23
ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS:APROXIMANDO AGENDAS E AGENTES 23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP) DA MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA À AMIZADE NA SALA DE AULA: (RE) PENSANDO A POSTURA DO EDUCADOR Alonso Bezerra de Carvalho UNESP-Assis/Marília Fabiola Colombani UNESP/Marília

ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, … · 2013-08-26 · pois nasceu de uma educação compensatória que não tinha como principal objetivo, ... que passou a assumir função

Embed Size (px)

Citation preview

ENCONTRO INTERNACIONAL PARTICIPAÇÃO, DEMOCRACIA E POLÍTICAS PÚBLICAS:APROXIMANDO AGENDAS E AGENTES

23 a 25 de abril de 2013, UNESP, Araraquara (SP) DA MEDICALIZAÇÃO DA INFÂNCIA À AMIZADE NA SALA DE AULA: (RE)

PENSANDO A POSTURA DO EDUCADOR

Alonso Bezerra de Carvalho UNESP-Assis/Marília

Fabiola Colombani

UNESP/Marília

2

Introdução

O tema das relações humanas e da convivência entre as pessoas na escola

tem sido objeto de reflexão e aumentado substancialmente nos últimos tempos.

Pretende-se com isso compreender porque certos comportamentos e condutas

habitam um lugar em que as pessoas poderiam ou deveriam se relacionar de

maneira mais amigável e solidária. Indisciplina, violência, desinteresse, indiferença,

etc, são atitudes que tem sido constatado na sala de aula e fora dela. Alunos e

professores parecem que não estão se entendendo, em que um descompasso entre

os seus juízos de valores, de gosto e de escolhas tem prevalecido. O resultado mais

evidente disso tudo é o conflito. Para solucionar esses problemas, a escola, como

espaço educativo e como instituição, ligado a um sistema social de ensino e

educacional tem tomado providências que tem causado polêmicas, tanto do ponto

de vista das reflexões e das ações pedagógicas quanto no campo da ética e da

moral.

Para os propósitos deste trabalho apresentamos algumas reflexões

concernentes ao tema da infância, destacando o tratamento que é dado às

situações consideradas desviantes nas crianças – os chamados Transtornos de

Déficit de Atenção e Hiperatividades (TDAH). É observável no cotidiano da escola

práticas que exprimem um desejo de instaurar uma política para a infância, que

toma como verdadeiros e plausíveis os diagnósticos provenientes de uma visão

patologizante da criança. Essa postura pretende implantar um processo de

homogeneização pretensamente “sadia”, com o objetivo de universalizar e

enquadrar os comportamentos infantis. Algumas condutas apresentadas pelas

crianças, neste contexto, são vistas como indicativos de transtornos e isso vem

contribuindo para que elas sejam encaminhadas pelos educadores aos profissionais

da saúde, pois a queixa aponta que tais comportamentos podem ser considerados

indisciplinados, agitados e impulsivos. Refletir e examinar tal questão pode revelar

os frutos de uma sociedade eugênica e disciplinar, que foi consolidada com o

processo de higienização ocorrido no início do século XX. De caráter crítico, este

trabalho busca mostrar que se pode olhar a educação na atualidade em outras

perspectivas e não tentar resolver os problemas por meio de uma mera técnica,

muitas vezes alheias e quiçá contrárias ao problema que se apresenta, pois, com

3

isso, a educação pode perder seu caráter primordial de humanização e de encontro

entre as diversas formas de existir.

Nesse aspecto, pretende-se, num segundo momento deste texto, examinar a

percepção, a sensibilidade e a abertura que o professor pode construir para

compreender e interpretar os movimentos que acontecem na sala de aula. Com

isso, abre-se a possibilidade de se evitar um diagnóstico reducionista, organicista e

biologizante, que leva a um expressivo aumento no índice de medicalização da

infância. Para tanto, tomamos a amizade, no seu sentido filosófico, como uma

tentativa que pode proporcionar um questionamento e uma ruptura a um estilo

pedagógico que parece consolidado, isto é, que trata a infância como uma fase em

que a criança pode ser moldada e preparada para a fase adulta, com o intuito de

torná-la passiva, docilizada, ou seja, alvo de poder. A nossa idéia é de que a

amizade pode inverter ou converter esse fluxo de atitudes e posturas mecanizadas,

sobretudo quando desconsidera o aspecto subjetivo e as singularidades da criança.

Ao pensarmos em relações humanas na escola e, sobretudo na sala de aula, a

idéia ou pergunta que rapidamente vem à nossa cabeça é se há possibilidade de

uma relação amical, nos termos que trataremos aqui, entre professor e aluno, por

exemplo. É certo que a possibilidade de amizade entre professores e alunos põe-

nos diante de uma questão pertinente ao nosso tempo. Se a amizade é ter uma vida

em comum, que elemento pode unir os dois personagens? É evidente que há uma

diferença entre ambos, na vestimenta, no vocabulário, na idade, nos interesses, etc.

Não é a mesma coisa ser aluno e ser professor: um está diante do outro do ponto de

vista da sala de aula. Nesse sentido, pode ser catastrófico construir estratégias,

vindas de fora, para superar os conflitos e as dificuldades que surgem na sala de

aula, especialmente quando sabemos que pertencem ao mesmo grupo, à mesma

convivência, ao mesmo ambiente.

Se partirmos da constatação de que na escola, de maneira geral, e

particularmente na sala de aula, há um jogo ético nas relações que ali se

estabelecem, um estudo, uma reflexão na direção de uma prática renovada, tendo a

amizade como elemento principal, pode ser uma experiência significativa. Essa

experiência, aparentemente estranha, pois baseada entre pessoas diferentes, é o

que nos levaria a reconhecer a amizade como uma virtude, ao mostrar como a

revelação de pontos de vista, de crenças, desejos, atitudes e utopias distintas,

tornando-os próximas, e não anulá-las, controlá-las ou extirpá-las.

4

A barreira hierárquica e o desejo de controle podem ser superados, em que

professores e alunos tenham o ato corajoso de circularem, “dois que andam juntos” ,

agindo e pensando um no terreno um do outro, de recriar uma espécie de

sociedade, de comunidade, sem estigmas, culpas e exclusões. Deste modo, a

escola pode, sim, ser um espaço de crescimento, onde a educação desempenha

seu papel de uma forma democrática e plural, sem ser arbitrária. E os educadores

construírem relações mais sólidas sem serem normatizadores e, junto com os

alunos, construírem alternativas, primeiro como reflexões e, depois, como

elaborações de propostas para enfrentar os problemas e questões que a realidade

escolar coloca.

A MEDICALIZAÇÃO NA ESCOLA A questão do TDAH – o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade –

tem atingindo em cheio o ambiente escolar. Quando há alguma suspeita, os

professores tem adotado um procedimento bem radical: as crianças são, com

freqüência, encaminhadas a centros especializados para se fazer um diagnóstico.

No âmbito escolar, o TDAH surge, então, como justificativa para a repetência,

o fracasso e a indisciplina. Crianças que apresentam comportamentos que não

correspondem ao esperado ou desejado pelos professores, são vistos como

portadores de tal transtorno. Os pais, influenciados pelas queixas dos educadores,

passam a procurar por ajuda médica e psicológica com o intuito de sanar tais

comportamentos considerados anormais, o que acarreta na medicalização, que

surge como principal meio de “solucionar” o problema.

No entanto, se olharmos a partir de uma visão crítica, essa postura e

interpretação indica o caráter organicista, biologizante e individualista da questão

que, à luz da teoria foucaultiana, pode ser compreendida como refletindo, ou melhor,

exprimindo os mecanismos institucionalizadores de poder presentes na sociedade.

O professor infantil, sobretudo, tem se queixado das “más” condutas e dos

comportamentos das crianças, associando-os a uma causa biológica, doentia e que

precisa de tratamento. Enfim, a postura dos educadores é patologizar as atitudes

das crianças.

Historicamente, a Educação Infantil sempre foi um ambiente disciplinador,

pois nasceu de uma educação compensatória que não tinha como principal objetivo,

um ambiente que correspondesse ao caráter criativo, livre e comunicativo desejável

5

para a infância; levando os educadores a confundir o que é normal e o que é

patológico. Sob esta influência histórica, muitos dos comportamentos manifestos

pelas crianças são vistos como indisciplinados e agitados, fazendo com que essas

crianças sejam vistas como “hiperativas”. Essa visão, consequentemente, acarreta

no encaminhamento aos profissionais da saúde e posteriormente aos longos

tratamentos terapêuticos e medicamentosos.

Desta forma, é importante pensar no conceito „patologização‟ - ato de

patologizar -, que vem de patologia, cuja origem é a palavra grega pathos, que

significa, principalmente, „passividade, sofrimento e assujeitamento‟. A expressão

utilizada, no latim, na forma patere, significa „sofrimento, paixão‟ (no sentido de

passividade). Se as palavras forem analisadas será fácil perceber que elas são

interligadas e trazem uma conotação de sofrimento. Para Lebrun (1997, p. 18),

significa uma tendência que deixa o indivíduo suscetível às interferências, ou seja, é

uma potência que caracteriza o paciente, mas não um poder-operar, mas sim um

poder tornar-se, isto é, a suscetibilidade que fará com que nele ocorra uma nova

forma de movimento, ocupando a posição passiva receptora.

Transpondo a idéia para a patologização escolar, pode-se dizer que é algo

externo que influencia e modifica a subjetividade do indivíduo, ou seja, patologizar é

o próprio ato de apontar no aluno considerado “diferente” uma doença que mesmo

inexistente, passa a ser reconhecida e diagnosticada pela equipe escolar e de

saúde. Este ato além de estigmatizar o indivíduo colocando-o como anormal, ainda

busca através de justificativas sociais, afirmar a patologia, o que pode desencadear

como conseqüência, no ato da medicalização.

Collares e Moysés (1994, p. 29), conceituam o termo medicalização:

o termo medicalização refere-se ao processo de transformar questões não-médicas, eminentemente de origem social e política, em questões médicas, isto é, tentar encontrar no campo médico as causas e soluções para problemas dessa natureza. A medicalização ocorre segundo uma concepção de ciência médica que discute o processo saúde-doença como centrado no indivíduo, privilegiando a abordagem biológica, organicista. Daí as questões medicalizadas serem apresentadas como problemas individuais, perdendo sua determinação coletiva. Omite-se que o processo saúde-doença é determinado pela inserção social do indivíduo, sendo, ao mesmo tempo, a expressão do individual e do coletivo.

Este conceito caracteriza uma severa crítica à intervenção repressora da

medicina, que passou a assumir função de reguladora social e até hoje exerce

6

influência na realidade, não através de violência ou repressão, mas pela força que

forma saber e produz um discurso, induzindo os indivíduos a agir conforme os

desejos e normas criados e impostos pela uma sociedade. Essa ingerência os

influencia na forma de pensar e de se comportar, fazendo com que aceitem e

adotem a necessidade de uma subjetividade medicalizada, que reconhece o desvio

e o diferente como patologias a serem cuidadas por uma sociedade disciplinar, na

qual a “indisciplina” e o “não-aprender” passam a ser doenças com indicações de

tratamento.

A presença da equipe de saúde nos assuntos educacionais é algo que foi

criado no Brasil no início do século XX, absorvendo os princípios higienistas. Desde

lá, essa abordagem neurológica dos distúrbios de aprendizagem toma força e

“arrasta” multidões de crianças, que acabam sendo enquadradas em diversas

patologias, segundo um raciocínio clínico tradicional.

O ato de patologizar atinge o indivíduo que se manifesta fora dos padrões

considerados normais. Porém, a questão não é somente médica, pois influencia a

educação e a conduta dos educadores, que levam para a sala de aula uma

concepção de criança que deve atender a um modelo pré-determinado socialmente,

o que acaba provocando equívocos sobre o binômio normal - patológico. Isso afeta

diretamente a relação professor-aluno, pois o professor cria uma expectativa em

torno da criança que influencia as suas condutas em relação a ela caso desvie

daquilo que ele, o professor, considera “normal”.

Muitas vezes, a concepção de criança que o educador possui não permite que

ele a veja como um ser individualizado e atravessado historicamente, o que pode

transformar o seu discurso no discurso de um sujeito infantil universal, ideal e

abstrato, produzido apenas pela razão, obedecendo de forma padronizada às

características biológicas próprias da idade à qual pertence. Essas peculiaridades

resultam de uma uniformização, o que produz uma tentativa de homogeneização da

educação. Assim, toda e qualquer criança que se desvia do padrão considerado

“normal”, acaba sendo vista como problemática e uma nova necessidade passa a

ser produzida, fazendo com que os educadores venham a solicitar “cuidados” dos

profissionais da área médica, com o intuito de detectar distúrbios e posteriormente

corrigi-los.

Com o desejo obstinado de produzir, próprio da sociedade capitalista, a escola

se destina ao desenvolvimento de um espaço em que a prioridade seja a

7

produtividade e, ao mesmo tempo, a obediência às leis, que na maioria das vezes

não vem através de uma conscientização de cidadania, mas, numa forma alienante,

que destrói o aspecto crítico e questionador da infância, com o objetivo de priorizar o

sistema produtivo.

Em seu discurso, Foucault (apud DORNELLES, 2005, p. 19), contribui dizendo:

portanto, a invenção da infância implica na produção de saberes e “verdades” que têm a finalidade de descrever a criança, classificá-la, compará-la, diferenciá-la, hierarquizá-la, excluí-la, homogeneizá-la, segundo novas regras ou normas disciplinares. Impõe-se sobre a infância uma ordem normativa que lhe dá uma determinada visibilidade, tendo em conta que “o exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do olhar; um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam os efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam”.

Sendo assim, esses efeitos do biopoder acabaram se institucionalizando de

forma que o processo de normatização, o ato de classificação e de individualização,

foram ganhando contornos próprios e a norma foi se afirmando, causando um

domínio sobre o comportamento e a disciplina, respaldados por saberes científicos

que encontram cada vez mais justificativas diagnósticas nas manifestações infantis

consideradas inadequadas ou “anormais”.

A escola tem uma forma disciplinar de funcionamento subjacente a uma

perspectiva educativa, um modo massificante e organicista de ver a criança que

apartada de suas condições culturais e sociais é analisada de forma superficial e

ambígua. Ao valorizar em demasia a ordem, a escola deixa de promover práticas de

vivências democráticas para aplicar as normas disciplinares que possuem a

finalidade de modificar comportamentos. Além disso, ela tem uma função de

produção e reprodução, que mantêm a desigualdade social, legitimando o

conhecimento dominante, sem levar em consideração as necessidades dos alunos,

fazendo da sala de aula apenas um lugar de transmissão de conhecimento. Nesse

processo, os educadores atuariam como agentes de reprodução econômica e

cultural de uma sociedade fragmentada e que aliena, tirando do indivíduo o aspecto

crítico que “cega” a visão de dominação de classe, de gênero e de raça. Porém,

estes aspectos da educação, embora tenham sido construídos historicamente,

atuam de forma naturalizada, numa verdade cristalizada e arbitrária.

8

Capturados pela instância do poder, os alunos passam a se comportar de

forma robotizada. Contudo, há aqueles que fogem dos padrões de controle

considerados normais, e manifestam-se com outras formas de comportamento. Este

“desajuste”, que incomoda os educadores, é visto como indisciplina. A indisciplina é

entre os educadores, atualmente, uma das queixas que mais aparecem no cotidiano

escolar. Ao ouvi-los observa-se que se queixam de falta de regras, desobediência às

normas, desinteresse pelo ensino e atitudes agressivas. Porém, ao relatar estas

queixas, mais parece que os alunos apontados são adolescentes, estudantes do

ensino médio, quando na verdade são alunos da educação infantil, ou seja, crianças

entre 03 e 05 anos, que são vistas como descontroladas, desregradas,

desobedientes e agressivas.

Muitas das queixas dos professores em relação à indisciplina têm a ver com

falar demais, falar alto ou não permanecer sentado muito tempo no momento das

atividades em sala de aula, comportamentos comuns da infância, que passam a ser

confundidos muitas vezes com distúrbios e transtornos do comportamento, o que

acaba impulsionando o professor a solicitar o auxílio dos especialistas

parapedagógicos (psicólogos, neurologistas, psiquiatras e afins), com o intuito de

solucionar tais “problemas”.

Ao moldar, controlar e punir, a escola priva a criança de liberdade. Liberdade

de expressão, liberdade de brincar, de procurar os seus próprios interesses, de

socializar, de reivindicar, de errar enfim, de ser ela mesma, isto é, inocente, pois a

infância – livre de hipocrisia social - é a única fase em que o ser humano consegue

ser original. No seu texto As três transmutações, de Assim Falou Zaratustra,

Nietzsche parece querer dizer isso: “inocência é a criança, e esquecimento, um

começar-de-novo, um jogo, uma roda rodando por si mesma, um primeiro

movimento, um sagrado dizer-sim. Sim, para o jogo do criar, meus irmãos, é preciso

um sagrado dizer-sim” (1978, p. 230). No entanto, na escola de hoje a criança vai

perdendo os seus sentidos, quando já não pode mais usá-los. A sua linguagem

corporal é roubada quando ela não pode mais manifestar as dores e os sabores por

meio do corpo ou da fala, ao se sentir presa num sistema que a rejeita, ela passa a

internalizar as disciplinas e a aceitar o que lhe impõem. Ainda conforme Nietzsche:

de criança, se transforma em leão e de leão em camelo que, ajoelhado, deve ser

bem carregado – o espírito de carga (idem, p. 229)

9

Pode-se então, concluir, a partir de tais reflexões que a escola sempre foi

palco das disciplinas e das diversas formas de disciplinamento, onde todo e

qualquer indivíduo que não obedecesse às normas era considerado fora do padrão

desejado. E isso já começa na família.

Estado, família e educação

A família, mesmo dentro de uma posição senhorial, estava sendo dominada

lentamente, tomada por pequenos poderes que eram representados por agentes do

Estado, responsáveis pela divisão dos padrões de comportamento social em legais

e normativos, buscando a universalização de novos valores, principalmente o de

acreditar na supervalorização do Estado em relação à família, regulando os

indivíduos para que se adaptassem à ordem imposta pelo poder, não apenas para

abolir as condutas inaceitáveis, mas também para incorporar as novas práticas e

sentimentos.

Por seu lado e nesse processo, a medicina começou a atuar mais próxima

das pessoas, segundo uma prática filantrópico-assistencialista que invadia a vida

privada sem que configurasse um ato de desrespeito. Com isso, os indivíduos

acabaram permanecendo cegos, inertes e envolvidos pelo domínio estatal. Em

1829-1830 houve uma ascensão significativa desse poder, pela qual a higiene

médica obteve o seu reconhecimento público, impondo-se junto ao poder central

como elemento essencial à proteção da saúde pública.

Desenvolvendo uma nova moral da vida e do corpo, a medicina contornou as

vicissitudes da lei, classificando as condutas lesa-Estado como antinaturais e

anormais. Todo trabalho de persuasão higiênica desenvolvido no século XIX vai ser

montado sobre a idéia de que a saúde e a prosperidade da família dependem de

sua sujeição ao Estado (COSTA, 1989, p.63).

Segundo o autor, podemos dizer que a higiene, a princípio, parece cuidar da

moral e dos bons costumes da vida privada e pública dos indivíduos, mas na

verdade o maior alvo da higiene sempre foi a família, ao passar a idéia de que era

necessário um cuidado científico para que ela pudesse se adaptar à urbanização e

cuidar dos filhos, pois os pais eram vistos como incapazes, visto que erravam por

ignorância e a família acabava por descobrir no saber higiênico a prova de sua

incompetência que os higienistas faziam questão de apontar. Desta forma, a

10

medicina passou a ser recebida e internalizada pela família que pode reconhecê-la

como padrão regulador dos comportamentos, dificultando toda e qualquer conduta

que se desviasse do padrão desejado pelos higienistas. Se o objetivo principal do

Estado era combater os maus hábitos entre os adultos, isso só ocorria com a

intenção de que a criança fosse influenciada com hábitos saudáveis, pensando

sempre no adulto do amanhã que contribuiria para o progresso.

Ao estabelecer um parâmetro de sociedade e família organizada, a disciplina

idealizada pelo Estado pôde passar a agir de forma mais significativa e constante,

combatendo a imoralidade, os corpos insanos e as atitudes corrompidas. Embora os

pensamentos teológicos ainda se encontrassem fortes, lentamente a ciência foi

conquistando território e sendo assimilada pela sociedade como uma forma de

progresso e solução à saída da sociedade de várias situações de caos.

Foucault, em sua obra Vigiar e Punir (2008), faz uma discussão singular

sobre a ação da disciplina como reguladora dos instrumentos normalizadores, a qual

favoreceu a docilidade com que a família se sujeitou à higiene, o que acabou

desencadeando uma nova constituição social. A higiene, representada por cientistas

da área médica, chegou exercendo um papel de suposto saber que, tomado de

pleno poder, recebeu licença para adentrar o seio familiar e, consequentemente,

influenciar o funcionamento de outras áreas que até então não faziam parte da

competência médica, como por exemplo, a educação.

A disciplina para Foucault tem ligação direta com o poder, pois segundo ele o

poder é a ação das forças em detrimento de algo ou de alguém que exerce

fragilidade ou submissão em relação ao outro. O olhar hierárquico, que estigmatiza e

reprime o que não é aceitável, tem como objetivo disciplinar o corpo dócil - termo

usado por Foucault - que está adjacente a uma época clássica em que houve a

descoberta do corpo como um alvo de poder. Os higienistas se utilizaram, em suas

investidas, de um corpo que pode ser manipulado, modelado, treinado, que obedece

e corresponde aos desejos dos detentores do poder que neste caso, está

caracterizado na figura médica.

(...) o corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a

11

eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (FOUCAULT, 2008, p.119).

O filósofo francês então elucida que o disciplinamento veio não só para

moldar a forma de organização familiar, como também, para cobrir de domínio

através da norma, todo o corpo social que ao ser vigiado e manipulado “lubrificava”

toda engrenagem, tornando-se a vigilância um operador econômico determinante,

na medida em que o poder disciplinar influencia na produtividade social.

Com o Iluminismo, as preocupações com a infância se intensificaram e se

centraram na idéia de transformar a criança em “homem dotado de razão”, sempre

com o objetivo de torná-la produtiva. Mas é no século XIX que a escola passa a ser

o local por excelência da educação e da aprendizagem das crianças, havendo os

disciplinamentos impostos pela instituição, com o intuito de constituir sujeitos

eugênicos e capazes, que dêem conta de uma nova forma econômica que surgia

naquele momento - a industrialização.

Já durante todo o século XIX e início do século XX, percebe-se todos os

resíduos cristalizados de uma sociedade eugênica e higiênica, que passa a ter como

suporte social, verdades construídas ainda no Brasil Colônia. Várias iniciativas,

nesta época, demonstram uma concepção assistencial que, proveniente de

inúmeras leis, acaba por influenciar as condutas jurídicas, sanitárias e educacionais,

tendo sido denominada de período assistencial científico. Assim:

as primeiras décadas do século XX, no Brasil, foram marcadas por um amplo debate em torno da reconstrução da identidade nacional, em meio à constatação de um quadro sanitário-educacional extremamente precário, tanto em zonas urbanas quanto em zonas rurais. Desencadeou-se um verdadeiro movimento pela saúde e saneamento do Brasil, marcado pela presença da doença como o grande obstáculo a ser superado, articulada fortemente com os temas da natureza, do clima, da raça, dentre outros (BOARINI, 2003, p. 45).

Desta forma, a infância passou a ser mais valorizada, sendo alvo de cuidados

específicos por meio de um controle assíduo. Se esse “controle” do corpo tinha

como principal objetivo obter uma infância protegida e higienizada, para que

houvesse a defesa da sociedade, pensando a criança como o “adulto do amanhã”,

12

só o tinha para que esse “adulto do amanhã” viesse a ser um aparelho social

eficiente, isto é, um cidadão que viesse a contribuir para o avanço de sua nação

com suas práticas progressistas e salubres. A escola se tornou o lugar apropriado

para cultivar os bons hábitos na infância, cujo objetivo seria buscar a harmonização

do corpo e do espírito com o alcance da disciplina.

Que a escola é historicamente um lugar disciplinador isso já se sabe, mas o

que se pode perceber, a partir de observações e estudos feitos atualmente

(LUENGO,2010; PROENÇA, 2010; ASBAHR, F.da S.R.& SOUZA, M.P.R., 2007), é

que a educação infantil, mesmo com os avanços que já foram alcançados, pós

Constituição de 1988, vem demonstrar um trabalho centralizador, pelo qual o

professor culpabiliza o aluno pelo fracasso, atribuindo-lhe rótulos estigmatizantes,

que o apontam como indisciplinado e incapaz, de forma a enquadrá-lo num lugar de

exclusão, sem considerar o seu modo de ser.

A criança ao chegar à escola, se depara com essa forma de

funcionamento educacional, na qual a intolerância, a falta de paciência e o

desrespeito às singularidades estão quase sempre presentes. A escola deveria

oferecer também, um espaço de atividades livres e lúdicas, com o intuito de

despertar na criança o desejo de criar e de aprender, conforme sua própria

curiosidade, necessidade e interesse, sem que tenha que ser submetida a exames e

avaliações classificatórias, pois ela representa, para a criança, uma iniciação da vida

social, fase em que os pequenos passam a se relacionar com um mundo fora do

seio familiar, conectando-se às novas experiências.

Nesse aspecto, é exigido do aluno que ele se adapte aos ritmos

escolares intensos, submetendo-se às práticas de imposição e aceleramento. Um

exemplo é a apostila, que alfabetiza precocemente com o objetivo de “prepará-lo”

para o ensino fundamental. Para alcançar os objetivos pedagógicos vigentes no

planejamento, é exigido da criança que ela se mantenha atenta e interessada,

durante todo o período escolar. Mas se adultos, na universidade, desconcentram-se

ao permanecerem sentados por muito tempo ouvindo aulas e palestras, como é

possível que crianças tão pequenas possam corresponder a essa expectativa dos

educadores?

Ao esperar que o aluno comporte-se como mero espectador na sala de aula e

que contenha suas ações, manifestando-se somente quando convidado, seguindo

uma postura obediente e submissa, cria-se um modelo de aluno normal e

13

disciplinado, ou seja, isso passa a fazer com que esse molde imposto pela escola,

venha classificar os comportamentos da criança, havendo previamente um padrão

considerado normal e outro desviante.

Aquele aluno que não corresponde ao padrão de normalidade exigido pela

sociedade, passa a ser olhado com os “olhos” de um sistema que não respeita as

características singulares, ficando, este aluno, vulnerável às intervenções. Ao

estigmatizá-lo, por não corresponder aos anseios sociais, cria-se a possibilidade de

“tratá-lo” para que só então, ele esteja apto a participar de uma vida escolar

produtiva.

Esses alunos, considerados “diferentes” ou “normais”, sofrem por uma

sociedade com ideais que visam uma constante homogeneização e universalização

do homem e os psicofármacos chegam como grandes auxiliares neste processo de

dominação.

Porém, assim como a criança é alvo dessas imposições sociais, o professor

também o é, pois embora tenhamos apontado em direção às práticas educativas

que controlam, disciplinam, estigmatizam, patologizam e medicalizam a criança,

sabemos que o educador é vítima e produto de um sistema político-social em que a

sua formação profissional muitas vezes é deficiente e, além disso, sentem-se

solitários numa luta diária que precisa corresponder a uma exigência de

produtividade imposta socialmente, influenciando a conduta das pessoas nos

diversos espaços sociais, o que agrava ainda mais a situação.

É sintomático, diante disso, que a sala de aula adquire e torna-se um espaço

privilegiado para se construir uma saída e um lugar em que o professor, por meio de

sua prática docente, pode assumir o compromisso de agir1 no sentido de romper ou

no mínimo problematizar esse processo de uniformização das condutas e

comportamentos feito via, por exemplo, a medicalização, como tratado até aqui.

A seguir, nos propomos trazer à discussão uma temática que pode oferecer

elementos que vão no sentido de proporcionar não apenas reflexões renovadas,

mas que tenham conseqüências nas práticas docentes atuais. De início, falaremos

1 A noção de agir que adotamos aqui é tomado da filosofia Hannah Arendt, em seu livro A condição

humana. Para ela, agir “no sentido mais geral do termo, significa tomar iniciativa, iniciar (como indica a palavra grega archein, „começar, „ser o primeiro‟ e, em alguns casos „governar‟), imprimir movimento a alguma coisa (...) O novo sempre acontece à revelia da esmagadora força das leis estatísticas e de sua probabilidade que, para fins cotidianos, equivale à certeza: assim, o novo sempre surge sob o disfarce do milagre. O fato de que o homem é capaz de agir significa que se pode esperar dele o inesperado, que ele é capaz de realizar o infinitamente improvável” (1983, p. 191)

14

da sala de aula como espaço de encontro e, em seguida, da amizade – philia, em

grego - como uma perspectiva filosófica que pode nos conduzir a um horizonte

educacional menos objetivante, técnico e dominador e mais baseado na

intersubjetividade.

Sala de aula: lugar de encontro

Embora seja um espaço institucionalizado, a sala de aula pode ser um lugar

para transgredirmos e edificarmos uma maneira nova de nos relacionar. Para além

dos conteúdos que aí circulam, é possível que a comunidade escolar, sobretudo

professores e alunos, criem e inventem ocasiões para experimentar novos diálogos

e novas relações. Espaço plural de liberdade, a sala de aula não pode perder o seu

aspecto revolucionário, onde é possível construir conversações com o mundo e com

os outros, baseado no respeito, a escuta e no olhar atento (Cf. ESQUIROL, 2008).

Seres inacabados que somos, o desafio que é posto para aqueles que querem

intensamente fazer de sua existência uma obra de arte, está em se abrir ao outro;

não para anulá-lo e submetê-lo a desejos e ordens, porém no sentido de nos fazer

mais humanos e sensíveis, compartilhando dores e sofrimentos bem como as

alegrias. Reconhecendo esse permanente conflito e o caráter agônico da vida é que

nos tornará um “outro” para o “outro”, a ser considerado, ouvido, respeitado. E a

amizade, no seu sentido mais profundo e original- philia - pode ser tomada como a

ação mais decidida na direção do outro. E, portanto, a mais decididamente ética.

Pois o amigo é sempre mais do que simplesmente o outro. É sempre mais que um

outro. É o outro que queremos próximo, e toda uma ética da aproximação e da

proximidade deve se constituir em resposta ao seu chamado.

Como suporte de toda discussão que estamos fazendo neste espaço, alguns

conceitos são fundamentais: diálogo, consenso, tolerância, participação, afeto,

acordo, respeito à diferença, etc. Essas idéias pertencem à dimensão ética,

contribuindo para a construção de uma maneira nova de existir, nos levando para a

formação da cidadania.

O diálogo forma para a cidadania porque permite a indispensável autonomia

moral para uma efetiva atuação ética, numa construção política, reflexiva e solidária.

Pelo diálogo é que se gesta a futura amizade e o compromisso mútuo que, ao nosso

ver, é o pilar e o objetivo da educação (BARREIRA, 2006).

15

Nesse sentido, a sala de aula pode ser pensada como um lugar rico para

essas ações, mas sempre buscando ultrapassá-la. Pois, para que serve uma sala de

aula se não for capaz de nos transportar além de suas portas? Uma pergunta dessa

natureza nos conduz a refletir e indagar o que estamos fazendo de nós mesmos

como professores e alunos quando vivemos num ambiente como a escola, muitas

vezes também marcado pelo conflito e pela violência.

É costume considerar a sala de aula como um momento privilegiado em que se

processam o ensino e a aprendizagem, confronto de idéias entre professor e aluno,

entre alunos e alunos, busca do aprimoramento de técnicas para maior

racionalização da transmissão de conteúdos (NOVASKI, 1995, p.11).

Tradicionalmente utilizados como campos inerentes ao ato pedagógico, o

ensino e a aprendizagem constituem ocasiões tensas e inquietantes, mas que bem

cuidadas podem ser fontes para criarmos maneiras novas de relações existenciais.

Se educar é costumeiramente definido como a possibilidade de “levar de um lugar

para outro”, devemos estar abertos para aumentar as nossas experiências e

vivências, configurando “um processo de ensino-aprendizado realmente humano”

(NOVASKI, 1995, p.11).

Desse ponto de vista, a sala de aula deve se tornar um lugar de encontros,

levando em conta as mais diversas, variadas e contraditórias perspectivas e

expectativas. As pessoas entram ali, constroem relações, momentos nos quais os

interlocutores experienciam perspectivas numa troca permanente de conteúdos, em

que as conversas deveriam produzir e fazer acumular informações enriquecedoras.

Como são infindáveis as perspectivas desde as quais um assunto pode ser

abordado, vemos aí então que a aprendizagem não termina nunca, o que torna

perigosa, diria mesmo ridícula, a postura de quem se acha o dono do saber

(NOVASKI, 1995, p. 12).

Como um artista, o professor - esse ator do ensinar-aprender – deve se manter

firme em suas convicções sem ser dogmático, e respeitoso das convicções alheias

sem ser subserviente. “A verdadeira arte consiste em cada um tornar-se suportável

e, se possível, agradável a si mesmo; e também suportável e, se possível, agradável

aos outros” (NOVASKI, 1995, p.12). Essa criatividade, intrínseca à arte de educar,

pode nos tornar mais humanos e mais próximos, enfim, mais eróticos.

Uma relação erótica, porque a relação de um professor com um aluno é como

a relação de um ator com seu público: quando você aparece em cena, é como se o

16

estivesse fazendo pela primeira vez, e você tem a sensação de que, se não tiver

conquistado o público nos primeiros cinco minutos, o terá perdido. Além disso, há

uma relação canibal: você come as carnes jovens deles, e eles comem sua

experiência (ECO, 2008, p. 5).

Esse canibalismo pedagógico de que fala Eco, nos leva a pensar em algo mais

radical, isto é, ao conhecimento que se pode ter cada vez mais do ser humano. Agir

assim é ir se inteirando da aprendizagem mais profunda e que realmente interessa

na vida: conhecer o humano, o mundo humano. A densidade de sentido dessa

experiência se revela por meio de um processo em que o saber não é algo mecânico

e instrumental, porém se deriva de um prazer, dor ou sofrimento advindo de uma

relação saborosa; doce ou amargo, mas sempre sabor.

Assim, a exigência para a prática de uma nova maneira do educar é também

educar-ser e não se apropriar do outro, reduzindo-o a um mero objeto ou coisa.

Segundo Eco:

Há pessoas infelizes que passam os primeiros anos de sua vida com pessoas

mais jovens, para poder dominá-las, e, quando envelhecem, estão com pessoas

mais velhas. Comigo aconteceu o contrário: quando eu era jovem, estava com

pessoas mais velhas, para aprender, e agora, tendo alunos, estou com jovens, o que

é uma maneira de manter-se jovem. É uma relação de canibalismo; comemos um ao

outro. (ECO, 2008, p. 5).

Essa antropofagia pedagógica expõe que, como animais humanos, somos

capazes de encontros, de uma abertura que nos aperfeiçoa. Complementando o que

pensa Kant, esse aperfeiçoamento não nos conduziria apenas a um cosmopolitismo

social, mas nos prepararia continuamente para o enfrentamento das exigências que

o dia-a-dia nos apresenta.

A vida, prenhe de sentidos que se renovam a todo instante, é inesgotável. Por

isso, tanto na aprendizagem de conteúdos como na aprendizagem do que é o ser

humano cabe a nós escapar de pensar o mundo como um sistema fechado de

conceitos ou tentar reduzir o outro a um molde dentro do qual queremos enquadrá-

lo. “Muitas vezes temos que deixar de lado todo tipo de abordagem técnico-científica

e, desarmados, estar simplesmente com o outro... Educar é estar com o outro”

(NOVASKI, 1995, pp. 13-14).

Sendo otimistas, mas não iludidos, a escola pode significar o lócus para

aproximar as pessoas, sim, construindo momentos privilegiados de encontros. Mas é

17

verdade também que ela pode - e geralmente o faz -, afastar as pessoas das

pessoas, o que muitas vezes pode estar causando a violência no âmbito escolar.

É suficiente recordarmos como foram e são as nossas relações na sala de

aula. Quanto tempo demora para se estabelecer – quando se estabelece – um

convívio mais próximo entre aluno-aluno e aluno-professor-aluno? O ensinar-

aprender do homem não se realiza só como interioridade, como assimilação de

conceitos, valores e teorias, mas saindo de si, estando perto das coisas e dos

outros; existir é sinônimo de vizinhança, de estar no mundo, de ser uma consciência

menos intencional e mais intencional. “A variedade insuspeitada de sentidos para

uma sala de aula é diretamente proporcional à densidade afetiva [erótica] com que

esse acontecimento foi vivido” (NOVASKI, 1995, p. 14), cuidando para que este

processo delicado não extrapole para a cooptação, a sedução e o controle do

professor sobre o aluno.

De uma relação erótica, nos termos aqui definidos, se pressupõe a proteção a

qualquer reducionismo, ou seja, ao tratar a aula e a sala de aula como espaço ou

tempo de encontro de gente com gente, sem querer dizer que tudo se sintetizaria e

afloraria de modo límpido e sereno. É preciso ponderar que “todas as vicissitudes

humanas perpassam de ponta a ponta nesse espaço e tempo, vicissitudes que

podem ser traduzidas em conflitos, alegrias, expectativas mal ou nunca satisfeitas,

recalques, exibicionismo, esperanças, avanços e retrocessos enfim, tudo o que é

humano” (NOVASKI, 1995, p. 14)

Portanto, o professor deveria estar atento para responder aos apelos – nem

sempre verbais - que emergem no ambiente da sala de aula. Essa responsabilidade

significa que ele deve ir além dos conteúdos, transportar-se para além da sala de

aula.

A relação em sala de aula é muitas vezes apresentada como uma relação que

se marca e se define pela alteridade; pela forma de compreensão, de percepção e

de recebimento dessa alteridade. Não sabemos se essa direção, ou mesmo se essa

descrição da sala de aula, como um espaço relacional a envolver fundamentalmente

a condição diferenciada e diferenciadora da alteridade, e, em especial, a mediação

do processo de construção do conhecimento pelo outro, é realmente a mais

adequada.

Tal importância da presença e da mediação do conhecimento e do aprendizado

pelo outro, reflete a concepção de um processo “social” e “socializado” de uma e

18

outra esfera. O conhecimento, em todos os seus aspectos, e o aprender, por

decorrência, são acontecimentos de natureza social. O esperado, portanto, é que se

aponte para a importância central do outro, e da condição de alteridade, inclusive

para o estabelecimento efetivo de um processo de construção cognitiva, processo

este que, sem a presença do outro, permanece parcial, precário, ou mesmo

irrealizado.

Se a sala de aula pode ser transformada em lugar de encontro não-violento,

sem controle por meio fármacos, permitindo o estabelecimento de novas relações

com o outro, reconhecendo-o como o nosso amigo, como o fim de nossos

sentimentos filiais, quem sabe estamos diante de uma nova pedagogia, de uma

nova educação. Pois favorecendo a sustentabilidade da idéia de respeito ao outro, o

limite aparece não como aparato e mecanismo de poder, mas como ato civilizatório

que conscientiza a necessidade de respeitar a liberdade do outro, visto que o outro é

aquele que nos respeita e mantêm conosco relações de amizade.

A experiência da Amizade – philia

Ao entrar na sala de aula, em seu primeiro dia de escola, o menino não pensa

no que será a matemática ou na lição de português. Ele quer saber quem será sua

professora, mas, sobretudo, quer encontrar um amigo. A escola seria para ele,

menino, ou para ela, menina, essencialmente isso: o seu primeiro espaço de

amizades.

Mas por que, para todos, o amigo é tão importante nessa hora? O momento de

iniciação da escola confundir-se-ia inteiramente, no fundo, com esse desejo infantil

de “encontrar um amigo”? Essa expectativa da criança não é equivocada, nem

apenas “inocente”. Ela tampouco frustra, por assim dizer, os reais objetivos de

aprendizagem a serem buscados em um ambiente escolar. Muito pelo contrário, por

ela, a criança se liga, na verdade, à condição mesma em que, desde a Grécia, se

pensou a origem de nosso saber, e à situação em que se considerou inscrever a

nossa possibilidade de conhecimento, ou seja, em um ambiente ou uma relação de

philia, de amizade. Jamais uma criança pensaria que a escola é lugar de controle,

em que suas posturas e comportamentos estão sendo medidos, visando enquadrá-

lo num conjunto de normas e práticas que ele praticamente desconhece, mas que

passar a sentir.

19

O saber como uma forma de atividade que, curiosamente, não podia prescindir

da relação amistosa, amigável: foi essa a herança inextricável e dramática dos

gregos. Para existir o saber, era preciso existir também esse amigo e essa amizade.

Era preciso fazer-se “amigo do saber”, philosophos.

O saber, segundo os gregos, não podia se dar senão sob a forma de uma

amizade-pelo-saber, philosophia. Mas, com isso, o próprio saber não seria outra

coisa que uma situação de amizade, a expressão e a manutenção dessa amizade

que o qualificaria essencialmente: a amizade como categoria do pensamento, como

condição para o pensamento enquanto tal.

Para o aluno que chega, o ambiente escolar parece ser então o mais favorável,

pois é essa situação originária que vigora ali mais uma vez. O amigo e a amiga não

tomam o lugar da aula, nem a amizade suplanta o conhecimento e o desejo de

conhecimento, mas ao contrário, eles o favorecem, fazem com que cada um, ao

ingressar na escola reencontre-se com essas condições requeridas para a

construção do seu próprio saber, reencontre-se com a condição originária da sophia,

que está posta no entorno da amizade.

E se a escola é tão importante na vida de toda criança, ela o é, inicialmente,

por isso: porque ao encontrar-se com seus amigos, a criança encontra neles uma

condição filosófica inaugural, encontra neles, nesses seus amigos, os seus comuns

amigos-do-saber, e, enquanto forma, encontra em tudo isso, a amizade como um

princípio, uma arché, o primeiro fulgor de uma nascente vontade de saber.

Assim, é que se todo saber requererá, de fato, a presença da amizade, se para

saber é preciso antes viver o sentido e o valor de uma amizade, descobrir-se amigo

e incluir-se nas formas e nos brinquedos da amizade, a escola é o lugar primeiro e

por excelência dessa vivência comum, e de uma comum aspiração fraterna. É isso

que também se “aprende” na escola. Vislumbrar a possibilidade da amizade nas

salas de aula é a pré-condição intransferível de uma co-cidadania, de uma

cidadania-em-comum.

Deste modo, podemos acreditar que a escola pode, sim, ser um espaço de

crescimento, onde a educação desempenharia seu papel de uma forma democrática

e humanizadora, sem ser arbitrária. E os educadores construiriam relações mais

sólidas sem serem normatizadores, podendo junto com os alunos, estabelecerem

alternativas, primeiro como reflexões e, depois, como elaborações de propostas para

enfrentar os problemas e questões que a realidade escolar e social nos coloca.

20

Portanto, falar de violência, de indisciplina, TDAH, é questionar no centro da

existência o que temos de mais importante: como podemos viver e conviver com o

outro? Nesse sentido, a amizade pode se revestir de dimensões que se

circunscrevem nos limites da ética (viver) e da política (conviver).

Anotações finais

As reflexões que trouxemos neste texto tiveram como objetivo compartilhar

algumas inquietações, fazendo algumas reflexões que consideramos atuais, sobre

violência, indisciplina, relações humanas, ética e amizade na educação. Ao

acompanharmos as recentes discussões e feitos sobre a medicalização escolar,

indagamos sobre o fato de essa medida estar sendo implantada nas escolas com o

aval do Estado, como mecanismo de poder, e com o consentimento de pais,

professores e gestores escolares, em detrimento de uma análise profunda da

situação. Opta-se pelo mais fácil, sem saber que interesses alheios à escola estão

sendo contemplados. E com isso a escola perde o seu lugar.

Temos o receio de que com essas propostas que se efetivam friamente nas

escolas se instale com o intuito de remediar e controlar esses conflitos de

relacionamentos, discutindo-os e tentando-os curá-los superficialmente, sem

reflexões sobre as causas que os geram e os fazem permanecer no cotidiano

escolar.

Cremos que o exercício de domínio sobre o outro, estabelece-se uma relação

desigual, de submissão do forte para o mais fraco (corpo dócil). Esse corpo ao ser

controlado perde sua potência e aquele que exerce o controle “mata” o outro,

tirando-lhe a capacidade de externalizar suas singularidades, sua forma de ser e

agir diante do mundo. Não é possível haver relação numa situação de domínio, não

há interação, mas sim o controle, ou seja, a “morte” do outro, que de forma lenta e

contínua esvazia-se de sentidos.

Se pensarmos que a escola é um lugar de encontro, um espaço propício para

se relacionar, conviver com o outro e com as diferenças desse outro, dificultamos

modos novos de coexistência quando se permanece ou adota essas medidas no

ambiente escolar.

Ao trazer para o centro das discussões o diálogo e as relações entre

professores e alunos na sala de aula, o fazemos com a finalidade de pensar a

21

escola como um espaço potencializador de amizade, onde o amigo serve de

mediador para que o outro sinta-se acompanhado em suas descobertas e reflexões.

Em nossa opinião, esse diálogo de forma horizontal, possibilita um espaço em

que as relações humanas no âmbito escolar constroem-se amigavelmente e com

isso, as barreiras das inevitáveis diferenças entre professores e alunos, se tornam

tão insignificantes que as relações acabam fluindo de forma positiva e significativa.

O jogo ético da relação social é evidente e, por isso, exige habilidade para

uma possível experiência da amizade. Para tanto

é necessário deixar de ser professor para poder sê-lo. Isto significa obrigatoriamente que toda relação social [...] implica um cimento, que é a amizade. Este elemento fundamental é o sentimento de uma cumplicidade, de uma comunidade essencial sobre as coisas mais importantes. Na relação do professor com seus alunos está o fato da partilha de uma certa imagem do que se deve ser alguém, de ter em comum uma forma de sensibilidade e de acolhimento ao outro (VERNANT, 1995, p. 194).

Sabemos que a violência é um assunto intrincado, que necessita de amplas

discussões, tanto por sua complexidade quanto por sua incidência, que sofreu

grande aumento nos últimos tempos. Mas cabe a nós como educadores pensar na

importância das relações interpessoais, como fator primordial para combatê-la no

domínio da educação.

Devemos refletir e problematizar cada vez mais a questão, pois a sociedade

vive num constante movimento de vai-e-vem, avança e retrocede ao mesmo tempo

e muitas das práticas realizadas nas escolas, são produzidas porque respondem a

um modelo de sociedade que rejeita a perspectiva da totalidade, limitando-se ao

micro, a casos isolados, sem conectar a realidade social ao cotidiano escolar.

REFERÊNCIAS

ASBAHR, F.da S.R.; SOUZA, M.P.R. Buscando compreender as políticas

públicas em educação: contribuições da Psicologia Escolar e da Psicologia

Histórico-Cultural. In: Psicologia Histórico-Cultural: contribuições para o encontro

entre a subjetividade e a educação, Meira, M.E.M.; Facci, M.G.D. (orgs.). São Paulo:

Casa do psicólogo, 2007.

22

ALMEIDA,M.J. O corpo, a aula, a disciplina, a ciência. Educação & Sociedade n°

21. São Paulo: Cortez Editora, Maio/Ago. 1985.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION- DSM IV - Manual de Diagnóstico e

Estatística dos Transtornos Mentais, 4ª edição.

ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1983.

ARIÉS, P. História Social da Criança e da Família e da Família. Rio de Janeiro:

LTC – Livros Técnicos e Científicos, 1978.

BARREIRA, M. M. (2006). A educação para os valores humanos pela prática do

diálogo. Aprender - Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação. Vitória da

Conquista/BA, ano IV, v.7, p.137 -147.

BARROSO, J.Ordem Disciplinar e organização pedagógica. Nuances:estudos

sobre educação, ano X, vol.11, n° 11/12. Presidente Prudente, SP.: UNESP,

2004.p. 09-17.

BOARINI,M.L. (org.) Higiene e Raça como projetos: higienismo e eugenismo no

Brasil. Maringá PR: Eduem,2003.

CARVALHO, A. B. Ética e Educação: reflexões sobre amizade e cidadania In:

Aprender – Caderno de Filosofia e Psicologia da Educação, Ano 5. n. 8, jan/jun.

2007. Vitória da Conquista : Edições UESB, 2007, pp. 27-46.

CARVALHO,M.M.C. Quando a história da educação é a história da disciplina e

da higienização das pessoas. In: Freitas,M.C(org.) História Social da infância o

Brasil. 1ªedição. São Paulo: Cortez, 1997.

CID 10 – Classificação Internacional de Doenças, Organização Mundial de

Saúde (1993).

COLLARES, C.A.L. e MOYSÉS M.A.A. A Transformação do Espaço Pedagógico

em Espaço Clínico ( A Patologização da Educação). São Paulo: FDE, 1994.p.25

– 31. (Série Idéias, 23).

DORNELLES, L. V.Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança

cyber.Petrópolis,R.J.: Vozes, 2005.

Eco, U. (2008). O professor aloprado. Folha de São Paulo. São Paulo. 11/05/2008

Caderno Mais!., pp. 4-5.

ESQUIROL, J-M. O respeito ou o olhar atento: uma ética para a era da ciência

e da tecnologia. Belo Horizonte : Autêntica, 2008.

FERREIRA, A.G. Higiene e controlo médico da infância e da escola Caderno

Cedes, v.23, n° 54, p. 9-24, abril 2003.

23

FOUCAULT,M.Vigiar e Punir,35ª edição.Petrópolis:Vozes,2008.

LEBRUN G. O conceito de paixão. In: NOVAES, Adauto (org). Os sentidos da

paixão. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

GHIRALDELLI, P. Jr. (org.). Infância, Escola e modernidade. São Paulo: Cortez;

Curitiba: Editora da Universidade Federal do Paraná,1997.

KUHLMANN, M. Jr. Infância e Educação Infantil: uma abordagem histórica, 2ª

edição. Porto Alegre R.S.: Mediação, 2001.

LUENGO, F.C. A vigilância Punitiva: a postura dos educadores no processo de

patologização e medicalização da infância. São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.

MARQUES, V.R.B. A Medicalização da Raça: Médicos, Educadores e Discurso

Eugênico. Campinas: Editora da UNICAMP, 1994.

Moraes, R. (Org).Sala de aula: que espaço é esse? Campinas: Papirus, 1995.

Novaski, A. J. C. Sala de aula: uma aprendizagem do humano. In: Moraes, R. (Org).

Sala de aula: que espaço é esse? Campinas: Papirus, 1995, PP. 11-15.

PROENÇA, M. (Org).Psicologia e Educação: desafio teórico-prático.São

Paulo:Casado Psicólogo, 2000.