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7/18/2019 Encarando Os Deuses http://slidepdf.com/reader/full/encarando-os-deuses 1/98 James Hillman ENCARANDO OS DEUSES Cultrix/Pensamento

Encarando Os Deuses

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Jam es H illm a n

E N C A R A N D OO S D EU SES

Cultrix/Pensamento

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ENCARANDO·OSDEUSES

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J M S HILLM N (org.)

EN R NDO

OS

DEUSES

As Amazonas eAriadne eRéia eDioniso eHermes eAtena eDeméter/Perséfone eHéstia eÁrtemis

TraduçãoCLÁUDIO GIORDANO

- / - - ~ 5~ t- e UCULTRIX/PENSAMENTO   1

São Paulo

)

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TItulo do original:Facing the Gods

Amazons eAriadne eRhea eDionysos eHermes e

Athene eHestia eHephaistos eArtemis

Copyright © 1980 by Spríng Publications, Inc.

Sumário

7refácio do Organizador .Sobre a Necessidade de uma Psicologia do Compor-tamento Anormal:Ananke e AtenaJames Hillman . . .

Uma Imagem Mitológica da Meninice: ÁrtemisKarl Kerényi .O Problema das AmazonasRené Malamud . . . . . . . . . . . .. . .O Rapto de Deméter/Perséfone e a NeurosePatricia Berry . . . . . . . . . . . . . . . . . . .Chapeuzinho Vermelho e a Grande Mãe Réia:Imagens de uma Psicologia da InflaçãoDavid L. Miller .

VI. Héstia: Um Fundamento de Enfoque PsicológicoBarbara Kirksey .

VII. Heterônimos de Hermes

William G. Doty .VIII. Ariadne, a Senhora do LabirintoChris Downing . . . . . .

IX. Dioniso na Obra de JungJames Hillman .Agradecimentos .....

Revisão 'Iécnica(Prefácio, capítulos I e IX)

S6NIA MARIA CAlUBY LABATE

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lI.

5 5

IlI.

f).

63

87

1 0 3

  1 1 9

Edição Ano

1 3 52-93-94-95-96-97

Direitos de tradução para a língua portuguesaadquiridos com exclusividade pela  

EDITORA PENSAMENTO LTDA.Rua Dr. Mário Vicente, 374 - 04270 - São Paulo, SP- Fone: 272 1399

que se reserva a propriedade literária desta tradução.

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Impresso em nossas oficinas gráficas.

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Prefácio do Organizador

Parece-nos oportuno oferecer ao leitor interessado em psicologiaalguns estudos curtos e independentes sobre alguns Deuses; pois,

como logo se dão conta aspessoas em busca da própria alma, esta seacha tão enredada nos mitos, que a ação de desvendar asfiguras nelespresentes torna-se cada vez maispertinente, sob a óptica psicológica.Estamos aprendendo o que outras culturas souberam desde sempre:

\1 ara conhecer a nós mesmos _p-recisamosconhecer os Deuses e as~ eusas dos mitos· recisamos encarar osDeu es.

Estes estudos, porém, não são propriamente mitografia; nem sepropõem a substituir os trabalhos eruditos que narram ashistórias deDeuses e Deusas em todos os seus aspectos e variações, relacionan-do-os com a história social e com a crítica de texto e lingüística. Estesnove artigos, embora evidenciando notável erudição, foram escritos

antes de tudo com objetivo psicológico. Apresentam as perspectivaspsicológicas de cada mito e a atuação que as figuras neles contidastêm sobre a vida humana. Nossa ignorância a respeito dos Deuses eDeusas os têm mantido sem rosto, dificultando a nossa tarefa dediferenciar um do outro, ou recordar, de uma leitura a outra, os ricosdetalhes de sofisticação psicológica que os mitos preservam. Assim,o presente volume serve para devolver-nos a consciência dasinfluências incríveis que afetamfossas atitudes, nosso trabalho, nos-sosamores e nossos sofrimento/: Serve ainda para recompor os traçosdos seus rostos individ~is, depois de séculos de desfiguraçãosistemática e iconoclastaj'

Mary Helen Gray cuidou da editoração inicial, Gerald Burns eDana Anderson, da final. Jay Livernois organizou o índice. KateSmith desenhou a capa; Mary Robinson realizou a fotocomposição.Todos merecem agradecimentos justos e respeitosos.

James Hillman

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f;\SOBRE A NEC~iIDADE DE UMA

PSICOLOGIA DO COMPORTAMENTO~~Vl ANORMAL~ANKE EATENA

G A  Infirmitas  do arquétipo

Ao apreciar a impressionante obra espiritual e cultural exposta nasresenhas anuais de Eranos, percebemos quão essencial é o en-

gajamento neste caso. Cada ano apresenta uma nova tentativa parase atingir o âmago das coisas através de uma determinadaespecialidade (Fach) em suas relações com as questões básicas edifíceis que transcendem nossas especializações.

A dor, a aflição, a desordem, o peculiar são fundamentais àpsicologia profunda e à alma - a psicologia do comportamentoanormal ou psicopatologia . Criou-se a psicologia profunda comotratamento para a psicologia do comportamento anormal. Asicolo ia rofundaera e ainda é um lagos ara oyathos da psique.

Entendo por psicopato ogia aquela categoria de fatos psíquicospública e/ou privadamente declarados anormais, e que não podemser plenamente reprimidos, transformados ou aceitos. Esses aspectosinsuportáveis manifestam-se de forma paradigmática no sintoma, oqual Freud declara ser o início da psicologia profunda. 1Eu gostaria,porém, de am~~ nosso conceito de psicopatologia, introduzindo otermo patolÕgização, pelo ual entendo a ca acidade autônoma.dQsigue para criar doença, morbidez, desordem, anormalidade~ __sofrimento .m ual uer as ecto do seu com ortamento e .

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f ciar e imaginar a vida através dessa perspectiva deformada e ator-\mentada.

Em dois longos ensaios/ sobre psicopatologia, procurei refutar asnegações contemporâneas que dela se fazem nos vários ramos daterapia. O nominalismo da psiquiatr ia considera seus termos contin-gentes, sem uma relação necessária com causas ou com a alma dosque apresentam aquilo para que os termos apontam. Os refor-madores políticos e os existencialistas acham essa disciplina fun-

damentalmente desnecessária, uma contingência de instituiçõeshistóricas, sociais ou políticas. As terapias humanistas transcenden-tais e orientais pressupõem a primazia do espírito, do self e da saúde,a ponto de a psicopatologia ter apenas uma realidade secundária,ilusória. Dessa forma, a psicopatologia é contingente, acidental,supérflua: todos negam a necessidade da anormalidade.

Os enfoques médicos e religiosos interpretam a psicopatologiacomo algo errado (doente ou pecaminoso).Transformam-na ou emum fenômeno físico ou metafísico (moral). Buscam a necessidade dapsicologia do comportamento anormal fora da psique, quer numateoria do desequil íbrio físico em geral (doença), quer numa doutrina

religiosa relacionada com o sofrimento/Nenhum deles pari dapsique. A patologízação não é ainda uma necessidade da alma

Ao contrário disso, procuramos assentar a patologização com-.pJetamente dentro da psique, mostrando o caráter necessário que ehLtem para a psique. Desenvolvemos esse esforço fundamentando apatologízação no arquétipo. Depois mostramos que, quando se parteda psique, como na alquimia, na arte da memória e na mitologia,encontram-se fatos patologizados, inerentes a esses sistemaspsicológicos. Tanto Freud como Jung aderem a esta terceira linhapsicológica em suas reflexões acerca da psicopatologia. Desde oinício, associaram-na com as imagens da fantasia, encarando-a

, mitologicamente. ,~artir da psig,ue sig  ifica... 9mill:-ªJlatologiza~ão como uma forma

válida de expres~ão psi~<.?l~ca,~omo uma linguagem metafórica nãoderivada, uma das formas pelas quais a psique se manifesta legítima~ espontaneamente. Para compreender esta linguagem, nós acolocamos dentro de contextos metafóricos similares. Uma imagem

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ou um acontecimento obsceno, bizarro ou atormentado da nossa vidapsíquica deve ser examinado, não em termos de normas derivadas da natureza física ou dos ideais metafísicos, mas sim em termos denormas da imaginação, onde braços secos, colheitas arruinadas,anões monstruosos e todo tipo de distorção são pertinentes e têmum significado próprio e específico durante o tempo em que dura asua existência  Para compreender o que a psicologia do compor-tamento anormal individual está dizendo, não devemos nos voltarpara o que é normalj/Nossas normas devem adequar-se ao materialque desejamos compreender, devem ser normas i ualmentea o o lza as.

A essa altura valemo-nos da expressão de J ung: Os Deusesviraram doenças.Y Com isso quer ele expressar que a causa formaldas nossas queixas e anormalidades são pessoas míticas; nossasdoenças psíquicas não são imaginárias, mas imaginais (Corbin). São,de fato, doenças da fantasia, sofrimentos de fantasias, de realidades

íticas, a encamação de fatos arquetípicos.Seguir Jung neste caminho é a principal tarefa da terapia

arquetípica. Muito do que venho tentando fazer em Eranos desde

1966 tem sido dentro dessa linha. Analisamos os mitos e sua,simplicações para a psicologia do comportamento anormal- o mitode Eros e Psiquê, de Dioniso, de figuras como o puer aetemus,Saturno senex, a criança, e Hades e o Mundo, subterrâneo. Vimosnestes diferentes exemplos que o patológico é inerente ao mítico. damesma forma que é inerente à alguimia e à arte da memória. Nossoobjetivo mais profundo tem sido transportar a psicopatologia, baseda nossa área, de um sistema positivista do século XIX a respeito damente e de suas desordens para uma psicopatologia mitopoéica,

não-agnóstica, dos arquétipos.Essencial neste processo é reconhecer os próprios Deuses como

patologizados, a  infirmitas do arquétipo . Sem perder tempo com oque é familiar ao leitor, acredito que tocamos o ponto principal aoreconhecer que ~s mitos gregos (e os dos celtas ou dos hindus, dosegípcios ou dos índios americanos) exigem o insólito, o peculiar..Jl.-extre~enfim - a Psicologia do Comportamento Anormal dos

Deuse

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Imaginar o arquétipo como precipuamente primitivo, como umaforma perfeita, isenta de paixão intrínseca que o tolhe e lhe enfraquece

o poder, que o submete a intensidades loucas, isolamentos e recusasobstinadas; imaginá-Io sem seus lampejos e flechas destrutivas e suasvulnerabilidades necessárias, é idealizar e falsear anatureza da realidadearquetípica expressa nos mitos.

Deste onto de vista mítico, cada ~uéti~ssui seus temas.atologizados e cada fato atologizado tem uma RersRectiva arque-

típica. As normas do mito dão espaço para aquilo que não encontrabrecha na psicologia acadêmica, na medicina e na religião. Maisainda: a patologízação no mito é necessária a este, não podendo ser

eliminada sem que se deforme o mito. Por esta razão efetivamente

heurística, terapêutica, a psicologia arquetípica volta-se para amitologia.

As figuras do mito - briguentas, embusteiras, sexualmente ob-

t

cecadas, vingativas, vulneráveis, mortíferas, dilaceradas - mostram,. gue os Deuses não são exclusivamente modelos de perfeição, recain:

qo as anormalidades apenas sobre os homens. Os mitemas ondeaparecem os Deuses, estão repletos de comportamentos que, doponto de vista secular, devem ser classificados como patologiacriminosa, monstruosidade moral ou desordens de personalidade.

Ao pensar mitologicamente sobre a patologização, poderíamos dizer,

como outros já o fizeram, que o mundo dos Deuses é antropomórfico,

. uma projeção imitativa do nosso, incluindo nossas patologias. No entanto,

r r

der-se-ia igualmente partir do outro extremo, do mwu1usimaginalis dos

arquétipos (ou Deuses) e dizer que o nosso mundo secular é ao mesmotempo mítico, uma projeção imitativa do mundo deles, incluindo suas

patologias. O que osDeuses mostram num reino imaginalde mito reflete-se

na nossa imaginação como fantasia Nossas fantasias refletem asdeles, nossocomportamento não passa de um mimetismo do deles.,.Nada podem~imagiQar ou realizar que já não tenha sido formalmente dado pela

imaginação arquetípica dos Deuses. Ao pressupor que o necessário é o qúe'ocorre entre os Deuses, istoé, que os mitos descrevem padrões necessários,concluímos que suas patologízações são necessárias, assim como as nossas

são necessárias à mimese das deles. Uma vez ue a infi Jtas deles é

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 lI1Ç I~ íT11 :s t J ~ Ó ~ ,}.;  f\ ~ ih t J ~ r-essencial ara a sua configura ão lena segue-se g~O~S(t~. ~I-~itn

patolPgiz_a~.ões.Jiã necessá ias à noss m letude. ----Se isto for verdade, estamos em harmonia com o reino arquetípico

tanto quando estamos aflitos como quando em estado de beatitudeJtranscendentaL O homem é feito à ima em dos Deuses e Deusas. ..quer se'a ridículo, esteja furioso ou torturado, uer uand sorri ..Uma vez que es prG r:ios Deuses manifestam in ita , uma das

formas da imitatio dei é através da enfermid e. Ademais, essainfirmitas do arquétipo pode ser a tutora da nossa autodivisão e erro,das nossas feridas e extremismos, facultando um estilo, uma jus-tifiçativa e uma sensação de importância para a nossa enfermidade./ Sem essa fantasia da doença arquetípica, sem reverter aos Deuses

cada enfermidade, inclusive aquela doença chamada normalidade ,jamais encontraremos contextos adequados para os fenômenosmórbidoytles se tornarão apenas fenômenos médicos e contingentes,ou pecaminosamente morais e punitivos. Nem nos daremos conta deque ver com os olhos da doença - a forma básica de fazer psicologiadesde Freud  éambém uma perspectiva divina, e não algo mórbido

e perversamente humano. Se os Deuses são o verdadeiro alicerce

'

vida humana e se somos feitos à sua ima em então nossa doen -tainbém tem ori em divina; não é aRenas en;iada P-elOS.?e .e , não é

,I a enas carregada or nós ara eles mas o alicerce e o runelro p-Iano,  nós e eles, harmonizamo-nos na enfermidade arguetíp'ica.

O que estou pedindo é que levemos em conta a idéia da doença- no r uéti 0_ algo bem diferente do arquétipo da doença. Este

, timo enfoque da anormalidade postula um único arquétipo comobode expiatório, um princípio mórbido como tanat~s, um demônioda doença, um diabo ou sombra, que carregue o mal, de tal sorte queos outros possam continuar sendo um ideal supremo. Esse enfoque

emascula o cerne da patologização, intrínseca a cada figuraarquetípica, e necessária ao modo de ser dessa figura. O nossoenfoque, porém, busca compreenderg patologização como um com-ponente inerente a cada comRlexid.2.Q~~rguetíRica, SIue tem sUil

--própria ossibilidade cega, destrutiva e mórbida. ,A morte é fun~.damental a adrão de ser, ainda ue os Deuses não morra~:Eles sã athnetos, .o ue im lica ue a in mnitas or eles exibida

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também é etern~ada arquétipo tem um modo de conduzir à morte,e assim tem seu próprio abismo infinito, o que torna nossas doençasfundamentalmente insondáveis/

Para expressar teologicamente essa infirmitas do arquétipo, diríamosque o Pecado Original seexplica pelo pecado nos Originais. Os humanos

{

são feitos à imagem dos Deuses, e as nossas anormalidades refletem asanormalidades originais dos Deuses, que têm precedência sobre as

nossas, tornando-as possíveis. Podemos apenas fazer no tempo o que osDeuses fazem durante a eternidade. Nossas enfermidades, portanto,devem ter seu fundamento na enfermidade primordial, e as enfer-midades deles são encenadas em nossas psicopatologias. Se os que se

preocupam com o estado da religião lhe restaurassem a saúde e fizessemo seu Deus voltar à vida, uma primeira medida para esta ressurreiçãoseria retomar do Diabo todas aspatologias jogadas sobre sua cabeça. Se

'\' Deus morreu, fo~em d~~rên~ia da sua próp,r i~ boa saúde: ele perdeu~ I I o contato com a infirmitas intrínseca do arquetipo.

QNecessidade

Su eri participaf .1 do própri?ar uéti o . Eles são uma via ara a ex eriência arquetípica que não_Rode ser com letamente vivenciada a não serdesse modo~ Dissoresulta que os eventos patologizados pertencem necessariamente aoarquétipo. Por conseqüência, eles são uma necessidade das nossasvidas. .

Mas, o que é a Necessidade? Na busca de respostas a esta perguntaestaremos elaborando o seguinte ponto principal: no pensamentomítico grego, a necessidade se expressa e é vivenciada de formas

patologizadas. As experiências patologizadas fre~üentemente se as-sociam diretamente à Ananke ( a Necessidade). Examinemos maisdetalhadamente esta associação.

Numa monografia bastante completa, Heinz Schreckenberg/analisa todas as etimologias e contextos propostos para ananke,chegando à conclusão de que a palavra presente em Homero foitomada de empréstimo de uma provável raiz semítica  chananke ,

14

baseada em três consoantes: hnk. Podemos ordenar as descobertas

de Schreckenberg como segue:

Egípcio antigo. . hnkhngenekchalakhanaqu

estreitogargantarodear, abraçar, estrangularanelapertar, estrangular; pôrapertadoem volta do pescoço, como a argola

de um escravocorrente, sufocaçãocolar em forma de corrente(Cântico dos Cânticos 4:9;Provérbios 1: 9)grilhões colocados no pescoço deprisioneirosestrangularcolarcorda que prende o boi à canga

CoptaAcadiano

SiríacoHebraico

hnkanãk

Caldeu hanakin

ÁrabeÁrabeÁrabe

hanaqahannãkaiznâk

Sua demonstração' estende-se bem além desta amostra,registrando as etimologias mais usuais de ananke, relacionando-a

com o alemão eng (estreito), como angina, angst, e ansiedade, comagchein (grego), estrangular, e com agham (sânscrito), mal.ll

Aetimologia de Platão (Crátilo 420 c-d) também representa anankepor meio de uma metáfora de estreitamento.  A idéia , diz Platão, étomada do caminhâr através de uma ravina intransitável, escarpada,com o mato crescido, o que impede o movimento - disto deriva a

palavra necessidade.Schreckenberg coloca uma ênfase toda especial nas acepções

canga/coleira/laço da sua etimologia, não deixando dúvidas de que,na origem, necessidade significa um vínculo de servidão, fisicamente

. der inexorá 112opressivo, a um po er mexorave .

A palavra latina para ananke é necessitas. Aqui também en-contramos a noção de um vínculo estreito ou laço íntimo , comoo vínculo de parentesco, relacionamento consangüíneo. Neces-situdines são pessoas com asquais alguém está estreitamente unido,parentes, sócios, amigos .13 Uma necessaria é uma parenta ou amiga.Essa palavra representa igualmente laços naturais e morais entrepessoas. Isso indica que as relações familiares e os laços que temos

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em nosso I?undo.Ressoal são circunstâncias onde vivenciamos a forçada necessIdade/Nossos esforços no sentido de nos livrarmos dosvínculos pessoais pio esf?rços voltados ~ nos livrar do círculo aper-

-- tado de ananke/S)s pacIentes de terapIa que se queixam de umasensação de sufocação no círculo familiar, ou gue se ~el emestran-; ulados elo côn'u ue, ou ue caem vítimas de patologizaǧes n~'garganta e pescoço manifestam todos a necessidade. Sob estaperspectiva, o complexo de família é uma manifestação de neces-sidade, e asubmissão aos laços de parentesco é ummodo de respeitar-lhe as exigências.:

~as, voltemos à ananke nos contextos poético, mitológico efilosofico.

Primeiro precisamos reconhecer o lugar central que esta DeusaAnanke ocupava na imaginação dos criadores da cosmologia. ParaParmênides (fragmentos 8 e 10), Ananke governa o Ser para os

{

atomistas também, embora de modo diverso.14 No assim ~hamadopensamento pitagórico e órfico, Ananke era casada com uma grandeserpente, Cronos, formando uma espécie de espiral envolvente emtorno do universo (RBO, p. 332). O Tempo e a Necessidade es-tabelecem limites a todas as possibilidades da nossa expansão ex-terior, às nossas conguistas materiais~Formam' untos uma sizígia, umar ar uetí ico, inerentemente relacionado, de sorte ue onde es-

tiver um, estará também o outro. Quando sob a compulsão da n~~sidade, nós a vivenciamos em termos de tempo, por exemplo, nasenfermidades crônicas, a manifestação repetida dosmesmos sufocan-tes e ~estritivos complexos, na ansiedade provocada pela exigüidadedosdias, nasnossas obrigações cotídianase prazos fatais . Estar livredo te~po é estar liv~eda necessida~e. Ter ~mpo livr~constela umafantasia de estar livre da necessIdade/~mo o Jugo físico daescravidão é a imagem concreta dentro dá-ià0i~e necessidade assim

a liberdade desse jugo expressa-se e@anta~e disponibilid~de detempo e lazerAcoI?ouma felicidade.paradisíaca, isenta de patologia./

A dependência de todas as COIsasaos escravizantes limites dà~e~essidade exp~essa-se noutra imagem, mais branda, da cosmologiaórfíca. O conceito de que Zeus governa o mundo servindo-se daestreita colaboração de Ananke (Eur.,Alcesle, 978s) converte-se, no

16

Orfismo, na imagem de Zeus e sua ama-seca Adrastéia, outro nomede Ananke.15 Adrastéia é sua ama-seca e, sugando o seio da neces-sidade, extrai ele, com o leite, seu poder e sabedoria. Em algunscontextos, a ama Adrastéia é sua filha,de tal modo que o vínculo semostra no Ia o estreito do l2arentesco, da obrigª-ção familiar.eaté.do _

_amorJncestuoso., Esta imagem órfica revela a possibilidade de umaconexão amorosa e nutriente com a necessidade. Aqui, a relação como poder da Deusa é imagi~ad? meno~ como uma servid~o 0jressivado que como uma dependência ao leite da alma filha-mae.1

A imagem de Zeus e Adrastéia-Ananke apresenta a idéia doamor[ati, uma conjunção paradoxal do que muitos filósofos conceberam,como opostos (Empédocles, frag. 115:Cares e Ananke;17 Agaton,no Banquete, 195c).Macróbio (Sal. I, 19, 17)diz que duas das quatroforças presentes ao nascimento são Eros e Ananke, formando umpar. Eros é o beijo e Ananke o nó, ou laço. Mais adiante, e por-menorizadamente, veremos o par outra vez em oposição como Peitoe Bia (persuasão e força).18

Os autores trágicos, entretanto, se valeram de ananke quando ascoisas estavam na pior. O Prometeu de &quilo diz:

Pobre de mimLastimo-me pela tristeza presente,lastimo-me pela tristeza futura, lastimo-meinterrogando quando virá o tempoem que Ele há de ordenar um fim para meus sofrimentos.Que digo?J á c on he ci t ud o a nt es ,t ud o o q ue h á d e a co nt ec er , e s ou be -o c om c la re za ;para mim,n ad a q ue fere v irá c om u ma fa ce n ov a.Assim,tenho de suportar o melhor que possoa sinaque me deu o destino,pois bem sei que contra a necessidade,

contra a sua força, ninguém pode lutar e vencer.19

Observe-se o caráter repeti tivo deste sofrer: nada ue ferecom uma face nova . Esta é uma característica da aflição provocadapor ananke. Não se trata de um choque ou surpresa diante da queixainesperada, e sim daquela que é crônica e repetitiva.

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o Prometeu acorrentado começa com Prometeu sendo preso eamarrado nos confins do mundo, sob a coação da Necessidade. Écomo se, nos extremos da existência, removido tão longe quantopossível, encontrasse ele a força e a violência (Bia) maiores da

(

' ~~idade e aí fosse pregado. Apenas a Necessidade é capaz de~ a fantas~a ~rometéica, sendo ela vivenciada por essa fantasiacomo uma angustia.

Ainda em Ésquilo (Os persas), quando a Rainha é abatida pordesgraças que ultrapassam toda palavra e questionamento (1.290),vem-lhe aos lábios a palavra necessidade . A noção de que é inútilfalar contra a necessidade surge também em Eurípides (As virgensfenícias). Bem no fim, diz Édipo (1.1762s): De que adianta lamuriar-se assim? Qual o proveito dos vãos lamentos? Todo aquele que nãopassa de morta l carece de suportar a necessidade dos céus. De novoa oposição entre o discurso persuasivo e a força inexorável.

Eurípides (As bacantes, 1.89) usa o termo (anagkaisi) para desig-nar a angústia física. Estar sob o jugo da dor, do tormento e dosofrimento é estar angust iado, em apuros (Einengung), necessitado.

/ O sofredor arque típico, oFiloctetes de Sófocles, cuja chaga não se

\

pode curar, grita de dor, e a palavra utilizada pelo Coro a fim deexpressar essa dor , é anangas, anangan  1 . 206 e 215). Ser tolhido ouforçado pela necessidade é expresso concretamente como estar nasmãos de outro poder (HS, p. 45); por exemplo, quando ApoIo agarraHermes criança, ou quando Hércules agarra as serpentes em seuberço - a ressão física o ato de es remer é ananke.

Todavia, ta lvez se tenha a mais eloqüente descr ição de ananke emAlceste (L 962s) de Eurípides, quando o Coro entoa:

E u p ró pr ia , n o a rr o ub o

d e v er so s m ís tic os , c om o n o e stu do

d e h is tó ri a e d a c iê nc ia , n ad a e nc o nt re i

tã o f orte c om o a c om pul sã o [Anagkas],

n em q ua lq ue r m ei o d e c o mb at ê- Ia ,

s ej a n o s l iv ro s t ra ci an o s p o st os

e m v ers os p ela e sc ol a d e O rf eu ,

s ej a e m to do s o s re mé di os d eix ad os p or F eb o a os h erd eiro s

d e A sc \é pi o p ar a c om ba te r a s in úm era s a fl iç õe s d o h om em .

E la é a ú nic a d eu sa

18

s em a lt ar o u im ag em

a que se p ossa rez ar. E la n ão

dá a te nç ão a os s ac ríffcios/

Temos aqui Ananke como a Grande Senhora (potnia) do MundoSubterrâneo, o princípio psíquico invisível que atrai inexoravelmente a

si todas as coisas, patologizando, assim, a vida. Somente do Hades sefala de modo semelhante como sem altar ou imagem a que se possarezar .2Da O pensamento órfico consumou esta identidade dire ta deAnanke com a Rainha do Mundo Subterrâneo, Perséfone (HS, p.70n).1l Seu nome foi traduzido como portadora de destruição , demodo que o racesso de atologização pode ser entendido como umaforma de conduzir a si ue (neste drama específico, a imagem da alma

. se apresenta na f igura de Alceste) em direção ao mundo subterrâneo..Faz parte também do tema explorado pormenorizadamente emOsonhoe o mundo subterrâneo o fato deste mover-se da vida para a morte ser

interrompido de forma heróica por Hércules.Talvez eu possa atrair a atenção do leitor para a circunstância de

que, na passagem de Alceste, a linguagem que lida com ananke é a

da terapia: remédios de Asclépio - e estes não existem. Nem hámisticismo, orfismo, história, ciência que consigam enfrentar suaforça. Será por não ter ela imagem nem altar diante do qual se lhe

façam orações? Su ere-se a ui não a enas ue a Necessidade est4. (o o alcance da fala mas além disso, ue a necessidade é viven-

eiaaa uando se está sob constrangimento e não se tem nenhum~imagem do ue está ocorrendo. Écomo se houvesse uma relação -até uma proporção inversa - entre imagens e constrangimentos:quanto mais imagens e altar tanto menor a necessidade cega. Quantomaior a compulsão, tanto menor a nossa capacidade de sacrifíc io , de.

associar a com ulsão essoal a aI o divino,

Esta relação inversa é uma idéia exemplar na noção junguiana dearquétipo. Há um pólo vermelho compulsivo e outro azul ima-ginat ivo. Assim como o vermelho é o corpo do azul, o azul é a imagem

. do vermelho. Sem imagens, ficamos mais cegos, pois não con-

:;eguimos identificar a forc;a,gue nos conduz, Com imagens, a neces-sidade SUlJieinerente à ró ria ima em. Isso muda a compulsão do

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vermelho para o azul, Reconhecemos ue a com ulsão é essencial ànatureza mesma da imagem e que o que nos move são imagens.

Pode-se também apresentar o relacionamento entre necessidadee imagens da seguinte forma: liNecessidade se.apossa de nÓsatravés.das imagens. Uma imagem tem sua própria necessidade inerente, demodo que a forma assumida por uma imagem não pode ser outra- seja quando pintamos, quando alteramos o verso de umpoema ouquando sonhamos. Uma imagem existe na sua epifania e curso decomportamento específicos (a compulsão de necessidade aque Jungchama instinto ).

Uma vez que a força da imagem é inseparável da imagem, diz-seque ela é inimaginável. A necessidade não possui imagem porque ela~t~a e~ ,toda e qualquer imagem. Não devemos tomar esta forçaIlllmagmavel nem de forma literal nem metafísica - como se osarquétipos fossem, em si mesmos, inimagináveis, incognoscíveis etranscendentes àssuas aparências. O inimaginado poder da imagemestá justo na própria imagem: o arquétipo é totalmente imanente àsua imagem. Este poder inimaginado confere à imagem seu efeitoconstrangedor e a implacável lei da sua formação precisa. Esta

. in ex or ab ilid ad e d a if Zagem nadLfllilis é do gue a Necess d de ue

.como diz o trecho deAlc : §te ,  não p'ossuiima em .Assim~a fantasia não é um descontraído devaneio, mas o que

carrega, Implacavelmente, as necessidades que nos conduzem. Areali~ade psíquica está escravizada à imaginação. A imaginação nãonos liberta, mas nos toma e subjuga a seus mitos; somos vassalos deseus Reis e Rainhas. Temosum laçodesangue com o que Jung chama

 de nossas imagensinstintivas .Insistir, como fazele, emque a realidadehumana é basicamente psíquica, e que a imagem é a apresentaçãoprimordial e imediata desta realidade, exige um reconhecimentoadicional A realidade é realsomente sefornecess.ária,,-Ouso da palavra

 realidade implica uma condição ontológica que não pode serdiferente./Por isso,deve haver algo inalteravelmente necessário acer-ca das imagens, de modo que a realidade psíquica que, antes de maisnada, consiste em imagens, não pode ser meramente o conjunto deIm.agens.~ecorrent~s. de impressões dos sentidoj As imagens são

. prImOrdIaIS,arquehpIcas, emSImesmascompletamente reais, a única

20

realidade direta que a psique vivencia.Como tal,elassão aspresenças _. ersonificadas da necessidade. .

Pessoalmente, experimentalmente, isso significaque, ao buscarmosaquilo que determina de modo implacávelnossas vidas, reduzindo-as àservidão, precisamos no~volt~ par~ a.sim.age~ das noss~ fantasias'lnde jaz oculta a necessIdady? mais: ISSOrnplicaque precISamosnos

precaver de sermos demasiadamente ativos com nossas imagens,

alterando-as para que redimam nossos problemas. Pois, neste caso,

: Jm~ginaçãoativa se tOI?~ri~um_aentativa para esc,aparda necessidadeda Imageme da sua reivindicação sobre a alma/. .

Mesmo que sediga que a Necessidade não tem imagem, é própriodesta grande Deusa que é, ao mesmo tempo, umprincípio metafísico,umnúcleo de metáforas específicas que nos dizem qual é o seu modode a~r. Ao referir-se ela aos limites que criam obri~ão e constran-gem, 2percebemos que l igaçõese vínculos -o an~ acorda, o laço,a coleira, o nó, o eixo, a grinalda, o arreio e o jugo - são modos defalar do domínio de ananke. O mesmo vale para o prego. O pregocravado numa figura (como Prometeu ou Cristo) ou na cabeça deuma figura - etrusca, escandinava, latina - indica o direitoinelutável da necessidade.25 Não há saída.26 Assim tem que ser.

Impõe-se aqui uma pausa para refletirmos sobre a grinalda: porexemplo, a coroa de louros de umpoeta laureado, ou a guirlanda dadaao vencedor de uma competição. Este reconhecimento envolvetambém uma obrigação ~ue subjuga, uma necessidade de ser aquilopelo qual se foi coroado. 7 A grinalda é ojugo e o colar da fronte. Ocantor precisa continuar cantando, quando a coroa de louros foiposta em sua cabeça. 9reconhecimento ademais, estabelece limitesao alcance e às ossibilidades dos oderes de uma pessoa. O reconh~- _cimento sub·u a a alma da essoa a um destino es ecíf ico.

Até aqui, preocupamo-nos principalmente com apessoa e com as

imagens da Necessidade. A idéia da necessidade desperta nosfilósofos reflexões adicionais. A filosofia em geral tem considerado anecessidade sob dois aspectos distintos. Às vezes, os filósofos falamdela como de uma oportunidade anárquica (como o termo gregotyche), como um princípio de aleatoriedade - cego, mecânico,estatístico, sem objetivo. Outras vezes, assumem a posição contrária,

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,-~

asso~iandc: a necessidade ao regular, ao previsível, ao g~Sig.

As díscussões em torno da necessidade levam muitas vezes a batalhasfilosóficas acirradas entre determinismo versus livre-arbítrio ou. ,entre physis, natureza e matéria versus espírito.

Os filósofos definem a necessidade de forma sucinta: nícht-anders-sein-kõnnen ou, nas palavras de Tomás de Aquino: quodnon potest non esse (aquilo que não pode não ser). Em Aristóteles,

a necessidade está associada à  compulsão , da mesma forma que, naabertura de O Prometeu acon-entado, a Necessidade aparece ao ladode Bia (Força ou Compulsão). Esta mesma associação foi observadaem Corinto, segundo Pausânias (lI, 4,6),pois naquela cidade Anankee Bia eram veneradas juntas num templo, cujo acesso era proibido.

,. De novo: não se tem acesso à Necessidade.

~i~idez cerra~a,. inacessibilidade, é l? jcisamente o que se senteda idéia de Parmemdes sobre Ananke.7Ela mantém seu universoem estado d,restabilidade, imobilidade e integridade, não permitindomudançayA necessidade inalterável de Parmênides reproduz, numadescrição filosófica, a ananke implacável deA/ceste.

Lendo-se Parmênides sob a ótica da psicologia, os eventos reais das noss s almas a ueles com realidade autênt ica são os ue não semove. É exatamente na imobilidade, nas fixações imutáveis donosso cosmos psíquico -/lnde nos achamos presos e paralisados _que a necessidade atuV

Aristóteles faz algumas afirmações claras sobre a necessidade nasua Metafisica (1015a),29que determinaram a partir daí nosso pen-s?ment? a respeito do assunto. Diz ele:  Considera-se que a neces-sídade e algo que não se pode persuadir - o que está correto, poisela é contrária ao movimento que se harmoniza com a finalidade ecom o raciocínio. Diz ainda:  J.m29.uilo ue dificulta e tende a,.colocar obstáculos, contrário à finalidade.: Note-se: contrário à

finalidade , que colore, por definição, nossa experiência dos eventos

t i n~cessá~iosc~mo inúteis e contr.ár.ios~snossas finalidades. Normal-mente VIvenCIamosnossas patologIzaçoes como algo sem finalidade.Sentimo-Ias como obstáculos, empecilhos sem sentido. Ve~osentão, quão bem a definição de necessidade dada por Aristótelesatende à posição médica que vê a patologização como algo sem

 

finalidade um obstáculo maçante que deve ser removido. A neces-,  . ,sidade é penosa, diz Aristóteles, pois tudo o que é necessano e

t,,30sempre maçan e. .

'Iambém podemos lerAristóteles de um ponto de vista arquetípico.Ele nos diz ue os ró riosdeuses r serem necessários, estão desdes€mpre nos atormentand~. O fato de se~e~ maçantes é .inerente à su~ró ria necessidade. Tem ue ser um mcomodo. PrecISamosestar a

.~rvigl deles e sentir-Ihes o jugo.Há u~a resposta grega par~Jó: não é

) f lum ardil diabólico ou uma força satâmca que torna nossa Vidamortaluma'p~agadivina - a patologização nos é dada com a própria naturezad o d iv in o .

Outra das formulações de Aristóteles tem também especialimportância. Trata-se da idéia de que a n~cessidade atua ~omo umacausa interna inexorável, como uma Virtude ou propnedade dopróprio evento. ''Anecessidade é aquilo pelo qual uma coisa não po~eser de forma diferente da que é ; é aquilo sem o qual uma COIsanão pode existir. Observa ele que a necessidade Qode agir como ª  fun ão da natureza de uma coisa em vez de ser a enas ,amecânica externa. A necessidade pert~nce ao próprio e~tado oucondi'Jo, à própria natureza de uma Imagem.' como as~malamo~acima/Um evento não é apenas forçado a partir do extenor, mas eforça~o a partir de den~ropela su.aprópria imagerfGuthrie comentaessa diferença da segumte maneira:

f Para nós,os problemas decau~çã~ na ciência dizemrespeito à explanação das

seqüências, cadeias de causa e efeito l igando x a y e z. O grego, por outro lado,pesq~~ o que chamava de a natureza das coisas e perguntava-se: O que équeexist~, que é a causa de seu comportam~q ?

. A . , .Neste particular , a teona, bemco terapia, arquetípica deJung

é tradicional e grega. Pergunta elf: . 0 que ~~ste na na~ureza me~~ªda minha erturba ão e da mmha afh ao ue e _ -, rovocado causado elo e l)? Outras terapias busca forauma necessidade externa - a sociedade, a família ou outros tipos econdicionamento - procurando desvenci lhar a necessidade dasligaçõesx ey ez. Fazem a pergunta maistécnica do: como ; a terapiaarquetípica faz a pergunta mais filosófica) o quê' - e, finalmente,

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~

.,

a pergunta religiosa 'quem , al Deus ou Deusa, que daimon, estáatuando internamen aq i o que acontece. A terapia junguiana é,portanto, teofânica, no sentido de Corbin. Ela pede ao Deus dadoen a ue se manifest . .

Entretanto, é em latão que encontramos as idéias maisesclarecedoras e explícitas a respeito das relações entre anecessidadee as perturbações da alma. No Timeu, cosmologia ou sistema do

universo de PIa tão, há dois princípios fundamentais em ação. Oprimeiro é nous, o logos, ou princípio intelectual, razã~~inteligibilid~d~, ~ente -- ou seja lá como se queira traduz~egundo pnnclpl~nan@;:sa Necessidade. A passagem famosa doTime~ (47e -- 48a) estabelece a relação entre eles da seguintemaneira:

Nosso discurso anterior ... deixou evidente as obras forjadas pela arte da Razão[nous); precisamos, porém, agora pôr ao lado delas as coisas geradas pela Neces-sidade [anankeJ Porque a geração deste universo é o resultado misto da combinação.da Necessidade e da o. ., A . Razão dominou a Necessidade, persuadindo-a (grifonosso) a orientar em direção ao melhor a maior parte das coisas geradas; assim, esegundo este princfpio, o universo foi modelado desde o começo pe la vitória dapersuasão racional sobre a Necessidade. Se, pois, queremos realmente contar comoas coisas começam segundo este princfpio, precisamos também mencionar aintervenção da Causa Errante ...32

Nesta exposição, o termo archai, primeiros princípios ou pontosde partida, ocorre com vários significados. Platão diz que não é ofogo, a água ou os quatro elementos que são os verdadeiros archai.Existem dois: Nous e Ananke, Razão e Necessidade.

A necessidade caracteriza-se aqui como Causa Errante. Jowetttraduz planoumene aitia como causas variáveis ; Thomas Taylor, causa errática ; e os comentadores de PIa tão empregam, para as

opera.ções. deste. princípi~, palavras como: errante, dispersivo, per-dido, Irracional, irresponsável, desviante, enganador, falaz, irregular,aleatório. Planos pode referir-se àsdivagaçõ es da mente na loucura

,  e aos ataques de uma doença. E assim que Platão fala de ananke.

lNecessidade atua por meio de desvios. Podemos reconhecê-Ia

no irraci?nal, no ir~esponsável, no indireto. Ou, repetindo o já dito:a necessidade manifesta-se nos aspectos do universo (seja-nos per-

- - - - - - - - - - - - - - - - - - - - ~

24 ~ V ~

mitido lembrar que o universo de PIa tão é total~e?te animado,sempre um universo psíquico) -W Ie são errantes. M~~ al~d.a, a neces-sidade associa-se em especial àquela área da expenencia incapaz de

ser persuadida ou submetida ao comand? da .mente. . .Grote chamava esta Causa Errante de: mdetermmado mcons;

tante,: o anômalo, aquilo ue não de ser entendi~o nem ~redito/EForça, Movimento ou Mudança, com o atributo negativo de nao ser nemregular nem inteligível....33 E Comfor~ escla.:~:  ? ~rpo do univ:r-

so... contém movimentos e forças ativas nao instituídas pela Razâodivina e produzindo perpetuamente resultados indesejáveis ... Estesmovimentos e forças corporais só podem ser atribuídos a um elementoirracional presente na Alma do Mundo.,,34 f 't . necessidade reside na alma J l t

lomo uma causa interna, roduzindo e tuamente resultados  r

'incômodos. Chamamos a essas irracionalidades result~~tes des~os dapsicologia do comportament? anormal, e a essa atIVl?a~~ cnadorachamei de patologização. Assim como o ponto de partida de Freud,o sintoma é concebido como sendo diferente e estranho ao egoracional também este ponto de partida (arche)de Platão, a operaçãoerrante de ananke, é igualmente estranha ao reino da razão.

, Deve-se ter notado que insisto em chamar a patologização deatividade criadora. Platão apresenta ananke de forma semelhante.Ele pressupõe que ela é um arche, um primeiro p~in~í~io b~sico nãooriundo de qualquer outra coisa. E tambem um p~mclplo criador qu~entra na formação do universo. E está necessanamente sempre ar,não gradualmente superado através da ampliação do do~ínio darazão. Assim como o demiurgo nunca reduz de todo o caos a ordem,também a razão nunca persuade de todo a necessidad~. Ambas estãopresentes como princípios criadores, sempre. No todo e em cadaparte, Nous eAnanke cooperam; o mundo é uma mistura resultantedessa combinação.,,35 Ou, em nossas palavras: o anormal mistura-sea cada ato da existênci pois a vida síquica baseia-se no c~mplex?,

'e a atologiza ão 'amalS ermina,Seja-me permitido exp r ainda uma vez minha tese, agora através

da palavra do maior classicista contemporâneo, E. R. Dodds:

A alma inferior (segundo asLeis de Platão] parece estar para o bem na m~sma .proporção que a Necessidade para a Mente, no mito de Timeu; é uma espécie de

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parceiro mais jovem não confiável, sujeito a acessos de comportamentos i rracionais

nos quais produz movimentos loucos e turbulentos (Leis, 897d) _ frase que

lembra tanto o movimento aterrorizado e louco atribu ído às almas das crianças

humanas em outra passagem das Leis (791a), quanto o movimento desarmonioso

te tur bulento do caos mftico . .. no Timeu (30a). Thmo esses movimen tos todos como

 '- símbol~~ ~al deliberado, mas da i rrac íonalídade, elemento tanto do homem

~ como d~ominado de forma incompleta pela vontade ra cto na í. '

( Esse movimento anormal, aterrorizado r louco da alma não éapenas necessário: é a própria Necessidade.j

Ao trabalharem sobre esses mesmos textos aqui neste EranosTagung, meus eminentes colegas, os professores Sambursky, Hadote Rowe, cujo campo de estudos é o pensamento grego, farão umaleitura à luz dos seus interesses e convicções. Platão realmente serefere aos campos de seus estudos - cosmologia, cosmogonia,metafísica, física e filosofia no sentido mais amplo. PIatão, entretan-to, se refere também à alma,37 e portanto à psicologia; por isso,rogo-lhes a indulgência de permitir-nos ler essas mesmas passagensco~ ol~os psicológicos, procurando extrair introvisões para apsicologia profunda e para a terapia da alma, daquilo que PIa t ão falasobre errância, caos e necessidade, a qual jamais se submete inteira-mente à ordem. A óptica psicológica vê a Necessidade e o Caos nãoapenas como principios explanatôrias somente no reino da metaffsica:eles são também eventos míticos resentes igualmente e semp~~ ..alma, sendo assim chamados archai fundamentais da condiçãohum.ana. A esses rin' ios básicos ode-se associar os athe (ou .. ..mcznnentos da al a

A psicologia já reconheceu o Caos sem face nem nome, esse movimento aterrorizado e louco da alma, como ansiedade echa~ando-o assim evocou diretamente a Deusa, Ananke, da qualderiva a palavra. ansiedade. Se, de fato, a ansiedade pertence a

Ananke, então não pode ser  dominada pela vontade racional .f'Quando a ansiedade nos invade ou ataca, só nos resta recebê-Ia como

uma brecha (chaos) na continuidade racional. Daí a ansiedade nãose submeter à análise; ela segue seu caminho inexoravel~ente até

. que se reconheça a sua necessidadt::. endo assi ar que nã~'encarar as exp-eriências de ansiedade como eflexos das_atuações.de

 6

Ananke nas profundezas do ser humanq? A psicologia empenhou-seem reduzir os movimentos necessários de Ananke a necessidades

 f específicas: os impulsos da sexualidade (Freud), o terror da morte edo não-ser (Heidegger), o pecado original (Kierkegaard) ou osmecanismos fisiológicos. Todavia, nenhuma teoria racional é possívelsobre ela. Não há razão ara ela, exceto a necessidadeAent.rº-.del<:t.Os fundam~ntos da ansiedade residem na Il[Ópria necessjdade,..e.m.,

~omo está neste momento constelada, na necessidade desta imag~ ..1oonstelada, no palhe presente da alma, onde a alma está agou,l. aterrorizada ela necessidade gue a subjuga   .. O seu destigç,

Podemos tornar ainda mais explícita a relação entre a Necessidadee a condição humana se nos voltarmos para o trecho final daRepública; PIa tão descreve as Moiras (as Parcas). 39Cada alma recebede Laquesis sua sorte específica. CIoto então a confirma, e atravésda fiação de Átropos, a trama do destino torna-se irreversível . Nãohá saída. Não pode ser de outro modo. Então - continua PIa tão -sem um olhar ara trás ela a alma assa sob o trono da Neces-.sidade.  E dessa maneira que as almas entram no mundo. Cada alma

nasce passando sob o trono de Ananke.40

A despeito de Platão

~

insistir, ao longo de toda a sua obra, na afinidade da alma com o ~ous,no mito de Er ele apresenta Ananke como aquela que determina avida psíquica desde o início.

Considerando que Ananke se situa miticamente no meio douniverso e formalmente no segmento médio do diálogo Timeu,podemos imaginar - segundo sugestão de Friedlânder - suaposição no corpo humano, não na cabeça, local da psique noética,mas mais abaixo, no meio, numa região do absolutamente in-definido. Chamado de várias nomes, o indefinido representa o poder

. d idívino 41 Es f do não-racional, do caos e o anti rvmo, . sas Qro un ezacentrais da fisiolo ia latônica referem-se em articular ao fí ad .

Um modo de ler os movimentos caprichosos da causa errante seri .estudar o fígado (Timeu, 71a - 72b) e as vísceras. O adivinho, indic

Cornford, é alguém que lê, não a. al~~.ücion:l. ' mas a ir~a~ional~concupiscente, incluindo o destmo~_ ~ pratica da adivinhaçãoliteraliza uma psicologia profunda' da necessidade interná  nofígado e nas vísceras reais pela arte da hepatoscopia e da arusPicínia/

/1f~.L,

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II

I

IOs videntes de hoje, semelhantes ao do Tuneu - analistas da psique-incidem muitas vezes no mesmo literalismo mágico, ao tentar ler osmovimentos da alma irracional e concupiscente de modo divinatório,buscando, nos sonhos, sinais referentes aos movimentos futuros dodestino.

Os métodos mágicos helênicos, que procuravam atrelar o poder daNecessidade, direcionavam-se para esta profundeza interior, especial-

mente a phrenes, região do ar ou a alma aérea.43 A fórmula mágicahepanagkos (derivada de ananke) significa fascinar, fixar ou prender,compelir a essência interior através de um poder mágico.44 Buscava-sedominar o destino de uma pessoa (tornando-a escrava de outra) com-pelindo uma necessidade sobre a phrenes. Acreditava-se que um dosmodos pelos quais a necessidade prende a alma se dá através doagrilhoamento da alma ao corpo, ocorrendo este aprisionamento naphrenes. Assim, assumindo o controle daphrenes ou alma aérea de umapessoa, podia-se comandar os movimentos das suas ações físicas (com-

portamento). Mais uma vez vê-se aqui a noção da necessidade comouma causa interna aristotélica, isto é, atuando internamente numa coisa

e necessária a essa coisa, agora, porém, literalizada como o interior físicode uma pessoa. A necessidade é reduzida à carne literal (cf. HS, pp.61-64).

Esse literalismo a respeito do corpo fundamenta as filosofias datranscendência (gnósticos, neoplatônicos e outras rel igiões reden-

toras da antigüidade: HS, pp. 157-164). Literalismo semelhante afetaa religião redentora de hoje - a psicoterapia. piferenças entre nous

e ananke convertem-se numa o osi ão entre mente e corpo. Liber-tar-se da necessidade torna-se libertar-se do corpo físico (ouliberação do corpo físico), onde a alma está 'presa ' (cf. Fedo 82e 45 ou

Wilhelm Reich). A localização desta região profunda podem ser os

pulmões (phrenes), o fígado, a medula mais íntima (Timeu 73b-d),ou a musculatura profunda da terapia rolfiana. A fantasia aquiatuante é a de que a necessidade comanda a partir do interiorprofundo , e quanto mais fundo se vai, mais se descobre quão rigida-mente determinado, quão escravizado se está dentro da armadura do

corpo.

28

Da mesma forma que as religiões redentoras antigas ofereciam a

libertação da necessidade através da morte física, as terapias reden-toras modernas empregam métodos físicos, objetivando a mesmalibertação. Em todas elas, antigas e novas, o pensar em termos de

posicionamentos físicos tem como contra partida o pensar emoposições metafísicas. Esse é o estilo de pensamento que opera no. rior da negação transcendental da patologização  RP, pp. 64-67).

Libertar-se das neuras e, em especial, dos sintomas aos quais acarne está sujei ta, é outra maneira de almejar l ibertar-se de Ananke,que nos alcança exatamente através dos escravizantes trabalhosforçados da alma concupiscente e irracional e dos seus modos erran-

tes. Mas, não só ...  ão é ~ó a car~e liter~l, que não é nem irracional ne~ errante,mas um ammal antigo cheio de graça, o que nos prende; e sun, a alma,onde essa carne encontra a sua vidi.A imagem, alimento da carne,é a suprema necessidade reinante. Estamos a servi do corllQ d maginação, os cor os de nossas imagens.:- E o que preenche a almae dá corpo às nossas imagens e experiências é o sentido de neces-

sidade que, associado ao corpo , está sempre em todos os sistemasde disciplina psíquica e religiosa. Todas as vezes ue a necessidadeexerce domínio, a responsabilidade é do corpo. Assim, se escutarmos

psi~logic~ente ~~ siste~as,~-e~s ta.mbém ~izer:. se ~ ' ,yocê foge da neceSSidade, voce sofre né ..sarn~ e pl~r, voce se pnva, ~~

do corpo da sua imaginação, literalizando o corpo do seu imaginário ~

'em doenças clínicas e tratamentos médicos., Ao pensarmos psicologicamente a respeito da fantasia da

localização da necessidade nas profundezas do corpo, então nem amorte física nem a ter a .ia cor oral são a uestão or ue am :iassumiram literalmente o  corpo  como carne. Em vez disso: quanto

mais fundo formos, mais toparemos com o que  não pode ser de outromodo . Quanto mais interiorizamos, tanto mais nossas necessidades

físicas corporificam-se. Então, metas como alívio, liberdade etransformação esvaziam-se, à medida que nos deixamos levar por umcuidado atencioso (terapia) e uma compreensão imaginativa dasnecessidades que governam a alma, através do seu corpo psíquico,

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suas imagens bem lá no fundo, as profundezas míticas no interior desuas fantasias.

A diferença entre Nous e Ananke, como um conflito dilacerantena alma de Orestes, é apresentada ao fim da trilogia sobre ele natragédia intitulada Eumênides. Orestes pecou, mas pecou a mandode um Deus, Apoio, que por sua vez representa Zeus. Orestescometeu um ato de psicopatologia criminosa: o matricídio. Na lin-guagem do fragmento (115) de Empédocles, ele manchou suas mãos

de sangue e por isso foi perseguido pelas Eumênides, outraexpressão de Ananke. EI?s exig~ vipgao{;a, Qcumprimento das leisda necessidade.   são as causas desconhecidas das nossas feridas

(plegai),46 porqu~ t v . - f   . -

iudo o que dizrespeito à humanidade é dado por elas.

No entanto, sempre que um homem, pela fúria delas, enlou-quece,Ele desconhece de onde provêm sua aflições ...47

Elas trazem o laço para o pescoço que, como vimos, é um dosatributos de Ananke. Diz Orestes (I. 749): Este é o fim para mim. Olaço (agchones) ou então a luz. Eumênides ou Apolo, Ananke ouNous (Zeus).

A decisão sobre o destino de Orestes é unânime. Então Atenaintervém. Há uma forte altercacão entre ela e as Eumênides: mas

 l , )

afinal, Atena persuade-as e Orestes ganha a vida. A palavra-chave dasua vitória é p ersu asã o, e ilh o, traduzida em nossa lin ua em orretórica.?/. r e tó r ica pers uade a neces si dade. A maior trilogia de todosos dramas míticos encerra-se com a reconciliação de Zeus e doD . d' ~estino que, no izer de Cornford, é outro modo de apresentar osprincípios platônicos Nous e Ananke, Razão e Compulsão, ou o queHeródoto chama de Peito (argumento persuasivo) e Bia (força

bruta).49 (Já vimos Bia [filha de Estige] como parceira de Ananke DO

templo de Corinto e como decisiva no aprisionamento de Prometeu.)

O que tornou possível essa reconciliação? Como ela aconteceu?O que faz Atena para curar a divisão entre luz, mente e razão, de umlado, e as causas desconhecidas da aflição, de outro? Primeiro,sabemos que Atena tem afinidade com a Necessidade, porque ela

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inventou também i ns tr um ent os d e l im it aç ão e c o nt en çã o, ensinandoas artes da cerâmica, da tecelagem, da métrica, das rédeas, da cangae do arreio. Combinam-se nela as mesmas contradições que lhe cabeconciliar: o Nous de seu pai e a força constrangedora de Ananke, emcolaboração de quem (Alceste, I. 978) seu pai governa.

Todavia, o indício mais forte para a solução plena e para este pontoda nossa investigação é o termo peitho: a persuasão de Atena, a falavencedora, o encanto das palavras. Importa lembrar aqui que aolongode suas obras, os trágicos e os filósofos insistiram em dizer queAnanke é implacável, impossível de ser alcançada pela persuasão,imune ao poder das palavras. Mas Atena encontra um jeito: ''Apersuasão guiou a fala da minha boca , diz ela (I. 971).

O conteúdo das palavras de Atena é que ela oferece às Erínias -forças furiosas e torturantes da necessidade, que oprimem Orestes -um lugar dentro da ordem divina. Oferece um santuário, uma caverna,um altar ( câmaras novas , 1.1005), onde essas forças possam residir eser reverenciadas -, e mesmo assim pennanece r a fa s tadas , ou estran-geiras residentes , como são chamadas (U.1012-1019).50 As Erínias,inomináveis e desprovidas de imagens, terão imagens e serão nomeadas.

O sacrifício é possível. Dá-se a reconciliação.E - atente-se - a reconciliação acontece entre as próprias

divindades quando Orestes e seu patrono, Apolo, estão fora de cena,tendo saído umas 250 linhas antes do cortejo final triunfante.i' Não, Orestes, o herói sofredor principal, quem provoca a cura.

Embora o problema de que sofre Orestes envolva seu pai e suamãe, os pecados e assassínios deles, nem Orestes como pessoa, nemo protagonista arquetípico do ego humano são, em última instância,o problema. O problema é uma agonia cósmica, universal , na qual elese acha preso. Voltando aos mitos gregos, podemos ver nossasagonias pessoais sob essa óptica impessoal.

Essa conclusão dada à saga de Orestes tem sido freqüentementediscutida como política e transcendental, como representação demudança na sociedade ateniense, ou em termos dos conflitos entrepatriarcado e matriarcado, entre os Deuses do Mundo Superior e osdo Mundo Inferior ou entre os diferentes t ipos de legalidade; todavia,quero buscar o entendimento psicológico deste assunto. Essa

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  tra édia exibe o sofrimento da alma dila _~ a, Orestes. Eala...doconflito fundamental entre a razão que está no nosso interior e as,forças do destino que não podem dar ouvidos a essa razão, que nãoRodem ser aIcançadas pela compreensão ou afastadas do seu curs·o~ ~ ~ 1ompulsivo. Este curso é como a nossa psicopatologia que defini

~

'. anteriormente como aquela parte de nós que não pode ser nem, aceita, nem reprimida, nem transformada.' Orestes é uma ímagems í a

alma dilacerada entre osarchai, É uma psicologia do comportamentoao mesmo tempo normal e anor~al. Como Édipo, Orestes é o homempsicológico, uma história de caso mítico.52 Mas, ao contrário deÉdipo, Orestes é mais importante para o problema da psicopatologiageral do que para uma de suas formas específicas. A saga de Orestesostenta ''As feridas da vida sem donde nem por que (I. 933) evincula-as à própria necessidade. Enquanto a aflição de Édipo serefere, no final das contas, a uJll ego heróico, à sua cegueira, seuserros e seu arrependimento -IOrestes padece do conflito cósmicoda. alma djlacerada entre Deuses, a psicopatologia necessária douniverso.  

Há muito que se dizer, e 2puco tempo para fazê-lo, sobre asrelações entre (palavras e forçey Tal relação encontra-se na própriaraiz da psicoterapia que é, numa palavra, a disciplina dessa relação,uma vez que boa arte de seu trabalho é tentar converte as a õe s

~t ~,~

compulsivas em palavras. Inicialmente, Freud chamou a psicoterapiade cura pela fala, reconhecendo-a como obra de peitho, uma arte depersuasão ou retórica. A análise reproduz os conflitos que, na almade Orestes, ocorrem entre razão e compulsão, repetindo a fala deAtena, que persuade à reconcil iação, encontrando lugar e fornecen-do imagens às necessidades motrizes. Na boca de Atena, a fala setorna' um hymn curador, palavra cujo sentido etimológico quer dizerpalavras fiadas ou urdidas .53 (Vejam-se mais adiante referências

~a Atena e o ato de tecer.) (P 1~ P :A L t - ; ;  >/Y\ 4 - Ç, t1V

Também na sociedade se reflete a relação entre palavra e força, oque me leva a crer que o governo de violência coercitiva aumentaquando declina nossa arte de palavras convincentes. Peitho assumeimportância esmagadora tanto na cura da alma como na da sociedade.Nosso engajamento em Eranos - um encontro falado, um ritual da fala

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- tem aver também com adevoção e o culto depeitho. Porque tambémaqui nos empenhamos em encontrar palavras persuasivas, convincentes,que consigam tocar e sensibilizar as forças incompreensíveis e sem

~~ens do espírito. A ta:ef~ d~ formulação jamais será sob~timada.Vor que as palavras sao tao importantes numa cultura, ~r que aarte da persuasão, apeitho de Atena, caiu tanto em desuso entre nós?O fecho da trilogia de Orestes responde à primeira pergunta: aspalavras

são ca azes de rsuadir os elementos mais sombrios a artici arem ~,ocuparem espaço. Impõe-se gue falemos e osdeixemos falar. A respostaàsegunda pergunta também diz respeito a Eranos e a um ponto devistaque se repete em muitos oradores. Refiro-me à atenção que eles dão àrealidade psicológica e espiritual.

fSe a realidade última são objetos, coisas, eventos materiais -

coisas mortas lá fora, como asdefiniria Descartes e como o materialis-mo radicaliza - então a fala não tem efeito. Flatus voei - palavrasvazias, um desperdício de alento. A ação fala mais alto; Bia, nãoPeitho. É preciso então simplificar a linguagem, torná-Ia instrumentooperacional, parte da ferramenta do positivista e do materialista,

voltada a orientações precisas nos manuais, palavras que levem oscomputadores a mover e moldar os objetos lá fora.Se, porém, a realidade é psicológica e espiritual - quero dizer,

ideacional, religiosa, imagina I, fantástica - como o é particular-mente na psicoterapia, como o era na visão de mundo do grego, ecomo me parece ser aqui em Eranos - então afetar a realidade exigeinstrumentos que co-movam as idéias, crenças, sentimentos, ima-gens e fantasias. Então a retórica, a persuasão, assume maiorimportância. Através das palavras podemos alterar a realidade;podemos dar vida e tirar a vida; podemos moldar e mudar a própriaestrutura e essência do que é real. A arte de falar converte-se nomodo principal de colocar a realidade em movimento.

Em seu livro A terapia da palavra na antigüidade clássica, PedroLaín Entralgo, historiador espanbol da medicina, desenvolveu deuma forma esplêndida a relação existente entre palavras e cura. Dizele: '~,Palavras, palavras fortesl:.., ersuasivas: elas são a.chave.para.as;relações entre os homens. S4 Ele parafraseia o que Ulisses diz noFiloctetes (I. 99) de Sófocles, uma frase que serve de epigrama para

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a psicoterapia: Na vida dos homens, a língua, e não os atos, regetudo.,,55

A esta altura, minhas palavras são uma tentativa de trazer à bailaalgo que o professor Izutsu escreveu há cerca de vinte anos: alinguagem é antes de tudo uma força mágica na sua própriaconstituição semântica e que estabelece a organização da gramática,da sintaxe e do significado; é a voz que converte o alento sagrado ,em palavras; e a linguagem pode curar porque é eo ipso e a priori

sagrada. 56 A fala expõe a natureza recôndita do homem, disseSófocles (Édipo, 1.188). A Deusa Peitho - que pode e efetivamentemuda a necessidade - não possui outro templo além da palavra ,escreveu Eurípides.57 Se isto for verdade, então o falar corretotambém é uma forma de restaurar o Templo . A retórica, como aentendo, é uma devotio, um esforço para devolver a palavra aosDeuses e dar forma adequada à magia divina, o alento sagrado na

-.linguagem. Não sur reende, pois, ue o falar em Eranos roduzacom tanta fregüencia, o fenômeno patologizante a que os franceses.

~hamam le trae (medo do palc~).A fala livre, como a desfrutamos em Eranos, é, portanto, um

fundamento psicológico, uma exigência da alma, que encontra l iber-dade dentro da necessidade, através da linguagem. A fala surge dasmesmas profundezas recônditas onde a necessidade aprisiona a alma,

. criando nossas patologizações. A fala expressa a alma aérea da

iJ phrenes. A fala humana, ~m especial na psicoterapia, nunca é inteira-

mente o logos do Nous. E sempres

também, caprichosa, espontânea,digressiva como a Causa Errante. 8

A terapia pela palavra não é capaz de acabar com o domínioarcaico e furioso de Ananke, nem pretende fazê-lo, porqueperderíamos então o contato dos arquétipos com a nossa experiênciafísica e a nossa mortalidade. Nem é intenção nossa bloquear a

aretensão de Ananke de ser um alienígena residente na alma .

.

Podemos, porém, dar-lhe modos de expressão, meios de imaginar-seem palavras, dissuadindo-a do seu silêncio implacável59 - umaterapia arquetípica, uma terapia do próprio arquétipo.

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f::\ fantasia da normalidade

Nossa linh~~mento leva-nos, agora, a esta formulação: se apatologização é inevitável , sendo expressão e experiência da própriaNecessidade, então esta atividade errát ica e perturbadora deve ser

--;i\l uma norma da alma, muito próxima de como a concebia PIa t ão. Seos próprios arquétipos se limitam internamente às suas imagens e porelas são limitados, de so/te a eles também exibirem patologias (a

infirmitas do arquétipqf então a patologização está entrelaçada atoda existência psicológica, e tudo quanto rotulamos de normaldeve incluí-lp(Todas as estruturas da consciência, todas as situaçõ~s

\.de existência, en uanto ers ectivas ar uetípicas, inclusive as.chamadas saudáveis, ínte ras realizadas ou normais também são.patologizadas.

Quero reforçar um pouco mais este ponto: em vez de tentarcompreender a necessidade da psicopatologia e o lugar que apatologização ocupa na alma, poderíamos, agora, voltar-nos para oentendimento da normalidade e que lugar ela ocupa na alma.Poderíamos voltar-nos para a normalidade não como ela se apresenta

l iteralmente em seus próprios termos, como normal , mas enquantouma erspectiva arquetípica, específica, com seu próprio estilo dep OIOgl .ção

Nã~'tou dizendo com isso que somos todos doentes - a faláciatera êutica, ou que a normalidade é doença - uma variação lain-guiana dessa falácia. Busco antes escapar do modelo dualista nor-

. mal/anormal, su erindo ue cada estrutura arg~Qica imagina um

(

cosmos,' o que inclui seu padrão de eventos patologizados.,Alémdisso, tentarei expor, no que se segue, a própria fantasia da nor-malidade como uma necessidade inerente no interior de umaperspectiva arquetípica específica,

 Norma e normal derivam da palavra norma, que significaesquadro de marceneiro. Norma é um termo técnico e instrumental,aplicado a um ângulo reto; pertence à geometria aplicada. Normalissignifica feito de acordo com o esquadro . Nonnaliter significa emlinha reta , retamente. O sentido de normal nos séculos XVI eXVII era: retangular, perpendicular, posicionado em ângulo reto.

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Em seu sentido atual, entretanto, a palavra revela nitidamenteconotações dadas no século XIX: normal no sentido de regular(1828); escola normal para treinamento de professores (1834), nor-mal no sentido de média em física (1859); normalizar (1865); nor-mativo (1880) e normal no sentido de comum (1890).

Esta últ ima definição encerra dois sentidos dist intos que se con-

~

em:1) , ormal no sentido es tatís tico, isto é, o que é usual, comum,

. eqüente, regular, e, por isso, previsível ou esperado. Pode-sedemonstrar graficamente este sentido como aquilo que cai na regiãomédia de uma curva de Gauss, significando, pois, média, meio,mediano, centralizado. Anormal, segundo esta mesma abordagemquantitativa, diz respeito ao que é não-usual, extremo, excepcional,desviado, fora da linha, notável, raro, estranho, anômalo. O sentidoestatístico não implica senão valores quantitativos. Não-usual quer

Glsimplesmente não freqüente.

2) ormal no sentido ideal, isto é, aquilo que mais ou melhor seproxima de um padrão ideal, de urna imagem preestabelecida ou

Vorbild . Este padrão pode ser dado pela teologia (im i ta t io Ch r isti); pela

filosofia (homem estóico, homem nietzschiano); pela lei (o cidadão);pela medicina (adaptação ao meio); pela cultura e sociedade (confor-midade aos padrões). A título de exposição, podemos chamar estesegundo tipo de normalidade de qualitativo: implica julgamentos devalor, pois, próximo do ideal encontra-se o normal no sentidolaudatório, e afastado dele tem-se o anormal no sentido pejorativo.

Os dois empregos de normal - estatístico e ideal - podem serabsolutamente distintos. Pode-se, por exemplo, sofrer de uma úlceraduodenal psicossomática, o que é freqüente em determinadas pes-soas no exercício de determinadas funções. Quanto à freqüência, éuma caso estatisticamente normal, ainda que idealmente anormal.

Ou pode se ter o mais alto quociente de inteligência num grupohomogêneo (por exemplo, grupo de mesma idade, sexo, níveleconômico, grupo étnico, etc.), ficando, assim, bem próximo danorma ideal, ainda que tal intel igência seja estatisticamente anormal.

Em geral, porém, os dois tipos de norma se mesclam em nossa mente.Pode haver várias razões para isso. Em primeiro lugar, mesmo a lin-

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guagem rígida da estatística comporta conotações metafóricas. Aodizermos: médi o, meio, mediano ou ex trem o, excepcional, desviad oestamos denotando freqüências estat ísticas, mas também conotandoavaliações qualitativas profundamente arraigadas na linguagem. Emsegundo lugar, av isão populista, igualitária, sociológica do mundo, quepredomina em nossos sistemas de valores, precisa da fusão das duasnormas, a quantitativa e a ideal. Sob o Reino da Quantidade, comoRené Guénon chamou a nossa era, o ordinário, o reg ular, o e qu i-lib ra d o, o c en tra l, o previsível tornam-se normas ideais, estabelecendoos padrões para a alma. 'Anormal é tanto uma definição estatísticaquanto uma condenação moral. O que é estranho, torna-se errado;o não-usual e irregular torna-se repreensível. Em terceiro lugar, apsique su i generis imagina normas ideais ou tipos ideais, os ' 'universali

ntastici , ou metáforas poéticas de Vico. Parece que somos incapazesde existir sem pessoas míticas que representem padrões ideais. Hoje,porém, nossos santuários e altares estão vazios, figurando nos nichosvacantes o conjunto de características comuns, as freqüências e asmédias profanas, nobremente convertidas em normas ideais pelamitologização da psique. Assist imos ao reino da Quantidade no reino

do homem comum de senso comum, à infiltração da normalidadeestatística nas normas ideais.

A abordagem quantitativa representa o ponto de vista da physisem relação à psique, da matéria em relação à alma, invadindo,portanto, a psicologia, a partir da ciência da natureza material. Defato, um dos sentidos de normal registrado no dicionário é natural .

Pode-se chamar de aristotél ico '~ o método da psi~olo~ia}lue v sa asregularidades da natureza (phYSIS)como normas ldeaIyral metodoenvolve-nos na fa lá c ia na tu ral is ta da psicologia,60 isto é, o julgamen-to dos eventos psíquicos pela co~paração que deles se faz comeventos semelhantes da natureza/Quando a natureza física, literal,

converte-se em norma em geral é porque a psique está sendo en-c~rada sob a perspectiva do arquétipo da mãe e do seu herói.60a

f A abordagem aristotélica decorre de se definir a psique em termos /'da vida natural do corpo,61 ao passo que temos estado elaborando

uma psicologia mais platôn~~:lise que ela faz da almarelaciona-se sobretudo com Um o que está embaixo, e é

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mais profundo do que a vida natural e seu ponto de vista. Pode-sedizer ue a diferen a entre aristotélico e latônico é a esma ue;xiste entre médico e mÍtico quanto às patologizações. Normas paraa alma que falem de adaptação, vida mais intensa, equilíbrio, o justomeio-termo são normas aristotélicas ou médicas,,;62 permanecemdentro da perspectiva natural e não conseguem avaliar a necessidadede patologização, para o mito, e a necessidade de ter destino na

morte, para a alma.Embora PIa tão louvasse o caminho do meio, ele também es-t imulava os passos que deste se distanciassem, como no Banquete e

.4f7no Fedro, onde a intensidade erótica e vários tipos de manias ex-tremadas são apresentados como opções preferidas da alma. Alémdisso, no Fédon (81-82), Platão fala de andras metrious, cidadãoscomuns que são comparados, em suas reencarnações, a abelhas eformigas - almas coletivas, agradavelmente condicionadas aosditames da natureza, previsíveis, comunitárias, sem desvios. Aprópria palavra metrios (a classe média que Aristóteles louva naPolítica), refere-se a metron, a regra, o padrão, a norma, a medida.

A abordagem platônica é ainda mais acentuada por MarsilioFicino em sua tradução e comentário do Banquete.63 Esta obra foium dos tratados mais influentes da Renascença. Trata-se de um livro

de P~i ologia esotérica e do êxtase, cuja intenção é induzir a alma aoamo .Para Ficino (Coment. Banquete, VI, 8), o caminho do meio quenão az subir nem descer é a posição dos pragmáticos homens de ação,cuja preocupação é com a moralidade e cuja posição é a de obser-vadores,lfais homens permanecem apenas nos prazeres do olhar edas relações sociais . O caminho do meio evita tanto descer até otoque voluptuoso quanto subir à abstração contemplativa.

Alguns platônicos64 têm o caminho do meio em menor consideraçãodo que os outros dois, uma vez que o gesto voluptuoso, convertido em

geração animal, era o modelo para asexperiências de exaltação superior-les extrêmes se touchent.A caracterização que Ficino fez do caminhodo meio implica profunda crít ica ao reino da percepção, da ação e dasrelações sociais. Ficar apenas observando, questionar a moral dos even-tos, transformar os movimentos da alma em ações práticas - tudo isso

pertence ao caminho horizontal do meio, que é uma defesa contra o

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poder demoníaco do amor, o qual nos leva verticalmente para cimaou para baixo. O caminho do meio do homem social-moral-prático éa defesa da normalidade contra o envolvimento arrebatador dos

outros dois caminhos.As randes aixões, verdades e imagens não são pQnto~meQianos=

normais~não são médias. O Moisés de língua presa que mata, tem chifrese uma esposa negra no deserto; Cristo fazendo milagres, dilacerado na

cruz; Maomé em êxtase; Hércules e os Heróis, até Ulisses; as Deusasterríveis e extraordinárias - todos eles são extremos imprevisíveis queanunciam a alma in ex1remisk essas figuras míticas exibem infirmiias:

possessões, erros, feridas, patologizaçõesjN aspalavras deVico, averdademetafórica é mais do que vida, é diferente da vida, mesmo apresentandoos padrões ideais para a vida. A própria imagem ideal é parcialmenteexpressa através dos exageros patologizados.

Não defendo um romantismo barroco ou o horror gótico, cultonovo do excêntrico que choque o burguês. Isso nada mais seria queo outro lado da normalidade. Prefiro trazer à tona o Timeu de PIatão:a razão, sozinha, não governa o mundo nem dita leis. Voltar-se parao caminho do meio em busca de normas, normas sem enormidades,repele a causa de Ananke.65 Essas normas são delírios, crenças falsas,que não levam em conta a natureza toda das coisas. Normas, sempatologizações em suas imagens, realizam uma normalização emnossa visão psicológica, atuando como idealizações repressivas, quenos fazem perder o contato com nossas anormalidades individuais. Aprópria fantasia da normalidade converte-se numa distorção damaneira como as coisas são na realidade.

Colocando em linguagem de psicologia acadêmica: o nomotéticoprecisa incluir o idiopático em suas formulações, como parte inerente

das suas leis e afirmações gerais; caso contrário, nossa visão de almatorna-se também normalizada, não distinguível das abelhas e for-

migas: social, prática, natural; 1984. Então estaremos defendidoscontra os arquétipos em nossas vidas e contra as imagens poderosasda nossa cultura, que não nos podem mais alcançar, ou que o farãoapenas através do caminho do meio das observações perceptivas, osarquétipos como alegorias de ação prática moral ou como ilustraçõesestéticas, isentas de persuasão. Teremos, assim, nos modelado segun-

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do normas, mas sem dimensões arquetípicas - o homem comomedida de todas as coisas, observador de f i a~de fora até dos seuspróprios sofrimentos, tratando-os também a partir de fora, comoquem observa, objetivamente, vivendo uma vida sem qualquersen-timento inerente de necessidade.

G A t e n aOra, esta posição média também deve ser arquetipicamente influen-ciada. Chamá-Ia de delírio defensivo não basta; ela também deverefletir um Deus, uma vez que existem Deuses nas nossas doenças.

Voltamos aqui à Atena que realizou a grande reconciliação entreZeus e as Fúrias, entre Nous e Ananke. Já salientei que Atenapartilha atributos limitadores e restritivos com Ananke. Além disso,possui ela um lado ,Perséfone~6 uma aparência de cavalo67 como asErínias; traz no peito a Górgona, a~uela imagem aterradora deirracionalidade; seu animal, a coru·a, é a sua sabedoria , mas étambém o pássaro do destino, uma criatura noturna de grito agudo,

que se pode situar entre as Harpias, as Sereias, as Ceres, as Moiras- imagens aladas de necessidades fatídicas.Entretanto, e de modo contrário, Atena é a filha saída da cabeça de

Zeus, a própria epifania do seu Nous, sua Métis (mãe de Atena)introjetada. Métis ( conselho sábio ) deriva da mesma raiz indo-

A M'i :' edíd d ~ 69 E . Igermamca D, como metron, m I a,regra, pa rao. em especIano reino da cidade que Pólis Atena 70sustenta as normas dos cânonesculturais. Um dos seus últimos epítetos foi Pronóia, providentia,previdência, porque sua estrutura de consciência pode discernir asprevisibilidades, preparar-se para elas, normalizando, assim, o ines-perado. Como Higéia,71Atena mostra o mesmo preparo previdente no

reino da saúde. Não é a ela que ainda hoje recorremos, sob o disfarceconceitual de higiene mental , e dos centros comunitários de saúdemental, organizados pelo Estado? O próprio nome Atena, segundoKerényi, refere-se a um recipiente, espécie de vaso, uma tigela, taçagrande ou panela,,;72 era a divindade protetora do oleiro; e o pote debarro era a oferenda votiva mais importante no culto de Atena.73 A

normalização se dá também tendo-se uma abertura receptiva e umespaço interior fechado para a~uilo que vier.

A Atena romana, Minerva,1 (cujo nome deriva dem em in i; m en s,mente) tinha sob a sua proteção todas asassociações de profissionais,mestres ( escola normal  ) e a profissão médica - grupos cujaatividade é exercer domínio sobre a Causa Errante, através de con-selhos sábios de inteligência prática?5

Como doadora das rédeas e da canga e da ciência dosnúmeros ,76 Atena exibe a necessidade persuasiva da razão, as neces-sidades matemáticas e lógicas em que, no dizer de Aristóteles (MeL1015a-b), uma conclusão não pode ser diferente do que é porquedecorre necessariamente daspremissasbásicasnosprocessosdedutivos.O pensar está subjugadoe atrelado pela lógicada razão.Atena aproximaZeus de Ananke, porque s ua p es so a c o mb in am-se a razão e a neces-sidade. Atena-Minerva trazAnanke daviolência de Bia para a força damente, da qual é exemplo sua fala convincente (peitho). Atena é anecessidade trazida do outro mundo para este mundo, dacegueira paraos olhos luminosos (glaukopis), do fiar para o tecer, da compulsãoimpenetrável e errante para as medidas práticas, protetoras e previ-

dentes do intelecto, ligadas à necessidade - medidas essas que seconvertem também em outro tipo de necessidade.

Eu definiria esse rocesso sicoló ico como normaliza ão e con-sideraria Atena a essoa ar uetí{2icadentro da fantasia da nor-malidade. Ao falar em termos de normas, ao tentar normalizar, aorepresentar o ponto de vista do cânone cultural e ao dar sábiosconseÍhos oriundos do entendimento prático - protetor, higiênico,político, sensível- a psicologia está então encenando Atena.

Podemos ainda fundamentar nossa decisão de chamar a perspectivanormativa de maternal . Ao contrário de Hera e de Ártemis, nã oqualificadas no culto grego como apelativode Mãe, Atena chamava-se

Meter. Esta virgemsemprole era, não obstante, mãe; entretanto, jamaisfoi representada segurando um filho.77Temos, aqui, o ensejo de dis-criminar com maisprecisão o termo mãe , tão extensamente usado napsicologia profunda.78 A maternidade da consciência de Atena é ins-titucional, uma maternidade de fraternidade não-religiosa, secular(phratliai). Para encontrar a Atena Mãe precisamos buscar as

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convenções dos homens que pensam de maneira semelhante, ospadrões nomotéticos da ciência, dos negócios, do comércio, dasprofissões,. g . o governo e de ~uas normas inevitáveis de in~lusã? eexclusão.79/Quando se examma a alma de um ponto de VIsta ins-titucional ou quando ela é abordada segundo um pensamento esentimento convencionais, a perspectiva atuante é a de Atenaj

Insinuei alhures que os diálogos de Piatão podem ser exammados

arquetipicamente, em termos dos Deuses,80 podendo as variaçõesinternas da sua filosofia serem entendidas como adequadas ao

hpoliteísmo da sua consciência. O diálogo que parece ser particular-mente o filho de Atenas é O Político.

Nele vemos que a arte específica à qual se compara a prática dapolítica é a arte de combinar, e as imagens desta arte são as de Atena:medir e tecer (O Político 283_87).81O artesanato de Atena é o paradig-ma usado por Platão para a arte da política. Já vimos a habilidade deAtena em combinar ou tecer as forças vingativas e implacáveis daestrutura da Acrópole, aquela notável expressão conciliadora estran-geiros residentes que é, afinal, uma solução ao problema de Orestes ,através de uma metáfora política. Platão diz que Atena (junto comHefesto) governa as artes das necessidades diárias da vida (Leis XI,920e) - como se dissesse que a manutenção da vida cotidiana e práticada comunidade é a sua principal preocupação. A inclusão do queexorbita e do anormal através da tessitura - eis a arte da consciênciapolítica. Taltessitura, como a duras penas metafóricas estabelece Pia tão,não se resume a uma colcha de retalhos, a tábuas pregadas, courocerzido, buracos tapados. Não setrata de fazer consertos. Nem colagens.Não é bricolage, uma atividade casual, isenta de necessidade interior.Ao contrário, a arte de Atena é o ato sistemático de entrelaçar oselementos; e, sendo sua própria pessoa uma combinação de Razão eNecessidade, sua arte de combinar produz uma peça de tecido completa

(O Político 283b). Todos os fiosencaixam-se e contribuem para a Gestalt- como ocorre com as Erínias. As velhas Fúrias são integradas, nadaficando de fora, sem pontas penduradas nas bainhas: a integração comonorma ideal.

É nesse sentido integrador que se pode entender a importânciade Minerva na arte da memória de Bruno.82 Minerva viabiliza a

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própria arte em si; sua escada interliga tudo através da gradação deimagens. Ou, como vimos nas Eumênides, é Atena (Minerva) quemabre o espaço interior. Ela é a função da mente que abre o espaçointerior, a Deusa que garante o topos, decidindo onde cada eventose situa em relação a todos os demais eventos. Ela é mente como umrecipiente de contenção, que normaliza a partir da organizaçãointerior.

Todavia, essa estrutura da consciência pode transformar as nor-mas em armas. Vemos isso na Ilíada (21: 399s.). Atena ergue uma

\

pedra divisória (dessas que marcam limites) e arremessa-a contra\ J \ Ares, atingindo-lhe o pescoço (lugar da necessidade). Ele é achatado\ por sua força, subjugado a seus limites.

Isso se torna mais evidente porque os Deuses que mais se opõema Atena são  irracionais : Ares e Afrodite (na llíada); Posídon (naOdisséia), Dioniso (cuja embriaguez se dissipa com um ovo decoruja

83e que afasta as filhas de Mínias do seu ofício de tecer); Pã

(não se permitia a presença de ~abr na Acrópole e sua baba eraveneno para a oliveira de Atena). As emocionalidades dinâmicas,os enfurecimentos, os estados d possessão, as histerias úmidas, asdepressões e a natureza selvagem externas à pólis não têm lugar nocosmos da normalização de Atena. Eles não podem ser conservadosna sua am~l~,. embor~ rasa, tigela/ ,

(

Estas sizrgias contmuam a atuar em nossas perspectivas. E difícilimaginar a natureza da consciência de Atena sem que nós mesmosfiquemos numa ou noutra dessas posições carregadas de afeto às

, quais ela se opõe.

Uma segunda metáfora de O Político também diz respeito àtessitura de Ananke no interior do corpo político - claro que corpopolítico é igualmente uma imagem, um modo de falar sobre aconstituição da alma. Desta vez a metáfora se refere à hierarquia

{

social, dos escravos aos reis (O Político, 287-291), que se harmonizampela arte de governar. Com base no que já vimos, sabemos que escravos  refere-se a ananke, e que no interior da alma os escravossão os constrangidos e os compulsivos.

Seguindo a linha que tracei em outra oportunidade ( Ensaio sobrePã ), de que asidéias e oscomportamentos (incluindo os comportamen-

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I

tos patologizados) são sempre a encenação de fantasias míticas, seriaadequado desenvolver agora as relações adicionais entre a imagéticamíticade Atena e asidéiasde normas, associando,posteriormente, essasimagens e idéiasàs patologias do comportamento. Em outras palavras,somos compelidos a reconhecer a /2fJ.to log iza ção d e Atena. Dil mesm~forma ue a ascensão rtence ao ar uéti do uer . ão aSaturno a for de vontade ao Herói e o crescimento à Ma a Mater e,

.a seu FIlho- assim,a normaliza ão rtence à consciência de Atena(Tanto é que ainda hoje chamamos  atenienses os ideais normativosde nada em excesso  e a doutrina do Justo Meio-Termo.)E da mesmaforma que essas outras atitudes ideacionais - ascensão, constríção,força de vontade, crescimento - fornecem o embasamento para umtipo de patologízação, assim também a normalização é um tipo depatologização que contém a sua própria justificativa arquetípica.

A justificativa de Atena ocorre graças a um apelo às normas ob-jetivas. Sentir que as normas são objetivas e pensar que as normasobjetivas e xi st em - independentemente das estruturas de consciênciae das pessoas arquetípicas que as governam - revela que estamos no

templo de Atena. O entrelaçamento dos pensamentos normativo e.objetízo.é.precisamente o ponto cego da consciência de Atent . Aquiela não consegue ver através.d)::si mesma, para dentro da fantasiaarquetípica que está encenandy Essa consciência vivencia as normasco coisasobjetivase o objetivocomonormal e, a partir do objetivo,recis os extrair nossasnormas. ACconsciênciade Atena volta-se para

fora, ra os outros objetivos ~lis), a fim de validar a necessidadea perspectiva.

Essa consciência permanece eternamente presa a seu pai , Zeus,o que lhe dá uma certeza de julgamento e uma convicção de ob-jetividade; mantém uma preocupação impessoal e generosa pelo

 bem do todo . Esse todo, porém, por estar objetivado (mais do queindividualizado) acaba assumindo a forma abstrata de uma normaidealizada. A infusão sutil do abstrato no prático tem a vantagem -e a desvantagem - de converter as preocupações práticas reais empadrões axiomáticos e objetivos. Fica difícildistinguir entre a virtudee a tirania de .ul amento na consciência de Atena.

44

Que existe anormalidade na normalização, que o lema da nor-malidade integrada é a posição exata do estilo de psicopatologia deAtena - está mais do que claramente retratado na sua função deprotetora da cidade , onde a prontidão da sua pr o no ia é também adefensividade militar da paranóia. Padroeira das armas, é ela própria uma deusa armada, com o corpo quase totalmente coberto por um escudo .85 A estrutura de consciência que nos mantêm racionais;práticos e en gard e diante das necessidades cotidianas da vida é amesmíssima estrutura que nos mantêm encerrados na nossa ar-madura física - as posturas defensivas arquetipicamente necessáriasà normalidade civilizada.

Essa estrutura protetora prática é tão íntimamente relacionadacom as defesas do nosso ego habitual que acaba sendo particular-mente difícil reconhecê-Ia. Otto nos lembra da intimidade de Atenacom a ação, sua prontidão e imediatez. Ele fala dela como ainteligência que nos guia em meio àsoperações da v ida, bem à modade Piaget, que define a inteligência como um atividade do ego queresolve problemas através de combinações operacionais. Trata-se deum arquétipo que nã o se revela nos afetos. Ela não p~ssui nem a

selvageria das batalhas nem a d istância da contemplação (diz Otto);, não se consegue, portanto, distin. ui-Ia guando sofremos um surto.afetivo ou através de elevações espirituais. Ela está  sempre perto .8b5 .. por estar tão perto, não conseguimos vê-I, :.

Para situar Atena psicologicamente,precisamoschegar perto do que

~

hamamos de ego (e Atena foi conselheira de muitos heróis).87Atenatua como voz ou percepção qy1ode@ utiv,?s,no íntimo das nossas

reflexões. Ela é o Mentor interno - e é como pássaro-mentor queaparece tantas vezes na Odi ssé w .88 Quando alguém se aconselha con- .sigomesmo, o ato em sié próprio de Atena e, desse modo, °conselh,que surge reflete a suanorma. Ela é a reflexão, o despertar no meio da

noite, como a coruja e o chamado repentino, como seu clarim, que faza pessoa ouvir a despeito da surdez interior. Ao falar de reflexão empsicologia, ou ao evocar figuras interiores da imaginação para refletirnossas preocupações, p'recisamos lembrar que a reflexão tem muitosestilos.O conselho deAtena mostra as normas deste mundo, bem comosuas necessidades, em estreita cooperação com os interesses do ego.

45

..~

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Não é uma reflexão nínfica e repleta de fantasia, pueril e inspiradora,saturnina e abstrata, apol ínea e esclarecida; não é a reflexão dameditação, nem a erótica, especulativa ou hermética.

odemos resumir tudo o que desenvolvemos até aqui como segue:1) normativo é apenas uma perspect iva arquetípica dos eventos

icológicos,assimcotm:f'Ateiiâé apenas um dos doze do Olimpo - eexistem perspectivas ad~ais, em particular do Mundo Subterrâneo,que não são olímpicas@As normas que têm validade objetiva são

 absolutas , normais e objetivas apenas para a consciên~, ~Atena, para quem essas fantasias são arquetipicamente necessár~A abordagem normativa da psiqueé inerente a um Weltanschauim.gquesente seu respeito primário pelas imagens de fora , ou aquilo que hojechamamos de psicologia da consciência (estatística, social, prática,preventiva, higiênica, comunal); o~e fora , como superior, as ver-dades objetivase elevadas de Zeus~ abordagem normativa vivenciaa Necessidade de forma que Atena a traduz, isto é, a necessidade nospressiona como exigências,a fimde que nossujeitemos às imagens, quesão representações colet ivas , oriundas da respubl ica, dos padrões nor-mativos demonstráveis racionalmente, mais do que decorrentes de

imagens do imaginal. A patologização é e o i ps o anormal. Imaginemo-nos social,econômico, natural ou político, mais do que como homemimaginativo. Formulamos nossas necessidades em termos de neces-sidades de fora : nossasaçõess~~iadas pelo queé racional, político,higiênico, previsível, precavido.~ própria imaginação recebe umainterpretação inspirada e profétíõâ da consciência de Atena. Suas for-masdecadentes serão denunciadas comonão-normativas e não-práticasou enobrecidas por presságios e implicações; mas não lhes será per-

é

tidopresentar a independência das suas deformidades - pois cadaum todos oseventos precisamajustar-se,ser adequados e encaixar-se.6)E qualquer sociedade,sernormal é encenar umestiloparticular daa asia dess sociedade. O apelo à normalidade oculta uma defesacontra outr en naçõesarquetípicas que,então, precisamserjulgadas anormais' 7) te ponto de vista, deve haver uma anormalidadecontra a qua este estilo de consciênciasedefende e realiza a integraçâopor meio da normalização. Chegamos assim à necessidade dapsicologia do comportamento anormal . E tornamos também

46

manifesta a nossa principal preocupação nesse artigo: antes que apsi~oter~pia est~ja ~m.~içã~ de fazer seja o q~e for a respeito daanormalidade psicológica,impoe-se reconhecer pnmeiro a dominaçãoarquetípica do estilo que modela um mundo em normas, normalizaçãoe normalidade, isto é, a pessoa arquetípica de Aten~

A imagemde Atena, toda protegida em sua armadura, leva-nos devolta à referência inicial a Freud. O pequeno sintoma tão estranho, . -. . ,a VISaonormativa do ego, é a fenda na estrutura, rachando todas as

imagens normativas de como deveríamos ser - todas as negações depatologização tomadas impossíveis pelas dores lombares persistentes,pela indigestão, pelo mau humor e pelas idéias persecutórias. A falhafatal é de fato o Destino, a Necessidade, atingindo nossa alma através

. dassuas filhas,apesar de todos os escudosda providência que pegariamemarmascontra ela.Através do poder da imagem,expressando-se comoum sintoma e mostrando os reclamos erráticos da Necessidade des-cobrimos uma visão psicológicado homem, à qual não se aplicanem onaturalismo, nem o espiritualismo, nem o normalismo. O homemnatural, em harmonia com o desenvolvimento eguilibrado, o homemespiritual, em_harmonia com a erfei ão transcendente, e o homem.normal emharmonia com a adaRillÇãoQráticae social, transformam-se,Qeladeforma ão, no homem sicoló ico em harmonia com a alma. .

NOTAS

1. S. Freud, Ne w I n tr od u ct or y L e c tu re s o n P s yc ho -An a/ y si s (§31), tradução de W.J. H. Sprott(Londres, Hogarth, 1933),p. 78,sobre o sintoma como ponto de partida da psicanálise.

2. On Psychological Language , capo 2 do meu The M yth of Analysis (Evanston,Northwestern Univ. Press, 1972)e Patologização , capo2do meuRe -V is ion ing Psychology(Nova York, Harper & Row,1975)daqui em diante mencionado como RP .

3. Jung, CW13, §54.

Q4f. David Kinsley,  Through the Looking Glass: Divine Madness in the Hindu Religious

radition, H is t. o f R e i. 13/4,1974,pp. 270-305..5. l \~ ~Iientar o aspecto ~atolo?izado do imagin~l, estou consciente de divergir aqui da

opuuao de Henry Corbin, cnador do termo imaginaí e a quem meu trabalho é, epermanecerá sempre, profundamente devedor. Corbin considera o imaginário  dofantástico, do horrível, do monstruoso, do macabro, do miserável e do absurdo , comorefletindo a secularização do imagina/ Contrariamente, a arte e a imaginação da culturaislârnica caracterizam-se em sua forma tradicional pelo hierático, pela seriedade,

47

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'gravidade, estilização e significação  (H. Corbin, Mundus Imagina li s, o r The Imaginary

and t he Imagina , Spring 1972, p.16). Em termos cl aros , as patolog izações da imagem nãopertencem ao m u nd us i m ag inalis con forme ele no s de u a pa la vra. Mas, no fazer a alma da

icotera ia real, as pat ol ~ções são f üentemente a via régi~ra o imagin aI . Neste

ponto seguimos Jung, para quem não existia imagem que não se tornasse veí culo da

imaginação ati va e movimento da consc iê nc ia em d ireçã o às p ro funde za s mít ica s. De fato,

quanto mais desagradáve l a imagem, tan to maior a probabilidade de que fosse um s ímbolo

mobilizando exatamente aquelas profundezas míticas. Esses pensamentos perversos, palavras

obscenas , lembr anças e medos obsessi vos são a materia-pdma. Cada i ní ci o se dá com o

macabro o miserável e o absurdo . E vol tamos à materia-prima; a c ada novo movimen to d a

psique7É preciso ter em mente que nos impressionamos mais violentamente com as

~ sensações do feio e d o mau do que com as do que é agradável... a do enç a d eixa a s marcas, mais r udes . .. /disse Plotino (V, 8, 11). Uma idéia conf irm ada t ambém pela Arte da

memória (RP. , p. 92) -.0a rimoramento da ossa sensibjlidade imagina lllrecisa come~aJ:_

onde começa a ró ria sensibilidade. Do g ro sse iro a o su ti l ocorre uma operação, não uma

ontolog ia . A prioridade ontológica do mundo de Corbin, cont udo, é atingida através da

prioridade operacional do método de Jung - porqu e precisamos começar por onde

c aímos , e st ir ados d e c ost as numa dor p es so al. A di ferença ent re Jung e Corbin pode ser

resolvida pondo-se em prática a t écnica de Jung com a v isão de Corbin; i st o é, a imaginação

ativa não é para proveito do agente e das nossas ações no mundo sensíve l das rea lidades

lit er ai s, e sim das imagens e para onde elas possam nos l evar - a realização delas . A

imagina ção a tiva c omeç a n a Queda delas, se ndo , de fato, a a ti vidad e cont inuada delas em

nossos corações. O alqu im ist a c onc ent ra -s e sobre os e sp ír it os caídos, aprisionados na

0ureza, que s imbolizam, de modo contemporâne o, se us e sp ír it os , ca íd os em sua n aturez a.

foco, porém, está sempre neles.6.

orarquétipo sóposso me referir ao arquét ip o fenomênico, que semanifesta nas imagens. O

rquétipo numênico per se não pode, por definiçã o, se r ap resentado, de tal sort e que absoluta-

mente nada sepode pos tular dele. De fato, o que quer que se diga sobre o arquétipo per se, será

uma conjec tura já governada por uma imagem arqu et ípica. I ss o sign if ic a qu e a imagem

arquetípica precede edetermina a hipótese metafísica do arquétipo numênico. Apliquemos, pois,

anava lha deOccam aonúmenode Kant. Removendo este estorvo te6ricodesnccess ár io da no ção

[unguiana de arquétipo, devol vemos o valo r p le no à imagem arqu et ípi ca . C f. meu artigo  An

nquiry into Image , em Spring 1977, p.70.

ossa psicologia politeísta nã o tem um Demônio ao qua l pertençam todos os processos

des trut ivos : De modo geral, os gregos não r econhe ci am ca te go ri as d e d iv in dad es como

essencialmente maléficas, nem Demôni o ou demôni os r eais ...  (A. D. Nock,  The Culto. i of Heroes , Harwa rd Th eo L Re v., 37, 1944, p. 172). Sob esta óptica, a sombra não é um

arquétipo distinto, sendo, isto sim, arquetípica, isto é, uma dis tinção ontológica no seio

dos próprios Deuses, sempre c om eles.j amai s ap enas pr oj et ada no mundo humano~

Qeus contém sombra e a projeta de acordo com a forma com que ele (ou ela.) modela

Jlm cosmos. Cada Deus é uma maneira na qual somos sombreado,s.8. Por exemplo, Empédocles (Frag. 115), onde exílio, peregrinação e ser incessantemente

batido pelas forças e lementais resultam da Necessidade.

9. H. Schreckenberg, Ananke-Untcrsuchungen zu r G e sc h ic hte des Wortgebrauchs, Ze temata,

Helf 36 (Munique, Beck, 1964), daqui em diante mencionado como HS .

10. HS, pp. 169-174.

48

11. Lidell e Scott, A Greek-English Lexicon (Oxford, Clarendon, 1964), daqui em diante

mencionado como  LS ; R B. Onians, The Origi ns of Euro pean Though t (Cambridge,

Univ. Press, 1954), p. 332, daqui em diante mencionado como  RBO .

12. HS, p . 176, c om Anhang fotográfico de prisioneiros e escravos com cordas ao redor do

pescoço. A ênfase especial que HS, em sua etimologia, coloca na canga e no co la r de escravo

abre uma perspectiva para a questão desconcertante da e scravidão nas mesmas culturas

antigas de onde ele e xt ra i sua etimologia. Seguindo-lhe a linha de raciocínio, juntando

servidão e necessidade, a escravidão torna-se eo ipso justificada pela própria palavra

necessidade, e até, dela decorrente. (Em Atenas e Tebas, a prisão chamava-se anankaiony,A escravidão pode, então, até ter sido vivenciada como uma operação de Ananke, parte

do caminho de todas as coisas, um princípio fundador da ordem universal. Não pre tendo

justificar, aqui, a escravidão, mas sugerir que as idéias, pessoas e mitos arquetípicos, como

Ananke, são determinant es nas estruturas e atitudes sociais.

13. RBO, p.333n; Lewis e Short, A Latin Dic tiona ry (Oxford, Cíarendon, 1894).

14. HS, pp. 114 ss. Para uma discussão de ananke em Leucipo e Demócrito.

15. HS. p. 133: W. H. Roscher, Lexikon der Griechischen und Rõmischen M yt holog ie (Hil-

desheirn, Olrns, 1965),  Necessitas , daqui em diante mencionado como  WHR .

16. Cf.  Of Milk , em meu  Senex and Puer , Pue r P ap e rs, Spring Publ., 1979, pp. 3842.

17. Sobre a relação entre o Amor (philotes) e a Contenda (Neikos) em Empédocles, veja-se de

D. O'Brien, Emp edo cles ' Co smi c Cy cle (Cambridge, Univ. Press, 1%9) , p p. 104-27. P.

Friedlãnder, Plato, trad. por H. MeyerhotT, Bolligen Series (princeton U.P., 1969), vol. 3 ,p .

362 e nota, torna clara a iden tidade do Amor com Afrodite-Cáris, e da Contenda com Ananke.

(Que a necessidade atua através de d iscórdia e contenda, e que a discórdia e a contenda são

necessárias, é também uma l iç ão psicológica que aprendemos de st as r elações mitológicas.)

No fim, Afrodite e Ananke tornam-se intercambiáveis: ambas podem criar Eros e aparecer

através de Nêrnesis (vingança). Vivenciamos esta ide nt id ade pa rticularmente nas fixaçõesinalteráveis do amor. Parmênides exprimiu es ta experiência psicológica em linguagem

metafísica. Guthrie, vol. 2, p. 62; F. M. Cornford, Fro m Re lig ion to P hilosophy (Nova York,Harper Torchbook, 1957), pp. 222-23.

18. Bia e Ananke são t ermos e figuras intcrcambiáveis (Pauly-Wissowa, Re al-Encyclopa ed ie d erKI assi schenAltertum swissel/Scha ft, Bd. 3,379-80, daqui em diante mencionado como  P-W .)

Peito era outro nome para Afrodite, que era venerada sob aquela forma (WHR,  Peitho ,17%-1804).

19. Linhas 96-104; David Grene trad., Aeschylu s II(Chicago U. P .; 1956), itálicos meus.

20. Linhas 962-75; Richmond Lattimore trad. Eu ripides   (Chicago U. P., 1955). Para

comentários textuais sobre esta p ass agem, veja-se A. M. Dale, org., Eurípides, Alcestis(Oxford, Clarendon, 1954), pp. 119-21.

20a.Cf. meu The Dream and the Underworld (Nova York, Harper & Row, 1979), pp. 27 ss.

21. WHR,  Necessitas , p. 71, relata que Ananke encontra-se associada a Perséfone em doistúmulos.

22. O tema dos limites circundantes em Homero e depois dele foi tra tado exaustivamente em RBO,

 peirat a , pp. 31042. É sobretudo nesse capítulo que encontramos a discussão de Onians s obreananke,

23. Cf. HS, p. 144.

24. cr . Ésquilo ,Agam emnon, I. 218,

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25.

26.27.

28.29.

30.

31.

32.

33.34.35.36.

I37.

38.

Em particular um prego de aço (Horácio, Odes I, 35, 17ss; III, 24, 5ss , onde Tyche (aoportunidade) introduz ospregos no courocabeludo das suas vítimas). Eurípides,Alceste,

I.979, para uma imagem de aço associada à necessidade.Cf. HS, p. 41, sobre a relação entre a necessidade e a Situação ausweglose . Ao ser coroado como cantor . .. ele se prende a um destino especial, tanto de obr igaçãoquanto de poder.  RBO, p.407.n 21; p. 376: Dava-se atenção à cabeça porque ela continha

a psique. Também, pp. 444-51.Guthrie, vol. 2, pp.35-7, 72-3. .Usei ambas as traduções: Hugh Tredennick, Loeb Classical Library (Londres, Heinernann,1961)eW. D. Ross, The Works o f Aristotle, 2 ed. (Oxford, Clarendon, 1940).

Lyperon =  irksorne  (maçante) (Ross);  disagreeable  (desagradável) (Tredennick);comparem-se ambos com Empédocles (Frag. 116),que chama Ananke de  intolerável .

Guthrie, ibid. p. 417.F. M. Cornford, Plato's Cosmology: The Timaeus of Plato (Londres, Routledge, 1948),p .

160.George Grote, Plato, vol. 111,Cap. 36, citado em Comford, p. 172.

Corníord, p. 176.Friedlãnder,  Plato; vol. 1, p. 205, Comford, p. 203d iz o mesmo.E. R. Dodds,  Plato and the Irrational , em seu The Ancient Concept of Progress (Oxford,

C1arendon, 1973),p. 116.Cf. ibid.,  (Platão) projetou em sua concepção de Natureza aquela irracional idadeobstinada que ele era levado cada vez mais a admitir no homem (Timeu, ~~). .No Timeu (48b, 52d) os quatro elementos são chamados de pathe, que significa baSica-mente um  estado passivo , e em segunda instância, sofrimento, aflição. Os elemento~ nãosão eles próprios archai. São antes modos de acontecer, maneiras de sermos movidos,

modificados afetados. Cornford (pp. 198n, 199) e Friedlãnder (vol. 3,pp. 370-71) chamam-nos de qualidades do Caos. São os modos pelos quais a Necessidade atua. São, por assimdizer, os modos elementa res de ser afetado; eles dão quatro estilos às obras da causaerrante em nossas condições caóticas. Ou, em linguagem alquímica , os quatro elementossão modos da prima materia, sendo vivenciados como quatro modosdo nosso sofriment~primordial. O sofrimento ordenado pela Necessidade contra Empédocles (F:ag~115) edescrito como Empédocles sendo arremessado de um elemento para o outro; llatao vê oselernentos-ur em suas condições caóticas primordiais como em perpétua agitação (52e) eoscilação ( permanentemente em movimento, chegando em determina~? ponto e logodali sumindo , 52a). Os qua tro e lementos como pathe sugerem uma psicopatologiaelemental  ou o logos do sofrimento da alma em termos dos elementos. (Cf. Os quatromodos da morte , de T. S. Eliot, em Four Quartets,  Liule Gidding  11). A obra deBachelard mos tra os quatro elementos como os fundamentos da consciência; da mesmaforma, podem ser considerados as qualidades básicas da patologização, permitindo:nos

examinar a f enomenologia das imagens edocomportamento em termos de fogo, ar, aguae ter ra . Não se quer com isso um afastamento da imagem concreta, levando a mais umsistema quádruplo de abstração, mas sim a exploração das implicaç.õesterapêuticas daimagem, para saber se suas possibilidades pertencem mais apropn~damente a,o fogo,digamos, do que à terra, ao ar ou à água-Arorque o pior sofrimentQ  : o de mnedoclesque é atirado de ume lemento pa o utm em..pk[t.l:.QCeLaenhum

39. Para completa e recente discussão das Moiras (etambém das outras  deusas do destino ),veja-se B. C. Dietrich, Death, Fa te and the Gods (Londres, Athlone Press , 1967).De um

50

( C : jdO' Ananke comanda asErínias, segundo o Hino Órfico 69(tradução de T. Taylor); de

. 'utro, ela é a conceitualização posterior delas (Dietri ch , p. 98).

~

. fara uma discussão prove itosa de The Knees of the Gods  e o fuso deAnanke, veja-seO, pp. 303.{)9:O mito de Er fornece sólida imagem para o fascínio platônico pela

astronomia como um tipo de psicologia. A mesma Necessidade rege tanto os movimen-tos da alma como os movimentos das estrelas. Enquanto as almas pas sam sobseu trono,assim o fusogira em seu regaço, regendo os movimentos planetá rios . O que ocorre coma alma e com as estrelas está na mesma teia. Por i sso, procura-se surpreender asnecessidades arrebatadoras da alma, consultando-se os movimentos dos planetas.Conforme explicava Paracelso, um médico de patologias não se pode considerar tal, a

menos que tenha conhecimento da outra metade da alma nos corpos ..planetários.Todavia, os astrólogos tomaram essa correspondência literalmente, em vez de ofazerem de forma imaginal. Porque nem asestrelas rea is nem osplanetas astrológicosgovernam a personalidade. A astrologia é um modo metafórico de reconhecer que osque governam a personalidade são poderes a rque típicos muito além do nosso alcancepessoal e que, no entanto, estão necessariamente envolvidos em todas as nossasvicissitudes. Essas forças são pessoas míticas, Deuses, e seus movimentos não se

descrevem pela matemática, mas pelos mitos.41. Friedlãnder, vol. 3,p .382.42. Cornford, p. 289.A relação da psique e dos órgãos internos (intestinos, f ígado) já é um

assunto em si mesmo. Cf. Emst Bargheer, Eingewe ide, Lebens- und Seelenkrâfte des

Leibesinneren (Berlim, de Gruyter, 1931); Nikolaus Mani,Die historischen Grundlagen der

Leberforschung, I (Basiléia/Stuttgart, Schwabe, 1959); RBO, pp. 84-9; E. Fischer-Hom-berger,  Zur Geschichte des Zusammenhangs zwischen Seele und Verdauung , Schweiz.

med. Wschr. 103,1433-41 (1973).

43. HS, p. 133.As Eumênides (Erín ias ou Fúrias, divindades da Necessidade; veja-se adianteem Ésquilo, e notas) afetam o homem, levando-o à loucura, através dephrenes (Eumenides,

Is. 301,331, 344), que Lat tirnore traduz consistentemente por  coração  e Thomson por seio . Sobre  phrenes , ver RBO, pp. 13-5, 23-43.,Seu trabalho mostra que o termo se

refere a um órgão 'da consciência e não apenas aum lugar físico (pulmões ou diafragma);por is so usei a expressão a lma aérea .

44. HS, pp. 133-164, examina o  Fragenkomplex  todo; cf. M. P. Nilsson, Opuscula Se/ecta

(Lund, Gleerup, 1960), pp. 163-64.45. Quando Porfírio, em sua vida de P lotino (Cap. 22), responde num oráculo de Apoio, à

pergunta sobre para onde fora a alma de Plotino após a morte , l emos: Os laço s danecessidade humana foram-te agora cortados. Atente-se para o papel de Apoio nesteestilo de pensamento (Fédon) epara aquilo que a lhures chamei de consciência apolínicadas abordagens transcendentes aosproblemas da psique.

46. Plegai pode significar também pancadas, golpes, ferimentos, aflições. Éa origem da nossa

palavra plague (praga).47. G. Thomson (com W. G. Headlam), TM Oresteia of Aeschylus (Cambridge, Univ. Press,1938), vo1.1, p. 345'; (Is.931-35).

48. Cf. o brilhante  Epílogo  ao Plato 's Cosmology de Comford, sobre a comparação entre oTimeu e a Oresteia, também Thomson, vol. 2, p. 321.

49. Peitho und Ananke sind terminologisch Gegensatzkomplemente . HS ,p . 102,n. 77. Aoposição entr e elas já se acha em Empédocles como sendo a mesma que exis te entre

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Ananke e as Cárites (WHR,  Peito [com Cáris], 1976. Um atributo que as duas f iguras

das Deusas têm em comum é o co lar . Já vimoso laço ou colar de Ananke na análise

etimológica de HS; Peito ornamenta Pandora com colares de ouro (Hesíodo, Tr abalhos eDias, 1. 73). Evidentemente, o que se usa à volta do pescoço tem as implic aç ões do destino;

e a mulher (com freqüência um nu) representada nas p inturas com um colar é a mulher

do destino. Ornamentos de p es co ço - de c hapinhas numeradas a colares e laços ou

correntes de ouro e arranjos de pedras preciosas - especificam o destino. O pes coç o n ão

ornado é a c arne de sa rticulada e inarticulada, sem um sentido específ ico da sua própria

necessidade. Veja-se mais referências sobre joalheria e joints (junções, laços) em A. J.

Ziegler, Rheumatics and Stoics , Spring 1979, pp. 19-29. Para uma discussão comple~a

da dupla Peito-Ananke (como Bia), ver Pedro Laín Entralgo, The T he rapy of the W ord tnClass icalAnti qu ity, tradução de L. J. Rather e J. M. Sharp (Yale ur. 1970), pp. 64-90.

50. Para a e xpressão  resident aliens (estrangeiros residentes), cf. Thomson, vol. 1. p . 68.

Lat timo re t ra duz como hóspedes da terra . A questão psicologicamente importante

é que essas figuras não estão de todo in te grad as. Elas conser vam sua própri a identidade.

Permanecem intrusas , hóspedes, estrangeiras, mesmo tendo recebido um lugar.

Colocar - não reprimir nem trans forma r (conver te r) - equivale ne st e contexto a c ura

arquetípica. . . .51. Cf. P. Wheelwright, T h e B u mi ng Fountain, Cap. 10, Thernatic Imagery rn the Oresteia

(Indiana u.P., 1968), p. 238. .52. O lugar de Orestes na consc iênc ia moderna já foi apresentado de forma pnrnorosa por

David L. Miller em seu trabalho Orestes: Mith and Dream as c atharsis , em M yth s,Dreams, an dR eligion (Nova York, Dutton, 1 970) pp. 2 6-47, or g. por J. Campbell).

53. Ch, Boer, tradução de The Homeric Hymns (Spring Publ., 1979), pp. 137-38.

54. Laín Entral go, p. 68.55. Ibid . Há aqui, porém, uma ironia, pois nessa peça Ulisses é mos tr ado como um homem de

ação, cujas palav ra s sã o muitíssimo enganosas. Além disso, ele é incapaz de convencer

Filoctetes, homem mais ativo ainda; só I-Iércules o consegue.56. Toshi hi ko Izutsu, Language and Ma g ic, Estudos sobre as Humanidades e as Relações

Sociais, vol. I (Keio Institute of Philological Studies, Tóquio, 1956). As páginas que cito

são: 103,26.57. Es ta s du as ci ta çõ es s ão d is cu tidas por Laín Entra lgo, pp. 66-7.

58. Izutsu ,op . cit., p. 13: Como não pode h ave r emp re go mágico da l in guagem sem um mínimo

de lógica, a ss im também no uso descritivo comum da linguagem - ou mesmo no discu:so

científico - as palavras reais utilizadas não podem estar, na natureza da situaçao,

totalmente i sen ta s de ilogismo. Exist e sempre na linguagem natural algo que resiste

~

bstinadamente a uma análise lógica completa ...59. 'ão se trata apenas de Ananke e Bia não poder em ouvir (serem sur das) e carr egarem o

. píteto comum de  cegas ; mas, como a mor te, a necessi dade tr abal ha em sil ênci~, não

fala. Ernpédocles, segundo Plu ta rc o, c ont ra st a a Per su asão musical com a Necessidadesilenciosa e não-musi cal: cf. L aín En tr algo, p. 90.

60. RP, pp. 85-7.6Oa.Cf. o meu The great mother , her son, her hero, ando t he Publ em Fathers and Mothers

(Spring Publ., 1973).61. Cf. Aristóteles, D e A nima , 412-13; 415b 10.62. Ver Wm. A. Seott, Concepti ons of Normality , Cap. 19, em E. F. Borgatta e W. W.

Lambert (orgs), H an db oo k ofPe rson ality T he or y a n d R e se arch (Nova York, Rand McNally,

1968) para uma coleção de normas, onde: normalidade = saúde mental, ajustamento,

fel ic idade, produtividade , integração soc ia l, mín imo de confl ito e des truição, e tc. '

63. De M. Fi ci no, Comentár io ao Banquete de Platão: texto, tradução e introdução por S. R.

Jaynes , Un iv e rs it y o f M i ss ou ri S t ud ie s XIX (Co lumb ia , Mo., 1944).

64. Cf. Edgar Wind, Pa gan My s te ri e s i n the Renaissance (Harmondswor th, Penguin, 1967) , pp.

50 ss, 68 ss, 273 ss, par a uma di scussão do neopl at oni smo e voluptas, com referên ci as a

Plo tino , F ic ino e Lorenzo Valia .

6 5. Vale a p en a l embrar a qu i que Nous empreg a a g eome tr ia p ara orde na r o qu e. não tem forma

nas quatro formas fundamentais. Como diz Cornford (P lato 's Cosmo logy , p. 210): Desse

modo, a operação da raz ão é l ev ada , t an to quan to po ssíve l, a o domínio sombrio das forças

irracionais.  Lembramos que norma é em sua or igem um t ermo da geometri a. Quant o emmatemática se ordena o que está desordenado , tra ta-se emp rimeiro lugar de um movimento

 para fora do desordenado, um afastar-se do domfnio sombrio das forças irrac iona is e das

necessidades da patologização. Os livros de psicologia que enfatizam asdescrições geométrica

da psique (oAion, deJung, por exemplo , ou T im e a n d Nu mber , de M. - L. von Franz (Evanston,

Northwestern U'P; 1974)) inc\uem-se também entre as negações transcendentais da

patologização, sendo como tais, menos psicológicos do que espirituais, menos representativos

das rea lidades imagina is da a lma, sempre pa to lo gi zad as, d o que d e uma real idade metafísica

abstrata, que se apresen ta sob formas puras ,

66. Sobre Persé fone-Atena , veja-se KKerényi,Alhene: Virgin and M ot he r i n Greek Religion,t rad. de Murr ay Stein ( Spr ing Publ., 1978), pp. 31-2, 42-3, e o excelente posfácio do

tradu tor. Daqui em diante mencionado comoAthene.67. Sobre o cavalo (Atena), ver Athene pp. 7,.9,23,45 ss. (Gór gonas, Égua); M. Det ienne,

 Athe ne and the Mas te ry of the hor se , H i st o ry o f R c l ig i o ns 11/2, 1971, pp. 161-86; sobr e o

caval o (Erí ni as), cf. Dietrich, op . cit., pp. 137 ss.68. Sobr e a cor uja (At ena) , ver Athene, pp. 31, 32, 58, p. 99, n. 312; E. A. Armstrong, Th e

Folklore o f B i rd s (Londres, Collins , 1958), pp. 113-24 ; sobre a s Moi ras c omo demôn io s d a

noi te a la do s e cinze ntos , D ie tr ic h, p. 71 ( também sobre Queres, pp. 240-48); J . Polla rd ,

Seers, Shrines and Sirens (Londres, Allen & Unwin , 1965), p . 140 .

69. W. W. Skeat, A n E ty m ol og i ca l D ic ti on ar y o f l he E ng li sh La ngu a ge (Oxford, Clarendon).

70. Sobr e a cidade (Atenas) , ver Athene, pp . 8 ,2 9, 32 , 39 , 74, 79, p. 86 n. 1 01 ; R. F. Willetts,

Cretan C u lt s a nd F es ti va is (Londres , Rout le dg e, 1 962) , p . 2 78 , d is cu te o movimento d e

Atena desde seu papel primit ivo de pr otetora do palácio e lar, no perí odo minoano-

micê nico, a té o d e Deu sa dapólis.71.  Higéia , WHR, 1/2 , 2 772.

72. Athene, p. 29.

73. Ibid., p. 32.

74. WHR, II/2, Minerva , 2986, -89, -91. Como Ate na Erga néi a (Trab alhadora) , Mine rv a e ra

a p ad ro ei ra dos ar te sã os, entr e os quai s se i ncluíam os médicos e os prof essores, que

rec ebiam seus hono rá rios anuai s no dia do fest iv al d e Min erva.7 5. A palav ra metis significa sempre entendimento prático .. . W. F. Otto, T h e H o m e ri c G o ds ,

t ra d. d e M. Hada s (Nova York, Pan theon, 1954), p . 52; Ci.Aihene sobre Metis -Atena , pp.

11-3,21-2.76. R. Graves, T h e G re ek M y th s, vol. 1 (Ha rmondswo rth, P enguin, 1 960 ), p . 9 6.

77. W. H. D. Rouse, Gr ee k Vo ti ve O f fe ri n 8S (Cambridge Ll.P; 1902), p. 2 57 , n. 2; Athene, pp.13-6.

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78. Não basta chamar de Grande Mãe, ou de arquétipo de Mãe, a cada imagem feminina -

Lua, Deméter , Hera, Isis , Maria, Ártemis, Cibe le , Afrodite, etc. - como faz E. Neumann

em seu trabalho sobre o tema. Com isso, el e não faz mais do que amalgamar o que é bela,

p recisa e sutilmente d if er enciado em cada pessoa ou imagem particular. Para uma tentativa

de diferenciação entr e ser m ãe e ser ama, conf ir a meu t rab alho Abandoning the child ,

Loose Ends (Spring Publ., 1975) pp. 35-8.79. Sobre Atena e esphratria, ver Athene, pp. 15,52; M. P. Nilsson, Apêndice 11 : As Fratrias ,

em seu Cults, Myths, Oracles, and Politics in Anci em Greece (Nova York, Cooper Square,

1972). À página 170, diz Nil sson: Nas f ratrias, predominavam como seus Deuses comuns,

aqueles que mantinham a o rdem civil e social: Zeus e Atena. As f ratr ias dão exemplo da

secular ização e diluição da rel igião, quando o Estado põe sua mão mortal sobre ela.  Aadmissão fazia-se pelo voto: padr ões de incl usão e exclusão.

8 0. E st e mét odo acha-se indicado no própr io Pl at ão  Fedro, 252-53), que descreve estilos de

amor em termos de seguidores dos d iferen tes Deuses. Nos próprios diá logos vemos

imagens e id éi as - e patologizações - apropr iad as aApoio, no Fédon; vemos Pã no Fedro,

Dioniso, no Banquete, Hermes, no Crátilo e Zeus e Atena, nas Leis. Segundo Wind, op.

cit ., p. 203, A te n a e E ro s e ram venerados juntos no rec in to d aAcademia . Éa partir desses

dois lados, o de Ate na e o de  Eros que os coment ar istas de Pi a tão t êm procurado

 dominar o Sócrates de Pia tão - ou têm sido dominados por esses Deuses através

dele.81. Cf. Friedli inder, lI I, p. 289; WHR, 1/1,  Athcne , 681-82.82. Cf. Yates, An of Memory, p. 290; Yates, Giordano Bruno and the Hermetic Tradition

(Lond res Rou tl edge, 1964), p. 312 [Giordano Bruno e a tradição hermética, Editora

Cultri x, S ão Paulo, 1987], onde Bruno se confessa filho de Minerva ( Tenho-a amado e

procurado desde a mocidade; t enho-a de se ja do por e spos a e tomei-me amante da sua

forma ... ) . A rel açã o e nt re Min erva e a s imagens da mente talvez nos aj ude a c ompreender

(além do sentido evidente de artesão ou artífice) o fato de que era a Atena que os

lustradores faziam sacrifíc ios em Olímpia, antes de polirem a imagem (Rouse, Greek Votive

Offerings, p . 59, n. 20).83. Em out ro , a c oruj a sóbr ia afas ta a s a belhas d a e nt ra da de uma adeg a (Hyginus , FAB., 136).

84. Athene, p. 64. A relação entre At ena e a cabra é ex te nsamen te t ra ta da por Kerényi, Ibid.,

pp.60-9.85. Otto, Homeric Gods, p. 43, fazendo menção à sua a nt iga e pifania n a a rt e m ic ên ic a.

86. tua, p. 60.87. O mai s importante de todos, Ulisses; cf. W. B. Stanford, O f avorito de Atena , em seu

livro The Ulysses Theme (Oxford, Blackwell, 1968), pp. 25-42, onde se expõem analitica-

mente as operações da intel igência a teniense. Outros heróis auxil iados por At ena são:

Aquiles, Diomedes, Jasão , Cadmo, Belerofonte, Perseu.

88. Willetts, Cretan Cults, p. 314.

(;\UMAIMAGEM MIT016bICA DA MENINICE:

ÁRTEMIS(Paraminhafilhá de 9anos)

Karl Kerényi

Assim falou a menina, procurando tocar d queixodopai. Mas,em vão mexeu as mãozinhas diversas vezes. Então, sorrindo,o paise inclinou para ela, acariciou-a e disse:  Dando-me asDeusas crianças como esta, a fúria da ciumenta Hera meperturba muito pouco. Filhinha, vocêterá tudo oque deseja. }

Qualquer leitor bem familiarizado com a mitologia gregareconhecerá nas palavras acima o divino patriarca Zeus. Mas, quemé a menina sentada nos enormes joelhos do pai, que não lhe alcançao queixo? Diferente de qualquer outra no mundo, a religião gregacaracteriza-se pelas Deusas virgens, evidenciando, de fato, maismar-cadamente essa qualidade do que o poderio de Zeus sobre osDeuses

e os homens - o que associa essa religião àsreligiões do grande pai,~om~aju.daicae .acristã da nos~acu t~r;;7A religião da Gr~cia antigajamais fOIexclusivamente patnarcaVMesmo Atenas, a CIdademaisintelectualizada dç Hélade, conservava umadivindade mãe veneran-da, oriunda da época de uma religião mais antiga e mais matriarcal,adorando, ao lado do pai Zeus, sua filha Atena, a quem se dirigiacomo mãe.

Daí por que não é injustificada a pergunta de quem possa ser afilhinha sobre osjoelhos de Zeus, mt;smodepois de revelarmos queessa cena foi extraída do Hino a Artemis , de Calímaco. O quedesejamos deixar claro é que essa passagem poderia perfeitamentereferir-se a alguma outra das gloriosas figuras virgens da famíliaolímpica. Por exemplo, à citada e importante filha de Zeus, cujo nomecompleto é Palas Atena. Os gregos associavam a palavra pallas -dependendo de estarem se referindo ao masculino ou ao feminino- à imagem de uma juventude vigorosa, ou de uma menina impor-tante, ou talvez, de uma jovem, digamos, à imagem de uma cariátide.Mas os atenienses falavam também da sua Deusa como a virgem,

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Kore, ou - para distingui-Ia de Perséfone, filha de Deméter, que eraadorada na vizinha Elêusis , sob outra forma de virgindade divina-como a Cora aqui conosco . O que existe, pois, nesta narração deuma garotinha, ainda não amadurecida como uma palias vigorosa,mas sentada nos joelhos do pai (e pedindo presentes não adequadosà sua idade), que não se aplica igualmente a Atena ou Perséfone?

Temos retratada aqui uma situação humana com a finura galho-feira da refinadíssima literatura helênica, na qual Ártemis aparece

como uma garotinha de uma família grega patriarcal. Esta cenaespecífica talvez seja uma criação original de Calímaco. Por outrolado, o poeta dificilmente teria falseado o que para os gregos era arealidade humana da situação, a posição real e a imagem de umajovem grega com a idade que a criança almeja. Importa sejamos bemprecisos: o que nos interessa aqui é um estágio da vida e uma faixade idade. Em condições naturais, entre os povos antigos e até bemmais recentemente, esse estágio representava-se e realizava-se nãoapenas na poesia, mas também na religião, através de cerimônias eregras definidas. Existiam - e existem ainda, sobretudo sob formasempobrecidas - cerimônias de maturidade que orientavam os

indivíduos da mesma faixa etária na passagem de um estágio paraoutro, de uma posição para outra, sendo tais cerimônias original-mente verdadeiras iniciações ao mistério, embora nem sempre fos-sem chamadas assim.

Pertencer a um grupo da mesma faixa etária - não se entendendocom isso aqui, em absoluto, uma organização consciente, mas apenasum grupo da mesma idade - significa para todos aqueles que não aalcançaram ou que ainda não amadureceram para ela, um mistérioque as palavras não conseguem transmitir. Os atos secretos, comousar máscaras e vestimentas, características das cerimônias deiniciação, dão a esse mistério uma feição exterior que muitas vezes é

uma caricatura e algumas vezes até uma representação falsa. Porqueser desta ou daquela idade é verdadeiramente um segredo - efetiva-mente, um mistério. Os mais jovens jamais entendem de fato isso, eaté os da mesma idade não conseguem traduzir em palavras no seumeio; quando muito, podem fazer-lhe alusões. Os ritos da puberdadesão insinuações marcantes, cuja intenção é tornar os iniciantes cons-

cientes do estágio que atingiram. Nos tempos antigos, a notif icaçãodo novo modo de ser era feita através da imagem de uma divindade.

Vamos, pois, ser precisos e analisar o grupo de igual faixa etáriarepresentado por Ártemis, a quem Calímaco descreve, seguramentenão sem uma boa razão, em termos dos eventos de vida de uma jovemda família olímpica e com isso, vamos analisar a família como tal. NemAtena que, por assim dizer, guarda limites da família patr iarcal comescudo e lança; nem Perséfone, destinada a ser raptada e levada para

outro reino, poderiam tomar o lugar de Ártemis. A existênciahumana, em seu acontecer e não-acontecer, progride graças a todosos estágios da vida. O ser dos Deuses imortais é de espécie diferente.Pode-se pensá-lo como cíclico, correspondendo não apenas àsórbitas dos corpos celestes que se põem e ressurgem, mas também àsperiodicidades naturais da vida humana - da vida das mulheres, porexemplo. Nesse sentido, pode incluir opósitos, como Perséfone quemorre e reina no mundo inferior, ou pode misteriosamente alcançara maternidade permanecendo virgem, como Palas Atena; assim, o serdo Deus está eternamente preso a uma forma única, emboracontraditória. Quando um poeta instruído caracteriza a idade de

Ártemis como meninice, isso deve necessariamente referir-se a umestágio da vida correspondente ao modo de ser dela, a uma forma devida da qual a Deusa ajudava as virgens mortais a terem consciência,mesmo que, sendo imortal, ela seja normalmente representada -exceto no hino de Calímaco - como mais adulta e, no entanto, maisimutável do que uma simples criança de nove anos.

Conta-nos Calímaco que Ártemis pediu ao pai sessenta filhas deOceano, todas com nove anos, para serem suas companheiras defolguedos, Não se explica essa idade a não ser como representativade um grupo específico da mesma faixa etária, ao qual a própriaDeusa, como sua protetora, pertence e sempre pertencerá. Calímaco

delineia também perfeitamente o estágio anterior de vida. Começacom Leto mostrando sua filha Ártemis, de três anos, a seus parentesdivinos e deles ganhando presentes, por lhes ser concedido ver acriança pela primeira vez. Calímaco descreve depois a visita deÁrtemis ao ferreiro-mestre, Hefesto, e seus auxiliares, os Ciclopes,

incapazes de assustar a garotinha. Em Atenas, as crianças eram

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apresentadas pela primeira vez em público em seu terceiro ano,quando ganhavam presentes: pequenos frascos de vinho e brin-quedos.

O estágio de vida seguinte para asmeninas começava em seu nonoano. Correspondia ao ephebe ou estágio inicial de virilidade dos garotos,sendo provavelmente chamado de parthenia. Ártemis proclama essaidade como a única realmente adequada para ela quando, segundoCalímaco, pede ao pai, acima de qualquer outra coisa, uma partheniaeterna. Isso significa não só avirgindade-outra tradução para apalavraparthenia - mas o modo específico e a plenitude de vida desfrutadapelas meninas no período que vai do seu nono aniversário e a época,não muito distante, em que a virgem grega começa a usar o cinto denoiva. Nove anos parece-nos cedo demais para ser uma jovem , deixan-do de ser criança. A própria singularidade do conceito força-nos aenfocar o que é essencial: o nono ano que nos parece tão prematuro,mas não o era para a menina grega, delimitava no costume ateniense oinício do estágio anterior ao casamento.

Antes do casamento - conta-se - as virgens da Ática eramconsagradas a Ártemis de Brauron ou Muníquia.f Dessa forma, elas

começavam um período de dedicação à Deusa, uma iniciação aomistério - isso também expressamente narrado -, sendo que nãopodiam ter menos de cinco anos nem mais de dez. Podia ocorrer, àsvezes, de a menina ter alguns meses além dos dez anos ao professaros votos, mas o nono ano parece ter sido a idade padrão. Daí por queno hino essa idade surge como sendo a idade certa das companheirasde folguedos de Ártemis. Mas o protótipo - a própria Deusa - quãomais idosa deve ter ela aparecido nos locais sagrados das elevadascolinas de Brauron e Muníquia do que na singela cena familiar

descrita por Calímaco As meninas vestidas para tomar parte no cultode Ártemis, e representativas do grupo da mesma faixa etária de que

falamos, chamavam-se arktoi,  fêmeas de urso ; o serviço delas, acelebração do seu estágio de vida, chamava-se arktoia,  estado deursa , cuja explicação era a seguinte: Porque elas agem como fêmeasde urso.

Expressa-se aqui um barbarismo estranho e inquietante, que nãoestá de todo ausente mesmo na figura clássica e homérica da Deusa.

Em Homero, porém, o estado selvagem da Deusa é retratado como ode um animal predador meridional: Zeus fez Ártemis uma leoa paracom asmulheres (no parto); é-lhe permitido matar qual delas ela quiser.E há ainda outra oportunidade para que ela exercite sua cobiça de caçar;há animais selvagens, corças, que ela também Pode matar. Esta sede decaça é atribuída por Calímaco até mesmo à jovenzinha nos joelhos deZeus, o que lhe dá um caráter todo especial. A única razão pela qualÁrtemis não Pede então o arco e as flechas ao pai é porque ela própria

irá tirá-Ias dos Ciclopes. Mas ela Pede um vestido curto de caça:  Paraque eu possa assim matar animais selvagens Ela fornece caça à famíliado Olimpo. Este lado prático da sua caça diária é importante apenas doponto de vista do voraz Héracles, de quem todos os Deuses zombam.O outro aspecto da caça, concupiscente, parece mais essencial. TantoHomero quanto Calímaco dão-lhe ênfase, menos explicitamente, nãocomo ferocidade, mas como uma agressividade incompreensíveldirecionada, na caça, contra os animais - animais apreciados, como ascorças - e, no reino humano, contra indivíduos do seu próprio sexo,contra as mulheres. Por causa de múltiplas e estreitas relações com osexo feminino, a Ártemis de Brauron, a quem se dedicou um santuário

na Acrópole, ganhou os trajes das mulheres que sobreviviam com êxitoao parto. A sacerdotisa herdava as vestimentas daquelas que morriam- os troféus medonhos da Caçadora.

A descrição da filha da casa, amadurecida para a primeira mocidadee mostrando-se uma caçadora, é quase tão surpreendente quanto o fatode uma representante deste grupo de faixa etária ser chamada de ursa.Durante o período histórico que nos é familiar, caçar não era umpassatempo usual ou apropriado para as meninas gregas, ainda queassim possa parecer nalenda de Atalanta, caçadora que é a manifestaçãohumanizada da própria Deusa. Ao transformar -se em leoa, Atalantaganha uma das formas da Deusa. O mesmo se aplica a outra figura

metamorfoseada do ciclo de Ártemis, Cálisto, que se transformou emursa. Assim, a vida de caça dos jovens gregos tinha nesse aspecto algoda aura de uma iniciação. Que a iniciação de fato estava presente vê-sena determinação, expressa no livro de Xenofonte sobre a caça, de quea língua mãe grega deve ser pré-requisito na seleção dos caçadores

principiantes. Encontramos outras evidências disso nas cenas de

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iniciação que decoram os sarcófagos de mármore dos ephebes áticos,e que mostram o jovem morto imortalizado em vestes de caça. Naslendas gregas, representa-se essa iniciação na mais pura artemisianadas figuras jovens, Hipólito ou algum outro jovem caçador, do qualsomente o nome talvez nos seja conhecido - ou nem mesmo isso,sendo eles reconhecíveis então como um tipo.

Isso traz à tona, de uma forma ainda mais clara, outro traço daimagem da caçadora divina. Ela tem com o sexo oposto uma relaçãoalgo de menino, e ao mesmo tempo de irmã - de fato, uma relaçãoquase fraternal, considerando-se que pertence à caçadora Ártemisseu irmão, o caçador Apolo, e também Hipólito, ligado a ela comoirmão mais moço. Para as meninas gregas, antes (como jovenssenhoras) que atinjam o estágio jamais alcançado pela própriaDeusa, e antes que as companheiras de caça fossem transformadasem troféus da caçada, havia igualmente um período em suapartheniaem que se gozava de umprazer masculino na caçada. Por outro lado,as próprias mulheres gregas abatiam os animais em seus ri tuais desacrifício. Nas festividades de Brauron e Muníquia providenciavam-se cabras para esse fim,3de tal modo que se tornavam aspresas das

ursa;;. Todavia, essas ursas não usavam as túnicas curtas e franjadasde Artemis, próprias para caçar, e sim a krokoton, outra vestimentacaracterística, da cor do açafrão, destinada a substituir a pele de ursodos tempos pré-históricos, Os adoradores de Baco também usavamessa vestimenta amarelo-açafrão em lugar das peles, e o manto deMeléagro, o caçador, era da mesma cor - cor essa que simbolizavau~~ esfera da vida em que caça e êxtase, dança e sacrifício, nãodiziam respeito ao mundo inferior. (O vermelho aludia a esse reinomaissombrio.) Esse era o amarelo avermelhado normalmente usadoem Atenas nas festividades e rituais das mulheres, em todos oslugares onde o elemento feminino podia transitar livremente.

Desse modo, o estágio de vida da parthenia, a despeito da suainfanti lidade de garoto, é uma fase assaz feminina. Na figura dagrande caçadora, asursinhas humanas encontravam umaspecto novoda sua natureza feminina. Tratava-se de um encontro com algoselvagem e forte que podia capacitá-Ias, caso as leis não escritas dascidades exclusivamente patriarcais o permitissem, a competirem

6

como irmãs com osephebes em todos os testes e exercíciosde garoto-como em certa medida, as garotas espartanas de fato o faziam. Alémdisso,algumdia, a forçae a agressividadede Ártemis decorrentes dessasatividades - atenuadas em geral pelas tarefas femininas de que seocupava Atena - sevoltariamcontra elas:nasdores selvagensdo partoseria exigidodelas que colocassemem ação uma força maior do que arequerida em qualquer disputa atlética de que os homens podiamparticipar. Ao mesmo tempo, porém, elas não serão maisursas recober-

tas de vestes cor de açafrão nem abaterão cabras: serão vít imas damesma Deusa a quem começaram a servirquando tinham nove anos deidade.

Vestida com o krokoton, a fim de servir à Deusa virgem, a jovemateniense assemelhava-se a uma chama brilhante. Ela não recebia arcoe flechaspara segurar,e simoutro atributo, a tocha ardente, mencionadapor Calímaco entre os presentes que, junto com a parthenia e a ves-timenta de caça, Ártemis criança implorava de Zeus pai. As tochasardentes eram carregadas nas procissões e danças ritualísticas queocorriam à noite, entre o céu e o mar, nos promontórios tomadossagrados pelos atenienses. Em Muníquia, até os bolos oferecidos àDeusa eram rcx:leadosdevelas acesas.Quão friae desumana adivindadeenluarada, chamada Ártemis (e Diana),4 não haveria efetivamente deser, sem essa adoração de tochas ardentes, carregadas por jovenzinhasde facescoradas Em Th eH o m e ri c G o ds , 5WalterOtto nosdá a seguintedescrição:

Ela habita no éter lfmpidodo pico da montanha, em meio ao tremeluzir douradodasvárzeas montanhosas, entre os flamejantes e vacilantes pingentes gelados e flocosde neve, no assombro silencioso doscampos e das florestas, quando o luar os inundae goteja dasfolhas. 'Iodasas coisassão transparentes e brilham. A própria terra perdesua lassidão ... Há um flutuar ao longoda superfície como o de pés brancos em dança.

E atinge o sublime nesta pureza:[Ela é] a dançarina e a caçadora que aconchega o filhote de urso no regaço e

disputa corridas com o cervo, levando a morte quando verga o arco, estranha einacessível, como uma natureza indómita, sendo, no entanto, como a natureza,inteiramente mágica, elã de vida e beleza cintilante.

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E isso tem uma correspondência imediata com algo quente evibrantemente vivo em nossa própria casa: com a nossa própria jovemfilha.

 O PROBLEMA DAS AMAZONAS

(O original alemão foi t raduzido [para o inglês] por Hildegard NageL) Renê Malamud

NOTAS

A galeria de arte antiga de Munique conserva em seu acervo um

maravilhoso vaso antigo de fundo preto, que retrata uma famosa cenada batalha entre Aquiles e Pentesiléia, rainha das Amazonas.1 Ves-tida de túnica curta, a bela amazona ergue o olhar suplicante para oherói agressivo que avança inexorável, espada em riste. As mãos delaprocuram afastá-lo, empurrando-o pelo peito e braço, enquanto ele,olhando fixamente, por sobre a cabeça dela, o além desconhecido,consuma sua obra assassina. À volta dos dois grassa a mortandadesangrenta: uma companheira da rainha moribunda insinua-se nabatalha final, enquanto por trás das duas figuras centrais um guer-reiro feroz cai sobre nova vítima.

O tema das Amazonas fascinava os gregos antigos. Um dos aspec-tos deste mistério é que, segundo as lendas, a sofreguidão do heróipela batalha se transforma em amor à vista de sua vítima. Mas, elatambém ama Aquiles? A antigüidade nada tem a dizer sobre isso. NaRenascença, porém, Torquato Tasso retoma o motivo e afirma esseamor em Jerusalém libertada. Heinrich von Kleist por sua vez, adap-tou o tema em Penthesilea. Nesta obra, a princesa amazona literal-mente arrasa seu amado secreto, Aquiles, que em contrapartidatambém a ama; mais tarde ela se mata.

As Amazonas, claro, jamais existiram.f Ainda assim, não só osgregos como também os europeus da Idade Média não se cansaramde inventar histórias sobre elas.3 Que o tema das Amazonas temafinidade com arquétipos, no sentido junguiano, é salientado por

Alexander von Humboldt:   O poema das Amazonas tem um caráterespecífico em seu interior: ele pertence àquele ciclo uniforme eexíguo de sonhos e idéias em torno do qual gira a imaginação poéticae religiosa de todas as raças, em todos os tempos.t'

Desde a época de Homero5 até os últimos dias da culturaateniense, as lendas dos traços do caráter devastador das Amazonas

1. Calímaco,  Hino a Ártemis . A passagem anterior a esta fala-nos que o p rincipal presente

que a filha pediu ao pai foi ume parthcnia eterna (condição de virgindade ou meninice).

Entre os outros presentes desejados por ela estavam um ar co e f lechas - embo ra e st es,diz ela no Hino, preferisse tomá-Ios dos Ciclopes -, uma veste de caça cor de açafrão,

sessenta ninfas do oceano com nove anos de idade, para companheiras d e folguedos, e a

missão de transportar luz. Calímaco atribui aproximadamente três anos à criança quandoe st a formu la es se s d esejos, mas o fato de ela determinar já então a idade de nove anos

press ag ia o s a t ributos da futura caçadora v irgem. Essa idade insere-se naquilo que Freud

chamava d e p er ío do d e l atênci a da sexualidade; é também o tempo de aquis ição ávida de

adaptações mentais e físicas, e de dele it e n a bu sca bem-sucedida daquilo que, sob formas

às vezes inteiramente cruéi s, viemos a chamar esportes. [Nota do tradutor para o inglês.]

2. Ci.AnticheReligion,p. 292, nota 460. Este ensaio tem por base o material apres en ta do porLudwig Deubner (Auische Feste, Berlim, 1932, pp. 204-08.) Depoi s de escr ito este ensaio,

descobriu-se o local d o s an tu ár io de Brauron/Bravona e criou-se um museu que visitei

muitas vezes. Hoje [1971], es se material extremamente valioso ainda não foi d ivulgado ,

nem se descobriu o lugar do Cl austro das ursinhas . Há certa evidência de que apenas

pouca s men in as d as melhores famíli as at en ie nse s t eri am s ido enviad as pa ra lá.3. Cf.A/hene (Spring Publications, 1978), p. 65.

4. Cf. Dionysos (Princeton, 1976), p. 155.

5. Traduções minhas de Gotter Griechenlands, Frankfurt aIM.: Schule-Bulrnke.

Observação: Este artigo, intitulado Mythologisches Mãdchenbildnis , apareceuoriginalmente em DU' Schweizerische Monatsschrift (Zurique), n°5, maio, 1949, pp.11ss;mais tarde, foiincluído em Antike Religion, Munique, 1971,pp. 224ss.

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floresceram por toda a Grécia, Ásia Menor e norte da África. AtéÉsquilo e os oradores do culto século IV a.c. consideravam uma

grande façanha, digna de ser comparada com os feitos heróicos dasguerras persas, o fato de Teseu ter vencido essas conquistadoras

intrépidas, livrando assim Atenas da destruição.Como bem se sabe, essas mulheres misteriosas não davam

importância ao casamento em geral, nem aos homens e filhos emparticular. De acordo com a tradição predominante, elas habitavam oscampos doiânticos, cortados pelo rio pôntico Termódon, antes de ele

desaguar no Mar Negro. Na Anatólia do norte, duas rainhas gover-navam seus populosos domínios. Os homens eram totalmente excluídos

dessas terras ou simplesmente tolerados para fins de procriação. Quan-do tolerados, eram mantidos em posição de humilhação social e deefetiva escravidão, sendo-Ihes confiadas apenas tarefas domésticasbanais, como asque em outra situação seriam realizadas pelas mulheres

(exceto a gravidez, claro ). Atrofiando propositalmente os braços e aspernas dos meninos, as mulheres t iravam dos homens a capacidade de

usar armas, tornando-os inofensivos à casta feminina dominante.

Dizem aslendas, em especial astransmitidas por Estrabão e DiodoroSículo,6 que as mulheres também se mutilavam. Na primeira infância,cauterizavam o seio direi to de todas as filhas. Isso lhes permitia usar obraço direito com mais facilidade, sobretudo no arremesso da lança e

no uso do arco. Apenas as mulheres usavam armas militares, e não só

defendiam o próprio país, como também invadiam as terras dos seusvizinhos de limites terr itoriais. Em tais ocasiões, tornaram-se as fun-

dadoras de cidades famosas e de santuários sagrados no Ponto, na Eóliae na Jônia. Essas expedições deram a elas ainda a oportunidade de

encontrar alguns dos heróis gregos. Guerreiros selvagens e terríveis,combatiam ora a pé, ora a cavalo. Usavam como armas a lança, o arco,

o machado duplo e a peita , um escudo em forma de meia-lua. Suasvestes, feitas com peles de animais selvagens, t inham em geral o estilodas dos cavaleiros citas, assemelhando-se (grosseiramente) a uma roupa

moderna para esquiar; como proteção para a cabeça, usavam um elmonos moldes frígios (exatamente como o usado mais tarde pela francesaMarianne ). Em seus territórios preferiam ocupar-se em criar cavalos,

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caçar e simular combates. Desde a infância treinavam asfilhas nessasatividades.

De acordo com Estrabão, uma vez por ano, durante dois meses daprimavera, as Amazonas viveriam com um grupo de homens nasmontanhas, praticando freqüentes relações sexuais no escuro danoite, a fim de que se conservasse o anonimato dos futuros pais.Depois desses encontros ocorria um sacrifício comum a Ares e à suaDeusa principal, Ártemis de Tauros que, como caçadora divina, não

escondia sua própria condição de amazona, perseguindo as cabrasselvagens e os cervos em Taigetos e Erimanto.

Desde Friedrich Creuzer, e depois dele Bachofen, os estudiosostêm concluído que esse mitologema reflete uma cultura matriarcal.De fato, diversos traços de evidência apontam as Amazonas como asfilhas favoritas da Grande Mãe anatoliana. Isso fica por conta dopapel delas como fundadoras de cidades, uma vez que a cidadesimboliza o tema da Grande Mãe. O machado duplo das Amazonasé também um símbolo da Grande Mãe e, de acordo com Usener, elese espalhava pela cultura micênica-cretense, como a cruz predominana Cristandade. Além disso, o escudo pelta, em forma de meia-lua,

assim como a fundação de templos, dos quais o mais famoso era o deÁrtemis em Éfeso, aponta para uma Deusa Mãe como fundamento.Não menos importante como evidência nesta linha de pensamento éa circunstância de a relação sexual ocorrer, segundo as lendas, semescolha do parceiro macho.

Um estudo minucioso da mitologia grega, em especial da tradiçãohelênica mais recente, mostra-a fervilhante de figuras de Amazonas.Se nem sempre são explici tamente referidas como Amazonas, podemnão obstante ser reconhecidas como tais pelo seu desapego emrelação aos homens e pelo ódio contra eles. Basta lembrar a lendadas mulheres de Lemnos. Levadas por sua rainha Hipsípile, descen-

dente da amazona Mirina, elas se livram dos maridos e dos outroshomens da ilha. recorrendo ao homicídio e assumindo depois elasmesmas o governo. Pertencem também a essa categoria as caçadorasvirgens de pés ligeiros: primeiro Atalanta, a puella pernix ( virgemligeira ) ; depois Harpálice, a traciana selvagem, cantada por Virgíl ioe cujo nome deriva de lobo predador; também a bellatrix ( mulher

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guerreira ) Camila; e Cirene - a domadora de leões - por quemApoIo se apaixonou; finalmente Britomártis, a atiradora certeira ,como a chamou Calímaco, que, perseguida durante nove meses portoda a Creta pelo rei Minos, escapou dele afinal graças ao formidávelsalto que deu para o mar. Seus nomes são numerosos, mas todasrevelam a imagem de Ártemis, a grande caçadora divina? Essasmeninas intocadas, semelhantes a ninfas e arredias, que muitas vezes

significam a ruína para o homem, só podem em geral ser dominadascom a mediação salvadora de um Deus ou Deusa.

As Amazonas e asMênades

Não é errado traçar um pararelo entre as Amazonas e as Mênadesde Baco, as tracianas selvagens. Exceção feita para Ares, o pai delas,Dioniso é a única divindade masculina que tem relacionamento(embora conflituoso) com essas mulheres. Isso não apenas porqueDioniso é umDeus de mulheres (ocasionalmente Ares também o é),nem porque ele (pelo menos sob a forma traciana) manifesta

afinidades com Ares,8 e sob o cognome de Enyalios ( o belicoso )revela traços combativos (Macrob., Sat., 1,19). Mas também porqueambos os Deuses mostram uma tendência à exaltação: Ares em suafúria agressiva, Dioníso na mania de um espírito inebriado denatureza. Finalmente, a semelhança entre osdois grupos de mulheresreside em Ártemis, que por sua vez revela traços bacânticos. Ela, aquem Homero9 chama arqueira jovial , ataca num furor deembriaguez com seu arco dourado e flechas mortais, revelando todaa sua feroz aparência de uma forma resplandecente. Os picos daselevadas montanhas tremem e as florestas sombrias estalam numruído aterrador quando as montarias de caça desabalam des-controlada mente; céu e mar estremecem; aglomeram-se à sua voltaas ninfas de pés ligeiros, os cães de caça uivantes e os gritos agudosda ca~a. Como Ártemis, Dioniso era um Deus da montaria e dacaca 1 e comparavam-se as Mênades a cães de caça, surgindo às~ , 11vezes também como caçadoras.

As Amazonas podiam transformar-se emMênades, como ocorreuem Samos. Um grupo delas, perseguido e derrotado por Dioniso em

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Éfeso, fugiu para Samos, sendo lá convertído.V Liaio ( aquele quesolta ), o grande salvador Dioniso, livrou-as das amarras de Ares, afim de aprisioná-Ias a seu modo. Suas amarras eram, porém, apenastemporárias, porque fazia parte da natureza de Dioniso que, tão logoele aparecesse no seio da raça humana e a tomasse de frenesi,desapareceria imediatamente., Outra associação das Amazonas com asMênades está inerente na

ama-de-leite de Dioniso, Hipta,13 antiga Deusa da Ásia Menor.Segundo pesquisas modernas, ela se assemelha à belicosa Hepatanatoliana, a principal Deusa do panteão hurrita; tem o caráter deumapotnia hippõn,  uma soberana dos cavalos e, de acordo com aetimologia folclórica, admite-se que os nomes das Amazonas quecontêm hippo indicam seu caráter eqüestre , e portanto mar-cia1.14

Veremos adiante 'outros paralelos entre as Amazonas e Dioniso:a androginia do Deus e das Amazonas; de um lado, um Deus emvestes esvoaçantes com cinta dupla; de outro, asmulheres montadasem seus cavalos - um quadro de duplo hermafroditismo.15

As Amazonas eAres

Quanto à origem das Amazonas, acreditava-se na antigüidade queelas fossem filhas de Ares, Deus da guerra, e da ninfa Harmonia, 16que as concebera na floresta sagrada de Acmon, perto do rioTermódon. Atribui-se em geral a origem de Harmonia a Ares eAfrodite. Como tal, torna-se ela uma versão maisjovem de Afroditeque também assume em Delfos o nome correlato de Harma .17Desse modo, a Deusa do amor é também a mãe das Amazonas.

O nome de Harmonia significaordem adequadamente estruturadae relação equilibrada daspartes de umtodo. A antiga palavra grega paraas partes de um carro de guerra, encaixadas de modo apropriado, erahanna, termo etimologicamente associadoao nome Harmonia 18Har-monia, filha da Deusa do amor e do poderoso Deus da guerra, repre-senta o fruto da união dos opostos. Maso nome Harmonia indicaainda,naturalmente, suacontrapartida latente, a desarmonia, contribuição dasua paternidade; e não sóde sua paternidade, uma vez que a antinomia

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amor/guerra estava contida originalmente na própria Grande Deusa termos psicológicos, o mesmo efeito que me leva a um estado

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chamada Ishtar, Astarte, Anat, Afrodite ou seja lá como for. Nestecontexto, Ishtar é mais conhecida como aquela que explicitamenteliga os pólos no interior de sua própria natureza. Afrodite, entretan-to, ainda carrega as marcas desses traços de caráter belicoso, tantoque existia em Esparta uma estátua de Afrodite Aréia.

Como poderíamos caracterizar este Ares furioso, o Deus emquem o aspecto belicoso da Grande Deusa surge como ânimodividido? Será ele, como parece à primeira vista, apenas o Deus domassacre, da desordem mili tar , da guerra assassina?

Existem associações etimológicas que dão testemunho.Y O nomeAres liga-se à palavra grega arsen = masculino, e a arsenoma = sementemasculina. Da raiz indo-germânica eres, é possível encontrarramificações que incluem relações de sentido como fluir ,  umidade , orvalho ; palavras significando movimento vívido e também ''vagara esmo , enfurecido , agitado . Pertencentes ainda a Ieste nexoetimológico existem termos como o escandinavo antigo ra s = marcha,corrida; o anglo-saxão roes = marcha, corrida, ataque; o alemão médio-alto rasen =enfurecer-se. Além disso, a palavra do índico antigo para touro pertence ao ramo que significa molhar , espalhar sementes .

Pertencem às variações da raiz indo-germânica eres os ramos que in-cluem palavras que significam ficar aborrecido, querer mal, portar-seagressivamente, ser invejoso, bem como as palavras védicas para poeta

e vidente, no sentido de frenesi , delírio .Essas associações etimológicas descrevem o estado psicológico da

libido na configuração de Ares: deslizando e movendo-se, de um lado,como o fecundador ativo, masculino, e como agressor destruidor deoutro. O lado positivo de Ares, a força fertilizadora, mergulha antes

. N H H ,. Ar 20nos fundamentos do lado negativo. o mo omenco a es,porém, ele é chamado a muralha do Olimpo , o pai de Niké(Vitória) , socorro de Temis (Lei) e líder dos homens mais íntegros .

Nesse hino é invocado: Concede-me a força e a coragem bem-aven-turadas para viver sem sofrimento, numa regularidade pacífica, longedos gritos dos inimigos e livre de um destino opressivo. Esse mesmoDeus, o inst igador clássico das contendas fatais , assegura a corageme força bem-aventuradas para que s e ev it e a contenda da guerra. Em

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frenético de inconsciência é tido como aquele que forma a muralhaolímpica que encerra os Deuses em briga, isto é, os opostos, entreas paredes ou temenos.

Atena

Quando se resiste e se integra no inconsciente o impulso de agressãocarregado de afeto e dominador, o Deus da sombra mostra o seu lado

positivo: as energias psíquicas destrutivas se transformam, D ea c on-cedente ( com a ajuda da Deusa ), em energias construtivas. Paraesse processo de interiorização, o combatente heróico necessita daDeusa, uma vez que a anima é o fator psicológico que contém ereflete. Este aspecto é ilustrado por Palas Atena, a filha do Paitodo-poderoso , numa cena da llíada  1 . 193s.) As palavras ofensivasde Agamenon, que então já havia roubado a amável Briseida, en-furecem Aquiles; ele pula a seus pés, a mão resvalando para a espada.Então, por um instante, Aquiles reflete: haveria de arremessar seuinimigo ao chão, ou usaria sua força para dominar a si mesmo? Nessemomento, ele sente um puxão p or tr ás . Volta a cabeça e dá com o

olhar ardente da Deusa. Diz-lhe que se ele conseguir manter acompostura, seu adversário será forçado mais tarde a dar-lhe trípl icesatisfa~o. Diante disso, Aquiles embainha a espada. Só ele viu aDeusa. 1

Este episódio destaca a qualidade prestativa da anima do herói:ela o ajuda a livrar-se do sentimento caótico através da reflexão, que

d t d  . ,,,22As· Arnse eve en en er por VIrar para tras . SIm como as azonas pertencem a seu pai, Ares, também Atena, em geral conhecida comoa guerreira virgem belicosa dos gregos micênicos, pertence a seu paiZeus.

Partênom, declara-se reiteramente obediente ao pai. Nas

Eumênides, Esquilo a faz dizer: Não me criou uma mãe, pois meucoração pertence em tudo ao masculino. O vínculo matrimonial nãoé para mim; reservo-me toda para o meu pai.

'Atena é uma mulher, mas como se fosse um homem , observaWalter Otto.23  Atena possui o espírito da ação. Faz parte da sua

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essência ligar-se aos homens, sempre pensando neles, sempre perto arquétipo antes de qualquer experiência, tendo um Ser real mas não

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deles. Ela se revela aos que se afastaram do erótico, não através daafetação, mas da austeridade e limpidez do esforço ativo.,,24

Desponta-me como merecedor de atenção o fato de este padrãoarquetípico associar-se mitologicamente a uma divindade feminina,trazendo-me à memória uma observação feita certa vez por Jung. Emresposta a uma observação de que muitos dos chamados tipos deanima (mulheres) tinham em si determinada masculinidade, disse

ele:

manifesto.27

 Militat omnis amans (todo amante é guerreiro).28 Será pormera coincidência que os poemas dos trovadores e cantadores doamor giraram em torno do tema amor-guerra? Será isso simplesmetáfora poética , ou uma realidade assustadora? Como observaJ 29~ . (I ito d Iung, o amor nao e um mero sentimento ta conceito e amor va eapenas para o homem) para a mulher, mas uma vontade de viverespantosamente não-sentimental e mesmo capaz de trazer à tona as

formas mais deprimentes de auto-sacrifício. On ne badine pas avecl'amour (não se brinca com o amor); isso se mostra verdadeiro emespecial para a Senhora Alma . Nesse sentido, vêm-nos à lembrançao fim suicida de von Kleist, o autor genial de Penthesilea.

2. A segunda fase de desenvolvimento separa o espírito marcialdo Deus original. Uma divindade masculina distinta começa a existir,no caso Ares, materializando o espírito marcial e retendo, em con-trapartida, um duplo aspecto, como já observamos.

3. Depois desta divisão em componentes distintos, a Deusa doamor Afrodite-Harmonia une-se ao Deus da Guerra. O fruto destehieros gamos, uma conjunctio oppositorum, é um novo hemafrodita,

com características femininas. Essa filha é também guerreira e des-confiada em relação aos homens.

Disse desconfiada em relação aos homens , e não hostil aoshomens , porque a hostilidade das Amazonas é uma reação contraos heróis gregos, em especial contra Teseu e Héracles. Plutarco(Teseu, 26) em especial enfatiza a recepção amigável que Teseurecebeu das Amazonas: não só elas não fugiram dele como lhe derampresentes. Ele, porém, convidou a ofertante dos presentes a subir naembarcação e, tão logo ela pôs os pés no convés, ele levantou âncora efugiu com ela. Da mesma forma Héracles: seu nono trabalho eraapossar-se do cinto da rainha das Amazonas para a princesa Admetes.

Dizia-se que a rainha ganhara o cinto do seu pai Ares. Apolodoro (5, 9,6) conta que a rainha Hipólita recebeu Héracles cordialmente e,

. sabendo do motivo da visita, prometeu-lhe o cinto. Hera, porém (comosempre), interfere. Sob asformas de uma amazona, ela espalha o boatode que Héracles quer roubar a rainha. Segue-se um combate, Héracles

Éa imagem da alma do homem. O inconsciente feminino do homem não pode,afinal, perder toda a sua aparência de masculinidade. Portanto, o homem projeta suaalma na mulher que tem em sialgo um pouco masculino. Ela pode então ser-lheamiga, não sendo a relação meramente heterossexual; trata-se também de umaamizade, e issoé essencial.25

Estágios do desenvolvimento das Amazonas

Voltando ao nosso tema principal, eu gostaria de propor algunsestágios hipotéticos de desenvolvimento que levam ao surgimento

das figuras das Amazonas.1. Em certo estágio do desenvolvimento do consciente colet ivo

surge a figura arquetípica de uma divindade hermafrodita comatributos femininos, mas que exibe também sinais de delírio marcial,traço que mais tarde se destaca como distintamente masculino. Aguerra e o amor aparecem unidos nela. Nesse estágio do consciente,as antinomias estão próximas umas das outras - condição instável e

primitiva, com oscilações de humor rápidas e inesperadas.Evidentemente, a imagem arquegpica do feminino pela qual o

homem apreende o ser da mulher possui um aspecto marcial.Porque a questão não é se de fato existiu ou não uma tribo de

mulheres guerreiras; a imagem arquetípica desses seres marciaisexiste como uma realidade psíquica e diz respeito a uma experiênciapsicológica do homem com a mulher. Éa mulher conforme a viven-ciou o homem no transcorrer de milênios. Ao mesmo tempo, porém,esta realidade existe a priori, uma vez que a Deusa se refere ao

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mata a rainha e rouba-lhe o cinto. A palavra grega deixa claro que Essa integração do masculino está concretamente expressa no apren-

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esse cinto é um ornamento militar, não um simples cinto de mulher.Como ornamento militar vê-se o cinto nas crenças folclóricas,3° amodo de emblema do poder e da autoridade; associada. a ele estátambém a idéia de prender e libertar. Em termos de psicologia, ocinto de Ares simboliza o v ín cu lo e ntre a f ilh a e o e sp írito d e g ue rra d opai; ele também faz da filha uma hermafrodita, metáfora maisreforçada ainda pela circularidade do cinto.

A partir do século V,os vasos do sul da Itália mostram uma separação

entre os temas de batalha e os temas de amizade, concil iatórios. O ladoafrodítico das Amazonas, anteriormente reprimido, manifesta-se outravez. Pelo fato de o reaparecimento do aspecto afrodítico indicar umdesenvolvimento do reino do inconsciente coletivo, podemos deduzir aocorrência de mudança semelhante no consciente colet ivo. De fato, apartir dessa época, manifesta-se um interesse crescente pelo mundo damulher; esse desenvolvimento atinge o ponto alto no períodoh I ,. 31e enístico.

Do ponto de vista da psicologia masculina, as Amazonas repre-sentam uma imagem compensadora da anima, que não está dispostaa lançar-se aos pés do homem; essa figura da alma é auto-suficiente

e independente dele. Ela violenta a imagem em voga da rolinhamansa, frágil e assustada que, sem falta, atesta a seu homem que eleé o coroamento de toda a criação. Ao entrar a Amazona, o padrão

erótico do homem, em geral não imaginativo, at inge cedo os limitesdos seus recursos.

o arquétipo de Ártemis

Pode-se encarar o mito das Amazonas como uma resposta  doarquétipo da Grande Mãe da região do Mediterrâneo central aoadvento da religião de Zeus trazida pelo invasores indo-europeus.

Ele representa uma antítese ao espírito mais patriarcal desses estran-geiros que dominaram a população autóctone e se estabeleceramcomo classe de nobreza. Por outro lado, o mitologema de cauterizaro seio direito representa o papel simbólico de uma renúncia aopuramente feminino e a integração de um componente masculino.

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dizado das tarefas do macho e no engajamento em atividades tipica-mente masculinas. Isso representa psicologicamente a integração doanimus em sua forma de poder controlado, isto é,como vontade e ação.Emma Jung escreve:

Para a mulher primitiva,ou para ajovem, ou para o que há de primitivo em todamulher, o homem, destacado pelo valor físico,toma-se a imagem do animus. Exem-plos t ípicos são os heróis das lendas, ou as celebridades desportistas de hoje, oscaubóis, os toureiros, os pilotos, etc. Para as mulheres mais exigentes, a figura do

animus é um homem que realiza ações, no sentido de que direciona sua força paraalgode grande significado.Asmodulares aqui em geralnão são nítidas, porque forçae ação se condicionam mutuamente.'

A figura de Ártemis, como tem aparecido desde os tempos deHomero, pode ser considerada produto da confluência das duascorrentes religiosas. Sua androginia secreta revela-se não só em seutraje de caçadora, mas também em sua aparência teriomórfica, comouma cadela de chifres.

W. E Otto formulou de modo insuperável a qualidade de animada Ártemis homérica:

É a vida de bri lho estelar , ardente, des lumbrante, ágil e o ser cuja extremasingularidade atrai o homem; quanto mais retraída se mostra, mais for te é a suaatração. É o ser de cristal puro, cujos veios se escondem ainda na natureza animal;simples como uma criança, e contudo imprevisfvel;feita de amabilidade suave e dadureza do diamante: virginal, distraída, solta, e todavia mostrando de repente rígidaoposição; brincalhona, dançarina, galhofeira e (antes que se dê acordo) implacavel-mente sér ia; amorosamente cuidadosa e ternamente preocupada com o sorrisomágicoque compensa a puni~o eterna, e noentanto indomável a ponto de perpetraratos terríveis e horripilantes. 3

Esta imagem eterna do feminino parodoxal corresponde em todosos detalhes à Natureza indomável, desprendida e virgem, cuja inaces-

sibil idade divina assume os traços da ka l li s ta par thenos (bela virgem).Originalmente, Ártemis era a grande soberana feminina da

natureza. No tempo de Homero, seus traços arcaicos perdem-se naobscuridade, em especial os da Grande Mãe, que dá nascimento atoda a vida, alimenta-a, e por fim recebe-a de volta em seu reino.

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Contraríamentc, o aspecto virginal e de irmã assume o primeiro plano. bem que este período juvenil de transição precisa ser até certo ponto

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E verdade que ela ainda se mostra maternal e ternamente preocupada,mas de modo diverso do que o de uma proteção à prole. Sob este aspectoparticular elaé aguardiã de todo ' 'vir -a-ser , de todos os desenvolvimen-tos futuros: ela está aolado de quem dá à luz;ensina os filhos e educa-os;protege o jovem em crescimento. Entretanto, o aspecto virginal e deirmã do seu caráter inclui também sua modéstia, dureza e crueldade.Aquilo que é tão Íntimo à humanidade - a relação entre os sexos - é

totalmente alheio a ela. Ártemis reserva sua punição mais atroz para osestupradores. Ela representa a anima  do interior cuja realização éantes psicológica do que biológica. Homero chama-a atiradora deflechas e aquela que ataca a distância ; isso implica visar e atacar ocentro essencial do eu, incluindo direcionamento para o fim,consciênciado fim, acertando na mosca e atingindo as possibilidades máximas.34

A lança da Deusa é um tellum passionis (dardo da paixão), ~oistodas as paixões significam fundamentalmente uma busca do eu. 5 Aabstenção sexual, representada por Ártemis, previne o homem con-tra um mal-entendido natural, mas fatal: com muita freqüência, suaconcepção de relacionamento com a mulher limita-se ao aspectosexual. Mas esta é a área da contraparte de Ártemis - Afrodite:relações sexuais, procriação, nascimento. Para o homem, Afrodite éa anir:w  de ~or~:~,aquela 3~ueo leva a envolvimentos externos. Delaprovem, como diz Otto, o desejo todo-poderoso que olvida omundo inteiro por causa da amada, capaz de romper os mais nobreslaços e quebrar a mais sagrada confiança, a fim de unir-se ao seuobjeto. A anima age por encantamento. Ártemis, ao contrário, atuapor inspiração e pelo elã. A raison d'être de Afrodite funda-se napresença de um parceiro; sem ele, ela é supérflua. Ártemis, porém,é uma virgem, independente e auto-suficiente.

Épreciso entender av irgindade sob dois aspectos. De um lado elatem a conotação do desapego característico do jovem, inclusive do .

devaneio irresponsável e do não-comprometimento. Esse tipo devirgindade numa mulher constitui a equivalência paraopuer-aetemusmasculino. A puella é uma hermafrodita, possui características demenino. Naturalmente, ela não tem consciência de uma união deopostos; é antes contaminada, uma mistura inconsciente. Sabe-se

sepultado.A outra forma de ser-urna-virgem surge na mulher auto-sufi-

ciente, seja ela esposa, mãe ou o q ue for. Éuma ressoa em harmoniaconsigo mesma , como define Esther Harding. 7 Isto é a essência deÁrtemis, simbolicamente compreendida. Ela não é exatamente acontra parte feminina de uma divindade masculina: sua divindadepertence a ela mesma. No nível da psicologia feminina pessoal, essa

forma de virgindade éa atitude que torna uma mulher independenteem relação aos seus deveres , àquelas crenças e práticas conven-cionais a que seu ponto de vista não acede.38 A força motivadora portrás dessa ati tude independente não é pessoal; é direcionada para umbi . I I - D 39o jeuvo transpessoa ,para uma re açao com a eusa.

Pode-se compreender agora a amazona divina, Ártemis, comouma nova imagem-condutora (Leitbild) dentro do processo de amulher tornar-se consciente. Do ponto de vista da psicologia mas-

1 · D - d . 40cu ma, a eusa representa uma encarnaçao a antma; suasemelhança de filha indica uma abordagem ao consciente pessoal,assim como Cristo, o filho, se situa mais próximo do gênero humanodo que Javé, o pai.

Vejo a próxima etapa de desenvolvimento do nosso mito exem-plificada na associação das Amazonas com Teseu, o famoso herói gregoe rei de Atenas. Pela primeira vez se ouve falar na mitologia grega deuma relação íntima entre uma dessas filhas de Ares e um homemespecífico. (Claro, a esposa de Héracles, Dejanira, tinha o nome deamazona, embora ela mesma não descendesse da raça das Amazonas,Dejanira quer dizer destruidora de homens ; Apolodoro (1. 8. 1.) dizque ela era perita em cavalos e ainda amiga da prática militar , alémde filha de Dioniso.)

Se a figura do rei reFresenta os que predominam dentro da atitudecoletiva prevalecente, 1então o casamento de Teseu indica que um

aspecto novo da alma se inseriu no consciente colet ivo, o que implicaum estilo novo de relacionamento, ou eros. Na pessoa da rainhaamazona, manifesta-se um novo estilo condutor da feminilidade; eu ochamaria de motivo de Àrtemis, entendendo por isso maior firmeza,auto-suficiência, recato e independência da essência da mulher.

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Esse casamento não durou muito; Teseu transfere seus carinhos paraa princesa cretense Fedra. Filha de Minos e Pasífae, e irmã de Ariadne,

Lembramos que na terra das Amazonas os filhos costumavam sermortos, aleijados ou mandados aos pais para serem criados. Esse

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a origem de Fedra remonta à religião-mãe que predominava antes dainvasão dos indo-europeus. Esse casamento tremendamente infeliz

provoca uma regressão: nas núpcias de Teseu com a princesa cretense,(' . dramati . d 42 N- bamazona 101 ramatícamente assassina a. ao o stante, essa

primeira associação íntima entre rei e amazona não podia passar semdeixar um sinal da sua existência. Restou o filho famoso, Hipólito, comotestemunha concreta da amazona. Através da tragédia literária de igual

nome escri ta por Eurípides, Hipóli to alcança a imortal idade, emborapudesse talvez tê-Ia ganho por conta própria, como figura típica dopueraetemus.

Agora, em vez de uma filha que se mantém em evidência, como eracostume entre asAmazonas, temos um filho. Este filho, porém, guarda os

d   d . 43-mesmos traços e carater os seus ancestrais maternos: uma atração

sem limites pela natureza indômita, com suas montanhas, florestas eanimais; uma ligação funesta com cavalos, traduzida também em seu

nome altamente significativo; uma hostil idade e fragilidade típicas desolteiro para com Afrodite; e uma fraqueza pela caça e pelos esportesem geral. Ovídio o chama viramazonius. Sua castidade, também prover-

bial na antigüidade, identifica-o com sua herança materna. Não se deveconfundir a castidade de Hipólito com a virtude cristã: ela não é

adquirida, mas 'héfdada, um estado natural de virgindade, uma espécie

de inocência natural.44 Hipólito é, pois, virgem no mesmo sentido que

o foram suas ancestrais amazonas, apesar da promiscuidade delas.Assim, muitas mulheres de hoje talvez se identifiquem com avirgindade,

mesmo depois de anos de casamento e de terem gerado filhos.

Na turalmen te, essa atitude de castidade liga-o a kallista parthenos,Ártemis, a amazona divina, para a qual toda a sua vida se norteia. Ela,por sua vez, ama o jovem como seu reflexo masculino. Este laçofatídico leva-o ao desastre. O que o fascinava nela era sem dúvida seu

misterioso caráter andrógino, que a torna feminina e masculina, mãe

e pai - portanto, também completa e portadora da proteção do eu.A plenitude psíquica aparecerá ainda para Hipólito num arquétipofeminino.

76

tratamento não se presta a prognósticos felizes para os filhos dasAmazonas.

O aspecto-fatal dessas mães - Heródoto (4,110) as chama androk-tonoi, isto é, matadora de homens - evidencia-se na cole~ão de ditos arespeito das mães espartanas transmitidos por Plutarco.4 Essas mãesparecem não ter sido outra coisa senão reprodutoras de guerreiros,produzindo filhos apenas para enviá-Ios a uma morte provável. Em certo

estágio do desenvolvimento do consciente masculino, este tipo deanima é válido: ela desperta no homem o espírito de conquista, de lutae de combate. Outro de seus aspectos materializa-se na realização deempreendimentos arriscados e perigosos, como a colonização e afundação de santuários e cidades. Neste ponto, a criação de valoresobjetivos tem sua fonte de energia no arquétipo da amazona. Nessesentido, pode-se lembrar que a conquista da América do Sul pelosespanhóis e portugueses foi em parte estimulada pela esperança de láencontrarem o reino lendário dessas mulheres guerreiras. Colombo, jádepois da sua primeira viagem falou a respeito em seus relatórios, e onome ''Amazonas'' dado ao maior rio do continente é resquício dessa

expectativa.

A Amazona e a criatividade

Se analisarmos a mutilação dos filhos das Amazonas de um ponto devista psicológico, a mãe representa o inconsciente feminino do filho,o oposto primitivo do consciente, daí derivando o motivo para amutilação. Genericamente falando, essa mutilação é uma diminuiçãoou sacrifício do princípio masculino ativo, transformando o homem numser hermafrodita - isto é, ela ativa compulsoriamente seu ladofeminino. A androginia do homem é a conseqüência do enfraquecimen-to de sua masculinidade, assim como a androginia da amazona sebaseia

na privação de uma parte da sua feminilidade.O princípio criativo personifica-se no hermafrodita, provocando

não apenas uma associação dos opostos psicológicos, mas também aunião das forças masculinas e femininas receptivas. Para a psicologia

77

masculina, o processo criativo significa aproximação da feminilidadeda pessoa, ou anima. Vemos isso ilustrado na mitologia através da

ainda digno de nota que as pesquisas modernas 50 s ituam o local denascimento da metalurgia na região montanhosa da Armênia, entre

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posição servil de Héracles diante de Ônfale, rainha da Lídia, outrafigura amazona. Em vasos pintados, vemos o herói vestindo os trajesfloridos da rainha, enquanto ela se cobre com a pele de leão dele. Elao obriga a aprender a tecer e bate-lhe com a sandália, quando nãosatisfeita com o seu trabalho.

Creio que existe uma indicação de que o nosso mito como um todoestá muito preso à fantasia criativa do inconsciente coletivo; mais

tarde, essa fantasia pressiona concretamente através do consciente.Vamos explorar esse aspecto criativo, voltando mais um pouco à terrade origem das Amazonas .

. O h ieros gamos entre Ares e Harmonia ocorreu na mata de Ácmon;este era um dos dátilos idaicos, o Pequeno Polegar (Daumling) quevivena floresta .46 Os dátilos foram osprimeiros metalúrgicos bem-co-nhecidos da Terra; aprenderam a arte da méter (Grande Mãe) idaica,de quem eram ajudantes. Acmon é a personificação da bigorna. Tem-seainda uma associação circunstancial com o rio Termódon, que significa totalmente aquecido .47 Além disso, os vizinhos mais próximos dasAmazonas, pelo Ocidente, eram os lendários calíberes, povo de fer-reiros pa r excel len ce da antigüidade. Supõe-se tenham recebido o nomede Cálibs, filho de Ares. Em grego, chalybs que dizer aço .

Os ferreiros míticos têm por tradição algum tipo de defeito físico:coxeiam, ou sã o ·pernetas ou têm um só olho; às vezes são anões ouindizivelmente feios. Esses aleijados parecem estar associados a umritual de iniciação aos mistérios da sociedade dos ferreiros.48 MirceaEliade observa em T he F org e a nd the Crucible que as divindidadesrepresentadas como inválidas (por exemplo, Hefesto) estavam as-sociadas aos estrangeiros , ao povo da montanha , aos anõessubterrâneos  - isto é, às populações montanhesas de caráter nãofamiliar, rodeadas de mistérios e muitas vezes identificadas comoferreiros poderosos, estranhos.Y Isso se mostra verdadeiro precisa-mente quanto aos calíberes: a região em torno do Termódon pônticoé em geral não apenas montanhosa e revestida de matas, comotambém rica em minérios, tendo seus habitantes praticado a arte dametalurgia (segundo Valério Flaco) em cavernas subterrâneas. É

Tauros e Cáucaso, na região mítica das Amazonas. Nos comentáriosao terceiro canto, verso 189 da Ilíada , identifica-se a rainha amazonaOtrere como a filha da ninfa Armênia e Ares. Por fim, observa-se queLísias51 apresenta as Amazonas como a única nação que armava suastropas com armas de ferro.

Nunca será demais reconhecer o significado da invenção da metalur-gia do ferro. Pela primeira vez, utensílios se tornavam tão baratos que

podiam ser facilmente adquiridos para melhoria do meio ambiente, emespecial na limpeza da terra e para lavrar o solo.52O aparecimento do

ferro mudou a face da Terra. Tanto forneceu material novo para finsmilitares e armamentos, quanto facultou à humanidade arma maispoderosa para vencer a batalha da sobrevivência. Subjaz à metalurgia apreocupação físicade conduzir a natureza incompleta à realização plenamediante um processo acelerado.53 A metalurgia é, portanto, umaespécie de proto-alquimia. Este avanço cultural pela metal urgia do ferroimplica que. o arquétipo das Amazonas representa um papel naexpansão do consciente.54

Nosso levantamento da tradição literária dessas mulheres guerreirastraz à tona características de temperamento que, em nosso meio cul-tural, chamaríamos de masculinas. Aos olhos da sociedade grega patriar-cal, a caça, a criação de cavalos, a guerra e a colonização - os mais altosvalores masculinos - suscitaram uma avaliação mais elevada dofeminino, precisamente dentro dessa escala de valores. Mas, do pontode vista feminino, tal superavaliação ocorre pela comparação com osideais masculinos, ou pela eliminação da diferença psíquica dos sexos,culturalmente estabelecida, processo, al iás, que podemos observar emnossa própria sociedade contemporânea. O propósito real deste proces-so de eliminação pode até ser um recurso para provar que ele nã o é asolução para a relação problemática dos sexos.

Como Jung afirmava em R es po sta a /6, 55o ideal masculino implicaperfeição, que é ao mesmo tempo uma ofensa básica contra oprincípio feminino de não-plenitude ou abrangência plena. Quantomais o feminino se move em direção ao masculino, diz Jung, tantomais a mulher perde a possibilidade de compensar a inclinação

78 79

masculina à perfeição. O resultado é ideal do ponto de vista mas-culino, mas é ameaçado de uma inversão total ao seu oposto.

Soluções falsas - como as levadas a cabo na Escandinávia, ondese tem uma chamada divisãode trabalho, em que o marido cuida da

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Durante o processo mútuo de assimilação, como agora o viven-ciamos, impõe-se abandonar uma multidão. de preconceitos arespeito dos papéis primitivos dos sexos. A definição padrão dadiferença entre masculinidade e feminidade é conseqüência de umaprojeção masculina sólida. Essa projeção não se encontra onde nospareceria à primeira vista, isto é, nas condições biológicas esociológicas, mas na polaridade psíquica entre Luna e Sol.

Incluem-se entre .os preconceitos mais irredutíveis da nossasociedade os que dizem respeito à relação típicados sexos.No interiordo consciente coletivo do Ocidente cristão, tem-se como aceito que ohomem é o parceiro dominador, o intrépido, o objetivo, o ativo, oagressivo.A mulher, porém, caracteriza-se e o i ps o pela subjetividade,passividade, receptividade e sensibilidade. Desse modo, alguns traçosde caráter acabam tendo aceitação em termos coletivos e se tornamconstitutivos de um sexo, sendo inapelavelmente excluídos do outro;ou, se o outro os manifestar, seu comportamento será rotulado deanormal. É muito comum, mesmo psicologicamente, aplicar o termo animus (como epíteto pejorativo) a uma mulher agressiva.

É bem possível que essa dicotomia sexual não exista; talvez ohomem e a mulher possuam traços idênticos que na nossa cultura seteriam separado em masculino e feminino; ou talvez tenha ocorridototal inversão na distinção dos sexos, como no mito das Amazonas.Os créditos da elucidação desse ponto se devem aos estudiosos deetnologia, em especial a Margaret Mead.56

Na região Norte da nossa cultura, tais preconceitos estão sendomaisou menos postos de lado. Como de praxe, em tempo de declíniodas normas culturais, tem-se espalhado um sentimento dedesorientação. Há confusão quanto ao que é masculino ou feminino.Nosso desamparo diante desse problema manifesta-se também naescassez de soluções possíveis. Duas apenas prevalecem: ou umaespécie de oblíteração do papel do sexo através da submissão damulher ao papel tradicional do homem, ou uma inversão completa,conforme é exemplificado pelo mito das Amazonas.

8

I

~casa e das crianças numa metade do dia e na outra trabalha fora -não satisfazem. Dado o estágio do nosso consciente psicológico, elassão por demais concretas. Fixam o problema num nível em que eleaparece como projeção psíquica e onde suas soluções são literais. Oque se pede é uma integração dos sexos opostos. E issoexige umatransformação amadurecida da pessoa como um todo, através de umaexpansão do consciente, e não uma conversão sexual a um papel

oposto, uma enantiodromia, tão típica nos conflitos puramente in-conscientes.Pode-se ver umamaterializaçãodesseproblema namudança recente

do porte físico, especialmente entre os jovens, e com o reforço dosmodelos de roupas. É impressionante a aproximação ao fenótipo domenino-jovem. Presume-se que estamos mergulhando numa era dehermafroditas. Significa isso que veremos expressões concretas dosestágios preliminares de uma integração maior do animus e da animade cada indivíduo?Mas, não será uma realidade psíquicamalcompreen-didaexpressando-se concretamente, manifestação físicadeumprocessoda alma,em que essasmudanças físicasocorrem pelo deslocamento de

energias psíquicas?Nossa época mostra-se aparentemente disposta de modo favorávelao que acimadescrevicomotipofemininode Ártemis. Só que esse tiponão tem ummodelo pronto à mão, e asmulheres de hoje, influenciadaspor Ártemis, em muitos casosestão apenas possuídasdo animus, o quepode ser também um estágio transitório, cujo propósito é estimular oconsciente, criando uma desarmonia necessária no interior de umaatitude passiva. O protótipo persistente e auto-afirmativo da nossacultura continua sendo o da gestante e mãe. Ao lado desta idée force,todas as outras esmaecem ou se mostram, a um exame mais atento,simples aproximações do espírito patriarcal. Por isso, as mulheres aquem a maternidade seria uma segunda opção, tornam-se de algummodo mães como escolha principal, apenas porque maternidade efeminidade ainda se equivalem. Para essas mulheres, seria altamentevantajoso compreender a noção de que elas poderiam se colocar narealidade sob a estrela da deusa da Caça; aceitar esse aspecto da

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personalidade transcendente é para elas uma precondição para aposterior experiência do eros afrodítico.

do consciente, há de intervir neste processo fatídico? Sou levado aimaginar que, através da constelação de uma feminidade representada

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Ártemis não é mãe no sentido de dar à luz, mas sim de proteger aplanta nova, a coisa nova que mal começa a se desenvolver. Isto éverdade tanto no sentido concreto como no espiritual. A forma decomportamento que se espera através dela inclui também um ímpetono reino do sentimento. Eu o chamaria de eros artemístico . Essaespécie de eros é condição decisiva para o desenvolvimento darelação do homem com a anima. Uma condição demasiadamentepassivo-inconsciente da mulher o leva de modo compensatório a umativismo por demais extrovertido, que lhe deixa a alma esquecida.

Todavia, tocamos aqui uma dificuldade inesperada, profunda. Já naantigüidade, asduas deusas, Afrodite e Ártemis, num sentido metafísicode mãe e filha, cada uma padrão arquetípico da feminidade, posicíonam-se hostilmente uma em relação à outra. O ódio que mutuamente nutrematinge limite extremo no Hipólito de Eurípides. Este conflito entre aspersona~ens dominadoras femininas constitui a essência rel igiosa datragédia. 7 Como Javé em Jó, as deusas fêmeas querem permanecerinconscientes dos seus aspectos sombrios. Dando razão à catástrofe,Ártemis diz o seguinte no fim da peça:

Porque foi Afrodite que, para satisfazer seu ressentimento, quis que tudo issoacontecesse; e existe uma lei entre os Deuses segundo a qual nenhum de nós podetentar frustrar opropósito do outro, mas deve deixâ-lo à vontade. 58

Se me fosse perguntado para que tipo de homem o eros artemísticoé condição essencial de desenvolvimento da anima, eu responderiafazendo referência a Hipóli to: sobretudo ao puer aetemus, cuja basereligiosa M.-L. von Franz traçou de modo tão expressivo.59 EmEurípides, os confli tos entre deuses perdem a determinação, deixan-do assim opuer aetemus sem solução para o seu problema. Tem-se aío provável porquê da encarnaçâo da imagem feminina de Deus, e eoipso da anima, vir se mantendo mais ou menos desde a antigüidade.Í''

O que dissemos sobre a maternidade leva a uma reflexão adicional.Ao lado da ameaça de aniquilação através de uma guerra atômica equímica, a explosão demográfica é a nossa ameaça mais premente. Seráexagero supor que a própria natureza, que compensa a falta de instinto

 

pelo arquétipo da caçadora divina, o leitmotiv da maternidade até agoraobstinadamen te predominante talvez se torne obsoleto. Talvez até umaboa parte do que em psicoterapia chamamos complexo negativo demãe nas mulheres perca a importância, uma vez que nosso conscientese encontra ainda cheio de preconceitos para que possa ver Ártemis ea amazona nas bases arquetípicas.

(Traduzido do alemão [para o inglês] por Murray Stein.)

NOTAS

1. Munique, Museum antiker Kleinkunst, NQ2688(cerca de 450 a.Ci); cf. também, Kerényi,The Heroes of the Greeks, Nova York, 1959,Ilustração 73.

2. Toepffer (em Pauly, Realencyc/opii die d . Cl ass. Altertumswissensch., vol. 1 , sob o t ítulo  Amazonas ) observa que este é um dos problemas mais difíceis e mais discutidos damitologia grega.

3 . Cf. t ambém R Henning, Über die voraussi chtl ich võlkerkundl ichen Grundlagen der

Amazonensagen und deren Verbrei tung , em Zeitschrift für Ethnologie 72 (1940), pp.362-71;e A. Rosenthal, A ilha das Amazonas: a maravilha dosviajantes , em Joumal ofthe Warburg and Counauld Institute, I, 1937.

4. Em Kritische Untersuchungen, I,Berlim, 1852,p. 275.5. Homero , Iliada, L. 3,184ss;L. 6, 186.

6. Diodoro Sículo 11 , 45, lss; Est rabão 11, 5 , 1 ; sobre a fundação do templo em Éfeso:Calímaco, Hymn inDian, 237ss.

7. cr . KHoenn,Ánemis, Zurique, 1946,pp. 19,28,143.8. Der Kleine Pauly, Lexikon der Antike, vol. 2,Stuttgart, 1%7;cf. artigo sobre Dioniso .9. Homero, Hym. 27.

10. Eurípides, Bacchae, 1189ss.

11. cr . W.F. Otto, Dionysus, Bloomington, 1956,p. 109.12. Plutarco, Quaest. Graec.56.

13. KJeine Pauly.

14. Lísias (Epitáfio 4),destacando-Ihes o valor e a bravura, afirma que asAmazonas inven-

taram a equitação e foram o único povo a usar armas de ferro.15. M.Delcourt, Hermaphrodite, Londres, 1961,p.26.16. Apolodoro de Rodes 1 1, 990ss.17. Plutarco, Amat. 23.

18. J. Wiesner, Olympos, Darmstadt, 1960,p. 185.Etimologicamente, harmonia = unificação,junção, vínculo, ordem. O verbo derivado harmonizo = juntar, formar, modelar. A raiz

83

básica é a indo-gerrnânica comum QT= junt ar, uni r. Em ger al , essa sí laba indica aunificação de coisas opostas ou diferentesnum todo ordenado. A palavra harma também

40. M.-L von Franz, A Psychologica/ Interpre ta tion of the Golden Ass of Apuleius, Spring

Publications, Cap. V, p. 13.41. C. G. Jung, CWI4, § 349ss.

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está associada a essa raiz = carro, especialmente car ro de guer ra, g rupo (de cavalos ).

Ainda: as palavras latinas arma = armas, armadura; armentum = manada, rebanho; do

arm.y-anna = próprio, adequado; o índico a nt igo inna = frente, p ro a d e b arco ; d o l at im

armus = an tebraço; do gótico arms = braço. Cf. H. Frisk, Griechisches EtymologischesUVrterbuch, Heildelbe rg , 1960,  harmonia .

19. Cf. J. Pokorny, Indogermanisches Etymo log is ch es Wõrterbuch, Berna , 1959, p. 336s.

20. Homero, Hym. 8.

21. Homero, Iliada, L 1 ,193s s. Cf. também W. F. Otto, TheHomeric Gods, Nova York, 1954,

p.48.22. C. G. Jung, CW8, §M1.

23. OUo, Gods (tradução minha do alemão), p . 24.M. lbid.25. C. G. Jung, Childrens'Dreams Seminar, Zurique, 1939-40, edição particular limitada, p. 65.

26. C. G. Jung, CW7, §298ss.

27. C. G. Jung, CW9/2, §41; cf. também Emma Jung e M.-L von Franz, Die Graalslegendeinpsychologischer Sicht, Zurique, 1960, pp. 66ss.

28. Ovídio,Amor., 1,9,1.

29. C. G. Jung, CWI0, §261 ss.30. Handwõnerbuch des deutschen Aberglaubens, vol. 3 , Ber lim, 1930/31, cf. artigo sobre

 Gürtel .

31. As Amazonas representam não só o exagero de uma poss ib il id ade l at en te no int erior da

psique feminina, mas também a i nversão absoluta dos papéis sexuais pr edominantes na

Grécia clássica. As mulheres g reg as e ram mai s ou meno s e sc rav iz ada s: s ua rel aç ão com a

família, com o marido (qu e el as por ce rto nã o es colhi am) e sua pos ição na soc iedade

seguiam o mesmo padrão. Sem chance para educar-se, v iv iam sob virtual prisão doméstica.

Se acontec ia de torna r-se s upé rf lu a n a famíl ia , is to é , s em chance d e c asar-se, era vendida

como escrava pelo pai ou pel o irmão. Se essa probabilidade fosse aparente já ao nascer, o

pai podia recusar-se a reconhecê-Ia, confiando-a à morte. A soci edade grega do período

clássico não ofe recia oportun id ad e d e ind ep end ênc ia ou d e au to -su fi ci ên ci a a uma mulher

adulta de boa famíl ia ; n ão h av ia meio-t ermo ent re tornar- se mãe de uma ninhada de filhos

ou converter-se em ve lha s ol te irona, que seri a um peso par a os out ros e uma aberr ação da

família. Essa a ti tude repress iva da soc iedade implica idêntica fal ta de rel ac io namen to c om

o mundo int er io r do inconsc ie nte femin ino, q ue por s ua vez r eage de modo r ejeitador,

agressivo, salientando assim sua autonomia diante do consciente. (Cf. U. E. Pao li, Di e Frau

im alten Hei/as, Berna , 1955, pp. 40ss.)

32. Emma Jung, Animus and Anima [An ima e Animus. Editora Cultrix, São Paulo. 1990.]

Spring Publications, 1957, p. 3.

3 3. OUo , Gods ( tradução minha do a lemão), p p. 8 9-90.

34. E. Jung e von F ran z, p. 87.

35. Cf. C. G. Jung, CWI6, § 353ss.3 6. OUo , Gods, p. 96.

37. E. Harding, Women's Mysteries, Nova York, 1955, p.I25.

38. lbid.39. lbid, p. 126.

42. Apolodoro, Epit. 1. 17.

43. Cf. W. Fauth, Hippolytos und Phaidra, Abhandl. d. Akad. d. Wiss. u. d . Lit., Mainz, 1958,

p.574.44. K. Kerényi,ApoUon, Düssel dorf , 1953, p. 58.

45. P lu ta rco, Mor. 24c seq.

46. Cf. B . Hemberg, D ie idã is chen Daktylen , em Eranos 50 (1952), pp. 44-59.

47. Cf. R Malamud,  Zum 'Hippoly to s' d es Eur ip id es , D ip loma Thesis, C. G . J ung Institute,

Zurique , 1968.

48. M. Eliade, The Forge and the Crucible,Londres, 1 962 , p. 105.

49. lbid.50. R J. Fomes, Studies inAncient Technology, vol. 9 ,L eidan , 1 964 , p. 216.

51. Epit áf io 4.52 . Forbes , v ol. 8, p.3O.

53. Eliade.54. C. G. Jung, CW8, § 111.

55. C. G. Jung, CW11, § 627.

56. M. Mead, Sex and Temperamentin ThreePtimitiv e S o ci et ie s, p . 205.

57. Malamud.

58. Eurípides, Hippolytus, Penguin Books , 1953, p . 66, 1327-30.

59. M.-L von Franz,  Über religiõse Hintergründe des Puer-Aeternus-Problems , em TheArchetype, Basilé ia , 1964.

60. M.-L von Fr anz, Aurora Consurgens,Zurique , 1957, p. 174.

84 85

.rÇ)

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oRAPTO DEDEMM R/PERSÉFONE EA

NEUROSE

Patricia Berry(Zurique)

Interesso-me particularmente pelo mito para entender sua atuação navida das pessoas, na prática psicológica e na psicopatologia. Jung deuextraordinária fundamentação a esses aspectos todos através da suacompreensão original do mito como componente das psicoses. Mais

tarde, em S ímbo lo de t ransformação , traçou paralelos entre osprocessosque ocorrem na mitologia e na esquiwfreni/pretendo fazer o mesmotipo de paralelos entre a mitologia e os processos mais enfadonhos de

~~uroses - em particular as ?efesas e as resistências/Isso me p~~eceutil, uma vez que em geral lidamos com esses pr&essos neuróticospreliminarmente, seja em termos de mecanismos de defesa

freudianos, seja segundo uma interpretação personalista do processo(reações de transferência). Analisar essas defesas também arquetipica-

mente propicia um embasamento e uma dimensão adicionais, além deajudar a estender a percepção que Jung teve das psicoses, e mesmo de

todos os fenômenos psíquicos, aos trabalhos mais específicos de padrões

neuróticos. Parece rém, ue se trata antes de situar de uma formamais-pre cis , onde determinados adrões se configuram arquetipíca-

menn sendo talvez até exi ências de um nu o.Deméter ~~plo de figura mltíCãCõíÍl evidências de compor-

tamen~o1Íêuróti :0.)Ao abordar essa figura e esse mito, porém, não

estarei fazendo uma interpretação ; não estarei lidando com os

eventos da história, numa seqüência determinada, tornando-oscoerentes e  ajustados , como numa narração ou relato de cas< Farei

antes uma leitura da história como uma imagem mítica;' como se não

houvesse começ7em fim - como se tudo acontecesse de repentee para sempre.

S~  m l~ ( ry t , , , 87

A consciência de Deméter tem a ver com a vida , a vida dasestações, o crescimento das sementes, a vegetação dos campos. Ela

no reino de Perséfone - onde essência é o Não-visto , a sementeoculta da romã, ou o invisível .1 esse modo notar as diferen as do

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é uma mãe da terra,2 mas, sob certo aspecto importante, limitada: elasofre uma perda extrema no seio da própria maternidade: a violaçãoe o rapto da filha Perséfone, Além disso, essa perda é apoiada pelamaior e mais velha mãe da terra, Gaia (que cultiva aflor sedutorapara des - como se a natureza no nível de Gaia entendesse a~olação como necessar· :3

Para saber o que esta atitude de Gaia implica, precisamos ter

alguma idéia do que vem a ser uma violação no mundo inferior.Todavia, não pretendemos fazer grandes incursões mitológicas noque tange ao mundo inferior - até porque isso já foi feito em outroponto. Seia-rne dado a ui dizer a enas gue entendo o mundoinferior como o reino das almas. Efetivamente, para os gregos deHomero, a psique só era encontrada no Hades. O mundo inferior-

\ não a vida - era o lugar da psique. Poderíamos facilmente inferirdaqui um dualismo e ver o mundo inferior como a alma, e o mundoda superfície como a vida física ou mundana. Por isso, é importanteter em mente que a mãe da terra, Gaia, que dá suporte a toda vidafísica, era ao mesmo tempo cúmplice de Hades: ara ela o mundo

inferior é também Rarte da natureza. Deste ponto de v' e Gaia,podemos, pois, ver Deméter e Perséfone como uma CÍupJ , isto é, .como aspectos recíprocos -de sorte que, quando uma delas faz algo,a outra também partilha dessa ação.5

A fim de cuidar do crescimento psíquico e da vegetação,Dernéter/Perséfone precisa discriminá-Ia. Ou talvez o cuidado deDeméter seja uma discriminação natural, embora muito provavel-mente não na linha de Lineu (gênero, espécie e tipo), e mais emtermos de lugar e estação, o que cresce, onde e quando, Os objetosnaturais são exigentes, exigem solo específico, condições climáticase cuidados. Com esse tipo de discriminação, os produtos naturaisdistinguem-se visivelmente uns dos outros, mesmo quando crescemum ao lado do outro. Enquanto Perséfone está em casa com asessências do mundo inferior, ela percebe as diferenças do mundo ~superfície.6 Com isso entendo que a percepção das diferenças noreino da natureza de Deméter é também uma percepção de essência

. mundo da superfície é e o mesmo tem o, uma perce ão através~e uma consciência.do i. ·siv..eiL . undo inferior. Assim, o que

temos chamado de per~ção não tem o mesmo sentido comum dessa   J   Ppalavra, mas o de u ra rofundament aos objetos concretos, per- ~

(

cebendo-os como germinações do reino de Hades. Desta perspectiva,/o mundo da natureza concreta, ao contrário da sua negação mítica,é a verdadeira forma e expressão da alma. Deméter/Perséfone vê tão

profundamente o interior dos objetos que acaba vendo atravésdeles.fE quando se enxerga com tanta profundidade a natureza, avida que se renova acima do solo assume um significado mais intensosob a terr~ A renovação e os seus frutos são significativos, e o quese faz com eles é também significativo.

Tentemos chegar um pouco mais perto desse sentido designifícância.Antes de tudo, é mais profundo, mais perceptivo do que um entusias-mo pela natureza - uma robusta garota da Comuna, com saia longa,estática diante do seu embrião de trigo. Eu gostaria de saber: essaAtração e essa aproximação prodigiosa da natureza é de fato ela?

mal De' é e tudo uma Deusa de ressiva. De um lado, é

verdade, ela pula de contentamento orgíaco quando a filha retoma.i.mas isso dura pouco. Seu jeito de ser básico, subjacente, é marcada-mente terreno e infraterreno. Seu entusiasmo não dura muito - nemcreio seja ela alguém que busque significado e verdade . Ela procuraapenas pela filha - esse componente do mundo inferior que lhepe ence pelo nascimento. E desse parentesco provém o seu significado,e o significado de tudo o que ela faz. Cozinhe ela com essa espécie de

ingrediente ou com outra, provoca uma diferença - não porque es-tejamos fadados a dissipar os efeitos não-naturais da civilização, masporque o gosto é diferente - e isso fa z diferença. Mas aqui também asignificância nada tem a ver com sentido. Não é porque alguma tradição

de sentido se prende ao tomilho e outro ao rosmaninho, e sim porque,

~

ara o gosto de Deméter, eles são sensualmente diferentes. E osmomentos sensuais, diários da vida, quando vistos em termos de vidainferior (morte), tomam-se distintos, separados, tomando significativocada momento de sensação. Não se consegue vivenciar avida apenas

  H J ~ -1 J,~J0 -~ 89

1~~-j~\)J

como vida --..:.senão transformando-se, fazendo. A vida adquire sig-

nificado pelos sentidos. Assim, os sentidos se tornam plenamenteComo tais defesas apareceriam no modo de ser da psique de

Deméter? Antes de mais nada, seu verdadeiro sofrimento talvez se

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doadores de vida, porque o ato de sentir atinge e incorpora o mundoinferior.

Precisam s orém, retomar à nossa rinci ai linha de reflexão -- -Neurose -, porque uma das curiosidades a respeito dos arquéfípos é ue e es surgem com a mesma fãCifiOãae tanto patologicamen e

(anormalmente) como normalmente. &sa normalidade/anor:-mãliOãO o arquetipo é uma noção u 1lsslma para a neurose e sua

tera 1 . imp ica que num único e mesmo padrão de arquétipo ac a-setanto a patologia quanto sua terapir'Se levarmos a sério a tradicionalmáxima de que o semelhante cura o semelhante - então, assim quereconhecemos um padrão arquetípico, imediatamente adquirimosboa noção de como curá-Ia. Ou seja, tratamos dele a part ir dele mesmo- aprofundando-o, expandindo-o (de tal modo que ele nãopermaneça mais tão estreitamente preso) e dando-lhe substância,corpo (de maneira que ele possa então começar a carregar o que estátentando expressar). Mas o problema de qualquer sintoma neuróticoé que ele não só exprime algo (seu telos, propósito intencional , oufinalidade, como ochamaria Jung), como ainda procura tornar certo

que jamais se alcança esse objetivo (como diria Adler).Para uma explicação dessa situação autodestrutiva , poderíamos

lembrar a descrição que Freud fez do sintoma como uma solução decompromisso. O sintoma expressa de fato o conteúdo reprimido. Essa

expressão, porém, é parcial, uma espécie de toque nas forças incons-. cientes, possibilitando-lhes serem contidas no ou pelo sintoma. A

(repressão total seria o risco de um col~pso total , mas a repr~são p~r~ialpermite a segurança de um comprormsso, de uma contenção neurotica,pessa forma. o sintoma atua como uma válvula de segurança. pos-sibilitando a existência contínua do repriInido. Por isso o estigma realde uma neurose está em ela se valer de si mesma para defender-se de si

mesma, empregando superficialmente seus próprios conteúdos paraimpedir qualquer intromissão mais profunda nesses conteúdos.Poderíamos inverter a máxima de o semelhante cura o semelhante: 'para que signifique também: o semelhante defende-se do semelhante .

90

manifeste neuroticamente; talvez assuma a característica de sofrimen-to pelo sofrimento , ou de que a miséria é preferível a um sofrimentomaior.

No entanto, é preciso cautela, porque essa necessidade de sofrer étambém absolutamente autêntica. Existe uma razão teleológica paraela. Deméter precisa de sua filha do mundo inferior, e é através dosofrimento que essa necessidade se manifesta sintomaticamente. Seu

sofrimento é seu compromisso com o rapto: seu modo de vívenciá-Io ede recusá-Ia. e outras alavras o ra to de Perséfone é vivenciad

  - -  

como a neurose de Deméter, E essa neurose encontra-se presente demodo contínuo no arquétipo. Uma vezque osmitossão eternos ejamaisseresolvem definitivamente na vida, podemos esperar que certas partesdas nossas personalidades estejam numa encenação perpétua de al-umas manias míticas um tanto desagradáveis.

.Quanâo em sintonia com L>eméter e recebenôo seus dons. prêcisotamBém à es era de dificuldâdes correIa tas e dê tenoências.

.[inconscientes desse arquétipo. E então minha necessidade será aindaa de sempre me aprofundar em direção ao Hades, o reino da minha

filha. Sofro, e no entanto resisto - porque isso também faz parte dopadrão mítico. Não existe nenhum caminho ora de um mito: exist

. a ofii o em seu inte iô r.

Mencionamos sofrimento orno sendo ele próprio uma medidadefensiva. Podemos a lia essa afirmação de modo a nela incluir ofenômeno descrito por Freud como luto. Freud vê o luto como umaagressão contra o objeto perdido, voltado agora para dentro. Dessa

\

forma, eu me puno e, acrescentaria, puno os outros por meio damudança de posição. (Por exemplo, a pessoa enlutada ou deprimidaque pune outras, ou envenena o ambiente com seu humor.)

Quando se olha o mecanismo freudiano da agressão interiorizada

sob um ppt~ mais junguiana, percebe-se de imediato que aagressão 'ntrovert~ cumpre exatamente a mesma função que a

00ÇãOextroverti â da agressão de Freud haveria de realizar. Porque

o que se pune é o componente arquetípico, a filha de Perséfone, onde

quer qu~ela apareça, interna ou externamente. Uma Dcmét::

chorosa que perdeu a filha, odeia portanto a filha e todo esse aparatodo mundo inferior que a filha agora representa. Neuroticamente, o

provavelmente ela está fazendo de uma forma imperfeita, apenas com,o seu lado superficial). Na verdade, asnecessidades da alma de Deméter

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consciente de Deméter agarra-se com um ardor cada vez maior (e_destrutivo) ao mundo superior, ne&ando de forma veemente osa.tributos do mundo inferior - como, por exemplo, a precisão (a casavira uma balbúrdia), o(discernimento (uma coisa é tão boa quanto_outra - todos os sentimentos, todas as sensações têm igual valor, e.-I2ortanto valor nenhum), a noção ôe essência (as coisas se tornillP.valiosas pelos seus atributos superficiais, de preferência aos do

mundo inferior),~ão de significado (as coisas comuns Qerdem oFontato com os Deuses, com o arguetípico, e se convertem em

 apenas isso ).O consciente de Deméter se deprime, sendo possível ver nessa

de~ressão muitos atributos da psiquiatria clássica: ela deixa de banhar-se, O de comer,l1 disfarça sua beleza,12 nega o futuro (suas chances derejuvenescimento e produtividade), volta às tarefas serviçais, aquém dassuas habilidades 13(ou passa a ver suas tarefas como serviçais), torna-senarcisista 14e preocupada consigo mesma, começa a ver (e efetivamenteengendra) catástrofes mundiais, e chora sem parar. A depressão doconsciente de Deméter manifesta-se a par de certo ascetismo ávido

(nada de banhos, comidas, sensualidade) e autonegação. Mas, ao ladodessa avidez, ela chora com ira vã e insaciável  .15 Dessa maneira, suaumidade é com efeito seca, 16um excesso de lágrimas que não umedecenem gera fluxo ou conexão. Não existe anima nessa aridez. É umaespécie de aguaceiro permanente que, em vez de suprir o solo, desgas-ta-o, deixando-o cada vez mais seco e menos fértil.

liOutra peculiaridade da depressão de Deméter é sua tendência a

J~scar refúgio entre os homens, no mundo social, na cidade.17

Elanão sai sozinha pelas florestas, como talvez Ártemis, nem tentaprovar sua auto-suficiência, como Hera, nem se lança numa aventuraamorosa, como Afrodite. Corta antes os liames com os Deuses eprocura refúgio na pólis , no mundo dos eventos cotidianos, na realidade . Assim ela pode defender-se do seu próprio aprofun-damento, valendo-se das desculpas da realidade . Voltar-se para suaalma vira coisa não prática . Ela não tem tempo. Não lhe dizrespeito. Precisa cuidar dos filhos e da casa (coisas que, de todo modo,

r começam a enveredar por caminhos de fato impraticáveisf e anti-sociais. Talvez ela expresse essas necessidades em tentativas de suicídios(interpretando a morte como Hades), em conversão religiosa (retratan-do a necessidade de espíri to), ou abandonando a família, destruindoo casamento e vivendo em desespero alguma experiência fugaz ou umcaso amoroso (numa representação deslocada de sua filha Perséfone) .

Assim como é o narcisismo de Perséfone (a flor Narciso), na lenda

homérica, que leva Hades a precipitar-se sobre ela, da mesma forma onarcisismo de Deméter ajuda a ligar, apesar de enfraquecê-Ias, as forçasdo mundo inferior. Vemos isso no seu sofrimento ilimitado e em boaparte auto-indulgente. Suas lágrimas áridas debilitam o solo, seussofrimentos geram sofrimento para todo o mundo, sua lamentação, maislarnentações: cada vez mais, como se seu sofrer se alimentasse de sipróprio - e, no entanto, onde está o sustento para esse alimentar-se,uma vez que avida cotidiana vai de mal a pior? É como se essa repetiçãoJosse a mímica de outra característica do mundo inferior - o ciclointerminável pelo qual se expressa a essênciª (por exemplo: Íxion naroda, Sísifo e sua pedra, etc).19 No mundo superior, essa essência

infinita, cíclica, expressa-se como repetição.

20

Emoções aparentementesem nexo são compelidas a~~repetifem esêfêpetireminfrutiferamente,buscando se conectarefiicom a essência que está abaixo delas, o reinode Hades.  >:

Consiê1~rando que a depressão de Deméter a leva em direção aore·m( do homem, em vez de afastá-Ia dele, essa sua espécie deegressão a mantém por perto, não cuidando de suas ligações com o

divino. Perdendo o contato com o que ela é - isto é, uma Deusa -ela avilta o lado pessoal, a ponto de os pequenos atropelos da vidaassumirem enorme importância. Dar importância ao que é pequenoinfla-o de significado. O retraimen to de Deméter torna -se de fa to umadefesa contra as profundezas divinas, resultando numa contigüidadebanal, vil e excessivamente pessoal. Surge um feitiç021 e o pessoal se

torna presunçoso, enquanto Deméter acomoda-se em seu templo suntuoso ,22stifocada pelos eventos mundanos, excluída do Olim-po ,

<,

93

Desde que separada tanto do Olimpoquanto doHades, este padrãoneurótico pode efetivamente tomar-se bastante destrutivo. A mun-

violentada. Numa delas, fugindo aos avanços de Posídon,25 ela setransforma numa égua - opção curiosa de transformação, porquanto

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danidade de Deméter toma-se agora o peso~~ sufoca todo potencialde vida. Ela esconde as sementes no solo. YEla não só se exclui doOlimpo, como também, de agora ~ Iliante, toda a conexão entre ohomem e osDeuses ficaameaçada?:YOconsciente é niveladoaopasto,ao horizontal, e o espírito permanece abandonado embaixoda terra. Aexistência prossegue árida e estéril. Separada do Hades, Deméterrepresenta agora ajIlortalidade dele. Mas, à sua maneira, porque é a

terra que ela matatEncontrar e juntar-se nF-vamentecom a filha vivaconverte-se numa sobrevivência psíquica./  

~ Mas, o que vem a ser esse encontro? Ou, em termos terapêuticos, yqquais são os seus pré-requisitos necessáriosj/Exatarnente porque

Deméter sofre intensamente e provoca sofrimento nos outros, nãose tem garantia de mudança futurcyt:xcluída a graça, ou a remissãoespontânea, ela poderia permanecer assim em sua neurose parasempre. Claro que outro arquétipo poderia constelar, aliviando-anesse processo. Mas um alívio como esse seria antes um derivativo

.tipo  cura pelo repouso , ou uma  mudança de cenário , e evitariaa análise das profundezas do seu próprio arquétipo particular. A

espéci _ ue de fato nos interessa é a que viesse ao indo seu ró rio ar uéti o do íntimo da sua u stancia. Para tantõ

r

seria necessário rimeiro ue sua r ep'ressao e comgromisso fracás-.sasse. ' ]tfeclso ue o so fim consciente ôe einsuDorfável Da agui que o carrega, isto é, pafa a neurose dela.   I A .

intencionalidade do mundo inferior dos seus sintomas precisa tornar-se excessivapara a sua repressão de superfície.

Ora, como o consciente de Deméter sentiria esse fracasso? Ébempossível que o sen~i c o uma violação. É bem possível quesentisse como se ai lhe e tivesse acontecendo - pois é a últimacoisa que ela sente q quer, exatamente aquilo de que vem se

defendendo. Assim,a força fálica lhe explode de cima, através da baseda sua consciência, das suas defesas terrenas, e toma avirgem acalen-

r rtada no regaço maternal, a inocência da vida.

/   J De fato, o consciente de Deméter tende achamar a sio rapto e aI   ~OlênCia. Conhecemos duas histórias em que a própria Deméter é

94

nessas condições a violação pode se consumar de modo absolutamentenatural: Posídon, sob sua aparência de cavalo, e ela, submissamente,como égua. A segunda narrativa é a que Deméter forja para explicarsuasituação lamentável àsfilhasde Céleo.26 E como toda narrativa, estacontém algumaverdade psicológica.Nela, Deméter tece uma fantasiacomplicada de como foi raptada por piratas e levada para longe dapátria. Quase com certeza, poderíamos dizer que, r es ao ra to ô

filha, Beméter foi a caô oa sua raiz na ~' o . interessanteporém é que ela constrói issocomoum~~o horizont Ide Cretapara 'Iõrico), e não como ummovimen vertic 1,. nstra maisprecisamente o rapto da filha.O conscient emétervisualiza maisuma vez os eventos como ocorrendo sobre e ao longo da superfície, enão sob a óptica de uma mudança radical e horrível de perspectiva queenxergaria essesmesmosacontecimentos como ocorrendo embaixo,nasprofundezas.

Todavia, aceitar nossa própria violação, de~seF undo inferior,não é fácil, já que, por definição, isso tem qu nos contecer e paraaquela parte de nós mais inviolável - a virge . eja-me permitido

dar os contornos disso: não é bem qualquer virgem que constela ou1 . precisa da violação, mas precipuamente Perséfone, cuja inocênciai assoladora e espírito de galhofa algo inconsciente a levam aos reinos

do mundo inferior, sejam eles quais forem. Para outras figuras vir-

[

gens, como as deusas Ártemis e Atena, a violação seria umamonstruosidade arquetípica, uma destruição real do arquétipo, e~um mergulho dentro dele. Em termos práticos, poderíamos colocar.acoisaassim:aviolaç-ªº éumhorror;J)uando,J)Qrém, cQnsteJacta,_de_um,'eito ou de outro, s~ for ass<?Ciad~oar uéti peméterlPersgone_-

/. então ela se torna não a enas ssível mas absoluta ente ne sária.~eferimos como é reciso que a violação sej intolerá para o

~onsciente de Derni ter. Poderíamos-: escentar a a uma segundacondição: que seja' com reensível 27 uando a violação acontecepara Perséfone de Deméter, ela não pode ter apoio sob esse ato. Elanão pode compreender [estar embaixo, em inglês, under-stand].Como  viço verde de Deméter , ela lida com a vegetação do mundo

95

horizontal. Com a violação, sua perspectiva transfere-se igualmentepara o vertical, ocupando agora as profundezas e as alturas, e o

ação da sonhadora tipo Deméter - o ato de apanhar alimentos _constela o violentador (sombrio) do mundo inferior . Para defender-

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caminho do espírito. Sem o sentido vertical, Deméter não pode permanecer embaixo . Ela não se pode mover em termos de profun-dezas ou nivelamentos. Não apenas profundeza como o incons-ciente , mas potencialidade de profundeza, como uma semente acada instante da vida - suas implicações metafóricas embaixo do seusentido aparente. Todavia, esta limitação é natural, necessária.Qualquer tipo de pseudo-compreensão que ajude a explicar-lhe a

situação, ou tornar essa situação racional, sob a forma de repressão,dando-lhe uma vert icalidade demasiado fácil, haveria de bloquearsua participação no arquétipo e nas possibilidades profundas dessearquétipo.

Isso tem sustentado nosso modo de tratar as ansiedades do mundoinferior e os temas dos sonhos. Quando tais ameaças são consteladas, apior interpretação que se poderia fazer, à luz do mitoDeméter/Perséfone, seria a de uma avaliação de animus destrutivoou de sombra negativa a respeito dessas figuras. Semelhante atitudeacabaria por aprisionar a sonhadora em seu estado virginal , chegando

/  / / J até a confi.má-Ianuma análise racional do mundo da superfície, superior;

  f r c l a r o que, ao fazer tais interpretações, assumimos que ~rseguidoi)(I sinistro está procurando destruir a feminidade da pessoa que sonha.Nossa intenção é de f9 to humanitária e, acreditamos, inteiramentefavorável ao feminíne.'Iodavia, encaramos as camadas mais profundas

do mito qu~am suporte às ameaças precisamente como o processo

Lde iniciaçã,  violentador pode ser constelado em resposta à virgin-dade por demais estreita da sonhadora, podendo ser o propósito dele

. ãcompanhá-Ia fisicamente dentro desse corpo mais profundo que subjaza todas assuperfícies - o reino psíquico.

Vimos falando da violação no sentido mais amplo possível, masagora, a título de exemplo, poderíamos voltar nossa atenção paraalguns sonhos onde a ameaça de violação se projeta sob a imagem

C Juma ameaça física:

 . 1) Tendofeito as compras no mercado, a sonhadora volta para ostacionamento, onde um homem sombrio está de atalaia. Ater-

rorizada, ela retoma correndopara o supermercado. Neste sonho, a

96

se, foge de volta ao supermercado (para o meio das mil e uma coisas

~

dO cotidiano). Ou seja, suas características de Deméter convertem-sea ora numa defesa contra a violação. .

2) A sonhadora, uma jovem, caminha sozinha de volta à casa, depoisuma reunião de Meditação Transcendental, quando percebe que

um homem a segue.Ela correpara a casamais próxima, descobrindomais tarde que o dono da casa é o próprio violentador. Acorda

apavorada. Para essa sonhadora, suas atividades transcendentais têmo efeito de acalmá-Ia, mantendo suspensas as forças sombrias. Destavez, porém, ao sair da reunião, a contra-ameaça do ataque sombrioaparece de imediato. Ela busca refúgio na estrutura mais próxima,aparentemente civilizada (Deméter e Hera), mas descobre quemesmo esta (que outrora fora refúgio coletivo) é agora moradia doviolentador, a casa do próprio Hades. Para esta sonhadora pareceria

~

-o haver alternativa senão finalmente submeter-se à iniciação dasfor das sombras, sejam elas quais forem.3) A onhadora está numa discoteca quando sente por debaixo da

que a mão de alguém lhe alcança aperna. Ela esmaga o copo

contra a mão, derramando a bebida alcoólica. Neste sonho, pelomenos se quebrou o recipiente da bebida alcoólica da sonhadoraabrindo a possibil idade para um recipiente mais profundo, do mundoinferior. Trata-se, porém, de uma defesa simbólica, manifesta emmuitas áreas da vida da pessoa. Ela vinha freqüentemente quebran-do seu copo , de modo que as bebidas alcoólicas [spirits,em inglês]refluíam por toda a parte, num esforço reiterado de afastar a mão desob a mesa.

Por outro lado, nos sonhos de violação é muito mais freqüente asonhadora evitar completamente a constelação Perséíone/Deméter,voltando-se para outra: ela corre em direção à luz, chama a polícia,sai em busca do marido, tranca as portas do carro, etc. A variedade eo desespero das situações de defesa contra a violação confirmam

uão. ins~or ável é e~ta ~ons~elaçã_o arque típica para o conscientecoletivo. Nao que tais situações nao se possam também projetar apartir da perspectiva de DeméterlPerséfone. Pelo contrário, é por ela

97

que estes gestos se convertem em esforços para se escapar completa-mente deste padrão arquetípico e da necessidade da sua violação.

Está muito mais em moda hoje defender o ponto de vista pessoal,

a vida, tanto vegetal como animal.  M. Grant , em Myths ofthe Greeks and Romans

(Mentor), 1%2, p. 128,também apóia umavisão mais geral de Deméter com Terra. Parafinsdeste artigo,e de acordo com Kerényi, Guthrie e Grant, encaremos Deméter comoeusa da vegetação (cereais comopars pro toto, fazendo asvezes de prod ução agrícola).

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sustentar os próprios direitos - coisas compreensíveis à luz doseventos contemporâneos. Mas o problema correlato é que, projetan-do-nos corno sujeitos, acabamos perdendo o contato com a pos-sibilidade de vivenciar-nos em profundidade e retrospectivamentecorno objetos.29 Esquecemo-nos de que ser violentado no conscienteé também urna saída.  

~- ~pectiva de violação psíquica não nos seja estranha,/ ainda não descobrimos onde situá-Ia Por isso vimos fugindo da

/ experiência de forma cada vez mais cega. O mito de Dernéter/Perséfonenos dá, em perspectiva e em j>rofundidade, um modelo arquetípicoatuante desses atos poderososjuesse mito, a violação foi afinal elevadaao estado de mistério na Grécia antiga.YPor havermos perdido essesrituais, aviolação é hoje ainda mais ameaçadora, redundando em imensadificuldade para vivenciarmos o consciente Deméter/Perséfone, a nãoser pelos modos mais superficiais, defensivos e neuróticos. Daí por quese impõe urna análise mais incisiva e eficaz das nossas defesas contraDeméter, a fim de mergulharmos nesse consciente arque típico. Paraalém desta análise, entretanto, e em última instância, talvez seja apenas

  o nosso amor pela filha, e portanto pelo mundo inferior - o telos dos\ nossos sintomas - o que assegura o nosso caminhar rumo à inte-

\

riOridade (isto é, para baixo e para dentro).

NOTAS

2.r meu art igo Uma abordagem ao sonho , em, Spring 1974(em especial p. 63,sobre a. imu~tan~idade) onde procuro lançar os fundamentos desta abordagem aos produtos da

I aginaçao.

U

.e acordo com C. Kerényi, The Gods of the Greeks, Londres (Tharnes & Hudson), 1961,. 184. Da era um nome antigo de Ga ou Gaia, de sor te que Da-rnater (mais t arde

Deméter) t inha a ver com a qualidade da mãe-terra. Nilsson (Greek Popular Religion, p.51,citado mais à frente por Guthrie) sustenta, ao contrário, que Deméter é a Deusa doscereais e não da terra ou davegetação numsentido maisamplo. Em The Greeks and TheirGods, Londres (Methuen & Co.Ltd.), 1968,p.283n., Guthrie refuta Nilsson, afirmando:

As evidências que temos a respeito da rel igião dos povos da bacia egéia anteriores aosgregos indicam uma veneração maisdifusa de uma deusa que era vis ta comoa mãe detoda

98

Q3. . K erényi, Kore , em Essays on a Science o[ Mythology (com C. G. Jung), Princeton(Princeton Univ. Press), 1%9, p. 136,diz: . .. A resignação paciente e terrena da mãeabsoluta falta-lhe completamente [à virgem). Não é sem razão que Gaia ajuda e incita o 4

_ sedutor no hino homérico. Do ponto de vis ta da Mãe Terra, nem a sedução nem a morte .,..fêmalgode trágico ou mes~o de dramático. Em Hino a Deméter , The Homeric Hymns,

t radução de C. Boer, Chicago (SwallowPress), 1970,p.91s., diz o texto: ...Até o narcisoI com a Terra I como um engodo I cresce I para esta menina I como um favor para/ AqueleQue Recebe Tantos, I e Zeus Ipermitindo-o I (seu brilho I eramaravilhoso ) ...ela estendeu

I ambas as mãos I ...e surgiu IAquele Que Recebe Tantos I ... 4. Cf. J. Hillman, O sonho e o mundo infer io r , Eranos Iahrbuch, 1973,em especial pp.

255ss., para uma descrição ampla dos atributos psíquicos do mundo inferior. Cf. também

r c JJ . Rose ,A Handbook of Greek Mythology, Londres (Methuen & Co. Ltd.), 1965,p. 79:

, udo o que f ica (no mundo infer ior) é a psique oua a lma-do-alento ...5. taaproximação de identidade entre Deméter e Perséfone tem sido mostrada de muitas

utras maneiras. Em Os aspectos psicológicos do Kore , Essays on a Science o[Mythology,

Jung chega a uma afirmação geral da unidade mãe-filha (p. 162):  Poderíamos, portanto,dizer ue toda mãe contém sua filha den tro de si ró ria e toda f ilha con tém sH.'tmãe,$_u_etpda mulher vol tacsea res sivamente a ra sua mãe e see ande no sent ido da _

1 l h .   . .   Kerényi( Kore , p. 137) assume a unidade Deméter-Perséfone porque: A fluidez

~

CUliar ao estado mito lógico pressupõe uma iden tidade com o mundo, uma aceitaçãoperfeita de todos os seus aspectos . .. ao introduzir a figura de Deméter, realizamos oprincípio universal da vida, que é ser perseguido, roubado, violentado, não conseguir

compreender, enfurecer-se e afligir-se, mas depois, tomar tudo de volta e renascer. Maistarde, em Epilegornena , pp. 178-79,afirma Kerényi: ...nossa introvisão da identidadefundamental de Deméter e Perséfone ...baseia-se na realidade psíquica e na tradição queatesta a existência dessa realidade psíquica na antigüidade. Kerényi cita em seguida Otto,que diz: Dernéter , chorando a f ilha , chora a lguma natureza que lhe é afim, que dá aimpressão de uma sócia mais jovem.  A situação plena da unidade delas é desenvolvidaexaustivamente no estudo principal de Kerényi, Eleus is : Archetypal Image o] Mother and

, aughter, tradução de Manheim, Londres (Routledge & Kegan Paul), 1967.mbora suas razões variem, os classicistas tendem a concordar que Perséfone representa

um papel essenc ia l na vida rea l das colhei tas. A maiori a deles expli ca i sso de formanaturalista, como se Perséfone fosse ela própria uma planta, precisando assim gastar 1/3

do ano, período em que os campos estão vazios e áridos, sob a ter ra (cf., por exemplo,Guthrie,op. cit., p. 284).Uma explanação mais psicológica de Perséfone comovida vegetaltalvez exigisse uma observação metafórica da própria planta, para verificar essasqualidades do mundo inferior inerentes nela ao longo dos seus estágios de desenvolvimen-to. A mera morte orgânica no final é uma redução demasiado literal das qualidades domundo inferior, que sepode dizer estarem presentes no seiode toda a vida, e não apenaso seu ocaso.er Kerényi, The Gods o[ lhe Greek s, p. 230: O significado de Ais , Aides, ou Hades, éuito provavelmente 'o invis ível ' ou 'aquele que dá invis ibil idade' , em contraste com

99

Hélios, o v is ível e que toma vis ível.  Cf. também Rose, op . cit; p . 78, o nde s e d er iv a Hades

••. foneticamente de O Invis ível .

8., écate, o tercei ro component e f emi nino dent ro da nar ração chama- se phosphoros, o

ondutor da luz (Kerényi, Essays on a Science of Mylhology, p . 110). Hécate sugere ass im

c ão , a c ade la , o obsc eno (cf. Baubo, em Kerényi, op. cit., p, 244); ela e ra a inda a Deusa a quemcerimoniosamente se ofe recia o lixo r : w . H. Roscher, Lexikon der griechischcn und rõmischen

Mythologie, Hildesheim [Olms), 1 /2 :1889). Como Deméter rejei ta o mundo inferio r, e Hécate

também tem o seu lado do mundo inferio r, pod ia-s e e sp erar que a lg umas qualidades sombrias

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o lumen naturae, a luz da natureza.

9. Hi no a Deméter  (Boer), p. 125.

10. lbid., p. 95: Nem uma vez ela / m er gul hou seu corpo / no banho.

11. Ibid.   E nem uma vez provou / a ambr osia / ou aquele doce e ferm entado / néct ar / porque

e la estava a fl ita. Rose menci ona ( ci tada por Gut hrie, p. 220) que tabus em tomo de

a limen to e v inho e ram carac te ríst icos dos ritos c tônicos, Poderíamos olhar para as d if icul-

d ad es d e inge st ão d e a limento, t an to a a no rex ia c omo o comer c ompu ls iv o, em conf ron to

com o fundamento desses r it os. Sabemos também que o porco é o animal ofer ecido em

sacrifício a Deméter. Kerényi (Essays on a Science . .. , p. 118) menciona uma variação órfica

da narração do rapto em que um criador de porcos, Eubúleo (outro nome de Hades), é

t est emunha do rap to , se ndo s eu s porcos engo lido s p el a t er ra junto c om Perséfon e. Ex ist e

a inda a narração de Deméter, q ue t ran storna da d e t ri st ez a por c aus a d a f il ha, se ar re ba ta

e inc on sci en temente c ome o ombro d e Pélop s (Ro se, op. cit., p. 81). Aqui Demétercome

com t al abandono que nem sequer t em consci ência do que est á comendo. E quando ela

p en sa na imor ta li da de, é a tr av és do a to de c oz in har , p or e xemp lo , o a to d e as sa r Demófon.

1 2. Hino a Deméter (I3oer), p. 99: Ela foi para / as cidades dos homens / e seus pastos /

di sf ar çando a b el eza / p or mui to t empo.  E, p. 100: Parecendo / uma mul her velha / que

estava além / da idade de ter fil hos / al ém das dádivas / de Af rodite / ...

13. Ibid., p . 103.

14. Ibid., p. 98: Mas deusa, / pára / teu choro imenso. / Não te fica bem / esta ira que é / tão

vã / e insaciável. 

15. Ibid.16. Que a água pode secar v emos exp re ss o em ou tra n ar raç ão : Prosé rp in a (Per sé fone) at ir a

água no rosto de Ascálafo, transformando-o em pássaro, uma criatura do ar (Ovid.Metamorfose, L. V, 543).

1 7. H ino a Deméter , p .9 9: Ela se afas to u / d a c ompanhia dos d eu ses / e do g rande O limpo,

~e foi para / as cidades dos homens / e s eus pastos ...

(18. 4 consc ie nt e d e Deméter t ende a V iv er a vida num sent id o n atural , c omo o do relóg io; ao

~ssoque, para entra r em conta to com a filha . e la precisa começar av ive r con tra a natureza,

no se nt id o cont rá rio a o do relógio. Kerény i (Essays on a Science ... , p. 134) observa como

~  os rituais  quando dan çados em honra de Per séfon e, t in ham de dese nvo lve r- se como s e

~ esti ve ss em na direção errada, isto é, para a esquerda, a di reção da mor te .

8a rama l ist a ad ic io nal d as rep et iç ões no mundo infer ior , c f. Rose, Handbook Gr . Myth.

.81.

. 20. m aspecto da repeti ção neur ót ica é sua natureza par ci al. O a to precisa ocorrer repetida-

ente, como se fosse para completar-se. A rep et iç ão é um bom exemplo do sintoma como

uma solução de compr omisso, num úni co e mesmo moment o, man if es ta ndo -se e, no

entanto, defendendo-se.

21. O feitiço que àsvezes aparece na condição neurótica de Deméter sugere sua ligação com Hécate

 WT nota 8). Até osnomes, Pe r sé fone e Hécate, estão associados: Perse, Perseis, Perses, Perseus

e Persaios são também nomes outrora usados para Hécate e seus companheiros. (Kerényi, Gods

of lhe Greeks, p . 113). Ademais , Hécate t inha qua lidades de ferti lidade (Rose , Handbook Gr .

Myth. p. 121), de cuidado e nutrição (Kerényi, op. cit: p . 113) .T ambém própr io de Héc at e era o

100

de Deméter ap arece ssem na forma de Héc at e,   a sem-irmã . Quando Deméter vol ta p ara a

intimidade, e la pode ser ao mesmo tempo uma irmã - próxima e n o e ntan to uma fei tice ira, semrelações.

22. Hi nos , p. 117.

23. Ibid., p. 122s.:  Por que ela está pensando no / imenso ato / de eliminar / aquel a raça f raca

/ de homens / que nasceram na terr a / escondendo / suas sementes / no chão / e , assim,

aniquilando / as honras / dos deuses. / .. . / Mas ela sent a- se / longe del es / no interi or de

um templo per fumado, / e j amais deixa / a ci dade rochosa / de Elêusis.24. Ver a nota 23.

25. Segundo Kerényi (Gods of the Greeks, P- 181), o nome Pos ídon pode a té s ignifica r  marido

da deusa Da . (Ver nota 2, para a associação de Da e Demét er.) Além disso, o ap el id o de

Posídon , Gaiao co s, s ig ni fi ca mar id o d a Ter ra . Posídon carr ega também as qualidades

de Hades e do mundo inf er ior: el e e a Terr a são às vezes inimi gos (ele combat e os fil hos

dela, os Gigantes) - e, no entanto, como Hades, tem algo de um nutridor. Um dos seus

t ít ulos d e cu lto é F it álmios , ou nut rido r d e plan ta s (Ros e, op. cit., pp. 66-7). Ass im, o rap to

de Demét er por Posídon t em cur iosos par al el os com o r apto de Per séf one por Hades.

~

'Hinos' p. 102.

,27. er nota 5, onde Kerényi salienta a incapacidade de Deméter para entender.

28 Cf. Jung, Essays on a S c ie n ce . .. , p. 160, onde ele apont a o preconcei to moderno cont ra o

e   undo inferio r, o materia l c tônico .

'29. ung (op. cit., p. 156) vê o  Kore como o sel] e a anima. Afirma a inda que ambos, self e

nima, t end em a se r v iv en ci ados c omo objetos, mai s do que c omo sujei to s  Ibid., p, 161).tomarmos isso tudo internamente, é prov áve l qu e na e xp er iên ci a d e nós mesmos como

/ôbje s ( maisdo que como sujeitos do ego), exista também a possibilidade da experiêncianuma rofundi dade mai or ( o que Jung chama deself).

30. Ao fa ' a r dos mis té rios e le usino s (cu jo s ini ci ados e ram homen s e mulhe re s) , d iz Kerényi

(Es;Jyson aScience ..., p .139): A passividade dePersé fone , da noiva , dav irgem condenada

~morrer, é re-vivenciada por meio de um ato interior, a inda que um ato de rendição. Pa ra

s eu pr in cipal t ra ba lho sobre o s mis té rios e le usino s, v ej a-se a obra de Kerényi citada na

not a 5, Eleus is : Archetypal lmage of Mother and Daugther, trad. de Manhe im, Londres

(Routledge & Kegan Paul) , 1967.

101

VCHAPEUZINHO VERMELHO E A GRANDE

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MÃERÉIA:Imagens de uma Psicologia da Inflação

David L. Miller

Folg nur dem alten Spruch und meiner Muhme, der Slange

Dir wird gewiss einmal bei deiner GottiihnZichkeit bange .

[Segue-se apenas a palavra antiga e minha prima, a serpenteTua semelhança divinaalgum dia tefará ter medo e tremer.]

Goethe,Fausto, I. 2049s.

Éde fato uma informação singular a que o Demônio dá ao estudanteno poema de Goethe. Alguém poderia ser levado a pensar quejustamente a semelhança divina da pessoa, a imagem interior deDeus, seria a salvação, l ibertando o indivíduo da ansiedade. MasMefistófeles diz que é precisamente o oposto.

Jung concorda, e não sem boa razão psicológica. Ele usa o termo

Gottahnlichkeii ( semelhança divina ) do poeta, tomando-o deempréstimo para falar de Alfred Adler.1 Jung se vale do termo paradar nome a um problema específico da vida e da terapia.

Às vezes uma pessoa se identifica quase completamente com umpapel social, com um trecho da história prosaica do ego, com umamáscara da persona. Outras vezes pode ocorrer uma identificaçãoinconsciente com algum padrão universal, uma configuraçãoarquetípica, uma imagem coletiva e primordial. O problema é que apessoa, na verdade, não é nem determinado papel social nem umarquétipo. Considerar uma situação pessoal sob um desses aspectos,comofalao Demônio deGoethe, pode de fatolevar a pessoa a sentir-secomo Deus; mas,a autodecepção que está emjogo leva a ansiedades efrustrações que podem tornar-se insuportáveis. Por isso,Jung diz que,quando uma pessoa pensa a respeito de simesma como semelhante aDeus , está procurando preencher um vazio que normalmente nãoconsegue preencher ,

103

atribuindo-se qualidades e conteúdos que propriamente só existem isolados, deven-do, portanto, permanecer fora dos nossoslimites .O que seencontra fora de nós oupertence a alguém mais, o u a todos ou a ninguém.'

Voltaremos a esta formulação logo mais. Por ora, observemos apenasque Jung mudou sua terminologia no que tange a este problema.

Nos primeiros ensaios, o emprego da palavra semelhança divina 

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era constante ( Novos caminhos da psicologia [1912], ''Aestruturado inconsciente [1916]). Esse termo acabaria desaparecendo dosescritos de Jung. Em edições posteriores dessas mesmas obras, foisubstituído por inflação. (Ver Sobre a Psicologia do Inconsciente[1917, 1918, 1926, 1936, 1943] e ''As Relações entre o Ego e oInconsciente [1928, 1935, 1938]l

Terá Jung percebido que, numa compreensão da psicologia da inflação , o próprio termo semelhança divina leva a um pen-samento enfatuado? Ou, quem sabe, Jung estava desmitologizandoa sua psicologia, empregando uma linguagem mais abstrata para umtrabalho teórico cujas idéias mais tarde ele haveria de mitologizar,através do que ele chamava o mito poético da alquimia.t ' Disse elea respeito do que pensava nessa época: Eu ainda não havia en-contrado a linguagem certa.  11

Qualquer que tenha sidoo caso, esta questão da linguagem levantaaomenos a possibilidadede que não apenasvivendo avida,mastambém fazendo psicologia, seja na prática da terapia, seja na elaboração dateoria,   semelhança divina é um tema diabólico.

Tome-se o exemplo de Mãe.12 Nas teorias contemporâneas demitologia, religião, literatura, antropologia e psicologia, tornou-selugar-comum em inglês chamar a Deusa-mãe pela expressão GreatMother (Grande Mãe).13Por quê? Busca-se aparentemente traduzirpor essa expressão as palavras latinas M ag na M ate r. Mas, GrandMother seria lingüisticamente tão preciso quanto Great Mother .Alémdisso,não se tem já no emprego do termo Great (grande) umaimplicaçãosutil, no some na conotação, de inflação?

Qual a diferença entre great e grand ? Implicará a expressão Great Mother um juízo acerca da Mãe, mesmo que seja umaidealização inflada de alguém que é esposa para um homem e mãepara os filhos de ambos? Não tem a expressão Grand Mother(como em grandmother , avó) uma conotação da imagem menosinflada de alguém que é mãe tanto para a esposa como para o marido,isto é, para seres que têm agora filhos como ela outrora teve prole?

Um sentimento de semelhança divina , mesmo inconsciente,provoca, segundo Jung, exagero, uma atitude inflada, perda daliberdade da vontade, desilusão e entusiasmo tanto para o bem comopara o mal .3 Se for o caso de perda de identidade num papel socialda história do ego, pode ocorrer uma megalomania e estado desujeição simples. Mas, se for o caso de identificação do eu com

fantasias arque típicas coletivas, na melhor das hipóteses ter-se-áneurose, e na pior, psicose.Í

Surpreendente neste problema de semelhança divina é (comoobserva Jung) que ele ocorre inevitavelmente na análise bem-sucedida. Na terapia, uma pessoa pode descobrir que o que se tomavacomo problemas pessoais são de fato complexos gerados pelapsicologia da família ou pela história social.- ou alternativamente,o que antes se encarava como eu ou meu é agora vivenciadocomo pertencendo aos aspectos arquetípicos do eu. Em qualquer doscasos, a pessoa começa a sentir uma dimensão coletiva, seja socialseja arquetípica, na composição de si mesma.

Naturalmente, toma-se isso muitas vezes por uma ruptura, e alibertação da ansiedade ou culpa pode ser de tamanho alívioque levea pessoa a enxergar o eu como sendo totalmente esses outros -personae ou arquétipos. A pessoa acabaria oscilando de uma Caribdeque rrojeta o eu nos outros, a uma Cila que introjeta os outros noego. Nesse sentido, uma psicologia do arquétipo coletivo pode gerarna pessoa uma espécie de orgulho espiritual por não ser ninguéme/ou uma inflação por ser todos.

Mas ainda se faz presente um erro psicológico. Trata-se de umerro de personalização do ego que tem sido vivenciado como pe r-

. sonificado'' O ego ainda deseja ver o que ele (ou ela) é (uma personaimportante ou algum Deus ou Deusa), em vez de sofrer a humilhaçãoque Jung explicitamente recomenda de colocar claro diante dele [a'semelhança divina'] como a qu ilo q ue ele nã o·é .7

Esta frase pode ser decisiva ao lidar com este amontoado deenergias em monomanias que os antigos chamavam de um 'deus ,.8

104 105

Não tem sidoela ( grandmother , avó)vista com freqüência como aconfidente dos fi lhos de seus fi lhos, um tanto afastada dos apurosimediatos da família? Afinal de contas, ela é também uma sogra

ameaçadas pelo que vem a elas durante o passeio , através da floresta  da puberdade. 17

Para Eric Berne o assunto é mais óbvio, embora de mais difícil

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( mother-in-law ), alvo de tantos gracejos. Ela já passou pelo ofíciode Mãe e, sabendo quão raramente ele parece Grande (Great), elaé simplesmente Grandiosa ( Grand ). Dizer Great (Grande) daMãe já pode representar uma perspectiva inflada.

Poderíamos, talvez, ficar por enquanto com imagens daMãe, a fimde tentar alcançar o aspecto maisamplo de semelhança divina e do

conceito de inflação . Este recurso inspira-se na observação de Jungde que: Os conceitos são valores cunhados e negociáveis; asimagenssão vida.',14

redução; exprime umdos jogosque aspessoasbrincam . ChapeuzinhoVermelho,ou LRRH* como ele a chama,brinca de esconde-escondecom o lobo. Ela lhe diz exatamente onde ele pode encontrá-Ia, isto é,na casa da avó.A avó,parece, vivesozinha e deixa a porta aberta Naverdade, todos são algo estúpidos na história e seguramente suspeitos .quanto às suas intenções. O que pretende efetivamente o caçador ao

brincar, como o faz, com a velhinha e a garota? O lobo é tambémheroicamente ambiciosoao caçar criancinhas em lugar de coelhinhos;a mãe manda a filha pela floresta onde há lobos. E como pode, seja láquem for, acreditar que de fato Chapeuzinho Vermelho julgasse quealguém, com aqueles olhos, orelhas e dentes pudesse ser a sua avó?Certamente, depois de falar com o lobo, Chapeuzinho deveria ter ditoa simesma,como pensa Berne: Esse filhoda mãevai acabar engolindoa minha avó se eu não pedir ajuda depressinha.  E continua Berne:

Engolindo a Grande Mãe

Tem-seuma das imagens maisvigorosasde mães no conto folclórico de Capuzinho Vermelho ou Chapeuzinho Vermelho (Rotkiippchen),como é conhecido na versão original alemã.15Talvezessa história nosdê algumaintrovisão do conceito de inflação . Não tem sido por certopequena a atenção psicológicadada ao conto.

Sigmund Freud, por exemplo, analisando o sonho de um jovemtomado de forte complexo paterno, traça um paralelo entre o sonhoe a história de Chapeuzinho Vermelho . O pai real do paciente, aoque parece, tinha tido vez por outra o que Freud chama de abusode afetividade . Durante o processo o pai era lembrado pelo filhocomo tendo dito: Vou te engolir Freud conclui que a figura do lobono sonho do paciente e no conto folclórico assume o papel desubstituto do pai. Torna-se simplesmente um caso de medo infantildo pai.16

Erich Fromm vê a história de modo um pouco diferente. Em suaperspectiva, o conto mostra sinais dos sintomas de menstruação

( chapeuzinho vermelho ) e concomitante medo feminino de serdevorada pelo macho. As pedras na barriga do lobo, ali colocadaspelas mulheres, são sinal da esterilidade masculina e da vitória dasmulheres (Mãe, Filha, Avó), todas elas odiando os homens. São

A verdade é que todos na história buscam aparecer a qualquer preço. Seno fimo pagamento é feito em valor nominal, então a coisa toda terá sido uma trama emcima do pobre do lobo, fazendo-o pensar que estava enganando a todos, e usando

LRRH como isca. Nesse caso, a moral da his tória não é que as virgens inocentesdevem afastar-se das florestas onde existem lobos, mas que os lobos devem manterdistância das virgens de aparência inocente e das avós delas; em suma, um lobo nãodeveria andar sozinho pelas florestas. Levanta-se ainda aqui a pergunta curiosa: oque fez a mãe, durante o dia,depois de livrar-se de LRRH?18

Talvez seja uma pergunta curiosa, mas o que aconteceu com ahistória e suas imagens nesses comentários psicológicos? O contofolclórico, embora possa não ser Grande [Great], era, não obstante,uma história grandiosa [Grant]antes que os analistas a levassem paraosconsultórios. A história de uma Grande Mãe sendo devorada por

um lobo corre ela própria o risco de ser devorada por um processode análise que reduz imagens vívidas a conceitos abstratos.

• Do inglêsL it tl e R ed R id in g H oo d.

106 107

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dezas, uma vez que esse nome é também um codinome de Hades, quegoverna o Mundo Inferior.31

As dimensões de profundeza, com suas inevitáveis trevas, aparecemtambém numa passagem estranha do Hino órfico dedicado a Réia. A

A história tradicional não ajuda nestas questões, inflada de umlado para o Céu (Urano) e de outro para a Terra (Gaia). Achegan-do-nos um pouco mais perto, a narração órfica oferece uma visão deRéia como a filha que carrega o alento (Grand-eur) de Eurínome

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frase em grego épseudomené :sõteira.32Significa salvador falaz , como

se algum tipo de salvação pudesse advir de alguma espécie de logro. Estacaracterística hermética, reservada em geral ao Deus Hermes, talvez serefira à parte de Réia na trama de levar Crono, seu marido-irmão titã,a engolir uma Pedra satumina em lugar do Grande Deus Zeus. Con-siderando que, sob a perspectiva órfica, a Pedra redonda, como o ovo,

representa o mundo, poder -se-ia pensar em Crono-Saturno carregandointeriormente o mundo, como o Atlas heróico o carrega exteriormente.O ponto é que em qualquer caso a graça de Réia é de uma espéciedissimulada.

A passagem do Hino órfico não é a única ligação com o modo deRéia prestar ajuda de uma forma interior e do mundo inferior. Eladá vida a Pélops, quando este morre.33 Para Jasão, ela extraiu umafonte de água do rochedor' Ajudou os 'Iélquines em sua missão dedar a Posídon um tridente para suas profundezas aquáticas.35 Foi sua

teimosia em esconder os cinco dedos na terra que tornou possível a

criação dos Dátilos.

36

Todavia, mais importante que tudo talvez sejao papel de Réia a respeito de Perséfone, Rainha do Mundo Inferior.

Perséfone;atéentão uma virgem inocente, viu-se repentinamenteno Hades. O fundo abalou-lhe a inocência. Engolida pelo abismo, ela

suportou com profundidade as profundezas; jamais as coisas seriamas mesmas para ela. Ela provara o alimento da alma do Mundo

Inferior, as sementinhas rijas e reles da romã. Deméter, a GrandeMãe, a queria de volta à luz da vida, enquanto seu raptor e rei , Hades,

queria-a permanentemente nas profundezas. Réia, porém, tinha umavisão Maior [Grand-er] do que a dos dois - parte do tempo na luz,parte nas trevas. Écomo se Réia soubesse que pertencemos a ambos

os reinos.Mas, como pode ela gerir essa espécie de solução quando o Grande

Zeus falha? Como executa ela esse vaivém entre a enfatuação numdos sentidos (Deméter) e a inflação noutro (Hades)?

110

 passeio amplo e a sabedoria (em oposição ao Grande conhecimen-to prometéico) da serpente-lua , Ofião. Mas há ainda outra chavena peça de Eurípides,As Bacantes, e no Hino órfico que fala de Réiacomo uma salvadora falaz .

No drama de Eurípides, Réia tem um tambor na mã037 (diz-seque os tambores são invenção dela).38 Citando o Hino órfico: Tam-

bores soando, frenéticos, de modo esplendoroso, / Metais soando, dahonrada e abençoada rainha de Saturno.,,39

O motivo do tambor, não apenas pré-helênico e pré-hornérico,como supõe Graves, é também rigorosamente xamanístico. Essemotivo liga-se a Eurínome, que era dançarina; todavia, nele a dançae o ritmo ocupam espaço particular. O 86° Fragmento órfico dá aperceber que o rufar de tambores de Réia situa-se à porta da cavernaescura do Deus cujo nome é Noite.40 É bem no limiar, e implica queos ritmos intermediários de Réia são uma salvação que vem de baixo:pulsações da alma. Esses ritmos são primordiais, como o rufar detambores africanos ou a vibração dos baixos do Coro da Aleluia de

Handel, e dos Roll ing Stones.No xamanismo, o rufar profundo de tambores serve de fundo para

a magia da cura. A dança americana nativa ao rufar de tamborespossibilita uma transformação total da persona, que de pacifistatorna-se guerreira e volta a ser pacifista outra vez. O tambor induz aum tipo de arrebatament041 que leva o xamã a flutuar, não para oalto e externamente, mas para baixo e dentro de outra sensação doeu. A magia da cura acontece, assim o diz o xamã, porque o tamboré feito de madeira, da Árvore do Mundo (recorde-se a ligação deRéia com o carvalho).

No seio de alguns grupos primitivos , o tambor é um altar,

sugerindo seu formato de ampulheta a reversibilidade e a intimidadedos mundos superior e inferior.42 O tambor é o próprio mundo parao xamã. Poder-se-ia talvez imaginar que, enquanto Crono engole omundo, Réia brinca em cima dele e dança ao som das sua pulsações.

111

Pudéssemos enxergar as coisas dessa forma, haveríamos então dever que Réia se faz Mãe de tantos Deuses ao ritmo de seus tambores ,

sendo a seu modo Grandiosa [Grand], ,em vez de Grande [Great],como o foram Atena, Afrodite, Hera e Artemis. Sempre próxima do

uma perspectiva em torno da alquimia como mito poético. Esta'mudança no modo de expressão de Jung dá espaço à hipótese de queum jeito poético de ver, como no caso da alquimia, poderia ser umjeito de estabelecer um termo médio entre uma inflação que pode

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t itânico, chegando a arná-lo em Crono, Réia não se identifica plena-mente nem com Deméter nem com Hades - a vida ou a morte oego ou o eu, apersona ou o arquétipo. Seu sentimento mais profundode ritmo dança entre essas pulsações. Sua conduta parece conhecera inflação, sem esmorecer.

De como não tomar o nome de Deus em vão

Pode-se ficar facilmente entusiasmado com a perspectiva repre-sentada por Réia, no que tange à psicologia da inflação. Entretanto,surge um problema exatamente neste ponto, quando se busca aimagem semelhante a Deus de uma idéia psicológica específ ica.Jung advert ia que esse entusiasmo pode ele próprio ser sintoma deinflação.

Como podemos não usar osnomes dos deuses sem presunção, seminflar mitologicamente nossas idéias, sem exagerar certa sensaçãomortal das coisas, sem começar a sentir que sabemos alguma coisa?

Quando algo Grandioso [Grand] parece Grande [Great], não se tratasempre de um sinal de perigo da alma?43

James Hillman tem falado enfaticamente a respeito desse perigopresente na psicologia arquetípica; ele adverte contra a redução dearquétipos a alegorias da doença (inflação negativa?) e contra acriação de um novo nominalismo dos Deuses da Grécia, um novo[ou velho] quadro de termos de classif icação (inflação posit iva?). Não estamos procurando, diz ele, um modo novo de classificação .. .e sim um jeito novo de vivenciar ... Lembra-nos Hillman que opensamento mítico, como o conhecimento do tambor é indireto ,metafórico e poético. Os Deuses não são coisas , e nós não somos

os Deuses. Diz ele: Eles são semelhanças dos acontecimentos.,,44Essa advertência é reminiscência da dificuldade que Jung teve

com o modo de se expressar. Por trás do termo inflação estava anoção de semelhança divina, sendo que mais tarde ele desenvolveria

112

ocorrer, de um lado, quando os mitos dos Deuses se tornam um novonominalismo, e de outro, quando a terminologia da psicologia negaos Deuses, tornando-os abstratos e não imaginais (tendo-se nestecaso a inflação negativa do reducionismo).

O erro de ambas as situações é uma perspectiva camuflada do egoque parece querer o conhecimento racional e o controle psicológico.

Pensar ou dizer: Ela está transformada em Héstia , não é melhor doque declarar: Ele tem um problema de anima se em ambos os casoseu sinto que eu sei algo. Uma deficiência mitológica da psicologiaprofunda quanto à sensibilidade poética não é melhor do que o be-haviorismo das psicologias do ego. A visão poética, como pareceimplícito em Jung, coloca a ênfase onde ela cabe,isto é, na semelhança,da mesma forma como se fala dos Deuses em relação ao eu. A atitudenesta perspectiva nega ao chamado ego a certeza e a clareza em queo Eu prefere sempre se concentrar.

Chamamos antes a atenção para a frase de Jung como aquilo queele não é . Talvez agora esta formulação seja adequada. Começa-se

a ver na vida e na terapia os lados coletivos do eu - seja o papel-per-sona da ordem social, seja o complexo arquetípico da naturezaprimordial. Combatemos isso, como o fez Jacó com o anjo, não comosendo idêntico a nós mesmos, mas como sendo outro, como aquiloque ele não é . Mas o como aqui é tão relevante quanto o não .Aquilo que eu não sou é apesar de tudo uma semelhança, umametáfora, um poema da alma. O que eu não sou é exatamente aquilocom o que sou parecido . Em sânscrito, em vez de usar parecidoou como , as semelhanças se caracterizam pela partícula negativa.  Meu amor - ou assim pareceria - não é uma vermelha, vermelharosa. ,,45

Parece que os poetas entendem essas coisas. São eles que têmcooperado, e muito, com as tradições religiosas, procurando ter ocuidado para que não se mencionem os Deuses em vão.46 EscreveHôlderlin:

113

Mencionarei então os A1tfssimos?Nenhum Deus gosta do inconveniente;Dificilmente nossa alegria será suficiente para captá-Ia.Muitas vezes precisamos s ilenciar; há escassez de nomes sagrados;Batem oscorações, e noentanto, detém-se ainda a fala?

numa semelhança poética. A visão de Réia parece mais próximadaquela do Coro no final do drama faustiano do que do Demônio nocomeço da obra. Depois que o herói de Goethe foi totalmenteintroduzido no reino das Mães, diz o Coro Místico:Alles Ve rgã ngliche i

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Mas a músicada liratraz a cada hora suas melodias,E talvezalegre os cclestiais que estão perto. 

o poema parece dizer que falar seja como for dos Deuses podeser uma inflação inconveniente, uma inspiração divina, um flatusvocis.  Dificilmente nossa alegria será grande suficientemente -Grande [Great], mas não ainda Grandiosa [Grand]. Portanto, nós

(isto é, nossas visões do ego) silenciamos. No entanto, a pulsaçãocontinua por conta própria, segundo o poeta, e com o coraçãotambém.  A música da lira - uma perspectiva poética - fornece osom necessário. Porque, de fato, os Deuses estão próximos. Eles sãoas semelhanças da alma.

Os Padres da Igreja falam da missão implíci ta nessa perspectiva.Chamam-na a imagem que se converte na semelhança. O Livro doGênesis diz que Deus criaria o homem  à nossa própria imagem,conforme a nossa semelhança (Gen. 1: 26). Mas, ao criar Deusefetivamente o homem, a Bíblia diz apenas:  Às ua imagem , deixan-do de mencionar semelhança (Gen. 1:27). Orígenes, por exemplo,

escreve:  O homem recebeu a honra da imagem de Deus em suaprimeira criação, enquanto a realização da semelhança de Deus ficoud ,. , . ,,48

reserva a ... 'para seus propnos esrorços senos.

Tais esforços em busca da semelhança não são tarefa fácil para aalma. Mas quem sabe Réia possa ajudar, como o fez para Dioniso ePerséfone, para Posídon e Jasão, para Pélops e os Dátilos. Ela nosestimula a ver nas imagens, não identif icações literais, nem algum isto efetivo ou um aquilo verdadeiramente real, e sim o equilíbrioentre isto e  aquilo , entre o ego e o eu, entre a persona e oarquétipo. Esses meios-termos mergulham-nos nas batidas dos tam-bores dos mundos inferiores da alma.

Apresentar as coisas dessa forma talvez ajude a cadência rítmica de Réia a modificar um pouco o medo e o tremor  de que fala oMefistófeles de Goethe. A semelhança divina  no contexto do mitode Réia pode parecer mais Grandiosa do que Grande. Sua perspec-tiva, embora divina, concentra-se menos em algum Deus e mais

114

1st nur ein Gleichnis ( Tudo que passa à tua frente é apenas uma~ ia ) 49aparencla .

São-nos dadas imagens e as imagens são arquetípicas. Trata-se deimagens de Deuses. A tarefa da alma édeixar avariedade da experiênciaimaginal da vida tornar-se metáfora, prestando atenção nas semelhan-ças. Então a terapia e aprópria vida começam a ser sentidas como poesia

do mundo inferior - não psicologia, mas psicopoética.i e o indivíduocomeça a entrar em contato com as muitas semelhanças imaginais, nãosob a forma de identificações literais do ego, e sim como aquilo que elenão é .

Para chegar àquilo que você não é

Você precisa enfrentar oque vocênão é.E o que você não sabe é a única coisa que você sabe.E o que você tem é o que você nã o tem.E onde você está é onde você não está.51

NOTAS

I. C. G. Jung, Collected Works (CW) VII, §224; compare-se com § 111s.,240, 389,454,460,464.

2. Jung, CW, VII, §227.Jung, Cw , VII, § 110.

4.  É preciso levar em conta umacatástrofe psíquica quando o ego é assimilado pelo eu ...Entretanto, o fortalecimento dapersonalidade doegoe do mundo doconsciente pode comfacilidade assumir proporções tais que as imagens do inconsciente são psicologizadas e,

conseqüentemente, o eu setorna semelhante ao ego. Jung, CW, IX, ii, §45, 47.5. Jung, Cw , VII, §466·70,110.(I. Ver James Hillman, Re-visioning Psychology (Nova York, Harper & Row, 1975), Primeira

Parte.I. Jung, CW, VII, §112.O trecho todo é o seguinte: A únicapessoa queescapa dalei sinistra

da enantiodromia é aquela que sabe como se afastar do inconsciente, não reprimindo-o

115

- porque neste caso o inconsciente haverá de atacá-Ia pelas costas - mas, colocando-o

claramente à sua frente, como aquilo que ela (a pessoa) não é.  Compare-se com o §269:

 O objetivo da individuação não é s enão despojar o eu, de um lado da falsa cobertura da

persona, e do outro do poder de sugestão das imagens primordiais. 

8. Jung, CW, VII, § 111.

37. Eurípides, The Bacchae, 127.

38. Ibid,59

39. Hinos Órficos, XIV, 3s. Esta tradução de Thomas Taylor encontra-se em Raine and Harper

(editores), Thomas Taylor the Platonist (Princeton, Princeton University Press, 1969), p.

230.

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9. A maior ia des tes ensaios apareceu no Volume V  das Collected Works. Veja-se, por

exemplo, o §476, onde a expressão é aceitação da 'semelhança divina''', e o §260, onde a

mesma expressão é alterada para aceitação da inflação , etc.

10. Jung, Memories, Dreams, Reflections (Nova York; Vintage Books, 1965), p. 282.11. Ibid, p. 188.

12. O exemplo da Mãe, ao l ado dos do Feiticeiro e Salvador, é amostra da  semelhança divina 

dada por J ung. Ver Cw, VII, §377 ss.

13. Eis alguns exemplos: Erich Neumann, The Great Mother (Nova York, Pantheon, 1955);

Robert Briffault, The Mothers (Nova York: Macmillan, 1927); J. J. Bachofen, Myth,

Religion, and Mother Right (Princeton, Princeton U niversity Press, 1%7).

14. Jung, CW, XIV, §226; compare-se com Cw, XIII, §75:  Tudo de que temos consciência é

uma imagem, e e ss a imagem é a psique.

15. Jacob e Wilhelm Grimm, Kinder- under Hausmãrchen, nQ 26; Grimm's German Folk tal es,

t radução de Magoun e Krappe (Carbondale, Southern lIIinois University Press, 1960), pp.102ss.

16. S igmund Fr eud , A incidência de temas dos contos de fadas nos sonhos , On Creativ it yand the Unconscious (Nova York, Harper and Row, 1958), pp. 79ss. Ver também: L. Vesry-

Wagner, Chapeuzinho Vermelho no divã , Psychoanalytical Forum, I (1966), 399-415, e

Elizabeth Crawford, O lobo como condensação ,American Imago, XII (1955), 307-14.

17. Erich Fromm, The Forgottcn Language (Nova York, Grove Press, 1957), pp. 235-40.

18. Eri c Berne, What do You SayAftayou Say Helio? (Nova York, Bantam Books, 1973), pp.42-6.

19. Jung, CW, VII, §227.20. Otto Rank, Võlkerpsychologische Parallelen zu den infantilen Sexualtheorien , 1912;

compare-se com Freud, op. c it., p. 83.21. Te og onia, 453-506.

22. Ver David L. Miller, Conto de Fada ou Mito? , Spring 1976 (Nova York, Spring

Publications),157-64.

23. Ver Robert Graves, The Greek Myths (Baltimore, Penguin, 1955) , I , 118s., 104.24. Te og on ia, 116-53.

25. The Library of Greek Mythology (Bibliotheca), I, 1-44.26. Argonautica, I, 480-511.

27. Graves,op. cit, I, 27, n. 2.

28. Pausânia é a fonte disso. Ver Ibid I ,39.

29 . Aristófanes, Birds, 971, ver Graves, op. cit, I, 148.

30. Eurípides, The Bacchae (As Bacantes), 79.31. Graves,op. cit., I. 310-11.

32. Hinos Õrficos, XIV, 8.33. Graves, op. cit., 11,27.

34. Ibid, lI, 226.

35. Ibid, I, 188.

36. Ibid. I, 185.

  6

40. Ver Graves, op. cit, I, 3Os.

41. Ver Mircea Eliade, Shamanism (Nova York, Pantheon, 1964), pp. 168 ss.42. VerJ. E. Cirlot, A Dictionary of Simbo/s (Nova York, Philosophical Libr ary , 1%2), p. 85,

e James Hasting (organ.), Encyclopedia of Religion and Ethics (Nova York, Scribners,

1912), V, 89-94.

43. Vale a p ena uma nota de pé de página que chame a atenção para a diferença lingüística

ent re os termos  Grande  (Great) e  Grandioso  [Grand]. O primeiro surge no inglês

através da palavra holandesa (groot =  grosso ) e do alemão antigo (groz). É provável que

em sua origem essa palavra tenha sido eslava.  Grand , por sua vez, tem uma históriasulina. Entrou no inglês através do latim, passando pelo espanhol e pelo francês. Suaorigem é indo-européia (significando a raizgrad =  forte ).  Great é do norte;  Grand 

é do Mediterrâneo. Assim, para se expressar o nome da Inglaterra em francês, usa-se aexpressão Grande Brétagne, enquanto na língua anglo-saxônica se diz Great Britain.

44. HilIman,op. cit., p. 101.

45. Ver Julián Manas, Verdade filo sóf ic a e o si st ema me ta fó rico , em Hopper e Miller

(orgs.), Interpretatio n: The Poetry of Meaning (Nova York, Harcourt Brace, 1967), p. 46s.

46. Recorde-se o tabu judaico que proíbe pronunciar o nome de Deus.  Não tomarás o nome

do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar o

seu nome em vão.  (Êxodo 20:7). Ver Stanley R. Hopper,  De como Deus é chamado naobra de Hõlderlin e Rilke , em Michalson (org.), Christianity and the Existentialists (Nova

York, Scribner's, 1956).47. O p oema intitula-se Heimkunft ( Vol ta ao lar ), encontrando-se esta tradução em Martin

Heidegger, Existence and Being (Chicago, Gateway, 1949), p . 241; ver também o ensaio de

Heidegger sobre  os nomes dos Deuses nesse mesmo volume.48. Orígenes, Peri archõn ( A respeito dos primeiros princípios ), III, vi, 1; também Contra

Ce lsum, IV, 30; Irineu, Ad .haen, V, 6; e Clemente de Al exandria, Stromata, lI, 38, 5. Ao

ver a  semelhança de  imagens , ver também Hillman, Uma investigação sobre aimagem , Spring 1977, pp. 62-88, e  Not as adicionais sobre as imagens , Spring 1978, pp.

152-82.

49. Goethe, Fausto, 11 , 12104s.50. Ver David L. Miller, Hades e Dioniso: a poesia da a lma , Joumal of the American

Academy of Religion, XLVI, 3, 331-35. Neste ensaio associa-se uma forma poética de ver

as perspectivas do humor, de maneira não diferente da que leva Jung a ver o senso de

humor como o principal inimigo da inflação . Cw, VII, §227.

51. T. E. Eliot, Four Ouartets , The Complete Poems and Plays 1909-1950 (Nova York,

Harcourt Brace, 1952), p. 127.

  7

VIHÉSTIA:

UMFUNDAMENTO DE ENFOQUE

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PSICOLÓGICO

Barbara Kirksey

 

osurgimento de uma figura imaginal com conexão com os processosde fantasia das nossas vidas individuais difere nit idamente de umconhecimento intelectual que se tenha dessa figura. Isso é particular-mente verdadeiro em relação àpersona mítica. Embora o adepto dateoria clássica possa conhecer perfeitamente bem o desenvolvimentototal dapersona e seus valores culturais/religiosos [para a sociedade],tal conhecimento nem sempre garante o vivenciar das figuras míticase as possibilidades que estas oferecem. Pode ocorrer, isto sim, umencontro com a figura num nível de experiência psicológica, mais doque um pensamento conceitual: pode-se falar mais em encontroíntimo da espécie da alma. Quando isso ocorre, emerge imediata-mente um padrão de imagens, certa preferência por uma intimidadeimaginal, e uma história pessoal e aleatória de imagens, como algoque faz sentido . Há um enfoque, e a conexão com essa figuratorna-se ocasião de um despertar para a experiência psicológica.

Nossa imagem inicial é, pois, tomar, tecer (integrar) e centralizara forma aleatória. Já estamos dentro de certo domínio psíquico-ponto central que integra e tece os fios aleatórios das nossas vidas.Fantasias do centro  predominam ao longo da tradição da psicologiajunguiana. O próprio Jung dedicou extenso trabalho ao desenvol-vimento desses conceitos que giram em torno de umcentro. O  self ,

asfiguras de mandalas e a circularidade dos processos alquímicos têmumsentido de centralidade ou a qualidade do movimento no interiorde um círculo. No pensamento junguiano mais tardio, porém, oaspecto de centralização equiparou-se às fantasias da harmonia, da

119

plenitude, do desenvolvimento e integração espirituais - fantasiasessas que não conseguiram nem distinguir suficientemente as váriasexperiências de centralidade nem conservar o caráter de imagem dacentralidade, distinto dos literalismos do centro .

danas). Um dos modos de começar essa fantasia é encontrar um Deuscujo reino se caracterize pela centralidade.

Ao começar a imaginar uma figura central da mitologia grega, atendência imediata é voltar-se para Zeus, por ser ele o pai dos Deuses

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Para um levantamento muito bem documentado e abrangente da mitologia eculto de Réstia, ver o artigo de Stephanie A. Demetrakopoulos, Rés tia, deusa daTerra: observações sobre um arquétipo oprimido , em Sp ring 1979, pp. 55-76, queapareceu de'poisde este trabalho estar pronto.

Recentemente, alguns autores têm procurado eliminar por com-pleto as fantasias da centralidade, uma vez que boa parte do que setem posto no centro diz mais respeito à teologia do que àfenomenologia da alma. No entanto, o empenho em encontrar umcentro não se erradicou tão facilmente das preocupações com apsique, manifestando-se o desejo de centralidade das formas maisdiversas e persistentes. Uma das mais comuns, ainda que das maissutis, é a escolha de um único tema, figura ou sintoma sobre o qualse passa a escrever. Colocamos ainda em prática a função decentralizar quando nos concentramos nos conteúdos psíquicos e lhesdamos atenção; fixamo-nos neles e buscamos-lhes um lugar na vida,ou então passamos a ver na terapia um sonho como centro de

algum complexo. Eventualmente, alguma figura imagina Iassume porum tempo o papel de aglutinadora de coisas, ou nos mergulha no seucentro. Apresenta-se então um minicosmos no reino imaginal e odrama começa. Descrevemos o evento como uma experiência centralda nossa vida ou como um ponto central no correr da terapia - uma peripatéia do drama psíquico.

Todos esses são modos de centralização numa parte inerente davida, e mesmo assim parecem mais modestos do que as fantasiasgloriosas que acompanham o Eu em seu desinteresse espiri tual oucomo eixo literal de um quadro. Mostramos aqui o centro como umestilo de consciente, um movimento natural dentro da estrutura do

consciente, na medida em que este inclui a centralização ou o enfo-que. Se o centro é inerente, parece mandatória a ação de se fantasiarem torno dos seus vários tipos, de modo que possam ganhar umaprofundidade imaginal, mesmo em suas formas mais materiais (mun-

120

e o gênio organizador do Monte Olimpo. Além disso, ele surge comoa epítome de muitos valores culturais apreciados pelo mundo ociden-tal, como poder, ação eficaz e perícia administrativa. Se, porém,perguntamos: Qual o centro para os Deuses e para os própriosgregos? - então surge outra figura que tem permanecido relativa-mente obscura na mitologia, ao mesmo tempo que desponta na

literatura dos arquétipos. Trata-se de Héstia, que era venerada nocentro da cidade e do lar gregos e que se apresentava como uma pilhade carvão em brasa, tornando-se o omphalos (umbigo) em Delfos, ocentro do mundo para os gregos. 1Quase não se tem notícia dela naliteratura arquetípica; mesmo assim, Kerényi mostra que ela con-seguiu como seu lugar sagrado o ponto central da casa, o coração -que é o que também significa o seu nome .2 Héstia ocupa um lugarno centro da moradia, devendo ser assim o centro da vida psíquica.Além disso, seu caráter está estreitamente ligado com o centro, o quefaz a centralidade ser parte do seu reino. Qual seja a qualidade dessacentralidade e quais as possibilidades resultantes para a alma é o que

nos ocupará no restante deste artigo.

II

Héstia é ao mesmo tempo a mais velha e a mais nova da prole deCronos e Réia, uma vez que foi a primeira a ser engolida por Cronos

e a última a sair do seu estômago. Desse modo, ela é a primeira doOlimpo, mas, paradoxalmente, a mais obscura; quase não há históriassobre ela, que não aparece como deusa pessoal. Escreve Ovídio: Durante muito tempo julguei idiotamente que existiam imagens deVesta; aprendi depois que não existe nenhuma sob sua cúpula

abaulada.,,3 Sua imagem e seu lugar são idênticos. Não havia imagensdela em seu templo. Havia apenas o fogo sagrado sobre a terra. Porter escolhido não casar, Zeus lhe deu o privilégio de receber oprimeiro e o último dos sacrifícios em todas as cerimônias. No hino

121

homérico a ela dedicado damos com a afirmação de que sem ti, ahumanidade não teria festas, pois ninguém poderia iniciar o primeiroe o derradeiro gole do vinho doce como mel sem uma oferta aHéstia .4 A veneração de um fogo sagrado era comum em diversas

e romanos. Assim, sua imagem é arquitetõnica. Isso se justif ica peloseu papel de guardiã dos lares e de divindade que primeira construiuuma casa.1O

Devemos distinguir cuidadosamente Héstia das outras Deusas

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religiões antigas, particularmente no culto persa a Zoroastro. Mas af a lta de person i fi cação mantém-se constante ao longo da sua históriasadvert indo Ovídio: Conceba Vesta apenas como uma chama viva.Trata-se de uma admoestação vigorosa, embora seja ele curiosa-mente o mesmo autor que produziu a única história que nos restouda antigüidade a respeito de Héstia.

Apesar da falta de mitos, deparamos reiteradamente com Héstiano centro da vida grega como sendo o coração. Diz o hino homéricoque ela está na morada dos Deuses e dos mortais e que, comoHermes, protege e dá boas coisas ao homem.6 De modo significativo,ela parece mais ligada à vida dos mortais do que os demais Deusesolímpicos, graças ao seu lugar, o coração; no entanto, ela não par-ticipa das guerras, intrigas ou casos surgidos entre os Deuses e osmortais. Permanece no Monte Olimpo, bem afastada das atividadesmortais. Sua relação com Apolo é importante, face ao lugar queocupa, como carvões, em Delfos, e também porque Apolo (assimcomo Posídon) era seu pretendente.Í

No mundo romano, seu nome era Vesta. Escreve Ovídio: Vestaé o mesmo que a terra ... sob ambas acha-se o fogo perpétuo; a terrae a lareira são símbolos do lar.,,8 Suas sacerdotisas no templo de

Roma eram as famosas Virgens Vestais, que faziam voto de cas-tidade. Se o voto fosse quebrado, punia-se a sacerdotisa culpadaqueimando-a viva, por ter contaminado a terra. Édesnecessário dizerque durante os muitos anos desse culto houve poucas transgressoras.Ovídio descreveu o templo das Vestais em Roma como semelhanteao estilo do templo antigo, estilo que se baseava na associação deVesta com a terra, com formas arredondadas, sem projeção deângulos; recobrindo o templo, uma cúpula protegia-lhe o interior

contra as chuvas.i' O templo era ainda uma reminiscência do paren-tesco de Héstia com Terra, a divindade feminina primordial. Aarquitetura do templo revela Héstia de forma semelhante à que asestátuas revelam as divindades mais personalizadas dos mitos gregos

da terra . Ela é uma Deusa virgem, lima das três imunes ao poder deAfrodite.11 A seriedade de sua castidade reflete-se no voto de virgin-dade das Virgens Vestais. Não se pode associá-Ia (nem reduzi-Ia) coma fecundidade e produtividade de Gaia ou Réia, sob pena de seperder sua posição única e específica no panteão.

Para uma reflexão mais alentada sobre o significado psicológico de

Héstia, impõe-se esmiuçar dois aspectos ímpares do seu caráter. Oprimeiro é a peculiar ausência de imagens dela personificadas: ela serecusa a uma personificação à semelhança da figura humana. Isso nãoquer dizer que ela não tenha qualidade pessoal, e sim que se recusa aser materialmente um objeto imaginal, como ocorre com outras per-sonae míticas. Mas, quando figurada, Héstia aparece como a terra e ofogo que está sobre ela. Ela é o fogo doméstico sem o qual não haveriafestas para os homens, como afirmou Homero.12 Héstia surge como umaspecto específ ico do mundo que é 'ninguém' [nobody] (sem corpo),mas que congrega os homens e possibilita espaço para a alma. Écomose, ao nos juntarmos, est ivéssemos em seu corpo, não podendo por isso

vê-Ia como um corpo; o lugar torna-se o seu corpo.Não se tem aqui uma localização distinta, ao modo como Descar-

tes situa a alma na glândula pineal; nem estou insinuando concreta-mente que a lareira ou a terra bastam para assegurar uma experiênciada alma, embora este nível material lhe facil ite a epifania. Bachelard,por exemplo, captou as realidades imaginais de Héstia discorrendolonga mente sobre a lareira em sua P oé ti ca d o E sp aç o.

A importância de Héstia na vida psicológica advém da suahabil idade em mediar a alma, dando-lhe um lugar onde se congregar,um ponto de junção. Através desse ponto, a alma e o mundo semisturam. Héstia permite que a especialização seja uma forma de

rea lidade ps ico lógica . Os gregos jamais desistiram dessa busca davisão puramente geométrica do espaço. A especial ização tinha umcaráter divino. Segundo Rollo May: Nós americanos temos umsentimento muito fraco da sacralidade do espaço.,,13 E cita De

122 123

Tocquevil le como tendo dito: Nos Estados Unidos, a pessoa constróiuma casa para nela passar a velhice, e a vende antes que o telhado esteja

,,14pronto ...

Entretanto, os antigos sabiam que a circularidade da Terra era a

abandonada ou que o andar perdido do puer. A criança pode aindaencontrar um lar e um lugar que lhe acalente o abandono no seio deoutros lugares habitáveis. Mas a perda de Héstia é uma ameaça maisrigorosa para a psique como um todo, com sua multidão de imagens

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expressão do espaço sagrado, em sintonia com a natureza de umaDeusa determinada. O espaço reproduzia a forma redonda da Terra,mas essa forma era doméstica e ligada às cidades e lares do homem,de forma diferente do da circularidade da natureza. É através dapresença medi única de Héstia que a moradia do mundo do homemé psicológica. O ato de imaginar, at ividade psicológica pa r exce ll en ce,

não é separado do mundo e encerrado num corpo individual. O imaginalnão equivale a um espaço interior literal; e o mundo, em especial osespaços habitáveis, nos refletem de volta uma indicação da condição danossa alma. As moradias que criamos e onde moramos (interior eexteriormente) manifestam um aspecto da nossa alma. Os 'lugares ' desonhos e fantasias, as moradias - apartamentos elevados, velhas casasmal-assombradas, porões, corredores e quartos - nos dizem muito arespeito de onde se encontra a nossa alma neste momento. CitandoBachelard:  Todas asimagens importantes e simples revelam um estadopsíquico. A casa, mais do que a paisagem, é um 'estado psíquico', emesmo quando nos aparece reproduzida pelo lado de fora, revela a

intimidade.,,15 As moradias do mundo cotidiano falam dos lugares danossa alma: revelam um lado íntimo da nossa psique.i?

Por ser a psicologia de Héstia uma revisão da alma em termos de

metáforas espaciais, a patologia da alma manifestada através da lin-guagem de Héstia contém frases referentes ao espaço.  Fora da base , fora do centro ,  incapaz de achar um lugar , incapaz de se fixar , distanciada , fora das paredes - relacionam-se com os valores deHéstia, recordando aoviandante o poder que ela tem de conduzir a almaa um estado de moradia. Desde a antigüidade, a patologia tem sidofantasiada como um fenômeno de perambulação (por exemplo,delírio, desvio). Cícero afirmava que a alma doente era aquela que não

podia alcançar ou persistir e estava sempre perdida. Quando perdida, aalma não tem ligação psíquica com essa Deusa e sua centralidade. Aalma não pode ir para casa porque não há lugar para quem retoma.Esta ausência específica de lugar não é o mesmo que ser uma criança

124

e a influência delas. Sem Héstia não pode haver a concentração naimagem, e não há limites que distingam a intimidade da moradiainterior e o mundo externo, pois não há uma casa psíquica queofereça paredes protetoras. Impossível a ocorrência de festas alegres,celebrações da vida, alimento para a alma.

Certas desordens transitórias da psicose, particularmente dasesquizofrenias, poderiam ser entendidas como ausência de Héstia napsique. Não há um abranger centralizado, de sorte que o que está aqui dentro , está também lá fora , e o que vem lá de fora  nãopode receber proteção porque não existem barreiras para o aquidentro . Este desarranjo tem um aspecto espacial peculiar. Sem umaseparação entre os espaços das moradias e os espaços do deserto,também não existe a permanência, de tal modo que o mundo psíquicotodo é vivenciado como transitório e fugaz. Bachelard exprime issode forma mais eloqüente: ... a casa abriga os devaneios, a casaprotege o que sonha, a casa permite-nos sonharem paz.,,17 Se Héstianão ergue sua morada, não há proteção ou paz para quem sonha. A

descrição do estado esquizofrênico feita por Jung reflete muitas dasimagens do que estamos falando. Afirma ele:

. . . o e s qu iz o f rên ico laten te de ve te r se mp re em c on ta a p oss ibilida de de q ue s eu s

alic er ce s c ed er ão e m a lg um p on to .. . q ue s ua s id éia s e c on ce ito s p er derão a c o esão e

a c on ex ão c om o utr as e sf er as d e a ss oc ia çã o e c om o m ei o a mb ie nte . Em r az ão d is so ,

ele s e s en te a me aç ad o p or u m c ao s i nc on tro lã ve l d e a co nte cim en to s f or tu íto s.

Esse desarranjo profundo e  de base refere-se ao espaçohabitável apresentado imagisticamente como a Terra ou como umedifício. Jung prossegue citando exemplos de imagens de sonho queaparecem no paciente esquizofrênico latente . Imagens como aterra transformando-se em água, o fim do mundo, o chão ondulandosob os pés do paciente, ou as paredes aumentando e curvando-se, sãocaracterísticas, diz ele, dos pesadelos dessas pessoas. 19 Jung resumeo fenômeno, afirmando que tais imagens atestam uma perturbação

125

fundamental de relacionamento, isto é, da rela çã o d o p ac ie nte c om oq ue o ro de ia . 20

Acredito que essa frágil coesão e insegurança se relacionam coma ausência da capacidade de mediação de Héstia, que toma e

influência estabilizadora e central izadora de Héstia. Ela é protetorado império da vida psíquica, isto é, a sede da atividade imaginal.

Qual a qualidade da iluminação de Héstia? A partir da sua imagemoriginal, obtemos uma chave que nos abre ao seu poder específico de

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central iza os acontecimentos aleatórios num espaço comum. Ela nãoé personificada porque, como as Moiras, existe a pr ior i à experiênciada alma. Ela é assim a primogênita e a última - espécie de figuraalfa-ômega da psique. E sua ausência ameaça toda a estruturapsíquica da personalidade em caos. Ela atua como mediadora daintegração psicológica, de forma análoga àsatividades mediadoras deHermes, como aquele que conecta e move a alma. Tem uma função

coesiva na alma que preserva o elemento de plenitude e permite ao

indivíduo imaginar em paz .

O segundo aspecto psicológico fundamental do caráter de Héstiaé sua opção pela virgindade. Ela é uma das três grandes Deusasvirgens que nada têm que ver com o reino erótico da experiência.

Está imune ao poder de Afrodite e, por conseqüência, às flechas deEros. Essa imunidade é outra forma de mostrar sua presença comoaspecto estabilizador e fundamental da alma, porque resiste aos

assaltos violentos das manias eróticas e/ou dionisíacas.

Em sua posição primitiva, Héstia é capaz de g u ar da r i ma g en s.Deduzo isso do seguinte relato de Ovídio: Paládio, uma imagem deAtena em vestes guerreiras, era guardada por Héstia no templo

Vestal de Roma. Fora roubada de Tróia e acreditava-se que era aimagem que preservava o império. ApoIo decretara que essa imagemde Minerva traria consigo a sede do império.v' Retirada de Roma,foi conservada no templo de Vesta porque esta vê tudo com sua luzque nunca falha .22 Héstia torna-se guardiã dessa imagem que

mantém o império. É-lhe dada a guarda em função de um poder de

iluminação que nunca falha, um poder que vê tudo e ainda nutretodas as coisas. A força de Héstia difere da das outras duas Deusas.

Atena e Ártemis encontram sua força sob a forma de atos deafirmação; Héstia ilumina. Sua iluminação propicia proteção enutrição da imagem. Ela guarda a imagem e, assim fazendo, conservaprotegido o império. Isso reflete a associação feita anteriormente da

126

trazer a luz. A iluminação de Héstia é a luz vinda da Terra e do seufogo. Diz-nos Ovídio que a palavra para terra em latim é [ocus e aterra (Joeus) é assim chamada em decorrência das chamas e porqueela nutre (fovet) todas as coisas .23 Considerando que essa palavraveio sem alteração da sua escrita latina para a língua inglesa, umadiscussão sobre o seu uso pode ser de ajuda para uma visão maisampla da qualidade de Héstia como guardiã de imagens. f

lI

O Oxfo rd Eng li sh D i ct ionar y traz uma longa história da palavra focus ,invadindo seu uso muitas disciplinas. Johannes Kepler emprega-a em1604, no primeiro uso científico moderno que dela se fez. Não se temuma razão aparente para essa escolha; conjectura-se que o sentidoóptico (ponto de aquecimento de uma lente ou espelho) que deriva comfacilidade do literal, provavelmente já existia, sendo responsável pelaescolha da ~lavra nas experiências que Kepler fazia com espelhos

parabólicos. O uso feito por Kepler conjuga o ato de ver, espelhos eum ponto de aquecimento numa única constelação. O ponto deaquecimento destaca ainda o lugar onde ocorre a iluminação. Tem-seaqui Héstia, guardiã da iluminação, onde a luz mais se concentra,protetora de imagens através da luz.

Emprega-se a palavra foco em óptica de modo semelhante.Neste ramo da ciência, foco é o ponto no qual os raios se encontramdepois de refletidos ou refratados, e também o ponto do qual os raiosparecem originar-se. Newton usou a palavra em 1704. O ponto deonde dive~em os raios ou para o qual convergem pode chamar-se oseu foco. O ponto onde ocorre a separação ou a convergência-

ponto de partida ou de chegada - é o foco. A origem deste pontoexpressa-se pela figura mítica de Héstia.

O reavivamento do sentido original da palavra altera profunda-mente as fantasias contemporâneas da percepção. Se o foco é um

127

ponto tanto de partida como de chegada, a percepção não é apenas umprocesso linear de absorção dos estímulos do mundo exterior. A imagemarcaica contida na palavra foco  liga-se com circularidade e com umponto que é fonte original e termo de destino. Focalizar, que na

produz definit ivamente. A imagem coloca-se fora de foco até quesua posição se estabeleça dentro dos seus próprios limites. A noçãode precisão de imagem é, em parte, uma qualidade inerente daimagem.

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linguagem comum significa a capacidade de perceber com clareza, é otérmino de um processo circular; envolve a capacidade de permitir umarelação circular entre aquele que focaliza e o objeto focalizado. Alinearidade, porém, não está excluída da origem desta palavra e dos seususos históricos. O emprego da palavra na geometria plana relaciona acircularidade e a linearidade como aspectos do espaço e, portanto, comoaspectos do foco .27 A tradição científica adotou com tamanhaestreiteza e expandiu tão uniformemente a imagem de linearidade quesó agora este aspecto de percepção predomina sobre a exclusão relativado outro.

As definições científicas de foco são reveladoras; no entanto, detal modo estão enterradas nas concepções especializadas da ciênciaque as fantasias provocadas por essas definições estão apenas aoalcance das pessoas capazes de uma apreciação profunda do estilocientífico do consciente. Outras duas definições de foco associam-semais estreitamente com a vida psicológica.

A primeira vem do teatro moderno. No teatro, foco é  a parte mais

iluminada do palco .28 Aqueles caracteres que aparecem nas nossasexperiências psicológicas como brilhantemente iluminados, ou maisiluminados que os outros, são o foco da experiência psicológica.Podemos dizer que Réstia encarrega-se da iluminação durante o drama.Ela está nos bastidores, mas é necessária à produção. O drama da vidapsíquica contém um foco, um ponto de iluminação onde se podem verfiguras. E se levarmos a sério a crença antiga de proteção através dailuminação, faz-se necessário dar iluminação e posição central a essasfiguras nos cenários do nosso consciente. Focalizar o caráter permiteque o drama psíquico se desenvolva; assim fazendo, preserva-se aimagem, dando-se-Ihe a devida reverência e proteção.

Outra definição carregada de fantasia que se dá a foco é aqueleponto ou posição em que um objeto precisa si tuar-se, a fim de que aimagem produzida pelas lentes seja clara e bem definida,,?9 Colocaruma imagem em foco significa posicíoná-la num lugar onde ela se

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Entretanto, a outra parte envolve a nossa descoberta do lugaronde uma imagem está nítida e bem definida - um ponto deaquecimento. Então a imagem está em  foco, tendo assim claridadeapartir de dentro. Focalizar está em oposição a interpretar a imagem,porque a ação de focalizar assenta-se na imagem para guiá-Ia do

ponto em que ela se encontra. Nossa linguagem ilude-nos. Falamoscomo se a imagem se movesse para uma posição nova a fim de poderser vista com clareza. Mas, ao dizer que  colocamos a imagem emfoco, não são antes as lentes que se movem mais do que a imagem?O ajuste é nosso. A imagem conserva o seu espaço, sendo o processode focalizar que leva a pessoa a uma relação definitiva com a imagem,a part ir da qual esta ganha iluminação e clareza. Retomar à imagemreiteradamente, a partir de várias direções, é uma tentativa de en-contrar o foco - uma tentativa de encontrar o fogo da imagem. Istoé uma figuração ao modo de Réstia.

A amplif icação também tem a ver com este modo de figuração.

Trata-se de uma espécie de focalização onde a imagem é um pontono qual todos os raios nascem e para o qual convergem, começandoe terminando no ponto da própria imagem e do seu lugar. Quandose reclama que a imagem está fora  - que é imprecisa ou até

inadequada - essa reclamação volta-se para a intuição de que asimagens têm um foco, um lugar onde elas se manifestam para ardere iluminar, onde elas estão protegidas e ativas.

As qualidades espaciaisde um foco são geométricas e imaginais.

Pertencem à percepção e à imaginação. Embora estas tenham sidoantes divididas e contrastadas, uma conexão comum as une. Réstia éum ponto de junção; seu domínio re-conecta as diferenças. Essa

conexão se dá através da  focalízação como uma forma de compor-tamentor' Conseqüentemente, a focalização transcende a distância

conceitual que tem sido construída entre a percepção e a imaginação.É uma qualidade, uma qualificação de ambas.

129

Outra conexão etimológica com Héstia vem através dahospital idade. Dando às imagens um lugar de união, Héstia propicia-lhes mais hospitalidade do que hospital ização. As imagens agrupam-se à volta de sua lareira como hóspedes. As palavras hóspedefguest],  espírito fghost],  hospitalidade e hospital repartem

Esse valor desponta também da palavra grega heschara usada para amesma Deusa, e que significa lugar queimado , cuja palavra inglesa éscar (cicatriz, mancha). Enquanto foco é imaginado com toda afacilidade como visão e distância, scar reflete-se por todo o corpo,mesmo naquela pequena marca imperceptível no centro do nosso

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etimologicamente uma raiz comum, dando azo a novas fantasiasacerca da posição focal de Héstia para a psique. A imagem comoespírito fghost] transforma-se num hóspede fguest] possibilitando-lhe ingressar na área da lareira [hearth]. Um espírito é também umpedaço de carvão morto que

3em vez de queimar, surge no fogo como

um objeto branco informe . 1As imagens que se recusam a ter focosão restos fantasmagóricos fghostly], assombrando-nos com seucemitério semi-apagado, fracas demais para arder. Inversamente, asimagens têm espíritos fghosts] até em seu ponto mais brilhante, e nemmesmo na área mais focalizada pode-se alcançar a iluminação per-feita.

No entanto, se é possível a transformação de espírito [ghost] emhóspede fguest], como isso acontece? A definição de hóspede nos dáa solução. Hóspede é uma pessoa ou coisa personificada que chegae é acolhida ... ,,32 A personificação possibilita que as imagens se

tornem hóspedes no foco. Não nos importa aqui a alteração da

imagem. Hóspede e espírito fgues t eghost] originam-se de uma fonteetimológica e imagíst ica comum. Não é preciso mudar a imagem;apenas personificá-Ia. Personificar é um modo de conhecer (comodisse James Hillmàn) e este modo de conhecer é hospitaleiro para asimagens, conhecendo-as como hóspedes quando vêm de visita, con-vidando-as para o calor do fogo.

A palavra foco alude a um princípio fundamental da vida. Héstia,vista como Terra, desperta fantasias de estruturas fundamentais sub-jacentes e perturbações centrais. Isso se espraia pelas fantasias clínicasonde o foco da doença é a sede principal (do corpo), e também umponto onde se manifesta a sua ação . 33(Na língua alemã, a palavra Herd

refere-se a lareira, assim como a foco e sede da doença.) Tudo o que é focal é também importante, manifesto e central. Inversamente, quan-do se usa a palavra foco , ela sugere o valor especial que a ocasiãoapresenta para a alma. A doença é uma dessas ocasiões importantes.

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corpo, que é o sinal de ligação com alguma estrutura que foiremovida .34 O omphalos não está tão distante de nós e a contemplaçãodo próprio umbigo não está afastada da psique ... Reminiscência de umaLigaçãoantiga, o umbigo está tão bem cicatrizado que é quase inacessívelao consciente. E todavia, a psique ainda fala de trauma de nascimento ,

lembrando-nos as origens da cicatriz.Em inglês, scar é tanto ferida como sinal de cura. Conserva-se

também imutável em sua forma de verbo, sugerindo que a ação podeser ferida, e que formas de comportamento podem ser cicatrizes.Cicatrizes são lugares marcados, separados das áreas adjacentes pelaferida. São um tecido diferente. A cicatrização deixa um novo tipode sensibilidade, de modo que, quando tocada, a cicatriz parece diferente das outras partes. Nossas cicatrizes poderiam ser per-fei tamente os pontos assinalados na vida da alma. São os lugares ondeoutrora ardeu um fogo - onde ocorreu iluminação ou onde ela aindaestá ocorrendo. Héstia propicia uma profundidade arquetípica a

essas feridas, transformando-as de cinzas pessoais em fogos dosacrifício.

A busca etimológica final de Héstia é saber onde fica o centro daatividade. Um foco é também o centro de atividade ou área de maiorenergia de uma tempestade, erupção vulcânica, etc., e ainda um centroou n inho de intrigas, sedição, etc,,?5 O centro não é um lugar deharmonia ou integração. Este centro contém patologia. Há traição esedição no centro e tempestades eruptivas que exigem um foco - umlugar para queimar e arder em latência. A patologia é a procura de umfoco de reajustamento. As tempestades psíquicas exigem que nos afas-temos do ponto central, de modo a permitir que outros caracteres

entrem. Precisamos nos mover para o relacionamento com a imagempatológica, a fim de ajustar-lhe o foco , de tal modo que a imagemassuma a importância central. Este ajuste do foco é um movimento daalma. Não se trata de uma viagem com Hermes ao mundo inferior, um

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delírio dionisíaco, ou uma fuga ao ataque de Pão Inerentemente maissutil, a focalização são os movimentos tênues em direção a esses lugaresflamejantes e queimados da alma e, ao mesmo tempo, de afastamento.Éum modo de  encontrar lugar  para as próprias doenças e feridas.

A obtenção de um foco depois da experiência de cicatrização exige

16. A lareira é um símbolo pesadamente carregado do qual os arquitetos estão conscientes.Numa conferência na Universidade de Dallas (7 de abr il de 1978), o ilustre arquitetoChristian Norberg-Schulz dedicou longa explanação à importância da lareira. Citou FrankL10ydWright, que teria dito quese sentia reanimado ao olhar o fogoardendo naalvenaria.Schulzsalientou que Wright foi o reintrodutor do conceito de lareira como o centro damoradia na arquitetura contemporânea. Mencionou também as conexões etimológicas

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um ajuste. Ajustamos uma lente, um microscópio ou um númeroqualquer de máquinas. Mas também nos ajustamos à vida, às nossaslimitações e àqueles que o destino nos traz. Ajuste não é apenas umafeia palavra burguesa, difamada pelos arroubos depuer. Não tem apenasa conotação de estagnação e de compromisso: faz parte da atividade

psicológica de focalizar. Envolve um movimento da alma no sentido deencontrar lugares centrais para doenças, imagens, caracteres dramáticose energias. Ajustar-se é aquilo em que estamos envolvidos quandoprecisamos encontrar um centro que sirva como lugar de iluminação ede energia. O ajuste tem ainda parte no processo de curar e de ferir.Ajustamento é mover-se de um para outro: sentir quando uma feridapode tornar-se cinza e quando pode arder. Como parte do arquétipo doretorno ao lar, a focalização é a experiência e a conexão com Réstia,construtora da casa - de maneira que a alma possa sonhar em paz.

NOTAS

1. Barbara Koltuv,  Héstia/Vesta , Quadram 10 (Inverno de 1977), p. 57.

2. Carl Kerényi, The Gods of the Greeks (Londres, Thames & Hudson, 1951), pp. 91·2.

3 . Fas to s deOvid io , traduzidos porSir James Frazer (Cambridge, Harvard University Press),p.341.

4. Hinos Homéricos,  O hino homér ico a Hés tia , traduzidos por Charles Boer (SpringPublications, 1979).

5. Fastos, p.3416. Op. cit., p. 140.7 . Ke rény i, p. 91.8. Fastos, p. 339.

9. Fastos, p. 339.

10. David Kravitz, Who's Who in Greek and Roman Mythology (Nova York, Potter, 1975),

p. 119.

11. Hinos Homéricos, op. eu:12. Victor Drury, The World oj the Greeks (Gênova, Minerva, 1971), p. 33.

13. Rollo May,Power and Innocence (Nova York, Norton, 1972), p. 57.14. Ibid., p. 57.

15. Gaston Bachelard, The Poetics of Space (Boston, Beacon Press), p. 72.

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entre as palavras  stove  (forno, fogão) e house (casa).17. Bachelard, p. 6.18. CW, 3, §559.19. lbid., §559.

20 . lbid., §559 (itálicos nossos).21. Fastos, p. 351.

22. Ibid. , p. 332.

23. Ibid., p. 341.24. Para uma apresentação do valor e da prática da etimologia psicológica, ver de Robert

Kugelman,  A etimologia como uma operação psicológica , Dragonflies. 1:1 (University ofDallas, outono de 1978), pp. 43-63.

25. The Oxford English Dictionary (1914), 4:377.

26 . Idem.

27. O focoé um dos pontos cujadistância para qualquer ponto de uma curva seconeeta poruma relação linear . Idem:

28. Idem:

29 . Idem

30. Emprego a palavra comportamento [behavior] de propósito, embora seja termo facil-mente mal-interpretado. Não quero dizer um gesto mensurável e observável fisicamente,assim como umafonna de engajamento com aquilo queé diferente do 'ego'. A focalizaçãonão é uma a tividade do ego nem uma propr iedade dele. Esse engajamento não sesubmete ao ego; ao contrário, o ego depende dele como uma função relat ivamente

autônoma pela sua coerência, comose mencionou acima, com relação à esquizofrenia. Osarquétipos são formas típicas de comportamento que, tornando-se conscientes, apresen-tam-se naturalmente como idéias e imagens ... CW, 8, § 435). A focal ização é umcomportamento arquetípico. Experimental e lingüisticamente, esse comportamento não élimitado pelas diferenças entre a imaginação e a percepção. Trata-se de um aspectoimportante de ambas.

31. Oxford ElIglish Dictionary, vol. 4, p. 149.

2 . Ibid., p. 488 (itálicos meus).33. Ibid., p. 377.

34. Ibid., v. 13, p. 182.35. Ibid., v. 13, p. 377.

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VIIHETERÔNlMOS DE HERMES*

William G. Doty

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Le bon Dieu est dans ledéta il. [O bom Deus está nos detalhes.]

-G.Flaubert

Só o completo é verdadeiramente interessante.-T.Mann

I. Nomes e divindades

 Como é útil ter tantos nomes - observa Cário a Hermes noPluto(L1164)de Aristófanes, depois que o segundo negociou ser incluídonuma ladainha algo zombeteira, onde há referências a seu papelcomoobservador -junto-à -porta, guia,juiz dejogos e Deus de ladrões,de negócios e de intrigas.

Deuses e Deusas que se tornam mais conhecidos através de umalonga série de epítetos têm um significado e um poder permanentenão tão facilmente percebidos nasdivindades maismonotônicas. Nãopodemos saber se é realmente útil (ou bom, afortunado, prático =

agathos) para a divindade ter inúmeras forças; mas, como portadorade valores humanos projetados, parece óbvio que uma divindadeconhecida heteronimamente sob diversos aspectos terá para nós umautilidade maior do que outra que sacraliza apenas algocomo a lareiraou o combate.

*IIcterónimos : Nomes ou termos diferentes ... que têm co rrespondência ou se

inter-relacionam; por exemplo, master e mistress (amo e ama).  (American HeritageDictionary, 1975.) Numa série de ar tigos em andamento sobre o mito e sobr e Hermes,

est a é a primeira t enta tiva de organizar um volume razoável de material heteronômico,

Publicado primeiro emArchê 2 (1978), 17-35,é apresentado aqui, revisto e ampliado, com

permissão do Cent ro de Estudos Arcaicos. Uma explanação geral e sucinta dos aspectosde Hermes e da fo rça do mito logema ho je, em resposta à obr a de K Kerényi, Hennes .'lu id e o f S o ul s, tr ad. de M. Stein (Spring Publ., 1976) , acha-se disponfve l em art igo que

publiquei n o lo uma l o f A n a li ty c al P s yc h ol og y 23/4 (1978), 358-64.

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Em termos de expressão primária,os nomes são imagens, símbolos;sãomágicos;conhecer os nomes de umadivindadeimplicaconhecer osapelativos a serem usados ritualisticamente para que se resolvamproblemas ou necessidades particulares. Entre os índios navajosamericanos, por exemplo, as divindades  precisam vir para uma

 autênticos fazem-me pensar se as artes não eram efetivamenteentendidas como as alquimias da alma, como a alquimia propria-mente dita o era do espírito abstrato.) Toque-se uma figura mítica ouarquetípica em qualquer ponto da sua imagem, e outras parecemprotestar, como grupos minoritários na política americana, exigindo

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I I

cerimônia quando seus traços sãoevocadoscorretamente; um adivinhoespecialista será chamado antes da cerimônia, a fim de garantir oconfronto correto da divindadecom a necessidade.

OsHinos Órficos,essasestranhas tentativas helênicasde mencionartodo apelativo divinopossível(confiram-se os Livrosegípcioe tibetanodosMortos), assimcomoos doisepigramasda AntologiaGrega que trazdúzias de epítetos de Dioniso e de ApoIo em ordem alfabética  A.E

9.524-5), revelam que seus autores não têm maisum reiacionamentovívidocom asdivindades;istoé, eles nãojulgam maisque seja essencialidentificar um aspecto específico de uma divindade (com a história doseu primeiro nome). Talveznão seja fora de propósito mencionar ainsatisfaçãocontemporânea como monoteísmo e a conseqüente voltaa um novo politeísmo na teologia (veja-se DavidLMiller, T he N ewPolytheism, 1974).Seja como fore de modo conveniente, Hera, Adônise asMoiras/Destinos sãopolyOnymos,  multinomeados ou veneradossob muitos nomes (Hinos Órficos, 16, 56, 59), que podem ser oequivalente primitivo do nosso heterônimo (usado pela primeira vezem 1734,segundo o OED).

Numa apresentação ilustrada sobre  Hermes: manifestaçõesvariáveisde um malandro místico , desenvolvi cerca de onze aspectosde Herrnes, relacionando-os com figuras semelhantes a Hermes emoutras áreas culturais (Egito, África, Américas antigas, Haiti, Japão,Norte da Europa). Parte do impacto dessa apresentação assenta-se nareprodução de ilustrações,o que nãoé possívelneste ensaio puramentediscursivo,onde o leitor pode selecionar suaprópria reprodução verbal.Nem o espaço nem a abordagem nos permitem uma viagematravés dosterritórios fascinantesgovernadospelomistagogoHermes 'Irismegistos,

nas sabedorias gnóstica e ocultista, ou enveredar pela figura medievalde Mercúrio que, como espírito transformador, era fundamental para aalquimiae patrono de todas as artes. (Semelhanças iconográficas entreas ilustrações alquímicas e as páginas de rosto de livros medievais

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igual atenção.

lI. Metodologia

Meu método surgiu quase que espontaneamente: a) compilação delistasde epítetos, enquanto eu seguia referências feitas a Hermes emfontes literárias primárias e secundárias; estas eram incluídas emfichas indexadas comexemplos dosusos (sem preocupação de exaurira matéria); b) organização dos epítetos obtidos na forma acima emagrupamentos maiores - aqui a sensibilidade taxionômica do analis-ta é mais exigida, mas presume-se que o próprio material acabemostrando o rumo a seguir (e de fato assimaconteceu, na medida emque eu o classificavae reclassificava); c) cruzamento dos agrupamen-tos com as minhas caracterizações e as de outros - neste ponto, osaspectos reguladores da tarefa são evidentes: serão tais e taiscategorias suficientes? Como distinguir os nomes dados a Hermesdos de outra personagem? d)sinopse e interpretação, que neste casofogem muito ao escopo deste trabalho, cujo objetivo é destacar ametodologia e os dados brutos.

O material todo que se segue, portanto, é pouco mais do que umíndice ou listade palavras;é o tipo de projeto que seria tremendamentefacilitado com o uso de um computador, embora o elemento críticosejam as codificações, como se tem visto na maioria dos projetos atéagora suportados por computador. Ironicamente, precisamos dosep ii he ta deorum , da concordância, a fim de realizar a codificação daprópria concordância. Não obstante, a exemplo de Psiquê, estamosdiante de ummonte de grãos misturados e carecemos de confiar que os

bondosos instintos/formigasnos ajudem a restaurar a ordem.E muitas vezes estou menos interessado na beleza do produto

final do que naquilo que se pode aprender durante o desenvolvimen-to da própria atividade. Ao longo da preparação que fiz da lista e

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mapeamento dos nomes (cuja origem começou há vários anos, comoforma de penetrar na nomenclatura grega que não me era familiar),revelaram-se vários proveitos à exploração mitográfica de figurasmitológicasgregas e outras.

Em primeiro lugar, a abordagem oferece-nos um caminho fora do .

enxergado, quer eles nos conduzam a novas perspectivas gerais ouapenas a esclarecimentos menores. As dedicações de utensílios decozinha a Hermes na Antologia Grega, por exemplo, ampliaram-mea visão do papel de Hermes como criado e Deus do comércio;inscrições nas hermas (pilares quadrados de pedras encimados com

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dilema do texto . Em vez de decidir que apenas taise taisversões deum mito são as formas normativas,em situações em que autores comoApolodoro ou Ovídio são, na pior das hipóteses, derivações e, namelhor, mitopoéticos por conta própria, esta abordagem busca nomesdentro do espaçode materiaisexistentese, nesse sentido,vai até a IdadeMédia. (Vasculhei a Antologia Grega, que tem seus contornos fmaisnão antes do século IV d.e., e os Hinos Órficos, que são aproximada-mente do século   d.C) Procurei manter-me consciente da cronologiarelativa dos epítetos, mas considero a história-de-impacto (Nachges-chichte) tão importante quanto qualquer camadaoriginária da tradição.Os problemas da semióticacontemporânea lembram-nos anecessidadeabsoluta de combinar o léxico-etimológíco(metáfora, sincronia, sintag-ma) com a história da utilização (metonímia, diacronia, paradigma).

Minha hermenêutica leva-me a enfatizar o que um mitema põe emmovimento sob o aspecto de como e de quando ele se originou. Atendência evolucionária de que o mais antigo é o maispuro pode ser

adequada quando lidamos comum texto rigorosamente sob controle,mas ajuda menos do que as outras abordagens monomíticas dosséculos XVIII e XIX, em que se lida com a politextualidade rica dealgo como a mitologia clássica. Mapear nomes seja onde for queapareçam, contribui para um metatexto manipulável, que todaviatambém precisa ser confrontado cuidadosamente, quando se temalguma coisa de um texto quase consagrado (canônico), que reclamareconhecimento como, neste caso, os Hinos Homéricos a Hermes.(Talvez pareça demasiado coincidente, mas jamais trabalhei sis-tematicamente com osHinos, até começar a preparação deste artigo..Poucos nomes achei que já não tivesse encontrado antes em alguma

outra parte. De igual forma, vali-me das listas de Carter e Eitrem -vejam-se asFontes adiante - somente depois de ter feito asminhas.) .

O segundo proveito desta abordagem é que ela revela variaçõesou aspectos das figuras míticas que de outra forma não teríamos

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bustos, tendo não raro falos eretos à testa, dedicados a Hermes ourepresentando-o) de abrigos mostraram-me que a ligação Hermes-Príapo tinha um aspecto tanto marítimo como agrícola; e eu nãosuspeitara da associação com a Lei e a Justiça (seção J da Parte 111).

Isso pode ser particularmente importante quando divindadespolivalentes são expostas na plenitude das características que lhes sãoatribuídas. Na Antologia Grega  A.E 9.783) a estátua de um her-mafrodita numa casa de banho traz a seguinte inscrição: Para oshomens sou Hermes, mas para as mulheres apareço como Cipres[Afrodite) ,sugerindo que as identificaçõespositivo/negativo,bom/mau,masculino/femininoque usamos são assuntos de projeções pessoais eculturais.  i\.beleza está nos olhos de quemvê : sim,masdevemosestarcientes de que em outras situações a beleza não se representa unica-mente tendo por basea nossaestéticaocidental,masculinae voltadaparao logos.O alcanceplenoda comparaçãometatextualpode conter o nosso

modo de não perceber senão os nossospróprios costumesem elementosobjetivamente diferentes.

O terceiro proveito desta abordagem mitográfica está em que ascomparações dos epítetos aplicados a um número de figuras míticasrevelariam estatisticamente que certos termos partilhados se aplicamcom maisfreqüência a uma ou outra divindade; dessa forma, dar-nos-iam uma tipologia da divindade segundo padrões mais adequada-mente etnopoéticos - como asDeusas e Deuses eram efetivamentevivenciados e descritos na cultura que está sendo estudada, mais doque em termos de esquemas que lhe impomos. Como uma espéciede retificação de nomes confuciana, issoserviria para assegurar que

de fato praticamos aquela suspensão fenomenológica pela qualfiltramos nossos próprios sinais e sintonizamos tanto o que os textosestavam dizendo em seus contextos originais como o que estãodizendo hoje em nossos próprios contextos.

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Um rápido exemplo: preocupava-me em encontrar um grande con-junto de epítetos referentes a asas, pés alados e coisas afins (seção Q daParte Ill). Perguntava-me se essa representação tradicional de Her-mes/Mercúrio na arte era uma relei tura dos eros helênicos mais recen-tes, que se teriam convertido nos roliços e alados cupidos das pinturas

lI . Os nomesComentários gerais

1. As categorias não são excludentes; fiz referências cruzadas mas ,sem a preocupação de apontar todas as possibil idades.

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medievais. Claro que não, dados os inúmeros epítetos de aparenteantigüidade. Meu interesse conduziu-me para a notável frase daOdisséia (17.57), assim traduzida: aquela flecha não atingiu o alvo ;mas que literalmente diz o seguinte: a fala/mito não tinha asas para ela(Penélope, que não pode confiar na insinuação surpreendente de

Telêmaco de que Ulisses está próximo): palavras que não são aladas,que não têm um componente espir itual, não seconectam . Inundadospor um mar de palavras, pode ser-nos de fundamental importânciare-Iembrar a força dinâmica efetiva da palavra/mito, na medida em queaprendemos a poetizar, a fazer nossos próprios significados.

Finalmente, a abordagem aqui esboçada e demonstrada preliminar-mente é apenas um caminho de reconexão com o arcaico, com asraízesantigas que não feneceram, mas que muitas vezes tiveram amontoadassobre si pilhas de manuais de mitologia. Precisamos de algum modorecuperar o sentido do imaginário de todas as nossas construções -fietio, aquilo que é feito, construído; não o ir-real, mas o supra e

super-real. Precisamos de algum modo tocar a altruidade objetiva dessasraízes e deixá-Ias ativar auto-imagens mais fortes.

Emaranhar-se entre as interconexões de muitos nomes é um jogoque admite poucos limites. Pode até ser o jogo que nos leve a falsoscaminhos escusos e becos sem saída; mas ele também quebra asconsistências seguras dos manuais de referência, através de processosque desafiam nossas construções sociais da realidade, conduzindo-nos a um jogo de imagem criativo de que Hermes, o ardiloso/ tum-god /jogador/malandro/guia, jamais se cansou: chegando ao meio deum ajuntamento - onde se formou aquele silêncio embaraçoso, nomeio da representação superficial - trazendo a idéia e a interação

novas: HermEs epeiselEluthe,  Hermes está entre nós (provérbiogrego antigo e contemporâneo).

140

2. As variações nem sempre são claras a partir das definições sucin-tas; coloquei de modo geral um epíteto em determinada categoriacom base em contextos que eventualmente são também aqui men-cionados. Associações com outras imagens podem tambémocasionalmente ser apontadas.

3. Alguns dos epítetos aplicam-se (também) a hermas.4. A disposição no interior de cada seção obedece à ordem datranscrição para a grafia latina e não à ortografia grega; por isso aehnousprecede aglaosna seção A, embora pela grafia grega devesse ocorrer oinverso.

5. Rigorosamente falando, alguns dos epítetos são advérbios e nãosubstantivos ou adjetivos. Não os excluí quando usados comocaracterísticas que se repetem.6. Não arrolo aqui os epítetos latinos (PWK, Realeney., Suppl. 11,ounoutros lugares, por exemplo, CIG. 5953). Não conheço grego elatim clássico o suficiente para localizar todas as referências evariações registradas por Georg Kaibel , em Epigrammata Graeea.7. As listas não indicam freqüência ou percentual de uso.8. Abreviações usadas: ep. =epíteto(s); H. =Hermes; L-S =Liddell-~t.t-Jones-Mc~enzie,A Greek-EnglishLexicon; magopapo = papirosmágicos; 1 . = hnha; pl. = plural; esp. = especialmente; freq. =

freqüente(mente); poet. = poético; fr. = fragmento; usu. =

usual( mente).9: .ver PC , etc., acompanhado de um epíteto grego entre parênteses,significa que o verbete principal se acha na seção indicada.

141

A. APARf:NCIA; DESCRITIVOS

achnous = imber be [ numa herma à be ira depis ta de cor rida; existem, porém, inúmerasr ep res ent ações com barba, uma vez que H. éora um jovem, ora um velho, como se verá

ischys = o forte [como pai, com Brimo/Foibe,

de Brimos, o for te ](kouros) = ver U.kranaios = da madeira cereja cornalina

(paidokoros) = ver U.(palaistritas) = ver U.

philaethlos = que gosta de jogos, com-pet idor , amante de espor tesporsynôn = provedor [de atletas vencedores]

strophiouchos = que usa luvas de boxe [pos-s ivelmente t ambém, que us a na cabeça fitade sacerdote ](tychOn) = ver C.

C. BENÉFICO AOS HUMANOS; AFORTUNADO

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adiante]aglaos = belo, formosoalkimos = valente, corpulentochlamydEphoros = que usa chlamys (mantacur ta) [ep. freq. dos epheboi e dos arautos]chrysophanEs = bri lhante como ouro

(chrysopterosi = ver Q.chrysorapis = com cetro de ourodiaugEs = radiantedipROSpos = de dupla face [ver adiante ogrupo tetra·]eriboas = que berraeriphyllios = f rondoso [ referência provável a

herma engrinaldada]euphrôn = alegre, festivoeuphrenglis = brilhante, reluzenteeurrapis = com belo cajadoeuskopos = pe rspic az, v ig il an te [ esp . em _composição com argeiphontlis, ver S.]eusphyros = com belo s to rnozel os [u su. de

mulheres]glischrOn =avaro, ganancioso [adj.: pegajoso,

mesquinho]gymnas =nu, t re inado; exercíc io [não um ep.mas dizia-se que Hermes encanta emgymnas.e no engano, sendo f reqüen temente r epr e-

sentado nu]

[ tr an sfe rênci a de hermas fe it a ta lvez de uma

dessas conexões de identificação com o Senhor

Minoano dos Animais, como sustenta Jac-

queline Chi tt enden: daí ser e le senhor de Circe

enquanto Senhora dos Animais, sendo ambos

figuras mágicas]

kratus = poderoso, forteleukos =brilhante, claro [ep. culto, Tanagra]

neos = jovempais = criança, jovemperikalllis = l indíssimo [como Apoio]phaidros = brilhante, radiante; alegrepheris tos , pherta tos = valentíssimo, o melhorphilokertomos = que gosta de zombarpresbys = velho, idososOkos = corpulento, fortesparganiOtEs = criança em fraldassphEnopOgOn = com barba pontuda em

forma de cunhatetraglOchin = quadrangu lar , com quat ro

lados [ transferência da base de herma]

tetragônos = idem acimatetrakephalos = com quatro cabeçastrikephalos = com três cabeças [como acima;

Suidas expli ca como deri vando de ol hando o

cruzamento de três estradas]

agathapoios = benéf ieo [ como o Aga thosDaimon, contexto da serpente]areskomenos = agradável, ameno(charidotEs) = ver R

charmophrOn = de coração maravilhoso, de

coração alegredOtEr = doado r [de bens; cf . d Oto R: ea on,E]enkardios = no coração, próximo da pessoaepiphorcnatos = muito favorável(eriouniosy = ve r S .(euvangelosy = ver T.

eukolos = afável, que se contenta facilmente,despreocupado , imprecis o [ep. cult o, Met a-ponto]

eunoustatos = muito bem disposto,benevolentehetairos = companhei ro [de uma fes ta ; t am-bém: de uma noi te negra]hlytoboulos = famoso em conselholysimerimnos = aquele que nos livra de

preocupaçãomasErios = que buscamegalodôrotatos = o mais generosomeilichos = genti l, bom (observe-se: ZeusMe li ch io s, r ep res ent ado como enorme se r-pente, conexão crônica)

B. ATLETISMO, JOGOS, MÚSICA (SENTIDO ORIGINAL E AMPLIADO)

(achnous) = ver A.

agOnios = que preside jogos [disputas

atléticas e musicais]aphctlirios = da pista de corridas [numa

herma,junto de uma estátua dos Dioskouroi]brabeutlis = juiz [nos jogos]dromios = da pista de corridas [ep. culto,

Creta]enagOnios = de jogos , juiz de disputas [esp.

nas consagrações dos vencedores]

142

OphelOn = que ajuda, proveitosophaesphoros = port ado r de l uz [con text o:rito dionisíaco]philandros = que ama o homemphilanthrôpotatos = o que mais ama os

homens [ também usado para Prometeu]philios = amigável [como Deus de palavras]ploutodotEs = doador de riquezas [eis umtr aço iconog ráf ico, a bols a chei a de ouro ; ounuma época posterior, segundo RobertGraves , a s aco la de pe le de g rou, cont endo a sletras do alfabeto]prophrOn = cortês

proxenon = protetorpyrünous = propenso à paixão (fogo),veemen-te [ referente ao aparato mágico: observe-se arelação de H. com as varas de fogo paraproduzir fogo]selaliphoros = port ado r de l uzsynopaOn = companheiroterpOn = alegre

tychOn = que traz sorte [amor,negócio,arte,esp. música, atletismo]xeinodokos = anf it ri ão, aquele que recebe

estrangeiros [um festival em Acaia -theoxenia; H. servia de anfitrião às outrasdivindades, em seu festival, a Herméia]

D. ASPECTOS CrÔNICOS, A MORTE. PSICOPOMPO

gymnasiou = do ginás io [dedicatórias numa

pal et ra : H. er a fr eqüen tement e a ssoc iado a

Héracles]harmateus = condutor de carro [ep. culto,

Erythrai]nEniochOn = condutor de car ro

(kOrophilos)=

ver U.lyraios = l ir is ta [como constelação; H. como

supervisar das Musas]mousopolos = que serve as Musas, poeta,

músico, menestrel

adakrytos =que não chora [ao leva r a s a lmas

para a i lha dos abençoados]amyEtos = não iniciado [provavelmente uma

brincadeira, malcompreendida por Hesíquio;observe-se que H. foi iniciado antes de descer

ao Hades , em Aristófanes , A Paz, I. 374 -ir ôn ico . Um provér bio c it ado por C1ement ,h e rmE s amyE tos =  ensina tua avó Farnell,

5.16 n.b](angelos) = ver T,

archedamas = domador de forças [comoguia da morte]chthonios = ctõnico [como condutor de

almas; também no corpo de fórmulas epronunciamentos mágicos ; iconográf ico: H.associado à serpente](daimOn) = ver F .

erichthonios = (intensificação de chthoniosacima refer ido) [ep. culto]

143

eutaphiastlis =bom enterro (?) [título culto,Metaponto]heilissOn = aquele que rodopia [à volta deTártaro: mag-pap.](hetairos) =ver C.(katachos) = verLkatachthonios = infernal; Deus subterrâneokataibatEs = aquele que desce

nekyEgos, nekTagOgos, nekyagOgos = o

mesmo que nekropomposnychios = pertencente à noite, o mundo in-ferior(pompas) =ver H.propompos = séquito, condutor [da morte]psychagOgos = aquele que conduz as almasdefuntas para o mundo inferior

G.FAMILIAR

autadelphos = irmão [de ApoIo]genethlon = descendência [deDioniso; muitasvezes H. é equiparado com Dioniso na arte,esp. nas cenas rituais; um motivo famoso: H.carregando o infante Dioniso]

mente na origem uma forma alternativa paraM a anatoliana, a Mãe ]nymphagetEs = líder das Ninfasnymphios = noivo [de Afrodite]pais = filho, criança

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kinEsis = o que move [osespíritos]koiranos = senhor, governante [thnEtOn: dofalecido](naiOn) =ver K,nekropompos = condutor da morte

psychopompos = psicopompopsychostolos = séquito de almaspsychotomios =guardador de almas(sotEr) = ver O.tamis = administrador, senhor [dealmas]

E. HABILIDADES MANUAIS, COMÉRCIO

agoraios do mercado [também oratória,lei, educação]charidotEs = que dá alegriadEmiourgikOs =semelhante ao trabalhador,de um ar tesão [em arte, H. usa uma túnicacurta de trabalhador]dOtor' eaOn = doador de boas coisaseleopOlou = vendedor de ó leo [na entradada loja]empolaios =comércio, transação [esp.comoH. = Deus dos pesos e das medidas]emporikos = de ou para o comércio, mercan-tileparOgos = que ajuda (no trabalho)epipoliaios = (incerto) [provosemelhante aempolaios]heuretlis = inventor ou descobridor [cf.Eureka -  Achei  O verbo talvez serelacione etimologicament ~como nomeH.]

kerdemporos = aproveitadorkerdeon = por tador de ganhos, proveitos,vantagemkerdoos =portador de ganho, vantajoso [H.comoDeus dos mercadores e como Deus dosventurosos, o hermaion ou heurEma].kyllEnios = cileniano [como Deus dos fer-reiros]mEchaniOtEs = inventor, artíficepalinkapElos = vendedor de produtos im-portados(ploutodotes) = ver C.poneumenos = laboriosoporistEs = fornecedor, que consegue [finan-ceiro; mas também, termo que os ladrõesaplicavam a si próprios]poristikOtatos = o mais hábil para fornecerou obter

F. DIVINDADE, CONDIçAOCOMO EM A

aidios = eternoaskopos = invisívelathanatos = imortaldaimOn = poder divino [no sentido forte;esp. coinGe,  do mundo inferior ]diotrephlis =

estimado por Zeushagnos = sagrado, castohedas = residente/acomodado

 

makar = abençoado, feliz [típico das divin-dades, em oposição aos mortais; cf. pl.makares =  os mortos abençoados ]olympios = olímpicoouranios = uraniano, de origem celestialsebos = veneradotheos = um Deustheskelos =maravilhoso, posto em movimen-topor umDeus, inspirado por Deus

gonos = descendência [masculina; de Maia]huiOnos = neto [de Crono]huios = filho [de Zeus, Maia]kasignEtos = irmão [de ApoIo]Maidas huie = filho de Maia [maia, bom,mãe, etc. cf. MaiEios, Maiadeuus, provavel-

diakioros = guia, mensageiroithuntOr = guiakathEgElOr, kathEgemOn = líder,guia,mestreCepoulto, Delfos]

patEr =pai [dePã, e outros]patrOios = paiteknon = filho, criança [de Zeus]tekos = filho, criança [poét.]tokos = descendência [deZeus eM.]

H.GUIA

pompaios = séquitopompos = guia,caminhante(propompos) = ver D.

1.REBANHOS; ANIMAIS; VEGETAIS; FERTILIDADE

agrotEr = rústico, caçadorauxidemos que amplia o povo[característica de aparente fertilidade]boElatos = condu tor de gado; invasor degadoboossoos =condutor debois [também usadopara moscardo ]boukleps = l adrão de gado [cont ração debooklopos, bouklopos]

boukolos =guardador de gado [observem-seos sentidos secundários: trapace iro, en-ganador, poeta bucólico , ado rado r deDioniso]bouphonos = matador de boi [ também:sacerdote ](charidotEs) = ver R

elatEr = condutor [deboi]epikarpios =guardião, portador defrutos [sóem Amorgos (l G. 12.7.252) - H. não é emgeral Deus da vegetação]

epimElios = guardião, guardadorde rebanhos(eriounios) = ver S.episkopos = guardião, vigil ante [numaestá tua que presidia um aprisco de cabras](epithalamitEs) = ver N.

euglagEs = doador de leite [dedicatória dopastor de cabras]kalldaulEs = estrangulador de cão [usu. =

cães selvagens que ameaçam o rebanho, oureferindo-se a Argos, O cão,porém, é tambémemblema de Hécate, ela que com H.... tem opoder de fazer osanimais se multiplicarem nafazenda . Hesíodo, Teogonia , l.444]

kriophoros = condutor de carneiro [tambémum aspecto de Apo io; r aízes no ant igoOriente Próximo]IaEnitEs = que pertence ao gadolamagchEs = est rangulador de cães [verkandaulEs]

mElossoos =protetor deovelha, guardião deovelhanomaios = pastornomios = protetor de rebanhos, pastor(nymphios) = ver G.

oiopolos = pastorphalEs = fálicophallos = falo [H. como o falo; não ep. comoitifálico, mas assim descrito, por exemplo,Calímaco, lamb, 9.199]

145

phyUllmios = produtor, nutridor [inscrição

numa vi nha, m as não usual]poimEn = pastorsOriJas = doador de grande quantidade detrigo [usu. ep. de Deméter]

spElaitEs = da ca verna [Laodicé ia ; con texto

pastoral]tachygounos = que produz fruto rapida-

mentetyreutEr = de pastor de cabra e queijo de

cabra

katachos = orador e loqüente [que reprime ouprende as almas em sepulturas - plaquetas

mágicas; também em fórmulas mágicas]klEdynios = que faz presságios [mais tardeklEdOn; oráculo casual: as p rimeiras palavrasouvida s após f ic ar n a es cut a, acompanhando

uma dedicação a Deus](k lepsiphronos) = ver R

one iropompos = guia dos sonhosrmeiros = Deus do sonho [ver hEg Etor, O.Jophthalmos = olho [mag.;  o grand e o lho do

mundo , como o condutor do carro do sol](paredros) = ver O. [usado nas inscr ições

mágicas]pempOn = emissor [mago pap.]prognOstEs =presciente [aplicado a médicos

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J . LEI, JUSTIÇA

(agoraios) =ver E.dikaios = justo

dik aspolos = que dá a l ei ; j ui zennomos = j us to , d en tro d a l ei

peithodikaiosynos = obediente ao que im-

plora a causa da justiçathesmios = que dá a lei

KNOMES DE LOCAIS E DE PESSOAS

aenos Thoth-Chu ; t ambém aéreo  emoposição a c tõnico

aigyptios = egípcio [= H. T rismegistos]

aipytos = Aipytos [Divindade arcadi ana daterra; comparada a H.]ainiOn = Deus de Aeno [na Trácia; ver per -pher aio si

akaklisios = acaciano [também: cortês, in-dolor - que é secundário? Pausãni as diz do

templo de Hermes Acáci o que só restou uma

tartaruga de pedra]anoubis = Anúbis, d e ros to metad e negro,

met ade douradoark ado s = arcadiano [também apenas arka s]el Lukeio = Liciano [cf, Apoio   ]  

epa kiios = na praia [ep. culto, Sicion]

epipoliaios = superior [sobr e o pór tico; emRodes](hannateus) = ver B.

helikOnios = heliconiano [usu. de Posídon](h ennanoubis) = ver V.hyperboreios = hiperb6reo

imbrios, imb ramos = imbriano [Hermes

pelasgiano](k iJ dmilos) =ver P.

Ka dmos = cadmeano [ep. culto , Samotrácia]

kOrykiOtEs = coriciano

ktaros = [tratado como nome pessoal,Licofron, Alex, 679, mas também aprovei-

tador , possuidor? ](kylLEnios) =ver E.

laphrios = lafrianona iOn = que mora próximo do C6c ito, rio dos

mortosnOnakrintEs = nonacris iano [na Arcádia]

oreios = das montanhas [caçador]parammon = Paramonpaumouphis = [c omo os egípcios expressavam

Thoth nas inscrições, em grego]perpheraios = Per feraio [ep., na Trácia; ah erma do pe sc ado r e ra divini zad a qu ando semostrava indestrutível ao fogo e era percor-

r ida em toda a volta . Calímaco, Lamb, 7.1 97]pheraios = como o termo precedente?palygi.os = poligiano

prognOstE s = presciente [aplicado a médicose astrólogos]

pterseus = o destru idor [ap licado a H. e a

Perseu]stilbOn = Sti lbon , nome do planeta Mercúrio

syngonos = nativo

L. MÁGICO, ORÁCULOS, SONHOS

(al ex:ilcakos) = ver O.

(chthonios) =ver D.

  6

(epipempOn) = ver V .hypnodotlis = que dá sono; ver hy pnodôtis

klEr os = do oráculo, loteriakosmokratOr = senhor do universo [em

papiros mágicos e no misticismo helên ic o

mais recente]m ik rodynamos = pequeno poder [referências

mágicas e astrol6gicas ao planeta Mercúrio]

e astrólogos]prostatEs = guardador [de sono]psi th yr os , p sithyristE s = murmurador [ fal a

mágica; mas também como Deus do amor,em conexão com Afrod ite]

M. LOUVOR, FAMA, AMADO

(ag laos) = ver A.

ainetos = merecedor de louvoraristaios =valoroso [tí tulo culto de H., Zeus,

Apoio]eratos = amadoerikudlis = gloriosoeudokimos = f amoso , glorioso

eu klEs = famosoklytos = renomado, gloriosokydimos = glorioso, nobilíssimo [= kydalimosilogismos = notável, famoso

megas = grandemegistos = muito grandeOrmidion = caríssimo, querido [irônico]

pammegistos = muito grande

pa ruokratôr = onipotente

peribolitos = famoso, not6riophaneros = ilu st re ; visível, manifesto

philos = amado , caro

philtatos = caríssimotrismegistos = três vezes grande

N. CAMINHOS, LIMITES, JORNADA, ENTRADAS

e no di os (einodios) = pe la es tr ad a [H. comoguardião das encruzilhadas, portões e fontes;

observe-se Hécate como enodia , e Ártemis

einodiE]epitermios = na fronteira

epitha lamitlis =can tor de canção nupcial [deum ponto à por ta do qua rto nupc ia l]ge itOn = vizinho; limítrofe

hodios = da jornada, estradahodoiporos = caminhante

(OpOpEIEr) = ver R

ph ylax = guarda [de e st rada]polistrophos = gonzo da cidade [cf. imagem

do gonzo da porta ]pronaos = d ia nt e do templo [uma e spécie deprofilaxia religiosa contr a o mal]propyla ios = do por tal [onde entram os

estrangeiros, peregrinos]pro thyraios =dia nt e d a por ta [como Ártemis

,e Hécate]pyla ios = junto ou dia nt e do por tãopylEdokos = olhando a p orta

pylEIE s = morando junto da por tapylios = junto do pequeno pórtico [junto dopulE t an to d a a lf ândega como do mundo in-

ferior]pylostrophos =gaie-tumer(strophaios) =ver R

strophioucho s = à entradatem enouro s = guardião de um temenos (área

sagr ada) [num mar co de limite]

thalassios = do mar [formulação posterior,modelada sobre hodios e mo dios]thuraios = à porta

147

O. GOVERNANfE, LÍDER, GUARDlÃO, SALVADOR

agEtOr = líder [freq. motivo iconográfico;significado hierático]alexikakos = que impede o mal, sa lvador[usu. ep. de Apoio: associações crônicas,

fálicas]anaJaOr = senhor, mestre [cf.anax)

as camas eram dispostas voltadas para suaimagem no quarto de dormir](lwiranos) = ver D.IwsmEtEs =ordenador, magistrado, diretorIwsmEtOr = comandante, marechal(lwsmokratOr) =ver L.

eupteros = aladochrysopteros = com asas deouroOkydromos = que corre ligeiroOkypedilos = ligeiroOkypous = ligeiroOkypteros = aladoOkys = rápido, velozpherepteros = alado

ptEnopedilos = com asas ou sandálias quevoampteroeis = aladopteropous = rápidotachinos =veloz [forma poética para tacllys)

tachys = veloz, etc.tanypteros = com asas longastanysipteros = com asas longas

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I

anassOn senhor, mes tre [evocaçãocontraída para O ana:·  O Senhor )archEgetEs = fundador [esp. no misticismohelênico tardio: criador de todas as artesmágicas ](archos) = ver R

(aUDdder.nos)=verl.despotEs = senhor, déspotadiopos = governante, capitãoephoros = guardião, supervisorhEgemonios = guia [líder da tr opa para aguerra)hEgemoneus = governadorhEgEtOr = chefe, comandante [também mestre dossonhos ,lembrando que a últ imalibação da noite era dedicada a H.(um gorrode dormir podia chamar-se umhermEs) eque

kreiôn = senhor, mestrelaossoos = agitador da nação (para a guerra]medeis = guardião, governantemedeOn = idempalmus = rei [=bosileus]paredros = coadjutor, assessor [adminis-

trativo)(phylax) = ver N.proedros = presidente, dirigenteprogonos = fundadorpromachos = campeão [guerra]promos = chefe, guerreiro [à noite]proxenon = patrão [daterra]rhytEr, rhytOr = libertador, guardião, defen-sor, salvador [docampo, do castelo]sOtEr = salvador [inscrição em túmulo]timaoros = vingador, Deus tutelar

P. SERVO, MINISTRO

diakonos=

ministro [de Zeus; de um líder(tirano) da juventude]epopteuOn = administrador, supervisar [deZeus]homostolos = criado [de Maia]hypEretos, -tEs = servo, subordinado [dosDeuses]kadmilos, kasmilos = ministro [tambémnome de pessoa, associado com os mistériosdos Kabe iroi ; ref le te o papel de H. como osacrificador divino]

katharophonos=

purificador [como brilhosobre ArgeiphontEs]latris = servoleukophontlis = branqueador [como brilhosobre ArgeiphontEs]mageiros = cozinheiro [semelhante a kEryxna função de preparar sacrifícios)oinochoos = copeiroopEdos = criado [relativo às Musas]propolos = criado [dos Deuses maiores]sakophoros = escudeiro, porteiro [esp. naarte, levando uma bolsa cheia de ouro]

Q. RÁPIDO, ALADO

aellopodEs = ligeiro, com vento nos pésakichEtos = ligeiro, que não é alcançado

  8

apteros = rápido [nãomencionado, por causada grande velocidade)

podarkEs = l igeiro [indo em socorro a pé,correndo para salvar]ptanos =alado, rápido [associadocom furto]

thoos = rápido, apressadotrochalos = que corre rápido

RROUBO, VELHACARIA, ARDIL, FRAUDE

amEchanos = irresistível, irrefreável, nãocontrolável, inexplicável [contexto de sonho]anaideEn = descaradoaproidEs = invisível, não visto [associadocom ak ichEto s , como forma de H. ent ra rnuma casa]archos = líder, chefe [príncipe entre ladrões)charidotEs = que traz alegria [festival de H.CharidotEs em Samos onde havia l icençapara roubar; também aspectos de fertilidade)dolios = astutodalomEtEs = astuto, mal-intencionadodolophradEs = matreiroEperopeutlis = enganador, trapaceiro

exapatas = fraudulentolIaimylomEtEs = que vencepor ardishaimylos = adulador, ardilosohodoikoros = assaltante que fica de embos-

cadakalwmEdEs = que inventa, fraudulentokakotechnos = ardiloso, lascivo,que se valede práticas máskeraistEs = saqueador, ladrãokerdeOn = muito astuto, ardiloso, ladinokertomos = escarnecedor, de língua afiadaklepsiphronos, -rOn = que age em surdina,dissimuladork1eptEs = ladrão, malandroIEistEr = ladrão

merimna = que incomoda [a deuses ehumanos)opOpEtEr = espião [nosportões, à noite]orchamos = líder/príncipe [de ladrões]pansophos = muito espertoperiplokos = intrigantephalantheus = o que ilude [li teralmente, ocalvo)pllEIEtEs, philEtEs = ladrão, malandropltOrios = furtivopsydros = [hipoteticamente, do mês Psydreus,do Mentiroso]poikiloboulos = ardiloso, esperto,  de con-selho mutávelpoikilomEtEs = cheio de muitas manhaspoikilomythos = de muitas falas , perito emfalarpolymEtis = de muitos conselhos, recursospolytropos =mu1tiforme,safado, versátil [cf.versipellis, de Mercúrio)(poristEs) = ver E.(poristikOtatos) =ver E. ptanos =ver Q.

sophos =hábil [Aristófanes: o mais vivo -irônico, como freq. em A.)strepsaios = t orcido (de mau humor) [verapalavra seguinte]strophaios = safado (Deus dos gonzos daporta) [daía imagem de H. nas chaves)toichOrychos = arrombador, ladrão

  9

S. ÚNICO, INCOMUM

argeiphomEs =matador de Argos? matadorde serpente? o que brilha? [freq. associadocom muitos adjet ivos, por exemplo, kratus forte ; euskopos,  de olhar agudo ]

epítetos referentes a sua proteção à música;tartaruga: cf. akakEsios, em K., acima]dionysophoros =portador do [bebê] Dionisoeriounios = (incerto) portador de bênçãos,

paidokoros = guardião de meninos, aqueleque cuida dos meninos paidotribEs = mestre de ginástica [observe-se que paidogOgos,  pedagogo , não seemprega para H., como far ia pressupor osentido moderno; o uso atual dizrespeito aoescravo que leva as crianças à escola; haviadestes que faziam oferendas a H.)

(pais) =ver A.palaistritas = do ginásio (palestra)philotekne = amigo/amante das c riançassyntrophos = companheiro (de), familiar(aos efebos) [ Fervor para aprender ,eumatheia, enquanto  dado por H. não éusado como um ep.; Calímaco, lambi, frag.221)

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chelykIonos = ressoando com o barulho deuma carapaça de tartaruga [um dos poucos

esperto, portador da sorte, que dá lucro, queajuda, rápido, etc. [daí estar associado na artecom a cornucópia)

T. PALAVRAS, ORATÓRIA, MENSAGEIRO

(agoraios) = ver E.agornios = oradorangelos = mensageiro, guia,  anjo  [observe-se Cl.G. 5816e o Hino Órfico 1.407,mensa-geiro de Perséfone)

eiremlis orador, pacificador [Piatãorefere-se a esta palavra como uma dasetimologias de HennEs)euangelos = portador de boas novashermeneus; hcrmlineus = intérprete [etirno-Iogiafolclóricaassociadacomhermneuien, inter-pretar)hoplon = instrumento, a rma [Carter , emRoscher, supl. I, lêcomo vocativo, e portantocomo um apelativo; Athanassakis oferece umsignificado inglês (Hinos Õrficos, 28.10: tubrandes [entreos homens]a armaameaçadorae respeitável da palavra )kEryx = arauto, embaixador, mensageiro [atéque: sacrifica - observe-se este papel noshinos homéricos; esp. na frase kEryx megiste)

lalos = loquazlogios = hábil em palavras [ap licado aDemóstenes, como um exemplo de H.Logios; relacionado com a dialética)logos = palavra, expressão [vocativo: O'Hermes, palavra profética )pelsinous = que persuade a mente [oratória;daí H. associado com as Cárites no sentido dagraçanecessária aoque é hábil;com freqüência

eleas conduz na iconografia]phiJologOtatos =que fala muito, instruídophlyEsiOn = que se excede em falatór io ,tagarela(poikilomythosy =ver R.prophEtEs = intérprete, arauto, profeta

stOmylos = que fala muito, verbosotrochis = mensageiro (de Zeus) [as lfnguas

dos sacri fí cios são ofe recidas a H. como oarauto, Deus das palavras)

u. RESPONSÁVEL PELA JUVENTUDE, AMANfE DA JUVENTUDE

(chlamydEphoros) =ver A.(diakonos) = ver P.ephEbos = efebo [adolescente, com maisde18anos)(gjmnasiou) = ver B.

kechrEmenos = sujo [istoé, de cinzas: fingin-do um bicho-papão para uma criançadesobediente]kOrophilos = amigo da juventude [no con-texto do ginásio (palestra))

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kouros = juventude [aplicado ao próprio H.num apelo a Maia par a que mande ajudaatravés de H.)kourotrophos = educador de criança [usu. emrelação a mulheres e Deusas; usado esp. a

respeito de H. cuidando de Dioniso criança)moia = parteira [em relação a Beroê/Amy-mone]paidokorEs = nutridor de criança [ep. culto,Metaponto]

V. TERMOS E FRASES CORRELATOS (SELEÇÃO)

aguieus guardião das ruas, à ent rada darua: das colunas ponti agudas de ApoIo,

semelhantes em função ao uso da nossacategoria N,mas não aplicado a H.doneôn = que murmura [referido como ep.por Carter, mas não usado como apelativo deH.; refere-se às abelhas das quais ele apren-deu a arte da profecia)epipempOn = que envia (sonho): oracular eoníricono contexto, nãousadocomoapelativo.euermia = acaso [gramáticas tardios; cf.euermeô, ser afortunado ou favorecido porH. ; euermes, afortunado)hermaia = Herméia [festivais de H., carac-terizados às vezes pela licençade roubar, oupela permuta de papel entre amo/servo;levadosa efeito noquarto dia do mês que eraconsiderado de sor te (ju stamente com oquinto, dia de ApoIo)]hermaioi lophoi ou hermax = [amontoadosdepedras dedicados a H.; mais tarde, pedrasamontoadas sob hermas; aplicado também

aos marcos de estrada romanos; lendasposteriores dizem que H. foio primeiro cons-

trutor de estradas)hermanoubis = [forma helenizadade Anúbisjhermeiae melesthai = praticar ginástica ouoratóriahermokraplilia = mercado de H. [conjuntode lojas)hermou spondai = fes ta de H. [semelhanteaos festivaiscômicos anuais de Creta]kErykeion =   staff ou caduceude H. [àsvezeseste, ou suas duas serpentes entrelaçadas, es-tava esculpido nos ladosdas hermas - sendocom freqüência o modo maisfácildedistinguiruma herma de H. deum íconede Dioniso)koinos hermEs =  o achado de Hermes écompartilhado [algo como uma divisãomeioa meioquando seencontra algode valorinesperadamente; mais formalmente:  Par-ceiros nos tesouros encontrados ]pseudr eus = [um mês, provavelmente dedica-do a H.como mentiroso]

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Iv. A hibridez [t'hybris ] d os n om e s E Hermes desce todoo caminho- aointerior deHades, se se quiser,e por certo àsprofundezas do sono e do movimento psíquico- antesde retomar trazendo as mensagens da alma (Perséfone, Eurídice) devolta para o lugar onde possam emprestar uma introvisão aos enganose tédiosdiurnos. Esse cursode movimentopara baixopode seruma fugaalada,veloz, através dos contornos e limites usuais, se dermos atenção

Durante o processo de organização dessas relações, senti que àsvezes perdia de vista o rumo que o trabalho hermético estaria toman-do, dominado que estava pelo léxico, pelas listas de palavras e pelasedições críticas. Achei consolo num epigrama de uma herma, citado

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à iconografia tradicional.Ele exige o engano e a safadeza pelos quais o cotidiano banal -

ou o domínio dos pais - é momentaneamente ignorado. Éum jogodivino, uma disputa pelo significado; é uma arte hábil que precisa ser

posta em prática cuidadosa e atentamente. E é também uma questãode explorar a tirania das palavras, a fim de dar introvisões a suassurpresas etimológicas - uma poiesis hermenêutica. Este empreen-dimento, ao que parece, é fecundo e até portador de prosperidade.

As tarefas começam quando a gente sai do aqui-em-casa, quandoestamos a caminho pelas estradas, quando nossa meta é a jornadarealmente imensa de Kafka, com um destino fora daqui (em suaparábola Das Ziel). As tarefas dizem respeito a passagens de entradae sendas secretas, fontes e cozinhas, mercados e bibliotecas - todaa multiplicidade ilimitada das cidades e atividades da humanidade.

Asconexões e reconexões do arauto surgem reiteradamente, cadavez de umjeito, não havendo nenhum monoteísmo iconográfico quese transforme no Perfeito ou no Único. No entanto, a polinomia quevimos delineando simboliza a Experiência de Hermes, o muitos-no-único (epigrama numa herma antiga, Cil.G. 6745):

na Antologia Grega  A.PI. 16.187): Um homem pedia ajuda a umaherma feita de madeira, mas Hermes continuava de madeira [isto é,não respondia]. Tomando então a herma, o homem atirou-a ao chão[cf. o motivo dos contos de fadas de arremessar o sapo feio ou o

monstro contra a parede]; a estátua partiu-se e espalhou-se ouro.Mas, a últ ima linha do epigrama é a melhor: hybris pore pollaki

kerdos.  Aafronta [ou, se se preferir: orgulho , ousadia suprema ]muitas vezes traz proveito.  Talvezaprendamos disso que hybris nãoé sempre a fenda trágica , que avançar contra a tarefa aparente-mente não produtiva pelo menos purifica o ouro que pode, maistarde, ser trabalhado em vasos reluzentes. Quem sabe hybris se refiraagora a uma superconfiança no monotético e no unívoco.

Para onde quer que se vá, hermeticamente, é-se levado àprolixidade e àMannigfaltigkeit. Hermes reduz a arauto dos Deusesapenas um ser humano que não passa de escrevente no saguão da

cidade . Hermes é antes todos os atributos, como a pessoa é infinita-mente maisdo.que a tarefa que executa. E a descoberta de significadosse evidencia tanto como tarefa de terapia quanto como aquilo que sepode ensinar e pode ser olhado como uma forma de crescimento daalma.

Cada umde nós é muitos; mas poucos de nós honram espontanea-mente a oportunidade que encontram, a descoberta casual que faz amúsica da vida (Hermes tropeça na pobre tartaruga rastejante e,esvaziando-lhe a carcaça côncava, dela faz a primeira lira que seuirmão Apolo cobiçará: observe-se a formação do par fraternal e atensão entre o Apolíneo e o Hermético). Existe um verdadeiro

.treinamento nas artes das possibilidades impossíveis, treinamentoesse que exige o vaso hermeticamente lacrado da auto-atenção e quereflete os opostos rutilantes, os altos e baixos repentinos que serecusam a nivelar-se como vanilla-gray.

Eu não era, eu comecei.Eu era, não sou: issoé tudo.E quem disser mais, mente:Eu não serei.

Precisamente esta compressão ímpar de Mercúrio pode indicartambém um ter vivido, um ter vivenciado mais plenamente, um ter

visto através dos falsos termos de parada de maturidade ou de identidade única.E tendo sido tocados pelo cajado mágico, enxergamos agora de

modo diferente: Héracles, em sua descida ao Hades, saca a espada

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contra a ameaçadora Górgona - só para aprender de Hermes queela não passa de um k en on e id O lo n, um fantasma vazio (Apolodoro,2.5.12). Acompanhando as inúmeras opalescências das imagensherméticas, obtemos deste amigo da nossa juventude permanente aproteção quanto ao que é efetivamente espectral e quanto ao quedeveria ser temido e evitado, como converter a carência sombria

Apolodoro: súmula helênica que dá uma noção de como os mitos teriam sido ensinadosnum curso sobre Introdução à nossa herança , no século I;excelente tradução modernaé a de Michael Simpson, G od s a nd H er oe so ft he G re ek s: T he L ib ra ry 0 1 'Ap ol lo d or us ( 1 9 76 );preciosa pelas notas, embora muitas vezes obsoletas, é a tradução deJ. G. Frazer, na sérieLoeb (1921), 2 vols.A Antologia Grega: texto e tradução em 5 vols., por W. R Paton, na série Loeb (1916-

1918); t extos e notas em 2 vols. ,por S. 5. F. Gow e D. LPage (1965); e texto , notas etradução em 2vols. (1968).

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numa força lucrativa. Hermes, o ladrão, era também invocado comouma profilaxia contra ladrões.

Aprendemos os movimentos-de-Hermes com uma auto-habil idade essencial e vivida que zomba das listas apolíneas dos

nomes de Hermes, nomes esses que só podem ser pontos de partidapara experiências de iniciação que Hermes assume enquanto conduznossas almas pelos reinos, trazendo maissonhos do que razão. Ondevamos com ossonhos, com asmensagens, com as moedas de ouro dabolsa de Hermes - é problema nosso. O fabulista Bábrio faz opróprio Deus dar voz ao dilema e às possibilidades (extraído de JaneHarrison, Mythology, p. 9):

Hinos Homéricos: texto editado porT. W.A1len,W.R Hallidaye E. E. Sikes,2&ed. (1936);traduções: prosa, por N.O. Brown, em Classics in 'Iranslation: versos brancos, por ThelmaSargent (1973); versos livrespor Charles Boer (1979) e Apóstolos N. Athanassakis (1976).

OsHinos Órf icos : t exto , t radução e notas por A N. Athanassakis (1977); os dirigidos aHermes são o 28 e o 57.

Pausânias, De sc r ip ti on 0 1 G r ee c e; tradução em4 vols, por W.RS. Jones e H.A Ormerod(1918-1935); volume complementar por R E. Wycherley,edição revisada (1955); todos nasérieLoeb.

3. Lis tas de nomes: Foram-me de ajuda asseções de Epitheta Deorum nos suplementos à

obra deW. H. Roscher, Aus fuhr li ches Lex ikon ... (1884,1937; J. B.Carter, Supl. I, 104-11);

em S. Eitrem, acima; e as inúmeras citações de textos originais nos 5 vols. de Lewis RFarnell, The Cul ts of t h e G r ee k S ta te s (1869-1909; ver índice).

4. Manuais gerais são úteis, mas nem sempre precisos na associação das citações e resumoscomos textos; e em geral não fornecem referências à grafia do termo no original: EdwardTripp, T h e M e n di an H an db oo k o f C la ss ic al M y th ol og y (aedição de capa dura foipublicadacomo Cr ow e ll 's Ha nd boo k 0 1 C l as si c al My tho lo g y) (1970); os 2 vols.de Robert Graves Th eGreek Myths, ed. revisada (1960; os 2 vo ls. d e L. Preller e Carl Robert, GriechischeMythologie , 41ed. (1964-67); de H. J. Rase, A H an db oo k 0 1 G re ek M yt ho lo gy ( 19 59 ).

5. Ensaios e monografias: numerosos demais para serem mencionados aqui, seja-me per-mitido lembrar: de Norman O. Brown, H en ne s t he Thief (1947), extraordinário trabalho

de erudição e que por primeiro est imulou meu interesse por Hermes, há anos; e Kerényi(ver a primeira página deste artigo).6. Bibliografia adicional: Espero que meu manuscrito, Mythography: The S tu dy 0 1 M y th s a nd

Rituais, seja publicado em breve, pois nele reuni muitas fontes bibliográficas; JohnPeradotto, Cla ss ical My thology: An Annotated Bibliography (1973), a juda na busca deedições e estudos modernos.

Um escultor fez uma herma de mármore para vendere aspessoasvieram dar lances. Uma a queriacomo pedra tumular, poisseu filhomorrera recentemente.Um artesão a queria para erigi-lacomo um deus.Fazia-setarde e o escultor não a tinha ainda vendido.Então disse: Voltem amanhã bem cedo e apreciem-na outra vez. Ele foideitar-se e eis que nos umbrais dos sonhosHermes surgiu e disse: Minhas funções pendem na balança,fazede mim uma coisa ou outra, homem morto ou deus. 

REFERÊNCIAS E FONTES

1. Artigos sobre Hermes nas enciclopédias técnicas emalemão são uma mina de ouro, masescritos deforma tão densa, técnica econcisa que setornam dedifícil utilização: S.Eitrem,em Pauly-Wissowa-Kroll, Realency (8:1, 1912), cols. 738-92; Supl. III (1918), 1124-126; W.Fauth, em De r K l e in e Pa ul y (2, 1967), cols. 1069-076; C. Scherer,em Roscher, Lexikon  1:2,

1887), cols. 2342-432.

2. Textos clássicos (seleção limitadíssima): dramas de Aristófanes, especialmente A paz,Pluto e A s r ãs , onde vemos a re-visão problemática do panteão clássicoem tensão com aautoconfiança crescente do espírito humano.

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VIIIARIADNE, A SENHORA DOLABIRINTO

Chris Downing

Pode-se entender, em certo sentido, o que busco neste ensaio como

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umexercício autobiográfico, umadescrição do meu próprio caminhotortuoso emdireção ao centro de umlabirinto. Desse modo, continuoalgosugerido num escrito anterior, em que passei a ver Interpretaçãodos sonhos e Memórias, sonhos, reflexões como transformações do

gênero de autobiografia. 1Proponho então que, se atentarmos de fatopara o que Freud e Jung tinham a dizer, não podemos mais contarnossas próprias histórias à moda antiga. Levar o inconsciente a sériosignifica reconhecer que o contar minha história de modo verdadeiroe completo traz à baila a minha participação nos padrões antigos emíticos.

Eu gostaria de explorar o que Thomas Mann chama o tornar-sesubjetivo, do ponto de vista mítico, para explorá-lo concretamente, eportanto, pessoalmente. Em seu belo ensaio, Freud e o futuro , elefala a respeito do que significa tornar-se consciente, orgulhosa esombriamente, embora de modo alegre, da recorrência e da

especificidade . O mito,dizele, é como a legitimaçãoda vida ...apenasatravés dele e nele a vida encontra autoconsciência, aprovação,consagração.t 'f Eu também estou persuadida de que a descoberta deum padrão míticoque alguém sente que está de algum modo ligado àsuaprópria vida aprofunda a sua autocompreensão. Ao mesmo tempo,a descoberta do significado pessoal de um padrão mítico aprofunda anossa compreensão do mito e dassuas variações. Estou interessada emsaber como a nossa experiência, abrindo-nos para dimensões do mito,àsquaisde outro modoestaríamosimpedidos,ajuda-nosa compreendera feição do mito; em saber por que as diversasvariações do mito lhepertencem de maneira apropriada; e em descobrir como todos osdiferentes aspectos desse mito ocorrem necessariamente juntos. Aavaliaçãoda conexão entre ummito e minhavidaparece harmonizar-semuito mais com a unidade do mito e ao mesmo tempo ajudar-me acompreender como momentos da minha vida, aparentemente aciden-

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tais ou fragmentários, fazem parte do todo. De fato, podemos assimchegar a reconhecer o mythos, a trama, o fio de ligação,a história danossa vida. Avaliando o modo pelo qual todas as variações,transformações e elementos quecompõem ummitosãopartes integran-tes e necessárias dele, descobrimos sua psico-Iógica.Pode-se descreveressa atenção ao psicológicodo mito e ao mito-lógicodos processos da

iluminam a expenencia das mulheres, concentro-me nos mitosreferentes às Deusas. No que tange a esses mitos, parece-me espe-cialmente importante atentar para as camadas mais antigas dastradições gregas, e não apenas para as versões clássicas que tendema representar as perspectivas de uma cultura patriarcal.

Há alguns anos escrevi um artigo em que explorava o meu4

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psique como uma exploração da mytho-poiesis , da construção da alma,porque estamos tentando captar algumsentido de como a alma, a nossaalma, recebe sua feição através da poesia, através das imagens.

Fazer isso, acredito eu, significareconhecer o nosso envolvimento

numa quantidade de padrões míticosdiferentes. Como se recorda, umadas acusações básicas de Jung contra Freud foi a de que este pareciaestar consciente de apenas umarquétipo, o qual o notificavado padrãode vida e, por extensão, do padrão de vida de todos nós - o mito deÉdipo. Jung estava convencido de que a psicologia realmente emharmonia comos processos da alma admite o nosso envolvimento comumadiversidadede mitos.De modo semelhante, JamesHillmanescreveque a psicologia arquetípica e politeísta tem consciência da ação demuitas divindades em nossa alma.3 Estamos, pois, falando de mythoivivos,de umenvolvimento comváriashistóriasde vida,não apenas comuma.

Tornamo-nos mais conscientes das dimensões arquetípicas danossa própria experiência, aprofundando-nos cada vez mais nummito e, portanto, em vários mitos. Pela minha experiência, os mitosque invadimos mais profundamente não são os que escolhemos apartir de algum livro de mitos. Ao contrário, de algum modo profun-do, esses mitos é que nos escolhem. Intriga-me a importância decomeçar, como quase inevitável e necessariamente o fazemos, comas versões mais familiares e recentes do mito. Só aos poucos, namedida em que trabalhamos com o mito, é que vamos descobrindoas versões mais antigas, as camadas soterradas, os leitos diferen-ciados. O processo é muito parecido com o de trabalhar com umsonho, onde começamos com a versão manifesta, vindo a descobrircom o tempo que ela acoberta uma história bem mais complexa epouco familiar - e conseqüentemente, mais informativa e transfor-madora. Por estar particularmente interessada nos mitos que

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relacionamento antigo com a figura de Perséfone. Nascida noprimeiro dia da primavera, eu sabia, até onde consigo me lembrarque, de um modo ou de outro, eu era Perséfone, a Deusa daPrimavera. Esforcei-me por mostrar no artigo como o meu sentido

de identificação se transformou durante os maisde quarenta anos emque ela e eu nos envolvemos mutuamente. Hoje compreendo essaconexão de maneira bem diferente da perspectiva inicial, convenien-temente ingênua e inocente. Aos poucos, fui apreciando traços domito que num estágio mais antigo pareciam relativamente insig-nificantes, ou que às vezes nem eram visíveis.

Apresenta-se agora outra figura mítica, anunciando que chegoua hora de um ajuste de contas entre nós. Embora Ariadne tambémseja alguém com quem estive durante longo tempo envolvida, esserelacionamento se manteve adormecido por mais de quinze anos.Recentemente, porém, vários eventos me ajudaram a reconhecer a

necessidade de voltar a ela para descobrir quem ela poderia ser paramim agora. Em primeiro lugar, enquanto trabalhava no artigo sobrePerséfone, encontrei várias passagens em que Carl Kerényi se referea Ariadne como sendo uma figura de Perséfone. Não tendo antesjamais pensado nas duas juntas, comecei a imaginar se atentar parauma exigiria dar atenção à outra. Logo depois, dei um curso sobremitologia em que, supunha eu que por mero acaso, incluí Dioniso eTeseu. Sóquando já iaa meiocaminho do curso, pus-me a perguntar: Por que escolhi justamente estas duas figuras no meio de toda umagama de heróis e Deuses gregos? Por que o herói e o Deus figuramde forma tão importante no mitologema de Ariadne? Deve serporque alguma parte de mimjá está pronta para defrontar-se de novocom Ariadne. Finalmente naquela primavera comprei uma casa que,só vim a descobrir issodepois que a reconheci como minha, situa-sena intersecção da Avenida Primavera (sugerindo Perséfone) com a

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 Serpentine Drive , o caminho labiríntico. Assim, era tempo deperguntar outra vez: quem é Ariadne?

Persistindo na busca,descobrique meu envolvimento comAriadneé tão importante quanto a conexão com Perséfone, e que viver maisdeummitonão redunda em esquizofrenia. No entanto, o relacionamentocomAriadne é inteiramente diferente daquele comPerséfone, porque

profundezas e eu o via como aquele que me ajudaria a sair delas. (Sórecentemente acabei enxergando de que forma Hades e o Labirintopodiam representar duas figurações completamente diferentes doreino da alma.) .

Eu estava comovida, lisonjeada, talvez algo inflada pelo que eletinha dito acerca do que eu significava para ele. Mas estava também

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é na sua origem a projeção de outra em mim, e não uma auto-identificação. Voltar a este mito significa,pois, explorar o quanto me épertinente avisãodaoutra dequemeu sou.De formas que inicialmentenão compreendemos plenamente e àsquais deveríamos dar atenção,

aquilo que outrem vê em nós e que pode ser invisível a nós, talvezseja a chave para descobrirmos quem somos efetivamente. Atentarpara avisão dooutro pode elucidar a conexão até então obscura entreo que Sartre chamaria de o en sai e opour sai, o por outros e o pornós mesmos .

Esta volta aAriadne soa comoum retorno ou como estar voltandopara um grande sonho que eu pudesse ter tido quinze ou vinte anosantes - um sonho que eu tivesse sonhado agora de novo ou queinsistisseem ser olhado maisumavez. De repente, láestava ele. Destavez, coisas novas seriam descobertas nele. Do contrário, por queprecisaria ele aparecer outra vez?

Há alguns anos, comunicou-me um amigo querido que, de ummodo que lhe parecia muito importante, eu era a sua Ariadne. Elequeria dizer com issoque meu jeito de ser para com ele dera-lhe força,coragem, introvisão, prontidão para arriscar a exploração do seupróprio labirinto, da sua própria alma, de tal sorte que, segundo ele,se não fosse assim, teria sido impossível. Dizer Ariadne era ex-primir tudo isso de forma mais precisa e mais plenamente do queoutra linguagem qualquer de que ele dispunha. Ele sugeria tambémque o relacionamento entre Teseu e Ariadne podia ser umparadigmapara nós, por processos ainda não de todo discerníveis nem por mimnem por ele. Sua descrição, porém, não era de mim,pois eu entendiao que ocorria entre nós em termos do meu mito: eu o via como umHermes que surgiria sempre que de fato necessitado, resgatandoPerséfone das profundezas. Coisa estranha ... cada um via o outrocomo psicopompo, mas ele me via como alguém que o guiaria pelas

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assustada. Porque, embora não soubesse muito sobre Ariadne, sabiaque a história não termina com o retorno seguro de Teseu e com umavariação do viveram felizes para sempre . Parece que os mitos nãoterminam assim. Como observou certa vez Geza Roheim, embora

Eros possa triunfar nos contos de fada, nos mitos é a vez de Tanatos.Eu sabia que Teseu viera de Atenas para Creta como parte do tributoateniense e, para ele e seus companheiros ganharem a liberdade enavegarem de volta ao lar, era preciso que ele adentrasse o labirintoe matasse o Minotauro. Segurar o fio de Ariadne permitira-lhe nãosó guiar-se pelo labirinto como também sair a salvo dele. Eu sabiadisso e sabia algo mais de Ariadne e Teseu - a parte que meassustava: eu sabia que Teseu, em reconhecimento a Ariadne, con-cordara em levá-Ia consigo de Creta, e que na primeira noite da suaviagem de volta a Atenas, eles pararam na ilha de Náxos; cedinho namanhã seguinte, Teseu largou velas, abandonando Ariadne. Eu

receava que, se o meu amante e eu estivéssemos vivendo de fato essemito, então esse tipo de abandono fazia parte da história que nosrestava viver.

E aconteceu: uma separação que se assemelhou a um abandonoainda que, em certo nível racional, tenha sido correta e necessária.Ao refletir-se sobre a história de Teseu e Ariadne, importa lembrarque é parte essencial dela o momento em que Ariadne se senteabandonada. Na ópera de Strauss,Ariadne auf Na xos, sua primeiraaparição é nesse momento, o instante emque desperta e percebe queTeseu partiu. A música traduz belamente sua sensação de abandonoe dá expressão ao sentimento: Jamais voltarei a amar, e portanto,em certo sentido, jamais viverei outra vez. Assim, em nossa históriaocorreu essa separação que se fez sentir como traição e como morte.

Dois anos maistarde, de ummodo que pareceu verdadeira dádiva,esse homem retomou e nossa ligação se mostrou muito diferente.

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Aparentemente era uma ligaçãocom a mesma pessoa e, no entanto,num nível mais real, tratava-se de uma ligação com outra pessoa. Orelacionamento não tinha maisas confusões, o sentimento de posse eas traições que fazem parte do amor, em nossa concepção do amormortal. A única maneira pela qual consigo descrevê-lo é chamando-ode amor imortal, embora isso sugira exatamente o romantismo quedeixáramos para trás. Ficava claro que a ligação renovada seria vivida

maisiniciativa, razão pela qual ela tem de ser abandonada emvez deraptada). O que essa história quer nos dizer aquié que a dependênciada anima precisa ser superada: Teseu não pode ficar com Ariadne.Mas, também é importante para Ariadne ser abandonada, de modoque ela possa abandonar sua dependência em representar o papel deanima. Só depois de ambos superarem a separação é que surge apossibilidade de uma ligação em que cada um tenha a sua própria

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de ummodoeterno, ainda que osmomentos concretos que passávamosjuntos seriam daí em diante poucos e raros. O que importava era osentimento de que o nosso amor não trazia maisconsigo o perigo de

interferir em nossas vidas cotidianas ou destruí-Ias.O mais importante era a sensação de que cada um de nós tinha oseu centro em si mesmo. Não dependíamos mais um do outro paranossas ligações com a alma. Eu estava bem consciente da força deestar com um homem que, em contato com o seu próprio lado feminino , não olhava para mim a fimde supri-lo em si. Só muitomais tarde aprendi que no mito de Ariadne ocorria algo bastanteparecido. Depois que Teseu a abandonou, o Deus Dioniso apareceue fez de Ariadne a sua noiva. Na ocasião, essa analogia entre o mitoe o nosso relacionamento parecia mais interessante do que impor-tante. Compreendi o que acontecera entre essehomem e eu exatamen-te como um evento bom, uma bênção - não como mitologicamenteinevitável. (Não tenho ainda certeza de quão freqüentemente o laçointerior entre Teseu e Dioniso se exprime através do mesmo homemrepresentando ambos os papéis. Sei, porém, que muitas vezes é difícildistinguir Teseu de Dioniso nas pinturas dos vasos antigos, havendofreqüente confusão entre eles na tradição mitológica:quem é o pai dosfilhosde Ariadne, por exemplo,e dequem recebeu elaa coroa que agoraadorna os céus como corona boreal is?)

Entretanto, acabei reconhecendo que o abandono de Ariadne porTeseu é o prelúdio necessário para o seu relacionamento comDioniso. Se Ariadne ajuda Teseu, então ela precisa ser abandonada.Isso pode parecer estranho num primeiro momento, mas é absoluta-

mente essencial para a compreensão deste mito. Na parte da históriade Ariadne/Teseu, Ariadne é uma figura da anima (embora, natural-mente, muito diferente da de Perséfone: Ariadne obviamente tem

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alma. Dioniso surge, então, porque é inevitável que um homem quetem a sua própria alma seja psicologicamente andrógino.

No entanto, a leitura da minha vidaem termos desse mito não fazia

parte damaneira como eu a estavasentindo namaior parte dos últimosquinze anos. Só recentemente essas estranhas pequeninas coisascomeçaram a acontecer, sugerindo-me que era tempo agora de des-cobrir o meu relacionamento com Ariadne, e não o relacionamento dooutro com Ariadne, por meu intermédio. Isso me levou a compreendermuito melhor do que o fizera antes, porque até certo ponto e de umaforma instintivaeu tratara com indiferença a identificação de Ariadnequando a imagemde Teseu a apresentara pela primeira vez Algosobreissonão soara bem verdadeiro a meu sentimento de quem é Chris,poisa versão do mito que eu então conhecia - a versão que eu imaginavaser a maisfamiliar- é a versão do homem. Sódepoisde irpenetrandoem algumas das camadas mais antigas do mito, em alguns dos seusaspectos àcobertados, cheguei à minha ligaçãocom o mito.

A versão familiar, exatamente por ser a versão do homem, trazalguma verdade para as mulheres durante muito tempo e a ponto desermos definidas pelos nossos relacionamentos com os homens epelos relacionamentos deles conosco. Pelo fato de a perspectiva masculina  ser, em certo sentido expressivo, uma perspectiva doego, talvez nos seja ainda de ajuda distinguir entre os aspectoshumanos de Ariadne, aspectos que podemos encarnar, e os outrosaspectos divinos, a partir dos quais também podemos aprender a nosdiferenciar. Não são apenas os homens que correm o risco de seremengolidos por uma Deusa.

Todavia, é importante ver como esse modo de contar o mitobrotadesse mundo heróico, olímpico e dominado pelo ego e pelo mas-culino. De fato, Teseu - talvez em especial sob a forma pela qual

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Mary Renault reconta as lendas em The K in g M u st Die e em The BullFrom lhe Sea - representa realmente o surgimento da perspectivapatriarcal. Em todas as diferentes histórias extraídas da figura deTeseu, um tema reaparece com freqüência: Teseu é o herói mas-culino em permanente conflito com o mundo matriarcal, o mundo do rei deve morrer . Herói profundissimamente consciente do

virgem não teria sido celebrada como algo que Atena realizou parasalvar a cidade de Atenas da contaminação do irresistível poderfeminino. A forma de Homero contar a história chega até a eximirTeseu de qualquer crueldade consciente. Ao acordar pela manhã, elede algum modo se esqueceu por completo de Ariadne e, por isso,inocentemente, veleja de volta a Atenas. Quando se lembra dela, ficatão abatido de tristeza que se esquece de trocar as velas que dariam

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perigo e do apelo do feminino, ele consome a vida lutando para nãoser assumido por esse feminino. Não só Teseu, mas também os ?eróisde muitos mitos gregos que melhor conhecemos - Orestes e Edipo,por exemplo - parecem ocupar precisamente o momento de

transição da história cultural grega que passa do matriarcal para opatriarcal. No período mais antigo, o sagrado era vivenciado de umaforma muito forte como feminino, circunscrevendo-se a forçapolít ica, senão nas mãos das mulheres, pelo menos numa relação comelas; o herói casava com a filha do rei ou roubava-lhe a esposa. Issoé vagamente manifesto nas versões recebidas das lendas antigas, masos mitos gregos, conforme os obtemos de Homero e Hesíodo, deÉsquilo e Sófocles, são mitos escritos a partir de uma perspectiva doperíodo patriarcal, perspectiva que resulta na redução das Deusasgregas a figuras que os homens podem manipular sem risco.

5

Assim, cada uma das principais Deusas olímpicas - Hera e Atena,

Ártemis e Afrodite - identifica-se com um aspecto do feminino.Diferencia-se o feminino retaliando-o, dividindo-o em esposa e com-panheira, em virgem esquiva e amante generosamente disponível. Con-quanto se possa lidar sem risco com cada aspecto isolado, o panoram~total da feminilidade é ao mesmo tempo demasiado assustador. Etambém mais seguro se for humanizada. Existem no mundo homéricofiguras femininas - não apenas Ariadne, mas também Helena de Tróia,por exemplo - que foram claramente Deusas outrora, estando agoraprivadas de sua magia irresistível, uma vez que se tornaram humanas.No entanto, e mais uma vez, encontramos, mesmo em Homero,evidências de que essas mulheres tinham outrora muito mais poder,

objetivo e significado do que aparentam ter nas versões consagradas.Há alusões na Odisséia ao fato de que Ariadne fora outrora algomuito superior à garota prestat iva mas demasiadamente humana queTeseu retirou de Creta.6 A deserção que ele faz de uma simples

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ao pai a certeza da sua volta sem risco. (Freud poderia nos ajudar acompreender esses dois casos de esquecimento. ) Homero quer dar aentender que Teseu deixou Ariadne inconscientemente porque ela

precisava ser abandonada. Teseu precisa abandonar Ariadne, nãoexatamente antes de ir para Atenas, mas imediatamente, antes quehaja qualquer chance de ambos consumarem seu amor - porquedepois, ele talvez não conseguisse part ir.

No mito, os acontecimentos muitas vezes são estabelecidos comexcessivo rigor: a partida de Teseu está associada não apenas comAtena, mas também com Ártemis, que intervém por instigação deDioniso. Este diz a Ártemis para assegurar-se de que Ariadne sejaabandonada - o que indica que é a ligação com Dioniso, e não aligação com Teseu, que dá os contornos da história de Ariadne. Estapertence a Dioniso pela sua essência, e não, como sugeriram alguns

eruditos, por causa da oportunidade de associações ri tualíst icas numperíodo posterior. A intervenção de Ártemis revela que Dioniso játem uma exigência, porque ela assalta apenas os descrentes.

Observei anteriormente que todas as variações e transformaçõesde um mito são significativas. Assim, embora uma versão afirme queDioniso só aparece na vida de Ariadne depois de ela ter sido aban-donada por Teseu, outra indica que ela já pertencia a Dioniso muitoantes de Teseu aparecer na história. É como se ela só reconhecessea pretensão anterior de Dioniso em sua vida depois de tê-lo traído.Diz uma tradição que já em Creta, antes de se envolver com Teseu,Ariadne fora desposada por Dioniso. Segundo outra versão, a coroaque ela deu a Teseu para que lhe iluminasse o trajeto pelo labirintofora antes dada a ela por Dioniso. (Isso faz sentido no nível pessoal:talvez possamos servir a outrem como anima só por causa da nossaexperiência anterior com o sagrado. Claramente, mesmo como vir-

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gem mortal, Ariadne sabe muito mais do que Teseu acerca de en-contros com o divino nos aspectos temíveis que este possui.) QuandoAriadne partiu com os atenienses, Dioniso enviou Ártemis paramatá-Ia, como castigo por ela haver trocado umDeus imortal por umamante mortal. Outras histórias da mitologia grega - por exemplo,a história sobre Corônis - têm um padrão semelhante; uma mulher

À medida que exploramos a ligação primária de Ariadne comDioniso, ficamos mais próximos, creio eu, de Ariadne como a conhe-cem as mulheres. Ela assume um estilo de poder e significado inteira-mente novos. Se a sua relação com Dioniso não é bem umacompensação por ter sidoabandonada por Teseu, então talvez a chavepara saber quem é Ariadne viria da compreensão do Deus para quem

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trai umDeus (neste caso, Apoio) que tem sidoseu amante, em trocade um mortal. Nessa história, Ártemis também provoca a morte damulher.

Creio que não é tão difícilchegar a certa compreensão do que uma

traição assim significa e por que alguém a cometeria. Sem dúvida,somos àsvezes arrastados a umenvolvimento com outro ser humano,como uma fuga da ligação com o transcendente, de uma ligação comuma reivindicação anterior sobre nós que é de certo modo excessiva.Corremos para o amante mortal heróico, fugindo da experiência maisprofunda. Kerényi diz que em todos nós um inimigo de Dioniso estáà espreita como se fora um amigo devotado.Í Nos momentos em queaquilo que Dioniso representa é superior ao que nos sentimoscapazes de administrar, ou de estar em contato, então lhe voltamosas costas.

Naversão homérica do mito, Ariadne é morta por Dioniso ou por

sugestão dele. Em Hesíodo, Dioniso aparece para salvá-Ia e fazê-Iasua noiva, garantindo-lhe Zeus a imortalidade. Outra tradição mostraDioniso pondo Ariadne em sono tão profundo em Náxos, que Teseunão consegue acordá-Ia, tendo por isso, a contragosto, de deixá-Iapara trás. Existe até uma versão em que Dioniso rapta Ariadne,tomando-a à força de Teseu. Ela se casa com Dioniso e morre porcausa da sua ligação com ele. Há mais coisa escondida aqui do que aversão mitológica de um conflito de origem entre dois cultos e suasolução através da absorção do culto de Ariadne pelo dedicado aDioniso.8 A relação entre Dioniso e Ariadne não se pode reduzir aum acidente histórico. Ela transmite uma intuição acerca da relação

entre o amor e a morte: Ariadne é uma noiva da morte. O culto deAriadne no sul da Itália parece ter consistido, de início, em rituaiscujo objetivo era a preparação para a morte. Ir para a morte comonoiva era i~para a morte como uma vida ampliada.

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ela é a outra. Acho issointrigante - que Ariadne sejaa contraparte deDioniso,a esposa, a escolhida. SarahPomeroy, em seu livro,Goddesses,W h or es , W z ve s a nd S la ve s,9 diz que, em toda a mitologia dos gregosDioniso é o único Deus que não explora mulheres, o único marido fiel.

E Ariadne é a mulher a quem ele é fiel.Esta versão da história mostra Ariadne feita imortal, uma Deusa,

através de sua ligação com Dioniso (como ocorre também com a mãeimortal dele, Sêmele). Saber quem ela é depende assim de aprenderquem é ele. Embora sendo um Deus complexo, uma descrição inicialé que Dioniso é o Deus das mulheres. Ele é único namitologia grega,uma vez que seus adoradores mais freqüentes e característicos eramseres humanos do outro sexo; seus servidores primordiais eramsempre mulheres, as mênades, de cujos rituais os homens eramexcluídos. Desse modo, Dioniso é a masculinidade, a sexualidademasculina, conforme a vivenciam a s m u lh er es . Por ser um falo à

disposição das mulheres, ele pode ser representado como um falodesmaterializado ou como um Deus emasculado. Dioniso é ainda oDeus da loucura e do arrebatamento, o Deus da vitalidade, o Deusem cujo reinado tudo é virado de cabeça para baixo. Ele significaloucura e mistério - Loucura não como doença ... mas como umacompanheira para a vida em sua forma mais exuberante. lO

Este Deus que vem para as mulheres em seus momentos maiscalorosos é um Deus ligado com o erotismo visionário, com umasexualidade imaginal. Não deveríamos reduzir essas experiênciassexuais a fantasias narcisistas ou masturbatórias; elas são vivas comoum intercurso com o outro, umoutro divino. Trata-se da sexualidade

do que Esther Harding 11chama a virgem, a mulher que tem o centroem simesma, a mulher capaz de perder-se em sua paixão sem comisso tornar-se dependente das relações com outros. Ficar assim emcontato com sua própria energia geradora de vida provoca inevitavel-

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mente nas mulheres a oposição de Hera (a esposa arquetípica) edos maridos. Dioniso é o amante das mulheres que não se definiramem seus relacionamentos com homens reais. A imagem de mulheresentregando-se às suas próprias paixões desperta medo nos homens,e mesmo as mulheres sabem quão perto do aniquilamento se en-contra esse arrebatamento. A noiva de Dioniso é a noiva da morte.

Écomum chamar Dioniso de o semelhante à mulher . A androginia

com outros e sem medo de sua própria sexualidade ou de sua capacidadepara o arrebatamento. Ela é, então, uma síntese do que Esther Hardingentende por interiorização de si própria [in-herself-ness]. Começoagora a vislumbrar a Ariadne mais antiga de todas, a Ariadne iden-t if icada em ereta com a senhora do labirinto . Essa Ariadne pertencea um período antigo, matriarcal e de veneração à Deusa-Mãe. Ela nãoé bem uma menina mortal amada de Teseu, nem exatamente alguém

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dele vem apontada em muitos passos da sua história. Ele é tão hábil emlevar os homens a entrar em contato com sua feminil idade que pode atéconverter Zeus numa mulher: depois de Hera provocar a morte de

Sêmele, mãe de Dioniso, Zeus faz de sua coxa um útero que conservaDioniso durante os três últimos meses de gestação. Para protegerDioniso contra a fúria ainda não superada de Hera, ele é educado comomenina. Mais tarde, Dioniso desce ao mundo inferior à procura deSêmele, que ele desej a levar para o Olimpo, transformando-a em Deusa.Em seu trajeto, é ajudado por um homem que lhe indica o portão peloqual ele penetra no mundo inferior. A título de recompensa, elepromete ao homem que, ao voltar da jornada, o servirá como mulher.(Por acaso o homem morre e então Dioniso passa a ter relação com umenorme falo de madeira.)

A ênfase dada à bissexualidade de Dioniso indica que Ariadne,como cônjuge perfeitamente conveniente, precisa também serandrógina. De fato, um dos irmãos dela chama-se Androgeu. (Amorte desse irmão era o que estava por baixo da obrigação ateniensede pagar tributos a Creta.) Outro irmão é o Minotauro. Já obser-vamos que Ariadne é uma jovem de bastante iniciativa, mesmo noslances que a ligam a Teseu. E, como Dioniso, Ariadne recebia porvezes o poder de colocar os homens em contato com a experiênciafeminina: nos rituais cipriotas a ela dedicados, os homens simulavamas dores do parto. Um dos seus filhos é Toas, rei de Lemnos, a ilhaque as mulheres ocupam depois de matar seus maridos e filhos.

Ao estudar com muito mais atenção as tradições mitológicas as-sociadas com Ariadne, entrei em contato com aspectos até então in-suspeitados dessa Deusa; comecei a compreender por que Ariadnepodia agora me interessar. Pois a Ariadne oculta significa a mulher emrelação com seus próprios poderes, não limitada pelos relacionamentos

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transformada em Deusa graças à sua ligação com Dioniso. Ela é imortalem seu próprio ser. Mais do que uma mortal que se toma imortal,Ariadne é uma imortal que as tradições mais tarde transformaram em

mortal. Éuma das Deusas pré-patr iarcais que se combinam e descom-binam mutuamente nesse processo tão confuso por serem mulheres domodo como as mulheres vivenciam a própria condição de mulher. Apartir dessa perspectiva, as diferenciações bonitas, nítidas, bem-definidas, quase que não funcionam; percebemos que somos - cadauma de nós - tudo aquilo, pelo menos no campo das possibilidades.

Ariadne é uma das Grandes Mães, a Grande Deusa de ereta.Como tal, chama-se a poderosa , a senhora do labirinto , aintocável .12 Perguntar quem é Ariadne, a fim de seguir o fio docomeço ao fim, leva-nos ao centro de um labirinto, onde encontramosa própria Ariadne. No princípio existe Ariadne, uma Deusa completaem si mesma, andrógina e autoperpetuadora, criando com base emseu próprio ser, sem necessidade de. outrem. Essa Ariadne é

substituída por outra que se relaciona com o masculino como algoexterno a si mesma, embora seja uma criação dela e inteiramente àsua disposição. Nessa fase, representa-se Ariadne acompanhada deuma figura masculina submissa, o macho que surge da morte, que éfilho e amante e, finalmente, vítima. É claro então, à medida queprosseguimos nessa história, que Ariadne era de início a figura

importante, e Dioniso o outro necessário. Por começar como umDeus que morre e ressurge, Dioniso é ainda, mesmo no períodoclássico, o Deus que aparece e desaparece. Até no Olimpo, Dionisoajuda a recordar-nos do tempo em que os Deuses eram filhos e depoisamantes, em seguida morriam e reapareciam como filhos renascidos,tornando-se amantes mais uma vez para de novo morrerem, e assimsucessivamente.

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Como uma das Deusas-mães antigas, Ariadne é muito mais do quemera Deusa vegetaL 13A visão é muito mais profunda e abrangentedo que isso. Ela se relaciona não apenas com o animado, com a vidanatural, mas também com a anima, com a alma.

Aspecto importantíssimo de Ariadne é seu relacionamento como reino da morte. A morte no mundo dela difere significativamenteda morte no de Perséfone. (O paralelo Ariadne/Perséfone, em espe-

de tristeza; e uma terceira nos diz que ela se suicida, enforcando-senuma árvore, desesperada com a partida de Teseu.

Mais interessante de todas é a tradição segundo a qual Ariadnemorre justamente antes de dar à luz. Dizem alguns que Teseu deixoua Ariadne à revelia, aos cuidados de parteiras de Náxos (ou Dia, outrailha freqüentemente mencionada nàs tradições de Ariadne) por terchegado a hora dela. Conta-se que Ártemis matou-a com a criança

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cial a maneira como cada uma se relaciona, tanto com Teseu comocom Dioniso, precisa ser plenamente aceito antes que se possaanalisar o significado mais sutil das díferenças.) O fato de em Creta

o mundo do além estar associado com a água, e não com o mundoinferior como na Grécia, aponta uma semelhança mais com o incons-ciente de Jung do que com o de Freud - mais uma fonte derenovação contínua do que um repositório para o que se excluiu do

mundo dos vivos. Parece que Ariadne está sempre ligada a ilhas; amorte em seu mundo leva a pessoa para as ilhas dos bem-aven-turados, para o reino elisiano. Na mitologia clássica grega, esta se

torna uma área privilegiada dentro do Hades, governada pelo pai deAriadne, Minos, onde os especialmente favorecidos na realidade não

morrem, sendo-Ihes antes facultado viverem na morte. A visãocretense do processo da vida - movendo-se da vida para a morte -

difere essencialmente da dist inção radical que os gregos traçam entrea vida e a morte'. Para os gregos (embora isso mude naturalmente

quando os cultos do mistério se tornam importantes), vida é vida emorte é morte. Os mortais morrem, mas os Deuses absolutamentejamais morrem. Em Creta, por sua vez, não se tem uma dist inção tãonítida nem para diferenciar o humano do divino, nem para demarcarbrusca e cabalmente os limites da vida e da morte.

A ligação particular de Ariadne com a morte está naturalmente

representada de forma preeminente pelo labirinto, do qual a maioriajamais retoma, mas de onde alguns voltam transformados. Em Argos,como convém a uma Deusa da morte, seu túmulo serve de altar. Oque mais intriga, porém, é que Ariadne sofre a morte de vários modos.Entre essas histórias de morte, conta-se aquela, já mencionada, emque ela é morta por Ártemis. Outra fala que ela simplesmente morre

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ainda no ventre, o que lembra as mortes de Corônis e Sêmele. Mas,enquanto Asclépio e Dioniso são salvos a tempo do ventre de suasmães que morrem, Ariadne entra no reino da morte com a criança

não nascida ainda em seu interior e então - prossegue a história -dá à luz. Este é o único relato na mitologia grega de um nascimentono mundo dos mortos, indício de que se tem aqui algo de fascinantee de profundo.

O que representa para uma criança nascer no mundo do além, terpor local de nascimento o reino da morte? Mais uma vez, como tantasque ocorrem nas ligações com Ariadne, a indicação mitológica é a deque nascimento e morte, mais que mutuamente excludentes, estãointeiramente entrelaçados. A criança, como o fio, une este mundocom o outro, o exterior e o interior, a vida e a morte. O nascimentonão se opõe à morte; nem sequer devem ser entendidos como um

vindo depois do outro, seqüencialmente. Que este nascimento sejapossível apenas na morte é exatamente o que o distingue de modocabal daqueles dos outros filhos atribuídos a Ariadne (todos elesassociados ao lado mais material de Dioniso, à uva, à videira e aovinho).

Precisamos estar atentos ao que o mito tem a dizer sobre aidentidade do pai dessa criança e da própria criança. Evidentemente,o pai é Dioniso; afinal de contas, Ariadne foi morta por causa de suainfidelidade a ele. Kerényi acha que a criança nascida também deveser Dioniso.14 (A confirmar sua opinião, existem muitos paralelosentre Ariadne e outras Deusas, representadas como mães de

Dioniso: Sêmele e Perséfone.) Isto se ajusta com o motivo antigo defilho e amante; mas está mais presente aqui do que é comum nospadrões arcaicos - devendo-se essa maior presença ao local únicodo nascimento. Mais que um evento concreto acontecendo no

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mundo real , este nascimento representa a plenitude do que onascimento significa quando o entendemos não literalmente, massimbolicamente. Reconhecer o nascimento como um mistério é vê-loem relação com o mundo do além. Ter relações com Dioniso quandoele está totalmente presente, e não apenas ali como Deus do vinhoe da fertilidade física, resulta num nascimento na morte, no imaginal,um nascimento na alma, um nascimento da alma. Ariadne é aquela

NOTAS

1. Christine Downing,  Re-visão autobiográfica: o legado de Freud e Jung, Soundings, Verãode 1977,pp. 210·28.

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pela qual esse nascimento se torna possível.Isso nos traz de volta aonde começamos. Kerényi diz que Ariadne

representa  a realidade arquetípica do outorgador da alma, do que

faz de uma criatura viva um indivíduo . 15 Desse modo, no centro dolabirinto, chegamos ao ponto em que se volta para o início. Ocaminho sinuoso, relembrando as p alavras de Eliot, leva-nos de voltaao lugar onde começamos, e o reconhecemos pela primeira vez.Encontramo-nos assim agora onde começamos, com Ariadne comoanima, Ariadne como alma.

Todavia, isso é assim num jeito de ser muitíssimo mais profundo.Ariadne, não mais a anima que aguarda fora do labir into enquantooutrem entra, significa a alma como aquilo que está dentro dolabirinto, o centro do eu, o que eu chamo de Ela. Como JamesHillman tentou expressar, 16a anima, em seus níveis mais expressivos,nada tem que ver com a contra-sexualidade. Nem mulher magica-mente atraente, sedutora, fascinante, nem um lado feminino dohomem - a anima é a alma, com a qual as mulheres precisamassociar-se tão verdadeiramente quanto com os homens. A anima é

 o que dá aos acontecimentos a dimensão de alma , o que nosharmoniza com o significado imaginal das experiências de que par-ticipamos.

Quando, para conhecer Ariadne como senhora do labirinto,rejeito a identificação com ela, não porque não quero ser aban-donada, mas porque ela é uma Deusa, e se acha no centro do labirinto- não encontro a mim mesma, mas a Ela. E começo a compreenderque a esta altura da minha vida estou sendo puxada para trás por

Ariadne, para dedicar minha devoção a ela e à criança nascida noreino da morte, à criança no reino da alma.

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2 . Thomas Mann,  Freud e o futuro , emEssays (Nova York, Vintage Books, 1957), p. 317.3. Cf. James Hillman, Psicologia: monoteísta ou politeísta , Spring 1971, pp.193.208.4. Chris tine Downing,  Perséfone no Hades , Anima, IV:1,pp. 22.9.5. Cf. E. A. S. Butterworth,  Alguns traços domundo pré-homérico, em Great Literature and

Mythology (Berlim, deGruyter, 1966).6. Cf. Odisséia XI, 321-25. Outras fontes incluem: Iliada XVIII, 590-92;Hesíodo, Teogonia,

947-49; Plutarco,  Teseu ; Apolodoro, 3.1.2.7. Carl Kerényi, Dionysos: Archetypal Image of lndestructible Life (Princeton, Princeton

University Press, 1976),p. 241.8. Cf. Martin P. Nilsson, The Mycenean Origin of Greek Mythology (Berkeley, University of

California Press, 1972),p. 172.9. Sarah B. Pomeroy, Goddesses, Whores, W/ves and Slaves (Nova York, Schocken Books,

1965),p. 12.10. Walter F. Oito, Dionysus: Myth and Cult (Bloomington, Indiana University Press, 1965),

p.143.11. EstherHarding, Woman'sMysteries (Nova York, Bantam Books, 1973),passim.

12. Charles F. Herberger, The Thread of Ariadne (Nova York, Philosophical Library, 1972),p .90; T. B.LWebster, From Mycenae to Homer (Nova York, Barnes & Nob1e, 1960),P·50.

13. Cf. Nilsson,Mycenean Origin.

14. Kerényi, D ionysos, pp. 108,zrt.15. Kerényi, Dionysos, p.124.

16. James Hillman,  Anima ,Spring 1973,pp. 97-132; 'Anima' (1 1 ) , Spring 1974, pp. 113-46.

173

IXDIONISO NA OBRA DE JUNG

James Hillman

Um exame da visão de Jung sobre Dioniso e o dionisíaco é o assuntodeste artigo. Há alguns anos, l indiquei de maneira pormenorizada

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que a consciência analítica tem sido governada por uma estruturaarquetípica que favorece o masculino em detrimento do feminino; osprincípios da luz, da ordem e da distância, em detrimento do envol-

vimento emocional; ou o que, em síntese, tem sido chamadoapolínico,  emdetrimento do dionisíaco. Examinei também a noçãode Dioniso, expondo os preconceitos tanto na psiquiatria como nosaber clássicos, que impedem a transformação da consciência e asolução dos problemas analí ticos fundamentais. Levantei a questãode que os campos da psiquiatr ia e da mitologia - cada um se valendodos argumentos do outro2 - têm permanecido quase que totalmenteem confronto com o dionisíaco, disso resultando uma repressão e, emconseqüência, uma distorção de todos os fenômenos dionisíacos, detal sorte que acabam sendo vistos como inferiores, histéricos,efeminados, desenfreados e perigosos. Indiquei uma retificação donosso modo de apreciar esta estrutura arquetípica, bem como osmeios para se chegar a essa retificação, porque, afinal de contas,Dioniso era o Senhor das Almas (como o chamou Rohde), de modoque a psicoterapia não pode se dar ao luxo de trabalhar baseada emnoções enganosas sobre ele.

Este artigo é um posfácio àquela argumentação que, tendo-sealongado por mais de sessenta páginas, pode apenas ser mencionadaaqui. Devo dizer, porém, que as objeções ao uso de  apolínico  e dionisíaco  e à oposição entre eles foram ali em parte enumeradase, creio eu, satisfatoriamente respondidas. Podemos, pois, ficar maisà vontade para usar o termo dionisíaco em relação a uma estruturaarquetípica de consciência, à semelhança do que fez Nietzsche em

As o ri ge ns d a t ra gé di a (1872) e que Cornford chamava de um trabalhode profunda percepção imaginativa, gue deixa a erudição de umageração mourejando na retaguarda.' Baseamo-nos, também, em

175

Jung (que se baseou em Nietzsche), ao usar dionisíaco como umtermo aplicável a uma estrutura básica da consciência. (CW 6, §

223-242;CW 10, p. 186n.)O longo seminário de Jung, Análise psicológica do Zaratustra de

Nietzsche , comumente mencionado como Seminário sobreNietzsche ou Seminário sobre Zaratustra , ministrado por ele nosanos de 1934 a 1939, não será incluído entre as passagens estudadas

CW 6, 90& 'Antes do jantar sou kantiano, mas depois do jantar sou

n ietzschiano '. Quer dizer: em sua atitude hab itual ele é um intelectua l, mas, sob a

inf luência est imulante de um bom janta r, uma onda dioni sfaca invade a sua a titudeconsciente.

CW 5,623 : A 'Mãe ter rível' e a mater saeva cupidinum, a Natureza desenfreada

e intac ta , representada pelo deus mais paradoxal do Panteão grego, Dioni so . ..

CW72, 17: . ..orgias dionisíacas que se levantaram do Oriente . .. ...licenciosidade

dionisíaca ...

CW72,40:  Ele se ent rega sem resi st ência à psique animal. Este é o momento do

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neste artigo, por duas razões. Em primeiro lugar, as anotações do Seminário sobre Zaratustra não podem ser citadas porque nãoforam escritas por Jung, jamais foram publicadas e não se estabeleceuainda uma versão autorizada do texto. Em segundo lugar, os dez

volumes formam uma massa de material demasiado extensa para quepossam ser incluídos numa breve nota. O leitor não deve, porém,concluir que a exclusão desse material leva a uma apresentaçãounilateral da noção que Jung tinha sobre o dionisíaco. Ao contrário,

minha leitura desses volumes indica que Jung reforça aí, com maisdetalhes, as idéias principais que eu aqui seleciono de suas ObrasCompletas (CW), dos seminários publicados e da sua autobiografia.

Além disso, o Seminário sobre Zaratustra , mesmo sendo obvia-mente relevante para o tema deste artigo é menos relevante para a

sua finalidade, a saber: examinar, com bastante cuidado, a fantasiarelativa a Dioniso na obra publicada e amplamente lida de Jung, detal modo que nós, leitores, possamos estar cientes do que está ocor-rendo e do que está em jogo.

oprimeiro Dioniso

A seguinte seleção de passagens representa a noção dominante dodionisíaco nas Obras Completas (CW).5 (As citações foram feitas da

primeira edição, indicando-se os números das seções, a menos quehaja indicação em contrário.)

CW 122 ,118: Dioniso é o abi smo da dissolução apa ixonada ...

CW 15 ,212 : Raramente ou nunca eu tive um pacien te que não vo ltasse para as

formas de arte neolí ti ca ou não se regalasse em evocações de orgias dioni sí acas .

CW 5,624: Nenhuma razão o guia, apenas a libido effrenata dionísí aca ...

176

frenesi dionisíaco, a manifes tação esmagadora da 'fera lo ira' ...

CW13,91: . ..uma explosão de vorac idade bes ti al e a t rucidação de animais vivos

com os dentes faz iam par te da orgia dioni sí aca.  (Cf CW 11,353.)

Nos escritos alquímicos de Jung, Dioniso é associado ao macaco e àMissa Negra (CW 122, 191), uma identificação atávica com os an-cestrais animais (171), e com o Senhor das Trevas (demônio) (119,181). (Cf. Conferências ETH, Alquimia , vol. 1, 17/jan/1941, p. 78e 6/junI1941, p. 181, edição particular de 1960, Instituto C. G. Jung,Zurique.) A associação de Dioniso com o demônio prossegue tantono estudo alquímico da transferência como na última obra de Jung,Mysterium Coniunctionis (o primeiro encontra-se em CW 162, 388: A Igreja tem a doutrina do demônio, de um princípio do mal, quegostamos de imaginar completo; com cascos rachados.cornos e rabo,metade homem, metade animal- uma divindade ctônica aparente-mente fugida do séquito de Dioniso, o único campeão que sobreviveudos prazeres pecaminosos do paganismo; e o segundo em CW 14,420).

Outro grupo de passagens, menores em número e de menos força,dá-nos outra conotação, um segundo Dioniso. Deixaremos de ladoessas passagens até mais tarde, porque ainda há mais a ser dito sobreo primeiro Dioniso na obra de Jung.

A despeito das muitas referências a Dioniso e do longo Semináriosobre Zaratustra , Dioniso nunca foi central no enfoque de Jung.Dioniso recebeu grande atenção de contemporâneos mais velhos deJung, seja na psiquiatria clássica, seja na história das religiões, de tal

modo que talvez este amplo caminho da mitologia e da patologiaestivesse menos aberto a uma exploração original. Rohde e Nietzschetinham imposto Dioniso sobre a consciência da erudição clássica.

177

Freud e Janet haviam feito o mesmo com a histeria que, já antes, noséculoXIX, fora associada aDioniso.6 Depois, houve a psicologizaçãofilosófico-literária de Stefan George e LudwigKlages, de quem Jungnão se aproximaria e na qual via um culto poético do irracional, emnome de Dioniso (CW 10, 375).

Assim, do mesmo modo que a atenção de Jung estava apenasperifericamente engajada com a histeria (CW 1, 3, 4, 6, 7, passim),

Quem sabe a história da psiquiatria e das idéias examinará umdia,mais de perto, os efeitos do caso de Nietzsche sobre o espíri to dosanos 90 e da virada do século. Certamente, devem ter sido sentidosde forma vívida na Basiléia, cidade tanto de Nietzsche como de Jung,e especialmente nos círculos psiquiátricos, devido às questões sobrea diagnose de Nietzsche e à patografia sobre Nietzsche escrita porMoebius (que ligavao Deus Dioniso ao conceito de histeria).

Sabemos que, pelo menos emJung, o caso de Nietzsche exerceu

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igualmente ocupava-se ele apenas. ocasionalmente de Dioniso. Aesquizofrenia e Hermes-Mercúrio, porém, receberam total interessedele, do início até o seu último trabalho. Ele escreveu diversos

estudos tanto sobre a esquizofrenia como sobre Herrnes-Mercúrio(e Tricksteri, dando extraordinária contribuição psicológica àpsicopatologia e à mitologia. Suas introvisões básicas a respeito danatureza da psique devem mais a seu trabalho sobre a esquizofreniado que à histeria, e mais à sua investigação das complexidadesarque típicas de Herrnes-Mercúrio- Trickster do que às de Dioniso.

Embora Dioniso não estivesse no primeiro plano, Nietzsche es-tava. Existe, provavelmente, uma relação direta e causal entre apresença de Nietzsche na consciência de Jung e a ausência deDioniso, como se, quanto mais profundamente Jung entrasse emNietzsche, tanto mais se dissuadisse do dionisíaco.

Diz Jungem sua autobiografia' que, quando jovem (por volta de1890), fuitomado inconscientemente poreste espírito da época, e nãotinha métodos à mão para descartar-me dele . E descreve este espírito: Os arquétipos de Wagner já batiam à porta, e junto com eles veio aexperiência dionisíaca de Nietzsche, que se pode antes atribuir ao deusdo arrebatamento, Wotan (MDR, 222). Já na tese de doutoramento,Jungexibe sua familiaridadecom a obra de Nietzsche  CW1, 140-142 .

Ele estavasuficientemente interessado emNietzsche a ponto devoltar-se diretamente para a família do filósofo, buscando conferir algunsdados (CW 1, 141); mas, é Nietzsche como um caso - assunto doextenso Seminário sobre Zaratustra  dos anos30- que parece,já em

1901-1902,o ponto alto damente de Jung, que escreve sobre Nietzsche:seu arrebatamento poético em maisde um ponto beira o patológico

CW1,142 .

178

profundo impacto. Durante os anos em que era estudante, Jungabrigou  um medo secreto de que eu pudesse ser como ele[Nietzsche], pelo menos em relação ao 'segredo' que o isolara de seumeio ambiente (MDR 105). E Jung imaginava sua personalidadeNúmero 2 como correspondente a Zaratustra (MDR, 106). Épreciso lembrar que no cerne da catástrofe de Nietzsche estava suaidentificação com Dioniso-Zagreu. Evidentemente, o destino deNietzsche era um Vorbild (modelo) de possessão por um poderarquetípico, sendo que nem a idéia deste poder nem os meios paralivrar-se dele estavam disponíveis a Jung. Esse poder chamava-seDioniso, mesmo que devesse chamar-se Wotan. Na biografia deNietzsche, encontram-se provas irrefutáveis de que o deus original-mente visado por ele era, de fato, Wotan mas, sendo um filólogo evivendo nos anos 70 e 80 do século XIX, ele o chamava Dioniso

(CWll, 44).Encontraremos essa prova não apenas na biografia de Nietzsche.

Origens da tragédia8 começa com umprólogo dedicado a Wagner, emque Nietzsche relaciona seu ensaio com o problema alemão e comas esperanças alemãs . No final (seção 24), entusiasma-se nova-mente com seu tema alemão: .

... em algum abismo inacessível,o espírito alemão ainda paira e sonha, intacto,esplêndido de saúde, de profundidade e de força díonisíaca, como um cavaleiromergulhado no sono: desse abismo eleva-se até nossos ouvidos a canção dionisíaca,fazendo-nos saber que este cavaleiro alemão continua até agora sonhando seu mitodionisfaco primitivo.._

O parágrafo termina com Brunnhilde e o dardo de Wotan. Issonão é grego nem antigüidade, mas a volta de Wotan à Alemanha

179

moderna. A restituição do dionisíaco à conscicência ocidental moder-

na estava, desde o princípio, enredada em Wotan.8a

Em 1911 Thomas Mann resumia a confusão desastrosa dessa

contaminaçã~ arquetípica, através de um sonho qu~ muda o ~es~ino.deGustave Aschenbach, na novela Morte em Veneza. Vemos 31 DIOnISO,P â e as Mênades numa paisagem interior alemã, informada por um

espírito wotânico. A faceta revelada de Dioniso~: complet~ment~, a de

tilhada pela sua geração e a visao transalpina da cultura pagãmediterrânea desta geração. Ele próprio observa isso, ao dizer: Daíque a Weltan.schauungcristã, quando reflet ida no oceano do inCOfIS-ciente (alemão), assume, logicamente, as características de Wotan(CW9:i, 442). Como salienta Kerényi:   ...No que diz respeito à imagemde Dioniso, pesquisadores e estudiosos têm-se submetido à influênciada filosofia alemã num grau muito mais elevado do que se dão conta. ll

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um inimigo da dignidade e do autocontrole , mas, nao sera esse estranho Deus mais estranho, mais parecido com Wotan do queaquele outro, representado em pinturas d.e vasos a?ti~os, ~nde surge

tão dignificado e sereno? Ou, ainda que exista um Dioniso tao obscenoe exuberante como o sonho de Aschenbach, essa obscenidade significa

H  I 10uma morte de espécie diferente da de Veneza. Porque . er?c itosalientou, a respeito dos ri tos leneanos obscenos do culto a ~lO~ISO,queestes deviam ser entendidos à luz da unidade de Hades e Dioniso. Elespodem ser tomados no nível l iteral da representação concreta; têm, aocontrário um sentido invisível para a alma, em termos de sua morte.Assim embora as imagens apresentadas a Aschenbach pareçam

genui~amente dionisíacas, a estrutura. de ~ofISciênci~ na qu~l seapresentam propicia um palco para o literalismo que e wagnenan_o,nietzschiano e wotânico e onde Hades se torna a morte concreta, e nao

o reino invisível das almas. O caso de Nietzsche repete-se no Aschen-bach de Mann, onde Dioniso significa enantiodromia, doença e

morte.Ao contrário de Nietzsche, Jung olhava mais além, para a sombra

wotânica do que Nietzsche chamava de Dioniso (por exempl?, < : W5,623; CW 10,375,391; CW9:i, 442 & n). No entanto, Jung insisteem que os dois deuses têm muito em comum . Fal~ deles ~o:n0 primos (CW 11,44; cf . CW 10,386). Coloca-os em J~stap~slçoesmitograficamente forçadas como, por exemplo, a amplif icação quefaz do cavalo e dos motivos do casco do cavalo (CW 5,421), adequadaa Wotan mas onde se introduz inopinadamente Dioniso, através dapata do 'touro. Outro exemplo peculiar - e nietzschiano - é ~

justaposição do delírio dionisíaco e da be~ta loira'~ (CW72, 40). Ecomo se, a despeito de si mesmo, Jung tivesse difículdade paradesembaraçar sua percepção de Dioniso da distorção wotânica par-

180

Em outras palavras, a primeira impressão que Jung tem de Dioniso édistorcida não só pela influência da erudição norte-européia do séculoXIX, mas também por um elemento predominante do embasamento

dessa erudição: Wotan. Mais especificamente, a visão de Jung édecididamente marcada pelo modelo de Nietzsche, que não só foi oprimeiro a formular e a dar assim a sua marca pessoal para o que setornou a nossa noção popular desta divindade, como também foi quemescolheu Dioniso como seu Deus. Jung pergunta e responde o queDioniso significa, valendo-se de Nietzsche, O primeiro Dioniso sobre oqual Jung escreve não é,pois, uma figura da antigüidade, nem uma figurada própria vida de Jung, mas alguém que lhe foi dado conhecer, deforma variante, através de Nietzsche. A passagem-chave para ilustrarisso está em Psicologiae Alquimia (CW 12, 118):

Foi preciso um Níetzsche para expor, em toda a sua fragilidade, a atitude escolareuropéia em relação ao mundo antigo, mas, o que Dioniso significa para Nietzsche?

O que ele diz a seu respeito precisa ser levado a sério; e mais ainda o que Dioniso

causou nele. Não há dúvida de que Nictzsche sabia , nos estágios preliminares da sua

doença fatal, que o destino funesto de Zagreu lhe estava reservado. Dioniso é o

abismo da dis solução desenfreada , onde todas asdis tinções humanas se misturam na

divindade animal da psique primordial- uma experiência beatífica e terrível.

Que a experiência de Nietzsche - onze anos de loucura dege-nerativa - tenha propiciado o Virgílio para a descida ao mundosubterrâneo de Psicologia e Alquimia não é coisa de menorimportância para todos os que se valem do modelo da individuação

descrito nesse livro. Voltemos ao texto para ver exatamente ondee como o Dioniso nietzschiano aparece e como ele afeta o cursodo movimento psíquico.

181

A passagem ocorre no fim da segunda parte, Capítulo T I. Os sonhosinic iais e asvisões do caso levaram a um clímax. Surgem um elefante ,um homem-macaco ou urso ou homem da caverna com um porrete eum homem com barba em ponta. O texto vem acompanhado de trêsilustrações aterradoras de um esqueleto , um selvagem e um demônio.

Essas imagens visuais podem referir-se  à experiência dionisíaca ,

como indica Jung nos §118-119, mas a rigornão são imagens de Dioniso.

contexto psicológico da vida de Jung. Tipos psicológ icos é tambémuma mandala, em forma conceitual, realizando igualmente uma funçãoorden~~or~ - e defensiva.14 Autobiograficamente, no caso de Jung ena sequencIa apresentada em Psicolog ia eAlquimia, a mandala aparececontra o p ano de fundo da experiência dionisíaca (isto é a .A .. . . ' expenenctawotamca-rnetzschta?a), sendo uma resposta para ela.

.Po~emos resu~lf ~ resultado disso tudo numa série de conclusões.

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Mitograficamente, Dioniso não era um Deus da caverna (como Pã),nem um urso, nem estavam o macaco ou o elefante em sua comitiva. Avisão sedesfaz com uma voz dizendo: Tudo precisa ser regido pela luz.

Jung conclui que a nekyia está agora se revertendo e que a luz vem a sera da mente consciente, esclarecida (§120). Ocapítulo termina (§121)com a intervenção ativa do intelecto e os símbolos do self'. Logo emseguida, volta-se ao estudo da manda Ia, enquanto as figuras que acom-panham o texto passam de imagens horríveis de formas humanas para

formas contemplativas abstratas.Naturalmente, Jung estava acompanhando o material de um caso

e não suas próprias visões e sonhos - e o caso nem sequer é um dosseus. Mais, as figuras que ilustram o texto não foram selecionadas ecolocadas por ele naqueles pontos. Todavia, a escolha do material,as ampli[LCações e o desenvolvimento do caso nas seqüências do livro

são de Jung. Como devemos entender esta mudança repentina danekyia para a mandala, através da luz do intelecto? Não indicará opadrão apresentado nesse movimento uma relação direta entre o

dionisíaco e a mandala?Podemos nos lembrar de que na vida de Jung a mandala desem-

penhou papel semelhante. Sua descober ta da manda Iaocorreu quaseno fim da sua nekyia, 12quando ele começou a emergir da escur idão

daquele longo distúrbio (1913-1919) (MDR, 186), que Ellenbergerchama de uma doença criativa . 13Ele pintou sua primeira mandala

em 1916 e começou a compreendê-Ia em 1918:Algo semelhante à mandala coincidiu com essa emergência da

escuridão: Tipos psicológ icos . Essa obra foi o primeiro fruto impor-tante a ser publicado depois dessa fase sombria (MDR, 185n; cf. oartigo de Aniela Jaffé, Spring 1972). Podemos apreciar o sistematipo lógico , com seu desdobramento em oito estruturas, dentro do

182

Primeiro, a.~x~enencla - segundo o próprio Jung observa em váriaspassAag.ensja Citadas ~ não deveria ser chamada dionisíaca , maswota~lca. Segundo, a~slm como Dioniso e Wotan são dist intos , ass imtamb~m devem ser diferentes nossas medidas psicológicas para nos.re~aclonar~os com eles. Uma ordem defensiva contra Wotan talvezseja apropnada; contra Dioniso poderá ser totalmente inadequadacomo o demonstram os relatos de Licurgo e de Penteu. Terceiro'embora a mandala e a tipologia possam servir como defesas úteisc~ntra Wotan e a ~esintegração nie tzschiana, essas mesmas abstra-çoes talve.z bloqu~lem uma apreciação da experiência dionisíaca .Para a psicoterapia, perceber Dioniso erroneamente seria pior doque a louc~ra . Afinal de contas, es te Deus desempenha papel centra l?a ~ra?édla, nos mistérios transformadores de Elêusis, nos níveismstmtrvos e. comunais da alma e no desenvolvimento do tipo decultura r~la~lonada ao vinho.1 5 Além disso, há a importância profun-

da d~ Dioniso pa~a. a psique feminina. Quarto, se este Deus é od?mmante arquetípico que expressa a própria vida  zoe , como odlss_eram algu.ns comentadores, então interpretar mal suas manifes-taçoes podena comprometer seriamente os próprios processos de~ra. Entretanto, até que se deixe descansar em paz o fantasma deNíetzsche, todo evento dionisíaco na terapia tenderá a ser visto como umprecursor da e~upção wotânica, Tenderemos a nos proteger , bem comoaos nossos anahsandos, ~b a form? de um movimento em direção ao selJ,~nform.e se acha descnto em Ps ico log ia e A lqu im ia, modelo esse queVIStomaisde perto, pode vir a ser um centramento que escape de Dioniso.

183

osegundo Dioniso

Nilsson e Guthrie16 disseram que os mitos gregos são descritos deacordo com a tendência pessoal do escritor e de acordo com os horizon-tes espirituais de uma época. Dioniso, figura extremamente paradoxal,oferece aos seus comentadores uma diversidade de perspectivas e deatr ibutos. O que escolhemos entre eles para estabelecer nosso ponto departida para a compreensão da experiência dionisíaca revela, segundo

 castigo divino de tornar-se desmembrado como Zagreu , tendoainda Nietzsche em vista. Era isso que Nietzsche vivenciava, noinício da doença. Enantiodromia significa ser desmembrado em paresde opostos ... 

Em seguida, entretanto, o desmembramento perde o embasamentode Nietzsche e mesmo o de ser dilacerado em opostos, e começa aassumir um significado arquetípico mais amplo. Escreve Jung: Omundo clássico pensava sobre este pneu macomo Dioniso, em particular

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Guthrie, a preocupação fundamental do escritor, tanto quanto aessência do Deus.

Por exemplo: Nietzsche enfatiza os aspectos de êxtase aos aspec-tos excessivos, bárbaros, titânicos e até criminosos. Harrison, que seconsidera a esse respeito uma discípula de Nietzsche (Prefácio à 2ªedição de Themis), toma primeiro o Dioniso ator'mentado, inebriado,mas identifica-o com a força de vida instintiva de Bergson. Kerényiparece trilhar o mesmo caminho, acenando repetidamente para ovinho, a vida vegetativa e zoe. Nilsson salienta a criança. Rohdeenfatiza a conexão com Hades, os mistérios e o culto das almas. Ottopõe a loucura em primeiro lugar, tomando-a, porém, como expressãode uma antítese interior: Dioniso, o Deus que conserva unidas a vidae a morte. Grant considera-o o irracional irresistível e integra asnarrativas e o culto dele nesta perspectiva. Dodds e Guthrie põem aliberdade ea alegria como base, o esquecer-se de si mesmo, daposição e das diferenças individuais. Jeanmaire combina a alegriacom os festivais, com o vinho e com um culto rural do povo, atravésde um culto arcaico da árvore ou da vegetação. Poder-se-ia tambémpartir da bissexualidade não heróica do Deus, ou da sua thiasos, istoé, ele não aparece sozinho, mas é um Deus com uma comunidade.

Jung salienta o desmembramento, chamando a atenção para oDioniso desmembrado nas seguintes passagens adicionais ainda nãomencionadas aqui: CW72, 113; CW8,162j CW11, 53 & n, 387, 400;

CW14, 365, p.259n.Nestas passagens, Dioniso surge menos con-taminado de Wotan, embora ainda paire Nietzsche no fundo comomodelo de desmembramento, porque era com o Dioniso-Zagreu des-membrado que Níetzsche se identificava, assinando Zagreu , em suaúltimas cartas (CW 11, 142). EmCW72, 113 Jungescrevea respeito do

184

o Dioniso Zagreu sofredor, cuja substância divina se distribui por todaa extensão da natureza (CW11, 378).... Assim, seus adoradores partiam

animais selvagens em pedaços para reintegrar o espírito desmembradodo Deus (400). Em Aion (CW 9:i i, 158n), o desmembramento é maisuma vez visto contra o pano de fundo do Dioniso neoplatônico: Asforças divinas aprisionadas nos corpos nada mais são do que Dionisodispersona matéria Desse modo, o desmembramento converte-se nomeio para descobrir o espír ito puer, pois Dioniso, o mais jovem dosDeuses , pertence ao tema da renovação do deus que envelhece (CW14,379).

O movimento da primeira para a segunda visão do desmembramentoé comparável ao transpor o limite psíquico entre ver o Deus a p artir doexterior e vê-lo apartir do interior do seu cosmos. A este respeito, Doddsfala de menadismo branco e negro, e Kerényi escreve: O Deus enviasua loucura, a contra-imagem negra do dionisíaco, não aos devotos quese entregam ao seu milagre, mas aos inimigos que se defendem dele.,,17Embora as percepções incorretas do Deus através de Wotan possamperfeitamente produzir o lado mais escuro, não há uma garantia de que,entrando em seu cosmos, tudo correrá bem. Como Dioniso suposta-mente vem para a Grécia civilizada oriundo das  terras limítrofes(Trácia, Ásia Menor, ereta, Egito), diz Kerényi: ... onde Dionisoaparece, aísurge também a fronteira ... ibid. . A experiência dionisíacarefere-se assim a um estado limítrofe em que os aspectos brancos enegros do desmembramento se encontram.

Se colocarmos de lado a doença de Nietzsche como o nosso

modelo de desmembramento, podemos também colocar de lado avisão dela como apenas dilaceramento em opostos e uma enan-tiodromia violenta. Podemos, ao contrário, entender a violência sob

185

nova luz. Se buscarmos nossas pistas na exploração que Jung faz dotema na alquimia ( As visões de Zózimo ,passim, CW 13), veremosque o desmembramento se refere a um processo psicológico queexige uma m e tá fo ra c o rp or al (CW 122,530; CW 13,89; CW 14, 64) ..O processo de divisão é apresentado como uma experiência corporal,até como uma tortura horripilante. Se, porém, o desmembramento éregido pelo dominante arquetípico de Dioniso, então o processo,conquanto decapitando ou dissolvendo o controle central do velho

desmembramento não é um rearranjo de partes em outraorganização. Não se trata de um movimento da integração para adesintegração para a re-integração. Talvez seja melhor não encararesta renovação sequer como um processo. Antes, a experiênciafundamental seria a conscientização das partes distintas umas dasoutras, desmembradas, cada uma com sua luz própria, um estado emque o corpo se torna consciente de si mesmo, como um composto deelementos distintos. As centelhas e olhos de peixes de que Jung fala,

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rei, pode estar ao mesmo tempo ativando o pneuma que se distribuinas materializações dos nossos complexos. A base do segundoDioniso oferece nova introvisão sobre o sofrimento dilacerante daautodivisão, especialmente como uma experiência corporal.

Lembra-nos Jung que Dioniso era chamado de o dividido (CW 14,p. 259n). Seu desmembramento era uma evidência da sua divisibilidadeem partes. Em cada parte ele vivia como o pneuma disperso na matéria.Porções do espíri to dionisíaco são como centelhas brilhando na terrafoetida (CW14, 64), ou cheiro fétido do corpo putrefato, à medida quese desfaz em pedaços. Vivenciamos este processo nos sintomaspsicossomáticos, nas conversões histéricas, nas perversões específicassadomasoquistas, nas fantasias de câncer, no medo de envelhecer, nohorror à poluição, ou nas condições desintegradoras incoerentes quetêm um foco corporal. Esta experiência tem seu outro lado. O des-

membramento do controle central é, ao mesmo tempo, a ressurreiçãoda luz da consciência arquetípica distr ibuída em cada um dos órgãos.

Jung descreve este órgão de consciência num roda pé sobre o pen-samento visceral de Joyce, no Ulisses(CW5, 112 &n):  ...um abaisse-ment du niveau mental constela o que Wernicke chama de'representantes do órgão', isto é, símbolos que representam os órgãos .O contexto para esta observação é o leumoti f das partes do corpo -rins, órgãos genitais, coração, pulmões, esôfago, etc. - presente emcada um dos capítulos do Ulisses. Em CW 122, 440, menciona-setambém que cada órgão possui um  representante psíquico .

A part ir desta perspectiva do desmembramento, nossos dilacera-

mentos podem ser compreendidos comoo tipo especial de renovaçãoapresentado por Dioniso. Essa renovação descreve a si mesma atravésde uma metáfora corporal. A renovação que se realiza por meio do

referindo-se à múltipla consciência da psique (CW 14, 42s, esp. 64;CW8, 388s) podem ser vivenciados como incrustados em expressõesfísicas. Pode-se comparar a distribuição de Dioniso através damatéria com a distribuição da consciência através dos membros,

órgãos e zonas.Freud, que começou a construção da sua psicologia com base na

histeria, valia-se desse tipo de metáfora dionisíaca. A zoé que éDioniso, a criança e a bissexualidade que são Dioniso, repetem-semetaforicamente nas zonas erógenas e na criança polimorfa perversadescrita por Freud. Adler também caminha nessa direção ao derivaro caráter a partir da inferioridade do órgão. A estrutura daconsciência de cada pessoa estava intimamente associada aos repre-sentantes psíquicos de cada órgão. Em última análise, a renovação(cura), tanto para Freud como para Adler, passa a exigir a redenção

do pneu ma de sua catéxis libidinal nos representantes dos órgãos. Asfantasias de Freud e Ad1cr encontram um fundo arquetípico nosegundo Dioniso de Jung. Fantasias conceituadas como  pensamen-tovisceral , zonas erógenas e inferioridade do órgão referem-se,em outro nível, ao Dioniso psicóide. Aqui fazemos uma distinçãoentre zoe, ou força vital do corpo, e o pneu ma dessa força vital.Atribuindo um Deus a zoe, a força vital recebe uma interioridadepsíquica e um tipo específ ico de consciência que se poderia, em parte,caracterizar como uma conscientização da autodivisibilidade em

muitas partes.Por fim, se extrairmos todas as implicações, o desmembramento

se faz necessário para despertar a consciência do corpo. O segundoDioniso da obra de Jung dá um significado diferente do de erupçãoe desintegração wotânicas a essa primeira experiência dionisíaca 

186 187

- a experiência nietzschiana. Significa uma iniciação à consciênciaarquetípica do corpo. Através de Dioniso, o corpo pode ser reapreciadocomo um campo metafórico, e não apenas numa interação compor-tamental com o mundo dos ou tros corpos. O desmembramento seccionaas conexões meramente naturais, os caminhos habituais com os quais crescemos e os que desenvolvemos em comum . Ele dissocia oshábitos do corpo no nível animal-vegetal , l ibertando uma apreciaçãosutil dos membros e órgãos como representações psíquicas. As religiões

significar a mudança da consciência através de opostos, onde aintervenção ativa do intelecto, os símbolos do self e a mandala, setornam o contrapeso da experiência wotânica. Como a intenção deJung é apresentar precisamente este tipo de imagens de centramen-to, entende-se a luz dessa maneira.

Por outro lado, a luz pode significar a luz da natureza e a mudançada consciência através de semelhanças, onde o semelhante atua sobreo semelhante. Neste caso, a fragmentação seria imaginada, não a

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se referem à ressurreição da carne e à construção do corpo sutil.Este movimento só parece possível quando a organização

dominante solta as amarras. Então o abaissement du niveau mentalresulta na ativação da vida psíquica dos órgãos. Ou, talvez esteseventos ocorram em ordem inversa: Dioniso constela-se através dadissolução em partes, com isso realizando o que posteriormentechamamos de um rebaixamento do nível mental. O Deus envelhe-cido que chamamos ego perde seu suporte na organização docorpo, na medida em que se dissocia. A experiência dionisíaca seriaentão essencial para a compreensão do que Jung entende pordissociabilidade fundamental da psique, com sua consciênciamúltipla. Também torna-se mais claro como esta experiência e a damandala tenderiam a se excluir mutuamente, uma vez que a segundaintegraria o que a primeira afrouxaria.

Dioniso era chamado Lysios, aquele que afrouxa.I8 A palavra écognata de lysis, sí labas finais de analysis. Lysis significa afrouxar,l ibertar, l ibertação, dissolução, colapso, romper laços e infringir leise o deslindar final, como o de uma trama na tragédia.

*

Voltando agora à obra Psicologia e Alquimia (CW 122, 117s),podemos concluir que o pronunciamento da voz: Tudo precisa serregido pela luz , pode ser compreendido de duas maneiras. (Asconsiderações terapêuticas não desempenham nenhum papel na

escolha entre essas duas modalidades, uma vez que aliJ ung apresentao material, não como um caso, mas como evidência empírica para oprocesso de centramento [CW 122, 45].) De um lado, a luz node

188

part ir do interior do ponto de vista do centramento, mas a partir dointerior da própria consciência dionisíaca que atua dentro da disso-lução. O pneu ma disperso do segundo Dioniso que emerge através da

dissolução seria a luz exigida pela voz, implicando a lysis da experiênciadionisíaca.

Pessoalmente, acredito que se deixamos escapar as possibil idadesde luz nas experiências de dissolução, tenderemos então a enfatizar,como uma compensação defensiva, o centramento e a totalidade. Porisso, tendo achado útil desenvolver este embasamento dionisíacopara a idéia importante de totalidade no pensamento junguiano.

NOTAS

1.  First Adam, Thcn Eve: Fantasies of Fernale Inferiority in Changing Consciousness ,Eranos Jahrbuch XXXVIlI/1969, Zurique, e numa versão revista e ampliada, como a ParteIIIde The My ti : o].Anat ysi s, Evanston, Northwestern Univ. Press, 1972;NovaYork, HarperColophon Books, 1978.

2. Moebius, o psiquiatra, empregava em sua visão diagnóstica de Dioniso o tra balho deRohde sobre mitologia; a discussão de Rohde sobre o cultode Dioniso mais selvagem, porsua vez,reporta-se ao t rabalho psiquiátrico de J. F. K Hecker, sobre a histeria da dança,e a Janet, sobre a dissociação histérica . Livros a serem consultados: P. J. Moebius, Über

das Pathol ogi sche hei Nietzsche, Wiesbaden, 1902;E. Rohde, Psyche, Londres, Routledge,19258,pp. 305n9e 595s.;J. F.K Hecker,Die Tanzwuth (trad. inglesa de B.G. Babbington,The Epidemics of lhe MiddJe Ages, 1846e 1888).O material seacha em meu The Myth' ofAn alys is.

3. F.M. Cornford, FromReligion 10 Philosophy, NovaYork, HarperTorchbook, 1957,p.l11n.4. Psychological Analysis of Nietzsche's Zarathustra , notas sobre o seminário proferido

pelo prof. dr. C. G. Jung, organ. por Mal)' Foote, em dez volumes (1934-1939), c om umvolume de índice (1942), mimeografado e distribuído por iniciativa particular.

189

5. The Collec ted Works o/C. G. Jung(Bollingen Series XX), tradução de R F. C. Hull e edição

de H. Read, M. Fordham, G. Adlere Wm. McGuire, Princeton University Press, Princeton,

e Routledge and Kegan Paul, Londres. [Obras Completas de C. G. Jung,

Petrópolis/Vozes.]6. Ver The Myth 0 / Analysis, seção  Histeria . Já na Renascença, Rabelais comparara as

histéricas às Menâdes. Moebius, op. cit., sup. p. 50, escreveu: ... Dioniso é de fato o Deus da

His teria ... Isso já é manifesto no fato de que (em seu culto) as mulheres se encontram no

primeiro plano, bem ao contrário do costumeiro hábito grego. As sim, s em percebê-to,

Nietzsche escolheu como seu Santo o Patrono da Histeria. 7. C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, anot ado e o rganizado por Aniela Jaffé,

Londres, Collins and Routledge, 1%3. Apontado em meu texto como MDR, seguido do

Sobre o significado cultural da educação do vinho e sobre o vinho na educação, ver de P.Friedliinder, Plato, Vol.lII, Princeton Univ. Press, 1%9 , pp. 397-403. Esparta era abstêmia

(Leis, 637a-b), e onde não há vinho, será que isto não implica uma interpretação incorreta

de Dioniso e de seu pleno significado, senão mesmo a interdição dele? Se isto for assim,Moebius foi abstêmio durante a maior parte da sua vida adulta, o mesmo ocorrendo com

Bleuler - e com Jung também, durante certo tempo no Burghõlzli de Bl euler. (Sobre a

satisfação de J u ng em beber quando na Basiléia, ver A Oeri,  Algumas lembranças juvenis

de C. G. Jung , Spring 1970 .

16. Cf. The Myth 0 / Analysis seção  Dioniso e a consciência bissexual, para as refe rênci as e

citações de Nilsson, Guthrie e outros autores mencionados neste parágrafo.17. K. Kerényi, Griechische Miniaturen, Zurique, 1957, p. 133 (tradução de Hillman); para as

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número da página.

8.  Origens da t ragédia , trad. inglesa de C. P. Fadiman em The Philosophy of Nietzsche, Nova

York, Modern Library, s/d.

8a. Meu ponto de v is ta sobre Wotan segue o de Jung, que por sua vez segue o d e Nietzsche eo de Wagner; mas isso não é todo o Wotan, em absoluto; ver de M. Burri  Repression,

Falsification, and Bedeviling of Germanic Mythology , Spring 1978, pp. 88-104.

9. Thomas Mann, Death in Venice , em Stories 0 / Three Decades (trad. inglesa de H. T.

Lowe-Porter ), Nova York, Knopf , 1936.

10. Herácl ito, f ragmento 15 (arranjo de Diels): Se não fosse em honra de Dioniso que eles

re al iz avam a proci ssão e cantavam o hino fálico, sua ação seria completamente

despudorada. Mas Hades é o mesmo que Dioniso, em cuja honra el es del ir am e r ealizam

as folias báquicas.  K. Freeman,Anc il la to t h e P r e- Socratic Philosophers, Oxford, 1948.

11. C. Kerényi, Dioniso o Cretense , Diogenes 20, Paris, 1957, p. 4, t radução minha.12. Jung leu o episódio da nekyia na Odisséia durante um passeio de barco com amigos pelo

lago de Zurique. Isto não consta da versão inglesa de MDR; ver, porém, o relato de H. F.

Ellenberger, em The Discovery 0 / Unconscious, Nova York, Basic Books, 1970, p. 670, e

também o or ig inal a lemão de MDR, pp. 103-04.

13. ElIenberger, idem, p. 672.

14. J. W. T. Redfearn diz :  A necess idade dos aspec to s def ensivos da manda la [ est á] para s erreconhecida e interpretada.  ( Os símbolos da mandala e o processo de individuaçâo

a rt igo não-publicado e apresentado no IV Congresso Internacional de Psicologia

Analítica, Londres, 1971). Também ele observa, em relação à manda Ia, que a teoria de

Jung sobre as quatro funções  desenvo lveu-s e numa época em que forças psicóticas o

ameaçavam . Jung indica a função protetora das manda I as em CW9:i, 16, 710 epp. 387-88.

15. Sobre o s igni ficado çultural do vinho, ver Platão, Leis 672a-<l, onde  a dádiva de Dioniso ,

mesmo incluindo  a possessão báquica e t oda a sua dança frenética , se converte em fonte

de música:  ... a dádiva era entendida ... como um remédio que gera a modéstia da alma e

a saúde e força do corpo . Esta dádiva de Dioniso relaciona-se com o envelhecimento,

porque estaria vedada aos jovens de menos de 18anos  e moder adament e perm iti da aos

 homens de menos de 30 anos .  Mas, quando um homem se aproxima dos 40, poderemos

dizer-lhe, depois que ele tenha t erminado o banquete na mesa comum, que invoque os

Deuses, e em particular que peça a presença de Dioniso nesse sacramento e diver timento

da idade avançada - refiro-me à t aça de vinho . ..  (666a-b). O diálogo mais impressionantede PIa t ão, com uma visão do amor que tem sido a principal influência cultural (exceção

feita dos Evangelhos) sobre o eros da nossa ps ique ociden tal - é uma espécie de bacana l.

O Deus que r ege e ss e d iálogo, ins inuado nos episódios f inai s e através de Sileno, é Dioniso.

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referências de Dodds e para uma discussão mais longa do menadismo branco e negro e a

questão  do limite , ver The Myth 0 / Analysis,  Dioniso re-imaginado .18. Ver W. H. Roscher, Ausfiihrliches Lexikon der griechischen und romischen Mythologie

(photomechanischer Nachdruck) , Hildesheim; Olms, 1965, vol. 11,2212, Lysios .

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 GR DE IMENTOS

 Sobre a necessidade de uma psicologia do comportamento anormal:Ananke e Atena , surgiu primeiro como uma palestra na Conferên-

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cia de Eranos de 1974, Ascona, Suíça, sendo revisto para publicaçãono Eranos Jahrbuch 43  Norms in a Changing World  Leida,   rill 

1977). O trabalho foi mais uma vez ampliado e revisto para ser publicadoneste volume. Heterônimos de Hermes foi publicado originalmenteem Archai: Notes and Papers on Archaic Studies  2, Franconia, N. H 1978. O presente texto inclui mais de sessenta acréscimos aos epítetosde Hermes, Uma imagem mitológica da meninice: Ártemis , natradução inglesa de Hildegard Nagel, foi publicado pela primeira vezem Spring 1969. Esta versão foi ligeiramente alterada por MagdaKerényi.  O problema das Amazonas apareceu em Spring 1971 e traziaa dedicatória: Em memória de Franz Riklin . A tradução inglesa é deMurray Stein. Chapeuzinho vermelho e a Grande Mãe Réia: algumasimagens da psicologia da inflação  é publicado aqui pela primeira vez. Héstia: um fundamento do enfoque psicológico  também está sendo

publicado aqui em primeira mão. Ariadne, a senhora do labirintonunca fora publicado antes. Dioniso na obra de Jung foi publicadooriginalmente em S p ri ng 9 7 2

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