: respiras ar puro!

    Do alto do morro de 1.700 metros, olhei para forado Parque e avistei em panormica a paisagem seminua, toda

    ferida, esquadrinhada em propriedades. Dessa vez, controlei

    insurgncias esfriando meu sangue na Cachoeira dos Maca-cos e no Lago dos Espelhos.

    Na entrada para a Gruta dos Viajantes, interrompi

    meu passo para admirar as bromlias. Na Janela do Cu, pareiminha meditao ao ouvir o grito agudo de uma irara, mistu-

    ra bizarra de lontra com co policial.

    Fatigado pelas longas trilhas, voltando para o arraial,apeei faminto na casa da Dona Maria, a pioneira na arte de

    fazer crescer pes de canela. Os outros tantos que se vendem

    pela regio so cpias menos saborosas da sua inveno. Arriscando uma inconvenincia, me convidei para

    ajud-la no dia seguinte. Deu certo: s sete e meia, eu estava

    entre seus parentes, carinhosamente recebido na panificao

    caseira que envolve toda a famlia.A comadre Elza bate a massa no brao e estica no

    rolo. A filha Conceio polvilha o recheio. Os netos telefo-nam para pedir msicas na rdio comunitria, sintonizada

    desde cedo. O Seu Nelson, ofegando chiados cultivados ao

    longo de 60 anos de cigarro de palha, entre um pito e outro

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    Nem sol e Izaltino j vai sair. Um cabur fingindo

    assombrao pia e rebolia o p de sapoti, s de troa, parabotar medo em quem anda noite escura, no caminho para

    o engenho. Hoje o trabalho de boi, pesado; como so todos os

    dias, alis. Mas que hoje pesado e meio, porque trabalho

    no gurpio. No vai-e-vem da serraria que os dois homensdanam, cada um numa ponta do serrote de mil dentes, no

    pode haver distraes. Sem ritmo o suor aumenta; o rendi-mento diminui. E o Major est com pressa: ainda falta muitatbua para cobrir o cho da sede da Fazenda Santa Maria.

    Isso enquanto o tempo da cana no vem. Porque

    quando os paus estiverem doces e vazios de gua, ser pre-ciso todo homem na usina. D at gosto de ver: a moagem, a

    garapa borbulhando nas tachas, aquela montoeira de meladorodando na turbina, a chibanca preteada de abelha... Dessa poca, Minervina gosta porque gosta do mas-

    cavo. E da rapadura tambm, que ela leva em torro na algi-

    beira, para adoar a boca, quando sai em longa caminhada re-bentando o caatingo. Tome enxada no capim-gordura! (Se

    chover vai ter batata para comer com quiabo, feijo e angu.

    Mas sem arroz, que no tem). O que Minervina j no gosta tanto de aguardente

    nas ideias do marido. O jequitib-rosa tempera a cachaa. E a

    cachaa, o cime de Izaltino. Tem vez que, ao chegar a casa,qualquer mato amassado no terreiro tio para as suas bra-

    sas: - Minha mulher se deitou com macho aqui!

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    Minervina j sabe que no adianta apelar para o tes-

    temunho das comadres. Resta esperar que ele amanse no s-bado, dia do pagamento. Os capiaus fazem fila para receber, das mos gordas

    do Major, o cobre da semana. Izaltino embolsa a fria e, antes

    de ir s compras na cidade, passa em casa. Dessa vez, Miner-vina vai junto, com mais seis. Para registrar no cartrio. Tudo

    de uma vez que a mo-de-obra grande.

    O pequeno Antonio entre os pequenos. Molhado nagua santa ele j foi, com menos de dois meses, logo. Dia 9

    de fevereiro de 1952, graas a Deus. Mas o papel ele ainda

    no tem. E j se vo trs anos... tanto tempo e tanto filho queembaralha a memria da gente: 27 ou 29 de dezembro?

    Duas lguas para ir; outras duas para voltar. E l vem

    o pequeno Antonio, calado como seu costume. Agora, doisdias mais novo.

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    PICO DA BANDEIRA

    Estou ganhando latitude, longitude e altitude: che-

    guei ao Parque Nacional do Capara, na divisa entre Minas

    Gerais e Esprito Santo, para subir o Pico da Bandeira, tercei-ro mais alto do Brasil. Mais do que os seus 2.892 metros, s o

    31 de Maro e o Neblina, ambos na Amaznia.

    Na portaria do Parque, criado em 1961 para preser-var 318 quilmetros quadrados de Mata Atlntica e campos

    rupestres, eu soube que permitido fazer a escalada noite.

    Comprei a ideia por nove reais, preo da entrada mais o per-noite na rea de camping, a nove quilmetros do cume.Estacionei a Kombi e improvisei uma gororoba com

    carne de soja. So pelo menos trs horas de caminhada at otopo. Para ver o sol nascer l de cima, que era a minha vonta-

    de, eu precisaria sair por volta das duas da madrugada. Comi

    e deitei, bem cedo. Mas deitei ressabiado: deu muito vento e

    coriscada no horizonte. A promessa era de chuva grande.Isso foi no final da tarde. Quando o despertador to-

    cou, uma da manh, o cenrio era exatamente o mesmo;mais as estrelas, claro. Me vesti, me alonguei e fiquei uma

    meia hora num vai-no-vai. Os relmpagos continuavam ex-

    plodindo mudos, repetidamente, em algum lugar que eu no

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    sabia se perto o bastante para me levar de volta ao saco de

    dormir ou se longe o suficiente para garantir a minha subida,seco e sem chamuscos. Procurei a deciso dentro do silncio... decidi subir.

    Com uma lanterna amarrada no topo da cabea, comecei a

    caminhada, guiado pelas faixas amarelas que o Ibama pintouao longo da trilha.

    Levei comigo o saco de dormir e uma toalha. Pla-

    nejava deix-los como lastro no segundo acampamento, aquatro quilmetros e meio de onde eu estava. Se o temporal

    armasse, eu apertaria o passo, para frente ou para trs, para

    esperar o amanhecer l, enrolado com algum calor, no meiodo caminho.

    Mas o que aconteceu que minha escolta invisvel

    acordou cedo para me proteger. Depois de quarenta minutosandando, cheguei a uma casa e achei estranho. Ainda faltava

    um bom bocado para a outra base. Deso as escadas e... de

    volta Kombi!Em algum momento, virei onde no devia e comecei

    a voltar, sem perceber por causa do sono e da escurido. Ain-

    da bem, porque ento o claro dos relmpagos piscava sobre

    o acampamento. O cu sem estrelas: as nuvens de chuva ha-viam chegado.

    O certo acompanha e protege, sorrateiro, aqueles queconfiam. Dormi agradecido.

    O dia seguinte amanheceu limpo. Mas eu fiquei

    no lugar. Sou opinido, diria o Guimares Rosa. Queria

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    O MENOR TEATRO DO MUNDO

    Endireitei a coluna, conferi os retrovisores, pisei o

    freio, reduzi a marcha e joguei a Kombi bruscamente direi-

    ta. Tudo num movimento s, rpido, reao quase instant-nea viso de uma placa inesperada que apontava para fora

    da BR 262 a persuasiva indicao:

    O menor teatro do mundo, a 200 metros

    entrada, ningum; nem bilheteiro nem carrua-gem. (Ouvi em algum canto que o costume dos atores sedesejarem merda antes de subirem ao palco vem do tempo

    em que as pessoas iam ao teatro em carruagens. Casa cheia

    era sinal de muito cavalo l fora, logo, muita merda no cho.Os teatrlogos que digam ou desdigam...). Esperei um pou-

    co, at que avistei um senhor se aproximar lentamente, ar-

    rastando com dificuldade uma idade comprida: Seu ArlindoLrio de Assuno, s suas ordens. Gotejei um real em mo-

    edas na mo aberta em cuia do porteiro de 86 anos e, a seu

    pedido, o acompanhei.Como era de se supor, entramos numa sala pequena.

    Uma cavidade na parede, coberta por vidro como um aqu-

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    tamento da Mata Atlntica nativa, aprendi que os primeiros a

    aparecer foram os camars, que oferecem sua sombra prote-tora ao crescimento das rvores seguintes. Metfora pronta:

    como se fossem templos pioneiros, as plantas desbravadorastambm anunciam uma f na renovao.

    Prosseguindo minha colheita de quilmetros, por Vi-

    tria passei e no fiquei. Sem apetite por cidades grandes, fizrumo direto para o litoral norte. Dois meses depois do Rio de

    Janeiro, reencontrei o mar na praia de Guriri, em So Mateus.Subi mais um pouco. E logo alcancei o alto das dunas

    que encobrem a antiga vila de pescadores de Itanas. Confor-

    me a vegetao costeira foi sendo destruda pelos nativos, a

    areia avanou sobre o continente. At que as famlias tiveramde abandonar suas casas e fundar um novo arraial, do outro

    lado do rio. Em frente ao jamelo, os retirantes plantaramlogo uma igrejinha. E assim recomearam: erguendo um ca-mar de taipa de pilo. Pra vida brotar ao redor.

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    Grudei uma mscara no rosto e flutuei por horas na

    transparncia. Vi os frades em confraria e os sargentinhos empeloto compacto e esquivo. O coral-crebro deve ficar pen-

    sando: quem manda nesse exrcito sem soldados? J o badejo sozinho, enorme, sempre l no fundo.

    As saborosas saiobas ficam volteando o barco, exibindo-se

    como tentao aos marinheiros. Aqui elas esto seguras: apesca proibida.

    Protegidas tambm esto as trs tartarugas-verdesque encontrei em reunio, comendo grama e confabulan-do, provavelmente sobre o sucesso das suas recentes de-

    sovas. Ou quem sabe (no entendo quelons), inventando

    potocas sobre o budio, que nada por a excntrico, comroupa azul e batom verde, pespegando beijos em tudo

    quanto coral.Fora dgua minha cabea mareada tambm achouencantos. Como enjoo at em mar de almirante, o Stig, de

    frias no Brasil com a filha e a namorada, me deu um compri-

    mido finlands que foi tal qual um vento nordeste aplainan-do as marolas do meu labirinto. Um pouco de cho tambm

    ajudou. Desembarcamos na ilha Siriba para uma caminhada

    entre os pacatos e fiis pilotos, que nessa poca comeam a seemparelhar nos casais de sempre, at que a morte os separe. A

    grazina ficou recolhida, como de costume, com vergonha dos

    seus ps pequenos. E o atob-marrom retirou-se assim quechegamos. Ele no gosta de gente. E no faz a menor questo

    de fazer sala.

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    COSTA DO DESCOBRIMENTO

    No abri os caminhos que percorro. J pisaram o

    planeta quase todo e, praticamente, no h cho sem pega-

    das. A gente vai antes para voc ir melhor, diz o slogandomeu guia rodovirio.

    Resta-me agora inscrever novos caminhos de pen-

    samento no mapa das ideias. E desbravar regies de mimmesmo. O oreau escreveu: mais fcil navegar milha-

    res de milhas atravs do frio, da tempestade e dos canibais,

    num navio ofi

    cial, com quinhentos homens e rapazes, doque explorar um mar privado, o Oceano Atlntico e Pacfico

    de um nico ser. Ento, sou um Colombo dos meus con-

    tinentes. E isso em si j aventura para preencher e trans-bordar uma existncia.

    Ah, mas se eu pudesse bagunar os ponteiros do

    tempo... seguiria o conselho do velho filsofo e conheceria

    a mim mesmo, s que no tombadilho de uma dessas ca-ravelas que se lanaram, sem metforas, em mares nunca

    dantes navegados. Cultivo um fascnio quase romntico pelas expe-

    dies martimas dos Quinhentos. Digo quase romntico

    porque no desconsidero as razes monetrias e as vis con-

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    No domingo de Pascoela, estive na praia de Coroa

    Vermelha, mesma data e local onde Frei Henrique de Coim-bra, h mais de 500 anos, pregou sobre a ressurreio do Sal-vador, na primeira missa celebrada em solo brasileiro. A se-

    gunda, rezada cinco dias depois aos ps de uma grande cruz

    de madeira, foi acompanhada por cerca de sessenta ndios:E quando veio o Evangelho, que nos erguemos todos em p,

    com as mos levantadas, eles se levantaram conosco e alaram

    as mos, ficando assim at ser acabado; e ento tornaram-sea assentar como ns. E quando levantaram a Deus, que nos

    pusemos de joelhos, eles se puseram assim todos.

    No foi por acaso que Caminha seguiu para a fricano dia seguinte com a impresso de que os nativos se ho

    de fazer cristos e crer em nossa santa f. Por sua bondade e

    simplicidade, o gentio seria folha em branco: imprimir-se-ligeiramente neles qualquer cunho que lhes quiserem dar. E

    assim se passaram os dez dias da primeira visita portuguesa

    Terra de Vera Cruz: os estrangeiros com uma cordialidadee os ndios com uma submisso que desbotariam nos encon-

    tros seguintes, como bem sabemos.

    As armas de trovo encomendaram mais de 4,7 mi-

    lhes de almas para Tup. A conta dos Pataxs, gravadana Praa da Resistncia, monumento erigido no Parque do

    Monte Pascoal. Por essas e outras, durante essa semana emque andei pelo sul da Bahia, na regio que a indstria do tu-

    rismo batizou de Costa do Descobrimento, me abateu de

    vez em quando um mal-estar.

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    Quero ver e, por isso mesmo, vejo vestgios de hero-

    smo aventureiro no impulso para o desconhecido dos nave-gadores antigos. Mas os fatos foram salobrando minha boa

    vontade. At que, em certo momento, me dei conta de queestava diante dos livros, paisagens e monumentos com o ni-

    mo de algum que realiza no uma pesquisa histrica, mas

    um repugnante corpo de delito.

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    TAIPS DE FORA

    Por vezes, a boa aparncia nos abandona enquanto

    dormimos. Sorrateira, ela sai para a gandaia. Bem apessoada,

    no lhe falta par na dana. E assim, rodando a noite toda, elaperde a hora de voltar para casa.

    O dia amanhece. E o espelho denuncia sua ausncia:

    acordamos com o rosto inchado, os olhos fundos, a pele baae os cabelos uma gaforina.

    Foi num desses dias, em que a gente acorda desa-

    companhado da beleza, que encontrei Taips de Fora: umadas praias mais bonitas do Brasil, segundo aclamao unni-

    me dos guias de viagem.

    Depois do feriado de Pscoa, a areia estava toda sul-cada com rastros de pneus impressos por motoristas insen-

    sveis. Perto das cicatrizes temporrias, muito lixo. O rio de

    Contas encontra o mar em Itacar. Mal-educado, ele cospe

    no parente salgado toda a tralha que vem varrendo desde aChapada Diamantina. Na primeira ressaca, volta tudo para a

    terra, formando a linha suja que tangenciou minha caminha-da pela orla.

    Um vento sul excitou as ondas, turvando a viso dos

    corais que fundeiam as piscinas naturais. E o tempo fechou.

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    Aos finais de semana, os turistas alvoroam a cidade,

    atrados pelas propriedades curativas do lquido inusitado,que traz consigo os calores do fundo do cho.

    Tem que esfriar sozinho. Se colocar na geladeiraapodrece, me advertiu um senhor atencioso, depois que

    enchi minha garrafa numa das muitas torneiras disposio

    no balnerio. Com a minha cisterna de mo devidamente abaste-

    cida, fui feira. As barracas de carne so o pesadelo de umvegetariano. Passei rpido por entre vsceras e patas de boi,desviando dos cachorros que usufruam a rara fartura dos

    restos. Cruzei desinteressado a seo de roupas e bugigangas.

    E, finalmente, encontrei aromas coloridos. Comprei um saquinho de castanhas, algumas lascas

    de beiju, um teco de umbuzada e um punhado de caj, queuma senhora que levei de carona depois me ajudou a chupar,estalando a lngua de gosto.

    A deixei o paraso das guas quentes. E o serto

    enxuto me abraou de novo, feito um roupo felpudo que en-volvesse um escaldado satisfeito.

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    CANUDOS

    Dizem que certa feita, Antonio Conselheiro guiou

    seu squito at o alto do Monte Santo. Pela extensa vereda

    branca, aberta semelhana do Calvrio de Jerusalm, aprocisso subiu, constante e vagarosa, na direo da igreja

    erguida nas alturas. L em cima, ainda arfando pelo esforo

    da caminhada, o beato encostou por alguns instantes o corpofraco que a frugalidade de duas dcadas acostumara rao

    diria de um pires de farinha. E ento, recuperado o flego,

    aprumou-se e entrou na capela, acompanhado pelos olharesentorpecidos de tabarus espantados: no rosto da Virgem

    Santssima rorejavam duas lgrimas de sangue.

    Repeti, sozinho e sem milagres na conta, a escaladado meu xar santo. Vencida a escada para os cus, avistei um

    serto vestido em raro verde (obra e graa de chuvas recen-

    tes) e a praa, onde j se perfilaram soldados da Repblica:

    Monte Santo serviu de base das operaes do governo nasquatro investidas contra Canudos.

    No dia seguinte, completei num par de horas o traje-to em que as expedies militares de 1897 suavam por vrios

    sis. Chegara, na verdade, terceira Canudos: a primeira est

    embaixo dgua, submersa em 1968 pelo DNOCS (Depar-

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    desesperadas, afastando-se dos acampamentos e arriscando-

    se em territrios minados de jagunos. O resto conta o Eucli-des: Assim que, no raro, depois de muitas horas de esfor-o intil, o valente faminto dava tento, afinal, de um ressoar

    de cincerros, pressagos da caa apetecida, porque costume

    trazerem-nos as cabras, no serto; e reanimava-se esperan-ado. (...) Acocorado com o cho, rente da barba a fecharia

    da espingarda e avanando de rastos, quedo e quedo entre as

    macegas, e fazendo a cada movimento tanger o cincerro queapresilhara ao prprio pescoo, via-se, ao invs da cabra, o

    cabreiro feroz. A caa caava o caador. Este, inexperto, caa,

    geralmente abatido por um tiro seguro. Grifei essa passagem do livro porque ela ilustra, a

    meu ver, dois elementos centrais do combate: a penria dos

    sitiantes e a sagacidade dos sitiados. Mas no teve jeito: oexrcito roto, esfarrapado e mal conduzido, mas numeroso,

    de tanto insistir terminou por massacrar os sertanejos astu-

    tos, resilientes e fervorosamente crentes, porm servidos deparcos recursos e combatentes.

    Estima-se que morreram mais de 25 mil pessoas na

    guerra. O Conselheiro bem que tentou diminuir essa esta-

    tstica. Diante da derrocada iminente, o apstolo sertanejopassou a conclamar seus seguidores fuga. Mas os fiis no

    arredaram p... pelo menos isso o que conta Seu Henrique,

    filho de jaguno que defendeu o Belo Monte. Aos 92 anos,

    ele cospe de lado a saliva que, por falta de dentes, a boca no

    represa mais; e continua: O Conselheiro no morreu. Quem

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    que viam seu prestgio diminuir diante de um leigo. E os la-

    tifundirios, que viam empregados abandonarem suas fazen-das para acompanhar o apstolo sertanejo. Em 1893, o Conselheiro e seu squito decidiram se

    fixar numa propriedade abandonada s margens do rio Vaza-

    Barris, num rinco ao norte da Bahia. L fundaram o arraialde Belo Monte. Em pouco tempo, afluram romeiros. Histo-

    riadores estimam uma populao entre 15 e 30 mil habitantes.

    Canudos prosperou. E incomodou. Atravessada nagarganta das autoridades polticas e religiosas, bastava um

    pretexto... qualquer um: em novembro de 1896, Conselheiro

    encomendou um carregamento de madeira em Juazeiro. Masno recebeu. Ameaou arrebat-lo fora. A polcia baiana

    foi acionada. E antes de qualquer ocorrido, atacou. No espe-

    ravam a derrota. Surpreendido, o governo insistiu. Foram mobiliza-

    dos mais de dez mil soldados, de dezessete Estados brasi-

    leiros. Ao todo, sucederam-se quatro expedies militares.Um revs aps o outro. At o dia 5 de outubro de 1897. Na

    derradeira incurso, o exrcito incendiou o arraial, matou a

    populao e degolou os prisioneiros. Antnio Conselheiro

    morrera poucos dias antes do levantefinal. De disenteria. Forremo-nos tarefa de descrever os seus ltimos

    momentos. (...) Ademais, no desafiaria a incredulidade dofuturo a narrativa de pormenores em que se amostrassem

    mulheres precipitando-se nas fogueiras dos prprios lares,

    abraadas aos filhos pequeninos?.... O relato de Euclides

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    da Cunha, testemunha ocular dos dias finais de Canudos.

    Enviado Bahia pelo jornal O Estado de S. Paulo, o escritorfez muito mais do que uma simples reportagem no seu livro

    Os Sertes. A obra-prima ajudou a alar o conflito posteridade.

    E a escancarar a peleja de insanidades que foi aquela guerra:

    de um lado, os soldados, ostentando no peito esquerdo, emmedalhas de bronze, a efgie do Marechal Floriano, eleito es-

    tandarte de uma luta quixotesca pela salvao da recm-pro-clamada Repblica. Do outro, os sertanejos, carregando osbacamartes homicidas com as contas dos rosrios; defenden-

    do com entusiasmo fantico as suas casas e a sua f.

    E, depois de tanto tempo, o Conselheiro ainda abrigo: uma colmeia instalou seu zum-zum-zum no sovaco

    do messias de cimento, posto de p como homenagem ps-tuma, no alto de um morro que eu avistava, com dificuldadede mope, da cidade. Na praa, um cachorro batia testa com

    um bode, numa batalha bizarra por territrio.

    No resisti comparao com a guerra dos homens:ambas irracionais. Ambas vencidas pelo cachorro.

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    VELHO CHICO

    Fiz a travessia entre Petrolina e Juazeiro me esgoelando:

    Mas achava lindo quando a ponte levantava E o vapor passava num gostoso vai e vem

    Confesso, cedi ao clich.

    A fui ao cinema em Pernambuco (um gole de cultu-

    ra de massa para um urbanoide abstinente). E depois seguipela Bahia at Casa Nova, onde encontrei a famlia da Vera,

    me da Luana, minha afilhada.

    Seis e meia da manh. Um pipoco seco espanta meusono e faz voar um azulo. Os tiros so um ardil para afugen-

    tar pssaros nos parreirais que abundam nesta regio.

    O cultivo da uva, processo delicado, uma das maio-

    res fontes de renda das famlias, que muitas vezes trabalhamjuntas na poda, na desbrota, no pinicado, no raleio, na limpe-

    za e na colheita. Acompanhando a labuta das moas, eu des-falcava uns cachos, chupando os bagos mais grados e amare-

    lados. Ao mesmo tempo, as muriocas tambm aproveitavam

    para fazer de mim o seu desjejum...

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    Muita chuva aqui sinnimo de prejuzo. J para os

    pescadores do lago de Sobradinho, gua bonana: o Pri-cles ia atrs, manobrando os remos com os pulsos, mantendo

    a canoa de banda. Na frente, o Nivaldo jogava a rede. E euno meio, um tanto apreensivo, despejava para fora a gua que

    teimava em se acumular no fundo da embarcao esponjosa.

    Na manh seguinte, dispensei o caf branco dospescadores. E continuei servindo de ralo para a puxada: entre

    rabos de raposas, vieram algumas pescadas, aras, traras eum pequeno tucunar. E vrios cangatis, indesejveis, difceisde despescar. Nas piranhas, o Nivaldo aplicava uma porreta-

    da violenta, desativando a mordida que, por experincia, ele

    sabia dolorosa. O esquisito sarap foi para os cachorros. noite, festa na praa. Uma extensa carreata buzi-

    nava o incio da novena de So Jos, enquanto um bbadoinsistia numa conversa que o bispo, devidamente trajadopara a ocasio solene, tentava educadamente evitar. Nessa

    noite catlica, choveu sobre as uvas e o Velho Chico: sinal

    de ano molhado.

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    SERRA DA CAPIVARA

    O macaco levantou e saiu andando pelo mundo. Veio

    da frica no se sabe bem por onde: se pelo estreito de Be-

    ring, pelo oceano ou por trilhas antigas, da poca em que oglobo tinha menos gua e mais terra. O certo que chegou ao

    Piau e foi bater pedra na Serra da Capivara.

    Hoje, a regio prxima a So Raimundo Nonato um parque nacional que abriga 600 stios arqueolgicos. No

    principal deles, o Boqueiro da Pedra Furada, foram encon-

    trados os vestgios mais antigos da presena do homem nasAmricas: seixos brancos lascados de 100 mil anos. O bero

    da civilizao americana, provavelmente, aqui.

    As fascinantes pinturas rupestres so reminiscnciasdesses primeiros piauienses. Curiosamente, os desenhos pio-

    neiros so menos toscos do que seus sucessores. Ao invs de

    ganhar, as inscries perderam apuro, numa aparente involu-

    o tcnica que ainda intriga os pesquisadores.Alheios a cientificismos e primores, os homens ca-

    am, os veados correm, a aldeia dana... e um casal se beija:seis mil anos e eles ali, s no carinho.

    Alguns animais retratados nos boqueires de arenito

    foram extintos h milnios, quando a floresta tropical mida

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    que cobria a Serra da Capivara embranqueceu. O dente-de-

    sabre, o tatu gigante e a preguia de cinco toneladas no resis-tiram caatinga seca. S a espcie humana e alguns animais

    de pequeno porte sobreviveram.Prova mais dura aos nossos antepassados viria depois:

    no final do sculo XVIII, os europeus-carcars dizimaram os

    ndios-mocs. Nas suas memrias mais remotas, que a Natu-reza guarda nas funduras do cho, so raras as urnas funerrias

    infantis. Mas flor da terra, as pequenas mmias aparecemcom frequncia, ao lado de pedaos de loua inglesa e moedasque os colonizadores trouxeram junto com suas doenas.

    Nossa histria comea em vermelho: primeiro, o xi-

    do de ferro nas paredes das cavernas. Depois, o sangue. Portodo o lado.

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    DE TARDE

    Dei carona para um casal, de So Raimundo Nona-

    to at Canto do Buriti, no Piau. Durante o percurso, prosa

    com poesia:

    - Eu tenho um cho aplainado desse l na minha ter-

    ra. Si Deus ajud, levanto minha oficina... si Deus quis...

    - Mas Z, c num ouviu o mdico, hom? O corao

    t grande. Tem que sosseg, tom os remdio pra num morrcedo. T querendo si precipit?

    - Eu v trabalh num pra morr no, pra viv.

    - Ento tem que faz nos conforme do dout. Quan-

    do moo mais fcil. Mas a gente vai ficando de tarde...

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    SETE CIDADES

    A nica capital nordestina sem praias tem dois rios

    para compensar. Por causa do Poti e do Parnaba, que se mis-

    turam a poucos quilmetros do centro da cidade, h at quemchame Teresina de Mesopotmia do Nordeste.

    E eu, que sou avesso a esse tipo de comparaes (cada

    canto com seus encantos), pequei no descuidado e em algunsinstantes me senti em So Paulo. A padronizao comercial

    uniformiza as metrpoles. preciso reparar nas placas com

    uma breve biografi

    a do sujeito que d nome rua. E nos ca-js e acerolas vendidos nas caladas: as particularidades nos

    tiram do no-lugar.

    Conhecer o passado tambm ajuda a estar, por intei-ro, no presente. Diante do meu interesse, os piauienses con-

    tam com incontido orgulho a histria da Batalha dos Jenipa-

    pos: sabendo iminente a independncia brasileira, D. Joo

    VI ainda tentou manter sob o domnio portugus o Par, oMaranho e o Piau. Mas os nordestinos foram s armas. Se-

    gundo me contam, foi o nico episdio sangrento na novelada conquista da soberania nacional. Hoje, h um memorial

    ao lado dos tmulos dos combatentes que caram em Campo

    Maior, local do derradeiro p-na-bunda dos patrcios.

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    slogando excntrico refrigerante justifica minhas suspeitas:

    sonho cor-de-rosa. No dia seguinte, base de sucos, deixei a Kombi des-

    cansando na garagem de uma pousada e me aboletei numpau-de-arara para Paulino Neves. De l, eu seguiria para Bar-

    reirinhas, porta de entrada para os Lenis Maranhenses.

    O motorista rodou a cidade inteira antes de partir.No parava de subir gente e as mais diversas bagagens: garra-

    fas de leo, sacos de cimento, bolsas, isopor com gelo e umacadeira de escritrio. Um menino foi levando uma televisono colo. minha frente, um senhor protegia quatro dzias de

    ovos entre os braos. O pelo enorme que saa de uma verruga

    no seu pescoo ficou tentando meu olhar. Quando, enfim, pegamos a estrada, duvidei de que o

    senhor do pelo em ovo faria sequer uma omelete em casa: osburacos so to frequentes e as poas to fundas que a viagemse torna praticamente um rali. O motorista assume ares de

    piloto e enfrenta a pista como se no levasse passageiros.

    Uma pane no motor de arranque fez descer algunsvoluntrios, entre eles, eu, para um empurro coletivo. Pouco

    depois do esforo, finalmente entrei na penso da Dona Ma-

    risa. Ignorei as teias de aranha que cobriam as telhas do ba-nheiro como uma densa penugem branca. E nem reparei nas

    baratas se esgueirando nos vos dos tijolos: dormi um sono

    pesado, enrolado no lenol da Sandy & Jnior. s seis da manh seguinte, eu j chacoalhava em ou-

    tro pau-de-arara; dessa vez para Barreirinhas.

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    A certa altura, uma ansiedade quebra a impassibili-

    dade dos viajantes. Alguns se empertigam e esticam o olharpara frente. Ouvem-se risinhos nervosos e comentrios sar-csticos. Logo descubro o motivo: uma pinguela estreita, que

    pe prova a pontaria do motorista. E o sangue frio dos pas-

    sageiros. Seria a primeira de uma srie. De Barreirinhas, sa para meu terceiro rali, depois

    de baratear pelas Toyotas procura de algum que aceitas-

    se o preo justo que eu propunha no lugar da extorso queos guias tentavam praticar em suas primeiras ofertas. Queria

    tambm quem topasse quebrar a viagem, geralmente feita em

    bate e volta. Minha inteno era acampar nos Lenis. Negociaes concludas, percorremos o acidentado

    percurso at o Parque, que cobre uma rea do tamanho da ci-

    dade de So Paulo. Subi a primeira duna conversando com oGiuseppe, um italiano que veio sacolejando comigo. No alto

    do monte de areia, a paisagem nos calou.

    Ao vivo, de cara limpa, sem os filtros das lentes e asmaquiagens fotogrficas, so poucos os lugares que corres-

    pondem sua prpria imagem impressa em carto-postal. Os

    Lenis Maranhenses certamente so desses idlios que no

    desbotam fora do papel. Pelo contrrio, ganha fora: sua vivadinmica no transmitida num congelado 10x15. A cor das

    lagoas varia com a altura e a intensidade do sol, com a dispo-sio e a densidade das nuvens. Passeei pelos mesmos luga-

    res, em diferentes horrios, para acompanhar essas mutaes.

    Despenquei das dunas para mergulhar no azul, no verde e,

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    no final da tarde, num quase rosa. A subia de novo, para con-

    templar l de cima as linhas modernas traadas pela arrojadaarquitetura da Natureza: agora, com as marcas temporrias

    de meus passos vndalos. Armei minha barraca num abrigo s margens da Lagoa

    dos Peixes, de guas escuras, pouco convidativas ao banho. As

    piabas, que justificam o nome do local, vinham para a beira,pidonas, sempre que eu chegava ou saa da minha tapera de

    nilon. Entre elas, as pontas podres das bananas que eu leveicomo suprimento geraram alvoroo, discrdia e perseguies. A noite embaada trouxe uma lua annima que, escon-

    dida atrs das nuvens, prateava as dunas. L pelas tantas, choveu.

    A gua desabou com tanta fora e persistncia queconseguiu invadir meu abrigo para me molhar. Os maruins

    entraram junto, atravessando o tranado apertado das telasinternas da barraca. Como que uma picada to aguda cabenum bichinho to diminuto? Eu me estapeava quando o dia

    chegou para me salvar.

    Surpreendi vacas chifrudas dormindo no caminhopara a lagoa que elegi como preferida. E mergulhei para ali-

    viar as coceiras causadas pelos meus inconvenientes compa-

    nheiros noturnos. Ao final da manh, os turistas comearam a aparecer,

    para os lados da Lagoa Azul. Eu via de longe as pequenas si-

    lhuetas, subindo e descendo no roteiro invarivel dos guias.Esgueirando-se por uma brecha do meu humor maldormido,

    uma mesquinharia me acometeu e eu me senti invadido pelos

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    recm-chegados. Como se a intimidade de uma noite a ss

    com os Lenis pudesse durar para sempre. tarde, quando o sol, finalmente, deu as caras, saandando cheio de roupas molhadas penduradas pelo corpo,

    como um louco em surto de varal. O visor da minha cmera,

    que eu julgara condenado escurido pelas guas da madru-gada, voltou a funcionar.

    Retornei a Barreirinhas numa Toyota que partiu de-

    pois que o sol se ps. Pernoitei na pousada Terral, opointdoscaminhoneiros. E na manh seguinte, querendo voltar para

    Tutia por um caminho novo, embarquei num pau-de-arara

    flutuante e subi o rio Preguia at Cabur. Um passeio que aslanchas das agncias de turismo completam em trinta minu-

    tos por quarenta reais: seis vezes mais rpido e dez vezes mais

    caro que a minha opo. Na vila de pescadores, conheci o Francisco e fui at o

    Farol de Mandacaru na sua canoa vela, baixando a cabea a

    seu comando para o espicho em manobra no me acertar. Ldo alto da torre de luz, avistei a foz do Preguia. E l embaixo,

    uma inscrio otimista no muro de uma casa: I love mi life

    bicose mi life is Mandacaru. E arremata, com a Flor do L-

    cio: Lugar de gente feliz. Me recolhi numa cabana sem paredes que uma pou-

    sada chique ergueu na praia para servir de abrigo aos seusabonados hspedes. O vento beira-mar em Cabur incans-

    vel. Dormi, aoitado pelo ar, at que se esgotou meu repert-

    rio de posies no cho duro. E a chuva desabou, pela segun-

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    da noite consecutiva. Fiquei embrulhado na lona da barraca,

    abraado mochila, at as cinco da manh, quando inicieiminha caminhada pela praia at Paulino Neves. Os malditos

    maruins vieram junto, pegando carona nas partes expostasdo meu corpo. A gua do mar ardia minhas panturrilhas feito

    anti-sptico.

    Com os nervos em brasa, como meus deltoides car-regando a mochila, fiz planos de vingana contra os mins-

    culos sanguinrios: vou criar catirinas e soltar no Maranho.Dane-se o equilbrio ambiental! S abrandei no meio do caminho com o biscoito, o

    caf e o bom papo que ganhei numa casa de pescadores.

    Me perdi um pouco entre as dunas e lagoas que sepa-ram Paulino Neves da praia. E, ao meio-dia, sete horas depois

    da minha partida de Cabur, parei de andar e sentei para pe-dir um prato feito. Com ovo frito ao invs da carne, pode ser? Depois do almoo, peguei o carro para Tutia.

    noite, choveu de novo. Dessa vez, bem protegido na Kombi,

    pude bendizer a gua: que nunca sequem os lenis colori-dos que alguma lavadeira gigante estendeu sobre as areias do

    Maranho.

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    A cantilena das senhoras negras tocando tambores

    graves, como fricas trovejantes, o eco de uma tradio nas-cida nos Aores. No Brasil, o culto terceira pessoa da Sants-

    sima Trindade ficou mais profano e tropical, mas no perdeusuas razes europeias. Crianas e adolescentes cumprem a

    promessa feita por suas famlias desfilando pelas ruas quentes

    de So Lus vestidos com as galas de uma corte imperial. Ascaixeiras vo frente e a banda marcial atrs, intercalando-se:

    o som de um o silncio do outro. L pelas tantas, a corte mirim se acomoda na tribunameticulosamente decorada que foi montada num casaro do

    centro. Houvesse cadeiras de plstico no estilo Lus XIV, o

    rei baixinho, e as pequenas majestades seriam poupadas doembarao de ps suspensos, balanando no ar por falta de

    tamanho para tocar o cho. Se bem que eles no parecem seimportar muito com formalidades: sem cerimnia, o impera-dor pede colo para ir ao banheiro.

    Concludos os festejos em So Lus, segui de balsa

    para Alcntara. Do outro lado da Baa de So Marcos, o Divi-no celebrado durante dez dias, numa liturgia cujos prepara-

    tivos envolvem toda a cidade, quase o ano todo.

    No primeiro dia, os homens suam a longa esperacarregando nos ombros um enorme tronco de urucurana.

    Ao longo do calvrio, crianas vo sentando sobre a madeira,

    pesando o carregamento com a sua brincadeira. O descansovem em paradas intermitentes. Famlias que se prepararam

    para receber a honrosa visita da turba distribuem gua e li-

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    branca, como exemplo para outros arruaceiros. A tradio

    no muda. (Exemplo mais eloquente: nos ltimos quatroanos, cerca de 1.300 maranhenses foram descobertos em re-

    gime de escravido. Nenhum dos responsveis pelo crime foipreso ainda).

    Estava prximo o dia em que eu encontraria minha

    irm em Manaus. Por isso, tive que partir quando a Festa doDivino apenas comeava. Na sada, dei carona para um sol-

    dado que seguia para a base da aeronutica, a poucos quil-metros do centro da cidade. As visitas tursticas so proibi-das, mas com ele pude entrar para um passeio rpido pela

    vila dos oficiais. S no tivemos permisso para nos aproxi-

    mar da rea de lanamento de foguetes: o acesso restrito atmesmo aos recrutas.

    Em Alcntara, motores de propulso empurram sa-tlites para a rbita terrestre. E as caixeiras reivindicam o altocantando em coro:

    Eu sou de l Eu sou de l,

    Abre a porta do cu

    Que eu quero entr!

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    O ACIDENTE

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    Era um casal. Cada um numa bicicleta. A moa rolou

    abaixo o barranco que margeia a estrada. No h acostamen-to neste trecho da rodovia. Como o acidente aconteceu perto de um povoado,

    em pouco tempo aglomerou-se gente. Contei com a ajuda de

    alguns desses curiosos para acomodar os ciclistas na caambade umapick-upprovidencial que os levou para o hospital. Li-guei para a polcia e esperei