ENEIDA Em Prosa

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ENEIDA

A QUEDA DE TRIA Quebrantados pelo prolongamento da guerra que tinham empreendido contra Tria, antiga cidade no litoral da sia Menor, os gregos reuniram-se em conselho para estudar a deciso a tomar. Havia nove anos que a sua poderosa esquadra de mil navios e cem mil homens aportara quelas regies, mas no estavam agora mais perto do objectivo atacar, saquear, destruir e incendiar a cidade do que no dia da chegada. As Parcas tinham-lhes sido adversas: Aquiles, o seu prncipe mais temido e vencedor de inmeros campees troianos, fora derrubado por uma traioeira flechada de Pris, no calcanhar, seu nico ponto vulnervel. jax suicidara-se e a perda de tantos chefes e soldados reduzira o exrcito grego a uma sombra do que fora. Tambm os barcos, de tanto tempo ao seco, na praia, mostravam sinais de desgaste e estariam, em breve, imprestveis. J no tinham esperana de poder conquistar a cidade do rei Pramo por ataque directo. Tinham-no tentado muitas vezes, mas sofreram perdas terrveis ante as altas muralhas da cidadela e a vigorosa defesa dos sitiados, aguerridos e bem treinados na arte de guerrear. Mas os troianos sofreram, igualmente, pesadas baixas. Heitor, filho do rei Pramo, e o melhor dos seus campees, fora morro por Aquiles num combate singular. A fina flor da juventude troiana manchara j de sangue aquelas praias. Reuniram-se os chefes de todas as faces do exrcito grego, pois este era formado por guerreiros vindos de vrias partes da Grcia sob o comando de Agammnon, rei de Argos. A deusa Minerva, com divina astcia, incutiu ento na mente de um dos prncipes ali reunidos, de nome Epeu, a ideia de que deveriam construir uma enorme esttua de madeira representando um cavalo, no bojo do qual ficariam escondidos cem homens dos mais valentes. Os gregos fingiriam que

haviam

desistido

de

conquistar

a

cidade,

levantariam

o

acampamento

e

embarcariam nos seus navios, deixando o cavalo na praia para que os troianos o recolhessem para dentro da sua cidadela. A esquadra, entretanto, em vez de retornar Grcia, ficaria escondida atrs da ilha de Tnedos, prxima dali, e afamada outrora pelas suas riquezas, mas que era agora apenas uma enseada e um ancoradouro pouco seguro. E tudo fizeram rpida e confiantemente. Assim que correu a noticia de que o inimigo abandonara a luta e partira, houve como que um suspiro de alivio de toda a cidade sitiada, livre, agora, da opresso de muitos anos. Abriram-se as portas e saram todos, alegres, a olhar os restos do acampamento grego, com um misto de curiosidade e terror. Aqui estiveram acampados os guerreiros de Dlopes e ali tinha o cruel Aquiles as suas tendas. Mais alm, era o lugar dos navios e depois o dos combates campais. Juntara-se um grande grupo, admirado, volta do cavalo presente a Minerva, como julgavam e discutia sobre o destino a dar-lhe. Timetes, um dos filhos de Pramo, achava aconselhvel lev-lo para dentro dos muros da cidade, pois assim o queriam os deuses. Cpis e outros eram de opinio contrria. Suspeitando dos gregos, mesmo quando ofereciam presentes, desejavam atirar ao mar a figura enorme, queim-la ou mesmo abrir o seu oco bojo e verificar o que continha. Todos tomavam partido e nada se decidia. Foi ento que apareceu, vindo da cidade na direco do grupo, o sacerdote Laocoonte que, ainda de longe, bradou: desgraados troianos, que loucura to grande se apossou de vs, que acreditais que o inimigo se retirou, deixando-nos em paz! Ser que nada aprendestes com as artimanhas de Ulisses? amigos, no confieis nesse cavalo. Ou h gregos armados que nele se ocultam, ou essa mquina foi aqui deixada para observar as nossas posies e investir contra os nossos muros. Temo os gregos mesmo quando nos deixam presentes. Assim dizendo, arremessou uma lana com toda a fora dos seus vigorosos braos contra a ilharga da enorme figura a seu lado. A arma penetrou na madeira, vibrando, e, no fosse a excitao e a vozearia reinantes e o esprito pouco

precavido dos troianos, ainda hoje a sua cidadela estaria de p e intacta, pois embora da cavidade proviesse um gemido e um tinir de ferros, ao penetrar-lhe a lana, a turba de nada se apercebeu. Entretanto, nesse momento, aproximavam-se do grupo alguns pastares conduzindo um jovem de mos atadas as costas, seguidas de uma multido ululante que insultava e ameaava o cativo que, por suas roupas e linguajar, era evidentemente grego. Apesar de haver medo nos seus olhos, encarava a plebe com altivez e desafio. Tinha-se arriscado entre os prprios inimigos para desempenhar o seu papel no ardiloso plano dos gregos. Trazido presena do rei Pramo, o jovem prisioneiro ergue a voz e diz: Ai de mim, que as terras e mares j no podem receber! Qual a sorte de um miservel que j no pode estar junto dos seus, pois so eles mesmos que lhe exigem a vida? Condodos com o tom lamentoso da fala, os troianos acalmaram-se um pouco e dispuseram-se a ouvi-lo mais. Exortemo-lo a falar. Que diga qual a sua linhagem e o que o traz aqui. Mais encorajado, voltou-se ento o grego para Pramo e falou: Na verdade, rei, confessar-te-ei todas as coisas que sei, sejam quais forem as consequncias. No nego que sou grego e se a fortuna me fez a mim, Sino, infeliz, no me far mentiroso e enganador. Talvez, acaso j tenhas ouvido falar de Palamedes, da famlia Belo. Esse jovem corajoso e inocente era o meu melhor amigo. Como se opusesse guerra, mataram-no, sob falsa acusao de traio, e Ulisses, de fraca, foi o autor do nefasto crime. Desesperado com a morte do meu amigo, levantei altas vozes e prometi ser-lhe o vingador, se algum dia voltasse minha ptria, Argos. Excitei desse modo grandes dios contra mim e Ulisses comeou a intrigar-me junto dos meus companheiros e a lanar-me prfidas acusaes. No descansou enquanto, com a ajuda de Calcante... Mas porque vos conto todas estas tristes coisas, se tratais todos os gregos da mesma forma? Tomai

a vossa vingana e com um s golpe ponde fim s minhas desgraas, pois mais nada posso esperar. Replicou ento Eneias, acalmando-lhe os temores: Queremos conhecer quo grandes podem ser os crimes e astcias dos gregos. Continua, pois. Ao que ele, fingindo o que no era, prosseguiu: Muitas vezes, os gregos, cansados de uma guerra to longa e sentindo fraquejar as foras, as armas, os mantimentos e o animo, desejaram deixar Tria e voltar ptria. E oxal o tivessem feito! Mas sempre que se decidiam a isso, parece que os ventos e o mar se combinavam para lhes alterar os desgnios. A ideia de que os deuses fossem contrrios nossa fuga, aterrava-nos. Assim, perplexos, resolvemos enviar Euripilo para consultar os orculos de Apolo. Foi e voltou trazendo este vaticnio horrvel: Aquando pela primeira vez, gregos, viestes para o litoral troiano, aplacastes o vento com o sangue e a morte de uma donzela. O regresso tambm deve ser regado com o sangue e o sacrifcio de uma alma de grego. Ao ouvir isto, a multido de guerreiros baixou a cabea, horrorizado, e um frio temor percorreu-lhe os ossos at a medula, pois no sabia a quem Apolo escolheria. Por entre grande vozearia, Ulisses avanou com o adivinho Calcante e exigiu-lhe, na frente de todos, que revelasse quem era a vtima preferida dos deuses. J os meus amigos me profetizavam a escolha da dupla astuciosa, mas calados esperavam o que sucederia. Calcante recolheu sua tenda e l permaneceu, silencioso, dez dias. Finalmente, pressionado pelo Itaco, rompeu o silncio e apontou-me para o sacrifcio do altar. Todos, alegres de se terem livrado da morte, aprovaram a escolha, pois sempre se sabe resistir com galhardia desgraa que se abate sobre os outros. O dia fatdico aproximava-se e eu, aterrado, via ultimarem-se os preparativos para os rituais sagrados: a carne salgada, os pes, as fitas em torno da minha cabea e os banhos com gua santificada. Digo-vos, ento, que quebrei os laos que me prendiam e fugi, escapando a um destino cruel e injusto. Durante a noite, escondi-me entre as algas, numa lagoa prxima, at que fossem embora. No tenho mais esperana de rever a ptria, os meus filhos, o meu saudoso pai e

at possvel que esses entes queridos expiem a minha culpa no altar do sacrifcio. E eu te peo, rei, pelos deuses justosse que alguma justia resta entre os mortais, que tenhas piedade de quem j tanto sofreu, e tanto sofreu injustamente. O bom rei Pramo, a quem subiram as lgrimas aos olhos, ouvindo aquela histria repleta de mentiras, foi o primeiro a desamarrar-lhe os atilhos, dizendo: Quem quer que sejas, esquece a partir deste momento os gregos traioeiros, pois sers um dos nossos. Agora diz-me a verdade sobre estas muitas coisas que te interrogo. Para que construram este enorme cavalo? De quem foi a ideia? Que pretendem com tal coisa? acto de f ou mquina de guerra? Vamos, fala. Sino, expoente da astcia e perfdia gregas, levantou para os astros as mos j livres das cadeias e exclamou: fogos eternos, invoco-vos como testemunhas da verdade, a vs e vossa divindade inviolvel! A vs, altares e espadas prfidas, aos quais fugi, e a vs, fitas sagradas que trouxe comigo! Posso agora renegar os juramentos sagrados de fidelidade aos meus, posso odi-los e tudo dizer, pois j no estou ligado ptria por quaisquer laos. S espero que tu, Tria, mantenhas as promessas de me poupar a vida, se eu contar a verdade e te prestar um grande servio. Toda a esperana dos gregos nessa guerra indefinida sempre esteve depositada no auxilio de Minena. No entanto, desde que esses dois mpios, Diomedes, filho de Tideu, e Ulisses, filho de Laerte, ousaram cometer o crime monstruoso de atacar o santurio da deusa, matar-lhe os guardas e roubar a sagrada efgie, ainda com as mos tintas de sangue, desde aquele instante a sorte passou a ser-lhes adversa, o animo abateu-se-lhe e as suas foras fraquejaram, pois fora-lhes retirada a proteco da deusa. E no ficaria Minerva sem mostrar-lhe, por prodgios tremendos, o seu desagrado. Nem bem os gregos colocaram a esttua da deusa guerreira na praa do seu acampamento, quando chamas brilhantes lhe saram dos olhos

ameaadores, suor salgado desceu pelos seus membros e trs vezes saltou a imagem no ar, caindo, depois, no cho, com o escudo a vibrar e a lana a tremer. De imediato, Calcante aconselhou a fuga pelos mares, pois os augrios terrveis

indicavam que Tria no poderia ser destruda pelas armas gregas a no ser que depois de consultarem os orculos em Argos voltassem inesperadamente com os deuses domsticos, mais armas e tropas frescas. Neste momento mesmo, pois, demandam eles a Grcia, aproveitando o mar calmo e o vento forte. Antes, porm, aconselhado pelo sacerdote, construram essa imagem semelhana de cavalo, como penitncia pela aco sacrlega. Entretanto, fizeram-na bastante alta para que, no passando nos portes, no pudsseis levla para a cidadela, onde daria proteco ao vosso povo. Augurou ele, ainda, que, se oussseis violar esse presente deusa, grande runa se abateria sobre o imprio de Pramo (que os deuses virem esse pressgio contra o prprio Calcante!), mas que, se pelas vossas prprias mos, consegusseis introduzi-lo na cidade, r n t ao a sia toda seguiria em grande guerra at os muros das cidades gregas e enorme glria se reservaria a vossos netos. To bem Sino mentia e desfiava a sua teia de histrias, que todos nele acreditaram. Os seus suspiros e lgrimas conseguiram aquilo que a valentia de Aquiles, de Ulisses e de todos os gregos, em dez anos, no tinha conseguido. E, para maior peso e veracidade das palavras falsas do grego, outro prodgio aconteceu e fez a todos estremecer de horror. Laocoonte, sacerdote de Neptuno, com os seus dois filhos, imolava um grande touro, junto aos altares sagrados. E eis que duas serpentes, de enormes espirais, surgiram do mar calmo, da direco de Tnedos, e, nadando, se aproximaram velozmente da praia. Os seus ventres cortavam as ondas e as suas cristas sanguneas elevavam-se acima das guas, com enorme rudo e espuma. Alcanaram a costa e seguiram pelo campo, os olhos tintos de sangue e fogo. E as lnguas, vibrantes nas bocas, sibilavam

horrendamente. Plidos de medo, os troianos recuaram, enquanto os monstros avanavam directamente para onde se achava Laocoonte. Cada uma das serpentes atacou um dos meninos e logo, enroscando-se nos pequenas corpos, lhe devoraram-lhes os membros. Atacaram, ento, Laocoonte que viera em socorro dos filhos com lanas, apertando-o com os seus fortssimos anis, dois no corpo e dois no pescoo, enquanto lhe derramavam na cabea sangue podre e veneno negro. Soltando gritos horrendos qual touro que foge do altar ferido no pescoo

por machadada mal desferida, o sacerdote procurava desenvencilhar-se daquele incrvel aperto e estendia os braos para os astros. Depois de um derradeiro arranco que lhe esmagou o trax, as duas serpentes rastejaram para a parte mais alta do templo e l se ocultaram no escudo e nos ps da imagem da cruel deusa. Novo pavor se introduziu, ento, em todos os coraes. Diziam que Laocoonte pagara o crime de ferir com uma lana o cavalo sagrado. Exigiram todos que a esttua fosse conduzida ao templo da deusa, cuja proteco deveriam implorar. Enquanto uns derrubavam os arcos dos portes e abriam os muros, outros lanaram uma corda grossa ao pescoo da efgie. Com muitos a empurrar e a puxar, a mquina sinistra penetrou, cheia de homens e de armas gregos, na prpria cidadela troiana. Em volta, moos e moas acompanhavam a multido, cantando cnticos sagrados e brincando com a corda que arrastava o madeiro. ptria, Tria, residncia dos deuses e invicta na guerra! Quatro vezes estacou o cavalo no limiar dos portes e outras tantas vezes saiu do seu bojo um som semelhante ao tinir de armas. Os troianos, todavia, surdos e cegos a tudo o que no fosse a sua inteno de fazer entrar o presente divino, nada ouviram e nada perceberam. Por toda a parte Se enfeita a cidade e o templo com ramagens festivas. Apenas Cassandra, filha de Pramo e pitonisa, os advertia do perigo, predizendo dias negros para Tria. Mas, tida por todos como meia louca, pouco se importaram com os seus vaticnios. Entrementes, o cu escurece, trazendo a noite. Os troianos, dispersos pelas muralhas, entregaram-se ao sono, o primeiro repouso sossegado e tranquilo em muitos anos. A falange grega, ento, partiu de Tnedos, aproveitando a escurido. e demandou a costa, j to conhecida. Da nau capitania brilhou um sinal luminoso e Sino, espreita, correu a soltar os guerreiros gregos da sua priso voluntria no bojo oco do cavalo de madeira. Descendo por uma corda, saram os chefes Tessandro e Estenelo, o cruel Ulisses e Acamante, Toante, Pirro, filho de Aquiles, e muitos outros. Tambm estavam escondidos o mdico militar grego, Macon, Menelau e o prprio inventor da armadilha, Epeu. Livres, correram para a cidadela, onde mataram os guardas entregues ao sono, abriram os portes e logo se

juntaram s tropas, que, depois de desembarcadas, tinham avanado velozmente pela planura. Nesse momento, os habitantes, cansados da grande movimentao do dia, estavam entregues primeira fase do sono reparador, mas logo o rumor da batalha, os gritos dos homens em luta, e os lamentos e gemidos dos feridos ressoaram pelas ruas estreitas. A cidade inteira acordava. Enquanto isso, Eneias, o mais bravo dos guerreiros de Tria, que dormia em casa de Anquises, seu pai, sonhava que Heitor, filho de Pramo e morto por Aquiles em combate singular, lhe aparecia sujo, ensanguentado e de ps inchados, arrastado por dois cavalos a cujas rdeas estava amarrado. Quo diferente era daquele outro Heitor que costumava voltar, triunfante, com os despojos gregos ou a atirar archotes acesos contra os navios inimigos! A barba esqulida, os cabelos colados pelo sangue e as muitas feridas que recebera, quando fora arrastado trs vezes em torno dos muros da cidade, apareciam agora distintamente. Eneias, chorando, parecia dirigir estas palavras ao amigo: luz de Tria, esperana fiel, porque te demoraste? Donde vens, Heitor? Porqu esse horrvel aspecto e por que razo te voltamos a ver, ns, cansados de luta, sofrimentos e mortes? Onde est a tua figura serena? O fantasma de Heitor nem ouviu as palavras, nem respondeu a Eneias, e apenas disse, soltando do peito um gemido doloroso. Ai! Foge, filho de Vnus, e salva-te destas chamas! O inimigo est senhor dos muros e a cidadela cai. Toma os tesouros e os penares da ptria, rene-te aos companheiros e, depois de percorrido o mar, procure acha local onde fundes novo reino! Embora a casa de Anquises fosse retirada do centro da cidade e cercada de rvores protectores, o fragor crescente da batalha despertou Eneias, que, intrigado, subiu ao terrao mais alto para olhar ao longe. Vislumbrou, claramente, vrios incndios que ardiam e escutou o tumulto que reinava. Qual pastor que pra estupefacto no

alto de um rochedo, quando a chama se lana na seara, soprada pelos ventos furiosos, ou quando rpida torrente transbordando do leito, alaga os campos, arruma as sementeiros vice jantes e as lavouras preparadas e arrasta as rvores arrancadas dos bosques, tambm assim ficou Eneias no seu posto. Abriram-se-lhe as portas da verdade e percebeu ento a cilada dos gregos. J o palcio de Defobo fora presa das chamas e tambm o de Ucalegonte, que Ihe ficava prximo. O cu reflectia a luz dos incndios at no prprio mar. Num assomo de raiva, atirou-se pelas escadas e armou-se para o combate. Pouca esperana lhe restava, mas o seu esprito impelia-o a reunir os companheiros que pudesse e a lanar-se luta. S tinha um laivo d esperana, que era o pensamento de como seria glorioso morrer de arma na mo, combatendo. J no limiar da porta, pronto para sair, encontrai Panto, filho de Otrias e sacerdote de Apolo e da cidade, carregando o objectos do culto e as imagens dos deuses domsticos e seguido pelo netinho. Dirigiu-lhe ento vrias perguntas e o velho, apavorado e trmulo. respondeu-lhe: Chegou o dia fatdico para Tria. Eis o seu fim e o fim da grande gl ria dos troianos. Jpiter j no nos favorece e s tem olhos para a Grcia cujos filhos dominam agora a nossa cidade incendiado. Cem homen armados saram do bojo do grande cavalo de madeira e Sino, o mentiro so, zomba de ns e ateia fogo s nossas casas, enquanto os navios gregos de regresso de Tnedos, despejam s nossas portas e nas nossas ruas milha rs de guerreiros. Tenta-se uma dbil resistncia, mas tudo intil. Ouvindo tais palavras e cego de raiva, Eneias lanou-se a correr na direco donde lhe pareceu ser maior o fragor da luta. A ele se juntaram Ripeu pito, Hpanus, Dimante, Corebo, filho de Mdgon jovem que vier a Tria trazido por um exaltado amor a Cassandra, a fim de emprestar o seu auxilio e apoio ao futuro sogro , e muitos outros que ali vinham ter, guiados pelo claro luar. Falou-lhes, ento, Eneias:

jovens de corao valoroso, se tendes realmente uma vontade firme de me acompanhar nesta empreitada final a que me lano, pensai primeiro nas nossas possibilidades. Todos os deuses, cujo favor sustentava este reino, se retiraram e esto agora do lado do inimigo. Ireis lutar por uma cidade incendiado, mas, se assim o quereis, corramos para a batalha e nela pereamos. Os vencidos tm uma nica salvao, que a de no esperar salvao alguma. Elevados assim os animas daqueles jovens, partiram quais lobos rapaces que, aguilhoados pela fome, perambulam noite, enquanto os filhotes, de fauces abertas, os esperam no covil. Avanavam para o meio das lanas inimigas, para a morte certa, na direco do centro da cidade. Envolvia-os a noite escura. Quem, no futuro, poderia narrar as desgraas, o sofrimento e a triste sorte daquela cidade, outrora dominadora e poderosa e que agora caa por terra? Por toda a parte se viam corpos estendidos, nas ruas, nas casas, nos altares. Mas no eram somente troianos, pois muitos gregos foram abatidos pela defesa herica dos vencidos. Em tudo havia o cruel odor da morte, O primeiro grupo de inimigos que encontraram era chefiado por Andrgeo, que, tomando-os por soldados gregos, aproximou-se e assim, amistosamente, lhes falou: Apressai-vos, guerreiros! Que demora a vossa? Estamos a saquear a cidade incendiado e vs s agora chegais dos navios? Imediatamente, porm, reconheceu que estava no meio de inimigos, Estupefacto, a voz presa na garganta, recuou rpido, como aquele que, distrado, pisa no campo a cobra e, assustado, se afasta do rptil que se enrosca irado para a picada peonhenta. Era tarde, porm. Mais numerosos, Eneias e os seus atacaram e mataram todos os gregos. Pela primeira vez em muitas horas, a fortuna sorria-lhes. Ento Corebo, animado com aquele sucesso, disse:

companheiros, sigamos o caminho da salvao que os deuses nos mostram. Troquemos de armas, roupas e emblemas com o inimigo abatido. No hora de se exigir valor ou traio num inimigo. Assim falando, colocou na cabea o elmo emplumado de Andrgeo, agarrou no seu escudo e embainhou a sua espada. Tambm Ripeu, Dimonte e todos os outros o imitaram e atiraram-se ao inimigo, travando inmeros combates e abatendo centenas de guerreiros. Alguns gregos, ante aquela grei corajosa e aguerrida, fugiam para o litoral onde os esperavam os barcos. Outros, apavorados, subiam de novo ao cavalo de madeira, procurando refgio no seu bojo protector. Mas quem pode confiar nos deuses irritados? Eis que o grupo avista ento Cassandra, filha de Pramo, que era arrastada pelos cabelos desgrenhados para fora do templo de Minerva. Em vo levantava ela os olhos inflamados para o cu, as mos atadas atrs das costas. Corebo, ao ver a sua amada, sentiu-se possudo de uma clera insuportvel e, disposto a morrer, lanou-se no meio do inimigo que a conduzia. Os companheiros seguiram-no, armas erguidas, mas engano fatal do alto das muralhas os defensores da cidade tomaram-nos por inimigos, pois assim o indicavam os seus penachos gregos, e uma chuva de lanas e setas provocou terrvel mortandade entre os troianos disfarados. Os gregos, passado o primeiro susto e vendo a sua presa escapar-se-lhe das mos, investiram ento todos uma contra Eneias e os seus. Eram o feroz jax, os dois filhos de Atreu e todo o exrcito dos Dlopes. Como ventos contrrios que lutam, s vezes num turbilho, fazendo ondear os bosques e revolver as ondas, como Neptuno que enfurece o mar at aos mais profundos abismos, tambm assim avanaram os gregos de toda a parte. Muitos dos que tinham sido afugentados pelos falsos inimigos nos combates das ruas voltavam agorareconhecido o logro com maiores fria e clera. Vencidos pelo nmero, os troianos iam tombando. Corebo foi o primeiro a sucumbir pela mo de Peneleu, junto ao altar de Minerva. Caiu tambm Ripeu, o mais justo de todos os de Tria. Hispanis e Dimante foram trespassados por lanas amigas atiradas do alto. Nem a piedade, nem as insgnias

sagradas salvaram Panto, o sacerdote de Apolo. Somente Eneias e um punhado de bravos viviam ainda e o heri, erguendo os braos para o cu, gritou: cinzas de Tria! fogos morturios de meus antepassados! Tomo -vos por testemunhas de que no fugi das armas, dos perigos e do inimigo e, se o destino tivesse querido que eu morresse, eu o faria lutando. Ento, fim, Plias e ele prprioo primeiro j mais velho e o outro com ferimentos produzidos por Ulissesafastaram-se dali e dirigiram-se ao palcio do rei Priamo. Ai se travava um furioso combate. Os gregos subiam por escadas apoiadas s muralhas tentando alcanar as ameias, enquanto se protegiam com os escudos dos projcteis lanados de cima. Os troianos arrancavam telhas, pedras, tijolos, ornamentas e traves douradas tudo o que pudesse ser ir de projctil, dos torrees. O porto principal estava guardado por uma fileira cerrada de espadas desembainhadas. Tomado de novo alento, Eneias correu a juntar-se aos defensores, entrando no palcio por uma passagem secreta que o ligava casa de Heitor. Por ela costumava Andrmaca, esposa do infeliz filho de Pramo, ir casa dos sogros levando o filho Astianax. Eneias subiu cumeeira e juntou-se aos outros naquela luta intil. Com as espadas, escavaram os alicerces de um alto bastio e fizeram-no tombar sobre os gregos reunidos ao p das muralhas, matando muitos deles. No entanto, cada vez surgiam mais e mais gregos, que no eram contidos pelos projcteis que lhes arremessavam. Diante da prpria porta do vestbulo j estava Pirro, filho de Aquiles, esplendoroso nas suas armas e na sua armadura reluzente, mortal parecendo uma cobra que, terminado o Inverno, sai da toca e, aps ter comido ervas venenosas e mudado de pele, se dirige coleante para o campo ensolarado, a lngua bfida vibrando, estendida, e a boca sibilante. Junto a ele, lutavam o seu escudeiro Automedonte, o grande Prifas, condutor dos cavalos de Aquiles, e a flor da juventude de Siros, ptria de Pirro, atirando archotes e setas inflamadas para os tectos e cumeeiras dos telhados. Agarrando num machado de dois gumes, o prprio Pirro atacou os batentes de bronze do porto, arrancando-o do suporte e pondo vista o grande

salo de colunas do rei Pramo. Destruram as almofadas de carvalho de uma porta que dava para o interior da casa e por essa passagem espalharam-se os gregos pelos aposentos reais, travando luta com os poucos defensores que restavam. O interior do palcio ressoava com o clangor da batalha, os gritos das mulheres e os gemidos dos feridos. Pirro, com o ardor herdado do pai Aquiles e louco de fria assassina, tudo levara de roldo com os seus, como o rio que, rotos os diques, se espalha pelos campos e arrasta frente rebanhos e estbulos. L estava Neoptlemo, furioso na carnificina, com os dois filhos de Atreu. Os gregos eram ento senhores daquele palcio de cinquenta quartos, daquelas portas cinzeladas com o ouro roubado aos brbaros e dos tesouros da famlia. Quanto a Pramo, ao ver a cidade incendiada, os defensores vencidos e a soldadesca grega invadindo o seu prprio palcio, correu aos aposentos reais, vestiu-se da armadura e empunhou as armas havia muito abandonadas, com o corpo frgil e a mo trmula. Reuniu-se ento a Hcuba e s filhas que oravam aos deuses junto ao altar do trio do palcio, ao ar livre. Ali havia um toureiro que espargia a sua sombra amiga sobre os penares troianos. Vendo o velho marinheiro, armado e preparado para a luta, exclamou a esposa: Que ideia cruel foi essa, infeliz consorte, de te cingires com armas? Para onde vais? No vs que nem o prprio Heitor, com a sua fora e a sua coragem, nos seria de algum valor? Recolhe-te aqui, junto aos nossos deuses, pois eles ou nos salvaro ou nos faro morrer todos juntos. Assim falando, ajudou o ancio a subir os degraus e sentou-se no lugar sagrado. Eis, porm, que Polites entrou no ptio. Era um de seus filhos, ferido, fugindo do ferro implacvel de Pirro, que o seguia nos calcanhares. Ali mesmo o alcanou e, na frente dos pais, enterrou-lhe a lana, prostrando-o sem vida. Sentindo-se beira da morte, Pramo no se conteve e, encolerizado pela brutalidade da cena, exclamou: Por esse crime, que os deuses se alguma justia existe no cu que se importe com tais aces te dem o merecido prmio, a ti, que me fizeste ver a morte do

meu filho! No entanto, aquele Aquiles de quem falsamente te dizes filho assim no procedeu para com o inimigo Pramo, pois, aceitando os direitos e a lealdade de um suplicante, me devolveu, a mim, o pai, o corpo do meu querido filho Heitor, para que lhe desse uma sepultura condigna. Assim dizendo, lanou, com fracas foras, o seu dardo contra Pirro. Este apenas levantou o escudo, recebendo o impacto do ferro no bronze redondo, e exclamou: Contars, pois, essas coisas e irs como mensageiro a meu pai, ao filho de Peleu. No esqueas de contar-lhe que eu, seu filho, estou degenerado. E agora morre. Agarrou ento o velho rei pelos cabelos brancos com a mo esquerda ainda tinta do sangue do filho, arrastou-o at o altar e, levantando a espada cintilante, cravou-a at os copos na ilharga do ancio. Assim morreu Pramo, cujo corpo, degolado, jaz annimo nas praias de Tria, outrora poderosa e dominadora.

Eneias, chegando pouco depois e vendo o morticnio, ficou transido de horror e de tristeza. Estava agora sozinho. Os seus poucos companheiros ou estavam mortos ou se tinham separado, esgotados do esforo da luta. Vagando sem rumo pelos grandes sales do palcio, em tudo via as marcas do sangue e da morte. Veio-lhe ento lembrana a imagem do seu querido pai, da esposa Creusa, abandonada, a casa saqueada e o perigo que corria o seu filhinho Ascnio. Corria na direco do lar quando, ao passar perto do santurio de Vesta, nu Helena, escondida a um canto. Ao ver as chamas dos fogos sagrados tremeluzindo e iluminando o vulto da mulher agachada, apossou-se do corao de Eneias uma imensa clera. Nasceu-lhe 0 desejo de vingar em Helena a ptria agonizante. No era ela a causa ltima de todas as desgraas? Seria justo que ela voltasse inclume a Esparta e Grcia, como rainha, revendo o esposo, a casa, os pais e os filhos e acompanhada de uma multido de escravas e escravos troianos, depois de Pramo ter morrido pela espada, depois da cidade ter sido incendiada e depois do sangue troiano ter manchado tantas vezes as areias brancas daquelas praias? No! Isso no poderia suceder! E, embora no seja glorioso punir uma mulher, nem parea to alto louvor, seria no entanto elogiado quem lhe desse o castigo merecido.

Possudo de dio e premido por tais pensamentos, Eneias, com a espada desembainhada, dirigia-se para o templo, quando lhe apareceu de sbito a me, a deusa Vnus. Jamais lhe surgira numa viso assim to clara e resplandecente, exactamente como refulgia entre os deuses de Olimpo. E ela pronunciou estas palavras, segurando-lhe o brao quase assassino: Filho, que dor to grande faz medrar to incontrolvel ira? Porque te enfureces? Por que razo, em vez de voltares a tua vista para aquela mulher, no procuras antes o teu pai Anquises, alquebrado pelos anos? Porque no indagas se a tua esposa Creusa e o pequenino Ascnio so vivos? Se neles no tivesse eu pensado e deles cuidado, j as chamas os teriam devorado e o ferro cruel os teria trespassado. No naquela mulher, Helena, ou no seu raptor, Pris, que deves pr a culpa dos desastres de Tria, mas na clera dos deuses que determinaram derrub-la do alto do pedestal. Olha, dissiparei com o meu poder a nuvem que tolda os teus olhos mortais e lhes impede de ver as coisas como realmente so. Aqui, onde vs grandes construes a desmoronarem-se, pedras arrancadas, fumo e poeira, vers Neptuno com o seu tridente, atacando os prprios alicerces da cidade e fazendo-lhes aluir os muros. Mais do que todas, possuda de dio contra a tua raa, divisars a cruel Juno, dominando as portas e chamando mais tropas dos navios. E mais alm, Minerva, resplandecendo numa nuvem com a figura da Medusa pintada no escuro, est de posse da cidadela. O prprio rei Jpiter incute animo ao inimigo e redobra-lhe as foras, instigando os deuses contra os teus. Mas no temas, filho, as ordens de tua me, nem lhe recuses obedecer. Apressa a fuga e pe fim a esses esforos vos. Nunca me afastarei de ti e conduzir-te-ei a outra ptria. Assim dizendo, a linda Vnus desapareceu nas sombras espessas da noite. Apareceram ento a Eneias coisas nunca antes reveladas e ele viu os deuses, com semblantes cruis e grande poderio, a auxiliar os gregos no assalto final a Tria. E esta parecia abater-se em chamas e desfazer-se nos seus alicerces. Era como o carvalho dos altos montes, que, atacado de todos os lados pelos machados dos camponeses, range, verga, balana, farfalha, geme e por muito tempo ameaa cair, at que, com um derradeiro alento abalado no seu cume pouco a pouco se deixa vencer pelas feridas do machado e rui, arrastando tudo das alturas. Trazido

de

novo

realidade

pela

deusa,

Eneias

correu

para

o

lar,

escapando

milagrosamente ao fogo e ao ferro do inimigo. Chegando a casa, correu para o pai e disse-lhe que se preparasse para a fuga, mas o ancio recusava-se a prolongar a existncia longe dos destinos de Tria destruda, e a sofrer o exlio: Vs exclamou , que tendes o sangue moo e que as foras robustas mantm com todo o vigor, empreendei a fuga. Se os moradores do Olimpo tivessem querido prolongar-me a vida, no teriam destrudo esta cidade. Sou por eles odiado e desprezado e eu mesmo porei fim aos meus dias por minhas prprias mos. Nada me resta nesta vida intil, desde que Jpiter me bafejou com os ventos do raio e me atingiu com o fogo. Apesar das instancias do filho, Anquises persistia em recordar as suas mgoas, permanecendo inabalvel na sua deciso. De nada adiantaram tambm as lgrimas de Creusa e do neto Ascnio. Desesperado com a resoluo do pai, Eneias voltou a envergar a armadura e, empunhando as armas, disse: Lano-me, pois, morte infeliz e todos a sofreremos. Esperavas pois meu pai, que eu te abandonasse aqui e prosseguisse sozinho com os outros? Como pode uma blasfmia assim sair de uma boca paterna? Se os deuses decidiram destruir esta cidade de modo a que ningum nela sobreviva e se te agrada juntares-te e aos teus a Tria, os teus desejos sero realizados. Dentro em pouco aqui estar Pirro, saciado de sangue, depois de ter morto primeiro o filho de Pramo vista do pai e, a seguir, este prprio junto aos altares. Vnus! me querida! Foi para isto que me tiraste do meio das chamas e me conduziste so e salvo atravs das lanas e das espadas do inimigo? Foi para os ver todos mortos, a Ascnio, a Creusa e a meu pai, Anquises, seus sangues misturando-se no cho? s armas, todos! Trazei-me as armas! O ltimo dia chama-nos, a ns, os vencidos! Deixai-me enfrentar os gregos.

Ataviado ento para a luta, Eneias dirigiu-se novamente para a porta da casa onde apareceu a sua esposa Creusa, com o menino Ascnio ao colo. Abraando-se a seus ps, falou assim: Se vais resolvido a morrer, leva-nos tambm contigo para o que a sorte nos reservar. Mas, se tens alguma esperana de sobreviver, defende primeiro o teu lar. Se partes, a quem entregas o teu filho, a mim, tua esposa, e o teu velho pai? E ao dizer tal coisa, enchia a casa com o seu pranto. Ocorreu ento um prodgio que os deixou estupefactos. Sobre a cabea do menino Ascnio, que se achava entre os braos dos chorosos pais, apareceu uma ligeira labareda. Espargiu-se o fogo sobre os cabelos da criana e lambia os seus canudos sem, no entanto, causar qualquer queimadura. A chama subia e descia ao longo da testa. Aterrados, os pais sacudiram-lhe os cabelos incendiados, tentando apagar as chamas sagradas com gua. Ento, Anquises, alegre, levantou os olhos e os braos para os astros e bradou: omnipotente Jpiter, se atendes a alguma prece, olha para ns que te pedimos! E se alguma piedade te merecemos, d-nos teu auxilio, pai, e confirma esses agouros. Mal o ancio proferira aquelas palavras e eis que, do lado esquerdo da casa, se ouviu o ribombar de um trovo e uma estrela caiu do cu, deixando atrs de si um facho de luz. O astro cadente passou por sobre os telhados e mergulhou na escurido, para os lados dos bosques do monte Ida, deixando um sulco luminoso no firmamento e espalhando um penetrante odor de enxofre queimado. Prostrado em adorao s potesdades celestiais, bradou Anquises: No h tempo a perder. Eu vos sigo e deixar-me-ei conduzir para onde quiserdes. Deuses trios, conservei a minha familia e protegei o meu neto. Certo o vosso augrio e Tria est sob a vossa proteco. Enquanto isso, os incndios aproximavam-se deles, pelas muralhas e pelos telhados.

Vamos, pois, querido pai, eu te levarei s minhas costas. Seremos um s nessa fuga, para o perigo e para a fortuna. Creusa acompanhar-me- bem como o menino Ascnio e todos os servos e guerreiros que assim o desejarem. Quem sai da cidade, logo depara com uma colina onde existe um velho templo de Ceres, h muito abandonado. Seguindo caminhos diversos, todos procuraremos atingir aquele ponto. Tu, pai, toma os objectos sagrados e as imagens dos deuses domsticos, pois, saindo eu de tantas lutas e morticnio, no seria justo que os tocasse antes de banhar-me em guas correntes. Cobrindo as costas com uma pele de leo, Eneias ergueu o seu velho pai. O menino Ascnio deu-lhe a mo, seguindo-o com os passinhos apressados. A esposa Creusa acompanhava-o mais atrs. Evitando os lugares iluminados, avanaram

cautelosamente pelas ruas sombrios. A Eneias, a quem a* h bem pouco no aterravam as chuvas de lanas e os batalhes inimigos avanando de espada nua, tudo fazia estremecer. Qualquer som o sobressaltava, temendo pelo companheiro e pela carga preciosa. J se aproximavam das portas, parecendo-lhes mesmo ter percorrido todo o caminho quando, de repente, lhes chegou aos ouvidos o som de passas cadenciados. O ancio, olhando para a escurido, exclamou: filho, foge, que vejo aproximarem-se escudos brilhantes e metais reluzentes. Assustado e confuso, Eneias apressou a caminhada, embrenhando-se por vielas e becos pouco conhecidos, abandonando o percurso que lhe ser to familiar. Olhando, passado um momento, para trs, a fim de ver se todos o seguiam de perto, parou subitamente, pois no via a sua esposa Creusa. De facto, nunca mais a veria. Ter se ia perdido pensou ou parou para descansar? Que outro destino terrvel teve? Deuses do Cu, ter-se- Creusa atrasado, cansada e sido atacada e morta por aquela patrulha de gregos que acabamos de ver? No podendo procur-la, lanou-se ento pelos portes e atravessou a planura, correndo, at subir o outeiro, onde estava o templo de Ceres, deusa do trigo dourado. Fazendo descer ento a sua preciosa carga, Eneias andou entre os companheiros e verificou que todos ali estavam. S faltava a sua esposa.

Indignou-se, ento, com os deuses e com os homens, na sua perturbao e clera. Aquilo suplantava em dor tudo o que sofrera, vendo e ouvindo a queda de Tria e a morte de seus filhos. Escondeu os seus companheiros num vale sombrio, bem como o menino e o seu pai, a quem confiou a guarda dos penares troianos. Nada lhe importava mais. Decidiu retornar cidade, cingir as armas e lanar-se de novo rua, disposto a arrostar todos os perigos. Inicialmente, caminhou para as muralhas e, pela noite dentro, percorreu

novamente o caminho seguido na fuga, rebuscando os vos escuros dos portes. Por toda parte, olhava horrorizado a desolao e o silncio da cidade agonizante. A sua casa, ocupada pelos gregos, era presa das chamas at aos mais altos cumes dos telhados. Aproximou-se do palcio de Pramo e da cidadela. L no templo de Juno, Fnix e Pirro recolhiam e guardavam o botim. De todos os lados chegavam os guerreiros com os tesouros arrebatados aos santurios e ao palcio: pedras, taas de ouro e prata e ricas vestimentas. As crianas e as mes, cativas, esperavam em longa fileira, apavoradas. Apesar do perigo, Eneias chamava por Creusa em alta voz, bradando em vo pela esposa nas sombras escuras. J cansado de percorrer as ruas sem rumo, eis que lhe apareceu frente o fantasma da esposa, maior que a sua figura terrena. Ficou estupefacto, eriaramse-lhe os cabelos e a voz prendeu-se-lhe na garganta. Acalmando-o, passou o esprito a falar-lhe: querido esposo, por que tanto te entregas a essa dor intil? Tais coisas no acontecem revelia dos deuses, nem quer Jpiter que leves Creusa como tua companheira. Esperam-te vastas extenses de mares e um longo exlio. Chegaras a Itlia, que os gregos chamam Hespria, e l, onde o Tibre corre por entre os campos frteis, te espera um novo reino, que fundars, e uma nova esposa. Esquece, pois, tua querida Creusa. Eu, como descendente de Drdano e nora da deusa Vnus, no verei, ao menos, a Grcia, nem servirei de escrava a seus soberbas senhores, pois a grande me assim me resolveu conservar nesta terra. E agora, adeus, e cuida bem do nosso filho.

Deixando Eneias banhado em lgrimas, a viso afastou-se. Trs vezes quis ele abra-la, mas sempre lhe fugia a figura das mos, como acontece nos sonhos. Triste e acabrunhado com a morte de Creusa, Eneias regressou ao lugar onde tinha deixado os companheiros e aos poucos o animo voltou-lhe ao esprito, pois percebeu que muitos outros troianos homens, mulheres e crianas tinham conseguido escapar e reunir-se ao pequeno grupo inicial. Batidos, cansados, rasgados, feridos muitos deles, mas todos ansiosos em acompanh-lo para onde ele os quisesse levar. A noite terminava agora e os primeiros alvores do dia j iluminavam o cume do monte Ida. Dirigiram-se, ento, para as florestas, procura de abrigo, quando j se aproximava a linda aurora. PARTEM OS TROIANOS Depois da queda de Tria e da destruio da c idade pelos gregos, Eneias e os seus companheiros refugiaram-se nas florestas do monte ida e l permaneceram algum tempo. Conformados com a sorte amarga que o destino lhes reservara, resolveram construir uma esquadra de vinte navios e nela partir em busca de nova ptria. No inicio do Vero, j tudo pronto, Anquises mandou levantar ferros e l foram eles, mar fora, velas enfunadas ao vento, lanando um ltimo olhar saudoso s costas da terra amada onde existira Tria. Depois de vrios dias de viagem, aportaram numa regio de vastos campos habitados pelos trcios e que outrora fora dominada pelo belicoso Licurgo. Ais Eneias lana as fundaes duma cidade a que deu o nome de Eneida, comeando a construir-lhe as fortificaes. Certo dia, estava ele na praia, oferecendo sacrifcios a sua me, a deusa Vnus, aos deuses protectores do inicio das coisas e ao prprio Jpiter, o supremo habitante do Olimpo, quando resolveu subir a uma colina prxima, de cume coberto de pequenas moitas. Aproximou-se de uma delas e tentou arrancar da terra um arbusto verde com cujos ramos pretendia cobrir os altares sagrados. Aconteceu ento um prodgio tenebroso, que lhe fez gelar o sangue nas veias. Das razes partidas da rvore

arrancada escorreu sangue negro que empapou a terra, manchando-a com a sua podrido. Transido de pavor, Eneias, tentando explicao para o mistrio, arrancou outro arbusto. Tambm das razes deste escorreu sangue escuro. A sua imaginao trabalhava febrilmente. Invocando as ninfas campestres e o deus Marte para que levantassem o mau pressgio, o troiano agarrou de novo um terceiro arbusto e, apoiando os joelhos na terra, tentou tir-lo do solo. O prodgio dos prodgios! Ouviu-se ento um gemido lacrimoso vindo do fundo de um sepulcro e chegou at ele uma voz que dizia: Eneias, Eneias, porque dilaceras um infeliz? Deixa em paz um morto e no manches as tuas mos com o meu sangue. Sou o teu compatriota, Polidoro, aqui neste lugar por muitas lanas trespassado e morto. Foge destas costas ingratas e cruis! Oprimido de medo, Eneias ficou estupefacto, com os cabelos eriados e a voz presa na garganta. Lembrou-se ento que o infeliz rei Pramo havia mandado

furtivamente aquele jovem, Polidoro, ao rei da Trcia para que o educasse, quando percebeu que a cidadela de Tria no resistiria por muito mais tempo ao assdio dos pregos. Polidoro levara consigo uma grande fortuna para pagar a educao. Entretanto, o traioeiro rei, quando soube que os troianos tinham sido derrotados, passou-se para o lado dos gregos e, depois de mandar assassinar o jovem, apossou-se de todo o ouro que este trouxera. Voltou ento Eneias para junto dos seus companheiros e contou-lhe o prodgio que presenciara, perguntando-lhes sobre o que achavam que deveriam fazer. Todos foram unnimes em partir daquela terra mpia onde o sagrado direito da hospitalidade tinha sido to cruelmente vio lado. Antes, porm, realizaram o funeral de Polidoro. Cavaram uma grande sepultura em volta da qual dispuseram altares em sua honra, enquanto a mulheres choravam, com fitas azuis e negras nas cabeas e os cabelos soltos tudo segundo o costume. Depois de derramarem leite quente e sangue sagrado no sepulcro, fecharam-no, invocando mais uma vez a alma do jovem infortunado.

Ento, mais confiantes em si, fizeram-se aos mares, deixando para tras as terras que tinham comeado a lavrar e a cidade comeada a construir. Delos, bero de Apolo e Diana, era uma ilha que nos tempos idos vagava incessantemente, para l e para c, ao sabor das ondas, entre Giaros e Micon. O deus, agradecido sua terra natal, fixou-a, na entanto, para que fosse venerada e pudesse arrostar os ventos. Para l se dirigiram Eneias e os seus camaradas, entrando com os navios no seu porto seguro. Desembarcaram, a fim de levar ao deus os seus sacrifcios, e foram recebidos pelo rei Anio, que reconheceu o seu velho amigo Anquises. Apertaram-se as mos direitas em sinal de hospitalidade e foram conduzidos ao palcio real. Eneias dirigiu-se ento ao templo de Apolo e l fez uma invocao: Apolo, dai-nos uma morada estvel, a ns que estamos cansados. Queremos uma cidade protectora e fortificada onde possamos criar os nossos filhos. A quem devemos seguir? Para onde nos mandais ir? Onde quereis que construamos as nossas casas? Dai-nos, pai, um pressgio! Mal tinha acabado de falar e tudo comeou a tremer: o portal do templo, os ramos sagrados sobre o altar, a prpria colina onde estavam. Gemiam as trpodes e abriuse o sacrrio. Perante aquilo, Eneias e os seus camaradas rojaram-se ao cho, enquanto Ihes chegava aos ouvidos uma voz: filhos de Dardanios, endurecidos nos combates da vida, a terra donde sairam os vossos antepassados vos receber. Procurai-lhe pois, o solo frtil e l Eneias ser rei e fundar uma nova raa. Grande alegria apossou-se ento dos troianos que tinham ouvido a profecia divina. Indagavam-se, no entanto, em grande confuso, que terras seriam aquelas para onde Apolo os tinha mandado retornar. Depois de pensar profundamente durante algum tempo, disse Anquises, pai de Eneias:

Ouvi, chefes, e tende esperana. Os beros da nossa nao ficam situados no meio do mar, na ilha de Creta, do grande Jpiter e dos montes Ida. H cem grandes cidades naquele reino fertilssimo. De l partiu Teucro, nosso primeiro antepassado directo, aportando s costas de Dardnio e l fundando Tria, que hoje, saqueada pelos gregos, est reduzida a cinzas. L em Creta tambm morava Cibele, a me-montanha dos deuses, muito prendada na arte de curar e na agricultura. Vagando pelos bosques escuros das encostas, tocava as suas flautas e guiava o seu carro puxado por lees domesticados. A seu lado, danavam sacerdotes loucos, os coribantes, cortando a prpria carne com facas enquanto gritavam, uivavam e tocavam os cmbalos em fria alucinada. Vamos, pois, e sigamos para onde nos conduzem as ordens dos deuses. Aplaquemos os ventos e velejemos para Creta, que, se Jpiter nos ajudar, veremos ao terceira dia de viagem. Imolaram um touro a Neptuno, outro a Apolo, uma ovelha preta Tempestade e uma outra, branca, aos Zfiros felizes. Chegou-lhes ento a noticia de que o rei Idomeneu, de Creta, abandonara a ilha, deixando-a deserta, e que as casas, ruas e cidades estavam livres de inimigos e disposio dos rroiar^los Houve um brado de alegria entr os exilados, os quais, auxiliados por vento de popa, logo chegaram ilha Eneias deu imediatamente incio construo de uma cidade, a qu chamou de Prgamo, exortando a sua gente, satisfeita com o nome que Ihe recordava a ptria, a amar os seus lares e a construir uma fortaleza. Passou-se o tempo e floresceu a colnia. A terra era cultivada, os moo felizes casavam-se com as donzelas sorridentes. Eneias promulgava as leis e distribua habitaes e campos entre os seus companheiros. Nova calamidade, no entanto, abateu-se sobre eles. Uma pestilncia mortal, vinda de um ponto obscuro do cu, encheu o ar, atacando as rvores e as searas. As pessoas morriam ou arrastavam os corpos combalidos pelos campos estreis, queimados pelo Sol escorchante. Reinava a fome e a sede. Anquises aconselhou

que se retornasse ao orculo de Apolo, em Delfos, suplicando-lhe perdo e indagando novamente para onde deveriam seguir rumo. Aconteceu, por aqueles dias, que Eneias teve um sonho em que via as imagens sagradas dos deuses domsticos trazidas das runas fumegantes de Tria. A lua cheia, entrando pela janela aberta, iluminava-os e eles dirigiam-lhe a palavra serenando-lhe os animas: O que Apolo te diria em Delfos, ns te diremos aqui, e agora, como seus mensageiros. Ns, que te temos acompanhado nas tuas andanas e luta depois de incendiado Tria; ns, que por ti guiados cruzamos os mares revoltos; ns, teus deuses domsticos, te dizemos agora para partir. Apolo no te aconselhou estes litorais de Creta, mas sim um lugar que os gregos cognominaram de Hespria, terra antiga, famosa pelas armas e pela fecundidade do solo. Foi h muitos anos habitada pelos homens de Entria, mas chama-se agora Itlia, do nome do seu chefe. De l veio Drdano e o pai lsio, donde provem a nossa famlia. l que fundars o teu reino, pois Jpiter te negou os campos de Creta. Agora vai, leva alegre essa mensagem a teu pai e parte para a Itlia, para a cidade de Corinto. Atnito com a viso e a voz dos deuses, Eneias acordou com um suor frio a percorrer-lhe o corpo. Nem lhe parecia sonho, tal a nitidez dos semblantes, dos cabelos e dos corpos. Estendeu as mos para os cus e derramou ricas oferendas sobre o fogo sagrado. Jubiloso e j calmo depois d ter oferecido o sacrifcio aos deuses, dirigiu-se a Anquises e narrou-lhe o facto. Reconheceu seu pai que se tinha enganado, pois que agora se lembrava serem os troianos descendentes de duplo tronco de linhagem. E disse: filho, Cassandra foi a nica pessoa que me contou tais coisas, mas na ocasio no lhe dei ouvidos. Referiu-se tambm Hespria e aos reinos de Itlia. Mas quem acreditaria que os troianos algum dia haveriam de navegar para to longe? E quem acreditaria em Cassandra? Obedeamos a Apolo e sigamos, pois, nosso destino.

Satisfeitos, prepararam-se todos para a partida e abandonaram de novo os seus lares. Alguns troianos ficaram em Creta, enquanto a esquadra se perdia ao longe no horizonte, velas enfunadas ao vento. J no mar alto, sem terra vista, o cu escureceu-se de nuvens e veio a escurido, a chuva e a procela. Os ventos revolviam as guas e ondas gigantescas embatiam nos barcos, alando-os nas alturas e atirando-os para os fundos abismos. As nuvens ocultaram o dia, os relmpagos brilhavam. A frota de Eneias perdeu ento o rumo e errava sem destino no mar negro. O prprio piloto Palinuro declarou que no distinguia mais o dia da noite e que estava perdido. Trs dias e trs noites ficaram assim vagando ao sabor dos ventos na negra cerrao. No quarto dia avistou-se terra, com montes e fumo. Arriando as velas, os marujos lanaram-se aos remos e j os barcos fendiam a espuma branca, varrendo as guas azuladas. As terras que se aproximavam eram duas ilhas do mar Jnio, que os gregos denominavam Esrrfades. L habitavam as Harpias e a sua rainha, a cruel Celeno, depois de expulsas da casa do rei Fineu da Trcia. Como castigo ao ultraje sofrido, os deuses tinham cegado o soberano, que sofrera enormes tormentos nas mos dos malvados seres alados. Aquelas horrendas criaturas tinham rostos de mulher, plidos e famintos, asas, corpo e garras semelhantes s das aves de rapina. Jamais se levantaram das regies infernais monstros mais repulsivos ou ferozes que aqueles. Tudo se estragava ao seu toque imundo e o mau cheiro exalado pelos seus corpos odiosos era insuportvel aos homens. I Logo que entraram no porto, os troianos divisaram alegres rebanhos de bois e cabras pastando pelos campos. A eles se lanaram imediatamente, oferecendo parte das presas em holocausto a Jpiter e aos deuses menores. Preparavam-se para a refeio ali mesmo na praia, dispondo copiosas iguarias na mesa, quando de sbito desceram do cu as horrendas Harpias que, sacudindo as asas e emitindo gritos agudos, roubaram o alimento e tudo mancharam com o seu tacto imundo. Delas elevava-se uma voz sinistra. Logo os companheiros de Eneias procuraram um lugar bem abrigado, numa reentrncia da praia, sob uma rocha cncava e bem cercado de rvores. De novo puseram as mesas e prepararam o fogo dos altares. De pontos obscuros do cu surgem

novamente os monstros alados em grande alarido. Com as unhas retorcidas atacaram as iguarias, sujando-as com a boca. Eneias decide, ento, atacar os seres odiosos e ordena aos seus companheiros que escondam as espadas e os escudos sob as ervas. Advertidos por um sinal de trombeta de Miseno, que ficara num observatrio espreita do terceiro ataque, os troianos acometeram contra as aves. Mas de nada lhes valeram o ferro e o bronze das armas, pois as Harpias, imortais que eram, nada sofriam com os seus golpes. No obstante, fugiram para os cus com um alarido ensurdecedor. Somente a sua rainha, Celeno, pousada numa rocha a certa distancia, permaneceu ali e gritou para os guerreiros: troianos imbecis! Pretendeis, depois de matar os bois e os novilhos que pastavam, trazer-nos tambm a guerra e expulsar-nos de nossa terra? Preparaivos para um mau augrio: o pai omnipotente o predisse a Apolo e este mesmo m transmitiu. Agora eu vos digo: demandai a Itlia e l chegareis, se os bons ventos vos ajudarem. Mas vossa cidade no se firmar antes que vos ataque uma fome cruel, to cruel que sereis obrigados a devorar a madeira das prprias mesas. Esse o castigo da perseguio que nos movestes. Assim dizendo, bateu as asas e voou para o bosque. Grande medo assaltou ento Eneias e os seus companheiros. J no ousavam seno orar e pedir aos deuses perdo, fossem eles entes sublimes ou aves cruis e nojentas. Anquises, com as mos estendidas, invocou na praia as grandes divindades: deuses, proibi estas ameaas! deuses, afastai tal desgraa e sede propicias a vossos filhos. No mesmo instante, soltaram as amarras e fizeram-se ao mar, abandonando aquelas plagas malditas. Com os ventos enfunando as velas, l foram os troianos por sobre as ondas espumantes do risonho mar Jnio, passando ao largo das espessas florestas de Zacinto, Duliquo e Samos e os rochedos de Nrito. direita

apareceu-lhes Itaca, o reino de Laerte. Amaldioaram a terra cruel de Ulisses. Surgiu ento o cume nebuloso do monte Leucates e o templo de Apolo, sendo aquele local temido pelos navegadores. Cansados, demandaram o porto e entraram na pequena cidade. Desceram os ferros, prendendo os navios firmemente ao litoral. Felizes e agradecidos por terem evitado tantas vezes o inimigo grego e conseguido chegar quele local seguro maior sorte do que podiam esperaros troianos dedicaram-se logo aos sacrifcios divinos, imolando vrios touros a Jpiter, acendendo os fogos sagrados nos altares e realizando os ritos habituais. Na praia, os jovens divertiam-se com lutas e jogos, segundo os costumes de Tria. Permaneceram naquela terra durante o Inverno, enquanto os ventos aoitavam as guas geladas. Com a chegada da Primavera, aprestaram-se novamente para partir, enquanto Eneias fixava num pilar do templo um escudo grego, de bronze, conquistado na luta, colocando nele a seguinte inscrio: ENEIAS (CONSAGROU) ESTAS ARMAS (OBTIDAS) AOS GREGOS VITORIOSOS Agarrados aos remos, os troianos fizeram-se ao mar. Logo perderam de vista as cidades altas dos fecios, costearam o litoral do Epiro e, entrando no porto Canio, chegaram elevada cidade de Butroto. Ai, ouviram uma histria fantstica. Diziam que, tendo morrido Pirro, Heleno, filho de Priamo, agraciado pelos deuses com o dom da profecia, reinava em vrias cidades gregas. Segundo a noticia, Pirro tomara Andrmaca, viva de Heitor, para esposa, agora j mulher de Heleno. Fora atravs desse casamento que o filho de Pramo se tornara rei dos gregos. Intrigado com o que lhe contavam, Eneias ardia no desejo de falar ao seu velho amigo Heleno e esclarecer toda a histria. Assim, afastou-se do litoral onde permanecia a esquadra e os companheiros e dirigiu-se cidade. Inesperadamente, porm, aconteceu encontrar Andrmaca num bosque, junto a um pequeno rio artificial, construdo pelos troianos, saudosos da sua ptria, semelhana do seu homnimo, o Simois, que serpenteava alegremente por entre as colinas de Tria, at encontrar o seu irmo, o poderoso Xantos, que desaguava no oceano. Andrmaca realizava os seus ritos funerrios habituais, colocando ddivas sobre o altar e chamando o esprito de Heitor para uma rumba vazia ornada de relva verde.

Longe, l peno da cidade incendiado, jaziam os ossos do heri morto por Aquiles. Ao lado dos dois altares que ladravam o tmulo, ela chorava, de cabea baixa. Ao ver Eneias e reconhecendo-o como troiano, por sua armadura e capacete empenachado, Andrmaca empalideceu e os seus joelhos fraquejaram, caindo desmaiada. Depois de certo tempo, os seus olhos abriram-se novamente e ela murmurou: s tu, nascido da deusa Vnus, homem de carne e osso? Se a suave luz terrena te deixou, Eneias, e no s mais que um esprito, d-me noticias de meu querido esposo Heitor Assim falando, enchia o santurio com o seu pranto e gemidos. Perturbado por ver tanto sofrimento, Eneias respondeu: Estou vivo, verdade, e arrasto a minha vida por entre mil e um perigos. Mas que te reservou o destino, Andrmaca, viva de homem to valoroso? Gozas de grande fortuna? verdade que estas casada com Pirro, o terrvel filho de Aquiles? A isso ela baixou os olhos e respondeu com voz fraca e humilde: Oh! Quo feliz foi aquela donzela, filha de Pramo, morta ao p da sepultura de um inimigo, junto s altas muralhas de Tria, que no foi destinada a ser a esposa cativa de um senhor vitorioso e arrogante. Como foi pior o meu sofrimento! Incendiada Tria, assassinado o meu filho, levada pelos mares longnquos sob o jugo da escravido, tive de suportar o desprezo do descendente de Aquiles, que roubara a vida do meu querido Heitor. Aconteceu que esse jovem soberbo se afeioou a Hermione, filha de Leda e noiva de Orestes, e roubou-a na vspera do casamento. Entregou-me ento a Heleno, filho de Pramo. Assim, eu, uma escrava, casei-me com um escravo. Orestes, no entanto, infamado por grande amor noiva arrebatada e assolada pelas Frias, atacou Pirro desprevenido e matou-o, junto dos altares dos seus ancestrais, com uma punhalada no corao. Pela morte de Pirro, parte de seus reinas passou por herana a Heleno, que a denominou Cania em honra a seu irmo Caone. Aqui fundou ele uma cidade, semelhana de Tria, e uma cidadela elevada, a que chamou Prgamo, em homenagem quela outra, destruda. Mas dize-me, Eneias, que fados te trouxeram aqui? Ou que deus te

conduz s nossas praias sem o saberes? Que feito do menino Ascanio? Ainda vive esse filho a ti dado por Creusa? Tem o menino saudades da me morta? Brilha nele o valor do pai e do tio Heitor? Assim falava Andrmaca, suspirando e chorando, quando chegou Heleno, heri filho de Pramo, acompanhado de grande squito. Reconhecendo os seus patricios, saudou-os alegre e levou-os para o palcio. Ao aproximarem-se da cidade, os recm-chegados estacaram, maravilhados. Ali estava uma pequena Tria e tambm uma Prgamo em tamanho menor. E mais um riacho, a que Heleno chamava de Xantos, e um templo a Apolo. Durante alguns dias os troianos gozaram dos favores da cidade amiga. O rei fazia os impossveis para lhes tornar a vida agradvel e doce. Eneias, ansioso por partir, via o vento que enfunava as velas, mas resolveu primeiro aconselhar-se com Heleno, que tinha o dom da profecia. Perguntou-lhe ento: filho de Tria, intrprete dos deuses, que conheces as vontades de Apolo, que ls nas tripodes, nos ramos de louro, que conheces os astros, o canto das aves, os pressgios do seu voo, vamos, fala. Sabes que os augrios divinos me tm indicado incessantemente que demande a itlia. Diz, pois, qual o nosso destino, que perigos nos esperam e como os poderemos evitar. A Harpia Celeno profetizou-nos uma terrvel fome antes que alcancemos o nosso objectivo. Heleno, depois de imolar alguns novilhos aos deuses, segundo o costume, desatou as fitas da cabea e pediu as bnos do cu. Depois, conduzindo Eneias ao templo, assim respondeu: Eneias, filho de uma deusa! Porque tenho a certeza que os deuses te guiaro pelos mares adentro at s terras da Itlia e do Lcio, contar-te-ei os desgnios dos Cus, para que possas evitar os perigos que te assaltaro na longa viagem. No entanto, preciso primeiro que no te impressiones com a lgubre profecia da Harpia. Em segundo lugar, deixa-me dizer-te que no ests to perto da Itlia quanto pensas. Devers navegar para o ocidente por muitos mares desconhecidos, antes que vejas as costas rochosas que so o teu destino. Mas evita, cauteloso, o

litoral que primeiro avistares, pois so as costas orientais da Itlia, povoadas pelos perversos gregos. L fundaram as suas cidades os locros de Naricia, o rei Idomeneu, que abandonou Creta, e tambm l est a famosa cidade de Filoctetes, chefe de Melibeu e a pequena Petilia, forte nos seus muros altos. De tudo isso rnantm-te afastado, Eneias, e cruza o mar Jnio na direco sul. Veras ento o estreito de Peloro. Em tempos passados, conta a lenda que aquelas massas de terra eram uma s e que num dia de grande catstrofe a terra estremeceu, separando-as e o mar avanou com impero pelo sulco aberto, afias tando as costas da Hespria e da Sidlia. Ao veres a entrada daquele estreite canal afasta-te para o mar largo, para longe das terras e das guas tu, direita. Mantm o rumo esquerda, navegando para o sul ao longo d, costa da Sidlia at o ponto mais meridional da ilha, rodeia-o e faz-te a norte, directo ao teu objectivo. Se tens amor vida, no te aventures pele Peloro, pois l te espreitam grandes perigos. Naquele lugar habitam duas divindades monstruosas. A direita, debaixo do penhasco mais alto, mor: Cila numa caverna submersa. Essa terrvel deusa mantm em torno de si amarrados, um bando de mastins uivantes e verdes como o mar. A part, superior do seu corpo de mulher. Para baixo um horroroso monstro marinho, com ventre de lobo e muitas caudas de delfim, que chicoteiam e se agitam sem cessar. No te atrevas uma vez sequer a olhar o monstro pois est sempre espreita, pronto a arrebatar com as suas vorazes mandbulas os homens do convs. A esquerda, onde uma penedia lisa se al do oceano, mora Carbdis. Trs vezes por dia, aspira ela para o seu vasta ventre as enormes ondas de gua salgada, fazendo girar o mar em torn, em remoinho gigantesco. Qualquer navio que l se aventurar, afundar-se para sempre. Depois de um certo tempo, o monstro volta a cuspir a gu para os ares, como se quisesse molhar os astros. Quando finalmente, depoi de contornares a ponta meridional da Sicilia, te estiveres a aproximar da costas ocidentais da Itlia, avistars a cidade de Cumas, perto da qual esta os lagos do Averno. As suas margens so cobertas de bosques escuros onde as rvores murmuram misteriosamente. L irs consultar uma pro fetisa inspirada que trabalha debaixo de um rochedo cncavo, predizendo os destinos e escrevendo nomes e letras nas folhas. Essa profetisa dispe as folhas de modo regular e ordenado no interior da sua caverna, que fica prxima de uma

colina onde reluz o templo de Apolo. Dizem que o deu lhe confia muitos dos seus segredos. As folhas permanecem imveis e na saem de seus lugares. Porm, se um vento brando, aberta a porta, as agite mistura, a sibila no se preocupa com o seu destino e nem procura, sequei reuni-las. Por isso mesmo, os homens que vo consult-la pouca f pem nos seus conselhos e profecias. No entanto, tu, Eneias, no receies perde algum tempo, mesmo se os teus companheiros te censurarem e os vento prsperos, enchendo as velas com fora, convidem viagem, e vai sem falta visitar a sibila, solicitando-lhe os orculos. E que da, por sua prpria vontade, abra a boca e pronuncie as palavras. Conhecer ento os povos que habitam a Itlia, as lutas que ters de travar e os modos pelos quais poders evitar as desgraas ou suport-las melhor. Bons augrios te dar, se a venerares. Dir-te-ei agora os sinais que te indicaro onde construir uma cidade em terra pacifica. Conserva-os guardados na mente. Certo dia, depois de desembarcares naquela parte da costa ocidental da Itlia conhecida por Lcio linda terra com campos frteis e pastagens exuberantes, por entre as quais corre o suave Tibre chegar a um tranquilo lugar junto a um riacho. Ai vers, sobre a margem arenosa, uma porca, branca, cor de neve, amamentando uma ninhada de porquinhos recm-nascidos, todos tambm brancos, cor de neve. Sobre esse cho levantars as muralhas da tua cidade. Uma ltima advertncia te farei ainda, Eneias! Quando os navios entrarem nos portos estranhos, oferece sacrifcios aos deuses principalmente a Juno segundo o costume, dispondo os altares e cobrindo a cabea com um vu prpura, para que nenhuma figura hostil surja entre os fogos sagrados perturbando os pressgios. Que tu, teus

companheiros, teus filhos e teus netos sigam os ritos e satisfaam a vontade da deusa que tanto odeia a tua raa! isto e mais nada o que te posso dizer, porque mais no me permitem os deuses. Vai, pois, Eneias, e com os teus feitos eleva at aos astros o nome de Tria. Acabada a profecia, Heleno ordenou que fossem levados para os navios presentes riqussimos de ouro e marfim, bem como caldeires de prata. Trouxeram um peitilho de metal com presilhas douradas e um capacete reluzente, com um enorme penacho feito de crina de cavalo. Era a armadura de Pirro. A Anquises, Heleno

ofereceu lindos cavalos. Completou o nmero de remadores e forneceu armas aos seus compatriotas. O vento apresentava-se favorvel e Anquises no queria demorar-se mais. Dirigiuse-lhe, ento, o filho de Pramo e intrprete de Apolo: Anquises, dignificado com a augusta aliana de Vnus, l adiante jaz Lcio, aquela terra rica, esperando por vos, alm do Tibre. No demoreis, que o vento vos propicio e muitos mares tendes por cruzar. Andrmaca tambm veio praia despedir-se, triste com a separao, e trouxe um bonito leno de pescoo para Ascnio. Para ele e para os outros trouxe igualmente vesturios bordados com fios de ouro e tapetes por ela mesma tecidos. Disse ento ao menino: Eu te dou estes presentes, meu filho, para que te recordes do amor de Andrmaca, esposa de Heitor. Aceita-os como ltimas ddivas dos teus parentes, nica imagem ainda viva de meu amado filho, Astianax. Vejo-o nos teus olhos, no teu rosto e nas tuas mos. Se no tivesse morrido, teria agora, aproximadamente, a tua idade um lindo jovem prestes a tornar-se homem. Eneias, pesaroso, afastou-a, dizendo: Para vs, amigos e parentes, j no h trabalhos, pois sois felizes, enquanto ns somos chamados a outras plagas distantes. No mais tendes de cruzar os mares e podeis ficar aqui a admirar estas imagens do Xanto e de Tria que construstes e que os deuses ho-de proteger dos gregos. Se algum dia, favorecidos pela sorte, chegarmos foz do Tibre barrento e levantarmos os muros de uma nova cidade, ento ns l e vs aqui, todos descendentes de Drdano, faremos uma s Tria em esprito. Partiram por fim, avanando pelo mar junto aos campos vizinhos de Cerania, procurando o caminho mais curto para a Itlia. Chegou a noite, entretanto, e acharam um bom local para descansar do esforo daquele dia e ali mesmo, na praia, se entregaram ao reparador sono. No ia a noite avanada quando Palinuro,

o piloto, se levantou do leito e se ps a observar os astros e a escutar os ventos. L estavam a estrela Arturo, as Hades chuvosas, os dois Tries e Orion, no seu fulgor dourado. Deu ento um sinal vibrante. Era a ordem para levantar o acampamento e partir, aproveitando o mar calmo. J ento nascia a aurora, afugentando as estrelas, e logo chegaram costa baixa da Itlia. Acates foi o primeiro a v-la e a anunci-la. Eneias e os seus companheiros saudaram-na, de imediato, com altos bradas. Anquises, revestindo de touros uma grande taa de vinho, ps-se de p na popa e invocou os deuses derramando o lquido no mar: deuses, senhores do mar, da terra e das tempestades, dai-nos uma viagem fcil e fazei os ventos soprarem propcios. A brisa chegou mais forte e logo avistaram o porto e, no alto, o templo de Minerva. Recolheram as velas, guarneceram os remos e aproaram os barcos para o litoral. O porto era curvo e nos rochedos fronteiras estrondeava o mar em branca espuma. A entrada era flanqueado por duas linhas de recifes, uma de cada lado, meio ocultos entre a espuma e as ondas. O templo de Minerva ficava situado numa colina alta, branco e brilhante contra o fundo escuro das rvores. Quando se aproximaram mais um pouco, encobriram-se da vista as altas penedias. Eneias divisou um primeiro pressgio. Eram quatro cavalos, brancos como a neve, que pastavam na relva. Anquises exclamou: Anuncias guerra, terra hospitaleira, pois para a guerra se armam os cavalos. Contudo, s vezes esses mesmos corcis so atrelados aos carros e recebem freios nas bocas. So, nesse caso, augrio de paz. Armados os altares, ofereceram sacrifcios a Minerva, que primeiro os recebera, e tambm a Juno, segundo os conselhos de Heleno. Mas no se demoraram. Logo, depois de orarem aos deuses, deixaram aquelas paragens suspeitas e lanaram-se ao mar, velas paridas ao vento forte. Avistaram o golfo de Tarento, mas nele no penetraram, sempre no rumo sul. Evitaram tambm os perigosos baixos de Cilaceu. Na noite seguinte, viram ao longe, por entre a nvoa, o imenso vulco Etna. Nesse

momento o mar gemia, os rochedos espumavam e as ondas quebravam-se com fria na praia. Bradou ento Anquises: Companheiros, afastai-vos daqui, que estamos fora do rumo. Aquela a afamada rocha de Canbdis. Lembrai-vos do que Heleno nos contou sobre ela. Obedeceram a toda pressa e Palinuro foi o primeiro a voltar para a esquerda a proa do barco que rangia. Com auxlio dos remos e do vento, todos o seguiram. Mas j as ondas os elevavam aos cus e os faziam descer aos abismos do mar. Trs vezes os escolhas soltaram clangor tremendo e trs vezes as guas subiram aos astros. Salvos, mas cansados do Sol e do vento, perderam o rumo, indo ter regio dos Ciclopes. Estes eram uma horrenda raa de gigantes canibais que s tinham um olho, enorme, bem no meio da testa. Eneias e os seus patrcios, no entanto, nada sabiam dos perigos dessa terra terrvel e aproaram os navios para a praia, preparando-se para passar a noite acampados. O ancoradouro era vasto e calmo e dali avistava-se o rugidor Etna. De vez em quando, o vulco atirava aos cus uma nuvem negra, num turbilho de fava e de cinza candente. Voavam bolas de fogo e pedregulhos arrancados das entranhas da montanha. As rochas derretiam-se e fervia o abismo fundo. Dizia a lenda que o corpo de Enclado, meio queimado por um raio de Jpiter, se revolvia eternamente naquela massa fervente, exalando fogo, como se fosse um grande braseiro, com toda a enorme massa do vulco sobre si. Conforme o gigante arfava o peito ou se virava para um lado ou para o outro, toda a Sialia gemia e tremia, enquanto o cu se cobria de nuvens de fumo. Ante aquela viso aterradora, os exilados refugiaram-se nos bosques prximos durante toda a noite, tremendo de pavor a cada novo relmpago e estrondo da montanha poderosa. No dia seguinte, quando se levantava do mar a Aurora dourada, afastando do cu as nuvens chuvosas, eis que subitamente saiu das solvas uma figura desconhecida de homem, extremamente magro, vestido com farrapos, estendendo-lhes

suplicante a mo. Os troianos encararam-no. Apesar da imundcie espantosa e da barba longa do estranho, viram que se tratava de um grego e que provavelmente

tomara parte no assalto e no saque sua querida cidade. Reconhecendo os trajes e as armas troianos, o desconhecido parou, aterrado, mas em seguida atirou-se para a frente precipitadamente, exclamando: troianos, peo-vos, pelos astros, pelos deuses celestes e pela luz que emana dos cus, que me leveis daqui! Conduzi-me a quaisquer paragens! Sou grego, reconheo-o, e confesso que ataquei a majestosa Tria. Se julgardes grande demais o meu crime, atirai-me s ondas como castigo, para que morra. Se tal acontecer, ainda assim ficarei alegre de ter perecido a mos humanas. Assim dizendo, arrojou-se aos ps de Eneias e dos seus, abraando-lhes os joelhos. Exortaram-no ento a que dissesse quem era, de quem descendia e de como os fados o tinham trazido quele lugar. O prprio Anquises deu a mo direita ao jovem e fortificou-lhe o nimo, de modo que o infeliz comeou a contar a sua histria: Sou de fraca, companheiro do infeliz Ulisses, e meu nome Aqumenes. Sou filho de Admasto. Vindos de Tria, paramos aqui para nos refazermos. Eu e os meus companheiros fomos aprisionados pelo rei dos Ciclopes, Polifemo, em sua caverna. Quando os outros escaparam daquela priso tenebrosa, deixaram-me, inadvertidamente, pois eu tinha-me escondido num recesso profundo do escuro antro daquela manso de festins sangrentos. deuses, suo ainda de horror quando penso naquele local e no seu cruel senhor. Sendo embora gigantesco, no fcil de se ver, nem afvel ao trato. Alimenta-se das entranhas e do sangue negro dos infelizes que consegue capturar. Eu mesmo o vi, deitado de costas no centro do covil, a quebrar de encontro s rochas os corpos de dois dos nossos. Prendendo-os na mo enorme comia-lhes os membros, enquanto lhes escorria o sangue escuro e tremiam as carnes ainda quentes, entre os dentes colossais. Mas tal crime no ficou impune e nem Ulisses o permitiria. Assim, quando o monstro, farto com as iguarias e adormecido pelo vinho forte que o esperto taco lhe colocara mo, se entregou a profundo sono, ns, orando aos deuses, vazamos-lhe o nico olho que se esconde sob a sinistra fronte, com um estaca aguda e incandescente. Mas fugi, desgraados, fugi e cortai as amarras dos vossos barcos. To grande quanto Polifemo, que ordenha cem ovelhas a uma

s vez, vagueiam por perto cem outros Ciclopes, nestas praias curvas e nestes montes. Durante estes trs ltimos meses tenho-me arrastado na floresta, por entre as cavernas desertas ou habitadas por feras. De vez em quando subo a uma elevao para olhar de longe os enormes gigantes e estremeo ao som do bater dos seus ps e do estrondear da sua voz. S me tenho alimentado de frutas silvestres, ervas e razes. Numa dessas ocasies avistei esta armada que demandava a costa e resolvi entregar-me a ela, qualquer que fosse a origem. Fugir dos Ciclopes, basta-me. Podeis agora dar-me o destino que quiserdes. Mal tinha o grego acabado de falar, avistaram eles no cume de um monte o prprio pastor Polifemo, movendo entre as ovelhas a sua enorme corpulncia e caminhando na direco da praia. Era horrenda essa viso do monstro disforme e cego. Como basto, usava um pinheiro cortado, para firmar os passas. Atingindo o mar, o Ciclope levou com as mos gua salgada rbita tinta de sangue que Ulisses lhe vazara. Rangiam-lhe os dentes de dor e, embora j tivesse avanado muitos metros mar adentro, as ondas mal Ihe chegavam aos quadris. Apavorados, os troianos lanaram-se fuga, carregando consigo o grego. Levantaram as amarras e, inclinados e quedas nos bancos, davam aos remos sem descanso. Porm, o Ciclope ouviu-os e voltou-se para onde estavam, golpeando o ar e o mar com as mos, sem direco. Encolerizado por no conseguir encontr-los, soltou um berro formidvel, que fez estremecer a gua, a terra e at as prprias cavernas do Etna. O brado chamou a ateno dos outros Ciclopes, que surgiram dos bosques e das montanhas, correndo na direco da costa. Era um grupo horrendo, ali parado, impotente para alcan-los porque no tinha barcos, a agitar o porte gigantesco e a balanar as cabeas de um s olho. O medo fez Eneias e os outros soltar as velas a todo o vento. A pequena esquadra seguiu ao largo da costa siciliana, passando pela ilha de Ordgia e transpondo a pantanosa foz do Heloro, de guas estagnadas. Costearam os altos penhascos de Paquino, o ponto mais meridional da Siclia e, ao longe, surgiu Camerina, com as suas montanhas. J ento os corajosos barcos troianos de alta proa sulcavam o

mar Tirreno, na costa oeste da ilha. Deixaram para trs as palmeiras de Selino e cautelosamente atravessaram os baixios de Lilibeu, perigosos devido aos seus muitos recifes ocultos, chegando s costas ridas de Drpano. Foi ai que aconteceu uma desgraa no prevista por Heleno, nem por Celeno, a rainha das cruis Harpias. Morreu Anquises, o bom pai do heri Eneias e consolo de todas as suas dificuldades. melhor de todos os pais! chorava o troiano. Assim me sois tirado, mas os cuidados e canseiras que tivestes comigo no o foram em vo. Eu, vosso filho, aqui fico para vos prantear e procurar o nosso objectivo de acordo com o vosso sbio conselho. ENEIAS CHEGA A CARTAGO Navegavam os exilados, depois da morte de Anquises, seguindo para o norte, em busca da terra que os vates lhes tinham indicado. At ento, os navegantes tinham sofrido pouca interferncia dos deuses. Mas agora, enquanto sulcavam as ondas, Juno chegou ao mar Tirreno e olhou para baixo, encolerizada. O seu dio pela raa troiana no diminu~ra mesmo com o passar dos anos, e muitas eram as razes para isso. Permanecia-lhe ainda, bem vivo na memria, o julgamento de Pris, decidindo que Vnus era a rainha da beleza, mais linda que ela, Junoe do que Minervae que, portanto, deveria ficar com a ma dourada lanada por ris, a deusa da discrdia, no banquete do Olimpo. Outra causa do dio de Juno aos descendentes de Dardanos era a honra concedida a Ganimedes, lindo jovem filho de Tros, antigo rei de Tria. Uma grande e negra guia, enviada por Jpiter raptara o mancebo e levara-o para o Olimpo onde vivia agora servindo as taas douradas de nctar aos seus habitantes. Suplantara assim a deusa Hebe, filha de Juno, que antes desempenhava aquela funo. Mas havia ainda uma terceira razo, que era a predileco da augusta esposa de Jpiter pela antiga colnia fencia chamada Cartago, situada nas costas da frica do Norte. Juno amava aquela cidade mais do que todas as outras e l guardava o seu

carro e as suas armas. Tivesse ela poder para tanto e Cartago dominaria o mundo, reinando sobre todas as outras naes. Imensamente ricos, bravos e fortes na arte da guerra, os cartagineses eram governados por uma rainha, Dido. Juno ouvira dizer que, um dia, uma raa oriunda do sangue troiano sairia da Itlia e lanaria por terra a cidadela de Dido e que haveria de surgir um povo soberbo na guerra para tal feito. Assim o tinham disposto as Parcas. Temia esse dia e lembrava-se da guerra que empreendera ao lado dos gregos contra a raa amaldioada e tentava, h anos, servindo-se de todo o seu poder, afastar Eneias e os seus companheiros do Lcio, criando toda a espcie de dificuldades, para que no fundassem a nao romana. Disse ento a deusa para consigo: Porque deverei eu desistir desta empresa a que me lancei e evitar que os troianos cheguem Itlia? Porque tanto me perturbam as Parcas? Como pde Minerva incendiar a esquadra dos gregos e faz-los perecer afogados, s porque um homem, jax, filho de Oileu, a ofendeu? Como lhe foi permitido encher o cu de coriscos, dispersar os navios, revolver as ondas com vendavais e arrebatar num turbilho o seu ofensor, espetando-o num rochedo pontiagudo, a exalar chamas do peito varado? E eu, a rainha do Cu, esposa de Jpiter, a mim no me permitem as Parcas destruir os Emanescentes de um povo a quem h tantos anos guerreio! No! Eu, Juno, a rainha dos deuses, no me afastarei dos meus desgnios! E se tal acontecer, quem me adorar no futuro ou depositar oferendas ao p dos meus altares? Revolvendo na mente pensamentos de raiva e de despeito, dirigiu-se Juno a Elias, lugar onde o rei olo refreia os ventos e as tempestades dentro de uma caverna. Ali contidos, eles, indignados, fremem e murmuram no corao da montanha. olo, empunhando um ceptro e sentado num trono elevado, acalma-lhes os animas. Se no o fizesse, decerto sairiam em louca fria, varrendo os ares, os mares, as terras e o prprio cu. E foi por temer isso que Jpiter os aprisionou naquele abismo, debaixo de montanhas, dando-lhes um rei que os contivesse em rdea curta ou os soltasse em fria tempestuosa, conforme Ihe aprouvesse. L Chega ento Juno e assim Ihe fala: olo, que recebeste do pai omnipotente o poder de amansar e encapelar as ondas com o vento, um povo meu inimigo cruza agora o mar Tirreno, na direco da Itlia e em busca do exilio. Imprime fora aos ventos, alaga as popas, dispersa a esquadra e

atira os homens ao mar. Tenho em meu poder catorze ninfas de beleza estonteante, sendo que Deiopia a mais linda de todas elas. Esta eu te darei em casamento e com ela muitos filhos ters, se aquiesceres ao meu pedido. Ao que Ihe respondeu o rei dos ventos: rainha, teus desejos so ordens para mim, pois no por tua graa que aqui estou, soberano deste reino e possuidor deste ceptro? pela tua vontade que desfruto da amizade de Jpiter e participo dos banquetes do Olimpo e por ela que comando os ventos e as tempestades. Assim falando, bateu com o ceptro na rocha oca a seu lado e... O Deuses do Olimpo, quem poder descrever o barulho que se seguiu! Os ventos, ansiosos de liberdade depois de longa recluso, lanaram-se, em imenso turbilho, pela porta que lhes fora aberta. Euro, o Noto e o Africo atiraram-se sobre o oceano ao mesmo tempo, revolvendo-o todo, desde os abismos mais profundos, e arremessando gigantescas ondas sobre os litorais. Assaltada a pequena armada por aquela fria elica, os marinheiros gritavam e o cordarne tinia, enquanto negras nuvens toldavam o Sol e faziam do dia noite. Estrondeavam os cus e coriscavam os relmpagos. Os troianos sentiam a morte iminente. Os seus membros distendiam-se, o seu sangue enregelava-se. Eneias, gemendo, estendeu as mos para os cus e bradou: Mil vezes felizes os que morreram em Tria, junto a seus pais. L esto, nas suas rumbas, o valente Heitor e o aguerrido Sarpedon. Porque no cai tambm, vencido por Diomedes, naqueles campos onde o rio Simois corre sobre tantos escudos e capacetes arrastando os corpos dos guerreiros para o mar? Porque terei eu de receber o mar sem fim como sepultura, onde no serei nem recordado nem venerado? Nesse momento, um terrvel vagalho atingiu-lhe o barco. Partiram-se os remos e o navio, desgovernado, ofereceu o flanco s ondas. Trs embarcaes, impelidas pelo vento, foram atiradas para os escolhas ocultos que os italianos chamavam Altares. Outras trs foram levadas para os bancos de areia e outra, que

transportava Orontes e os seus marinheiros lcios, foi engolfada por uma gigantesca vaga pela popa, redemoinhando e rangendo. E eis o bravo piloto tragado pelo turbilho ante os prprios olhos de Eneias. A tempestade dispersou a esquadra. Boiavam nas guas as armas, o madeirame e os tesouros que tinham trazido de to longe. J tinham sido engolidos pelo mar rugidor os navios de Acates, de Abante e do velho Aletes. Os que restavam tinham as juntas dos costados abertas, metendo gua. Entretanto, sentiu Neptuno, pela agitao do mar e pelo sibilar do vento, que uma tempestade se soltara e que todo o seu reino se revolvia. Irritadssimo, subiu superfcie e elevou a cabea acima das ondas. Deparou logo com a frota de Eneias, toda espalhada, enquanto os troianos, sucumbidos pela fora e fragor dos ventos rugidores, estavam quase no limite da resistncia. Contrariado, percebendo ser aquilo resultado da ira de Juno, chamou a si o Euro e o Zfiro e disse-lhes: Porventura, ventos, apoderou-se de vs tamanho orgulho e arrogncia que ousais misturar o cu e a terra e levantar tamanhas massas de gua sem a minha permisso? Eu vos castigarei. . . m s antes ide ligeiros ao rei olo e dizei-lhe que eu, no ele, sou o senhor dos oceanos e que a mim coube o tridente por sorte. A ele permitido comandar os grandes rochedos, em cujas cavernas permaneceis prisioneiros. E l, somente, reina olo. Dizei-lhe que vos mantenha cativos at que lhe d ordem para vos soltar. Assim falando, Neptuno acalmou o mar e ps em fuga a s guas encapeladas, f z n do surgir nova mente o Sol. Trito, senhor da s ondas, e Cimteo, ninfa do mar, apressaram-se a libertar os navios encalhados nas areias e nos rochedos. Os outros, foi o prprio Neptuno que, com o seu tridente, os soltou da lama. Chicoteando os cavalos, seguiu o grande deus no seu carro por sobre as onda s. Como sucede as vezes quando um populacho irado, a brandir archotes e a atirar pedras, se acalma ao ver um homem honrado e de bom carcter, muito respeitado, que lhe aparece a dizer palavras sensatas, assim tambm desaparecia o fragor do mar, quando o pai Neptuno voava ligeiro pelas cristas marinhas. Mergulhando para o seu palcio no mar Egeu, abriram-se-lhe as ondas frente, e golfinhos e focas brincavam ante os seus cavalos velozes.

Os eneidas, exaustos, procuravam ento o litoral mais prximo onde pudessem aportar. Dirigiram-se para a Lbia, na frica do Norte, e ai encontraram um bom ancoradouro. A entrada era estreita e cercada, de cada lado, por uma linha de recifes que quebrava a fora das vagas. Dentro, a gua era plcida, lisa, confinada por enormes penha sos, cujos cumes possuam espessos bosques escuros. Num dos lados da passagem viram uma caverna cheia de estalactites. Era morada de ninfas, com as suas gua s deliciosas e cristalina s. Embarcaram para a praia, reunindo os sete navios salvos entre os vinte de que a esquadra se compunha. Saudosos da terra, os troianos atiraram-se areia hospitaleira, estendendo os msculos e secando as roupas. Acates acendeu o fogo com uma pederneira, fazendo uma fogueira com folhas e lenha seca, enquanto os outros traziam os sacos de cereal molhados de gua salgada e abriam-nos para faz-los secar. Depois, trituravam-no entre as pedras, para o po. Nesse interim, Eneias subiu a um rochedo e dirigia a vista para o mar, procurando divisar o vulto conhecido de algum navio troiano que tambm tivesse escapado tormenta. Nada viu na direco das guas. Voltou-se para terra e avistou trs bandos de veados a pastar nas proximidades da praia. Agarrando no arco e nas setas conduzidas pelo fiel Acates, fez tombar os trs chefes, de grandes galhadas e cabeas levantadas, pondo em fuga os animais por entre os bosques frondosos. Lanando-se em sua perseguio abateu mais quatro, perfazendo o total de sete, um para cada navio. Depois de suprir os seus patrcios de carne farta e de bom vinho que obtiveram nas costas da Siclia, Eneias, vendo os seus companheiros desanimados, falou-lhes assim: amigos, as nossas provaes tm sido duras. Entretanto, embora as nossas perdas sejam grandes, conseguimos pelo menos salvar-nos. O Pai Celestial nos preservara de outros perigos. Chegastes perto dos rochedos de Cila e do antro de Caribdis, pisastes na terra dos Ciclopes e de tudo conseguistes sair com vida. Levantai, pois, os vossos animas e mandai embora os temores vos. Talvez at um dia vos venha a ser agradvel recordar tais aventuras, cheias de perigos e de situaes variadas, nesta nossa jornada para o Lcio, onde os orculos nos

predizem uma existncia pacifica e feliz. L faremos ressurgir o reino de Tria. Perseverai e conservai-vos para as coisas venturosas. Embora o seu rosto e a sua voz simulassem esperana e coragem, o seu corao comprimira-se de dor e desespero. Preparam-se todos para a refeio, trinchando os veados e assando os pedaos nos espetos. Deitaram-se para restaurar as foras e procuravam aquecer-se com o vinho generoso, sentados em torno das fogueiras e conversando entre o receio da morte e a esperana de v-los novamente sobre os seus companheiros perdidos. Eneias pranteava a sorte do ardente Otontes de Amico, de Lico, do forte Gras e do corajoso Cloanto. Jpiter, olhando, do seu majestoso trono no Olimpo, para o mar, as terras, os litorais e os povos espalhados, fixou a vista no reino da Lbia. Vnus, com os olhos banhados em lgrimas, aproximou-se dele, dizendo: tu, que governas eternamente as coisas no s dos homens m tambm dos deuses e os amedrontas com o teu raio! Que crime tamanho pde o meu Eneias, que coisa horrenda puderam os troianos comete contra ti, que no lhes permites que cheguem s terras da Itlia? No havia prometido que desses remanescentes dos troianos sairia, com o passar do anos, a rasa dos romanos, que seriam dirigentes de outros povos, possui dores do mar e donos da terra toda? Porque mudaste, pai? Sabendo d^( destino glorioso que os esperava, consolava-me eu da triste sorte de Tria incendiado e queimada. Mas a fortuna continua a ser-lhes ingrata. grande rei, quando pors fim a isso? Porque permitiste que os nossos navios fossem destrudos e o meu filho querido e os seus companheiros lanados a uma praia deserta? Porque Ihes destruste tantos barcos e os colocaste [ao afastados na costa italiana? essa a recompensa da virtude? Jpiter, sorrindo para Vnus, com o rosto sereno, beijou-a levemente nos lbios e disse: No tenhas medo, filha, que os destinos dos teus permanecero imutveis. Ele, o grande Eneias, ver as costas do Lacio como prometi, e a sua fama chegar s

estrelas. No outra a minha inteno. Dir-te-ei, pois, revelando-te os segredos do destino, j que tanto te atormentas, que ele far uma grande guerra na Itlia, subjugar os povos ferozes, dar cidades e leis aos homens, fundando uma grande metrpole com muralhas, a que chamar Lavnio, em honra de sua esposa. O pequeno Ascnio, que ento ser chamado fulo, suceder-lhe- no trono e reinar por trinta anos. Mudar a sede da cidade, de Lavnio para Alba Longa, transformando esta numa fortaleza fortssima. Ali dominar a dinastia de Heitor, at que uma rainha sacerdotisa, Reia Slvia, d luz dois gmeos: Rmulo e Remo, filhos de Marte, o deus da guerra, os quais sero amamentados por uma loba. Rmulo continuar a linha dinstica e chamar romanos aos seus descendentes. Para estes no designei um fim do imprio, nem no tempo nem no espao, porquanto sero eternamente reis da terra. Juno, que amedrontada anda fustigando os mares e a terra contra o teu filho, mudar de ideia a respeito dos romanos e ajudar-me- a apoi-los. Os dessa nao de toga sero senhores do mundo. As terras gregas, Micenas, Ftia e Argos gemero sob o seu jugo. Da descendncia troiana nascer um Csar, cujo imprio s a oceano limitar e cuja glria subir aos astros. Seu nome ser Jlio, derivado do grande Iulo, e tu, tranquila, o recebers um dia no cu, carregado com os despojos do Oriente. Estaro ento terminadas as guerras brbaras e as portas da batalha sero cerradas com ferro e assim mantidas com trancas bem ajustadas. O furor mpio, com as suas armas sangrentas afastadas e as mos atadas s costas com cem ns de bronze, bramir impotente com a boca ensanguentada e nojenta. E tudo isso eu o proclamo solenemente, e seja feita a minha vontade. Dito isto, Jpiter enviou Mercrio a Cartago para que se abrissem as terras e as fortalezas da cidade aos troianos, em franca hospitalidade, e para que Dido, ignorando o que o Destino havia previsto, no os expulsasse. Rp