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1 Encontros entre “cidadanias” O caso etnográfico do movimento social de economia solidária de Recife Elisa Gritti 1 Resumo Objetivo do trabalho é elaborar uma reflexão sobre o movimento social de Economia Solidária de Recife e de Pernambuco como um laboratório de novas formas de cidadania (Dagnino, 2005, Malighetti, 2011), ou seja, como um lugar de diálogo entre teorias e práticas que visam à criação de novos espaços sociais para inserção político-econômica de novos sujeitos. As reflexões estão intimamente conectadas com a pesquisa etnográfica desenvolvida no doutorado em andamento. O conceito de nova cidadania, emprestado da teoria política (Dagnino, 2005), permite a análise de novas práticas de luta pela inclusão no sistema de direitos através da construção de novos conceitos e do re- desenhamento da gramática social (Avritzer, de Souza Santos, 2008). Trata-se de uma categoria de análise tanto no nível histórico/formal e político quanto de uma categoria prática, reapropriada e transformada pelos atores. No contexto da pesquisa a nova cidadania se transforma numa categoria de análise antropológica de mediação entre diferentes linguagens: um movimento social que está criando uma nova identidade econômico-politico-social, as instituições de fomento e o estado. Os atores do movimento social se apropriam desta categoria e tentam redefinir ideologicamente e concretamente áreas temáticas quais as de economia, participação politica e inclusão social, propondo mudanças e práticas alternativas. Nesta dinâmica o movimento da sociedade civil se põe em dialogo com o estado na proposta de projetos e financiamentos para o fortalecimento de suas ações. Nesta interação se instauram relações de conflito entre perspectivas e modelos diferentes, criando também novos espaços políticos e processos de mudança. Neste campo de pesquisa antropológico, o movimento social de economia solidária propõe tanto uma perspectiva própria, constituída coletivamente, de novos direitos de cidadania, tanto práticas concretas de efetivação constituída a partir da relação, difícil mas fundamental, com o estado. Palavras-chaves: Economia solidária, cidadania, antropologia. 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA na Universidade Federal de Pernambuco – UFPE.

Encontros entre “cidadanias” O caso etnográfico do ... Gritti...Assim, na antiga Roma antropo-poiesis constituía-se por uma longa serie de rituais entre o nascimento de um individuo

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Encontros entre “cidadanias”

O caso etnográfico do movimento social de economia solidária de Recife

Elisa Gritti1

Resumo

Objetivo do trabalho é elaborar uma reflexão sobre o movimento social de

Economia Solidária de Recife e de Pernambuco como um laboratório de novas formas

de cidadania (Dagnino, 2005, Malighetti, 2011), ou seja, como um lugar de diálogo

entre teorias e práticas que visam à criação de novos espaços sociais para inserção

político-econômica de novos sujeitos. As reflexões estão intimamente conectadas com a

pesquisa etnográfica desenvolvida no doutorado em andamento.

O conceito de nova cidadania, emprestado da teoria política (Dagnino, 2005),

permite a análise de novas práticas de luta pela inclusão no sistema de direitos através

da construção de novos conceitos e do re-desenhamento da gramática social (Avritzer,

de Souza Santos, 2008). Trata-se de uma categoria de análise tanto no nível

histórico/formal e político quanto de uma categoria prática, reapropriada e

transformada pelos atores.

No contexto da pesquisa a nova cidadania se transforma numa categoria de

análise antropológica de mediação entre diferentes linguagens: um movimento social

que está criando uma nova identidade econômico-politico-social, as instituições de

fomento e o estado.

Os atores do movimento social se apropriam desta categoria e tentam redefinir

ideologicamente e concretamente áreas temáticas quais as de economia, participação

politica e inclusão social, propondo mudanças e práticas alternativas. Nesta dinâmica o

movimento da sociedade civil se põe em dialogo com o estado na proposta de projetos e

financiamentos para o fortalecimento de suas ações. Nesta interação se instauram

relações de conflito entre perspectivas e modelos diferentes, criando também novos

espaços políticos e processos de mudança.

Neste campo de pesquisa antropológico, o movimento social de economia

solidária propõe tanto uma perspectiva própria, constituída coletivamente, de novos

direitos de cidadania, tanto práticas concretas de efetivação constituída a partir da

relação, difícil mas fundamental, com o estado.

Palavras-chaves: Economia solidária, cidadania, antropologia.

1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Antropologia – PPGA na Universidade

Federal de Pernambuco – UFPE.

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Introdução

A construção de uma política pública nacional de economia solidária é um

processo sistemático de reconhecimento de direitos de cidadania pelo Estado, sobretudo dos

trabalhadores e trabalhadoras das iniciativas econômico-solidárias, e como dever do Estado.

Nesse sentido, a política pública de economia solidária é um processo de conquista social.

(Texto de Referencia da 3° CONAES –

Conferência Nacional de Economia Solidária)

Os debates sobre cidadania tiveram nos últimos anos relevantes avanços e

assumiram diferentes conotações no que concerne a organização de novos movimentos

sociais num mundo sempre mais globalizado, mas também sempre mais atento às suas

dimensões e seus potenciais locais.

O conceito de cidadania tem uma longa história nas ciências sociais, tornando-

se uma categoria intensa e rica de significados historicamente determinados, hoje

reassumida como fundamental nas análises das transformações das sociedades.

A noção ocidental moderna de cidadania reconhece um status jurídico do

indivíduo em relação com o estado e todo direito e dever que essa relação garante.

Sendo uma categoria fechada e definida juridicamente a cidadania em sua concepção

formal, como toda categoria, inclui indivíduos no sistema, tanto quanto exclui outros.

O termo “cidadania” faz parte hoje da literatura científica de diferentes

disciplinas e se tornou objeto de analises aprofundadas. Recentemente o discurso sobre

cidadania se tornou também instrumento nos debates sobre possibilidades da maior

inclusão e justiça nas sociedades, assim como de alargamento à novas formas de ser

cidadão e de ter direitos. A categoria se propõe hoje, em sua conformação teórica, como

um novo modelo de pensar ao social e sobretudo às lutas sociais contemporâneas.

No campo da pesquisa, situado principalmente na cidade do Recife a palavra

“cidadania” é encontrada no cotidiano das pessoas nos contextos mais diferenciados.

Ela se tornou parte do discurso e da propaganda do estado, com a intenção de

comprovar caminhos de transparência e justiça governamentais, assim como do sentido

comum e, mais importantes ainda, dos discursos dos movimentos sociais na luta para

obtenção de direitos. Como todo termo que entra fazer parte da linguagem comum de

diferentes atores sociais em diferentes contextos, ou parte dos debates da arena política,

a “cidadania” se torna assim um conceito problemático e denso de significados.

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Dentro da rede de economia solidária no Recife a cidadania não é mais um

conceito abstrato ou formal, parte apenas do âmbito jurídico, ou da teoria política, ou

um status neutral e universal, mas uma ideologia constituída por princípios definidos,

carregado de significados pragmáticos, que transforma a ação social de indivíduos e

grupos e suas redes de sociabilidade. A cidadania torna-se uma prática de “luta pelo

direito a ter direitos” (Dagnino, 2004) conjugando as ideias de uma ação participada,

construída, reapropriada e ressignificada nas coletividades da sociedade contemporânea.

Movimentos sociais, étnicos, culturais, ambientais, econômicos “agem” a cidadania em

sua nova conotação reconhecida como “nova cidadania”.

O olhar etnográfico permite nos aproximar ás lutas de cidadania atuais

considerando que o mesmo conceito não é algo definido e acabado em sua conotação

formal, mas sim um conceito vivido nas relações sociais e mais que tudo um processo,

um percurso de ação social; como nos indica Mariza Peirano:

“Para cientistas políticos, o tema sugere imediatamente questões de justiça, participação

politica, direitos sociais. O antropólogo propõe-se, em relação ao mesmo tema, perguntas

aparentemente mais simples: qual a concepção que diversos grupos têm de cidadania? O

que é um cidadão"? Através de que símbolos é possível detectar concepções de cidadania?”

(Peirano, 1986, p.2)

Neste caminho se coloca então a pesquisa em andamento, utilizando a cidadania

como categoria antropológica de análise do movimento social de economia solidária,

mas tendo por objetivo também abranger áreas temáticas mais amplas como os espaços

políticos e econômicos vividos por seus atores; então explicar como os atores sociais

compreendem e experimentam a política, a economia e a cidadania, isto é, como

ressignificam os objetos e as práticas relacionadas a esses mundos.

No contexto da cidade de Recife, entra-se em contato com uma rede de

economia solidária. O conceito de rede desenvolve-se, para fins de investigação, tanto

como escolha de um conceito epistemológico e metodológico de compreensão das

dinâmicas urbanas, tanto como categoria nativa, usada pelos próprios participantes. A

rede, nesse sentido, representa dois elementos: em primeiro lugar, a conexão de pessoas

e entidades unidas por relações políticas, de trabalho ou pessoais, numa dinâmica

processual, constituindo o corpus do movimento social da economia solidária. Em

segundo lugar, a rede também adquire uma dimensão espacial, tendo em vista uma

etnografia nômade (Diógenes, 2003), representando os espaços físicos de encontro, de

organização de eventos, de comercialização e de construção de possíveis parcerias. A

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rede, em perpétuo movimento na cidade, é uma estrutura espacial e relacional que

constitui o movimento social e põe-se numa tentativa de continuar expansão.

Os macro elementos que compõem a rede reconhecidos nas falas dos atores que

nela se identificam são: empreendimentos de economia solidária e seus produtores2,

entidades de apoio e de fomento3, incubadoras tecnológicas

4, universidades e órgãos

públicos5.

A principal expressão formal da rede é feita através do Fórum de Economia

Solidária (Municipal, Região Metropolitana do Recife, Estadual), lugar de encontro dos

empreendimentos e das principais entidades de apoio e financiamento. O Fórum é o

espaço formal, público de discussão política, de definição dos valores, princípios, ações

e práticas do movimento. Outro e não menos importante espaço de encontro e de

decisão do Recife, neste caso institucional e oficial, é o Conselho de Estado de

Economia Solidária de Pernambuco, espaço político deliberativo onde acontece o

encontro estruturado entre a sociedade civil e o estado para construção de políticas

públicas. No ano de 2014, foi possível participar de uma terceira representação desta

rede no processo de organização da III Conferência Nacional de Economia Solidária.

Este último espaço tem sido construído em conferências locais de bairro, municipais,

metropolitano, regionais (5 em Pernambuco) e do estado. É importante especificar que

existem outros espaços informais de encontro e discussão de diferentes naturezas, tais

como comissões e reuniões de organização e avaliação de projetos do movimento de

economia solidária.

2 O termo utilizado é realmente empreendimento. É importante considerar o uso da palavra

sendo definida por distinguir-se de empresa, reconhecido como o empreendimento econômico inserido no mercado formal de lógica capitalista. Os empreendimentos em Recife são pequenos grupos de produção pertencentes a economia informal com produção principal nos setores de : artesanato, confecção, produtos de limpeza e higiene, alimentar e agroecológico.

3 Consideradas partes do "terceiro setor", as Entidades de Apoio e Fomento são

representadas por ONGs e associações da sociedade civil, bem como instituições religiosas (principal é a Caritas NE II), incubadoras tecnológicas e em alguns casos as instituições e os organismos públicos que financiam projetos para economia solidária, no entanto, para os fins desta análise esses últimos são mantidos separados.

4 São entidades formadas em universidades ou organismos públicos em alguns casos. São

grupos de pesquisadores, professores, estudantes e técnicos voltados ao desenvolvimento de estratégias de cooperação e ajuda à economia solidária. Em Recife fazem parte a ITCP Incubação/FAFIRE, a INCUBACOOP/UFRPE – Incubadora da Universidade Rural de Pernambuco e a Incubadora Pública Municipal da Prefeitura do Recife.

5 São essas: Gerência de Economia Solidária, parte da Secretaria de Desenvolvimento e Planejamento Urbano da Prefeitura do Recife; Conselho Estadual de Economia Solidária, do Estado de Pernambuco, criado no ano de 2009 com a Lei n°13.704; SENAES – Secretaria Nacional de Economia Solidária, parte do Ministério de Trabalho Federal.

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A economia solidária em Recife tem história quinzenal e constrói no seu dia a

dia sua identidade política e social, seu próprio estilo de vida e sua própria maneira de

fazer economia numa ótica de luta pela cidadania.

1. CIDADANIA: um conceito histórico/jurídico

A complexidade de um conceito revela-se na multiplicidade de níveis de

analise possíveis pela mesma. A cidadania por si só é uma categoria plástica e elástica,

capaz de captar diferentes níveis no estudo de um movimento social.

Cidadania é antes de tudo uma categoria histórico/jurídica naturalizada. Fruto de

um processo histórico e ideológico ela é portadora de critérios próprios de inclusão e

exclusão, definindo assim o acesso aos direitos sociais, civis e políticos do contexto

específico e ao mesmo tempo definindo o tipo de “ser social político” que cumpre a

esses critérios de acesso, o cidadão. A historia da categoria é feita por alargamentos e

retrações das dimensões inclusivas/exclusivas, determinando assim diferentes processos

de cidadania.

A cidadania é uma categoria nascida e historicamente construída no ocidente e

se refere, num olhar antropológico, àquele processo de autoconstrução do ser social que

Remotti (2002) denominou “antropo-poiesis”. Por antropo-poiesis se entende a

necessidade de cada sociedade humana e reconstruir o ser humano culturalmente e

politicamente. Assim, na antiga Roma antropo-poiesis constituía-se por uma longa serie

de rituais entre o nascimento de um individuo até à vestição da toga civis aos 16-17

anos (Bonabello, 2002) com o fim de garantir a passagem de mero ser humano, num

sentido natural/animal, a ser social e político, então civis6 romanus, cidadão. Neste

contexto não apenas existiam os não-cidadãos, excluídos da categoria, mas também

existia os meios-homens, os servus, escravos e os não romanos, os bárbaros.

Com certeza, os mesmos processos de inclusão/exclusão e então de construção

do ser político tiveram também naquela que é considerada o berço da democracia e das

práticas cidadãs: a antiga Grécia, onde nos séculos V e IV a.C. se reconhecia o status de

polítes aos moradores nascidos na cidade-estado que participavam da vida politica da

6 O mesmo termo cidadão tem sua origem etimológica no latim civis ou civitas, que indicava

justamente o pertencimento reconhecido na antiga cidade-estado. O termo latim já era uma tradução do

termo grego politeia, exatamente com o mesmo significado. A palavra chega aos nossos dias então

também com o significado de morador da cidade e também de sujeito jurídico pertencente a um estado-

nação. (Dizionario di Etimologia Italiana, 2000)

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pólis. A democracia direta da pólis grega inspira hoje novos debates sobre democracia

participativa como fronteira política onde todos os cidadãos pertencentes a uma mesma

comunidade político territorial participam da vida política. Na Grécia essa categoria era

fortemente excludente, sendo esses cidadãos diretos apenas os aristocratas, os ricos e os

homens, excluindo então por consequência escravos, trabalhadores, pobres, mulheres e

estrangeiros.

No período final do império romano a cidadania deixa de ser direito de

nascimento ou vinculada ao território fixo da cidade estado para se tornar status também

dos moradores dos territórios conquistados. Os estrangeiros, uma vez submissos ao

império, passavam a ter a proteção jurídica da cidadania romana (Tenorio, 2007).

Também o cristianismo tem um papel importante na evolução do conceito com

dois elementos que o caracterizam: a aversão às hierarquias e o interesse inspirado para

o serviço social e humanitário aos excluídos (Tenorio, 2007, p.20-25). Assim na idade

media a matriz religiosa se torna fundante de possibilidades novas, assim como a

cidadania religiosa, onde os direitos divinos e de salvação são concedidos à todos os

bons cristãos, apesar de suas condições na vida terrena, enquanto a cidadania política,

no sistema do feudalismo, se retrai na relação unívoca entre vassalo e senhores, guiada

apenas pela subordinação e obediência.

Com a Renascença e as grandes mudanças dessa época se constroem as bases

políticas da modernidade. É nesta época que as correntes de pensamento constroem o

conteúdo de conceitos como estado-nação, cidadania e direito num sentido moderno. E

é no pensamento moderno que o homem se torna sujeito social, indivíduo, responsável

pelo próprio destino e pela constituição da sociedade (Eisenstadt, 2006). Com Hobbes

(2006) o cidadão moderno, o indivíduo, é o protagonista da construção da sociedade e

de seu projeto político, formado por relações não naturais, mas sim artificiais, fruto de

um contrato social. Com Locke (2006) encontramos pela primeira vez uma das

dimensões fundamentais na concepção moderna da cidadania: a propriedade. O que

caracteriza o individuo moderno na formação do primeiro capitalismo é o labour, a

apropriação dos bens e sua transformação para as próprias necessidades que

transformam o individuo em cidadão proprietário (Gargiulo, 2008).

Em relação a isso, o importante autor da cidadania moderna, Marshall (1976),

considerou a inclusão da propriedade dentro dos direitos civis de cidadania:

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"necessários para a liberdade individual: liberdade pessoal, de expressão, de pensamento

e fé, o direito à propriedade das coisas e de celebrar contratos válidos, e o direito de

obter justiça" (Marshall, 1976, p.12-13).

Este primeiro grupo de direitos adquiridos na Europa no final do século XIX, e

de acordo com Marshall primeiros em ordem cronológica, são particularmente

importantes nesta análise devido à conexão fundamental que eles têm com o trabalho

(Gargiulo, 2008, p.27-28) e com a questão da inclusão e igualdade. Do ponto de vista de

Marshall (1976), o trabalho torna-se um direito com um forte papel emancipatório e

inclusivo. A liberdade individual e da livre iniciativa econômica, entendidos como

direitos civis, são desenvolvidos em estreita ligação com o direito ao trabalho e com o

conceito de propriedade, desenvolvendo-se estes em conjunto com as regras econômicas

do capitalismo (ibid.). Apesar de Marshall (1976) reconhecer as distinções de classe

causadas pela instauração de uma economia de tipo capitalista, ele percebe uma

evolução positiva para a igualdade a partir das conquistas dos direitos civis de

cidadania, políticos e sociais. A partir deste ponto de vista, as três categorias de direitos

inteiramente conquistados no século XX desempenhariam um papel de mediação entre

as desigualdades inerentes ao desenvolvimento da economia de mercado e do Estado

como garante da igualdade. A igualdade dos cidadãos residiria em sua igual liberdade de

iniciativa econômica, nas garantias oferecidas pelos direitos sociais para aqueles que se

encontram em situações difíceis e, então, na igual possibilidade para cada um de

alcançar o bem-estar constituído por bens de consumo sempre mais acessíveis para

todos (Gargiulo, 2008). Apesar do carácter desigual de uma sociedade dominada pela

economia capitalista e a divisão em classes, os direitos de cidadania são apresentados

como solução e mediação, tendo em vista a integração social (Baglioni, 2008).

No debate atual, as questões relacionadas ás dinâmicas inclusivas e exclusivas

de cidadania são reavaliados de uma forma mais complexa. Alguns autores são

efetivamente críticos com a tese otimista de Marshall afirmando que a ênfase colocada

nos direitos civis, especialmente nos de propriedade e livre iniciativa econômica, seriam

exatamente o centro da ambiguidade dos direitos de cidadania (Gargiulo, 2008,

Giddens, 1982). Sob esta perspectiva, os direitos de cidadania, ao contrário do que

Marshall afirmou, teriam em si mesmo uma tendência para a afirmação da desigualdade

social, sendo eles os primeiros legitimadores da dinâmica capitalista e das diferenças de

classe (Zolo, 1994). Uma consideração em apoio a esta versão seria a contradição

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inerente à presença da propriedade e da livre iniciativa econômica como um direito

fundamental de cidadania. Na categoria de direitos civis estão de fato incluídos direitos

com uma forte tensão universal, relacionado ao indivíduo: a liberdade de pensamento,

crença, expressão, ação (Ferrajoli, 1994). A inclusão da propriedade causaria um forte

contraste, sendo este último, por sua própria natureza, pertencente aos indivíduos de

forma desigual (Ferrajoli, 1994, p.271, Gargiulo, 2008, p 0,34). A partir desses

argumentos, pode-se considerar a cidadania moderna, apesar das reivindicações de

igualdade formal, também como cúmplice na consolidação e legitimação do estado e do

capitalismo e da desigualdade social a ele ligada.

Ampliando o debate para o contexto contemporâneo do mundo globalizado,

além desta perspectiva clássica da luta de classes, é necessário considerar outras

questões. As dinâmicas globais, as grandes migrações e os movimentos sociais

internacionais abrem hoje os possíveis limites de cidadania (Giddens, 1999). A ênfase

sobre a nação, criada nos tempos modernos, é atravessada hoje por questões novas e

complexas sobre os critérios de inclusão-exclusão. Há necessidade de o debate ampliar-

se para o entendimento dos movimentos e dos fluxos globais de cidadãos, ideias e

ideologias que, na sociedade contemporânea, estão se formando com objetivo o

reconhecimento de novos direitos inspirados por uma lógica de caráter humanitário,

cosmopolita e transnacional (Held, 1997). A cidadania tornou-se um problema que

atravessa fronteiras jurisdicionais dos estados-nação, juntando-se aos movimentos

sociais que lutam pelo restabelecimento de uma nova institucionalidade do conceito de

cidadania e os relativos pedidos de direitos e formas de vida novas e diferentes (Kabeer,

2005).

A breve reconstrução histórica analítica realizada mostrou a enorme

complexidade conceitual da cidadania em sua conotação jurídica e formal e as

principais etapas percorridas numa perspectiva inclusão e então exclusão das quais se

faz promotora. A cidadania jurídica, como categoria naturaliza é performadora de

dinâmicas de inclusão assim como de exclusão. Os elementos da cidadania moderna

relacionados ao trabalho e á propriedade argumentados a partir das analises acadêmicas,

também serão os principais elementos contestados dentro do discurso do movimento

social de economia solidária e na sua própria perspectiva sobre cidadania.

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2. CIDADANIA : uma prática político/social

Num segundo nível de analise, a cidadania deixa sua consistência histórica e

teórica, certamente útil, por se tornar uma categoria social prática geradora de processos

sociais (Costa, 1994).

A “cidadania” é também uma prática social. A partir da definição jurídica e de

sua essência ideológica e simbólica podemos analisar a cidadania como categoria

aplicada à sociedade e, então, entender as práticas de inclusão e exclusão e

desigualdades geradas a partir dela.

No caso do Brasil os estudos realizados indicam a existência de práticas de

exclusão e desigualdades geradas dentro da categoria de cidadão formal, gerando outras

categorias de exclusão como a de “cidadão de bem” e de “marginal”, situado num

estado de “exceção” (Agamben, 2003). Muitos estudos sobre cidadania como prática

social têm apontado a presença de práticas relacionais e exclusivas na aplicação da

cidadania, gerando definições como as de: Estadania (Carvalho, 2002), ou Cidadania

concedida (Sales, 1993), Cidadania regulada (Santos, 1979) e cidadania na cultura da

dádiva (Telles, 1994). A ideia transmitida por estes termos se relaciona com um

profundo desnível entre uma acepção universal de “cidadão” e as reais condições de

acesso aos direitos praticadas na relação com as instituições.

Continuando esta reflexão sobre a categoria analítica do movimento social de

economia solidária é importante considerar também a “cidadania” como categoria

política e geradora de processos de luta social. As categorias de direitos de cidadania

podem ser vistas como formas de inclusões parciais obtidas através dos conflitos dos

diferentes grupos da sociedade para a própria inclusão (Giddens, 1982). Essa

perspectiva permite considerar a cidadania como um processo de inclusão com base no

conflito social, que presidirá às novas perspectivas de luta. Os novos movimentos

sociais são introduzidos na verdade neste espaço de ação possível, o que tem sido

sempre parte do caráter construtivo da cidadania, lutando para uma expansão constante

da dimensão inclusiva.

Entrando aqui no contexto específico, vemos que este tipo de abordagem

permite considerá-la como categoria em contínuo possível alargamento ou retração, a

partir das dinâmicas de luta dos atores sociais (Giddens, 2002). A cidadania

diferenciada, por exemplo, foi e continua sendo alvo da luta pelos direitos de minorias

étnicas no Brasil (Indígenas e Quilombolas) gerando transformações concretas na

conquista de direitos de terra e de existência própria através de políticas afirmativas da

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diferença. Mas é aqui também que se insere a “nova cidadania” (Dagnino, 2012) como

categoria geradora de processos sociais. Nova cidadania expressa à possibilidade de

uma reconfiguração da gramática social da democracia, onde o protagonismo na

aplicação de cidadania passa a ser ao invés de responsabilidade única do estado,

responsabilidade da sociedade civil em colaboração com as instituições.

Nestes novos espaços de cidadania onde as necessidades locais se encontram

com movimentos sempre mais globalizados, se formam novos processos sociais de

reconhecimento de estilos de vida diferenciados com temas recorrentes a crítica

econômica, o consumo, a partilha de estilo de vida e consumo na rede urbana, o meio

ambiente, a cultura, a igualdade de gênero, raça e etnia etc.. A nova cidadania expressa à

possibilidade de movimentos a partir de baixo, de reconfigurar sua relação com as

instituições e sua participação na vida pública, mudando radicalmente as arenas

políticas atualmente baseada em hierarquias e numa representatividade política sempre

mais distante das realidades vividas pelos atores sociais. A nova cidadania é uma

estratégia de reconhecimento político e cultural de direitos que se baseia na

transformação da ordem social como a conhecemos no momento (Dagnino, 2004).

Outro elemento caracterizante deste conceito é a possibilidade de ultrapassar os

limites que a cidadania moderna tinha relegado apenas à relação entre o estado e o

indivíduo. No ideal moderno a cidadania fundou formalmente a sua razão de ser na

relação hierárquica entre um estado centralizado e os indivíduos. A nova cidadania

propõe ressignificar esta relação, construindo um corpo e um debate político dentro das

comunidades locais e grupos coletivos da sociedade para se por em contínuo diálogo

com os representantes do estado nos diferentes níveis de gestão pública. O objetivo é

criar um contexto onde sujeitos políticos coletivos, representantes da chamada

sociedade civil possam lutar pelo reconhecimento, pela inclusão e pelos novos direitos a

partir de uma rede social que os apoie e valorize e não apenas a partir de uma relação

abstrata e anônima com o organismo público.

O que tornaria estes processos possíveis é a construção de espaços públicos

onde ocorra a formação, a negociação de pontos de vista e a coparticipação no processo

de decisão concreto, afetando as hierarquias existentes e promovendo a gestão

participada do governo local.

O que então caracteriza a luta pela nova cidadania é o direito de ser plenamente

incluídos na sociedade, mas, neste caso, ele também adiciona o direito de participar na

redefinição da mesma sociedade e de seu processo de transformação, mudando a

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hegemonia de um estado que exclui dentro categorias universais como a de cidadania

(Dagnino, 2003). Nesse sentido, a nova cidadania torna-se uma estratégia política e, no

caso da economia solidária, uma estratégia econômica também.

3. CIDADANIA: Uma categoria nativa

Concluindo a explanação das potencialidades analíticas da categoria no estudo

do movimento social de economia solidária de Recife encontramos o seu

desdobramento antropologicamente mais relevante: a cidadania e a nova cidadania são

também categorias nativas. Utilizadas em sua expressão própria ou em suas

subcategorias como “democracia participativa”, “protagonismo da sociedade civil”,

“movimento de baixo”, “solidariedade”, “participação”, “autogestão” etc., a nova

cidadania é reapropriada e ressignificada seja pela instituições governamentais seja

pelos componentes do movimento que constituem sua própria identidade e ação politica

a partir dela.

A “cidadania” faz parte tanto de uma ambígua propaganda governativa de

inclusão quanto das ações dos militantes do movimento. O movimento se apropria desta

categoria e tenta redefinir ideologicamente e concretamente áreas temáticas quais as de

economia, participação politica e inclusão social, propondo mudanças e práticas

alternativas.

O projeto ideológico do MSES pretende se colocar em antítese ao plano

hegemônico neoliberal, desenvolvendo ideias e práticas alternativas nos campos

econômico, político e social. O universo simbólico de nova cidadania dentro do

movimento é construído sobre estas três áreas de forma complementar. Através de uma

reinterpretação e reconstrução dos discursos dos atores da economia solidária de Recife

que conheci ao longo da pesquisa de campo, proponho a redefinição feita por eles:

Inclusão econômica

No movimento, o foco do discurso é primeiramente voltado ao sistema

econômico e do trabalho. Profundamente marcado por uma retórica anticapitalista,

promove a ideia de novo cidadão a partir do trabalho, mas dentro de um sistema

econômico alternativo. A luta pelo direito ao emprego se coloca na direção do direito de

cidadania ao trabalho. Este direito assumiu um papel substancial no conceito de

indivíduo emancipado e independente, mas dentro da dinâmica capitalista baseada na

propriedade e numa divisão da sociedade fundamentalmente desigual, como visto na

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análise antecedente. O direito ao trabalho moderno é entendido a partir de uma

perspectiva econômica que trata o trabalho como uma mercadoria (Gargiulo, 2008, p.

39-40). Na concepção do cidadão proprietário (Ibid., p.33), o trabalho é uma

propriedade da qual os indivíduos podem tirar proveito pelos efeitos da livre iniciativa

econômica, mas dentro de uma estrutura altamente hierarquizada das relações

econômicas. O movimento de economia solidária coloca o direito ao trabalho em

estreita ligação com os direitos de cidadania, mas através ferramentas e ideias

diferenciadas.

Primeiramente, o sistema de trabalho hegemônico na sociedade, que os atores

reconhecem como capitalista, é percebido como um sistema altamente excludente,

alienante e de exploração do ser humano. Muitos trabalhadores da economia solidária

do Recife reconhecem a própria impossibilidade em entrar no mercado do trabalho

formal, segundo eles, por falta de instrução e semianalfabetismo, por estigma social

enquanto moradores de comunidades carentes e também por nunca ter trabalhado fora

do setor informal da economia. Outros participantes e produtores preferem pensar na

própria forma de trabalhar como uma opção, uma escolha:

“Marina disse que informalidade e desemprego é condenação do país. Pelo estado eu estou

desempregada há 23 anos, mas eu trabalho e vivo dignamente, eu mantenho três filhos com minha

produção na economia solidária. Eu não me sinto condenada. Eu fiz uma opção, eu escolhi não entrar

num mercado de trabalho onde eu não me reconheço. A nossa luta hoje, senhora deputada, é para poder

fazer uma opção de ficar no trabalho formal, com carteira e tudo, ou simplesmente não, viver e trabalhar

de outra forma.” (Intervenção de V. durante encontro pré-eleitoral com representante politico do

Estado).

O direito ao trabalho no movimento é concebido como uma condição universal

fundamental para os cidadãos, mas no que se refere primeiramente ao direito do

indivíduo, da família e da comunidade de se auto sustentar, da forma concebida como

mais adequada.

O trabalho no mundo da economia solidária é visto, portanto, como a

possibilidade do indivíduo de inventar-se e experimentar-se numa atividade econômica

desenvolvendo suas habilidades em conjunto com outras pessoas, colaborando e

participando nos processos de gestão e produção de forma cooperativa.

É fundamental perceber como o direito ao trabalho, ou melhor dizendo, os

direitos de tipo econômicos, no caso deste coletivo militante, são percebidos e pensados

muito além de questões puramente econômicas, de direitos trabalhistas ou de

propriedade. A fala de V. representa muitas outras intervenções onde ficou clara a

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importância de apresentar junto ao direito a ter um trabalho digno, o direito de viver,

produzir e consumir de outra forma, de escolher e manter um estilo de vida baseado em

pilares diferentes dos hegemônicos existentes no país. O movimento de economia

solidária do Recife luta para obter o reconhecimento social e institucional de sua própria

forma de fazer economia, mas fazendo isso, apresenta muito mais conteúdo nas

perspectivas de mudanças. A proposta é para o reconhecimento por parte do estado á

empreendimentos informais7, deixando de considerar este importante segmento da

sociedade na invisibilidade; para o reconhecimento de saberes tradicionais ou populares

com respeito por exemplo ás práticas da agricultura familiar, da agroecologia, do

artesanato, da confecção ou da alimentação; para o reconhecimento também da

existência dos trabalhadores e trabalhadoras da economia solidária na definição de

projetos e políticas públicas governamentais, especialmente após a conquista de uma

secretaria nacional.

O protagonista principal a ser reconhecido é o empreendimento solidário ou

autogerido. Os empreendimentos da rede fundam a própria produção concreta de bens e

serviços sobre os princípios de igualdade dos trabalhadores, participação, cooperação,

autogestão e solidariedade, bem como ideias para um consumo justo e sustentável, que

respeite o meio ambiente. Na Rede do Recife se encontram empreendimentos

especialmente com origem na economia informal, de bairro ou comunidade, que

escolhem se juntar ao projeto político do movimento social atuante. Esses

empreendimentos são constituídos por pequenos grupos de mulheres, mães, idosas,

famílias, pequenas comunidades agrícolas, indivíduos que se encontram em um projeto

de solidariedade mútua, catadores de lixo etc..

A inclusão até agora discutida, com base na capacidade das pessoas de

trabalhar e prover o seu sustento econômico, é vista como uma alternativa às políticas

assistencialistas e a cultura da culpa e da pobreza paralisante. Através da oportunidade

de reunir-se com outras pessoas e iniciar um trabalho personalizado e autogerido, sem

assistência externa, descobriu-se a dimensão ativa de ser capaz de mudar a própria

7 Em parte este reconhecimento já foi obtido. Com o programa federal CADSOL, o governo

autoriza o cadastro no sistema de empreendimentos de economia solidária, juridicamente informais,

através do controle social das redes locais, permitindo parcerias e reconhecimento por outras instituições,

como as entidades de controle sanitário, e permitindo a participação em editais e projetos.

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situação econômica e de exclusão social, além de procurar um estilo de vida

diferenciado, baseado no ideal do bem viver8.

Inclusão Politica

Os atores da economia solidária apoiam fortemente uma ideologia orientada

pela necessidade de um processo de tomada de decisão participativa e não

representativa. Neste sentido, então, a nova cidadania construída pelo movimento

também está envolvida no nível político, através de novos mecanismos democráticos a

ser aplicados tanto dentro das empresas e no local de trabalho, quanto no movimento e

na sociedade em geral. A ideia que emerge é a de democracia participativa na qual todos

os indivíduos estão incluídos, informados e ativos no processo político e onde então as

relações políticas clássicas assumem novas conotações.

Os encontros da rede de Recife são de diferentes naturezas: os Fóruns (Recife,

metropolitano, estadual), o Conselho Estadual, Grupos de Trabalho permanentes,

Comissões organizativas, Comissões avaliadoras. Estes espaços estruturam o corpo

político da economia solidária e mais importante ainda, são os espaços de construção,

diálogo e conflito que formam o processo identitário do movimento, em continua

transformação.

O principal processo de participação política encontra-se dentro das empresas,

mas ele se desenvolve também dentro do movimento social. Nas práticas de reunião da

rede urbana os processos de tomadas de decisões são orientados por este princípio.

Estes encontros se caracterizam por regras que direcionam a participação de todos os

integrantes como a organização dos turnos de palavra, a dinâmica de discussão realizada

com proposta, defesa pro, defesa contra e votação, o uso do espaço de encontro em

círculo, a presencia de mediadores em rotação. Os atores do movimento de economia

solidária do Recife não acreditam na representatividade fixa e na chefia, preferindo a

estimulação da autogestão, da participação de todos e a presencia de mediadores ou

lideranças temporâneas.

8 O bem viver, ou mais internacionalmente conhecido em sua forma espanhola bien vivir, é

uma categoria muito importante no desenvolvimento de um movimento social de economia solidária

globalmente atuante, mas com foco na América Latina. O bien vivir inclui toda a simbologia para uma

ação crítica contra a globalização liberal, contra o capitalismo, a exclusão social e a desigualdade.

Também traz uma reflexão fundamental sobre conceitos como desenvolvimento sustentável até chegar a

uma retorica anti-desenvolvimentista.

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Dentro do conceito de nova cidadania é importante remarcar, além dessas duas

primeiras formas de participação política mais autônomas, a procura de novas relações

com as instituições e o governo. A mesma rede de economia solidária desenvolveu

ideias e ferramentas próprias e internas de inclusão, mas o diálogo com o governo está

continuamente renovado tendo por finalidade última a de ser reconhecido por ele

formalmente. Para a maioria dos participantes, não é possível pensar em inclusão social

sem levar em conta a dimensão institucional: ser um cidadão, sair da invisibilidade e

exclusão social, significa sê-lo pelo estado e para a sociedade como um todo.

“A discussão teórica, a discussão da quinta plenária é fundamental gente. Se não discutimos

de coisas grandes, se não temos um suporte teórico bem formado como podemos pensar de

dialogar com o governo? Essa discussão é fundamental para ter reconhecimento e ter uma

relação com as instituições! Sem isso os empreendimentos não fazem nada, não estão

fazendo nada, pra que estar aqui discutindo?” (Intervenção de C. Fórum Metropolitano de

Recife)

A partir dessas premissas, o reconhecimento do movimento e suas ações por

parte da sociedade mais ampla e, sobretudo, por parte do estado, se torna objetivo

fundamental. O estudo estratégico dos espaços de comercialização dos produtos de

economia solidária visa a inserção e o reconhecimento no primeiro segmento: a

sociedade civil, com atenção especial à classe media e alta. Por outro lado, o diálogo

com o governo, através das secretarias da prefeitura e do conselho estadual de economia

solidária, visa a inserção a partir de baixo do movimento nas decisões sobre políticas

publicas, tendo por objetivo último uma Lei que institucionalize definitivamente a

Economia Solidária no contexto tanto local e quanto nacional.

Sentida como uma grande conquista do movimento, a SENAES, secretaria de

Economia Solidária do Ministério do Trabalho, permite ao movimento ter um diálogo

oficial com o governo federal. A SENAES apoia e elabora políticas de ação através de

apoio técnico e financeiro para o fortalecimento dos empreendimentos de Economia

Solidária, redes, bancos comunitários e incubadoras tecnológicas. Além disso se

encarrega de promover o diálogo entre o movimento e o governo tendo em vista a

legislação específica da economia solidária e a organização das políticas públicas.

No nível estadual, o movimento do estado de Pernambuco também tem o

contato precioso com a Secretaria de Trabalho, Qualificação e Empreendedorismo

através do Conselho Estadual de Economia Popular Solidária. As reuniões do Conselho

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de Estado são mensais e reúnem representantes da própria Secretaria, com

representantes dos empreendimentos de Recife e de todo o estado, representantes das

associações de fomento da economia solidaria e todos os empresários que estão

dispostos e aptos a participar.

A construção de uma nova cidadania política, como vimos, se encontra em

diferentes níveis: a partir da vida política no lugar de trabalho, até o reconhecimento

institucionalizado e formal na sociedade mais ampla e na estrutura do estado. São estes

os espaços onde se constrói a nova cidadania e o direito de palavra e de confrontação

entre os participantes assim como com os representantes do estado é percebido

importante tanto quanto ás práticas econômicas da produção. Nas definições recorrentes

do que significa ser um empreendimento de economia solidária, a participação política

nas atividades do movimento sempre apareceu como elemento caracterizante:

Os empreendimentos do movimento tem que participar em todos os momentos. Isso significa fazer

parte da economia solidária: ir nas reuniões, nos encontros, se formar, ser ativistas, participar, falar

com o governo. Conheço muitas pessoas lá no interior também, onde dou aula e tem formações de economia

solidária, eles são economia solidária na produção, eles sabem trabalhar juntos, mas não sabem de

ser isso, não sabem o lado político, as ideias que temos. Então não são ainda, só serão parte mesmo

quando participar na luta como nós. (Entrevista com L. Empreendimento de economia solidária e educadora, Recife) Para ser economia solidária precisa que você viva da sua produção, precisa ser a principal forma

de trabalho e de sustento. Não são apenas os grupinhos da comunidade que se encontram para

passar o tempo, aquilo é trabalho terapêutico, aquela não é economia solidária: não tem uma ideia

política.

(Entrevista com L. Empreendimento de economia solidária e educadora, Recife) Você vê, muitas pessoas aqui acham que pode aparecer só quando tem um espaço de

comercialização coletivo, uma feira da gente, e não participam no movimento. Mas não, precisa

participar no Projeto Ramá, as reuniões, as formações. Se não é muito fácil, organizam o espaço,

vou lá e vendo. Não é assim economia solidária, precisa ser dentro da rede e participar a

construção. (Entrevista com A. empreendimento economia solidária, Recife)

Inclusão social

Em última instância, a nova cidadania construída nos discursos da economia

solidária tem a ver com uma nova dimensão sociocultural, com base na dinâmica

promovida pela solidariedade, a coesão social e a promoção da cultura local. Neste caso,

a dimensão inclusiva encontra a sua aplicação na capacidade de aumentar e estabilizar

as relações sociais e identidades culturais dentro das comunidades e entre os

participantes do movimento. Fomentar a coesão social através da promoção das

identidades culturais presentes nelas é uma forma de dar espaço a todos os aspetos da

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vida social neste novo programa de cidadania. A intenção é reconstruir, além dos

aspetos econômicos e políticos, também os culturais e relacionais, como um meio para

reconstruir um sentimento de cidadania ativa e vivida em sua totalidade.

A luta contra a violência e o crime, o ensino de educação cívica e a valorização

da identidade cultural da comunidade são postas em prática através da oferta de

alternativas com foco em atividades de lazer e educação para os jovens. A rede de

economia solidária do Recife trabalha muito em ofertas de formação, eventos, festas e

também na criação de grupos culturais. São alguns exemplos de como a nova cidadania

possa ser considerada como um “fato social total”, e então uma proposta de estilo de

vida, que envolve as vidas das pessoas em suas totalidades, a partir da atividade de

trabalho passando pelo empenho político e chegando aos momentos de lazer e às

relações sociais do dia a dia.

Vimos neste paragrafo como pode se conceber a cidadania, e então os direitos a

ela ligados, através dos significados expostos nos discursos de seus atores. A contínua

reflexão levada nos três níveis, econômico, político e sociocultural, abrem o espaço para

uma cosmologia muito complexa do movimento, transformando-se em motor e gerador

de ações e processos de mudanças que também serão alvo de analise da pesquisa.

4. CIDADANIA: Uma categoria de mediação antropológica

No estudo do movimento de economia solidária de Recife proponho a

“nova cidadania” como categoria estratégica de mediação antropológica. Como visto

brevemente, a nova cidadania é apropriada pelo movimento em seu processo de

construção de identidade e luta pelo espaço social, mas ao mesmo tempo é apropriado

pelas instituições governativas e de forma diferente. Isso gera um impasse, bem visível

na arena entre os diferentes atores. Ao mesmo tempo ela se coloca como categoria apta

para mediar diferentes linguagens e atores (política formal e governativa e prática

militante e alternativa) reconhecendo não apenas o ponto de vista dos militantes, mas

elaborando um conceito de arena politica que possa considerar a polifonia de vozes

participantes no processo social que apresenta a temática da economia solidária,

incluindo também a antropóloga pesquisadora deste processo e, então, a teoria

acadêmica.

O uso desta categoria revela a existência dos mesmos signos por partes de

atores posicionados em diferentes lugares da arena do campo de pesquisa, mas as

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semânticas postas em jogos são muito diferentes, gerando conflitos complexos e

ambíguos ou confluências perversas (Dagnino, 2004)

“Essa crise discursiva resulta de uma confluência perversa entre, de um lado, o

projeto neoliberal que se instala em nossos países ao longo das últimas décadas e, de outro,

um projeto democratizante, participatório, que emerge a partir das crises dos regimes

autoritários e dos diferentes esforços nacionais de aprofundamento democrático”. (Dagnino,

2004, p. 2)

No contexto específico, a pesquisa de campo levantou e levanta a existência de

contradições e confluências entre dois modelos antagonistas: o neoliberal e o solidário.

Estes modelos, ou tipos ideais, correspondem a universos simbólicos profundamente

diferenciados onde as categorias de discurso resultam ser as mesmas, entre elas

participação, sociedade civil, cidadania.

O que caracteriza o projeto neoliberal é a sua estreita associação com o modelo

econômico capitalista globalizado e com a democracia representativa. Seus principais

objetivos são a eliminação de barreiras ao capital internacional, a remoção de tudo o que

limita o livre mercado e ampliar a organização do mercado à toda a vida social

(Dagnino, 2010, Habermas, 1997). Segundo esta perspectiva, o Estado, no contexto

neoliberal, iniciou um processo de esvaziamento de sua responsabilidade, permitindo ao

mercado permear a vida social e cultural. O estado se transforma assim num

“fornecedor de serviços” e os cidadãos em simples clientes-consumidores. Nesta

perspectiva, a sociedade civil seria composta por aqueles que conseguem entrar na

estrutura da economia dominante como trabalhadores e consumidores. A sociedade civil

também seria a que assume a responsabilidade pelas falhas do Estado e do Mercado na

organização da vida social.

O aspecto característico desta confluência perversa (Dagnino , 2004) encontra-se

na semelhança de muitos elementos constitutivos dos dois projetos antagonistas. Em

primeiro lugar, a necessidade e a denotação positiva dada à sociedade civil como

protagonista na sociedade, ativa e proativa. Em segundo lugar, encontramos nos

discursos dos dois modelos os mesmos conceitos, ferramentas e elementos simbólicos-

discursivos como o de cidadania, de participação, de solidariedade e de democracia. Se

analisados em seus contextos semânticos estes elementos foram construídos de

maneiras muito diferentes um do outro, mas a semelhança da terminologia cria uma

“mancha cinza” que impede a compreensão das estruturas diametralmente opostas

(Dagnino , 2004).

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O modelo neoliberal estabelece uma relação ambígua entre cidadania e

mercado. O cidadão, seria aquele que adere ao mercado capitalista na logica do

consumidor ou produtor/empreendedor (Dagnino , 2004, Schwartz, 2012). Essa

perspectiva não é inteiramente nova, fazendo parte já das críticas dos direitos de

cidadania na Europa, na linha anti-marshalliana, que consideravam a relação de

cidadão-proprietário como geradora de desigualdade social. No contexto do modelo

neoliberal, portanto, não é um caso que as políticas públicas de inclusão e de assistência

aos excluídos ofereçam muitos programas que tomam a forma de microcrédito,

microempresa ou educação e formação profissional de qualificação para a entrada no

mercado capitalista. No contexto de Recife essas atividades assemelham-se muito aos

instrumentos desenvolvidos pela economia solidária, mas são projetos totalmente

isolados e desconectados de todo o processo de mudança social e cultural que a

economia solidária tenta construir em seu discurso e prática, sendo neste caso

destinadas à simples questão econômica, dentro da categoria do lucro, com vista à

inclusão no mercado capitalista.

Em segundo lugar este modelo se reapropria também do termo participação

colocando a ênfase no trabalho voluntário e na responsabilidade social, tanto de

indivíduos como de empresas com consequência uma despolitização do papel do estado

e a invisibilidade de noções como de reciprocidade social e a importância do coletivo. A

própria ideia de solidariedade, é separada de seu significado político e coletivo,

passando a ser iniciativa exclusiva da esfera privada da moral.

Cidadania ligada ao mercado de trabalho capitalista, participação como assunção

por parte da sociedade civil das responsabilidades do Estado, solidariedade como

caridade dos mais ricos para os mais pobres. Os três termos são frequentemente usados

pelo programa político-econômico do modelo neoliberal, bem como no programa do

movimento de economia solidária, mas são diametralmente opostos. No segundo caso,

como vimos, a cidadania é baseada num direito ao trabalho universal com possibilidade

de um sistema de produção alternativo; a participação envolve a responsabilidade dos

cidadãos nas decisões políticas locais que lhes dizem a respeito; e a solidariedade é uma

metodologia de desenvolvimento social baseada no fortalecimento da cooperação, da

coesão da comunidade e da co-responsabilidade mútua.

No contexto prático de ação social dos atores, que neste caso é identificado na

constituição de políticas públicas de economia solidária, as confluências perversas

argumentadas passam a ser de questões discursivas a práticas de conflito. Os

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representantes dos empreendimentos de economia solidária de Recife percebem que o

diálogo instaurado com as instituições constitui uma relação de colaboração na fase de

confrontação no espaço político, mas que as propostas efetivas de políticas na realidade

caminhem para outras direções. Diferentes programas governamentais para o

fortalecimento da economia solidária, na realidade não são percebidos como tais pelos

militantes do movimento social. Por outro lado existem ações diretamente ligadas aos

participantes do Fórum numa negociação direta onde o grande atraso para suas

implementações, demonstra uma falta de interesse do estado nesta área social. Nessas

ações específicas as instituições se propuseram apenas com papel de gestores

contrapondo-se ao conteúdo propriamente político da participação tal como concebida

no interior do projeto participativo, marcada pelo objetivo da “partilha efetiva do poder”

entre estado e sociedade civil (Dagnino, 2002). Nos últimos dois anos esta situação é

vista então como uma fragilidade própria do movimento pernambucano que tenta

melhorar sua própria ação afirmativa e organizativa nos espaços públicos, visando uma

maior força na arena política que lhe é garantida.

Por essas questões, mesmo que os atores percebam o reconhecimento dos modos

de vida e produção da economia solidária como direitos de cidadania ainda fora do

alcance, o trabalho para uma melhor performance política nos espaços públicos é

continuamente treinada e modificada, visando superar as contradições e fragmentações

internas para se tornar ator mais forte no campo de disputa entre modelos diferentes.

A análise etnográfica revela essas dinâmicas políticas como processos fundantes

de constituição do movimento de economia solidária e de sua proposta alternativa. A

categoria de cidadania se insere como uma entre as categorias compreensivas dessas

dinâmicas. Mais importante ainda, percebemos nestes espaços um encontro entre

cidadanias correspondentes a concepções e modelos diferentes de agir o político, a

economia e a transformação social. O espaço político indagado em todas suas

conotações, desde os espaços formais públicos de debate até as práticas internas dos

militantes do movimento, são considerados assim laboratórios de cidadania

(Malighetti, 2012, Biolghini, 2013) sendo esses espaços de construção de propostas

sociais, culturais e econômicas geridas por todos seus atores em relações de colaboração

ou conflito.

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Conclusões

A hipótese fundante deste trabalho é que o movimento de economia solidária se

faz gerador de novas relações socioeconômicas e políticas nas comunidades urbanas

como formas de resistência à exclusão social e de criação estratégica de práticas

alternativas visando a democratização da economia e a redefiniçao de gestão pública

(Carvalho de França Filho, 2007). Mesmo não colocando-se como um sistema

alternativo ao capitalismo, como alguns autores apontaram, o MSES é gerador de

processos sociais diferenciados e voltados à constituição de uma nova cidadania

inclusiva e diferenciada. Objetivo da pesquisa é então aprofundar uma reflexão que

acompanhe a economia solidária numa abordagem crítica, mas que saiba considerar a

importância de suas ações de transformação social e principalmente as modalidade em

que a transformação acontece.

Como a reflexão de Marcio Goldman (2008) aponta precisa-se considerar que os

novos movimentos sociais não apenas procuram a inclusão em direitos de cidadania,

mesmo sendo parte importante de suas ações, mas mais do que isso lutam para estilos

de vidas alternativos e para outras sociabilidades. O movimento de economia solidária

em Recife procura diálogo no estado, mas suas ações abrangem outras esferas da vida

cotidiana, como visto, fazendo da categoria de cidadania um mundo amplo e complexo,

muito além de simples direitos civis ou econômicos. Isso nos indica que juntamente a

procura de institucionalização do movimento, voltado ao reconhecimento público,

existe toda uma cosmologia de práticas e de modos de vida dentro do mesmo que

merece atenção analítica, sendo parte fundante da constituição do movimento.

Neste texto foi analisada a abrangência analítica da cidadania em sua

conformação histórico/jurídica, prática, nativa e também como categoria antropológica

de tradução entre linguagens e modelos. Importante para a antropologia, é investigar as

trocas e dinâmicas ligadas à cidadania dentro do contexto etnográfico em que ocorrem,

buscando a compreensão das relações sociais envolvidas. Essa compreensão é

fundamental para percebermos que a política opera com valores da sociedade mais

abrangente, tradicionalmente associados a outras esferas da vida social, como

família/coletivo e consumo, economia e ambiente, normalmente considerados externos

da esfera política.

a singularidade da contribuição antropológica para essas questões derivariam

assim da perspectiva etnográfica que caracteriza a disciplina. Isso significa que essas

categorias devem ser apreendidas em seu significado nativo e actor oriented e, mais

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importante que isso, devem ser apreendidas em ação, ou seja, no contexto em que

aparecem e segundo as modalidades concretas de sua atualização, neste caso os espaços

políticos de confrontação. Em outros termos, temos que indagar com que tipo de

realidade estamos lidando, do que estamos falando quando se pensa em movimentos

para cidadania hoje, pois não se trata nem de puros conceitos, nem de simples realidades

empiricamente dadas; trata-se de modos históricos e políticos de refletir, articular e

desenvolver diferentes práticas e experiências vividas nos diferentes coletivos da

sociedade.

A pesquisa sobre as práticas da economia solidária em Recife permite conhecer

diferentes áreas e categorias de estudo num mesmo patamar de análise, sendo esta a

modalidade de ação da mesma. Economia, política, estilos de vida e consumo, direitos,

são todos elementos onde o conhecimento e a análise resulta ser imprescindível, como

apontado em toda experiência vivida no campo e como reconhecido no discurso dos

atores, no entendimento e preenchimento de uma categoria já tão complexa como a de

cidadania.

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