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Publicado em: Deficiência Mental: Abordagem Multidisciplinar Fascículo no. 4, 2005 APAE de São Paulo ENFOQUE GENÉTICO DA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA MENTAL E SUA FAMÍLIA Prof. Dr. Sérgio D.J. Pena GENE – Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG Endereço para correspondência: Dr. Sérgio D.J. Pena GENE - Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais Av. Afonso Pena, 3111, 9º andar. Belo Horizonte, CEP 30130-909 Tel.: 31 – 3284 8000 Fax: 31 – 3227 3792 Email: [email protected]

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Deficiência Mental: Abordagem Multidisciplinar

Fascículo no. 4, 2005

APAE de São Paulo

ENFOQUE GENÉTICO DA CRIANÇA COM DEFICIÊNCIA

MENTAL E SUA FAMÍLIA

Prof. Dr. Sérgio D.J. Pena

GENE – Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais

Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG

Endereço para correspondência:

Dr. Sérgio D.J. Pena

GENE - Núcleo de Genética Médica de Minas Gerais

Av. Afonso Pena, 3111, 9º andar. Belo Horizonte, CEP 30130-909

Tel.: 31 – 3284 8000

Fax: 31 – 3227 3792

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I. INTRODUÇÃO

A Deficiência Mental (DM) é definida pela Organização Mundial de Saúde como um QI inferior a

70. Embora números precisos sejam difíceis de obter, estima-se que ela afete 2-3% das crianças,

sendo leve (QI 50-70) em aproximadamente três quartos dos casos e moderada-grave (QI < 50) nos

25% restantes. Alguns autores questionam o uso do QI como critério único para definir a

deficiência mental. Uma caracterização mais detalhada seria de um déficit importante em dois ou

mais domínios do comportamento neuropsicosocial, cognição, linguagem, sociabilidade, execução

de atividades cotidianas e controle motor. Entende-se aqui por déficit importante uma performance

abaixo de dois desvios padrão abaixo da média para a idade.

Deve ser enfatizado que a deficiência mental não constitui um diagnóstico per se, mas apenas o

resultado final de uma série de processos patológicos com etiologia genética, ambiental ou

multifatorial. A sua heterogeneidade etiológica pode ser ilustrada pelo banco de dados OMIM

(Online Mendelian Inheritance in Man; http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/

query.fcgi?db=OMIM) que lista nada menos de 1280 doenças gênicas humanas associadas com

deficiência mental. E dentro deste número não estão incluídas nem as cromossomopatias nem as

múltiplas causas ambientais de deficiência mental.

A identificação de urna criança com deficiência mental é sempre um evento dramático para a

família. Obviamente, a primeira preocupação do médico e dos pais é com o diagnóstico e

tratamento. Entretanto, a problemática é muito mais complexa. Há de se lidar com a família e seus

sentimentos de culpa, frustração e desespero, suas esperanças e ambições não realizadas, o estigma

da doença e o temor de recorrência em gestações futuras. Assim, a tarefa do médico não é fácil,

pois frequentemente extrapola seu treinamento convencional. Além disso, ele tem de controlar seus

próprios sentimentos e preconceitos para poder dar à família, de forma equilibrada e madura, o

suporte técnico e emocional necessários.

Neste capítulo, tentaremos dar um esquema geral para abordagem da criança com deficiência

mental e de sua família, começando pelo estabelecimento fundamental e indispensável do

diagnóstico preciso, passando pela comunicação com a família e terminando no aconselhamento

genético. Pela limitação de espaço, o tópico não poderá ser tratado com extensão e profundidade

ideais. Entretanto, esperamos que sirva de introdução e motivação para estudos mais aprofundados

em textos especializados.

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II. ABORDAGEM DIAGNÓSTICA

A preocupação primordial do médico perante a criança com deficiência mental deve ser o

estabelecimento de um diagnóstico preciso, o qual é absolutamente essencial para que se possa:

estabelecer um tratamento, estabelecer um prognóstico clinico e de qualidade de vida, orientando

os pais quanto à evolução da doença e eventuais complicações, estabelecer um prognóstico

reprodutivo para a família, com base no risco de ocorrência da mesma ou de outra patologia em

gestações futuras do casal (assim, é feito o aconselhamento genético). Um diagnóstico etiológico

definitivo e convincente da deficiência mental leve só é estabelecido em menos de 30% o dos

casos, o restante permanecendo sob a rubrica de "deficiência mental idiopática". Já nos casos

moderados e graves é possível estabelecer um diagnóstico etiológico em aproximadamente 60%

dos casos.

De uma forma esquemática podemos dividir a abordagem diagnostica em três etapas: coleta de

dados (que inclui a anamnese, o exame físico e os exames complementares), avaliação dos

dados e estabelecimento do diagnóstico definitivo. A primeira preocupação do médico deve ser a

elucidação da época de inicio do problema: pré-natal, perinatal ou pós-natal, lembrando que estas

categorias não são necessariamente mutuamente exclusivas. Uma outra importante preocupação é

determinar se trata-se de uma DM sindrômica ou não-sindrômica, o que vai então orientar o

diagnóstico diferencial.

A. Coleta de dados

1. Anamnese

A anamnese, embora semelhante à realizada nas demais consultas pediátricas deve ser direcionada

para a história do desenvolvimento, história familial, história da gravidez e do parto.

a. A história do desenvolvimento deve esclarecer, além da época de inicio do problema, a

gravidade da deficiência mental e também se ela é de natureza estática ou progressiva. Deve ser

obtida uma história detalhada da idade em que foram atingidos os marcos principais de

desenvolvimento: quando a criança firmou a cabeça, quando sorriu, quando se assentou, quando

engatinhou, quando começou a passar itens de uma mão para outra, quando começou a balbuciar,

quando começou a "estranhar" pessoas de fora da família, quando começou a andar, quando falou

as primeiras palavras, quando começou a colocar palavras juntas, etc. A partir dai podemos

estabelecer a natureza da doença: estática, ou seja, um atraso consistente em alcançar os marcos de

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desenvolvimento; progressiva, isto é, uma gravidade crescente. De especial interesse é a evidência

de perda de habilidades, ou seja, regressão, que é uma das características da síndrome de Rett.

Uma perda crescente de habilidades motoras sugere pode sugerir também a possibilidade de uma

doença neurodegenerativa, principalmente se associada a convulsões (doença de matéria cinzenta)

ou de espasticidade e hiperreflexia (doença de matéria branca). Outras características de

comportamento que devem ser especificamente pesquisadas na anamnese são: comportamento

inapropriadamente alegre, sorriso imotivado, hiperatividade, agressividade, automutilação,

comportamento obstinado (teimosia), ausência ou outros distúrbios da fala (coprolalia, ecolalia, fala

perseverativa), sonolência, apetite exagerado, movimentos inapropriados com as mãos e distúrbios

do sono. Além disso, alguns elementos que devem ser explorados são: história de hipotonia em

qualquer época, dificuldades de alimentação e reações idiossincráticas a determinados alimentos,

episódios de ataxia, episódios de coma, dificuldade auditiva e odores estranhos ou peculiares da

urina ou da própria criança.

b. Na história familiar quatro perguntas são fundamentais:

• Há história de casos similares na família?

• Há história de outras doenças na família?

• Há consangüinidade entre os pais

• A idade do pai ou da mãe é elevada?

A história de casos similares na família alerta para a possibilidade de uma etiologia genética e o

padrão de relacionamento familial dos afetados, estudados no heredograma freqüentemente permite

o estabelecimento do modo de herança. A pesquisa de outras doenças na família é relevante

porque várias doenças genéticas apresentam expressividade variável. Assim, crianças que

aparentemente têm problemas diferentes podem ter a mesma doença genética. Em especial deve ser

investigada a ocorrência de casos adicionais de doença neuropsiquiátrica, de malformações

congênitas e de doenças dermatológicas. Por exemplo, a neurofibromatose tipo 1 pode manifestar-

se como deficiência mental, como macrocefalia, como uma doença dermatológica ou como um

tumor neuroendócrino. Também, alguns casais portadores de translocações cromossômicas

equilibradas podem ter filhos com tipos diferentes de doenças cromossômicas e,

conseqüentemente, com quadros clínicos diferentes que podem envolver deficiência mental e,'ou

malformações congênitas. A consangüinidade entre os pais deve alertar para a possibilidade

especifica de doenças autossômicas recessivas. Enquanto a elevação da idade paterna é vista nos

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casos de mutações autossômicas dominantes, a elevação da idade materna é vista em doenças

cromossômicas, particularmente nas trissomias.

c. A história da gravidez deve ser a mais completa possível. Dois aspectos devem ser explorados

com cuidado:

• Exposição a agentes teratogênicos

• Evolução da gravidez e intercorrências clinicas

A história de exposição a agentes teratogênicos deve ser completa, mas colhida com sensibilidade

para evitar o agravamento de possíveis sentimentos de culpa dos pais. Há uma tendência grande da

família em fixar-se, por vezes neuroticamente, em episódios de ingestão de medicamentos ou

exposição á radiação para tentar explicar o retardo do desenvolvimento, principalmente quando de

início pré-natal e acompanhado de malformações congênitas. Nessa perspectiva, é importante que o

médico exerça o seu julgamento para não valorizar indevidamente elementos de menor

importância. Por exemplo, há boas evidências na literatura de que a ingestão de medicamentos,

como a doxilamina, o ácido acetilsalisílico, a dipirona, os corticosteróides, os antidepressivos

tricíclicos, as anfetaminas, não está associada a um aumento significativo da taxa de problemas

fetais. Igualmente, raios-X diagnósticos, ou seja, com doses fetais inferiores a l0 Rads (p. ex., uma

urografia excretora tem uma dose fetal máxima de 1 Rad) não apresentam risco significativos. Já a

ingestão de talidomida, álcool, anticonvulsivantes dicumarinicos, litio, ácido retinóico e

metotrexato e também o uso de radiação terapêutica têm sido definitivamente associados a defeitos

de desenvolvimento fetal. Quando a criança apresenta malformações múltiplas é importante

explorar a possibilidade da ingestão de teratógenos no período critico de organogênese (18-60 dias

pós-concepção). Já nos casos de deficiência mental não-sindrômica podem estar associados com

exposição no período fetal, no qual ocorrem a proliferação e migração de neurônios para

histogênese do sistema nervoso central.

Na evolução da gravidez é importante saber se houve aceleração ou atraso do crescimento fetal, se

houve ameaças de abortamento e se houve poliidrâninio ou oligoidrâmnio. Determinar o nível de

movimentação fetal é importante, pois a sua diminuição pode sugerir uma patologia neuromuscular.

Todas as intercorrências clinicas devem ser cuidadosamente anotadas, incluindo episódios de

febre alta, doenças infecciosas (especialmente toxoplasmose, rubéola e citomegalovirus), diabetes

gestacional, etc.

d. Na história do parto e período neonatal deve ser especificamente investigado se ocorreram

prematuridade, aspiração de mecônio ou de liquido amniótico, asfixia ou hipoglicemia. As

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apresentações pélvica e transversa estão significativamente associadas com um aumento de

complicações e partos muito rápidos podem estar associados a hemorragias cerebrais. O índice de

Apgar baixo, na ausência de complicações perinatais, sugere uma doença em evolução desde a vida

intra-uterina. Peso, comprimento e perímetro cefálico trazem informações sobre o crescimento pré-

natal, que costuma estar alterado nas síndromes dismórficas, especialmente as cromossômicas. O

status neurológico no período neonatal deve ser escrutinizado, incluindo tônus muscular. postura,

estado de alerta, posicionamento, vigor, movimentação, esforço respiratório, caráter do choro e

sucção.

2. Exame físico

O exame físico da criança com deficiência mental não difere do exame de rotina, exceto na ênfase

posta em obter alguns dados especiais. Nós fazemos rotineiramente as seguintes medidas: peso,

comprimento, envergadura, perímetro cefálico, distâncias intercantais interna e externa,

comprimento das orelhas, perímetro torácico e comprimento da mão e comprimento do dedo

médio. Em adolescentes deve ser estimado o volume testicular (de preferência com o uso do

orquidômetro de Prader). A determinação dos percentis de cada medida é útil para averiguação de

assimetrias e distúrbios de proporção corporal e para quantificação de impressões clinicas. Estas

quantificação é fundamental para estabelecer a presença de microcefalia, hipertelorismo, telecanto,

rizomelia, braquidactilía, etc. No exame dos diversos segmentos e sistemas corporais, o sistema

nervoso central obviamente merece atenção especial.

Terminado o exame físico o médico deve ser capaz de distinguir se há presença de uma deficiência

mental sindrômica ou não-sindrômica. Na primeira, é a constelação de achados no exame físico

que vai permitir o diagnóstico preciso. Assim, devem ser pesquisados os seguintes elementos:

Comportamento: interação com o examinador, incluindo contato ocular, interação com os pais,

interação com o ambiente.

Sistema nervoso: exame completo, com especial atenção para tônus (hipotonia, espasticidade),

reflexos (hiporreflexia, hiporreflexia), respostas a estímulos visuais e auditivos (ausência, resposta

exageradas), paralisias, paresias.

Pele: padrões de pigmentação localizados ou generalizados, especialmente manchas hipocrômicas

(melhor visualizadas com luz ultravioleta de comprimento de onda longo, i.e., lâmpada de Woods)

e hipercrômicas. Todas a manchas devem ser enumeradas e cada uma, especialmente as de

coloração café com leite, devem ter suas dimensões e estabelecida.

Crânio: tamanho, forma, simetria, fontanelas.

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Cabelos: pigmentação, linhas de implantação anterior e posterior, localização do redemoinho.

Face: impressão geral, simetria, paralisias.

Olhos: sobrancelhas, cílios, forma do olho, fendas palpebrais (inclinação, tamanho, distância entre

elas), ptose, coloração da esclera e íris, transparência do cristalino, pupilas, fundo de olho

(indispensável a visualização da papila ocular e da mácula).

Nariz: forma, comprimento, aspecto do dorso, das narinas e do septo.

Boca: forma, aparência dos lábios, fendas, macrostomia, exame dos alvéolos, do palato e língua.

Mandíbula: forma, tamanho e simetria.

Orelhas: localização, rotação, tamanho, anomalias da hélice e anti-hélice, tragus, lobo e conduto

auditivo.

Pescoço: presença de excesso de pele, seios, fistulas, torcicolo.

Tórax: forma, simetria, localização dos mamilos, mamilos acessórios.

Aparelho cardiovascular: pulsos, pressão arterial, ausculta.

Abdome: aparência do umbigo, número de vasos, tônus muscular, integridade da parede,

tumorações, visceromegalias.

Genitália: tamanho, aparência, ambigüidade, aspecto da bolsa escrotal, localização dos testículos.

Ânus: localização e patência.

Dorso: simetria, coluna, fosseta pilonidal

Extremidades: proporções, aparência, limitação de movimentos, presença de redução, desvio,

ausência de segmentos.

Mãos e pés: pregas palmares, dedos, articulações, unhas.

A documentação fotográfica de qualquer criança com anomalias congênitas deve ser rotineira. A

foto servirá como registro das anomalias ("uma figura vale mil palavras"), permitirá a apresentação

do caso a outros médicos e, no caso de morte da criança, será de grande valia como memória, para

o clínico e para os pais.

3. Exames complementares.

Há controvérsia na literatura sobre a melhor estratégia para investigação laboratorial de uma

criança com deficiência mental. Alguns autores favorecem a utilização de uma lista de exames que

devem ser solicitados em todos os casos (exames indispensáveis). Outros autores enfatizam a

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necessidade de avaliar cada paciente individualmente, pedindo exclusivamente os exames que se

julguem necessários naquele caso específico. O problema com esta última conduta é que algumas

das principais síndromes genéticas associadas com deficiência mental, como a síndrome do X-

frágil, apresentam poucas características fenotípicas específicas e não serão diagnosticadas a não

ser que uma rotina de exames seja seguida. Recentemente van Karnebeek e colaboradores (2005)

fizeram uma rigorosa meta-análise de 219 estudos diagnósticos em pacientes com deficiência

mental. Com base em considerações de sensibilidade e custo-beneficio, estes autores identificaram

alguns exames que eles consideraram parte integral da avaliação de toda criança com deficiência

mental e outros exames cuja indicação deve ser especificamente avaliada em cada paciente.

Sugerimos que as recomendações destes autores sejam seguidas e apresentamos abaixo a lista de

exames indispensáveis (que devem ser feitos em todos os casos) e exames importantes (que

devem ser avaliados em cada caso).

a. Estudo cromossômico (cariótipo): Anomalias cromossômicas perfazem um importante grupo

etiológico dentro das deficiências mentais. Uma parte destes resultados é devida à síndrome de

Down, que é a causa genética mais comum de deficiência mental. Entretanto, outras anomalias

numéricas dos cromossomos têm sido encontradas em todos os estudos realizados até agora e

mesmo em crianças com manifestações fenotípicas muito discretas. Assim, um estudo

cromossômico é mandatório em todos os casos de deficiência mental, mesmo na ausência de

dismorfismo. Em geral, as anomalias de numero dos cromossomos sexuais são vistas

primariamente em casos de DM leve, enquanto aberrações de autossomos são mais frequentemente

vistas em pacientes com DM moderada-grave. Preferencialmente os estudos cromossômicos devem

ser feitos em alta resolução (500-600 bandas) para permitir também o diagnóstico de anomalias

estruturais, que são vistas em freqüências menores do que as anormalidades numéricas, mas ainda

em proporções significativas, especialmente na DM moderada-grave.

b. Exames de Citogenética Molecular (pela PCR ou FISH) devem ser solicitados quando se

suspeita de síndromes de genes contíguos ou microdeleções cromossômicas (por exemplo:

síndrome de Prader-Willi, síndrome de Angelman, síndrome Velo-Cárdio-Facial, síndrome de

Willíams, síndrome de Smith-Magenis, etc.). Um caso especial de anomalias estruturais são as

pequenas deleções nas extremidades dos cromossomos (regiões sub-telomérícas) que não são

visíveis a microscopia ótica. O diagnóstico destes rearranjos sub-teloméricos depende então de

técnicas de citogenética molecular (hibridização in situ fluorescente - FISH - ou estudos com

microssatélites) que são ainda bastantes dispendiosas. Por isto, embora alguns estudos mostrem

uma prevalência de 3-7% destas anomalias em crianças com DM moderado-grave, não se pode

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recomendar o uso rotineiro da investigação de deleções subteloméricas, que devem ser

especificamente pesquisadas quando existe suspeita baseada na presença de malformações

associadas.

c. Estudos em DNA: Recomenda-se que a pesquisa molecular da síndrome do X-Frágil deva

ser feita em todos os meninos com DM, independente da gravidade. Esta síndrome, que tem

herança ligada ao X e compreende 2-5% dos meninos com DM, tem características fenotípicas

discretas, principalmente nos primeiros anos de vida. Por outro lado, o diagnóstico é essencial para

poder prevenir outros casos na família. Já existem testes moleculares simples e relativamente

baratos para o diagnóstico da síndrome de X-frágil em meninos baseados na reação em cadeira da

polimerase (PCR) dependente de metilação (ver abaixo).

Algumas portadoras da síndrome de X-frágil apresentam DM, geralmente leve. Os estudos

moleculares de X-frágil em meninas são mais complexos e dispendiosos do que em meninos e

consequentemente devem ser reservados para os casos em que há uma história familial sugestiva da

síndrome. A síndrome de Rett é, após a síndrome de Down, a segunda causa mais freqüente de DM

em meninas. Geralmente a síndrome tem urna história característica de regressão do

desenvolvimento e deve ser pesquisada especificamente nestes casos.

d. Tomografia axial computadorizada ou ressonância nuclear magnética: podem ser solicitadas

para avaliar a presença de anomalias estruturais do sistema nervoso central como causa dos

problemas apresentados pelo paciente ou como um achado que contribuirá para firmar o

diagnóstico definitivo. Estes estudos revelam anormalidades em aproximadamente 30% dos casos,

mas ocasionalmente a detecção da presença destas anormalidades não é determinante no

diagnóstico etiológico. Como esperado, a ressonância nuclear magnética é mais sensível do que a

tomografia axial computadorizada na detecção de alterações anatômicas. Uma desvantagem dos

estudos neuroradiológicos, especialmente a ressonância nuclear magnética, é a necessidade de

imobilização da criança, o que pode ser bastante traumático em alguns casos. Assim, estes exames

devem ser reservados para casos em que haja uma suspeita especifica.

e. Sorologia para infecções congênitas: somente quando houver suspeita clínica de infecções

congênitas.

f. Testes metabólicos ou bioquímicos: não devem ser usados rotineiramente, mas devem ser

solicitados nos casos com suspeita específica de doenças metabólicas. Deve-se pensar em doença

metabólica, quando houver: DM progressiva ou evidência de doença neurodegenerativa,

convulsões, hipotonia grave, catarata, alterações da pigmentação da retina, face grosseira, hepato-

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esplenomegalia, letargia ou coma, vômitos persistentes, odor peculiar, acidose metabólica, testes de

função hepática alterados, hiperbilirrubinemía persistente, hiperamonemia, hipercolesterolemia,

hipoglicemia.

g. Eletroencefalograma: o eletroencefalograma não contribui para o diagnóstico etiológico de uma

criança com DM.

B. As três causas genéticas mais comuns de deficiência mental

l. Síndrome de Down.

A síndrome de Down, causada por trissomia total ou parcial do cromossomo 21, tem uma

incidência aproximada de 1 em cada 600 recém-nascidos. O quadro clínico, bem conhecido, é

caracterizado por dismorfismo craniofacial discreto, que inclui braquicefalia, inclinação

mongolóide das fissuras palpebrais com pregas epicantais, nariz pequeno, orelhas pequenas e

pescoço curto. Há instabilidade atlantoaxial, com luxação (geralmente sub-clínica) em 12-20% dos

casos. As íris apresentam um padrão estrelado (manchas de Brushfield) e há pequenas opacidades

lenticulares em 59% dos casos (cataratas em 30-60% dos adultos). As mãos são pequenas, com

hipoplasia da falange média do 5° dedo (60%), clinodactilia (50%) e prega palmar única (50%).

Nos pés há uma separação aumentada entre o primeiro e o segundo artelhos e um padrão

dermatoglífico aberto na região halucal das solas (50%). Há uma anomalia congênita cardíaca em

40% dos casos, sendo mais específicos os defeitos do coxim endocárdico. Atresia do esôfago ou

duodeno é vista em 12% dos casos. Pacientes masculinos são estéreis, mas as mulheres são férteis.

Os bebês com síndrome de Down são tipicamente hipotônicos, com tendência a manter a boca

aberta e haver protusão da língua.

A deficiência mental é vista em todos os pacientes com síndrome de Down e é geralmente de grau

moderado. Entretanto, deve ser destacado que no passado os pacientes com síndrome de Down

eram socialmente marginalizados e frequentemente institucionalizados, o que certamente contribuía

para um pior ritmo de desenvolvimento e inteligência final. Programas de estimulação precoce e

enriquecimento ambiental têm resultado em um aumento significativo da capacidade intelectual e

da qualidade de vida.

O diagnóstico da síndrome de Down, geralmente feito no berçário, é um evento de enorme impacto

para a família. Os esforços iniciais da equipe médica devem ser sempre no sentido de minimizar o

trauma para os pais e de facilitar a aceitação do bebê (ver abaixo). O envolvimento dos pais com

programas de estimulação precoce deve ser promovido assim que o diagnóstico for feito. Nós

geralmente recomendamos que a estimulação precoce seja feita somente pelos pais nos primeiros 3-

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6 meses de vida, estimulando a formação dos laços afetivos. Após seis meses de idade recomenda-

se acompanhamento por fisioterapeutas e fonoaudiólogos.

A síndrome de Down é causada por trissomia livre do cromossomo 21 em 94% dos casos. Esta

trissomia tem origem preponderantemente na meiose feminina e tende a aumentar com a idade

materna, provavelmente pela supressão de recombinação meiótica em ovócitos mais velhos. A

frequência de recém-nascidos com síndrome de Down é de 1/250 aos 35 anos, 1/100 aos 40 anos e

1/25 aos 45 anos. Aproximadamente 70% das concepções com trissomia 21 terminam em perdas

fetais - apenas 30% chegam ao nascimento.

Em 2% dos casos é observada a presença de uma linhagem celular trissômica conjuntamente com

uma linhagem normal (mosaicismo). Alguns destes pacientes apresentam um quadro clínico mais

leve, o que pode em alguns casos dificultar o diagnóstico. Por isto, é necessário que um estudo

cromossômico seja feito sempre que houver qualquer suspeita diagnóstica da síndrome de Down.

Em aproximadamente 4% dos casos a trissomia é devida a uma translocação cromossômica, que

pode ser familial. Na presença de translocação deve ser feito o estudo cromossômico dos pais e o

aconselhamento genético deve ser adequado á presença ou não de uma translocação balanceada em

um dos pais. Quando um dos pais tem uma translocação balanceada o risco de recorrência é de

2030%. Quando a translocação é de novo, o risco é inferior a 1%.

O risco de recorrência de uma trissomia em gravidezes futuras é de aproximadamente 1%. O

diagnóstico pré-natal (ver abaixo) deve ser sempre oferecido e é instrumental em ajudar os pais a

lidarem com este risco.

2. Síndrome do X-Frágil.

A síndrome do retardo mental associado ao X-frágil é a causa mais comum de deficiência

mental hereditária e, depois da síndrome de Down, a segunda causa genética mais comum de DM

na infância, com uma incidência aproximada de 1 em 1500 em meninos e 1 em 2000 em meninas.

Clinicamente, além do retardo mental nos meninos, a síndrome está associada a um dismorfismo

facial discreto, aumento do tamanho das orelhas e desenvolvimento pós-puberal de

macroorquidismo. Não há dismorfismo nas mulheres afetadas. A grande importância do

reconhecimento clínico e diagnóstico específico da síndrome do X-frágil vem do fato de que

virtualmente todos os casos são hereditários e familiais. O diagnóstico de uma criança com a

síndrome do X-frágil estabelece uma oportunidade valiosa de fazer estudos na família, para

identificar outros afetados e portadoras, e de fazer um aconselhamento genético eficiente levando à

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prevenção de novos casos. Infelizmente, o diagnóstico clínico da síndrome do X-frágil na infância é

difícil por causa da inespecificidade dos sinais clínicos.

A mutação que causa a síndrome do X-frágil é a expansão de um microssatélite com repetições

CGG na região promotora do gene FMR1. Em indivíduos normais, esta região varia de 5 a 42

repetições. Em pacientes com a síndrome do X-frágil, há considerável expansão para mais de 200

repetições. Estas grandes expansões causam metilação da região promotora e conseqüente

repressão do gene FMR1. Expansões na faixa de 42 a 200 repetições são chamadas de pré-

mutações. Uma pré-mutação pode evoluir para uma mutação completa, mas isto só ocorre na

meiose feminina. Uma pequena proporção de pacientes com a síndrome do X-frágil apresenta

mutações na sequência do gene FMR1.

Há basicamente dois tipos de testes laboratoriais que permitem o diagnóstico da síndrome do X-

frágil: testes cromossômicos e testes moleculares. O estudo cromossômico completo com pesquisa

específica adicional de X-frágil tem a vantagem teórica de também permitir o diagnóstico de outras

alterações cromossômicas que podem ser a causa do retardo mental. Entretanto, este teste tem

níveis significativos de resultados falso-positivos e falso-negativos para a síndrome do X-frágil e

hoje foi quase totalmente substituído pelos testes moleculares.

Pesquisas recentes realizadas no GENE - Núcleo de Genética Médica permitiram o

desenvolvimento de novos testes moleculares, baseados na PCR (Reação em Cadeia da

Polimerase), que apresentam sensibilidade e especificidade de virtualmente 100% para diagnóstico

da síndrome do X-frágil em afetados do sexo masculino As grandes vantagens destes testes são

rapidez e baixo custo. Também, como os testes são baseados na PCR, quantidades muito pequenas

de DNA são necessárias, permitindo usar a coleta de esfregaço bucal, fácil e indolor, ao invés da

coleta de sangue. Como dito acima, é nossa opinião estes testes de triagem deveriam ser realizados

em toda criança masculina com retardo mental.

A síndrome do X-frágil tem herança ligada ao X. A mutação completa tem uma penetrância quase

completa em indivíduos masculinos e uma penetrância ao redor de 50% em mulheres. As pré-

mutações não estão associadas com doença clínica. Por causa da natureza progressiva das

expansões do microssatélite (CGG)n praticamente todas as mães de meninos afetados são

portadoras. Assim, em casais que têm um filho com DM, o risco para gravizedes futuras vai variar

com o tamanho da pré-mutação na mãe, de acordo com a tabela abaixo, baseada em Saul e Tarleton

(2005):

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Número de repetições CGG

na mãe

Risco aproximado de que um filho seja afetado com a síndrome do

X-frágil (%)

Risco aproximado de que uma filha seja afetada com a síndrome do

X-frágil (%)

56-59 7% 3,5%

60-69 10% 5%

70-79 29% 15%

80-89 36% 18%

90-99 47% 24%

>100 50% 25%

O diagnóstico pré-natal da síndrome do X-frágil pode ser feito pela determinação molecular do

tamanho da expansão CGG e do estado de metilação de FMR1em vilosidades coriônicas ou em

células de liquido amniótico. Há relatos de irregularidades no padrão de metilação em vilosidades

coriônicas e assim, nos casos em que houver dúvida entre uma pré-mutação e uma expansão

completa, uma amniocentese deve ser sempre feita.

3. Síndrome de Rett

A síndrome de Rett é a segunda causa mais comum de deficiência mental em crianças do sexo

feminino. A doença caracteriza-se por seu caráter progressivo. A maioria das pacientes é normal ao

nascimento e evolui normalmente até os 6-18 meses de vida, quando então ocorre um período de

estagnação do desenvolvimento, seguido de rápida regressão da linguagem e controle motor. A

característica mais marcante da doença é a perda de controle de movimentos volicionais das mãos e

a sua substituição por movimentos automáticos repetitivos e estereotipados. Episódios de gritos e

choro incontrolável são comuns no final do segundo ano de vida. Características adicionais incluem

comportamento autístico, ataques de pânico, bruxismo, apnéia e ou hiperpnéia episódicas, ataxia

da marcha e apraxia, tremores, convulsões (50%) e microcefalia adquirida..

A síndrome de Rett caracteristicamente ocorre isoladamente na família, sendo geralmente causada

por mutações de novo do gene MECP2, localizado no cromossomo X. Estas mutações são

geralmente letais em homens, o que explica o aparecimento quase exclusivo da doença no sexo

feminino. O diagnóstico definitivo depende da identificação de mutações, o que ocorre em 80% dos

casos. O problema é que há uma grande heterogeneidade genética na síndrome de Rett, com mais

70 mutações diferentes já tendo sido descritas. Por isto, de maneira geral, a identificação de uma

mutação depende de testes complexos e sequenciamento do gene, um processo lento e dispendioso.

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Assim, é importante ter uma suspeita clínica forte antes de pedir os testes moleculares e para tal foi

criado um critério de pontuação diagnóstica que facilita a identificação dos casos (Huppke et al.,

2003).

No GENE - Núcleo de Genética Médica decidimos abordar a questão do diagnóstico da Síndrome

de Rett por um ângulo diferente, desenhando um teste molecular mais simples, mais rápido e, bem

menos dispendioso, mas que detecta apenas as dez mutações mais comuns da síndrome de Rett

(cerca de 60% do total). A disponibilidade deste teste permitirá testar pacientes que não tenham

quadros clínicos absolutamente específicos a um baixo custo (C.M.B. Carvalho, W. Camargo e

S.D.J. Pena, manuscrito em preparação). Por exemplo, recentemente nós identificamos uma

mutação de MECP2 em uma paciente que tinha um quadro muito sugestivo de Síndrome de

Angelman. Mutações de MECP2 já foram descritas em pacientes com autismo e também em outros

com deficiência mental isolada.

O risco de recorrência na síndrome de Rett na família é muito baixo. Mesmo assim, nos casos em

que uma mutação de MECP2 foi identificada, deve ser feito o diagnóstico pré-natal em gravidezes

futuras, porque algumas mães fenotipicamente normais apresentam mosaicismo germinativo.

C. Estabelecimento do diagnóstico final.

Recapitulando, deve ser feito um grande esforço para estabelecer um diagnóstico etiológico preciso

em cada criança com DM, já que o mesmo é essencial para orientar o tratamento e permitir o

aconselhamento genético. Recomendamos a seguinte estratégia diagnóstica em todos os casos:

1. Em todas as crianças com DM deve ser obtida uma história clínica detalhada e um exame

físico minucioso deve ser feito, incluindo um exame neuropediátrico completo e uma avaliação

dismorfológica. A anamnese e o exame físico vão estabelecer a época de início do problema e

classificar a deficiência mental como sindrômica ou não-sindrômica, constituindo a melhor

ferramenta clínica para um diagnóstico etiológico preciso e para guiar as investigações

laboratoriais.

2. Em todas a crianças com DM deve ser feito um estudo citogenético com 500-600 bandas,

independente de gravidade, história familial e a presença ou não de dismorfismo.

3. Em todas as crianças com DM do sexo masculino deve ser feito um estudo molecular para

detecção da síndrome do X-frágil. Os estudos citogenéticos para diagnóstico da síndrome dão

resultados falso-positivos e falso-negativos e devem ser sempre que possível substituídos pelos

testes em nível de DNA.

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4. Estudos metabólicos, sorologia para infecções perinatais e estudos neuroradiológicos não devem

ser feitos em todos os casos e devem ser pedidos quando houver indicação com base no exame

clínico.

III. COMUNICAÇÃO COM OS PAIS.

Lamentavelmente, nenhum aspecto da conduta perante a criança com deficiência mental é mais

negligenciado no nosso meio do que a comunicação com pais. Essa comunicação tem como

objetivo promover a aceitação da criança, dar suporte emocional, estimular o entendimento do

problema e prover as coordenadas para decisões racionais e para o planejamento do futuro. A

comunicação com os pais começa com uma fase aguda, logo após a identificação do problema, na

qual o diagnóstico é informado aos pais e as decisões imediatas são tomadas. Segue-se um período

prolongado, no qual o médico vai assistir a família no ajuste psicológico à sua nova realidade.

A. Como dar a noticia aos pais

Não há maneira boa de se contar uma noticia ruim. Mas há muitas maneiras ruins, as quais devem

ser evitadas.

1. Quando contar? Este é o primeiro dilema. Certamente, quando a deficiência mental é

diagnosticada, a notícia deve ser dada o mais cedo possível.

2. A quem contar? De forma ideal, a noticia deve ser dada aos dois pais juntos. O médico nunca

deve pedir ao pai que ele sozinho dê a noticia à mãe, ou vice-versa. E comum que a pessoa reaja

com sentimento de raiva ou rejeição a quem lhe transmitiu uma má noticia.

3. Quem vai contar? Varia de caso para caso. Funciona bem uma estratégia gradual, na qual mais

de uma pessoa dá a noticia. Por exemplo, o pediatra, que geralmente é chegado à família, pode

informar em linhas gerais uma suspeita, indicar que será necessário um acompanhamento mais

cuidadoso e fazer um encaminhamento para um neurologista (nos casos de deficiência mental

isolada) ou um geneticista (nos casos de deficiência mental sindrômica). De qualquer maneira,

devem ser dadas instruções claras a todos auxiliares de saúde no sentido de que toda a informação à

família deverá ser canalizada através de um ou dois médicos.

4. O que contar? Durante a fase inicial, o foco da comunicação com os pais deve ser a criança e a

ênfase deve ser dada em relação a aspectos imediatos da conduta. Por exemplo, nessa altura a

informação poderá ser propositadamente vaga quanto ao prognóstico do desenvolvimento

neuropsicomotor no futuro distante (por exemplo, com relação a escolaridade), com detalhes sendo

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fornecidos apenas para pautar a conduta imediata. Por outro lado, é errado tentar minimizar a

situação, o que só reforça a negação dos pais.

B. Adaptação psicológica dos pais ao diagnóstico.

A adaptação psicológica dos pais á sua nova realidade é um processo lento e doloroso. Durante

toda a gravidez e início de vida foi feito o planejamento de uma criança idealizada como perfeita e

subitamente há uma ruptura entre essa idealização e a realidade. Embora a reação de cada casal seja

diferente, psicólogos têm identificado fases consistentes que antecedem a obtenção do equilíbrio

emocional. Estas fases são: negação ("eu não"), culpa ('`por que eu?"), depressão ("pobre de mim")

e raiva. A passagem bem-sucedida por essas fases é um pré-requisito para a aceitação completa da

criança e para o planejamento racional do futuro. O médico deve aprender a reconhecer, sem

compactuar ou antagonizar, as manifestações das fases e ajudar o casal a vencê-las.

IV. ACONSELHAMENTO GENÉTICO.

A. O processo do aconselhamento genético

Todos os médicos estão envolvidos no processo de fazer o diagnóstico, estabelecer um

prognóstico clínico e, finalmente, chegar a um tratamento para seus pacientes. Quando lidamos

com doenças genéticas, tudo isso é necessário, mas não suficiente, pois o prognóstico genético

passa a ser de importância fundamental. Assim, o foco do médico não pode mais ser somente a

saúde do paciente especifico, sua responsabilidade passa a abranger a família como um todo,

incluindo indivíduos não ainda afetados e mesmo não ainda nascidos. Um casal que tem uma

criança com doença genética e que tem risco alto de recorrência da mesma em uma gestação futura

espera (e tem o direito de) ser informado sobre esses riscos. O processo de identificar e transmitir â

família os riscos genéticos presentes e futuros é o que chamamos de aconselhamento genético. O

aconselhamento genético não constitui um procedimento limitado a geneticistas; grande parte dos

casos de aconselhamento é relativamente simples e pode ser feito pelo próprio pediatra ou

neurologista. Por outro lado, existem situações complexas em que a família deve ser encaminhada a

um especialista e o médico tem de saber identificar essas situações. Na dúvida, o paciente deve ser

encaminhado a um geneticista, pois é melhor o pediatra não fazer o aconselhamento do que

aconselhar erradamente.

B. Cálculo do risco genético

Feito o diagnóstico etiológico preciso pelo exame clínico, propedêutica laboratorial e

heredograma, pode-se calcular o risco genético de recorrência da doença. Nos casos de doenças

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gênicas, o cálculo do risco é simples, na maioria das vezes, já que se baseia na aplicação das regras

mendelianas. Assim, o aconselhamento é relativamente simples nas doenças autossômicas

dominantes, porque existe uma relação 1:1 entre a doença e o gene responsável. Se um dos pais é

afetado, o risco é de 50% para gestações subseqüentes. Se nenhum dos pais é afetado, a doença da

criança provavelmente representa uma mutação nova, e os pais podem ser tranqüilizados de que o

risco para crianças futuras é negligível. Entretanto, diante de uma doença que apresenta

expressividade variável ou não-penetrância, o aconselhamento deve ser mais cauteloso. Nas

doenças autossômicas recessivas presume-se que ambos os pais sejam portadores e o risco para

gestações subseqüentes é de 25%. O aconselhamento nas doenças recessivas ligadas ao X é

simples quando se sabe que há outros casos na família e que a mãe é portadora. Por outro lado, em

casos isolados há a possibilidade de mutações novas e o calculo pode torna-se bastante complexo.

Nesses casos, é sempre prudente pedir a ajuda de um geneticista.

O calculo do risco de recorrência não é difícil na maioria dos casos de doenças cromossômicas. As

cromossomopatias mais comuns são as trissomias, que quase sempre representam fenômenos de

não-disjunção, verdadeiros acidentes genéticos, e assim têm riscos baixos de recorrência, ao redor

de 1-2%. Não há indicação para estudo cromossômico dos pais em casos de trissomias, a não ser

para tranqüilizá-los quando há grande ansiedade. Por outro lado, os pais devem ser sempre

estudados quando a criança tem uma anomalia estrutural dos cromossomos (translocações,

deleções e duplicações). Se um dos pais apresenta o defeito estrutural em forma balanceada, o

risco para gestações futuras será alto, podendo alcançar 30 a 50% e, em casos raros, 100%. Já, se os

cariótipos dos pais são normais, evidencia-se uni rearranjo cromossômico de novo, de ocorrência

acidental e com risco de repetição inferior a 1%. De qualquer maneira, acreditamos que há

indicação para diagnóstico pré-natal (ver adiante) em todas as gestações futuras de casais que

tiveram uma criança com cromossomopatia. Como há uma correlação grande entre

cromossomopatias e abortos, natimortos e mortes neonatais Para fins de aconselhamento genético,

deve ser sempre feito um estudo cromossômico dos pais se há história de mais de uma perda fetal,

ou se houve um natimorto malformado ou morte neonatal sem as investigações apropriadas.

C. Risco empírico

Como mencionamos acima, em mais de 70% dos casos de deficiência mental leve e em 40% dos

casos de deficiência mental moderada-grave não é possível estabelecer um diagnóstico etiológico

preciso. Nestes casos o aconselhamento genético deve ser baseado em riscos empíricos. Os estudos

empíricos mostram que a severidade da deficiência mental afeta significantemente o risco de

recorrência para casais não consangüíneos que têm apenas uma criança afetada sem história

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familiar. O risco de recorrência para DM leve em vários estudos fica ao redor de 20%, sugerindo

que herança mendeliana seja responsável por uma proporção significativa destes casos. Já nos casos

de DM moderada-grave o risco de recorrência parece ser menor, da ordem de 10%. Estes riscos

estão muito diminuídos em casais que já tiveram crianças normais. É interessante notar que o sexo

da criança afetada não influencia muito o risco de recorrência. Também é pouco significativa a

influência da epilepsia, paralisia cerebral, microcefalia e baixa estatura.

Deve ser estressado que o aconselhamento genético não é importante apenas nos casos em que há

um risco palpável de recorrência da doença em gravidezes futuras. Também nos casos em que ó. .

risco de recorrência é negligível o aconselhamento genético é fundamental, pois esta informação

vai ser valiosa para os pais. Assim, é tão importante aconselhar o casal que tem um filho com

síndrome do X-frágil com risco de 25% em gravidezes futuras (ou seja, risco de 50% para filhos

homens) quanto aconselhar um casal que tem uma filha com síndrome de Rett ou com rubéola

congênita, nas quais o risco de recorrência é essencialmente nulo.

Um outro aspecto importante do aconselhamento genético é o "exorcismo" de crenças errôneas.

Muitas vezes o casal acredita erroneamente que a doença da criança é devida a algo que foi feito

(ou deixado de ser feito) na gravidez ou no período perinatal, ou mesmo um "castigo divino" por

algum pecado ou erro do passado. Estas crenças às vezes não são explicitadas voluntariamente e o

aconselhador deve estar alerta para poder identificar sua presença e "exorcizá-la".

D. Comunicação do risco genético

Calculado o risco, este é comunicado à família. Esta é a etapa culminante do processo de

aconselhamento e, paradoxalmente, a menos cientifica; pois estão envolvidas inúmeras variáveis

psicológicas. Por isso, a entrevista deve ser conduzida em um ambiente calmo e sem pressa, já que

todas as dúvidas do casal terão de ser pacientemente explicadas. O médico tem de se conscientizar

de que os conceitos de risco e probabilidades não são claros e riscos numericamente iguais podem

ter significados diferentes. Os riscos devem ser dados sempre no contexto específico da doença

e da família e contrastados com o desejo de outras gestações. Correr um risco de 25% de ter um

filho com uma doença letal no período neonatal, é bem diferente de correr o mesmo risco de 25%

de ter uma criança com doença grave crônica, que pode se estender por décadas. Também, a

maneira de informar os riscos é de importância. Por exemplo, famílias reagem diferentemente se

são apresentados a eles riscos de recorrência numericamente idênticos de 25%, ou 0,25, ou uma

chance em quatro, ou em proporções de um para três. Os pais também podem interpretar

diferentemente o risco de 25% de repetição da doença verso a chance de 75% da próxima criança

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ser normal. Recomendamos que as várias versões sejam explicadas á família para que eles possam

avaliar bem os riscos. Temos de estar conscientes que o próprio conceito de probabilidades e riscos

às vezes não é claro para o leigo.

É, também fundamental que o médico tente ser não-diretivo em seu aconselhamento, deixando que

o casal tome as suas próprias decisões. Afinal de contas, é a família, e não o médico, quem terá de

viver com o resultado dessas decisões.

E. Diagnóstico pré-natal.

O aconselhamento genético informa aos pais os seus riscos reprodutivos, e deixa a cargo deles

a decisão. Essa é uma situação de conflitos e o casal passa a viver uma atmosfera de "roleta

genética". É claro, então, que qualquer procedimento que possa a vir reduzir a incerteza pela

antecipação do conhecimento do genótipo (ou genótipo) se tomará extremamente relevante para o

casal.

Essa possibilidade de antecipação do conhecimento do estado de saúde do feto tornou-se possível

com a introdução das técnicas de diagnóstico pré-natal por amniocentese na 16ª semana de

gravidez e posteriormente da biópsia de vilosidades coriônicas na 12ª semana de gravidez. .

Através do exame laboratorial do liquido amniótico ou das células fetais presentes nele, passou a

ser possível o diagnóstico preciso de um número grande de anomalias cromossômicas, metabólicas

e estruturais do concepto ainda no segundo trimestre de gravidez. Dessa maneira, no caso de um

feto acometido de doença grave, o casal passou a ter opção de interromper a gravidez e evitar o

nascimento de um recém-nascido anormal. A atmosfera de "roleta genética" pode assim ser

neutralizada ou eliminada.

Hoje, outros métodos se incorporaram ao diagnóstico pré-natal, já sendo possível realizá-lo para

centenas de doenças e esse número cresce continuamente. No entanto, ao solicitar o diagnóstico

pré-natal, o médico precisa saber para qual doença o feto apresenta risco elevado. Quando se

suspeita de doenças gênicas (autossômicas dominantes, autossômicas recessivas e ligadas ao X) e

doenças multifatoriais, o diagnóstico é especifico e informa se o feto é acometido ou não por

determinada patologia. Assim, ao pedir o exame, é necessário avaliar conjuntamente o risco da

doença e a disponibilidade do diagnóstico.

V. REFERÊNCIAS E LEITURAS SUGERIDAS

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