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Homepage Conteúdos Contextos África Subsaariana Enquadramento geral Enquadramento Geral Este texto foi originalmente escrito, pelo respetivo coordenador, para a edição impressa como introdução geral ao volume correspondente à área do globo em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. É complementado pelos textos, da mesma autoria, relativos a cada uma das subdivisões geográficas segundo as quais as entradas desse mesmo volume foram agrupadas. Traços comuns do património de origem portuguesa na África Subsaariana Ao contrário do que se verifica no Brasil, no Oriente e nas áreas do Islão, o património de origem portuguesa na África meridional e central constitui um conjunto descontínuo e fragmentado, onde se podem distinguir dois tipos de territorialidade – um formado por dois vastos territórios coesos, continentais, outro composto por vários espaços dispersos, distribuídos ao longo de dois oceanos – e construções de duas grandes épocas – a Moderna e a Contemporânea – quantitativamente dominadas pelo património edificado nos últimos cinquenta anos da dominação colonial. A dimensão contemporânea dominante do património existente imprime ao conjunto características próprias, nomeadamente o aumento de complexidade inerente a territórios de ocupação mais densa, com cidades maiores, mais espraiadas em relação às urbes da Idade Moderna, e conteúdos materiais mais diversificados. Estes aspectos, por sua vez, implicam problemas e cautelas especiais ao analisar os processos históricos referentes a épocas muito recentes. A título exemplificativo, podem citarse os notáveis exemplos de programas urbanísticos contemporâneos, quer entre as grandes cidades, quer no quadro das cidades menores, de Maputo a Lichinga, de Namibe a Lubango. Similares casos ocorrem na arquitetura, com a participação de muitos e qualificados autores “de escola”. São situações inovadoras que coexistem com assinaláveis casos de cidades mais antigas, como Luanda, Benguela, a Ilha de Moçambique, São Tomé, com as suas correlatas arquiteturas. Por outro lado, a predominância do contemporâneo explica que nos encontremos naquilo que podemos designar por uma fase intermédia do conhecimento histórico sobre o património de origem portuguesa da África Subsaariana, ou seja, uma situação de determinação e identificação dos territórios que abrange, no gradual conhecimento dos seus sistemas urbanos e recheios arquiteturais, uma situação de busca, definição e caracterização dos documentos e de muitos dos seus monumentos. Tal situação desaconselha grandes interpretações globais, ou pelo menos exige especial cuidado nesse tipo de abordagem. Entretanto, e uma vez que a investigação original dos estudiosos dos PALOP parece francamente promissora, considerouse importante integrála no quadro deste projeto. A opção de considerar a África Subsaariana uma área autónoma do património de origem portuguesa justificase pelo facto de nela se poderem distinguir características próprias, por comparação com outras áreas de influência portuguesa, como o Brasil ou o Oriente: 1) a duração da ocupação colonial desta área. Iniciada em Quatrocentos, prolongouse, desenvolveuse e firmouse durante o século XIX, até finais do século XX, o que não sucedeu com o Brasil, ou só sucedeu de forma residual no Oriente; 2) a diversidade das topologias de ocupação. Se nos séculos XV e XVI, a ocupação africana desempenhou um papel secundário no contexto do chamado Primeiro Império, com definição sobretudo de entrepostos pontuais e de rota marítima, já nos séculos XVII e XVIII se verificou uma certa penetração nos espaços interiores, seguindo os grandes rios, sobretudo nos casos angolano e moçambicano, com a extensão da colonização nas regiões do Kwanza e do Zambeze, e ao mesmo tempo a gradual ocupação de quase todas as ilhas de Cabo Verde, e a tentativa de reestruturação urbana pombalina na Ilha do Príncipe (> imagem junta, 2001). Finalmente, com a emergência do chamado Terceiro Império, foi encetada e consolidada a definição de vastas áreas territoriais em Angola e Moçambique, concretizada por meio de uma grande série de redes infraestruturais, construções urbanas e consequentes edificações arquitetónicas, que definiram a rede urbana atual dos dois países; 3) a relativa continuidade secular, institucional, políticosocial e cultural conseguida, ao contrário do que sucedeu na América Portuguesa ou no Oriente (MédioArábico, Extremo-Índico) – o que permitiu à propaganda colonial dos séculos XIX e XX, do constitucionalismo ao salazarismo, criar e promover a imagem da chamada África Portuguesa. Duração, Diversidade e Continuidade são, pois, as características que aqui definem a área geográfica e conferem aos vestígios urbanísticos e arquitetónicos de influência portuguesa da África Subsaariana um carácter original. O contexto colonial A duração da intervenção portuguesa ao longo de mais de meio milénio (considerada desde os marcos da ocupação de Cabo Verde, a partir da década de 1460, ou da edificação da feitoria de Arguim, na Mauritânia, a partir de 14551461, até à derradeira presença política, terminada em 1975), explica algumas das diferenças que opõem a África portuguesa a outros impérios coloniais dos vários países europeus nesse continente. Assim, se por um lado a presença colonial lusa se inicia bastante antes e termina depois de todas as outras, por outro apresenta maior diversidade nos tipos de territórios abrangidos – arquipélagos e amplos espaços territoriais, longas faixas costeiras e penetrações em bacias fluviais.

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Enquadramento GeralEste texto foi originalmente escrito, pelo respetivo coordenador, para a edição impressa como introdução geral ao volume correspondente à área doglobo em questão, sendo que foi deixado ao critério de cada um a possibilidade de o ir atualizando. É complementado pelos textos, da mesma autoria,relativos a cada uma das subdivisões geográficas segundo as quais as entradas desse mesmo volume foram agrupadas.

Traços comuns do património de origem portuguesa na África Subsaariana

Ao contrário do que se verifica no Brasil, no Oriente e nas áreas do Islão, o património de origem portuguesa na África meridional e central constitui umconjunto descontínuo e fragmentado, onde se podem distinguir dois tipos de territorialidade – um formado por dois vastos territórios coesos,continentais, outro composto por vários espaços dispersos, distribuídos ao longo de dois oceanos – e construções de duas grandes épocas – a Moderna ea Contemporânea – quantitativamente dominadas pelo património edificado nos últimos cinquenta anos da dominação colonial.

A dimensão contemporânea dominante do património existente imprime ao conjunto características próprias, nomeadamente o aumento decomplexidade inerente a territórios de ocupação mais densa, com cidades maiores, mais espraiadas em relação às urbes da Idade Moderna, e conteúdosmateriais mais diversificados. Estes aspectos, por sua vez, implicam problemas e cautelas especiais ao analisar os processos históricos referentes aépocas muito recentes. A título exemplificativo, podem citar‐se os notáveis exemplos de programas urbanísticos contemporâneos, quer entre as grandescidades, quer no quadro das cidades menores, de Maputo a Lichinga, de Namibe a Lubango. Similares casos ocorrem na arquitetura, com a participaçãode muitos e qualificados autores “de escola”. São situações inovadoras que coexistem com assinaláveis casos de cidades mais antigas, como Luanda,Benguela, a Ilha de Moçambique, São Tomé, com as suas correlatas arquiteturas.

Por outro lado, a predominância do contemporâneo explica que nos encontremos naquilo que podemos designar por uma fase intermédia doconhecimento histórico sobre o património de origem portuguesa da África Subsaariana, ou seja, uma situação de determinação e identificação dosterritórios que abrange, no gradual conhecimento dos seus sistemas urbanos e recheios arquiteturais, uma situação de busca, definição e caracterizaçãodos documentos e de muitos dos seus monumentos. Tal situação desaconselha grandes interpretações globais, ou pelo menos exige especial cuidadonesse tipo de abordagem. Entretanto, e uma vez que a investigação original dos estudiosos dos PALOP parece francamente promissora, considerou‐seimportante integrá‐la no quadro deste projeto.

A opção de considerar a África Subsaariana uma área autónoma do património de origem portuguesa justifica‐se pelo facto de nela se poderemdistinguir características próprias, por comparação com outras áreas de influência portuguesa, como o Brasil ou o Oriente: 1) a duração da ocupaçãocolonial desta área. Iniciada em Quatrocentos, prolongou‐se, desenvolveu‐se e firmou‐se durante o século XIX, até finais do século XX, o que nãosucedeu com o Brasil, ou só sucedeu de forma residual no Oriente; 2) a diversidade das topologias de ocupação. Se nos séculos XV e XVI, a ocupaçãoafricana desempenhou um papel secundário no contexto do chamado Primeiro Império, com definição sobretudo de entrepostos pontuais e de rotamarítima, já nos séculos XVII e XVIII se verificou uma certa penetração nos espaços interiores, seguindo os grandes rios, sobretudo nos casos angolanoe moçambicano, com a extensão da colonização nas regiões do Kwanza e do Zambeze, e ao mesmo tempo a gradual ocupação de quase todas as ilhas deCabo Verde, e a tentativa de reestruturação urbana pombalina na Ilha do Príncipe (> imagem junta, 2001). Finalmente, com a emergência do chamadoTerceiro Império, foi encetada e consolidada a definição de vastas áreas territoriais em Angola e Moçambique, concretizada por meio de uma grandesérie de redes infraestruturais, construções urbanas e consequentes edificações arquitetónicas, que definiram a rede urbana atual dos dois países; 3) arelativa continuidade secular, institucional, político‐social e cultural conseguida, ao contrário do que sucedeu na América Portuguesa ou no Oriente(Médio‐Arábico, Extremo-Índico) – o que permitiu à propaganda colonial dos séculos XIX e XX, do constitucionalismo ao salazarismo, criar e promovera imagem da chamada África Portuguesa.

Duração, Diversidade e Continuidade são, pois, as características que aqui definem a área geográfica e conferem aos vestígios urbanísticos earquitetónicos de influência portuguesa da África Subsaariana um carácter original.

O contexto colonial

A duração da intervenção portuguesa ao longo de mais de meio milénio (considerada desde os marcos da ocupação de Cabo Verde, a partir da década de1460, ou da edificação da feitoria de Arguim, na Mauritânia, a partir de 1455‐1461, até à derradeira presença política, terminada em 1975), explicaalgumas das diferenças que opõem a África portuguesa a outros impérios coloniais dos vários países europeus nesse continente. Assim, se por um lado apresença colonial lusa se inicia bastante antes e termina depois de todas as outras, por outro apresenta maior diversidade nos tipos de territóriosabrangidos – arquipélagos e amplos espaços territoriais, longas faixas costeiras e penetrações em bacias fluviais.

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O processo colonial português foi analisado por muitos autores na sua relação com outras áreas coloniais de matriz europeia. Não podemos deixar dereferir aqueles que orientaram as nossas interpretações, tendo em conta o quadro urbano‐arquitetónico e os espaços territorialmente definidos deleresultantes: Lugar da Cidade Portuguesa (Fernandes, 1987), onde se comparam os sistemas de cidades e espaços urbanos hispânico e português, e OImpério Colonial Português (Boxer, 1969), onde se relevam os contrastes entre as esferas portuguesa e holandesa. Numa perspectiva mais diretamenteafricana, assinalamos os vários trabalhos de René Pélissier sobre a historiografia comparada euro‐afro‐colonial (1981, 2006), sobretudo a que interpretaas experiências lusa, hispânica e francesa. Mais recentemente, os trabalhos do Institut National du Patrimoine/INP (Architecture, 2006), que atualizama informação e os estudos comparados no plano geral da arquitetura colonial de base europeia.

A especificidade portuguesa no quadro político‐social e económico

No seu processo de expansão, os portugueses criaram de facto uma série de estruturas urbano‐arquitetónicas, bem reconhecíveis no seu todo porqueexecutadas no âmbito de uma cultura própria, de raiz europeia meridional, politicamente autoritária e centralista, socialmente hierarquizada, dentro daideologia cristã católica, no prolongamento inicial da sociedade tardo‐medieval, mas aberta à adaptação pragmática, ao entendimento de novaspaisagens, à sua edificação urbana ou proto‐urbana com instrumentos materiais característicos (recurso ao arquétipo classicista da cultura europeia, usodominante dos materiais pétreos, cerâmicos e emprego da madeira como material acessório, decorativo ou estrutural).

Assim, apesar de uma cidade quatrocentista como a Ribeira Grande de Santiago apresentar profundas diferenças com Lobito, criada no dealbar deNovecentos, há muitos aspectos, na implantação, na característica estrutural, no desenho urbano bem como no entendimento da escala da arquitetura,que permanecem reconhecíveis e, assim, de algum modo, invariáveis, ao longo deste tempo tão vasto.

Para se definir o legado material da experiência afro‐portuguesa, temos, em primeiro lugar, de referir a questão das transferências culturais, fenómenoconstante da expansão portuguesa, relacionado com a miscigenação, que não impediu os processos de dominação de classe e respectivos conflitossociais. Depois, o facto de Portugal constituir um pequeno território situado na periferia europeia, dispondo de diminutos recursos e escassa população,e com uma administração longínqua, mas centralizadora. Estas condições intensificaram os processos de convergência etno‐social das comunidades empresença, tornando‐se assim um recurso para resolver as próprias dificuldades estruturais. Assim se criaram comunidades novas, como a cabo‐verdiana,num arquipélago povoado por uma população mestiça maioritária, “inventada” do nada, que constituiu, anos mais tarde, uma base de “exportação” dequadros e técnicos para servir em outras áreas luso‐africanas, como as continentais de Angola e Moçambique. Assim se implantaram populações euro‐africanas assentes em sistemas agro‐comerciais, como aconteceu em algumas bacias fluviais (Kwanza e Zambeze), onde vieram a assegurar o domíniodesses espaços. Assim foi possível, no encontro de culturas raro mas sublime dos micro‐espaços do Ibo ou da Ilha de Moçambique, criar espaçosedificados de grande beleza, resistentes à erosão secular em rara síntese ou coexistência – não isenta de “violência estrutural” – das culturas e etniasafricana, indiana, hindu e islâmica com a europeia.

Mais recentemente, quer na fase oitocentista, quer na época salazarista, as colonizações por comunidades transportadas, com apoio estatal, a partir delocais remotos do Portugal ibérico ou de outras áreas do espaço colonial foram recurso frequente. Vejam‐se os casos de Moçâmedes/Namibe (edificadapor imigrados luso‐brasileiros e algarvios) ou de Sá da Bandeira/Lubango (por madeirenses); ou, nos meados de Novecentos, das colónias agrícolas dosrios Cunene e Limpopo, assentes em famílias das Beiras e de outras regiões agrícolas do Portugal europeu.

Outro aspecto estruturante, no campo político‐social e económico, foi o do comércio de escravos, em que Portugal foi pioneiro e protagonista pelo papelque desempenhou na captura, comércio e exploração de negros entre a África e o Brasil, por um lado, e a África e Índia, por outro. Criou assim umverdadeiro sistema de interface e uma fonte permanente de recursos para alimentar as plantações brasileiras de cana‐de‐açúcar ou para suportar asatividades, possessões e comércio do Oriente, da Índia ao Japão. Sistema esse que se baseava em dois núcleos principais: o Golfo da Guiné e Angola – narelação direta com o Brasil; e Moçambique e área afro‐oriental – na articulação com o Estado da Índia. Tráfico negreiro que se refletiu ainda nas formasiniciais da ocupação lusa. Assim, na fase que perdurou até meados de Oitocentos, o sistema de ocupação insular e territorial destas áreas africanasprivilegiou a criação de espaços de segurança militar para obtenção da “mercadoria” que assentavam nas fortalezas e nos fortes costeiros e fluviais,visando a defesa contra as populações locais e a concorrência europeia, sobretudo holandesa. Espaços militares a que estavam por vezes adstritospequenos núcleos, feitorias, povoados e até cidades, onde o tráfico se realizava: da Mina a Luanda, de Cabo Verde à Ilha de Moçambique. O Forte de SãoJoão Batista de Ajudá, tardio embora, atesta o toque final desta lógica militar‐comercial no golfo guineense.

Os portugueses só a partir de segunda metade do século XIX aderiram à corrente imperialista europeia que criou o sistema colonial moderno, baseadona exploração sistemática dos recursos económicos e na ocupação efetiva, militar e fiscal, do território. Procuraram então criar novas alternativascomerciais e produtivas (abastecimento da navegação comercial a vapor, em Cabo Verde; mercados agrícolas em São Tomé e Príncipe, Angola eMoçambique, com o cacau e o café, o algodão, o chá, etc.), e vieram a conceber as áreas africanas continentais como um todo, numa nova visão darealidade luso‐afro‐colonial que só parcialmente teve êxito. Daí resulta a diversificação gradual dos vários espaços luso‐coloniais, responsável pelosdiversos destinos políticos dos atuais países africanos em função das influências mais ou menos fortes e intensas das culturas e povos locais, ou dadominação colonial vizinha.

Devemos, pois, distinguir as situações seguintes: 1) nos espaços de presença portuguesa rarefeita ou precocemente abandonada (como a Etiópia,Mombaça, Goreia, Mina, e diversas áreas do Golfo da Guiné), os vestígios atuais são restos pontuais, muitas vezes ruínas que, por terem sofrido na suamaioria influências e intervenções mais recentes, misturam elementos portugueses com os de outras culturas; 2) nos espaços com uma longapermanência portuguesa (ilhas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, a Guiné‐Bissau), ou ocupados e estruturados mais recentemente, mas a partir defocos mais antigos (casos de Angola e Moçambique), a influência dos dois grandes blocos de dominação colonial em África nos séculos XIX e XX(inglesa e francesa) provocou uma gradual diferenciação: na Guiné‐Bissau e em Angola, por via da cultura francófona; em Moçambique, por via dainfluência inglesa e sul‐africana, de expressão anglófona; nas ilhas, mercê das características insulares, de modo mais mitigado; 3) em micro‐espaçosligados a culturas ancestrais, anteriores à própria presença portuguesa quatrocentista, as características de articulação com essas expressões ancestrais

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persistem – como é o caso das áreas de antiga colonização islâmica: Guiné‐Bissau, Norte de Moçambi‐ que (Ibo e Ilha > imagem junta, 2001); 4)finalmente, como epifenómeno, existem áreas de influência afro‐portuguesa onde houve como que uma “libertação” da ação lusitana, que, deixando deser conduzida pelos agentes institucionais (Estado, Igreja), foi liderada por atores individuais, os aventureiros, como os “lançados” da costa africana daGuiné, comerciantes e homens de armas que, independentemente da coroa portuguesa, atuavam nessa área seguindo os seus objetivos particulares,sobretudo ao longo dos séculos XVI e XVII; daí procederam, no dealbar do século XIX, os casos extremos de um “regresso” de descendentes afro‐brasileiros às comunidades urbanas islâmicas (em Lagos, Nigéria, ou Porto Novo, no atual Benim), onde os bairros portugueses e as suas mesquitasrevelavam, por meados de Oitocentos, esta espécie de revivescência da cultura de base lusa, por intermédio de comunidades, minoritárias mas ativas, decomerciantes e industriais afro‐brasileiros.

Caracterização da arquitetura e do urbanismo de origem portuguesa numa perspectiva cronológica e espacial

1450‐1820, “comércio e mar”

Implantações, povoados, feitorias e cidades

Nos primeiros três séculos de colonização, a influência portuguesa na África Subsaariana revestiu características idênticas às que tomou na Índia, Brasil,Extremo‐Oriente e Oceania. Seguindo o modelo talassocrático de dominação dos mares e dos pontos de apoio do comércio, as instalações portuguesasprocuraram espaços urbanos costeiros de pequena dimensão, por vezes reduzidos a uma obra forte, outras a uma feitoria, outras ainda a pequenaspovoações que, funcional e simbolicamente, com escassos recursos humanos e financeiros, tinham de desempenhar um papel análogo ao das cidades.

Assim, entre os séculos XV e XVIII desenvolveu‐se no Atlântico e no Índico africanos uma ocupação urbana tradicional dentro do tipo medievo‐renascentista exportado ou aperfeiçoado por Portugal. Eis as suas estruturas fundamentais: 1) urbanismo costeiro, insular, litoral ou continental, ligadoao comércio e às rotas transatlânticas, procurando a boa defesa em singelos postos de reabastecimento distribuídos estrategicamente; 2) cidadessumárias e pequenas povoações, de estruturação interna orgânica, com planos pragmáticos e de definição gradual, baseados na cultura urbana daEuropa mediterrânica medievo‐renascentista; 3) dois sub‐tipos de áreas de ocupação, dentro do modelo referido: a organização territorial ao longo dabordadura das costas continentais (Golfo da Guiné, costa de Angola, etc.); e a presença em sistemas de arquipélagos ou de ilhas mais ou menos costeiras(Cabo Verde, São Tomé e Príncipe). A questão de optar entre uma ocupação continental e a das ilhas não era isenta de complementaridades: por umlado, a presença continental era mais complexa e de difícil manutenção, dada a permanente situação de guerra ou de conflito com os habitantes locais;mas a necessidade de penetrar esses territórios era igualmente forte, pois daí procediam os maiores recursos, humanos, minerais ou vegetais, que sequeria obter. Por outro lado, a presença nas ilhas era mais facilmente defensável, pelo isolamento geográfico e pequena escala, embora os recursosdisponíveis fossem limitados. A relação comercial que unia estes entrepostos formava um sistema de trajetos em linha, apoiado nas comunidades aíinstaladas e assente na perspectiva conjunta de alternância ilhas‐continente. Da Madeira podia‐se seguir para Cabo Verde e para a costa ocidentalafricana, desta para a Guiné e o seu Golfo, e aqui, com o apoio em São Tomé e Príncipe, até Angola; daí partia uma travessia mais longa atéMoçambique, e, pelo seu litoral e pela costa afro‐norte‐oriental, se fazia o “salto” até às Índias. No regresso, repetia‐se a mesma série em sentido inverso,com a variante de ter de se passar pelas ilhas isoladas do Atlântico Sul (Santa Helena, etc.) e pelos Açores, devido às correntes atlânticas.

Este processo de permanente passagem/viagem entre costas e ilhas forjou, com o passar dos séculos, aspectos interessantes: por exemplo, a formaçãodos quadros técnicos, constituídos pelos agentes culturalmente mais preparados para exercer a sua ação no contexto colonial, formação que foialimentada pela miscigenação (Cabo Verde é o principal caso). O conjunto dos cinco arquipélagos da Macaronésia esteve, deste modo, envolvido nacolonização e na urbanização da África Subsaariana: dos Açores à Madeira (sem esquecer as Canárias, que nos séculos XVI e XVII tinham cerca de umquarto da sua população constituída por portugueses), da Madeira a Cabo Verde, e desta a São Tomé, lançando‐se destes arquipélagos as ancoragenscontinentais, adentro da Guiné ou de Angola. Na costa oriental, enquadrada durante séculos no Estado da Índia, a Ilha de Moçambique e, em menorescala, Zanzibar desempenharam um papel análogo de centro de defesa e irradiação para a vizinha terra firme.

Do ponto de vista das estruturas urbanas esta escassa, insular ou litorânea África Portuguesa, de Quatrocentos a Setecentos, incluía principalmente oarquipélago de Cabo Verde, com as cidades antigas de Ribeira Grande (fundada ainda no século XV, e elevada a cidade em 1533) e da Praia (1770), naIlha de Santiago, além de algumas diminutas fixações no Fogo ou na Boa Vista, bem como as povoações de Cacheu (1605) e de Bissau (1766) na Guiné,além das duas cidades de São Tomé e Príncipe – São Tomé, de finais de Quatrocentos, elevada a cidade em 1535, e Santo António do Príncipe, comreforma de desenho setecentista, em cada ilha deste arquipélago bipolar.

Em Angola, os contributos urbanos desta época eram basicamente a mítica São Salvador do Congo/Mbanza Kongo, a capital São Paulo de Assunção deLuanda (1575), alguma ocupação proto‐urbana, a partir de Luanda, ao longo do Rio Kwanza, entre fortalezas e povoados, Benguela (1617) e o NovoRedondo/Sumbe (1761). Em Moçambique pontificavam a Ilha (1509), Sofala (1505), Quelimane (1761) e Inhambane, de 1730, além das penetrações peloZambeze, de Chinde a Tete (1761), ligadas ao estabelecimento dos “prazos” agrícolas e comerciais.

Outra das características das localidades com carác‐ ter urbano desta fase histórica, para além de adotarem o referido modelo de implantação litoral, eraprocurarem baías abrigadas e apresentarem uma estrutura orgânica. É o que se verifica nas cidades de Ribeira Grande e Praia (Cabo Verde), sendo aexpansão posterior da Praia mais geometrizada; Ilha e Sofala (Moçambique), sendo Sofala quase só a sua fortaleza; São Tomé e Santo António (SãoTomé e Príncipe); Luanda (Angola); Cacheu e Bissau (Guiné), sendo que nesta fase a ocupação de Bissau se resumia a uma fortificação e pouco mais.Sublinhe‐se ainda a frequente criação de duas cidades a polarizar a organização do espaço em cada território: ou porque a cidade inicialmente fundadanão funcionou bem (Cabo Verde), ou pela necessidade de ocupação e defesa de cada ilha (São Tomé e Príncipe) ou da longa costa (Ilha de Moçambique eSofala), ou pela crescente expansão territorial (Angola).

As fundações urbanas primevas

Subtropicais e áridas, escassamente povoadas desde a sua descoberta na segunda metade do século XV (cerca de 1460), as dez ilhas de Cabo Verderepresentaram durante séculos uma escala útil nas longas viagens transatlânticas e na articulação com a costa africana. A ocupação urbana quase se

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resumia, até Setecentos, à Ribeira Grande, na Ilha de Santiago, depois substituída pela povoação da Praia. Conhecida hoje como a Cidade Velha deSantiago, constituiu a primeira cidade europeia em África. Desenvolveu‐se a partir do século XV ao longo de uma ribeira escavada entre vales, paraproteção e obtenção de água, num território árido e inóspito, pelo que nunca teve um desenvolvimento seguro e sustentado, acabando por serabandonada a partir do século XVIII, com a transferência da capital para a cidade da Praia.

Embora a maioria das pequenas povoações das restantes ilhas cabo‐verdianas seja de origem relativamente recente – desde fins do século XVIII (SalRei, na Boa Vista) até ao século XX, há alguns povoados mais antigos. É o caso de São Filipe, na Ilha do Fogo, fundado em 1510, com a doaçãomanuelina da capitania da ilha a Fernão Gomes, que se tornou o principal núcleo da ilha.

Sita junto à linha do Equador, a Ilha de São Tomé foi descoberta, segundo a tradição, no dia de São Tomé, em 1470, por João de Santarém e PedroEscobar. Sucessivas doações reais, como donatarias, procuraram dar início à ocupação humana, difícil pelas condições naturais e climáticas, e quecontou com uma variada proveniência de colonos. A povoação principal, fundada em Ana Ambó em 1485, foi transferida para a Baía de Ana Chaves em1493. Nova doação a Fernando de Melo, em 1500, terá permitido o arranque da urbanização do povoado, designado São Tomé, pois em 1504 já haviauma freguesia de Nossa Senhora da Graça. Em 1534 foi criada a diocese de São Tomé (passando a paroquial de Nossa Senhora da Graça a Sé Catedral),com jurisdição sobre as quatro ilhas do Golfo da Guiné (com as ilhas do Príncipe, de Ano Bom e de Fernando Pó) sobre Santa Helena, e sobre toda aÁfrica desde o cabo das Palmas até ao Congo. Neste quadro, São Tomé foi elevada a cidade em 1535. Muito mais modesta, a urbe de Santo António,fundada em 1502 na vizinha Ilha do Príncipe, teve sorte mais adversa, estagnando durante séculos como um micropovoado.

Do outro lado de África, a oriente, os portugueses que tinham dobrado o Cabo da Boa Esperança e definido o caminho marítimo e comercial para a Índiaprocuraram criar, na transição do século XV para o XVI, alguns entrepostos e lugares de controlo comercial e militar. Neste contexto se inseria aocupação da costeira Ilha de Moçambique, a norte do atual país, que desde logo assumiu uma graciosa expressão microurbana. Nesta ilha osportugueses implantaram desde 1502‐1507 um pequeno aglomerado urbano, apoiado por poderosa fortificação, edificada na segunda metade deQuinhentos.

Estas três principais e mais antigas urbes luso‐africanas seguem de perto o modelo de urbe portuguesa do início da Expansão. Sendo de localizaçãoinsular e litoral, procuraram a proximidade de água potável: a Ribeira Grande, como o nome indica, desenvolveu‐se ao longo de uma linha de água doce(mas era apenas uma ribeira de torrente, servida só na época das chuvas), em estrutura perpendicular à baía; São Tomé cresceu em paralelo e abertasobre a ampla baía, virada a norte, para receber as brisas frescas, atravessada a meio por uma ribeira, com água abundante; finalmente, a Ilha deMoçambique, com a micropovoação concentada à volta da praça central, virada a noroeste, utilizava os velhos e sábios modos vernáculos de recolha deágua pluvial (terraços, condutas e cisternas) para resolver a escassez de água.

Para além dos aspectos de implantação, repare‐se na importância que nelas assumiram as instituições e respectivos edifícios que então definiam acentralidade urbana essencial de uma localidade ultramarina: o largo da igreja, em duas delas sé catedral; a praça de armas, com fortificação protetora;o largo da casa do governador, o largo da câmara e o da misericórdia, este com o respectivo hospital, assegurando respectivamente a ação política, cívicae assistencial; a alfândega, garante do controlo comercial; e, para além das habitações ao longo da principal Rua Direita, os núcleos complementares dosconventos, dos mendicantes aos jesuítas. A demonstrar o carácter mais geral deste modelo de implantação, veja‐se a semelhança topológica entre a Ilhade Moçambique e a de Diu, no Guzarate indiano: pela localização ambas ilhas costeiras, pela sua pequena dimensão, pelo relevo suave de quase‐praias,pela estruturação interna que os ocupantes portugueses lhes imprimiram (a “ponta” fortificada, ao lado da urbe europeia, em contexto com os bairrosislâmicos e hindus) e, finalmente, pela expressão arquitetónica comum, que se diz ter sido conseguida pela presença na Ilha de Moçambique dospedreiros de Diu. Pela extrema qualidade estética atingida nas duas situações, constituem um exemplo maior de uma transferência cultural, urbano‐arquitetural, realizada secularmente com pleno êxito.

As fundações urbanas da transição dos séculos XVI‐XVII

Continuando este processo de urbanização como modo de controlar o trânsito marítimo e comercial, outras urbes foram fundadas entre a fase final deQuinhentos e os inícios de Seiscentos – as épocas joanina-sebástica e filipina. Assinalem‐se Luanda, base essencial da dominação de Angola, Benguela,no prosseguimento da ocupação do litoral angolano, a sul de Luanda, e a pequena Cacheu, na atual Guiné‐Bissau. São Paulo de Luanda, como primeira eprincipal povoação criada em 1575‐1576, foi uma cidade concebida com dimensão considerável, desde os seus inícios; teve um amplo desenvolvimentoem Seiscentos e Setecentos, correspondendo claramente a uma fixação característica da urbe portuguesa da expansão.

Segunda cidade em importância histórica, cuja implantação se destinava a assegurar o domínio da área costeira central de Angola, São Filipe deBenguela foi fundada em Seiscentos (em 1617‐1619, por Manuel Cerveira Pereira), frente à Baía de Santo António ou das Vacas. Era um núcleo essencialpara o comércio de escravos, cuja estrutura urbana aproximadamente reticulada e espraiada numa área plana contrastava com a de Luanda. Demencionar ainda, em território da atual Angola, para o interior norte de Luanda, mas pertencendo então ao Reino do Congo, cristianizado a partir doséculo XVI mas mantendo a sua independência, a cidade de São Salvador do Congo, atual Mbanza Congo, que assentou na capital edificada pelo povolocal desde o século XIV; a marca da presença portuguesa traduziu‐se simbolicamente na edificação de uma igreja em 1549, elevada a catedral em 1596.Cacheu situa‐se a noroeste do território da atual Guiné‐Bissau, na margem esquerda do rio homónimo. Foi um porto fundado em 1588, elevado a vilaem 1605, e constituiu a primeira capital do território. A sua estrutura, de pequena dimensão, tem características proto‐urbanas elementares. A economiada área, inicialmente baseada no tráfico de escravos, orientou‐se depois para a agricultura, com o cultivo das leguminosas, o que deu novo alento aoterritório envolvente. Comparando as duas primeiras urbes referidas, podemos verificar o desen‐ volvimento e a aplicação local do tipo de cidade litoralda expansão, sobre a baía – com uma malha mais irregular no caso de Luanda, mercê do relevo local, separando‐se física e morfologicamente a “Alta” da“Baixa”, como sucedia na sede do Governo‐Geral do Brasil, a cidade de São Salvador da Baía – e com uma retícula mais regular, no plaino de Benguela.

Quanto às marcas edificadas resultantes das funções institucionais desempenhadas por estas duas cidades, refiram‐se também, como comuns: apresença da igreja ou Sé, num largo próprio; a fortificação, demolida no século XIX, no caso de Benguela, ou rede de fortificações, no caso de Luanda,dada a sua extensão e importância; do largo do Palácio do Governo e do largo da Câmara, bem como da Alfândega; finalmente, a presença de umconjunto de habitações tradicionais, espraiadas pelas urbes, que davam o carácter residencial às áreas centrais das duas cidades.

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Novas cidades com traça mais geométrica ou reformadas no século XVIII

O tempo pombalino foi época de ampla reforma e tentativa de modernização, que afetou a urbanização dos vários espaços ultramarinos. Assistiu‐se querà criação de novas povoações, quer à reforma, reconstrução e reestruturação de existentes. Podem assinalar‐se, nesta fase: a transferência da capitalcabo‐verdiana para a Praia (1770), a reforma e reconstrução de Santo António do Príncipe (1753), o arranque da urbanização de Bissau, a partir da suafortaleza (1766), a fundação do Novo Redondo (1769, atual Sumbe) em Angola, e, em Moçambique, marcados sobretudo pelas respectivas fortificações,os novos ou reformados povoados de Quelimane (1763) perto da costa, para o interior as vilas de Sena e de Tete (1761), a garantir o controlo territorialao longo do Zambeze, e, mais para sul, a costeira Inhambane (1764). No extremo norte, o Ibo (1763) seguia a estratégia de dominação da linha costeira.Nestes núcleos se pode apreciar uma mudança sensível em relação às fases anteriores: permanecendo embora o sistema de implantação urbano litoral eabrigado em baía (ou nas margens fluviais, no caso dos dois povoados interiores), as nascentes malhas urbanas exibem em geral um modelo de retículamais rigorosa, que nos remete para o tipo de malha geométrica quadriculada característica do período pombalino, patente no Portugal da Lisboareconstruída e de Vila Real de Santo António, ou em outros espaços ultramarinos, como é o caso dos planos contemporâneos para várias cidades novasdo Mato Grosso (Brasil) ou para os planos não cumpridos de reconstrução de Velha Goa ou de edificação de Pangim/Nova Goa no Oriente. De facto, afase pombalina (1750‐1780) prolongada na época seguinte, com D. Maria I, reflete a existência, embora fugaz, de uma visão estratégica global,modernizadora, empreendedora e realista, para as áreas coloniais portuguesas, visão que assentava em processos de urbanização e de edificaçãoarquitetónica.

No continente africano, a atuação pombalina foi norteada por idênticos parâmetros, distribuindo‐se pelas várias frentes geoestratégicas existentes: nasilhas de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, renovando o sistema de gestão político‐administrativa com a decisão de mudança das capitaisrespectivas; em Angola, com o dinâmico Sousa Coutinho a modernizar os equipamentos urbanos (palácio, celeiro público, alfândega), a ensaiar umprocesso de proto‐industrialização (a Fábrica de Ferro em Nova Oeiras), e, sobretudo, a procurar o alargamento territorial com Novo Redondo. EmMoçambique a atuação setecentista foi também impressiva: por um lado, através da autonomização administrativa do território em relação ao Estado daÍndia, pelo estabelecimento de um novo centro governamental na Ilha (1759); por outro, com a penetração para o interior, Zambeze acima, com Sena eTete, fixando uma nova fronteira (que seria essencial, cem anos depois, na determinação dos limites da colónia face aos concorrentes imperialistaseuropeus), e no alargamento do domínio litoral, para norte (com o Ibo), e a caminho do sul, com o reforço/refundação de Quelimane e de Inhambane. Aposterior implantação de Lourenço Marques no extremo sul, já no século XIX, muito deveu a esta política territorial esclarecida.

Caracterizemos então as principais intervenções urbanas. A Vila da Praia de Santa Maria sucedeu à Cidade Velha da Ribeira Grande de Santiago comocentro administrativo principal de Cabo Verde na fase pombalina, já que em 1769‐1770 a capital foi transferida da Ribeira Grande, embora ainda aítivessem permanecido a Câmara, o Cabido e o Tribunal. Em 1833‐1835 foi fundado o respectivo concelho. Também em Cabo Verde, na costa norte deSantiago, emergiu o Tarrafal com uma pequena praça central retangular e igreja a eixo, a topejar duas ruas paralelas, recordando o traçado planeado dedois outros pequenos lugares proto‐urbanos que devem ser mais ou menos contemporâneos: Porto Covo, no Alentejo, e Novo Redondo, em Angola –ambos de fundação pombalina, para além de relembrar a matriz urbana simples, com um largo/praça e duas ruas geometricamente dispostas, dasrepresentações mais antigas conhecidas do povoado da Praia e da Luz/Mindelo.

Santo António do Príncipe deve ter sido reerguida em grande parte também na fase setecentista. Em 1753 um decreto real pombalino elevou SantoAntónio a cidade, sediando aí o governo‐geral das ilhas, devido ao desgoverno de São Tomé. Para tal é abolida a capitania, revertendo a ilha para acoroa, e sendo agraciados os condes da Ilha do Príncipe com o título de condes de Lumiares. A pequena cidade de Santo António, de fundaçãoquinhentista, foi assim transformada em capital das duas ilhas desde meados de Setecentos até 1852, data em que esse estatuto volveu para São Tomé.

Bissau constitui uma urbe de plano relativamente recente e geométrico, desenhado a partir da Fortaleza da Amura. De facto, Bissau nasceu em 1766,com a Fortaleza de São José da Amura (inicialmente de 1696).

Novo Redondo, o atual Sumbe, no Kwanza Sul, teve início na Fortaleza de Gunza‐Cabolo, de 1762, e veio a constituir‐se numa vila em 1769. Relacionadocom o tráfico de escravos, teria cerca de sessenta cubatas em 1846. Plantas mais recentes mostram uma área central com um desenvolvimento viário,possivelmente inicial, segundo um eixo alongado, com dois arruamentos paralelos, a recordar a malha urbana dos pequenos povoados de Tarrafal(Santiago de Cabo Verde) e Porto Covo (Alentejo).

Em Moçambique, Quelimane teve origem numa feitoria quinhentista (1544), desenvolvendo‐se a partir da fase pombalina. Foi elevada a vila em 1763 e asua estrutura urbana apresenta uma retícula, aberta a um litoral abrigado, cuja relativa geometria e características formais e funcionais remetem para agénese no desenvolvimento sete‐oitocentista. Pela forma urbana (uma retícula espraiada, relativamente regular e aberta), e pela sua localização noquadro do território, sensivelmente a meio da linha de costa, recorda a cidade de Benguela, em Angola.

Sena constituiu uma antiga fortificação, nas margens do Rio Zambeze, construída entre 1572 e 1590 para assegurar o caminho comercial para o reino doMonomotapa. Em 1761 recebeu o foral de vila por carta régia. Na região mais interior, Tete teve uma primeira instalação no Forte de São Tiago Maior,construído em 1576 e posteriormente reerguido em 1686 e em Oitocentos. Ponto fulcral da penetração moçambicana para o vale do Zambeze, Tete foi‐seconstituindo como centro administrativo e defensivo local. Foi vila por carta régia em 1761, data em que tinha uma guarnição de cem soldados.Inhambane iniciou‐se com um estabelecimento em 1727‐1730, que teve carta régia em 1761, viu reconhecida a soberania portuguesa em 1763, e foielevada a vila em 1764. Note‐se que o investimento nestes povoados, à parte de Inhambane, se relaciona com a valorização dos espaços de exploraçãoagrária, conhecidos como os Prazos do Zambeze, que se espalhavam por uma vasta área daquela bacia hidrográfica, criados e em desenvolvimento desdeos séculos XVI‐XVII.

Ibo, pequena povoação em ilha costeira no norte de Moçambique, foi elevada à categoria de vila em 1763. Incluía alguns edifícios públicos de relevo: aFortaleza de São João Batista, a Alfândega, a Igreja de Santo António, escolas e a Câmara.

Essa tendência para a utilização de malhas regulares, característica desta época, assume uma dimensão espacial ainda restrita, resumindo‐se na maiorparte dos casos a dois ou três arruamentos paralelos e perpendiculares entre si, e na articulação com uma praça ou largo central. No entanto, o sentido

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genético dessas malhas proto‐urbanas vai adquirir uma dimensão mais ampla e constitutiva, senão mesmo estruturante, destes povoados durante osséculos XIX e XX. Serão os casos da Praia de Santa Maria, de Bissau, de Quelimane, ou de Inhambane. Noutros lugares, que nunca tiveramdesenvolvimento significativo posterior, estes traçados permaneceram assim, como indícios de uma época e da sua ideologia urbana. Será o caso deSanto António do Príncipe, Novo Redondo, Sena e do Ibo.

Outras ilhas do Golfo da Guiné, e as ilhas isoladas do Atlântico Sul

A terminar a análise da urbanização luso‐africana na Idade Moderna, devem ainda mencionar‐se alguns pequenos espaços insulares, onde a presençaportuguesa foi efémera ou não gerou espaços edificados. Embora descobertos pelos portugueses, estes espaços não deram origem a uma efetivaocupação. São como que vestígios do que poderíamos designar por colonizações falhadas, e referem‐se a duas das ilhas do Golfo da Guiné e às ilhasisoladas do Atântico Sul.

A Ilha de Ano Bom, actual Pagalu, situada a sudoeste de São Tomé, terá sido descoberta no primeiro dia do ano de 1471 ou no regresso de uma viagemem 1484. A Ilha de Fernando Pó (depois Macias Nguema/Bioko, com a cidade de Malabo), situada a apenas vinte quilómetros da costa africana, noGolfo da Guiné, e a nordeste da Ilha do Príncipe, foi descoberta em 1471‐1472 e primeiro chamada Ilha Formosa. Habitada por povos agrestes (bantos,guinéus), ficou por largos séculos abandonada. A Ilha de Ano Bom foi concedida em 1503 como donataria a Jorge de Melo, cujos descendentes amantiveram até ao século XVIII, havendo notícia de um forte de origem portuguesa, em Ayene. Em 1744 reentrou na posse da coroa, provinda dosdonatários, por carência do título legítimo de sucessão. Ambas as ilhas funcionaram durante séculos como lugares de abastecimento das frotas, semocupação humana permanente, embora com desmatações e queimadas para permitir a sua exploração e utilização. Em 1778, foram cedidas a Espanhacomo parte dos acordos sobre o Sacramento, na América do Sul. Depois da colonização espanhola dos séculos XIX‐XX, estas duas ilhas, junto com umpequeno território continental (antiga Guiné Espanhola), vieram a constituir um país independente, a Guiné Equatorial.

As ilhas isoladas do Atlântico Sul, ligadas à expansão portuguesa, são três: Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha. Santa Helena e Ascensão ficamsituadas muito para sudoeste de Ano Bom; foram descobertas por João da Nova em 1502, na sequência das ilhas do Golfo da Guiné, e delas ficaramdependentes durante muitos anos. Santa Helena era utilizada como ponto de paragem dos navios que regressavam da Índia, “pelo muito refresco quenela achavam”, na frase elucidativa de João de Barros. É uma ilha montanhosa, de clima atlântico, chuvoso. Em 1513, recebeu os primeiros povoadoresportugueses. A partir do século XVII foi disputada pelos holandeses e ingleses. Passou definitivamente para o domínio inglês em 1673. A capital,Jamestown, foi edificada junto à costa, ao longo de um vale abrigado entre montanhas – a recordar o tipo de instalação da Ribeira Grande de Santiago,ou do Machico na Madeira – e talvez com origem num inicial povoamento português.

A Ilha de Ascensão, embora com foral outorgado por D. João III em 1539, ainda estava por povoar em finais do século XVI. O seu povoamento foiaconselhado em 1591 por Domingos Abreu de Brito, para servir de escala na navegação entre Angola e o Brasil. Quanto à Ilha de Tristão da Cunha, foidescoberta pelo navegador com o mesmo nome, em 1506, e possui cento e quatro quilómetros quadrados de área, com uma montanha de 2.060 metrosde altitude, culminando num vulcão ativo. Passaram ambas para a posse inglesa em 1815, dependendo de Santa Helena.

A arquitetura militar do século XV ao XVIII: as costas fortificadas e as penetrações para os interiores

A arquitetura militar foi utilizada desde os primeiros momentos da expansão portuguesa, nomeadamente nas costas africanas. No dizer de RafaelMoreira, constituiu, sobretudo a partir dos séculos XVI‐XVII, um autêntica “primeira arquitetura internacional e intercontinental”.

O modelo do castelo tardo‐medievo

Prolongando a tradição instaurada na costa magrebina/marroquina a partir da conquista de Ceuta em 1415, a ocupação litoral subsaariana,desenvolvida por volta de 1450‐1460 desde a Mauritânia para sul, e ao longo do Golfo da Guiné, seguiu o modelo inicial do castelo tardo‐medievo, o qualse prolongou pelas primeiras décadas de Quinhentos, atingindo então a costa oriental africana. Tratava‐se de uma concepção anterior à emergência dapirobalística. A fortificação dotava‐se de muros verticais, os quais, na sua versão mais corrente e simples, definiam uma planta sensivelmente quadrada,de modesta dimensão. A sua proteção era assegurada por quatro torreões de planta circular, definindo volumes cilíndricos. Contavam, por vezes, comuma torre interna, isolada, mais elevada.

Assim se ergueram o Forte de Arguim, junto à costa mauritana (1455‐1461), outro na Ilha de Goreia, no atual Senegal, e a Fortaleza de São Jorge daMina (de 1482, no atual Gana), esta num quadro mais complexo, conjugando outras fortificações do Golfo da Guiné (Achém, ou Axim, forte de 1503;Xamã e Acra, no atual Gana; Ugató, no atual Benim) (Moreira, 1989). Assim também, na costa oriental africana, terá sido concebida a quadrangularFortaleza Velha da Ilha de Moçambique (desde 1509), depois embebida, ou inserida, e construtivamente aproveitada, no conjunto monumental quechegou até nós como o Palácio de São Paulo. O mesmo ocorreu com a fortaleza inicial de Sofala (1505), hoje quase totalmente desaparecida, mais a sul.Para norte da Ilha de Moçambique, refira‐se Quíloa (1505‐1512), também com uma base quadrangular muralhada, depois alterada e abaluartada. Omonumento conhecido como Forte Português de Tranovato, perto da costa oriental de Madagáscar, pela datação conhecida (1504‐1535), talvezcorresponda também, nas suas ruínas atualmente referidas, a uma fortificação do mesmo tipo. Finalmente, ainda se pode falar das características destemodelo a propósito da presença portuguesa na Etiópia, com a construção de obras fortes como o castelo do complexo palaciano de Gondar (o chamado“estilo gondariano”). Num quadro mais alargado da expansão portuguesa, esta tipologia militar do castelo tardo‐medievo não foi naturalmente exclusivada área africana (e magrebina), pois aplicou‐se também na Arábia e na Índia. Será o caso das estruturas militares que correspondem à primeira fixaçãoem Baçaim desde 1536, com a chamada Cidadela, depois interiorizada pela vasta muralha seiscentista, a formar um pequeno recinto com formaquadrangular irregular, ou da de Chaul, que desde 1516 apresenta um castelo de construção idêntica à de Baçaim, mas integrada na muralha deenvolvimento posteriormente executada.

O modelo abaluartado e pirobalístico

A fase seguinte, das fortificações da época pirobalística, correspondeu a um modelo com um sistema formal, técnico e de espaços muito diferente, quaseoposto ao do tipo anterior: muralhas baixas e em plano oblíquo, baluartes em ângulo, dotados de orelhões para proteger a resposta de fogo ao

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assaltante. Ao longo da segunda metade do século XVI e até Setecentos, este modelo, gradualmente mais complexo, propagou‐se a todas as fortificaçõesem África, obrigando à reconstrução e/ou adaptação das mais antigas (como em Arguim, abaluartado em 1607 pelo engenheiro Leonardo Turriano, naMina, ou em Quíloa) e inspirando muitas outras, que de raiz obedeciam às novas regras defensivas. Além das praças isoladas, foram especialmenteimportantes as fortificações que protegiam as povoações e cidades já sedimentadas ou em processo de sedimentação, representando, apesar dosconstantes ataques da potências europeias concorrentes, a consolidação dos sistemas de urbanização colonial portuguesa.

Na proximidade dos centros das cidades insulares, litorais e fluviais da África ocidental, podemos assinalar a Fortaleza de São Filipe (na Ribeira Grandede Santiago, Cabo Verde, atribuído o plano a Filipe Terzi, de 1587‐1593); a de São Sebastião em São Tomé, de 1566 (> imagem de 2001), além da de SãoJerónimo, de 1613‐1614, mais elementar; a de São Miguel em Luanda – a mais complexa de todas, reedificada em 1638, refeita em alvenaria em 1669‐1670, ampliada em 1768, e articulada com os fortes de São Pedro da Barra, de 1630 e de 1780, e de São Francisco do Penedo, de 1639, 1766 e 1795 (esta adata do portal de entrada).

Na costa oriental, destaque‐se a portentosa Fortaleza de São Sebastião da Ilha de Moçambique, obra possivelmente de Miguel de Arruda, com projeto decerca de 1546, seguindo as regras da arquitetura militar pirobalística por Benedetto de Ravena, com obras de 1558 a 1583. Esta fortaleza articulava‐secom um sistema de dois pequenos fortes, o de Santo António, costeiro, a meio da ilha, e o de São Lourenço, obra poligonal simples, assente numa ilhotano sudoeste da ilha, edificado em 1695‐1714. Um pouco mais a norte, em Mombaça, no litoral do atual Quénia, possui a ilha costeira homónima o Fortede Jesus, português, edificado em 1593, para proteger o porto local, com projeto por Giovanni Battista Cairati. O modelo aplicado nestas instalações,que, por ser mais sofisticado e complexo, foi muitas vezes concebido e executado por engenheiros militares de origem ou formação italiana, dondeprovinha o aperfeiçoamento do novo modo castrense, foi em geral de tipo simplificado. Essa é a razão pela qual na maior parte dos casos se manteveuma planta próxima do modelo tardo‐medievo (exceto para a complexa obra de São Miguel, em Luanda): ou seja, uma forma aproximadamentequadrangular, com quatro baluartes nos ângulos.

Desde fins de Seiscentos até à época napoleónica desenvolveu‐se uma fase de fortificação mais tardia, mas manteve‐se o modelo quadrangular referido.De referir aqui o Forte de São Filipe em Benguela, de 1661, que defendia a cidade junto à sua praia. Outros exemplos são a Fortaleza de São José deAmura, obra fundadora da forma urbana de Bissau (inicialmente de 1696, alterada em 1766, reconstruída em 1858), e o menos conhecido, masinteressante, Forte da Ponta da Mina, que protegia Santo António, na Ilha do Príncipe.

Devem ainda referir‐se, a terminar, algumas pequenas instalações fortificadas, de dimensão modesta, mas com alguma importância estratégica, enormalmente tardias: no Golfo da Guiné, em São João Batista de Ajudá, um pequeno forte, de torre circular e muralha quadrangular envolvente, de1720, depois sucessivamente refeito, e ainda existente, numa quase regressão ao passado, munido com torreões de base circular nos quatro cantos; oForte de Cacheu, inicialmente de 1588, reconstruído em 1650, e mais tarde refeito, do qual ignoramos a exata forma original; e o Forte do EspíritoSanto, no presídio de Lourenço Marques, originário do século XVIII, mas depois reconstruído e muito alterado. Estas três instalações correspondem,porém, mais a recintos murados do que propriamente a fortificações sólidas e bem apetrechadas.

Não referimos aqui todas as fortificações realizadas, mas deve como regra entender‐se que constituíam um sistema defensivo quase obrigatório emtodas as povoações criadas, mesmo as mais pequenas, como o Ibo, no extremo norte de Moçambique, e até mesmo na ocupação dos territórios para ointerior. É esse o caso das fortificações que acompanharam a penetração ao longo das grandes bacias fluviais, a do Kwanza, em Angola, e a do Zambeze,em Moçambique. Já se mencionaram Sofala, Sena e Tete, mas ao longo do Rio Kwanza podem assinalar‐se também uma série de fortificações, queconstituem um autêntico conjunto territorial. Destaquemos: Muxima, “guardião altaneiro do Rio Quanza”, no dizer de Fernando Batalha, iniciou‐se comuma fortaleza em 1577, depois reconstruída em 1655, formando conjunto com o pequeno povoado no seu sopé; Cambambe, que foi presídio militar em1602, com povoação em 1604, teve a fortaleza reedificada em 1691, depois foi sede de concelho, até 1857, quando decaiu; Massangano, que foi umpresídio fundado em 1582‐1583.

Na África Subsaariana portuguesa nunca se aplicou a fortificação com muralhas contínuas, abaluartadas, envolvendo a totalidade do núcleo urbano – aocontrário do verificado frequentemente na Índia (Baçaim, Chaul, Cochim), e sistematicamente em Marrocos (de Ceuta a Mazagão). De modo análogo aoque aconteceu no Brasil, predominou o sistema de pequenas fortificações à ilharga dos núcleos, não sendo estes envolvidos por muralhas. Tal factodeve‐se, sem dúvida, ao contexto de guerra permanente e de territórios hostis verificado na Índia e em Marrocos, ao contrário de uma certa relaçãoaberta com o hinterland, no Brasil e em África.

Verifica‐se assim, em termos gerais, que a arquitetura militar constitui uma das características dominantes do património arquitetónico de origemportuguesa na África Subsaariana ao longo da Idade Moderna, mesmo em comparação com as significativas arquiteturas religiosa e civil. Tal facto pode,em parte, atribuir‐se à resistência deste tipo de obras ao desgaste do tempo, permitindo a chegada à atualidade de muitos dos exemplares edificados,mas deve justificar‐se sobretudo pelo próprio sistema estratégico e organizativo do império colonial português. Com efeito, o problema da defesa dospovoados e das regiões ocupadas foi fulcral e constante, explicando as sucessivas criações e reconstruções de fortalezas.

Arquitetura religiosa

A par do processo de defesa e ocupação militar, a componente religiosa constituiu um instrumento de expansão e afirmação determinante na áreasubsaariana. Foi um fio condutor, inicialmente como móbil, depois como fundamento de uma ação estruturada, e finalmente como processo delegitimação da ocupação e colonização. Reflete, até certo ponto, uma atitude coletiva, herdeira tardia do chamado espírito de cruzada que foiprofundamente desenvolvido no Portugal da Baixa Idade Média, em continuidade com a própria formação nacional. Recordem‐se, aqui apenas comoreferências, já que o tema transcende os objetivos deste estudo: o papel da Ordem de Cristo, com a ação do infante D. Henrique (com os padrõesimplantados, da Guiné a Melinde); a cristianização do Reino do Congo, com o estabelecimento dos religiosos portugueses em São Salvador, a partir dosfinais do século XV; e a procura do Preste João (o mito e símbolo cristão do outro lado de África), que levou à intervenção militar na Etiópia, e aposterior implantação local de igrejas e conventos pelos jesuítas.

A motivação religiosa foi também comum a outras áreas do Primeiro Império, mas o facto de África ter constituído geográfica e cronologicamente o

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primeiro campo de avanço e experimentação da expansão conferiu a esta motivação uma importância especial.

A fase manuelina

Em termos arquitetónicos e a avaliar pelo que até hoje sobreviveu, tal como as primeiras construções militares, as religiosas seguiram a práticaconstrutiva e estilística da fase manuelina. Só duas graciosas edificações deste período inicial resistiram ao tempo: a Capela do Baluarte, que segue otipo dos pequenos templos poligonais manuelinos, junto à Fortaleza de São Sebastião na Ilha de Moçambique; e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário,na Ribeira Grande de Santiago de Cabo Verde, cujos elementos mais antigos correspondem possivelmente à capela inicial, de 1495. Na relação com osvestígios manuelinos de outras áreas, estes dois preciosos documentos são comparáveis aos dois únicos vestígios manuelinos com carácter arquitetónicoedificados na Índia ainda existentes: a Igreja do Priorado do Rosário, em Velha Goa, e a Capela de São Tomé de Meliapor, perto de Madrasta, umpequeno santuário com escadório, implantado na costa oriental do Industão, ambas exibindo também alguns elementos classicizantes. Também naÁfrica magrebina, a capela‐mor da antiga Catedral de Safim, em Marrocos, apresenta um sistema formal, estilístico e construtivo semelhante ao daIgreja do Rosário. Já no Brasil, se os houve, os vestígios manuelinos desapareceram.

O classicismo, o “chão”, e a influência da Índia portuguesa

A fase do classicismo, de influência renascentista italiana, que se estendeu a todas as povoações da área subsaariana nos séculos XVI a XVIII, foi desdecedo mesclada pela necessidade de criar um tipo de edificação sacra simplificado e acessível aos construtores não especializados. Em meados do séculoXX, a historiografia veio a identificá‐la como arquitetura chã (Plain Style, cf. Kubler, 1972). Podemos referir alguns dos exemplos mais marcantes destegosto claro e simples, organizando‐os em três grupos principais: os da África Oriental, onde as influências da arquitetura indo‐portuguesa e da tradiçãosuaíli local foram marcantes e geradoras de uma grande originalidade formal, decorativa e espacial; os das áreas insulares, de Cabo Verde a São Tomé,com uma pequena escala na realização dos espaços religiosos; e os da arquitetura angolana, mais próximos das congéneres metropolitanascontemporâneas.

Vejamos alguns exemplos mais significativos destes três grupos, procurando destacar as situações mais patentes de contaminação da normativa clássicapelas estilísticas indo‐portuguesas e assinalando as épocas de construção mais intensa.

No quadro da África Oriental, os reflexos mais claros da contaminação estilística provinda da Índia de colonização portuguesa encontram‐se na Ilha deMoçambique e na sua área de influência mais direta. Procedem da arquitetura religiosa da costa ocidental do Industão, do Norte ao Malabar: em Goa,nas áreas de Bombaim (Mumbai) e de Baçaim (Bassein/ Vasai), ou em Damão e Diu, e mesmo, mais a sul, em Cochim. Estas articulações arquitetónicas,por semelhanças e/ou influências, atestam a histórica ligação entre territórios que, até à reforma pombalina, pertenciam ao Estado da Índia, com umaadministração comum, uma vida militar, política e económica interdependente, e ligados permanentemente pelas rotas marítimas e comerciais. Mas emAngola, especificamente em Luanda, podem‐se também registar alguns exemplos de arquitetura religiosa com analogias com as igrejas portuguesas daÍndia, denotando que, para além do mare nostrum do Índico, as relações e as viagens intercontinentais e transoceânicas dos portugueses tambémgeraram influências e transferências culturais, sobretudo ao longo dos séculos XVI e XVII. Assim, na Ilha de Moçambique destaca‐se a Igreja daMisercórdia, originária do século XVI, refeita depois de 1607, com um portal de expressão renascentista, e uma fachada encimada por um frontão curvocom abundante decoração em relevo, ao gosto indo‐português de 1700, onde se podem encontrar analogias com as igrejas de São Francisco de Diu, noalpendre fronteiro à fachada, no tipo de frontão com aletas e volutas e na escala geral, e a do bairro de Santa Cruz, em Bombaim, na decoração. Na costafronteira à Ilha, na Cabaceira Grande, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios apresenta características semelhantes à de Nossa Senhora dosRemédios, em Dauli, Baçaim, de 1583.

Em Angola, podem distinguir‐se três áreas de afirmação da arquitetura religiosa nesta época: a cidade de Luanda, a região envolvente (Congo e bacia doKwanza), e Benguela. A maioria dos templos é de expressão classicizante‐chã, semelhante à do Portugal ibérico; mas há alguns casos de maiororiginalidade em Luanda, que remetem para influências de outras regiões, como a já referida da Índia. Encontramo‐los na Alta de Luanda, onde seconcentraram exemplos emblemáticos de arquitetura sacra africana: a primeva Sé Catedral de Nossa Senhora da Conceição (de 1590, arruinada em 1818e, depois de finais do século XIX, demolida) com fachada de dois níveis sobrepujada por frontão redondo; a Igreja de Jesus e o antigo Colégio dosJesuítas, de 1605‐1607, concluídos em 1636. Enquanto a igreja foi, no século XVII, comparada à obra jesuíta do Funchal e cuja nave seria inspirada natipologia interna da de Évora, a impressiva fachada, apesar dos restauros, é muito semelhante à da Igreja de São Paulo, em Diu (1601), também daCompanhia de Jesus; finalmente, a Igreja do Hospital da Misericórdia, menos interessante e datada de 1670, faz recordar, pela silhueta circular dafrontaria, a fachada da igreja jesuíta de Baçaim, na Índia. No litoral da cidade de Luanda, na antiga praia, a graciosa Ermida de Nossa Senhora daNazaré, de 1664, apresenta uma solução de fachada articulada com as galerias e arcadas, em dois pisos, rematando‐as e escondendo‐as, que se encontratambém na Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, em Benguela, de 1748 (mas apenas de um dos lados do edifício), e na Igreja de Nossa Senhora doLivramento, de 1776‐1786, em Quelimane (Zambézia, Moçambique), só no plano térreo. São esquemas arquitetónicos que se podem relacionar com assoluções orientais, num quadro tropical associado à necessidade de ventilação e arejamento: de facto, estas galerias laterais também se encontram naarquitetura religiosa indo‐portuguesa do sul da Índia, na área de Cochim, no tipo que designamos por igreja‐templo (Fernandes, “Urbanismo...”, 1999).Estas comparações não devem esquecer as situações análogas encontradas em várias igrejas con‐ temporâneas de Sergipe e da Bahia, no Nordeste doBrasil, com galerias laterais – um tema que merece estudo mais aprofundado em termos de possíveis inter‐relações ou influências.

Um outro grupo de edificações religiosas, numa relação mais direta com os modelos europeus de tipo clássico‐chão e, portanto, sem ligações estilísticassignificativas ao Oriente, foi dominante nos arquipélagos afro‐atlânticos. O destaque neste quadro vai para as suas sés, que seguiram padrõesclassicizantes e adotaram uma macro‐escala algo desmedida para as dimensões locais. É o que acontece com a grandiosa mole da Ribeira Grande, emSantiago de Cabo Verde, iniciada cerca de 1556, e cronologicamente inserida na série das novas sés joaninas continentais, de Leiria, Portalegre eMiranda do Douro, além da de Goa, desenvolvidas desde 1552‐1562, e em obra até 1700, e com a de São Tomé, de Nossa Senhora da Graça, reconstruídaem 1576‐1578 e muito alterada nos séculos mais recentes.

Numa perspectiva complementar à anterior, deve‐se salientar a pequena escala dos espaços religiosos (as igrejas e capelas) da maioria dos núcleosedificados dos dois arquipélagos atlânticos, que apresentam uma dimensão e formas modestas, e tipologias simples de organização do espaço. A título

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exemplificativo, refiram‐se alguns casos que chegaram até nós: na Ilha de Santiago de Cabo Verde, na Ribeira Grande, a Capela de São Roque e a igrejado antigo convento franciscano, de naves simples e únicas; na área envolvente da Ribeira Grande e Praia, a Capela de Nossa Senhora da Luz, de origemquatrocentista, com arcos ogivais, a da Santíssima Trindade, de original planta centrada octogonal, e a de São João Batista, de duas torres, com feiçãoclassicizante. Na parte norte da ilha, destaque‐se ainda a Capela de Nossa Senhora das Graças, em Chão de Tanque, com pórtico‐alpendre quadrangular,nave única e a cobertura abobadada, semiesférica, sobre o altar.

Em São Tomé, na cidade, além das igrejas urbanas da Conceição (de origem manuelina, reconstruída em 1719), de São João (de 1562), do Bom Jesus (defachada de gosto clássico, com curiosa torre octogonal) e da Capela do Bom Despacho (de 1617, de expressão vernácula), nos arredores o destaque vaipara a rara Igreja da Madre de Deus, obra de origem quinhentista, modesta mas com delicado portal, em pedra branca, de frontão reto sobre arquitravee duas colunas coríntias, que exibe dois medalhões figurativos e nave com superfícies azulejadas. A antiga Igreja de Santo António, na cidade, exibiaainda nos fins de Oitocentos a fachada com três arcos redondos, de desenho clássico, característicos das obras franciscanas, e uma torre quadrangular,aposta, com cordões de tipo manuelino. No Príncipe, a cidade de Santo António também inclui a singela Matriz de Nossa Senhora do Rosário, sempreno mesmo gosto de linhas simples e base classicizante.

Terminando estas observações sectoriais e inter‐regionais, refiram‐se ainda outras arquiteturas, em Luanda e na área do Kwanza, quer pela suaqualificada expressão arquitetónica, quer pelas relações, estilísticas ou formais, que permitem estabelecer com obras de outras e distantes áreascoloniais. Na Baixa luandense, refiram‐se, no bairro do Carmo, junto à Mutamba, a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, uma obra de 1660‐1689, comfachada sóbria mas de desenho erudito, rematada por um bem proporcionado frontão triangular (ao modo das obras jesuítas de Olinda, no Brasil, ou deSão Roque, em Lisboa), com portal em pedra encimado por nicho e interiores com extensas superfícies azulejadas e pintadas (que foi articulado com oConvento de Santa Teresa das Religiosas Descalças, de notável expressão chã, em arcaria redonda nos dois pisos); a Igreja de Nossa Senhora do Rosário,de 1651‐1670, representativa do modelo tradicional da fachada portuguesa sacra (duas torres ligadas por corpo central, em H, reconstruída e muitoalterada em 1897 (com os dois coruchéus iniciais sobre as torres substituídos por curiosos torreões em ferro, foi depois Sé); e ainda a pequena Igreja deNossa Senhora do Cabo, na Ilha de Luanda, edificada junto ao forte de 1726, com o frontão triangular ornado de elementos curvos, tal como osencontramos em várias pequenas igrejas da antiga área portuguesa de Bombaim, na Índia. Na região envolvente de Luanda, para a qual irradiou, desdea capital, todo o sistema de influências formais e estilísticas ao longo da segunda metade de Quinhentos e de Seiscentos, devem mencionar‐se, além daCatedral de São Salvador/Mbanza Kongo, de 1549, as duas pequenas e preciosas igrejas seiscentistas erigidas ao longo do Rio Kwanza: a de NossaSenhora da Conceição de Muxima e a Nossa Senhora da Vitória de Massangano, ambas com torre lateral, coberta por coruchéu, e três vãos na fachada,encimada por frontão triangular – dentro do tipo de pequeno templo característico dos meios não urbanos; os seus espessos e expressivos contrafortesoblíquos laterais são similares aos que várias igrejas de Goa, erigidas em áreas rurais e de significado secundário, também apresentam.

Pelas sucessivas referências cronológicas atrás referidas se pode confirmar que as principais ou mais intensas épocas de construção, por vezesconstituindo mesmo autênticas séries ou campanhas de obras, ocorreram ao longo dos séculos XVI, XVII e XVIII, em três fases principais: na segundametade do século XVI, correspondendo ao período de investimentos no sentido de firmar e institucionalizar os espaços urbanos do Império, com açõesde estruturação (reconstrução das igrejas em novas dimensões, criação de novas igrejas e conventos), muitas vezes ligadas à criação de novas dioceses(Cabo Verde, 1533; São Tomé, 1534); ao longo do século XVII, primeiro na fase de dominação filipina, num quadro de prolongamento dos processos dafase anterior (diocese de São Salvador do Congo, 1596) e, sem descontinuidade temporal assinalável com a segunda parte do século, em reconstruções ereinvestimentos, nomeadamente na reedificação de inúmeros edifícios afetados pela ocupação holandesa de Angola; no século XVIII, abrangendo osperíodos joanino e pombalino, em processos de modernização de estruturas e espaços, incidindo em quase todas as áreas coloniais africanas,reequipando e infraestruturando Luanda e sua envolvente, autonomizando Moçambique, criando novas instalações religiosas em Santiago de CaboVerde e no Príncipe.

Em síntese, podemos afirmar que as várias exemplificações apresentadas em Moçambique e em Angola permitem relacionar alguns aspectos daarquitetura religiosa destas regiões, da fase dos séculos XVI a XVIII, com a de outras áreas ultramarinas, nomeadamente na Índia Portuguesa, aspectoque se pode, por sua vez, articular com a circulação e o transporte marítimos da época e com as suas resultantes culturais. Todavia, as obras nosarquipélagos afro‐atlânticos mantiveram‐nos de algum modo mais apartados deste quadro de influência oriental, mantendo uma relação mais diretacom a metrópole e com os referentes culturais e artísticos europeus.

Arquitetura civil

Principalmente expressa em obras como os palácios dos governadores, ou os edifícios municipais (as chamadas casas de câmara e cadeia), a arquiteturacivil apresenta também casos interessantes na função assistencial (as misericórdias), e mesmo, excepcionalmente, em infraestruturas dearmazenamento e espaços fabris.

Os palácios do governo na Praia de Cabo Verde e em São Tomé, muito alterados em épocas sucessivas, apresentam um interesse relativo em relação àsua situação presente.

Destacam‐se mais pelo valor simbólico, pela vasta dimensão e localização (o primeiro, no chamado plateau da cidade, o segundo, em pleno espaçocentral, junto à Sé) do que por outras razões.

Mais interessante pela sua qualidade histórico‐arquitetónica foi o Palácio do Governo‐Geral, ou dos Governadores, em Luanda, partindo da construçãode 1607, sofreu reforma e ampliação na fase pombalina de 1761, e, já nos meados do século XX, recebeu remodelação em gosto revivalista neoclássicopor Fernando Batalha. O edifício setecentista, como a maioria dos grandes casarões da época pombalina, representou a versão, a um tempo residencial ecívica, do modelo classicizante simplificado pelo filtro da cultura arquitetónica portuguesa – na medida em que o tempo de Pombal encetou umareleitura erudita e atualizada do que fora o estilo chão dos séculos XVI‐XVII. Na mesma linha era o vasto corpo do Palácio de São Paulo, sede dogoverno na Ilha de Moçambique, que aproveitava a obra jesuíta anterior (de 1619‐1635), em articulação com a capela.

Das câmaras pouco se sabe em termos das antigas características dos edifícios. Deve‐se, em todo o caso, destacar o exemplar da Ilha de Moçambique,

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pela sua expressão funcional/formal simplificada (na linha cívica atrás referida, embora mais elementar e de dimensão mais modesta do que a dospalácios), edificado em 1781.

No quadro da tipologia cívico‐residencial, podem referir‐se ainda as habitações dos governadores e dos bispos (onde a função doméstica era muitasvezes indissociável da representativa e oficial), de que são exemplo, uma vez mais na Ilha de Moçambique, a chamada Casa Nova do Governador, ouCasa dos Arcos, com uma larga arcaria de alvenaria que preenche todo o piso nobre, e o antigo Paço Episcopal, de elegantes vãos seriados.

A administração fiscal sobre o comércio, em articulação com os equipamentos dos espaços portuários, deve ter desempenhado um papel significativonestas cidades marítimas e talassocráticas. O edifício mais notório e emblemático destas funções foi a Alfândega, que pontuou urbes como São Tomé,Santo António, a Ilha de Moçambique, Luanda e Benguela. Nestas três últimas cidades ainda se pode apreciar o imóvel respectivo, junto ao mar, que emgeral assume uma dimensão arquitetónica estritamente funcional. Em Luanda, nos espaços litorais da Baixa, surgiram uma série de equipamentospúblicos com idênticas funções de fiscalização e armazenamento das mercadorias. No extremo poente da Rua da Praia, marginal à água, ficava oTerreiro Público, com ampla cisterna e cais (de 1764‐1772), Ainda existente, embora alterado, o vasto corpo da Alfândega, de origem pombalina, atestaesta fase construtiva, como obra imponente no plano da arquitetura civil. Fernando Batalha refere e documenta vários destes espaços luandenses: aCasa dos Contos, de fachada pontuada por um pórtico central marcante, com grandioso teto de masseira (edifício já demolido), ou a antiga fachada daAlfândega pombalina, de imponente frontão curvo (antes da alteração), com o seu salão nobre com a vasta armação interior, aparente, do telhado(Batalha, “Em defesa...”, 1963).

Estas obras utilitárias são construções austeras, que seguem em geral as regras classicizantes na sua composição, com a sequência dos vãos seriadosritmando as fachadas.

Neste aspecto, não há na época, ainda, a diferenciação e especialização tipológica e espacial que se verificarão no século XIX e, sobretudo, no XX:parecem‐se pois, no geral, com as grandes construções palacianas e residenciais do seu tempo, embora estilisticamente mais pobres.

As construções assistenciais das misericórdias, conjugando funções cívico‐equipamentais (hospital) e religiosas (igreja ou capela), constituem algumasdas obras mais interessantes e originais nos contextos urbanos da expansão portuguesa. Sofreram porém, na maior parte dos casos, alteraçõesprofundas, que dificultam hoje a compreensão das suas tipologias. Da Misericórdia da Ribeira Grande, em Santiago de Cabo Verde, apenas resta umaparte da torre, e o levantamento das suas ruínas nos anos de 1960; a da Ilha de Moçambique, em contrapartida, está muito bem conservada, juntamentecom a igreja, e a pequena escala quer dos espaços assistenciais quer dos religiosos dá‐nos ainda hoje uma ideia das características tipológicas que estasinstituições devem ter apresentado na maioria dos povoados oceânicos, na primeva fase quinhentista: um ou dois corpos quadrangulares para a áreahospitalar, outro para a dependência dos irmãos, uma torre, com a casa do “físico”, e a nave sacra – com um pátio de articulação entre os vários espaçosfuncionais.

O tema, ainda pouco conhecido enquanto tipologia arquitetónica, deve ser aprofundado, com análise de outros espaços, noutros locais, nomeadamenteno Portugal europeu, onde estas instituições se multiplicaram. Exemplificamos com as construções da Misericórdia de São Sebastião (Terceira, Açores),onde a persistência do modelo mais antigo também terá acontecido (existe em sequência conjunta, a capela, o que deve ter sido o corpo hospitalar,térreo, e uma espécie de casa‐torre com dois pisos – a lembrar a disposição da obra da Ilha de Moçambique, já referida). É especialmente interessante aanálise tipológica da antiga Misericórdia de São Tomé, hoje Tribunal da cidade: por detrás de uma edificação aparentemente mais recente, deve estarainda a estrutura e organização dos originais espaços assistenciais, estes de feição mais regular que os de Moçambique, talvez seis‐setecentistas,denunciados pela cobertura, com os seus quatro telhados múltiplos, de quatro águas cada, paralelos entre si e formando pátio interno: a capela deviacorresponder a um deles. O tema dos telhados múltiplos, e/ou “de tesoura” (geralmente de quatro águas, muito inclinadas, sobre o mesmo edifício,paralelos entre si, e correspondendo cada um deles a um compartimento estrutural da casa, erguido sobre cada quatro paredes, em quadrilátero), é, defacto, um dos mais interessantes nas construções cívicas e habitacionais desta época, nos vários espaços urbanos da expansão portuguesa. O caso daMisericórdia de Luanda é um dos mais notáveis. Orlando Ribeiro já o tinha assinalado, ao apresentar na sua obra Geografia e Civilização uma imagemde construções em Luanda com esses característicos telhados. Atribuiu a disseminação deste modelo à difusão da cobertura telhada oriental por via daexpansão portuguesa, desde Goa, por exemplo, constatando que ocorre ainda hoje em muitas construções habitacionais de cidades portuguesas daÉpoca Moderna, desde as solarengas às populares (Tavira, Lagos, Faro, Lisboa). O tema e a edificação remetem, uma vez mais, Angola para asinfluências culturais índicas, por via dos circuitos comerciais transatlânticos, pelo menos no caso de Luanda e Benguela (Fernandes e Janeiro, 2005, 73;Fernandes, “Encyclopedia...”, 1997, vol. III, 2010).

O antigo Hospital da Misericórdia de Luanda, de 1612‐1616 (depois muito alterado), reconstruído em 1771, como hospital, e depois sede do TribunalMilitar, apresentava ainda em meados do século XX o seu vasto corpo assistencial, de dois pisos, anexo à igreja, coberto por quatro grandes telhadosparalelos entre si – numa semelhança flagrante com outras edificações da época, como a do antigo Paço Episcopal de Faro. A imagem de ambos, análogana escala e expressão, com as suas longas cornijas corridas, difere apenas no desenho dos lintéis dos vãos do andar superior, retos no exemplo algarvio,curvos no angolano.

Em termos de infraestruturas, uma referência isolada, mas significativa, deve ir para a chamada Real Fábrica do Ferro, que o consulado pombalinoergueu em 1768‐1772 no hinterland de Luanda. Contava com um dique, um aqueduto para mover os engenhos, um compartimento para as rodashidráulicas, um forno de fundição (obra‐prima da arquitetura proto‐industrial, com escadaria dupla), uma ferraria com três armazéns, e um canal deescoamento. Em paralelo, foi edificada a povoação de Nova Oeiras, com igreja, feitoria, intendência, tesouraria, e habitações para técnicos e operários.De quase todas estas obras se conhecem apenas as ruínas. Falhada a iniciativa, pouco depois de iniciada (pela saída do governador, pelo duro clima equiçá pela sua precocidade, em termos tecnológicos e económicos) tornou‐se uma ruína histórica, insólita, atestando a vontade de modernizaçãodaquela época.

De facto, alguns autores, como Catarina Madeira Santos, analisaram recentemente a efetiva possibilidade de ter havido, na Angola pombalina emariana, a concepção de um renovado projeto colonial, comprovável pelas reformas estruturadas, pelos novos investimentos, pelo surto de novosquadros na administração (engenheiros, militares), por atos como a fundação da Aula de Geometria e Fortificação em Luanda, em 1769 – ou seja, é de

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considerar a hipótese de o território ter sido entendido como um Novo Brasil, tema recorrente, depois retomado em contextos diversos, mas sempre natentativa de modernização e dinamização da sua vida coletiva.

A arquitetura de habitação ou doméstica

Os espaços e tipologias residenciais, expressos em edificações de escalas muito diferenciadas, desde as construções solarengas e aristocráticas de grandeporte, passando pelas casas com dimensão média, até às casas de expressão popular ou vernácula, foram de grande importância e significado nesta fase.Como fator de uniformização, pode referir‐se serem todas elas construídas em alvenaria ou materiais terrosos (taipas, adobes), dotadas de paredesespessas, com vãos de pequenas dimensões, geralmente caiadas, e com coberturas em armação de madeira, com revestimento cerâmico a telha –seguindo o grande tipo de habitat característico da Europa Mediterrânea, nela implantado secularmente e utilizado no Portugal ibérico.

Das habitações da primeira fase, manuelina, sabe‐se pouco, havendo alguns vestígios, escassos, como o da janela gótica (ou manuelina) numa rua daRibeira Grande de Santiago, em Cabo Verde. Já na fase da chamada arquitetura chã, nos séculos XVI‐XVII, e na fase setecentista e pombalina, seconhecem, obviamente, muitos mais exemplos, que se prolongaram para o século XIX (as datações são extremamente difíceis na arquitetura popular).Neste quadro, apresenta especial interesse a análise da arquitetura residencial de Luanda e da Ilha de Moçambique. Sobre as casas de Luanda –verdadeira colmeia de casas tradicionais, sobretudo na baixa, com os seus telhados múltiplos – deve referir‐se a investigação fundadora de Ilídio doAmaral e Fernando Batalha. Este último inventariou nos anos 1940 e 1950 as casas ainda então existentes, na sua maior parte infelizmente destruídasem consequência do imparável crescimento urbano da Luanda nos anos 1960. Criou uma classificação tipológica de carácter descritivo que mostrava asua variedade e o valor estético. Não pode deixar de se lamentar a irreparável perda deste valioso património arquitetónico. Destaquem‐se, entre osmais notáveis, o sobrado do Largo de Dom Fernando, a Casa dos Lencastres, o Palácio dos Fantasmas, o atual Museu de Antropologia, do períodojoanino, alterado pela empresa Diamang nos anos 1960, e o Palácio de D. Ana Joaquina, do fim do século XVIII.

Em Benguela há um vestígio da mesma época e características no chamado Palácio Velho: de inicial construção setecentista, em adobe, sucessivamentealterado, reconstruído e restaurado, em 1929, o seu maior interesse, para além dos característicos telhados múltiplos, consiste na parte traseira, onde,no piso nobre, se desenvolve uma larga galeria coberta sobre arcadas redondas térreas, assente em grossos pilares, que se abre para uma escadariadupla, de belo efeito visual (Batalha, “Palácio Velho...”, 1964). Evoca as varandas e galerias índicas, de que se encontram exemplos também em casas damesma época, mais modestas, na Ilha de Moçambique e no Ibo.

Quirino da Fonseca referiu este aspecto profundamente original da colonização de Moçambique, hoje quase extinto, e que deve ter abrangido toda aárea de influência da Ilha de Moçambique até Cabo Delgado e Tete (possivelmente também por via dos territórios dos Prazos) – sem deixar de inspirarainda alguma arquitetura oitocentista tardia, já metálica, ou em madeira, de Lourenço Marques (exemplo: as varandas cobertas e degraus curvos doantigo Hotel Club, de 1898; a casa hindu de varanda entre dois torreões da antiga Avenida Manuel de Arriaga): “Normalmente na fachada principaladossava‐se um alpendre do tipo colunata, de aspecto pesado, em colunas de alvenaria, nas quais havia o cuidado de facetar as arestas, formando largasvarandas de tipo indiano. (...) Este processo de construção em açoteia foi divulgado na Índia pelos Mou‐ ros, transitando para Moçambique através dosinúmeros pedreiros e mestres‐de‐obras banianes que de lá vieram” (Fonseca, 1968, 47, 48‐a e 48‐b).

Podem referir‐se ainda, na Ilha, vários exemplos de casas urbanas (> imagem junta, 2001), com idêntica construção em paredes espessas e vãosestreitos e pequenos, formando conjuntos, mas com dois pisos e abrindo as traseiras sobre a costa norte. É o caso da correnteza de casas de origemseiscentista, ao longo da rua que liga a Praça do Palácio com o Campo de São Gabriel. São construções de grande beleza, com cobertura em terraço pararecolha pluvial. Algumas foram recuperadas, outras estão em ruínas.

As casas urbanas, de plantas retangulares e formas simples, cobertas por terraço, em volumes cúbicos, do século XVIII, frequentes na “Ilha” (Loureiro,Postais Antigos da Ilha..., 2001, 39a), devem ter influenciado tardia e longinquamente a construção modesta, muito mais para sul, das primeirashabitações laurentinas; o exemplo, hoje único, da chamada Casa Amarela de Lourenço Marques é disso comprovativo.

Em síntese, se são conhecidas as trocas e influências culturais dentro do mundo do Índico, aqui na vertente indo‐portuguesa, congregando e articulandona arquitetura e nas artes as obras de Goa ou de Diu com as da Ilha de Moçambique e do Ibo, são menos estudadas as interações do núcleo índico donorte moçambicano com o restante território (Zambeze, Tete, Quelimane, mesmo o sul). Num quadro mais amplo, está por reconhecer com maiorsegurança a transferência cultural inter‐oceânica desde o núcleo cultural indo‐português na sua relação com a África Ocidental, em particular comLuanda e Benguela, ao longo dos séculos XVI a XVIII. Os temas da arquitetura civil e doméstica, analisados deste ponto de vista, podem sem dúvida vira confirmar e esclarecer estas interações.

1820‐1930. Mais de um século de colonização e “ocupação efetiva”

Os primórdios oitocentistas, ainda com o Brasil

A passagem do século XVIII para o XIX correspondeu, tanto no Portugal ibérico como nos seus espaços insulares e coloniais, a uma grave sucessão decrises político‐militares, que culminaria com a guerra civil do segundo quartel de Oitocentos. Antes, tinham‐se sucedido as invasões napoleónicas, acorte no Brasil, a independência deste país, a afirmação constitucional em Lisboa. Estes factos constituíram uma sequência dramática e perturbadora.Provocaram uma alteração completa dos sistemas de vida coletiva e da organização territorial até então vigentes. O século XIX constituiu, portanto, umaépoca de profunda transformação geopolítica, territorial e administrativa, que não podia deixar de afetar as áreas ultramarinas portuguesas. Os seusreflexos nos aspectos urbanísticos, arquitetónicos e artísticos são por isso necessariamente complexos e multifacetados.

A mudança do “centro de gravidade” colonial do Brasil para África

Os vencedores liberais da guerra civil que assolou Portugal nos anos de 1820‐1830, depois responsáveis pela política e colonização ultramarinas, tinhamuma ideia bastante clara do que fazer em relação ao espaço colonial. Na sequência da perda do Brasil, este passou a centrar‐se em África. Porém, a fase

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conturbada, decorrente do confuso e prolongado conflito, que se estendeu ainda, entre crises e confrontos, até à Regeneração de 1850‐1851, atrasou edificultou a marcha e a execução das políticas inovadoras e modernizantes do liberalismo. Com efeito, os liberais interessaram‐se desde cedo pelapolítica ultramarina. Testemunho deste facto é, por exemplo, o que Sá da Bandeira (1795‐1876) – que viria depois a ser um dos agentes fulcrais da novapolítica – dizia em 1829, quando, no decurso de uma aventurosa viagem de barco em direção aos Açores, refletia sobre o que fazer no novo quadrocolonial luso: “O governo português deveria, no mesmo decreto que abolisse o tráfego dos escravos, declarar o comércio livre dos portos que possui naÁfrica e na Ásia com todas as nações, sujeitando os navios portugueses. Luanda, Moçambique, Diu, Damão, Goa, Macau e Dili em Timor deveriam serdeclarados portos francos, assim como um dos portos das ilhas de Cabo Verde. Dever‐se‐ia estabelecer uma forte colónia no Zaire e para assegurar anavegação deste estabelecer‐se‐ia uma outra em [...] e no sul, no porto de Moçâmedes; na África oriental haveria muitas coisas a fazer. Trabalhar‐se‐iapara unir pelo interior as possessões ocidentais às da costa oriental. Dever‐se‐ia enviar bons missionários e em grande número para o interior.”(Bandeira, 1976, vol. II, pp. 36‐37). Deste singelo, mas intenso discurso, se retira que o futuro político e governante, com uma leitura informada eesclarecida da situação da sua época, já em 1829 pensava na criação do Mindelo (> imagem junta, 1993), na colonização do extremo norte e do sul deAngola, e mesmo na extensão de Moçambique para além do Zambeze e da área norte‐costeira, com as respectivas dotações em quadros (missionários) eem povos – ou seja, numa perspectiva territorial do espaço luso‐africano.

De facto, depois da inevitável estagnação ou indecisão do segundo quartel de Oitocentos, em virtude das guerras civis e da instabilidade política emPortugal, iniciou‐se, no terceiro quartel do século XIX, a rotação colonial para África, e o movimento acentuou‐se com o final do mesmo século: asexpedições geocientíficas no interior da África Austral, na tentativa de ligar a Costa à Contra‐Costa, combinaram‐se então com uma nova colonizaçãourbana efetiva ao longo das costas angolana e moçambicana e com as primeiras tentativas de penetração para o interior, com luso‐brasileiros,pernambucanos, madeirenses, algarvios e boéres, quer para as implantações proto‐urbanas quer rurais. Assistiu‐se a um crescimento colonial intensodesde os anos de 1860‐1870 até cerca de 1925, ou seja, durante a plena Regeneração e a fase final da monarquia, o advento da república, a PrimeiraGuerra Mundial e o seu pós‐guerra. Deste modo, a perspectiva de um território marítimo de conteúdo talassocrático, de presença meramente litorânea,que presidira ao sistema colonial de ocupação e urbanização nas Índias e no Brasil dos séculos XVI‐XVII, e persistia ainda na África Portuguesa atéOitocentos, foi abandonada e substituída pela ótica da construção de um território terrestre. Esta perspectiva foi acentuada depois da Conferência deBerlim de 1885, quando o conceito de posse efetiva dos territórios africanos vingou sobre o da sua ocupação por razão histórica. O falhanço do projetopolítico de um vasto espaço unificado, conjugando Angola e Moçambique (no retomar do sonho de um “Novo Brasil” em África), pela via do Mapa Cor‐de‐Rosa de 1890, impedindo embora o carácter transcontinental deste novo império africano, permitiu, mesmo assim, a criação de vastas áreas deocupação territorial interna, ao longo de duas grandes extensões da África meridional.

As diferentes fases da colonização e urbanização

O tempo oitocentista da África Portuguesa, no que respeita ao urbanismo e à arquitetura, pode assim entender‐se dividido em dois períodos: noprimeiro, persiste a tradicional ocupação costeira (centrada em torno de Luanda e Benguela, em Angola, e entre a Ilha de Moçambique e Sofala, nacolónia oriental), a par da presença antiga ao longo das extensas bacias do Kwanza e do Zambeze e uma lenta e fragmentada penetração para o interior,fruto de iniciativas pontuais; no segundo, verifica‐se um franco investimento urbanístico (com novas cidades e povoações) e a criação de infraestruturas(caminhos de ferro, portos) por iniciativa estatal, o qual se acentuou no último quartel do século XIX, fruto da necessidade política de ocupação efetiva;os seus momentos fulcrais centram‐se na fundação e desenvolvimento de Lourenço Marques e da Beira, em Moçambique, e de Lobito, NovaLisboa/Huambo e Sá da Bandeira/Lubango, além do crescimento de Moçâmedes/Namibe, em Angola.

Prolongando o período oitocentista pelos inícios do século XX, procedeu‐se, ao longo do primeiro quartel deste século, a uma modernizaçãoadministrativa, social e política, já iniciada no final da monarquia e na transição do século. A Primeira República acentuou esta vontade, que podemosconsiderar simbolizada pelo papel desempenhado por Norton de Matos em Angola.

É pertinente lançar aqui a questão das continuidades e ruturas, no que respeita aos modelos urbanos ultramarinos de Oitocentos. Por um lado assistiu‐se à persistência de modelos tradicionais, por exemplo na concepção do Mindelo, em 1850‐1870, ou na primeira fase de Lourenço Marques, em 1876, ouainda nas malhas viárias primevas do Lobito, em 1902‐1912, ou da Beira, em 1907; por outro, ensaiaram‐se também modelos geométricos,modernizantes, em retículas, quer no plano inicial do Mindelo (1838), quer no lançamento de Moçâmedes e do Lubango/Sá da Bandeira (esta para oscolonos de 1885), quer ainda no notável plano de expansão de Lourenço Marques, em 1887. Malhas irradiantes e poligonais, em planos já dos inícios de1900, são igualmente exemplos de erudição e procura de atualidade internacional nos modelos urbanísticos, caso do plano do Huambo/Nova Lisboa, de1912‐1913, ou, tardiamente, em Lichinga/Vila Cabral, de 1931.

As fases de urbanização, entre 1820 e 1930

Os tempos iniciais de colonização desenvolveram‐se, como vimos, na África Subsaariana, entre os séculos XV e XVIII, com ocupações urbanas pontuaisou em pequenos espaços continentais. Durante uma segunda fase, de certo modo ainda indecisa, situada cronologicamente entre 1820 ou 1822 e os anosde 1860‐1870, verificou‐se a criação de novas cidades ou povoações, com uma dimensão mais moderna ou ainda tradicional: caso do Mindelo em SãoVicente de Cabo Verde, além de outros pequenos povoados do arquipélago, como Vila Maria Pia em Santo Antão; na Guiné‐Bissau, há que referir apovoação de Bolama (1830) e o crescimento de Bissau (1858‐1860).

Em Angola, começaram nesta fase as grandes penetrações pelo território adentro, com as fundações modernas de uma série de presídios, crescendodepois como povoados, até vilas ou cidades: N’dalatando (1835), Malange (1852), Porto de Ambriz (1856‐1882), Catumbela (1836), Lobito Velho (1842,ocupação falhada), Moçâmedes/Namibe, em 1842‐1885, Huíla em 1839 e Porto Alexandre em 1864‐1878. Em Moçambique, o novo pólo urbanizador dosul iniciou‐se nesta fase em Lourenço Marques (em 1867‐1876) e Inhambane (em 1862‐1878). Uma terceira fase, essencialmente movida pelo processode penetração e expansão sistemática, caracterizou a época entre 1885 e 1925‐1930. Em Angola, quatro grandes eixos no sentido poente‐nascenteconstroem o seu território moderno: no norte, além das áreas de Cabinda e do Congo a sul do Rio Zaire, o eixo Luanda/Kwanza/Malanje e o eixoAmboim/Gabela, até 1920; central, o eixo Lobito/Benguela/Huambo; e ainda, mais meridional, o eixo Namibe/ Lubango.

Em Moçambique, três áreas de penetração urbanizadora vão‐se afirmando nesta fase, com o crescimento de diversos núcleos urbanos: a sul, LourençoMarques, o Xai‐Xai/João Belo (1910), Inhambane (1885), Ressano Garcia (1890); no centro, a Beira (1887), Tete (1912) e Quelimane; e no norte,

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Pemba/Porto Amélia (1921), Angoche/António Enes (1910), o Ibo (1885) e, mais tardia, Nampula.

Complementarmente, as instalações das roças do café e do cacau em São Tomé, com os seus sistemas de escoamento ferroviário e infraestruturas deapoio, modernizavam aquele arquipélago; enquanto o crescimento de Bissau na Guiné lhe concedia um plano urbano global em 1919.

Os novos planos para as cidades e as novas instalações urbanas

O período oitocentista em estudo caracterizou‐se, em termos urbanísticos, no quadro da cultura euro‐americana, pela divulgação e intensa aplicação dosplanos com malha em retícula geométrica rigorosa – quer em extensões de cidades existentes, quer na implantação de novas urbes. Correspondeu àchamada fase reformista da Revolução Industrial, sobretudo na segunda metade do século XIX, quando as grandes cidades euro‐americanas, comoParis, Londres, Barcelona, Viena ou Chicago sofreram vastas intervenções planeadas e dirigidas de reorganização espacial, funcional, equipamental –adaptando‐as ao novo estatuto de cidades industriais. Estas retículas, que correspondiam à concretização racionalista, no espaço das cidades, dos novossistemas de comunicação e transporte (caminhos de ferro, metropolitano) e de infraestruturação básica (esgotos, água, gás, depois a eletricidade),exprimiam na sua linearidade retilínea e cruzada (avenidas largas, paralelas e perpendiculares, gerando sistemas de quarteirões de planta retangular), oprimado das novas técnicas e sistemas de produção fabris, a ideia de aplicação à cidade do mecanicismo como forma privilegiada de ação demodernização – ainda num quadro pré‐rodoviário, mas que com a viragem de 1900 rapidamente incluirá a adaptação urbana a esta nova modalidade.

Em Portugal, se houve extensões urbanas contemporâneas deste tipo, à escala modesta das suas cidades (em Lisboa, com a Avenida da Liberdade, em1879, e no Porto, com a Avenida da Boavista), e mesmo a criação de algumas novas cidades (a malha reticulada de Espinho, no final de Oitocentos), agrande ou mais significativa aplicação deste nova tipologia urbana (em formato relativamente modesto, que decorria da pobreza e dos recursosfinanceiros escassos) verificou‐se na África Subsaariana.

Os primeiros modelos geométricos afro‐coloniais surgiram ainda na primeira metade do século XIX, com o plano de 1838 de Sá da Bandeira para oMindelo, embora a sua aplicação concreta não tenha ocorrido. Verificou‐se, sim, um crescimento mais pragmático da cidade, com origens marianas e deinício de Oitocentos, nos anos de 1850‐1870, com base numa retícula mais irregular e orgânica, num compromisso com a tradição urbana lusa da épocaanterior, que a implantação na baía abrigada confirmava. O desenvolvimento acentuou‐se depois com a fixação de companhias comerciais inglesas, e aelevação a cidade deu‐se em 1879.

O desenho do plano de 1838 incluía uma retícula rigorosa de ruas e quarteirões, inscrita numa área retangular, à maneira pragmática do século XIX. Nointerior do tecido urbano, dois eixos perpendiculares cruzar‐se‐iam numa rotunda. No extremo poente, uma praça cívica abrir‐se‐ia para o mar,contendo igreja, paço episcopal, palácio do governo e câmara; e no topo oriental, três eixos arborizados irradiariam para um parque. Nas extremidadeslitorais, a alfândega e o mercado completariam o conjunto. Embora não aplicado, este plano marcou claramente a mudança de paradigma urbanísticopara as colónias africanas, pois nas décadas seguintes verificou‐se a aplicação de malhas geométricas, como sistema normativo de implantação de novasurbes.

Duas das retículas mais impressivas e eficazes foram propostas – e desta vez rapidamente aplicadas – às novas cidades de Moçâmedes, atual Namibe, eSá da Bandeira, atual

Lubango, ambas no sul de Angola; portuária a primeira, de planalto interior a segunda, ambas as cidades se ligaram mais tarde por um eixo ferroviário,que as constituiu nos dois marcos fundamentais do principal eixo urbano de ocupação urbana e de penetração para o interior sul‐leste do territórioangolano. Ambas as cidades eram estruturadas, bem na linha do urbanismo oitocentista de essência geométrico‐mecanicista, a partir das suasrespectivas retículas genéticas, moduladas e seriadas, com um núcleo institucional central, congregando as funções representativas essenciais, servindoa retícula, para além de suporte ao espaço residencial primevo, para articular a atividade urbana com a área portuária e/ou alfandegária, por um lado, ecom a estação e parque ferroviários, por outro. Vejamos agora mais em pormenor a caracterização destas duas intervenções do sul de Angola.

A área de Moçâmedes teve um primeiro reconhecimento em 1839, a que se seguiu, no mesmo ano, a criação de uma feitoria e a instalação de umapescaria algarvia em 1843. Com cerca de cento e sessenta habitantes em 1849, recebeu então colonos provindos de Pernambuco. A povoação deMoçâmedes foi elevada a vila em 1851, e a cidade em 1907, em relação com a ferrovia nascente. Cidade de areais, implantada entre o deserto, o mar e ashortas, Moçâmedes possuiu desde o início um carácter próprio e uma personalidade urbana que, excetuando a implantação inicial dos equipamentosinstitucionais ao longo da baía (forte, palácio, igreja, hospital), esteve sempre assente na retícula rigorosa (e pioneira, na lusáfrica) que se implantou,alongadamente, no sentido sudoeste‐nordeste. A malha da retícula inicial, tanto quanto foi possível averiguar, ia desde o Forte de São Fernando,desenvolvida em sete quarteirões no sentido nordeste, e em três, para o interior.

Sá da Bandeira, na região da Huíla, fundada em 1885 com cerca de quinhentos e setenta colonos oriundos da Madeira, recebeu então um planofundacional: “dividida em dez quarteirões de 1 hectare de superfície cada um, comportando cada quarteirão dez casais. Ao centro estão os edifícios doGoverno, o mercado e a praça. Todos os quarteirões recebem água da levada [palavra tão ligada à Madeira] geral que, ao atravessar a povoação em sítioconvenientemente escolhido destinou locais para hospital, cadeia, cemitério, quartel militar e paiol”.

Vila em 1889, em 1891 contava já com 1.074 colonos, sendo elevada a cidade em 1923, com a consumação da ligação ferroviária a Moçâmedes. A fase dedesenvolvimento inicial do povoado foi ultrapassada pela exploração do fértil planalto da Chela, com cultivo do trigo, da cevada, do cânhamo, etc. Sá daBandeira representou um dos casos mais curiosos e originais do povoamento tardo‐oitocentista luso‐africano, com base nos colonos ilhéus, sendofortemente impulsionada no seu crescimento com a chegada do caminho‐de‐ferro.

Na comparação entre as duas urbes, ressaltam os seus traços comuns, na forma e no tecido urbano, e nos processos de implantação e dedesenvolvimento respectivos, dentro de uma mesma época e civilização material. A malha urbana de Sá da Bandeira, atrás referida, assemelha‐se, nasua escala, modulação e dimensão global, à de Moçâmedes, remetendo‐nos para uma mesma tipologia de novas cidades, certamente concebidas pelosorganismos estatais no quadro ministerial ultramarino do governo português – e com planos de autorias prováveis pelas equipas de engenheiros que,

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trabalhando nos serviços públicos, introduziam os novos saberes técnicos, por via da influência do ensino francês, com as suas escolas de “pontes ecalçadas”. O plano de Lourenço Marques de 1887, que se analisará a seguir, dá mais alguma luz a este tema.

Antes disso, porém, há que referir ainda outras duas novas cidades, implantadas no centro de Angola, que representam a consolidação do domínio epenetração territorial nesta área – que, conjugadamente com os outros dois eixos (Luanda/Malange a norte, e Moçâmedes‐Sá da Bandeira a sul),representou a completa estruturação do processo de urbanização de Angola nas suas três frentes geográficas. Efetivamente, com a fundação do Lobitono litoral, e de Nova Lisboa/Huambo no interior, ficava completo o quadro das cidades de dimensão média, administrativas e portuárias, donde secomandaria o crescimento e posterior desenvolvimento urbano de Angola.

A cidade do Lobito teve fundação definitiva e urbana em 1910‐1913, com base no lançamento do Caminho‐de‐Ferro de Benguela (implantado em 1904‐1929), de que a nova urbe era o desejado terminal e cidade‐sede. As potencialidades portuárias (porto executado em 1907‐1922) do local vieram aafirmá‐lo em substituição de Benguela. Embora com um traço adaptado ao recortado contorno costeiro, a malha urbana do Lobito não deixou de seguiro modelo reticulado característico da época, podendo identificar‐se duas áreas: a da língua de areia, de estrutura lineal, alongada no sentido sudoeste‐nordeste; e a do sector mais a sul, onde a retícula se pôde alargar, e que congregava o terminal ferroviário com o centro e os equipamentos principais dacidade.

A cidade de Nova Lisboa/Huambo constitui um caso de desenho urbano especial, com um traçado generoso e de grande escala, invulgar no contextocolonial, pois representou uma atualização dos conceitos urbanísticos de influência europeia (proposta por Ebenezer Howard para as “gardencities/cidades‐jardim”, de 1898); o tema da malha poligonal e irradiante, de matriz centrada, hexa ou octogonal, substituindo o anterior modelo, emretícula modulada e repetitiva, aplicado ao longo do século XIX. Foi fundada em 1912 por Norton de Matos, desenvolvendo‐se continuamente desdeentão como a grande urbe da área central angolana.

Numa comparação, breve e essencial, entre o Lobito e Nova Lisboa, há que destacar que, embora completamente contemporâneas e interdependentes,funcional e materialmente, pela sua ligação ferroviária, a assunção de cada uma delas para objetivos bem diferenciados traduziu‐se em expressõesurbanas respectivas quase opostas: de sentido utilitário e vocação funcional portuária, o Lobito foi desenhado como um espaço terminal, uma praia detrânsito para as mercadorias – logo, com uma malha elementar, em que a retícula tradicional provinda de Oitocentos era ainda a regra geradora;enquanto que em Nova Lisboa, com vocação simbólica e administrativa, que chegou até a querer transformar‐se na nova capital de Angola, como temadominante se elegeu uma malha irradiante, relativamente inovadora na sua época, com a qual se favorecia a marcação urbana, mais monumentalizada,das funções representativas, erigidas no centro cívico do povoado.

Analisemos agora, no contexto de Moçambique, como os processos de urbanização se desenvolveram em paralelo ao caso angolano. Ao contrário deAngola, onde as cidades novas constituíram pequenas urbes, promovendo e resultando da gradual expansão territorial difundida a partir de centrosurbanos principais enraizados, em Moçambique as duas cidades novas, na transição dos séculos XIX para XX, serão desde logo as principais de toda acolónia; ou seja, a nova capital, Lourenço Marques, atual Maputo, e a Beira, uma segunda cidade destinada ao controlo do centro do território e àligação ao novo sistema ferroviário para as Rodésias e Niassalândia.

Isto deveu‐se ao facto de em Moçambique se estar a processar então uma transferência de centralidades, por razões de estratégia nacional einternacional, política e económica, desde o norte de colonização antiga (áreas da Ilha e da Zambézia), para o novo sul a urbanizar. Já em Angola asáreas urbanas dominantes continuaram a sediar‐se em Luanda e Benguela, embora com a micro‐transferência funcional do binómio Benguela‐Lobito e atentativa falhada de instaurar uma nova capital no Huambo.

De facto, Lourenço Marques pode ser considerada a principal criação urbana e uma das mais perfeitas, em termos estéticos e funcionais, efetivada emtoda a África colonial portuguesa desde a fundação de Luanda em 1575. A baía de Maputo, explorada por Lourenço Marques em 1544, tivera umprimeiro arranque em 1782. Em 1867‐1868 erigiu‐se um pequeno povoado (o “Presídio”). Ressalte‐se a expressão urbana quase medieva deste núcleofundador laurentino, que muito diz sobre as capacidades de persistência e de continuidade do urbanismo português, num tempo longo. Elevada a vilaem 1876, o espaço urbano de Lourenço Marques correspondia apenas à Baixa atual. Em 1887, com a expedição dos engenheiros das obras públicas,lançou‐se finalmente um plano de urbe moderna, com grandeza e visão – o Plano de Ampliação da Cidade de Lourenço Marques, assinado por AntónioJosé de Araújo – com uma larga e rigorosa quadrícula de dez vias no sentido sudoeste/nordeste e oito no sentido noroeste/sudeste. Esta foi a base parao crescimento contínuo, e qualificado em termos urbano‐arquitetónicos, da capital moçambicana (desde 1898), nas décadas seguintes.

A Beira começou como um humilde posto militar, em 1887. Na fase seguinte foram constituídos uma série de aterros sistemáticos, com a construção doporto entre 1892 e 1910. O progresso urbano acentuou‐se desde o início da linha de caminho‐de‐ferro que ligava a Beira à Rodésia, atual Zimbabwe, em1899. Elevada a cidade em 1907, a Beira teve um primeiro plano de urbanização em 1930. O núcleo urbano era, na época, essencialmente comercial eportuário, assente em margens pantanosas de rio, o que sempre lhe dificultou o crescimento e a salubridade. O traçado inicial da Beira assumiu umcarácter essencialmente pragmático, sem especial preocupação formal ou estética, o que se coadunava com a sua vocação portuária primacial. Destemodo, o pequeno núcleo genético nos anos 1900‐1915 contornava as áreas pantanosas, com orientação norte‐sul; o seu desenvolvimento seguinte – anos1925‐1930 – processou‐se para sudeste também a fim de evitar os pântanos, e apresentava uma forma de cidade linear, de malha mais regrada erigorosa.

Em síntese, é importante assinalar o contraste entre as características das urbes de Lourenço Marques e da Beira, num quadro genérico que de algummodo nos faz recordar as diferenças entre Nova Lisboa e o Lobito, ressalvadas as diferenças de escala, administativa e funcional, entre os dois grupos.Assim, embora a nova capital moçambicana se tenha estabelecido também como um porto moderno, com utilidade e importância internacionais, foi aBeira que passou a desempenhar a principal função portuária no conjunto do território, em resultado da sua localização central, na cercania da grandebacia do Zambeze, que lhe permitia escoar todos os produtos agro‐industriais com origem nas colónias britânicas interiores, sem costa, situadas aocidente. Em paralelo, a Beira também desempenhou as funções administrativas, embora, por décadas, num quadro específico de sede de companhiamajestática. Deste modo, é natural que a sua malha urbana tenha expressado sobretudo intencionalidades pragmáticas e funcionais, tal como o Lobitoem Angola, sem uma especial preocupação estética.

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Já Lourenço Marques, embora igualmente com função portuária não desprezível, foi pensada essencialmente como a nova capital de um vasto território,ao mesmo tempo que como uma marca de ocupação e de domínio do extremo sul de Moçambique. Exibe, por isso, uma malha urbana de grandequalidade e cuidado estético, que permitia acentuar as funções simbólicas do poder colonial‐nacional, simultaneamente centralizadoras, representativase administrativas.

Outras novas povoações, mais pequenas, foram implantadas nesta época, um pouco por toda a África Subsaariana de influência portuguesa: a dinâmicado processo de urbanização, assentando fundamentalmente em aglomerados de desenho reticulado, mais ou menos tipificado, chegou a Cabo Verde, àGuiné‐Bissau, e naturalmente, às várias zonas dos vastos territórios de Angola e Moçambique. Vila Maria Pia, ou porto da Ponta do Sol, no extremonorte da Ilha de Santo Antão de Cabo Verde, é um dos povoados insulares que merece mais destaque, pelo seu esquematismo, que resulta exemplar deuma instalação urbana mínima na época. De facto, a sua área quase se reduzia à praça fundacional, que ainda recentemente incluía apenas a igreja, acâmara e o hospital. Uma quadrícula, algo grosseira, assinala a vila em gravura de 1900 (Silveira, s/d: vol. II). Na Guiné‐Bissau, a vila de São José deBissau apresentava já certo desenvolvimento em 1884, com casas de dois pisos sobre arcaria, junto ao forte. O forte, de certa dimensão, vem desenhadocom uma proto‐urbanização interna, na planta “Bissau em 1893” (Martins, 1945, p. 404), com o cemitério no exterior. De 1919 é o plano, por certo emretícula geométrica, da autoria do engenheiro José Guedes Quinhones, para a “Nova Cidade de Bissau”, que deve ter servido de base ao atual traçado(Silveira, s/d: vol. II). Como resultante, surge em plantas mais recentes o tecido ribeirinho, junto ao forte, ainda com ruas estreitas, e logo acima, amalha de ruas largas, paralelas e perpendiculares, com larga rotunda central.

Devem ainda mencionar‐se outros núcleos muito pequenos, em Angola (Cabinda, Porto de Ambriz, Malange, Dondo, Catumbela...), que, sendo emborainstalações urbanas oitocentistas, ou fundamentalmente desenvolvidas ao longo do século XIX, não apresentavam na época uma malhasignificativamente reticulada e rigorosa. Atestam, pelo contrário, a sobrevivência e continuidade do urbanismo tradicional português, provindo das fasesanteriores, e traduzido em modestas e pragmáticas sedes administrativas, povoações comerciais ou núcleos de ocupação costeira.

Em Moçambique também se pode assinalar este tipo de núcleos pequenos e de malha aproximativamente reticulada, embora não rigorosa: sãoexemplos António Enes, atual Angoche, ou Porto Amélia, atual Pemba, no norte costeiro do território. João Belo, atual Xai‐Xai, no sul, banhado peloLimpopo, pelo contrário, apresenta um plano de malha reticulada rigorosa (de 1910), de belo efeito na paisagem plana local – tal como Ressano Garcia,na fronteira ferroviária a oeste da capital.

São ainda de referir os desenvolvimentos oitocentistas de algumas cidades existentes (e importantes), provindas da fase anterior, como a Praia, em CaboVerde, São Tomé, Santo António, em São Tomé e Príncipe, Bolama, na Guiné‐Bissau e, claro, Luanda e Benguela – para além de Quelimane eInhambane, em Moçambique. Em todas elas se verifica um claro desenvolvimento urbano, marcado pela renovação de infraestruturas, pela abertura denovos eixos viários, e pela dotação com equipamentos modernizantes. Mas é apenas Luanda que verdadeiramente cresce, transformando‐se num novo eamplo território urbano, ganhando paulatinamente uma escala mais vasta.

Até cerca de 1860, pode dizer‐se que o crescimento da cidade de Luanda foi relativo, e que a sua estrutura essencial se encontrava consolidada desde osmeados de Setecentos. Essa estrutura assentava, ao modo tradicional da cidade portuguesa da expansão, numa implantação litoral, em baíaresguardada, com carácter basicamente defensivo e comercial. Do mesmo modo, duas partes bem distintas organizavam a cidade, a alta e a baixa – e,dadas as características morfológicas do sítio, através de um penhasco marcando um desnível acentuado entre os dois sectores, a separação era mesmofísica, a recordar idêntica configuração urbana em Salvador da Baía ou no Porto. Já o período de transição dos séculos XIX‐XX até ao primeiro quartelde Novecentos corresponde a um amplo aumento da área da cidade, que cresce segundo os vários eixos possíveis, segiundo novas retículas, sobretudopara sul e para leste. No consolidar, ou no remate, deste processo de crescimento, a cidade de Luanda surgiria no início do século XX com uma estruturatriangular, ou em leque, que em planta apresentava os seus três lados na Alta, na Baixa e na nova área de expansão das Ingombotas, com extremos(provisórios) no hospital (sul) e no Kinaxixe (este), irradiando do central Largo da Mutamba. Tratava‐se de um verdadeiro, voluntário, e continuadoesforço de modernização e atualização da velha cidade, que procurou adaptá‐la dignamente à sua função de capital da colónia, à nova escala darealidade territorial de Angola.

Em síntese, a fase de cerca de um século, de 1820 a 1930, foi marcada na área em estudo por uma intensa atividade urbanizadora, sobretudo em Angolae Moçambique, servida por planos de urbanização para novas cidades e povoados de grande, média e pequena dimensão, executados em muitos casosde modo organizado, pelas equipas de engenheiros das obras públicas, seguindo os modelos urbanísticos contemporâneos, bebidos numa nova culturatécnica europeia da época industrial.

A ocupação militar

Em relação à arquitetura militar, o período oitocentista correspondeu a uma ocupação com componente castrense sistemática, de sentido pragmático,mas pouca dimensão estética. Efetivamente, no período analisado, as táticas de guerra evoluíram muito, passando dos processos baseados nos sistemasdefensivos, assentes nas fortificações, para a dominante guerra móvel, baseada em tecnologias mais evoluídas e eficazes de sistemas de ataque. Nestequadro, embora sem deixar de existir, a fortificação tornou‐se mais ligeira, de rápida execução e maior efemeridade – baseada em movimentos de terra,paliçadas, taludes e seus panos de proteção, redutos e trincheiras. O processo castrense foi sobretudo relevante, como é natural, nos dois grandesterritórios continentais, que então se ampliaram enormemente.

Numa primeira fase, este processo desenrolou‐se ao longo das guerras de pacificação; e depois, no quadro da Grande Guerra de 1914‐1918, com umanova série de campanhas militares, de verdadeira defesa de fronteiras, sobretudo no norte de Moçambique, no quadro do conflito aberto com aAlemanha, que dominava o fronteiriço território colonial do Tanganica, atual Tanzânia.

Para além destes temas dominantes, verificou‐se a manutenção, reconstrução ou consolidação das estruturas fortificadas provindas dos séculosanteriores de conquista – tentando‐se em alguns casos a sua modernização, ou, mais raramente, optando pela sua demolição (Forte de Benguela). Istoverificou‐se um pouco por todos os territórios ultramarinos subsaarianos, de Cabo Verde à Guiné‐Bissau, de São João Batista de Ajudá a São Tomé, dosinteriores profundos de Angola (no sul, de Moçâmedes à área do Cunene), aos de Moçambique (na fronteira do Zambeze: o Zumbo, em Tete).

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Em Angola, a atividade militar, muito intensa durante a segunda metade de Oitocentos até aos anos de 1910, permite referir muitas fortificações, dealgum modo também suporte da posterior ocupação efetiva e pré‐urbana do território, sobretudo no sul. Refiram‐se, de norte a sul, exemplos como asfortalezas de Bembe, talvez de 1861, para o interior de Porto Ambriz; de Ambriz, século XIX; em Moçâmedes, os fortes de Santa Rita e de São Fernando,dos meados do século XIX; e ainda Capangombe, fortaleza em 1867‐1869, que foi sede do concelho do Bumbo, suprimido em 1895 em resultado dadeserção dos colonos.

Mais detalhadamente, no norte, refira‐se, em 1852 ou 1857, a fundação do presídio/fortaleza de Malanje, elevada a cidade em 1933. O forte apoiou nosanos 1850‐1860 a feira de Cassange e as campanhas militares contra os jagas. Malanje foi vila, sede de concelho desde 1868 e local de passagem dosexploradores nas décadas de 1870‐1890. Capital do distrito da Lunda desde 1895 até 1921, serviu também as suas campanhas militares de ocupação.

No centro, mencione‐se um pólo de fixação com apoio militar: a povoação de Catumbela, fundada em 1836 como vila, designada Nova Asseiceira, pordecreto de D. Maria II, significou a afirmação da ocupação branca em local de forte povoamento indígena. Catum‐ bela passou a ter um reduto altaneiro,o Forte de São Pedro, em 1846 (classificado oficial‐ mente como o Reduto de Catumbela, segundo Fernando Batalha, 1963), ao abrigo do qual se foramerguendo construções e arruamentos para servir as atividades comerciais de pretos e brancos – seis casas para os filhos da terra foram edificadas em1856.

Para o centro‐sul, a povoação de Huíla, ou Humpata, tentou implantar‐se em 1769, com o nome de Alba Nova (Salvador, 2003, p. 164). Firmado opresídio da Huíla, de 1842, este protegeu os colonatos de Bibala (de 1867), de São Januário de Humpata (de 1880‐1881), e de São Pedro da Chibia (de1883‐1885, que seria vila em 1964). O forte e povoação da Huíla, elevada a vila em 1845, estão representados em desenho por José Leite, comperspectiva e planta, de 1865 (S.G.L. H‐23, e Silveira, estampas 355 e 356).

No vasto sul e interior angolanos, a atividade de fortificação foi intensa: “Em 1886 Artur de Paiva monta os postos militares Princesa D. Amélia e MariaPia na margem esquerda do rio Cubango” (Lobo, 1989, p. 295). Seguem‐se, para sul, entre outros: o posto militar do Mulondo, no Rio Cunene, em 1907(Martins, 1945, p. 457); o Forte D. Luís de Bragança, no Cuamato; também em 1907, nos Dembos, o Forte João de Almeida, em Maravila, o Forte doOuteiro, em Camabatela, e o de Santo António, em Caculo. Em 1909, funda‐se o Forte de Caiundo (Alto Cubango); o Forte Caju (Cunene) e o de D.Manuel (Evale). A partir de 1910, constroem‐se o Forte de São João de Pocolo, o de Otoquero e o de Cafina. Finalmente, o Forte de João de Almeida(Cuíto/Cuninga) completa o dispositivo de ocupação a sul de Angola – essencial na definição e consolidação da fronteira. Nas outras áreas, refiram‐se oposto de Cuílo, na Lunda, e os fortes de Massango e Dalengo, nos Dembos (Lobo, 1989, pp. 296‐297). No distrito do Cunene, sobre o rio homónimo, eperto da fronteira sul, podem reconhecer‐se as ruínas do Forte Roçadas/Xangongo, das campanhas deste militar em 1914. Deste processo de ocupaçãomilitar decorriam as implantações urbanas – Vila Pereira D’Eça/Ondjiva (ou N’giva), para leste de Xangongo, ocupada militarmente no início do séculoXX, foi elevada a vila em 1923.

Como em Angola, a arquitetura militar acompanhou ao longo de Oitocentos o progresso no domínio do território moçambicano: logo em 1820 foierigido o Forte de Santo António, na Ilha de Moçambique, mais tarde restaurado em 1892. Conhecem‐se igualmente plantas do Forte de São JoãoBatista da Ilha do Ibo, levantado em 1817; da Fortaleza de São Sebastião de Moçambique, obra quinhentista, redesenhada em 1821 e 1842; da Praça deSão Tiago Maior de Tete, com levantamento de 1855. O Forte de São Pedro de Alcântara em Tete, construído em pedra e barro em 1836‐1837, ficou maistarde derruído; um novo forte, de D. Luís, no mesmo local, mas em pedra e cal, ergueu‐se em 1871‐1874. Enumerem‐se ainda o Forte Princesa Amélia,na Zambézia, em 1888; mais tarde, o Forte do Chibuto, de 1897, de que há planta; o Forte de Ibraímo, em 1897; o Forte D. Carlos, de 1899, e o Forte D.Luís Filipe, de 1900, no Niassa; finalmente, em 1912, o Forte de Tenente Valadim, em Muembe. As chamadas campanhas de pacificação dos anos 1890‐1900 estão diretamente relacionadas com esta sequência de instalações, que, como se vê, se espalharam de norte a sul e das áreas costeiras ao interiormais profundo.

De ressaltar, por fim, as campanhas militares levadas a cabo durante a Primeira Guerra Mundial, na fronteira com o germânico Tanganica, onde sedesenvolveu uma dificílima ação guerreira, nomeadamente concretizada na linha de postos militares ao longo da margem direita do Rovuma, como o deNamoto, em 1916. Foi este processo que permitiu a preservação de todas as áreas territoriais do norte moçambicano, durante o período de conflito coma Alemanha.

Arquitetura religiosa, das igrejas às missões

No quadro predominantemente laicizante dos processos de urbanização de Oitocentos, verificou‐se pouco investimento público no tema religioso, porcomparação com a época anterior. Claro que se erigiram mesmo assim inúmeros novos templos, dada a continuidade profunda, dentro do tecido socialde origem católica, dos modelos de organização social das novas comunidades, onde a paróquia sediada na igreja matriz era regra.

Tal como para a arquitetura militar, a religiosa não brilhou especialmente nesta fase, quer em relação à qualidade das obras arquitetónicas, quer à suacapacidade de inovação ou introdução de novos modelos. Há que entender esta situação também nos aspectos estilísticos e do gosto. O século XIX foiatravessado pela atitude revivalista, depois evoluindo para uma fase de ecletismo generalizado, no contexto do surgimento e desenvolvimento doromantismo. Esta atitude de regresso a, ou de evocação de, modelos já experimentados em outras épocas históricas, condicionou à partida toda equalquer atitude de mudança ou tentativa de inovação.

Assim, pode dizer‐se que a arquitetura das novas igrejas das áreas coloniais africanas – correspondendo, sobretudo, às novas cidades e povoações – foievoluindo gradualmente, de um modelo de expressão classicizante, por vezes mais clássico, outras mais barroco, arreigado aos temas tardo‐setecentistas, para os modelos revivalistas românticos propriamente ditos, que tiveram no neogótico a sua expressão preferencial. Tal terápossivelmente resultado da influência global inglesa e sua capacidade de difusão internacional, já que a Inglaterra privilegiou desde o início desta faseeste modelo medievalista.

Deste modo, dos meados de Oitocentos para a transição dos séculos XIX‐XX, constatamos a preponderância inicial do modelo clássico, nas igrejasmodestas dos pequenos povoados de Cabo Verde – como em Nossa Senhora da Luz, no Mindelo, de 1853‐1863; na Igreja Matriz de Maio, dos anos

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1870; ou na Igreja de Santo Adrião de Moçâmedes, dos anos 1840‐1850. Nelas domina a habitual composição simétrica, expressa na fachada, com ofrontão central, triangular ou curvo, ladeado de uma ou duas torres. Já nas décadas à volta de 1900 constatamos a assunção clara do revivalismoneogótico – na Igreja do Tarrafal, em Santiago de Cabo Verde, na igreja inicial de Lourenço Marques, de 1888, ou na Catedral da Beira. São exemplos deigrejas torreadas, em que a torre surge frequentemente em posição central, na tradição de algum gótico francês, com marcação expressiva das linhasverticais e aplicação sistemática do arco ogival.

Ao longo do século XIX colonial, a Igreja soube de algum modo reinvestir a sua capacidade de influência, criando sucessivas obras territoriais,sobretudo nas áreas de ensino e de assistência. Não se tratava já da instalação em contexto urbano das grandes casas religiosas conventuais do passado,mas, ao contrário, da aposta na colonização do território rural, dos vastos hinterland (de Angola e Moçambique) que a progressiva pacificação militardeixava de algum modo disponíveis. Surgiam assim as missões católicas.

Deve, por isso, ressaltar‐se aqui a importância das missões – católicas e protestantes – como processo de fixação e colonização dos territórios ruraisatravés do fornecimento de assis‐ tência e ensino. Constituíam‐se em aglomerados de edificações funcionalmente diversificadas, centradas no temareligioso. Apenas como exemplos, refiram‐se: em Angola, a Missão da Huíla, fundada em 1881, que em 1914 se transformou em posto administrativo doconcelho do Lubango e em 1922 em sede de concelho; a Missão de Caconda, fundada em 1890, com uma arquitetura de evocação genericamentemedievalista; e em Moçambique, a Missão de Boroma que, constituída originalmente como uma missão de jesuítas em 1885, foi depois dirigida pelosmissionários da Congregação do Verbo Divino. A Igreja de São José de Boroma, cuja fotografia foi divulgada nos álbuns de Santos Rufino, foi depoisclassificada como monumento nacional por portaria de 1945, sendo nela instalada uma Escola de Artes e Ofícios.

Infraestruturas e equipamentos

O século XIX foi um tempo de descoberta da vasta dimensão social das cidades e dos territórios: a Revolução Industrial e a consequente explosãourbana, com novas e extensas comunidades humanas vivendo na cidade, disseminadas um pouco por toda a Europa e América, a isso levaram. Osespaços coloniais não ficariam imunes a esta dimensão nova, refletindo a dinâmica das respectivas potências colonizadoras.

No caso português, com as limitações conhecidas, também se verificou este processo. Pode dizer‐se que, na África Subsaariana, a seguir ao significado eimportância das novas cidades de padrão geométrico de Oitocentos, foram os espaços de utilização civil, com os inerentes contributos para asocialização das populações, que constituíram o feito mais relevante desse século. Ou seja, o conjunto das redes de comunicação e dos novosequipamentos urbanos, com os espaços de apoio ao transporte, os equipamentos comerciais, assistenciais, escolares, cívicos – as câmaras, os correios,os telégrafos.

Ocupação do espaço e primeiras explorações sistemáticas de recursos tropicais

O sistema moderno de transportes, assente numa continuidade espacial e material (linha férrea, estações, armazéns), tendendo a funcionar em rede, foigradualmente estruturando os territórios de Angola e Moçambique segundo linhas de penetração distribuídas de modo equilibrado ao longo da vastidãodas suas áreas. Esta organização da ferrovia em rede, significando a aplicação dos processos industriais ao contexto colonial (arquiteturas do ferro e doaço, a máquina a vapor, com o consequente aumento da velocidade e das capacidades de transporte), permitiu a exploração em grande escala dosrecursos agrícolas nas novas regiões dominadas.

Em São Tomé e Príncipe as roças para plantação do cacau e do café constituíam espaços agroindustriais adaptados ao contexto climático e insular,usufruindo de uma utilização do trabalho indígena em condições já criticadas na época, e que se situava perto das da antiga (e supostamente extinta)escravatura (> imagem junta, 2001); a produção resultante era rapidamente escoada para os cais de exportação através de pequenas vias‐férreas detransporte por vagonetas. Paralelamente, em vastas áreas de Moçambique, a partir de 1890‐1892, a concessão por várias décadas da exploraçãoeconómica de alguns territórios (Zambézia e Niassa) a companhias internacionais monopolistas de carácter majestático permitiu a exploração intensivadas riquezas naturais locais, com recurso fácil a mão‐de‐obra barata.

Em Angola, o caminho‐de‐ferro foi um verdadeiro agente de domínio e urbanização na transição dos séculos XIX e XX, em paralelo com o contributodas instalações comerciais, religiosas e militares e com a ação administrativa de Norton de Matos na Primeira República. Os principais eixos criadosforam: a linha de Luanda a Malanje, lançada entre 1886 e 1910 e que em 1929 já pertencia ao Estado; a linha desde Porto Amboim a Gabela, construídaentre 1923‐1925, também por iniciativa particular; a linha‐férrea mais extensa, lançada entre 1903‐1904 e 1929, que atravessaria todo o território nosentido oeste‐este, ligando o Lobito a Benguela, chegando a Nova Lisboa em 1912, ao Kuíto/Bié em 1923, e à fronteira em 1929; finalmente, a linha deMoçâmedes para o interior, pertença do Estado até 1907, que alcançaria Sá da Bandeira em 1923 e se prolongou nos anos 1960 a Matala. Dois terçosdesta rede foram fruto da iniciativa e dos capitais ingleses. O progresso efetuado foi impressivo, nas décadas de 1910‐1930: cerca de 1.000 quilómetrosde ferrovias em 1912, e cem quilómetros de estradas; 1.500 quilómetros de ferrovias em 1924 e já 25.000 quilómetros de estradas; e 2.260 quilómetrosde ferrovias em 1931.

Outra área de ação infraestrutural foi o açude em betão do Catumbela, para produção de energia elétrica – testemunhada fotograficamente em 1913. Nodomínio portuário, o cais acostável no Lobito estava em construção em 1929. Em Moçambique, os caminhos‐de‐ferro desempenharam o mesmo tipo defunção de domínio e unificação territorial que em Angola, e foram também responsáveis por assinalável desenvolvimento urbano nas povoações doterritório. Um exemplo maior é a via‐férrea que ligou Lourenço Marques à fronteira de Ressano Garcia, iniciada em 1883 com exploração ativa desde1889‐1890 na parte portuguesa, embora só tenha atingido Pretória em 1894. Mas criaram‐se outras vias, como a de Lourenço Marques a Goba, desde1912; do Limpopo, de Moamba a Xinavane, 1914; de Marracuene, de Lourenço Marques a Vila Luísa, de 1914 a 1930; de Inhambane a Inharrime, em1912; de Quelimane a Mocuba, de 1913 a 1922; da Ilha de Moçambique, lançado em 1924; de Gaza, em 1915; e o caminho‐de‐ferro de Tete, concluído em1922.

Porém, a linha mais significativa deste conjunto territorial é sem dúvida a do caminho‐de‐ferro da Beira à Rodésia/Zimbawe, lançado entre 1893 e 1899;registem‐se a ponte de ferro e o viaduto em betão sobre o Rio Pungué e a fundamental ponte metálica sobre o Zambeze, ligada à linha da Trans‐Zambézia, do Lago Niassa ao Zambeze, em construção em 1931‐1935. Mencione‐se a ponte urbana, sobre o Rio Chiveve, na Beira, em tramos metálicos

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sobre pilares de pedra.

Apenas nos arredores de Lourenço Marques as ferrovias assumiram a dimensão de micro‐rede, enquanto as restantes se podem agrupar em dois tipos:grandes eixos (a sul, centro e norte, com ligação internacional, cada um com várias centenas de quilómetros de extensão) e ramais, curtos ou longos,para ligação a cidades como Vila Cabral, Tete, Quelimane ou João Belo/Xai‐Xai.

Na extensa área territorial de Moçambique, destaquemos as vias mais longas e estruturantes, assinaladas na cartografia do território de cerca de 1960:Linha de Guijá – Lourenço Marques a Guijá; Linha da Beira – Beira a Machipanda, na fronteira, seguindo para a Rodésia do Sul; Linha da Trans‐Zambézia – Beira a Donana e fronteira, seguindo para a Niassalândia; Linha de Tete – Donana a Moatize; Linha de Nacala – Nacala a Cuamba (nosanos 1970 a linha seria prolongada até Vila Cabral, passando por Nova Freixo, onde derivava para a fronteira).

É importante constatar a concatenação entre os diferentes tipos de infraestruturação em curso em Angola e Moçambique, sobretudo na fase maisintensa de desenvolvimento, na transição dos séculos XIX‐XX: as redes ferroviária e rodoviária, esta um pouco mais tardia, as primeiras obras deprodução de energia elétrica, a edificação das primeiras indústrias e a modernização dos cais e pontes‐cais acostáveis nos portos urbanos. Assim secriava um sistema circulatório, fluido, de dimensão internacional, isto é, intercolonial, permitindo força motriz para a produção de matérias, otransporte terrestre das mesmas, e o seu escoamento por via marítima.

Um dos fenómenos mais típicos do primeiro período da adoção de esquemas de produção intensiva apoiados em sistemas de transporte de tecnologiamoderna foram as já refe‐ ridas roças de produção de café, que adquiriram em São Tomé e Príncipe uma feição particular, com nítida incidência sobre acriação de equipamentos específicos, que merece a pena tratar de forma mais detalhada nos parágrafos consagrados a estas ilhas. Um dos casos maisespetaculares é o da Roça Rio do Ouro, atualmente designada Agostinho Neto, na Ilha de São Tomé, com a sua dimensão territorial, assente eestruturada em vastos espaços abertos de uso coletivo, como o longo terreiro ligando o hospital e a capela com os edifícios de serviços e residenciais.

A arquitetura civil e equipamental – o contexto romântico‐revivalista e eclético

Como se referiu em relação aos estilos da arquitetura religiosa oitocentista, nos equipamentos e obras civis a tendência geral nas áreas coloniais –seguindo os padrões culturais dominantes das principais potências colonizadoras – foi a utilização dos estilos históricos, contemplando uma série demodelos ou tipos arquitetónicos em geral seguindo padrões de evocação de épocas do passado – fundamentalmente as fases medieval e clássico‐barroca.

A esta crise de significação da arquitetura ocidental, explicável no quadro cultural mais lato do romantismo, correspondeu, por outro lado o rápidodesenvolvimento das novas tecnologias e correspondentes materiais construtivos inovadores – ferro e aço industriais, pré‐fabricação, vidro laminado –fruto da Revolução Industrial.

Opostamente à atitude romântica, a produção fabril punha à disposição das sociedades urbanas uma extensa e acessível gama de formas e tiposconstrutivos, bem adaptados às necessidades práticas da época e às novas funções inerentes, com especial relevo para as sociedades coloniais africanas,onde muitas novas cidades estavam em plena edificação, e onde o acesso àquelas novidades dependia da importação da Europa. Assim, o panorama daarquitetura de equipamentos urbanos foi, nas décadas e áreas aqui estudadas, de grande variedade, assumindo muitas vezes aspectos contraditórios:formas assumidamente revivalistas e soluções pragmáticas e de grande modernidade. Mas deve acentuar‐se a importância e qualidade arquitetónica demuitas soluções de edifícios de equipamentos edificados nestes locais.

De um modo geral, podem considerar‐se três grandes grupos de soluções arquitetónicas entre 1870 e 1930, umas de tipo mais estilístico dentro doromantismo e do ecletismo, outras de feição mais tipológica, dentro do recurso aos materiais e técnicas industriais: a chamada arquitetura das obraspúblicas, de iniciativa oficial, estatal ou municipal, baseada num corpo de autores engenheiros e arquitetos, técnicos de carreira, que privilegiou a linhade continuidade e as regras da tradição construtiva pública, enraizada na época pombalina, com estruturas edificadas sólidas, tecnicamente bemapetrechadas, construídas em alvenaria, com pavimentos de madeira, coberturas telhadas ou em chapa metálica, e fachadas representativas de formasausteras, tipificadas, classicizantes, neo‐clássicas – por vezes, revivalistas do medieval – ou, já no século XX, mais ecléticas, integrando os elementosmais contemporâneos da art nouveau, da art déco, etc.; uma arquitetura do ferro, utilizada comummente pela iniciativa pública e privada, de sentidopragmático e vocação equipamental, por vezes também utilizada pelas referidas obras públicas, e residencial, com os característicos pavilhões deelementos pré‐fabricados, apoiados em finos pilares metálicos, de longas galerias ou avarandados, que preencheram muitas novas avenidas em retículadas principais urbes, com ruas ladeadas por edifícios de vãos protegidos por persianas e com coberturas em chapa de zinco, servidas por transportesmecânicos, e alegradas com quiosques, coretos e o restante mobiliário dos jardins públicos; o chalet, construção de inspiração regionalista das áreascentro‐europeias, com amplo recurso a madeira aparente na sua estrutura e revestimento, coberturas muito inclinadas e sancas de madeira ornamental,salientes e formando um expressivo sombreamento, cuja utilização se estendeu também aos espaços de habitação, mas teve significativa utilização emequipamentos.

A arquitetura classicizante das obras públicas

As edificações das obras públicas, ou nelas inspiradas, dentre um leque de funções muito abrangente, apresentam alguns exemplos mais notáveis naárea dos transportes (alfândegas, estações de caminho-de‐ferro), nas sedes municipais (câmaras), e em edifícios governamentais, quartéis, tribunais,prisões.

As alfândegas representam um tema fundador da moderna fiscalidade e do controlo de espaços portuários e comerciais, essencial no desenvolvimentourbano. Daí a sua presença constante, quase sempre seguindo um modelo estilístico classicizante. Destaquemos a antiga Alfândega do Mindelo – umedifício térreo, erigido sobre a baía, com o corpo central rematado por frontão, exibindo um delicado desenho arquitetural, com uso de pedra branca emolduras de vãos classicizantes. Foi edificada entre 1858 e 1861, sendo ampliada em 1880‐1882. Refiram‐se ainda as obras da Praia, de cerca de 1880,de Benguela, de 1870, remodelada em 1914 com estruturas metálicas, e com ponte‐cais de 1876, de Moçâmedes, de 1863‐1866, e de Sá da Bandeira, de1900‐1905.

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As estações de caminho‐de‐ferro urbanas foram outro tipo de construção sistematicamente desenvolvido nesta época, a par da implantação das ferroviasao longo do território, e símbolo acabado da modernização dos sistemas de transportes, adotando muitas vezes o desenho classicizante. Exemplifiquem‐se com as de Moçâmedes, obra de frontão e vãos de arco redondo, de Benguela e de Sá da Bandeira, de 1905‐1923 esta última, pelo arquiteto HumbertoTrindade.

Os edifícios municipais constituíram outro elemento simbólico da estruturação urbana dos territórios. O tema classicizante foi também o maiscomummente adotado: na Câmara do Mindelo, de 1862‐1873, com frontão clássico e torre de relógio; na da Praia, de 1860; na de Bolama, de volumeimpressivo, com um longo frontão triangular central apoiado em colunas de ordem toscana rematando um corpo de vãos com proporção vertical, decerca de 1900; em Luanda, de 1890‐1911, com projeto por Artur Gomes da Silva; na de Benguela, iniciada em 1893, em Sá da Bandeira, de 1900‐1915, eem Lourenço Marques.

Os palácios do governo exprimiram a dominação política centralizadora nos principais centros urbanos. Exemplifiquem‐se com o Palácio do Governo deMoçâmedes, obra de 1857‐1889, de desenho classicizante, com frontão triangular central, vãos de arco redondo e platibanda sobre a frontaria. Tambémo vizinho edifício do Tribunal, da mesma cidade, exprime esta dimensão simbólica, tal como o afirmativo edifício de Inhambane.

De desenho diferente, embora na mesma esfera classicizante, encontram‐se os edifícios do Tribunal da Beira e da Escola de Artes e Ofícios da mesmacidade: largas arcadas redondas, sequenciais, envolvendo todo o edifício, em longos avarandados de dois pisos, lembram a arquitetura pública deMacau, ao longo da Praça do Leal Senado, com a sua expressão clássica internacionalista.

De maior elegância, embora sempre dentro do mesmo padrão, são o duplo conjunto do edifício dos Correios de Lourenço Marques, de Carlos RomaMachado, de 1899, e do edifício da Fazenda, na mesma cidade, de Mário Veiga – um par vizinho, abrindo para a avenida principal e assumindo a suadimensão funcional com o gracioso avarandado central nos pisos superiores de ambos. No Mindelo, devem referir‐se ainda a edificação sede das antigasObras Públicas, de 1880‐1882, sita na central Rua de Lisboa.

Os conjuntos hospitalares representaram um esforço de modernização assistencial, vindo substituir os envelhecidos equipamentos existentes. Foramquase sempre obras pavilhonares, procurando nesse sistema as melhores condições higiénicas, onde domina o signo classicizante. Refiram‐se o HospitalD. Maria Pia, em Luanda, com corpo central de frontão, de 1865‐1883; o de D. Carlos, em Benguela, de 1888, com planta radial de vários pavilhõestérreos; o Hospital de D. Amélia, em Moçâmedes, com corpo central de dois pisos e frontão; o Hospital de Miguel Bombarda, em Lourenço Marques,obra funcional, de largas galerias cobertas, pelo engenheiro João Ferreira Maia, de 1879, ampliado em 1889; e o imponente Hospital Novo, da Ilha deMoçambique, de 1877, executado a partir de projeto por Isaías Newton.

Alguns revivalismos e os exemplos ecléticos

As obras públicas adotaram em alguns casos a expressão revivalista mais explícita, como o neogótico, associado frequentemente aos temas castrenses(Quartel da Praia, Cabo Verde) ou prisionais (Cadeia da Beira, Moçambique).

O tema gótico mais nacional, o neomanuelino, que teve em Portugal uma presença significativa entre as últimas décadas de Oitocentos e os anos de1920, também encontrou expressão em algumas edificações coloniais, embora já em pleno século XX. São exemplo: a original e algo kitsch antigaCapitania dos Portos (ou do Porto Grande) do Mindelo – uma obra de 1918‐1921, completada em 1937, que se definiu como uma ingénua imitação daTorre de Belém, em Lisboa, com formas simplificadas e erigida em betão armado, tendo sido recuperada em 2005; o Pórtico do Jardim Vasco da Gama,no centro de Lourenço Marques, de 1924; e o tardio Museu Álvaro de Castro, na mesma cidade, de 1931‐1933.

Embora constituindo casos mais isolados, os revivalismos ditos exóticos também marcaram presença nas áreas coloniais, como fenómenos de modacorrentes na sua época. Exemplifiquemos com o vasto Capitania Buildings, no porto de Lourenço Marques, em holandês colonial (de 1899‐1901, peloarquiteto F. J. Ing, construído por Tom Midgely, de Durban, atestando a influência da África do Sul naquela colónia); com o gosto árabe, ou islâmico,expresso na Mesquita de Lourenço Marques, de 1887; e com o chamado “neo‐renascença”, inspirador da fachada do Teatro Varietá, também emLourenço Marques.

O ecletismo, correspondendo a uma fase derradeira do romantismo, transpôs o início do século XX e integrou elementos da composição maistradicional (simetria de corpos, alinhamento seriado de vãos) com outros inovadores, fruto das influências art nouveau que internacionalmente sefizeram sentir desde os anos 1900 (agrupamentos de vãos em grandes áreas envidraçadas, decoração vegetalista, polícroma). São exemplos: o Liceu doMindelo (antigo Liceu Nacional), instalado em 1917‐1921 em anterior quartel, de 1873, com novo piso, datado de 1927‐1932, e um desenho tripartido devãos a recordar os liceus de Ventura Terra em Lisboa; o Palácio do Governo do Mindelo – obra térrea de 1874, com segundo piso e um curioso pórtico debetão, de 1928‐1934; o Palácio da Ponta Vermelha, em Lourenço Marques, de 1895‐1905, um palacete de linhas elegantes; o chamado Prédio Pott,também em Lourenço Marques, de 1891‐1904, por Gerard Pott, cônsul do Transval; o Banco Standard, na Beira, com impressiva colunata classicizantena fachada; e os edifícios do Banco Nacional Ultramarino e dos Correios e Telégrafos, na Ilha de Moçambique.

Três obras de grande envergadura merecem um destaque especial neste quadro estilístico: a Estação de Caminho‐de‐Ferro de Lourenço Marques, comespaços concebidos pelo engenheiro Alfredo de Lima, em 1908‐1910, construída por Buccellato & Irmão, sendo a fachada de típico ecletismo francêscom exuberante decoração do torreão central, por Ferreira da Costa, de 1916, também autor do Comissariado da Polícia da cidade, de 1917, igualmentede opulenta decoração volumétrica; o vasto Hotel Polana, em Lourenço Marques, por Walter Reid, com o engenheiro Hugo Le May, de 1917‐1922; e oPalácio dos Correios, ou das Comunicações, em Luanda, de 1921‐1923, atual Ministério das Telecomunicações, com corpo central destacado, de vãostriplos unidos.

Exemplos da arquitetura do ferro, do betão armado e dos chalets

Os exemplos neste campo exprimem a já referida importação de materiais industriais pré‐fabricados, provindos dos países europeus tecnicamente maisavançados, e que permitiu a ereção de numerosos imóveis numa perspectiva essencialmente funcional, ao contrário da arquitetura de autor que antes se

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procurou caracterizar. Esta produção, baseada num protofuncionalismo claro, gerou obras imbuídas de uma beleza tipológica, estandardizada pelasimplicidade eficaz dos perfis e materiais industriais. Podem destacar‐se vários imóveis desta época com estas características: a antiga Estação do CaboSubmarino de Benguela, construída em 1889, para serviços telegráficos, atual Centro Universitário da cidade, restaurada em 2001, com dois pisos demodulada fenestração, cobertura em ampla superfície metálica e sistema de ventilação superior; o Palácio do Governador, de Bolama, que se assumecomo obra característica dos trópicos, com amplos avarandados em galeria, cobertos, envolvendo o piso superior dos seus três volumes sequenciais,com vastos telhados; na mesma linha expressiva, o Palácio do Governador de Cabinda, do tipo de finais do século XIX, com varandas coloniais e amplacobertura telhada. Pode‐se incluir no mesmo grupo o Palácio do Governo de Benguela, um chalet de sobrado, já existente em 1880, reconstruído emgosto neoclássico, atual sede do Governo da Província de Benguela. No Lobito, como sede e terminal da Companhia de Caminhos‐de‐Ferro de Benguela,destaca‐se a longa arquitetura pavilhonar, modulada e geométrica do Hospital, da Sede e do Hotel da Companhia, todos obras do início do século XX.

Os mercados foram a peça de equipamento que, pela sua natureza e exigências funcionais no quadro dos trópicos, utilizou preferencialmente na suaconstrução os sistemas metálicos estandardizados, que permitiam bons arejamentos e ventilação natural em abundância. Exemplifiquemos com: oMercado Municipal do Mindelo, de 1878, ampliado em 1930‐1933, utilizando o ferro e depois o betão; o Mercado da Praia, pensado em 1873,pavilhonar, com obras de remodelação e modernização em 1929; e o mais amplo, o Mercado Vasco da Gama, de Lourenço Marques, construído porDavid & Carvalho em 1901‐1903.

A hotelaria dos inícios do século XX utilizou abundantemente as edificações em estrutura metálica laminada, com suporte em finos pilares. É exemplo,de refinada elegância, o antigo Hotel Club de Lourenço Marques, atual Centro Cultural Franco‐Moçambicano, obra de 1898, pelos arquitetos Wells &Inc., construído por Rochelle & Smith.

Os edifícios comerciais correntes das áreas centrais das cidades (as baixas) também recorreram às estruturas metálicas tipificadas como forma deconseguir áreas acessíveis em vários pisos, que permitissem as construções de rápida ereção em áreas de grande necessidade de rentabilização.Exemplifique‐se com o Banco Ultramarino do Mindelo, atual Banco de Cabo Verde, de avarandado em ferro, de 1915 e 1922, na rua central da cidade; eo conjunto, em pátios e avarandados metálicos, do atual Arquivo Histórico Fotográfico do Maputo. Na Beira, ainda são sobreviventes desta época etipologia o antigo edifício Oceana Coys Building e a Casa Portugal.

A chamada arquitetura do betão armado produziu poucos mas interessantes exemplos, onde se privilegiaram as estruturas aparentes de pilares e vigasde betão armado. É o caso do antigo Pavilhão de Chá, no litoral de Lourenço Marques, de cerca de 1900, já demolido. Dentro do tipo de espaçosedificados seguindo o modelo do chalet, destaca‐se o conjunto de chalets da Missão Americana, em Luanda, de cerca de 1900.

Arquitetura de habitação

Já se referiu a frequente mescla entre a utilização de estruturas metálicas estandardizadas e as formas mais culturalistas do chalet, que a habitação datransição dos séculos XIX‐XX produziu nas áreas coloniais. Emblemáticos desta situação mista são o Palácio de Ferro em Luanda, montado em 1896pela Companhia Comercial de Angola, exuberante na sua aplicação decorativa metálica, recuperado para Museu do Diamante em 2008, o antigo Paláciode Verão do governador do Lobito, com três pisos de avarandados curvos, encimados por uma cobertura hexagonal “de coreto”; e a Casa de Ferro, emLourenço Marques, de 1893, obra pré‐fabricada, chapeada, recentemente sede do Instituto Nacional do Património do Maputo.

Pode ainda mencionar‐se o elegante palacete de ferro, de feição residencial, com avarandado a toda a volta, que constitui a atual Embaixada de Portugalem São Tomé.

Num registo mais convencional, em termos de construção, o século XIX colonial correspondeu também a inúmeros edifícios de habitação e comércioerigidos em contextos urbanos centrais, com volumetrias longas e compactas, utilizando as tradicionais alvenarias, taipas e adobes (materiais e técnicasmais baratos e acessíveis) nas estuturas de paredes, com pavimentos em madeira e as coberturas telhadas ou em metal. São exemplos o grande edifíciode construção tradicional, a Casa Gomes & Irmão, no Lobito, de desenho exterior com vãos num modesto neogótico no piso superior, e balaustrada, decerca de 1920; ou, no Novo Redondo, a vasta Casa Comercial de A. J. de Araújo, de cerca de 1905, com piso térreo convencional em alvenaria e pisosuperior “achalezado”.

Um exemplo sobrevivente da construção corrente do final do século XIX, em meio urbano, é o edifício Mabílio de Albuquerque, de 1894, com vãos dearco redondo, dotado de dois pisos, cimalha corrida e estatuária cerâmica, erigido em rua central de Luanda, a recordar a “arquitetura conserveira”, deampla utilização cerâmica e policromia, do sul de Portugal, Algarve, dos anos 1910‐1920.

1930‐1975: urbanização, infraestruturação, arquitetura. A dimensão moderna. Salazarismo e Guerra Colonial

África Portuguesa, com Angola e Moçambique, no espaço colonial português

A revalorização colonial fez‐se sentir nos espaços de dominação portuguesa ao longo da primeira metade do século XX. No seu terceiro quartel, porém,foi intensa e violentamente questionada, acabando por se extinguir. A ideia da África Portuguesa, que se baseou sobretudo nos vastos territórios deAngola e Moçambique, assumiu grande significado, sendo apresentados pelo Estado Novo como incorporados na comunidade portuguesa e como novasterras de oportunidade, migração e desbravamento.

Terminado o ciclo colonial brasileiro, Portugal tentou a reestruturação dos outros espaços ultramarinos. As ilhas atlânticas beneficiaram da suaproximidade sociocultural e geoadministrativa da metrópole, sendo o estatuto de Cabo Verde entendido num plano intermédio, dada a implantaçãoentre a África e a Europa; as áreas da Guiné e de São Tomé e Príncipe constituíam fragmentos do anterior e maior espaço de domínio – o Golfo daGuiné; e os reduzidos vestígios do Oriente ficavam definitivamente distantes e perderam o anterior protagonismo. Angola e Moçambique, ao contrário,formavam amplos espaços continentais, aptos para consolidar as novas estratégias coloniais.

Neste quadro há, pois, que entender o papel central de Angola e de Moçambique, analisando e valorizando os respectivos processos coloniais, quer pela

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dimensão e capacidade atrativa, quer pelas efetivas realizações urbano‐arquitetónicas. São patentes, na sua relação com os restantes territórios luso‐coloniais africanos, os contrastes de escala, e consequentemente da diversidade e intensidade das transformações verificadas.

Criação de um espaço colonial nos anos de 1930‐1950

As décadas de 1930, 1940 e 1950 foram muito marcadas em Portugal pela vontade política de definir, ideológica e miticamente, um “espaço colonial”,procurando criar uma nova noção de Império, apoiada numa forte simbologia historicista e numa prática comemorativista. A atuação resultante, comobjetivos conjuntos e agregadores, teve consequências significativas nas áreas africanas de dominação portuguesa.

Foi uma época de frequentes viagens presidenciais às colónias, inicialmente com Carmona, depois com Craveiro Lopes e finalmente, já nos tardios anos1960‐1970, com Américo Thomaz e Marcelo Caetano, durante as quais se repetiram inaugurações de monumentos aos heróis da História, deequipamentos e infraestruturas, pontuadas por exposições de propaganda como a Exposição‐Feira de Luanda em 1938 e outras celebrações públicas (oscinquenta anos da cidade do Lobito, em 1962).

Paralelamente, incrementaram‐se as ações estruturadas de planeamento e implantação de uma rede moderna de serviços, transportes e decomunicações através da construção dos respectivos equipamentos e espaços estatais, que deram uma expressão sistematizadora a essa modernização(correios e telégrafos, escolas, hospitais, infraestruturas, etc.), com investimentos relevantes e abrangentes.

Neste contexto, deve assinalar‐se a produção oficial de arquitetura e de urbanismo para as colónias, a qual, numa primeira fase, nos anos de 1920‐1930,era ainda assegurada, de forma irregular, pela itinerância dos técnicos, arquitetos‐urbanistas, ao longo dos vários territórios. Exemplifique‐se com ocaso de Carlos Rebelo de Andrade, que dava apoio às iniciativas da administração nas regiões por onde passava, nos campos da arquitetura e dourbanismo. Assim, da sua viagem por Macau, Beira e Lobito, em 1929, resultaram diversas obras e planos. Este sistema itinerante assentava porém ematuações individuais de alcance pontual, que se revelaram insuficientes para dar corpo à efetiva reestruturação e modernização dos espaços coloniais.

Em 1932 houve uma tentativa de alteração do sistema, propondo‐se a criação em Lisboa de um serviço estatal de urbanismo para as áreas ultramarinas:o pedido de um Serviço Central de Urbanismo Colonial, feito ao ministro das colónias pela sociedade dos arquitetos da época. Mas a coordenaçãocentralista da produção de planos urbanos, de infraestruturas e de equipamentos só se tornou efetiva em 1944, com a criação do Gabinete deUrbanização Colonial, posteriormente intitulado “do Ultramar”, instituído pelo então ministro Marcelo Caetano. Com sede em Lisboa, este gabineteproduziu uma extensa obra de planeamento urbanístico, sob a orientação do arquiteto João António Aguiar, discípulo do urbanista Faria da Costa,também muito ativo no Portugal ibérico, e a colaboração de outros arquitetos, como Lucínio Cruz, Mário de Oliveira (urbanista como Aguiar), FernandoSchiappa, José Gomes Bastos e o engenheiro Girão. Francisco Castro Rodrigues trabalhou também neste Gabinete, com o seu colega Costa Martins, natransição dos anos 1940‐1950, bem como, mais tarde, o arquiteto Victor Consiglieri.

O Gabinete assumiu um sentido dirigista, refletindo a atitude centralista e autoritária do Estado, muito à volta do arquiteto João Aguiar, queconcentrava em si frequentes viagens de trabalho às colónias, de teor urbanístico e arquitetónico. O Gabinete serviu também, no aspecto formativo,como estágio profissional, e, indiretamente, como um processo de divulgação de diferentes áreas geográficas, que surgiam como possibilidades novas deespaço de vida e de trabalho, sendo significativo o caso de Castro Rodrigues, que foi mais tarde trabalhar e viver em permanência para África.

No período de 1940‐1950 incrementou‐se assim, com bases técnico‐políticas sólidas e centralizadas, um crescente investimento na organização eplaneamento urbanístico dos territórios africanos, com os planos de urbanização e a expansão das redes rodo‐ferroviárias e infraestruturais. Na faseseguinte, em 1950‐1960, predominaram as tentativas de novas formas de povoamento agroindustrial, em áreas de recente desbravamento, com asiniciativas e o incentivo à migração para os colonatos agrícolas, criados ao longo de grandes rios nas áreas do Cunene, em Angola, e do Limpopo, emMoçambique, associados à irrigação de vastas áreas, com ocupações de tipo misto, por europeus e por indígenas. Em articulação com esta nova políticacolonizadora desenvolveu‐se uma certa produção teórica no campo urbanístico‐arquitetónico, com estudos sobre a organização das novas comunidadese dos espaços de habitação, quer para a habitação dos europeus quer para as habitações indígenas. Do ponto de vista formal, estas realizações adotaramuma arquitetura neotradicionalista, inspirada nos modelos da arquitetura portuguesa, tal como então ocorreu na Metrópole.

Em paralelo com a produção neotradicional de espaços e formas, refira‐se que o processo comemorativista nos espaços ultramarinos foi constante eabrangente, ao longo das décadas do domínio do Estado Novo. Como exemplo, dos mais significativos, refira‐se o do Monumento das ComemoraçõesHenriquinas, concebido em 1960 sob responsabilidade direta da Presidência do Conselho, ou seja, de Salazar, para assinalar o quinto centenário damorte do infante D. Henrique. Resultante de um concurso, foi concebido um projeto‐tipo de monumento, espécie de padrão estilizado, pelo artistaSevero Portela Júnior. O Padrão Henriquino foi efetivamente implantado em várias cidades ultramarinas, nomeadamente na Praia, em Cabo Verde, emBissau, Cacheu e Farim, na Guiné‐Bissau, em São Tomé e Lourenço Marques, chegando até Díli, em Timor. Um padrão desta série foi também erigidoem Torres Novas, no Portugal ibérico.

Paralelamente, uma nova geração de arquitetos e urbanistas implantados nas colónias começou a pôr em causa os fundamentos da atitude oficial eestatal, essencialmente passadista e retrógrada, através da sua prática edificatória. Ao mesmo tempo, a crescente afirmação da iniciativa privada nasregiões coloniais apoiava‐se gradualmente nessa visão e atitude inovadoras, mais do que nas premissas centralistas da ação pública e nas suasconcepções técnico‐artísticas mais retrógradas.

Experiências urbanísticas: dos planos reticulados e poligonais à Carta de Atenas (anos 1930‐1950)

O urbanismo moderno teve a sua afirmação nas colónias portuguesas, como se viu, por iniciativa do Gabinete de Urbanização Colonial/do Ultramar,sobretudo nas décadas de 1940, 1950 e 1960. As principais cidades e vilas ficaram servidas por estudos e planos de previsão do crescimento ou expansãourbana. Esta atividade verificou‐se sobretudo nos territórios maiores, de Angola e de Moçambique, mas com claras diferenças entre ambos.

Assim, em Angola o sentido gradualmente unitário ou unificador do planeamento urbano manifestou‐se com a organização de redes homogéneas denovas cidades e vilas nas costas e nas regiões interiores, onde se tinha mesmo podido experimentar, desde a transição do século XIX‐XX, as novas

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malhas urbanísticas de tipo geométrico (Moçâmedes, Sá da Bandeira) e irradiante (Nova Lisboa/Huambo). Mais tarde, o urbanismo moderno exprimiu‐se sem necessidade de demonstrações inovadoras, aproveitando os sistemas urbanos ou proto‐urbanos já existentes. Neste quadro, Manuela Fonteassinala em Angola a gradual passagem conjunta dos “núcleos urbanos sob influência da estrutura ferroviária”, para os “sob influência da estruturarodoviária”.

Os primeiros aproveitavam as estruturas anteriores, de origem oitocentista, frequentemente em retícula, agora servidas por planos modernizadores,normalmente segundo o sistema dos designados “planos de Zona de Ocupação Imediata”, como para Malanje (1951) ou na linha‐férrea de Benguela,Nova Lisboa (1947‐1948) e na linha‐férrea do sul, Sá da Bandeira (1947‐1949). Os segundos, livres da necessidade de articulação com os núcleosferroviários, seguiam mesmo assim as regras do urbanismo em retícula, como na Huíla (1956) e no Uíge, Sanza Pombo (1975). Na Lunda, deve destacar‐se o plano de Henrique de Carvalho, atual Saurimo, de 1973, por Adérito Barros – uma vez mais seguindo o modelo em retícula, na perspectiva degrande pragmatismo do urbanismo português em Angola.

Em Moçambique, pelo contrário, sentiu‐se mais a necessidade de afirmação de um domínio e de um planeamento modernos do território, pois o Estadoportuguês substitui‐se, a partir dos anos de 1930‐1940, ao domínio anteriormente exercido pelas companhias majestáticas a sul da Zambézia e noNiassa. Assim, foi com certa ênfase que se implantaram as novas povoações, com função administrativa, simbolizando a nova posse plena nacional dosterritórios. No Niassa, destaca‐se a povoação de Vila Cabral, nova sede distrital, em cujo plano de 1931‐1932 se ensaiou a composição de um grandenúcleo irradiante de forma octogonal, e em cuja praça central se concentrariam os principais edifícios públicos. Ao que parece, foi concebido com base,ou influenciado, pelos trabalhos agrários dos Serviços de Agrimensura, sendo da autoria de Silva Moura ou de António Pereira Rêlha. O plano, original eúnico no contexto colonial português, embora recordando na sua expressão o de Nova Lisboa de 1912, desenvolve mais profundamente o temapoligonal, com a criação de dois grandes sistemas de avenidas octogonais concêntricas, envolvendo a rotunda central donde irradiariam as váriasavenidas (enquanto em Nova Lisboa apenas existe uma rotunda com as oito vias irradiantes, sem nenhum traçado poligonal centrado complementar).Assim foi implantado no território real, embora, no sector norte, o traçado do plano tenha permanecido incompleto.

Em Manica e Sofala, territórios antes adstritos à Companhia de Moçambique, criou‐se como nova capital do distrito a cidade de Vila Pery/Chimoio, queem 1952 surgia repre‐ sentada num plano de arejada expressão moderna internacional, seguindo os modelos mais atuais da época.

Se por um lado seguia a estrutura em retícula corrente para os pequenos núcleos urbanos, por outro esta retícula era trabalhada e subvertida através deum sistema viário curvilíneo, envolvente e homogéneo, de composição livre e assimétrica, de teor mais orgânico, inscrevendo no conjunto os váriosespaços e zonamentos funcionais que o urbanismo moderno prescrevia. Estes eram as áreas centrais, zonas residenciais, jardins, e, claro, uma vez quede urbanismo colonial se tratava – a opção por uma zona indígena, convenientemente segregada da área europeia através de uma pequena área verde.Vila Pery constitui, pois, uma criação rara, totalmente de raiz, dentro do urbanismo eclético‐modernizante da cidade‐jardim e da unidade de vizinhançainspirado na Carta de Atenas corbusiana, mas adaptada ao meio colonial africano.

Para além destes novos sistemas urbanos, que refundavam a ocupação das áreas interiores de Moçambique, foram ainda criadas outras cidades, comoNampula, no distrito norte, de padrão urbanístico menos inovador (retícula simples, articulada com a estação ferroviária e com rotundas), e a novacidade portuária de Nacala, destinada a substituir o antigo porto da Ilha de Moçambique, a qual, renunciando a planos mais audaciosos, acabouconcebida de forma pragmática como um entreposto portuário‐marítimo. Complementarmente, nas décadas de 1930‐1940, tinham‐se lançado emMoçambique os primeiros processos de urbanização moderna, com os projetos de povoação através dos planos para Mocuba e Porto Amélia (1936),Magupe (1938), João Belo e Namaacha (1941), Inhaminga e Manhiça (1944), Mocimboa da Praia (1945), Sabié, Pafúri, Gorué (1946), Vila Luísa (1947),Bela Vista (1948) e Vila do Chinde (1950) (Mendes, 2008).

O crescimento das cidades existentes: de Cabo Verde a São Tomé

Em Cabo Verde, o crescimento das cidades da Praia e do Mindelo foi modesto. Apesar disso, é de assinalar alguma renovação ou construção deequipamentos públicos nas décadas de 1950‐1960, bem como a implantação de algumas novas infraestruturas, a execução de planos de ordenamentourbanístico e alguma arquitetura de tendência modernista ou mesmo já francamente moderna que foi pontuar as cidades principais, da Praia e doMindelo. Na Praia, dentro da área histórica do plateau (espaço do núcleo urbano histórico), elevado sobre a baía, apareceram equipamentos públicoscomo o antigo Rádio Clube, atual Banco de Cabo Verde, ao lado da Câmara, no largo principal; no mesmo largo, junto à igreja, ergue‐se um Palácio daJustiça de linhas mais verticais e duras. A principal manifestação de arquitetura salazarista será, nesta cidade, nas severas linhas de pedra negra e comum emblemático coruchéu com telhas, o Liceu da Praia, antes Liceu Adriano Moreira, com o Monumento Henriquino fronteiro de 1960, além dapequena e antiga gare do aeroporto da cidade (> imagem de 1993). No Mindelo, o relativo progresso económico dos anos de 1920 e 1930 exprimiu‐se emalgumas obras urbanas, comerciais e equipamentais. Nas décadas de 1940, 1950 e 1960, surgiram construções como o novo Cinema Éden Park, ou oamplo edifício do Comando Naval.

As cidades da Guiné‐Bissau também mostravam crescimento lento: a pequena colónia tinha 350.000 habitantes em 1940, e 544.000 em 1960.Conhecem‐se alguns resultados do planeamento urbanístico e territorial elaborado em Lisboa: é o caso do projeto de uma aldeia para indígenas, emBafatá, a dotar com mercado e mesquita. Em relação à arquitetura do século XX, em Bissau conhecem‐se alguns exemplos de construções públicas dedesenho modernista, como o edifício do Laboratório da Doença do Sono; ou, em contraste, obras da arquitetura do Estado Novo, como o Centro deEstudos da Guiné Portuguesa/Museu Etnográfico, de 1945, ou o Grande Hotel. Já o edifício dos CTT, de 1950, e o hospital principal de Bissau, de 1951‐1953, atribuídos a Lucínio Cruz, bem como a Associação Comercial, Industrial e Agrícola, por Jorge Chaves, de 1949‐1953, mostram‐se como sendo detransição entre a arquitetura do Estado Novo e as linhas modernizantes. De expressão moderna, mas com alguma rudeza no desenho, é a Mesquita,anterior a 1966. A Sé Catedral apresenta feição revivalista ou neotradicional, enquanto o antigo Palácio do Governo se conforma com o estilo oficial,neotradicional. A Aerogare, em Bissalanca, a Alfândega, no centro da urbe, a Administração do Porto de Bissau e a Escola Primária Rebelo da Silva sãoexemplos de arquitetura funcional adaptada a espaços coloniais.

Em São Tomé e Príncipe, a urbanização ensaiou alguma nova perspectiva de planeamento, de que são exemplos o Plano de Urbanização de São Tomé eo esboço do Ante‐plano de Santo António, tentativa de modernização das duas cidades, dentro do modelo internacional, corrente nos anos de 1940‐

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1950, da garden‐city – com uso das alamedas arborizadas, rotundas viárias, loteamentos espraiados e unifamiliares, etc. Na cidade de São Tomé,edificada sobretudo defronte à Baía de Ana Chaves, encontram‐se algumas arquiteturas representativas de Novecentos, desde o modernismo dos anos1930‐1940 à arquitetura moderna dos anos 1950‐1960. Mas a dominante é a dos edifícios tradicionais, sucessivamente alterados e modernizados: a Sé,reconstruída em 1939, pelo governador Vaz Monteiro, segue um corrente revivalismo neo‐românico simplificado, como sucede com outras igrejas luso‐africanas de então; e o simbólico Palácio do Governo, de feição classicizante, muito alterado ao longo das décadas.

Evolução das cidades de Angola

No território à volta de Luanda, a capital histórica, pequenas povoações foram definindo uma área complementar de influência, como Ambriz eAmbrizete (N’Zeto). No interior norte de Angola, Henrique Galvão refere‐se ainda, na sua perspectiva ideológica de teor nacionalista, aos dois povoadosde crescimento mais significativo: Carmona (Uíge), elevada a cidade em 1956 e N’Dalatando, no Kwanza‐Norte, denominada cidade de Salazar em 1936.No extremo setentrional, o mesmo autor menciona o enclave de fronteira com o então Congo Belga, Cabinda, que nos meados do século XX ensaiou,como outras povoações, o modelo da cidade‐jardim.

Luanda foi significativamente comparada pelo mesmo autor a Lourenço Marques, considerando a primeira como uma cidade que crescia enquadrada nadificultosa topografia local, enquanto a segunda avançava por extensão, estruturada no plano reticulado. Teve um espetacular crescimento nos anos de1930 a 1950: com 60.000 habitantes em 1940, passou a 140.000 em 1950, 225.000 em 1960, e quase 500.000 em 1968, com a percentagem de brancossempre em aumento. Nos anos de 1950‐1960 criou o novo espaço portuário, que cresceu fortemente e em malha tendencialmente radial, e desenvolveunovas áreas, com abundante uso da tipologia de pracetas e alamedas arborizadas, em núcleos locais de retícula irregular (> imagem junta, anos 1960).

Malanje, fundada em 1852 em pleno planalto interior, a leste da capital, desenvolveu‐se por meados do século XX com recurso a planos modernos dotipo cidade‐jardim, enquanto Novo Redondo (Sumbe), no Kwanza Sul, implantada à beira‐mar, manteve na mesma fase a sua pequena escala ecrescimento reduzido. Nova Lisboa (Huambo), criada em 1912‐1913, aumentou enormemente depois da década de 1930. O seu sistema de avenidasretilíneas, articuladas com a vasta rotunda central, assegurou‐lhe um processo de expansão estruturado e moderno, assinalado por Henrique Galvão e,quase meio século depois, pela escritora Ondina Braga (1994). Benguela, cidade antiga da época filipina, acusa, no seu crescimento lento ao longo doséculo XX, a gradual perda de importância face ao Lobito, no litoral, e a Nova Lisboa, no planalto. A ferrovia que ligava a costa à fronteira tinha o seuterminal comercial e portuário na proximidade, em Lobito, encaminhando o tráfego para esta, enquanto o forte crescimento urbano do interior, nosplanaltos centrais, se centrava em Nova Lisboa e Silva Porto, no Bié.

O Lobito, levantado a norte de Benguela sobre uma longa faixa de areia litorânea, tinha nascido em função do seu porto, construído em 1902‐1928 eampliado em 1957. Elevado a cidade em 1912, este núcleo adquiriu potencialidades urbanas. O seu crescimento e expansão nos anos de 1940‐1950refletiram‐se na cota dos cerca de 50.000 habitantes em 1960. É de destacar o papel desempenhado pela Companhia de Caminho -de- Ferro de Benguela(CFB), que edificou bairros com equipamentos de utilidade social na cidade, também em Nova Lisboa, e mesmo nas pequenas povoações que surgiramao longo da ferrovia. Esta funcionou, pois, como eixo urbanizador de penetração territorial, com características macrolineares, de certo modo inspiradasna teoria da Ciudad Lineal que Soria y Mata tinha desenvolvido em Madrid, para o planalto central hispânico, no dealbar do século XX.

Por constituir um facto excepcional, no quadro da presença e trabalho de técnicos de arquitetura nas colónias, deve enfatizarse a ação do arquitetoFrancisco Castro Rodrigues, que trabalhou no Lobito como funcionário municipal, entre 1953 e 1988. Ali desenvolveu planos urbanos, edificação deinfraestruturas, equipamentos e habitação coletiva, alguma dela no quadro da habitação social. A sua intervenção, para além da coerência profissional eética, estendeu se a outras cidades e vilas da região envolvente do Lobito (Sumbe/Novo Redondo, Ganda/Mariano Machado).

Para o interior, nos espaços do centro e do sul, o povoamento de Angola praticou diversos sistemas, um dos quais, sobretudo utilizado nas décadas de1950, foi o do colonato, com características rurais. O Colonato de Cela/Wako Kungo, com lugares/aldeias de topónimos importados da metrópole, comoSanta Comba, elevada a cidade em 1970, destinavase ape nas a povoadores brancos, com implantação de casas térreas de expressão criptoregional,projeto desenvolvido desde 1952. Já o Cunene, como vasto Plano de Rega promovido pelo engenheiro Trigo de Morais, recebeu uma colónia agrícolamista numa região onde trabalharam, em arquitetura e urbanismo, respectivamente, os arquitetos João José Tinoco e Vasco Morais Soares; emconcurso aberto pelo Conselho Superior de Fomento Ultramarino, foram selecionados projetos para casas de “colonos”, para esta região do Cunene etambém para o Limpopo, em Moçambique. Em Caconda havia uma colónia agrícola só para indígenas. Refira‐se ainda o povoamento do Bengo, em áreamais próxima de Luanda, com apoio nas obras hidroagrícolas do Kwanza‐Bengo. Refira‐se também, no espaço interior de Angola, o carácter de pequenacidade industrial que o conjunto edificado do Alto Catumbela, localizado nas margens do Rio Catumbela, a meio caminho entre o Lobito e o Huambo,representou, com uma vasta instalação fabril, a Companhia de Celulose do Ultramar, ligada ao aproveitamento dos vastos eucaliptais e da energiahidroelétrica, e que incluía escritórios e habitações.

Assinalem‐se finalmente, no sul de Angola, os crescimentos das duas cidades estruturantes do crescimento urbano dessa região, que ali tinham sidoimplantadas desde a segunda metade de Oitocentos: Sá da Bandeira/Lubango, na área planáltica da Huíla, elevada a cidade em 1923,Moçâmedes/Namibe, na costa, cidade em 1907. Ambas servidas desde a fundação por estruturas urbanas em retícula, foram, no período de 1930 a 1950,aproveitadas, desenvolvidas e modernizadas pelas intervenções do Gabinete de Urbanização das Colónias / do Ultramar. Em relação a Moçâmedes, deveainda ressaltar‐se o papel que desempenhou no plano económico e comercial devido ao seu porto mineraleiro, através do qual se exportava o ferro desde1967, à semelhança do sistema praticado pelo Lobito para a saída do cobre, até aí transportado pelo Caminho‐de‐Ferro de Benguela. Outras povoaçõesdo interior e do sul de Angola podem ainda referir‐se, numa espécie de roteiro turístico‐colonial que Galvão organizou: Moxico/Vila Luso/Luena, naregião do Moxico, elevada a cidade em 1956, constituindo um povoado moderno e de carácter comercial; Serpa Pinto/Menonge, na região do Cuando‐Cubango, sede de novo distrito, em 1961, onde singrou uma arquitetura de expressão tradicionalista, à portuguesa, a par de obras modernizantes; ospequenos núcleos de Porto Alexandre/Tombwa (cidade em 1967) e da Baía dos Tigres, em Moçâmedes/Namibe, na ponta sul do território; Gabela, vilaligada à exploração do café, cidade em 1962; e ainda Massangano, marcada pelo antigo monumento militar.

Mencionem‐se ainda Henrique de Carvalho/Saurimo, na região da Lunda, capital de distrito em 1923 e cidade nos finais dos anos de 1950; e SilvaPorto/Kuíto, no Bié, designada Silva Porto em 1922, cidade em 1935, designada Belmonte na refundação, 1853 – feita sobre a antiga Bié de 1768.

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Outras povoações, de menor importância, foram sendo também sucessivamente elevadas a cidade: Salazar/N’Dalatando, no Cuanza Norte,Carmona/Uíge e Cabinda (1956), General Machado/Camacupa, no Bié, Cubal e Mariano Machado/Ganda, em Benguela (1969), Negage, Santa Comba eRoberto Williams/Caála, esta no Huambo (1970). A povoação fronteiriça de Vila Teixeira de Sousa/Luau, situada na entrada em território angolano dalinha de Benguela, junto à linha de limite entre a Lunda e o Moxico, mereceu um plano de urbanização reformador, por Francisco Silva Dias, em 1959‐1960, que lhe introduziu modernidade através do sistema de zonamento e no redesenho e ampliação da velha praça central, fronteira à estaçãoferroviária.

Outros povoados menores que merecem referência são, de norte a sul de Angola: Santo António do Zaire/Soyo e Noqui, no Rio Zaire; Salvador doCongo/Mbanza Kongo, no interior, um pouco a sul daquele rio; a povoação de Portugália/Dundo, ou Chitato, no extremo norte da Lunda, e Lucapa, asul de Dundo; Cazombo, no Rio Zambeze, no extremo leste do Moxico; Vila Gago Coutinho/Lumbala, a sul do Moxico; Teixeira da Silva/Bailundo, noHuambo; Vila Artur de Paiva/Cubango, no extremo leste da Huíla; Quipungo/Matala, no centro da Huíla; Vila Pereira D’Eça/Ondjiva, no sul doCunene; e Cuangar, no Cuando‐Cubango.

Evolução das cidades de Moçambique

Nesta fase assistiu‐se a um forte incremento no desenvolvimento de muitos dos núcleos urbanos anteriormente fundados. Por um lado, processou‐se aconsolidação e expansão das duas cidades principais: Lourenço Marques, capital da província, garantindo o interface com os mais próximos pólosurbanos da África do Sul, de Joanesburgo a Pretória e a Durban, e Beira – esta constituindo um importante pólo localizado na área central do território,no cruzamento da faixa litorânea tradicionalmente mais urbanizada no sentido norte‐sul, com a larga bacia do Zambeze, eixo natural de penetração parao interior, no sentido nascente‐poente.

Por outro lado, assistiu‐se ao crescimento dos núcleos urbanos de dimensão intermédia, como Quelimane ou Inhambane, ou à fundação de outros querapidamente cresceram, como Nampula. É também desta fase a evolução das pequenas povoações sitas na área de influência de Lourenço Marques,como João Belo/Xai‐Xai e Ressano Garcia.

As áreas portuárias modernas foram apetrechadas, em Lourenço Marques e na Beira, ou criaram‐se expressamente novas urbes portuárias, comoNacala (na proximidade de Nacala Velha), que substituiu o cais da antiga Ilha de Moçambique nessa função. É também de mencionar o gradualaumento de importância das urbes de fronteira, bem no interior do território, em detrimento dos históricos micropovoados da costa. VilaCabral/Lichinga, Tete e Vila Pery/Chimoio são disso exemplos.

Neste quadro, o número de habitantes das principais cidades moçambicanas conjugado com a data da sua elevação a cidade pode dar uma ideia relativado grau de urbanização alcançado: Quelimane, urbe costeira de origem setecentista, só foi elevada a cidade em 1942 (64.000 habitantes em 1950),quando era a segunda cidade de Moçambique em população. Outras urbes, embora menores, assumiam significativa dimensão: João Belo/Xai‐Xai,cidade em 1961, capital do distrito de Gaza, com 49.000 habitantes; Tete, com 38.000 em 1951, elevada a cidade em 1959; Vila Cabral, atual Lichinga,com 28.000, cidade em 1962; e Porto Amélia, atual Pemba, com 21.000. Inhambane, a terceira em importância, passaria a cidade em 1956. LourençoMarques, atual Maputo, sofreu um grande crescimento populacional: em 1928 tinha cerca de 37.000 habitantes, e em 1950 aumentava para perto de93.000 habitantes, dos quais 23.000 eram brancos; Angoche/António Enes, cabeça de concelho em 1934, foi elevada a cidade em 1970, embora fosseuma urbe de pequena escala.

Notem‐se alguns aspectos particulares de várias destas urbes: Porto Amélia/Pemba desenvolve‐se modestamente, assumindo a função de capital dodistrito de Cabo Delgado, no extemo norte; Tete cresceu escassamente ao longo do século XX, dadas as dificuldades da sua extrema localização interior edo correspondente isolamento. Refira‐se ainda a vila de Manica, que foi sede do concelho homónimo, vila em 1956, e elevada a cidade em 1972.

No sector mais a sul do território moçambicano, muitos povoados dos arredores de Lourenço Marques desenvolveram‐se por via da sua proximidadecom a capital – quer por funções industriais (a Matola), agrícolas (ao longo do Vale do Limpopo), ou comerciais, quer como povoados de ligação ou depassagem das várias ferrovias que sulcaram o território envolvente da cidade. Foi o caso, a título de exemplo, de Ressano Garcia, na fronteira, de JoãoBelo/Xai‐Xai, ou do Chibuto.

Finalmente, são de referir as novas formas de ocupação e povoamento em Moçambique, por iniciativa de Trigo de Morais: as colonizações agrícolas,criadas nos anos de 1950‐1960 na área do Limpopo. Servidas por barragens de envergadura, criaram‐se nestas áreas sistemas de rega paraaproveitamento agrícola que permitiram a urbanização e organização territorial de novas áreas e a fixação de povoações europeias.

Arquitetura de infraestruturas e equipamentos

Como é lógico, situam‐se em Angola e Moçambique as obras mais grandiosas ou arrojadas da designada “Política de Obras Públicas” da épocasalazarista, no contexto colonial. Incidiram sobretudo na rede de transportes e na produção e exploração de fontes de energia. Foram, porém,relativamente escassas até à década de 1950. Sirvam de exemplo, em Moçambique, além das que prolongaram o contínuo esforço de desenvolvimentoda rede de caminhos‐de‐ferro, algumas pontes, a mais assinalável das quais será, talvez, a grande ponte sobre o Zambeze, iniciada em 1931 e concluídaem 1935, a maior de África, entre Sena e Dona Ana (3.677 metros, com trinta e três tramos de oitenta metros). Outras, da fase dos anos 1930‐1940,foram a Ponte General Bettencourt, na Matola, com vigas superiores em arco, de betão armado; a ponte sobre o Rio Mocuba – Ponte Cardeal Cerejeira,rodoviária, inaugurada em 1944, na Zambézia; e a ponte sobre o Licungo, numa estética art déco tardia, com pilares e cruzes de Cristo a encimá‐los.

No que concerne as obras portuárias, refira‐se o novo Porto de Lourenço Marques, com ampliação em 1929‐1930. Mencione‐se também a nova ponte‐cais Gorjão, e a central elétrica, situada por detrás da estação ferroviária. Outras obras infraestruturais e utilitárias na cidade foram os vastos hangaresde ferro, como a fábrica de cimento e o Armazém Frigorífico.

As infraestruturas e equipamentos multiplicaram‐se a partir da década de 1950.

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Em Angola dá‐se um surto da rede rodoviária: de 35.500 quilómetros em 1960, passa‐se para 72.000 em 1967. O crescimento da rede ferroviária émenor: 2.000 quilómetros em 1940, 3.200 quilómetros em 1967. Assinale‐se ainda o surto da aviação, com início em 1930 e explosivo desenvolvimentoaté aos anos 1950‐1960, com a implantação de aeródromos e aeroportos mas principais povoações e cidades.

A rede rodoviária, a cargo da Junta Autónoma de Estradas de Angola (JAEA), atual Instituto Nacional de Estradas de Angola (INEA), teve umaprogramação de novos edifícios‐sede para todas as capitais distritais, onde se destacou, nos anos de 1960, a série de obras projetadas e edificadas porLuís Taquelim, em desenho moderno, como os edifícios para Benguela, Silva Porto, Carmona e Moçâmedes.

As obras hidráulicas e hidroelétricas desempenharam papel assinalável, numa captação de energias potenciada por uma natureza exuberante. Refiram‐se, entre vários empreendimentos, a grande Barragem das Mabubas, no Rio Dande, construída em 1953, e inaugurada no ano seguinte, para produçãode eletricidade e abastecimento de água a Luanda; o aproveitamento hidroelétrico de Médio‐Kwanza, com a Barragem de Cambambe; e oaproveitamento do Alto Catumbela, com planos em 1961. No Rio Catumbela, destaque‐se a Barragem do Biópio/Craveiro Lopes, por uma equipa técnicaem que participou o arquiteto João José Tinoco, inaugurada em 1956, dotada de central elétrica com edificação moderna de longa fachada comgrelhagem vertical, e um bairro habitacional na encosta adjacente, segundo Castro Rodrigues, por Nuno Craveiro Lopes.

Em 1965, celebravam‐se em selos comemorativos as seguintes infraestruturas no território de Angola: a refinaria em Luanda, as barragens deCambambe, no Kwanza, de Matala, de Salazar, no Rio Cunene, de Teófilo Duarte, no Rio Dande, a das Mabubas, do Biópio/Catumbela (ou de CraveiroLopes) e do Cuango; e as várias pontes, sobre rios como o Kwanza, designadas Salazar, Teófilo Duarte e Silva Carvalho.

A Ponte do Quanza, na barra do rio, foi concebida como uma estrutura metálica suspensa com torres de betão armado (vão central de duzentos esessenta metros), pelo engenheiro Edgar Cardoso, e teve o início da construção em 1970. De Edgar Cardoso são também as pontes sobre os rios Cunene,Dande, Longa e Queve, e as pontes do caminho‐de‐ferro de Moçâmedes, em viga contínua de betão armado pré‐esforçado, e da linha do Congo e doramal de Cassalá‐Quitungo. A grande estrada em S que rompeu os contrafortes da Serra de Chela, entre Moçâmedes/Namibe e Sá da Bandeira/Lubango– mil metros a pique – foi uma das últimas obras de grande arrojo e envergadura da fase colonial.

Refiram‐se ainda, no campo infraestrutural, os faróis da costa de Angola, possivelmente dos anos 1920‐1930: constituíam uma série de edifícios‐torre,de cor branca, com formas art déco, possuindo uma emblemática cruz de Cristo inscrita, de que é exemplo o farol da Ponta do Quicombo.

Em Moçambique, a rede de ferrovias, iniciada ainda nos finais de Oitocentos, só foi concluída muito mais tarde, já na segunda metade do século XX; aslinhas existentes em todo o território, nas derradeiras décadas coloniais, de 1960‐1970, fizeram relevar uma série de pequenas povoações, de passagemou fronteiriças – muitas delas novas fundações, de raiz exclusivamente ferroviára. Em síntese, deve mencionar‐se o crescimento da rede ferroviária, de2.500 quilómetros em 1935 – com um surto nos anos de 1950 e 1960 – para 3.500 quilómetros em 1967.

Mais impressionante do que a expansão da ferrovia, foi o crescimento da rede rodoviária, que apresentava 14.000 quilómetros em 1928, e mais queduplicara, com 38.000 quilómetros, em 1967. Em 1948‐1949 a administração colonial celebrava estas infraestruturas e outros espaços públicos,nomeadamente em edições de selos postais, como a ponte sobre o Zambeze, dos anos 1930, e a Praça Sete de Março, em Lourenço Marques; em 1963celebravam‐se novas infraestruturas, como portos, barragens e pontes.

De relevar também, no plano do sistema rodoviário, o papel desempenhado pelas redes de abastecimento de combustíveis, em pequenos edifícios, aspopulares bombas de gasolina, espalhados um pouco por todo o território de Angola e de Moçambique. Como exemplo de qualificação deste tema demobiliário urbano, refira‐se o projeto‐tipo de estação de abastecimento, pelo arquiteto Nuno Craveiro Lopes, que explorava a dimensão estruturalaparente das vigas e pilares em betão armado, e foi repetidamente edificado nas povoações moçambicanas.

Quanto às pontes da fase colonial mais recente, edificadas em Moçambique nos anos de 1960‐1970, refiram‐se a ponte rodoviária, suspensa, sobre o RioSave, por Edgar Cardoso; a ponte sobre o Limpopo, no Xai‐Xai, atirantada, também com projeto de Edgar Cardoso; a ponte sobre o Rio Inharrime, obraaté 1966; a ponte sobre o Rio Incomati, com sistema de arcos, dos anos 1960; e a mais grandiosa, a ponte sobre o Zambeze, em Tete, igualmente porEdgar Cardoso. De mencionar igualmente, a ponte do Rio Pungué, em bow‐string metálico, e a singela ponte de ligação da Ilha de Moçambique aocontinente, com 3.400 metros, dos anos 1960, ambas por Edgar Cardoso.

Algumas barragens e obras hidroelétricas devem ser salientadas, pela escala grandiosa que assumiram. Exemplificando, podem referir‐se: a Barragemda Chicamba Real/Oliveira Salazar, no planalto de Manica e Sofala; a Central de Lionde, no vale do Limpopo (cerca de 1966); a ponte‐açude no RioLimpopo, sobre a barragem, inaugurada em 1956; a Barragem do Rio Monapo, cerca da cidade de Nampula (até 1966); e, naturalmente, a grandiosasuper‐obra da Barragem de Cahora‐Bassa, em Tete, iniciada e desenvolvida em 1969 (obra em 1972‐1975), cuja utilização global permanece ainda degrande potencialidade, com a grande sala das turbinas, qual gruta artificial, como espaço arquitetónico mais notável, e diversos edifícios de apoio nasvizinhanças.

As redes aeroportuárias constituíram um complemento, na fase final colonial, das redes viária e ferroviária. Com um alcance verdadeiramente macro‐regional, as aerovias concretizaram‐se com a criação de pistas de aviação, regionais e internacionais, de aeródromos e aeroportos, e seus equipamentosrespectivos – aerogares, armazéns, hangares, etc. Em Angola, o destaque arquitetónico vai para os aeroportos de duas das maiores cidades – o deLuanda, por Keil do Amaral, de 1947‐1950, na linha estética austera e moderna do Aeroporto da Portela, em Lisboa, inaugurado por Craveiro Lopes em1954, e o do Lobito, por Castro Rodrigues, de 1964, uma obra de grande transparência e elegância estrutural.

Em Moçambique, mencione‐se a série de edificios relacionados com os transportes aéreos construídos ao longo do território, e que constituíram no seutodo um conjunto com elevada qualidade arquitetónica, dentro das linhas da arquitetura moderna da época. Para além das duas obras maiores (deLourenço Marques e da Beira, ambas por Cândido Palma de Melo, que foi discípulo de Keil do Amaral), destacam‐se as executadas por João JoséTinoco, com colaboração de Carlota Quintanilha, António Matos Veloso, Octávio Rego Costa e Alberto Soeiro, em continuado trabalho executado para aAeronáutica, e que cobriram o essencial das ligações territoriais, do sul ao extremo norte, com obras de grande elegância no seu desenho moderno.

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Podem‐se destacar os aeroportos de Nampula, de Porto Amélia/Pemba, de Vila Cabral/Lichinga, e de Tete.

A arquitetura do Estado Novo e as novas correntes arquitetónicas

A grande maioria das realizações urbanísticas e arquitetónicas que enumerámos nos parágrafos anteriores partiram de iniciativas oficiais, quer as queforam planeadas no Terreiro do Paço, em Lisboa, quer as encomendadas e construídas pelos governos coloniais. Ora se, nas décadas de 1930 e 1940, erafrequente que a arquitetura resultante adotasse os cânones formais da arquitetura do Estado Novo, já a partir do princípio da década de 1950 ascondições de produção urbanística e arquitetónica alteraram‐se, de modo destacado sobretudo em Angola e em Moçambique, propiciando a emergênciade uma arquitetura com expressão estética e técnica moderna, mesmo que gerada no quadro das obras oficiais.

Por esses anos, a maioria das cidades já estava equipada com edifícios administrativos suficientes. O esforço governamental concentrou‐se então nosequipamentos e infraestruturas. Ao mesmo tempo, o aparecimento e sucesso internacional de uma arquitetura mais liberta de preocupaçõesconvencionais inspirava a recepção de novos moldes, de base moderna, à imitação dos que, na Europa e América, se foram desenvolvendo ao longo doséculo XX, com especial destaque a partir do irromper do chamado Movimento Moderno Internacional da Arquitetura e do Urbanismo (1919‐1927).Com algum atraso em relação à Europa e América, as arquiteturas urbanas que acompanharam a evolução dos processos urbanísticos nas colónias luso‐africanas refletiram essa realidade, caracterizada por uma profunda e acelerada transformação.

Por um lado, foi possível uma utilização crescente do betão armado e tecnologias complementares na generalidade das edificações (serviços internoscom sistemas elétricos, elevadores, vidros em grandes superfícies, coberturas em lajes de betão, sistemas de ventilação natural por convecção, utilizandoas coberturas em betão); por outro, verificou‐se a adoção de uma nova escala e linguagem construtiva, pela facilidade de utilização da produção docimento fornecido por fábricas locais e com uso de aço importado, nas principais cidades dos territórios coloniais a partir de meados do século XX, emedifícios onde a mão‐de‐obra local extremamente acessível embaratecia e incentivava a construção, pública e privada; por outro lado ainda, surgiu avisão coletiva de uma ideia de progresso material acelerado, que as comunidades urbanas de promotores e investidores locais crescentementeassumiram, envolvendo também um conjunto de técnicos autores de projetos, arquitetos e engenheiros, muitos dos quais fixados nas principais cidadescoloniais.

Neste quadro, e embora o contexto nacional do regime salazarista, com a sua intervenção centralista e ideológica, tenha criado um tipo de arquiteturadirigida/dirigista, de tipo neotradicionalista, ou neoclassicizante, sobretudo na fase dos anos 1930‐1940 – como de resto sucedeu no Portugal ibérico – adimensão moderna de influência internacionalista da arquitetura urbana acabou por se impor em todos os domínios de intervenção e edificação, nasdécadas seguintes, de 1950‐1960. No dealbar dos anos 1970, verificava‐se já uma aplicação sistemática dos modelos da arquitetura modernainternacional em todos os domínios. A emergência da guerra colonial (1961‐1974) apenas veio acentuar as capacidades de desenvolvimento urbano earquitetónico já sentidas na década anterior – originando uma dinâmica mais acelerada de construção, quer de iniciativa pública quer privada, com acorrespondente expansão urbana da maioria dos núcleos existentes.

Assim, podem considerar‐se três grandes sub‐fases na arquitetura do período dos anos de 1930 ao de meados da década de 1970: a da arquiteturamodernista, com a aplicação gradual dos materiais modernos na construção e a crescente vulgarização do betão armado em obras que exprimiam essatendência em formas de expressão geométrica, com alguns ressaibos de elementos decorativos, de resto geometrizados, de tipo art déco. Este períodoestendeu‐se dos inícios de 1930 aos anos de 1940; o da chamada arquitetura do Estado Novo, ou do gosto “português suave”, desenvolvida entre os anosde 1940 e a década de 1950 – em que a emergência de modelos arquitetónicos neo‐tradicionais, de tipo neoclássico, neobarroco, ou na sua variantenacional neojoanina, ou ainda de modelos regionalistas transpostos para as colónias de forma eminentemente ideológica, alimentou sobretudo aprodução arquitetónica de base pública, mas sem deixar de influenciar as obras de iniciativa privada; finalmente, a chamada arquitetura moderna, que,retomando genericamente as características da arquitetura modernista, as radicalizou, expurgando‐as de quaisquer elementos decorativos e assumindona sua linguagem o primado do racionalismo e do funcionalismo, assente na expressão mais tecnológica dos materiais contemporâneos. Esta tendênciapontificou dos meados/finais dos anos 1950 até às independências de 1975.

Claro que só de forma esquemática estas três fases se sucedem rigorosamente no tempo – havendo sobreposições, parciais, de umas com outras,sobretudo da modernista com a neo-tradicionalista, nos anos 1940, e desta última com a fase moderna, essencialmente nos anos 1950 e princípios de1960.

Novas gerações e práticas arquitetónicas: os anos de 1950‐1975

Outro aspecto importante para a compreensão destas décadas modernistas, neo- tradicionais e modernas, é a emergência das chamadas “arquiteturas deautor”. Com efeito, houve uma série de arquitetos que efetivaram uma obra extensa, constituída por inúmeros edifícios concebidos e realizadossobretudo em contextos urbanos, obras que valem como um todo, com as características de linguagem que cada arquiteto soube desenvolver e apu rar.Estes autores, frequentemente radicados nas áreas urbanas mais importantes, foram rele vantes nos últimos vinte e cinco anos do período colonial(19501975) e podem designarse pelos arquitetos modernos de Angola e Moçambique. Na maior parte dos casos, são também autores que se destacaramem realizações urbanísticas e na atuação como intelectuais, ou pela sua ação cívica e cultural nas áreas de influência respectiva.

Em Luanda, escolhendo entre destacados nomes da arquitetura moderna, contam se Vasco Vieira da Costa (19111982), Fernão Lopes Simões de Carvalho(n. 1929), José Pinto da Cunha (1921- 2007) e António Campino (1917 -1997), além de João Garcia de Castilho (1915 -2007), trabalhando em Luanda, eFrancisco de Castro Rodrigues (n. 1920), fixado no Lobito. Em Moçambique, destacamse também Pancho Guedes (n. 1925), João José Tinoco (1924--1983), e Nuno Craveiro Lopes (1921-1972), trabalhando em Lourenço Marques, e Paulo Sampaio (1926- 1968), João Afonso Garizo do Carmo (1917-1974)e Francisco de Castro (n. 1923), fixados na Beira.

Para compreender melhor o protagonismo dos arquitetos há que considerar a sua importância no Portugal ibérico, durante o mesmo período, comoclasse que pugnava por uma conquista de liberdades cívicas e de intervenção política, com plena consciência das suas tarefas profissionais. Estas consis -tiam no acesso à arquitetura pelas camadas sociais desfavorecidas, no conhecimento e difusão dos valores disciplinares (como os da arquiteturapopular) enquanto património coletivo da sociedade portuguesa, e no ensino e na valorização da arquitetura moderna, com as suas componentes

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industriais e sociais, como forma de realização das sociedades em processo de urbanização. O ensino, aberto e esclarecido, de arquitetura na Escola deBelas Artes do Porto, onde se tinham formado muitos dos arquitetos presentes em África, era então, sob a direção esclarecida de Carlos Ramos, umsímbolo ativo de todos estes temas.

De facto, expostos à escala das áreas africanas, em termos urbanos e territoriais, as intenções e objetivos dos arquitetos frutificaram. Pode dizer‐se que aqualidade e dimensão da obra realizada na África colonial lusitana no período analisado foi comparável, ou mesmo superior, em vários items, àcontemporânea edificação no Portugal ibérico. Mais investimento, mais energia e mais modernidade geraram obras ímpares. No Portugal europeu, nadade comparável foi realizado, nos mesmos temas funcionais, como se pode verificar tendo em consideração casos concretos como a Estação Ferroviáriada Beira, o edifício da Radiodifusão de Angola, o Mercado de Quinaxixe, em Luanda, a Igreja da Polana, de Lourenço Marques, ou o cinema ao ar livreFlamingo, no Lobito.

Os anos 1950: a arquitetura moderna

Com efeito, ao longo da década de 1950 sentiu‐se em Angola e Moçambique uma significativa evolução das práticas urbano‐arquitetónicas, porcomparação com as das décadas anteriores. Assim, a via conservadora da arquitetura do Estado Novo entrou em confronto com a visão dinâmica eatualizada da arquitetura moderna, mas não constituiu uma barreira muito consistente em virtude da distância real a que os autores metropolitanos,ligados às linguagens mais “oficiais” e “duras”, estavam dos territórios coloniais: aqui, a influência das obras de expressão retrógrada sentia‐se demaneira mais atenuada. No entanto, o confronto foi sentido e por vezes polarizado em situações concretas, como duas obras em Luanda atestam. Dosprimeiros anos da década de 1950, a obra do Banco de Angola, por Vasco Regaleira (1897‐1968), é, deste ponto de vista, exemplar. Trata‐se de umagrande edificação de gosto barroco‐classicizante, implantada na marginal de Luanda, e símbolo cabal da arquitetura de tipo monumentalista, viradapara as formas do passado. Faz um contraste total e impressivo com outra obra, sua contemporânea, mas radical na sua modernidade: o Mercado deQuinaxixe, por Vasco Vieira da Costa, não muito afastada no espaço urbano, em relação à primeira – mas muito distante pela linguagem utilizada epelas novas qualidades técnicas que exibe.

A produção de planos pelo Gabinete de Urbanização Colonial/do Ultramar, e dos projetos arquitetónicos para equipamentos estatais que, por viainstitucional ou de outro modo, iam chegando a África, denotavam nas décadas de 1940‐1950 uma ligação a formas, técnicas e linguagensacademizantes ou tradicionalistas, com origem no repressivo contexto da metrópole – ligação persistente e que tardou a extinguir‐se. Quanto maisperiférica era a localização dessa produção, mais diretamente se ligava aos modelos e projetos metropolitanos e mais duradoura se tornava essatendência. Mencione‐se, como exemplo deste facto, a nova Câmara e Tribunal de Vila Luso/Luena, no distante Moxico (leste de Angola), com a suaampla cobertura telhada bordejada por beiral – em expressão tradicionalista reforçada pelo pórtico central e pela composição simétrica da fachada. Oano da edificação foi 1959, muito após a afirmação na capital das arquiteturas modernas, como a do referido Mercado Quinaxixe, de Luanda (Comérciode Angola, 9 de abril de 1959).

Deve, em todo o caso, referir‐se que outros programas, de tradição conservadora, como era o caso da arquitetura religiosa, apresentavam algumacapacidade de mudança: serve de exemplo a Igreja da Sagrada Família, em Luanda, dos primeiros anos da década de 1960, com uma torre de desenhoabstrato e volumetria de expressão estrutural, que introduziu na cidade uma primeira imagem do espaço sagrado moderno – tentando uma relativarenovação da arquitetura religiosa, como então acontecia em Lisboa.

Outra via de compromisso entre inovação e tradicionalismo foi definida pelos edifícios da administração central, que exprimiam uma certa abertura aodesenho moderno na volumetria e na geometria, mantendo, porém, a expressão geral pesada e monumental, na tipologia, nos materiais. Serve deexemplo o Palácio de Vidro, no Largo Diogo Cão, em Luanda, de Luís Amaral e João Américo.

Neste contexto, é interessante assinalar o testemunho de Francisco Silva Dias (cf. Fernandes, Geração Africana, 2002). Este arquiteto, que viveu emLuanda nos fins dos anos 1950, referia a proximidade dos modos ou estilos de vida quotidianos desta cidade com os de Lisboa. Em aspectos concretos,exprimia‐se num certo ambiente popular de convivialidade entre os agentes da construção da cidade (promotores, industriais, investidores, técnicos erepresentantes municipais e governamentais), semelhante ao que então se passava em Lisboa, com os seus pequenos jogos, conflitos e trocas deinfluências, mas que ganhou em África uma tonalidade colonial‐tropical. Este ambiente de convivência associava‐se, em Luanda, a um certo seguidismoem relação ao que se passava em Lisboa. O fenómeno não era novo. Recordava o ambiente do Rio de Janeiro de inícios de Oitocentos, e que constituiuum aspecto persistente durante largo período depois da independência, na relação carioca com a novidade lisboeta, que se refletia tanto na vivência darua e do espaço urbano quanto no modo de construir e de usar a cidade.

A relativa abertura política que se sentiu em Lisboa entre 1958 e 1961 teve também alguns reflexos na vivência cultural e social das principais urbes afro‐coloniais – em Luanda e no Lobito, nas cidades da Praia e do Mindelo, de Bissau ou de São Tomé. Em Lourenço Marques, embora as relações comLisboa fossem intensas, o fenómeno ocorreu de forma mais esbatida, dada a proximidade concorrencial das áreas coloniais anglófonas. Esta fasecorrespondeu também a um período de debate cultural em Angola, centrado em Luanda, com a tímida afirmação de uma certa cultura de esquerda, namedida em que o regime luso‐colonial a tolerou, e à qual não foram estranhos alguns arquitetos, como o já referido Francisco Silva Dias, e ainda JoséPinto da Cunha. Em Moçambique, a esquerda assumiu uma dimensão quiçá mais plural e descomprometida com Lisboa, contando com a intervençãode arquitetos como João José Tinoco, Bernardino Ramalhete e, num registo muito pessoal, Pancho Guedes.

A participação de arquitetos radicados em Angola e Moçambique em encontros e conferências internacionais africanas do seu âmbito profissional,embora realizada com ritmo irregular, permitiu trocas de experiências e influências e sustentou a vivacidade e a modernidade de um debate culturalautónomo, sobretudo com o apoio de associações locais, como o Núcleo de Arte e o Cineclube de Lourenço Marques. Em Moçambique, a proximidadeda África anglófona, com a sua capacidade de informação mais aberta e atualizada, e a tradição algo snob e de elite culta que o meio artístico earquitetónico da cidade cultivava, também contribuiu para romper o isolamento mental dos quadros oficiais. Arquitetos com uma consciência social epolítica amadurecida, como o já referido João José Tinoco e o seu grupo de relações e amizades, tiveram papel de relevo neste campo. Outros arquitetos,não pela via da politização, mas pela sua cultura cosmopolita e de sentido participativo e heterodoxo, como Pancho Miranda Guedes, contribuíramtambém para este debate cultural, com discussões acerca das más condições de vida e habitação da população negra nos arrredores de Lourenço

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Marques (habitando no extenso caniço, correspondente aos musseques de Luanda).

Além de realizações mais nobres, que já mencionámos, devem‐se também a arquitetos deste conjunto alguns edifícios industriais, sobretudo nosarredores de Lourenço Marques e de Luanda. Merecem ser citados, pela sua elevada qualidade arquitetónica, sobretudo pelo desenho moderno e pelabusca de funcionalidade, casos como a fábrica de bicicletas Faminbor de Luanda, por Vasco Vieira da Costa, na estrada do Cacuaco, ou a fábrica derefrigerantes Sofanco, por Pinto da Cunha, Simões de Carvalho e Fernando Alfredo Pereira, na mesma cidade. Em Benguela, mencione‐se a Fábrica deTabaco de Benguela, por Francisco de Castro, de 1972. Em Lourenço Marques, citem‐se três obras inovadoras por João José Tinoco: a fábrica derelógios A Reguladora de Moçambique, com interessante modulação em corpos distintos, de ritmada silhueta triangular; o Entreposto Comercial deMoçambique, com António Matos Veloso, em expressivo uso do betão aparente, ambas de 1970; e, também com António Matos Veloso e Octávio RegoCosta, a Companhia de Cimentos de Moçambique, no Língamo, dos anos 1960; também em Lourenço Marques, mencione‐se a imaginosa PadariaSaipal, no Alto Maé, por Pancho Guedes (de 1952‐1954), a qual constitui um exemplo especial, com recurso ao desenho neoexpressionista, singular noquadro da produção de cariz racionalista ligada em geral à indústria – e fruto do génio desalinhado e heterodoxo do autor.

A Guerra Colonial e a urbanização dos anos 1960‐1970

No derradeiro período colonial, ao longo das décadas de 1960‐1970, em paralelo e de algum modo como resposta à guerra africana em três frentes,desenrolou‐se a tentativa tardia de fazer vingar a ideia de nação pluri‐racial. Surgiu com ela um novo alento no investimento público para amodernização das infraestruturas, a produção de fontes de energia e a criação de bases industriais com um alcance de escala global, com maioresbarragens hidroelétricas, comparadas com as da década anterior. Nas principais urbes, assistiu‐se igualmente a uma forte aceleração da explosãourbana e das suas áreas de expansão, à renovação de equipamentos e serviços, à construção privada de imóveis de maior porte nas áreas centrais, àsprimeiras experiências de autoconstrução de habitação social para as populações indígenas, caso dos bairros desenhados por Castro Rodrigues noLobito, nos inícios dos anos 1970. Foi também neste período que se incrementou de forma institucionalizada e geral a nova linguagem arquitetónica járeferida: a do Movimento Moderno Internacional.

Até aos meados da década de 1960, o crescimento urbanístico da maioria dos povoados existentes em Angola e Moçambique fora lento e progressivo.Entre os seus aspectos mais peculiares, contara com novas fundações urbanas, sobretudo em territórios do interior, como os colonatos agrícolas doCunene (sul de Angola) e Limpopo (sul de Moçambique), nos anos 1950‐1960. Em ambiente aparentemente pacífico, o regime salazarista tinhainvestido particularmente nos planos de urbanização (1940‐1950) e, mais tarde, já em pleno conflito, em planos de grande escala territorial, como osplanos regionais (anos 1960‐1970). Este centralismo algo abafante não impediu a emergência gradual de bons técnicos de urbanização, sobretudoarquitetos, que souberam introduzir nas principais cidades africanas, e na concepção de algumas pequenas novas cidades, as novas teorizações doUrbanismo Moderno Internacional do pós‐guerra – vulgo, a Carta de Atenas.

Deste ponto de vista, em termos de planos urbanos, há que ressaltar o papel de Simões de Carvalho e Vasco Vieira da Costa, em Luanda, ambos tendotrabalhado em Paris com as equipas de Le Corbusier; de Francisco de Castro Rodrigues, que se ocupou da segunda cidade angolana, o Lobito, ondeviveu em 1953‐1988; e do arquiteto Fernando Mesquita no município de Lourenço Marques, além de muitos outros que em Moçambique executaramplanos modernos de urbanização para a maioria das povoações, vilas e cidades, renovando todo o sistema de urbanização ao longo dos anos de 1950 a1970: Paulo Sampaio, Bernardino Ramalhete, Francisco de Castro, João José Tinoco, Carlos Veiga Pinto Camelo, Nuno Craveiro Lopes, etc.

Na fase derradeira em estudo, a guerra colonial impôs também a emergência de um urbanismo defensivo, com a previsão de grandes concentrações depopulação local a deslocar para áreas livres de guerrilha, onde pudessem ser controladas, em aldeamentos planeados e geométricos. Estas medidas,pensadas ou previstas nos primeiros anos da década de 1970, em articulação com a esfera militar, ou por sua iniciativa, sobretudo em Moçambique, como General Kaúlza de Arriaga, e Guiné‐Bissau, com o General António de Spínola, não se chegaram, porém, a cumprir em grande escala e na cabalconcretização.

Os sistemas portuários/ferroviários modernizados eram‐no também estrategicamente, numa relação direta com as tentativas político‐militares decontenção das atividades da guerrilha, entretanto ativa (desde 1962‐1963) nos sectores do leste e do sul de Angola: de facto, os países limítrofes, no caso,a Zâmbia, opunham‐se às ações de sabotagem, pelos movimentos de libertação (que por outro lado apoiavam), das ferrovias angolanas de alcanceinternacional – as quais constituíam então o único meio de exportação das riquezas minerais exploradas nos seus territórios.

As redes aeroportuárias constituíram um fundamental complemento, na fase final colonial, das redes viária e ferroviária. Com um alcancemacroregional, as aerovias implicaram a criação de todo um conjunto de equipamentos edificados de apoio, como já se referiu.

Os equipamentos e as suas arquiteturas – principais temas desenvolvidos

As páginas que se seguem, dedicadas sobretudo aos equipamentos e à habitação, pretendem sintetizar as principais variantes funcionais do vastoprocesso edificatório levado a cabo, sobretudo nos meios urbanos, de 1930 a 1975. De facto, ao longo deste período pode falar‐se de uma afirmaçãogradualmente total da expressão e do desenho arquitetónico modernos (apesar da referida fase intermédia neotradicional) nas colónias, tanto noscentros de maior dimensão como nos de mais modesta escala.

Esta generalização da arquitetura moderna contou, como se viu, com uma série de fatores convergentes, que ajudaram ao desenvolvimento do processo:ampla base construtiva (acesso fácil ao cimento e aço), socioeconómica (forte iniciativa privada, apoiada nos sucessivos ciclos produtivos, e mão‐de‐obrabarata) e cultural (um corpo de técnicos bem informados e competentes). Apresenta‐se em seguida um conjunto selecionado das melhores obrasrealizadas nos vários sectores da arquitetura e do urbanismo: na área religiosa, assistencial e educacional, por iniciativa da Igreja, do Estado e de algumaatuação privada – surgiram obras muitas vezes com articulação entre colégios e espaços religiosos, ou entre equipamentos de assistência e capelas. Nocaso da arquitetura de igrejas, as obras realizadas resultaram frequentemente de uma reforma e alargamento da área territorial sob controlo da IgrejaCatólica, com criação de novas dioceses e suas áreas dependentes. Tal fenómeno implicou uma série de novas edificações, em meios urbanos por sua vezem pleno processo de criação ou desenvolvimento. No que toca a hospitais e escolas, a maior parte das ações decorreu do gradual lançamento de obrasinseridas nas redes públicas de equipamentos; nos edifícios administrativos e para serviços básicos municipais, a iniciativa pública foi dominante, seja

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por via da administração central (palácios do governo, repartições), seja municipal (edifícios das câmaras, mercados); neste quadro, verificou‐se umclaro conflito entre arquiteturas de expressão passadista e as de sentido moderno, que finalmente se resolveu com a afirmação da segunda tendência;nas áreas dos transportes, comunicações e radiocomunicações, resultantes da iniciativa oficial e pública, dada a especificidade do tema e a sua relaçãocom o dinamismo social e a modernidade funcional, foram raras as edificações tradicionalistas; neste quadro, foram erigidas algumas obras dedimensão e qualidade excecionais; nas obras de iniciativa privada ligadas ao mundo urbano e cosmopolita, nomeadamente as arquiteturas da hotelaria,dos espetáculos, a bancária e comercial, com grande incremento nesta fase, apareceram realizações verdadeiramente exemplares, e até de vanguarda oude ousada inovação, em termos da liguagem arquitetónica utilizada; finalmente, na arquitetura de habitação, privada e pública, destinada a membrosdos mais diversos níveis sociais do mundo colonial, desde as obras para as classes médias‐altas às dos bairros sociais de indígenas, apareceram desde asformas mais tradicionalistas às mais arrojadas e modernas, ou seja, desde a “casa portuguesa” com as suas variantes até às unidades de habitaçãocoletiva de tipo corbusiano internacionalista.

A arquitetura religiosa

No campo da obra religiosa, houve nesta fase uma série de edificações significativas da arquitetura de feição tradicional. Ficam como expoente destatendência retrógrada, em Angola, a Catedral de Sá da Bandeira, por Fernando Batalha, de 1939, com alguma estilização de gosto art déco, e, emMoçambique, a de Nampula, atribuída a Raul Lino, inaugurada em 1956, ambas com a solução clássica, e dita “portuguesa”, da fachada de duas torresde feição medievalizante, em H, e com nave central alongada. Estas obras principais foram secundadas por muitos pequenos templos nas cidades e vilasmais pequenas, com expressão mais ou menos regionalista, como a Igreja do Lobito, por Vasco Regaleira. Todas elas prolongaram os modelos e práticasarquitetónicas provindas do século XIX, sem especial imaginação ou procura de inovação.

Também se podem assinalar alguns edifícios de expressão modernista, ou de transição entre temas tradicionais e modernizantes – de que a Catedral deLourenço Marques, obra do engenheiro Marcial Freitas e Costa, de 1936‐1944 (> imagem p. seguinte, 1996), constitui um exemplo claro. Um modelofrancamente mais modernizante ocorreu em Luanda, com a Igreja da Sagrada Família, por António de Sousa Mendes e Sabino Luís Martins (concursoem 1964). Obras modernas, de clara expressividade, são, já nos anos 1960, a Igreja de Novo Redondo/Sumbe, por Castro Rodrigues, inspirada em obrasde Frank Lloyd Wright, e a Igreja de São Pedro de Moçâmedes, por Luís Taquelim, com expressivos planos triangulares verticais. A Capela‐Esplanada deNossa Senhora do Monte, em Sá da Bandeira, por Frederico Ludovice, 1962, constitui uma arrojada obra estrutural curvilínea e aberta, em forma de“arco musical”.

Moçambique foi talvez o território onde se tornou mais marcante a dimensão inovadora e de modernidade da arquitetura religiosa: são fundamentais asigrejas modernas da área de Lourenço Marques, como a da Munhuan, por Jorge Valente, em volume oblíquo, de expressão dinâmica, a da Machava, porPancho Guedes e sobretudo a notável igreja de nave circular, com graciosa solução estrutural, de Santo António da Polana, por Craveiro Lopes, 1956‐1962. Pela expressão muito original, há que referir a Igreja da Manga, por João Garizo do Carmo, na Beira, plena de plasticidade, de 1957, e a invulgarIgreja de Macúti, por Bernardino Ramalhete, também na Beira, de assumido sentido vernáculo e funcional, de 1961.

Em termos de influências, estas igrejas, sobretudo as de Moçambique, na Polana e na Manga, parecem receber a influência direta da arquiteturamoderna brasileira, que então, com Niemeyer e Brasília (inaugurada em 1960), estava no seu apogeu, e defendia exatamente uma linha de plasticidade,de dimensões quase escultóricas, na arquitetura. Neste particular, mencione‐se a presença de um conjunto de criadores de Moçambique, arquitetos eartistas plásticos, presentes, nos anos de 1950, na Bienal de São Paulo, no Brasil. Por outra via, e em geral, toda a nova arquitetura moderna de igrejas serelacionava também com a tendência que os católicos progressistas do Portugal ibérico tinham encetado a partir dos meados dos anos 1950, e que seconsubstanciou no MRAR – Movimento de Renovação da Arte Religiosa.

Hospitais, escolas e centros de investigação

Os hospitais e as escolas constituíram naturalmente um campo de sistemática realização de obras modernistas e modernas, visto que pela sua dimensãosocial, assistencial e pedagógica, eram temas caros aos autores de que falamos, e essenciais ao progresso de uma política de disseminação equipamental.

Refira‐se, como obra marcante em cidade de pequena dimensão, o Hospital de Sá da Bandeira, por Pinto da Cunha e Simões de Carvalho, 1963‐1965, oqual representa de facto uma obra de expressão moderna e linhas inovadoras, de algum modo padronizando as novas tipologias desta função. OHospital Miguel Bombarda, em Lourenço Marques, recebeu nos anos 1960 uma nova estrutura, de tipo moderno, projeto atribuído a Lucínio Cruz; oHospital dos Tuberculosos da Machava, nos arredores da mesma cidade, constitui um volume de grande dimensão, com longa fachada retangularacentuando as linhas horizontais geométricas, por João José Tinoco e Alberto Soeiro (> imagem junta, 2001).

A arquitetura escolar e de investigação também refletiu a influência das ideologias conservadoras vigentes. Como no Portugal ibérico (Liceu Gil Vicente,em Lisboa, Liceu de Castelo Branco, Liceu de Faro), edificaram‐se nas áreas coloniais obras de imagem solarenga e ressaibo decorativo neobarroco, porvezes com corpos classicizantes marcando a fachada, sem deixarem de apresentar, contraditoriamente, uma certa modernidade, quer na estrutura embetão armado, quer na concepção “bauhausiana” dos vários volumes e na articulação das funções correspondentes. São exemplo os principais liceuse/ou escolas técnicas das capitais coloniais: da Praia, em Cabo Verde; de São Tomé, a Escola Técnica Silva Cunha; de Luanda, o Liceu Salvador Correiade Sá, um percursor, atual Mutu ya Kevela, de 1940‐1942; o de Benguela, Liceu Diogo Cão; e o de Sá da Bandeira, Diogo Cão, atual Mandume, entreoutros.

O processo de modernização expressiva foi gradual, tendo ficado em Moçambique bastante bem vincada uma linha de transição, na qual ainda tende apersistir a fachada porticada e monumentalizada nos liceus de Lourenço Marques, de que são exemplos os liceus Salazar, atual Josina Machel, de 1939‐1944, por Rodrigues da Silva (ou por José Costa Silva), e o Liceu António Enes, atual Francisco Manyanga, por Lucínio Cruz e Eurico Pinto Lopes,projeto de 1958 e obra de 1961‐1962; na Beira, idêntico caso se verifica no Liceu Pedro de Anaia. Porém, e talvez pelo facto de as escolas técnicas teremmenos carga simbólica e de prestígio social que os liceus, a obra da Escola Técnica Governador Joaquim Araújo, em Lourenço Marques, atual EstrelaVermelha, por Fernando Mesquita, de 1959‐1963, apresenta já uma assumida, austera e funcional modernidade.

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Ao contrário, em certos contextos sub‐regionais, em periferias onde a imposição tradicionalista se diluía, caso os arquitetos avançassem para obrainovadora, conseguiu‐se edificar peças de sentido francamente moderno, explorando a dimensão do betão aparente e os sistemas de circulação eventilação abertos, com adequada funcionalidade tropical. Como exemplos, refiram‐se, em Angola, o Liceu de Henrique de Carvalho, atual Saurimo, nadistante Lunda, por Francisco e Antonieta Silva Dias, de 1958‐1959, pavilhonar, com grelhas de ventilação nas fachadas, tal como o do Lobito, porCastro Rodrigues, de 1966, em betão aparente.

Os edifícios ligados à investigação científica sempre se apresentaram como obras modernas, dada a especificidade da sua função. Mencionem‐se duasobras marcantes – o Laboratório de Engenharia de Angola/LEA, por Vasco Vieira da Costa, em Luanda, e o Instituto do Algodão de Moçambique, porJoão José Tinoco, na Machava, cerca de Lourenço Marques.

Equipamentos administrativos e mercados

Os equipamentos administrativos, quer ligados às câmaras, quer estatais, desempenharam um papel primordial no contexto do processo de afirmaçãoda chamada arquitetura de representação, primeiro com modelos classicizantes e neo‐tradicionais, depois com tipologias de afirmação da modernidade.

Os edifícios dos Palácios do Governo, ou do Governador, em Angola, inscrevem‐se geralmente no primeiro grupo, apresentando uma composiçãosimétrica, um portal marcante, um amplo telhado. Assim acontece em Vila Serpa Pinto/Menongue, de gosto neo‐clássico, e em Vila Luso/Luena, neo‐solarengo, de 1959. Já os edifícios dos atuais Governos Provinciais de Moçâmedes ou de Vila Pereira D’Eça/Ondjiva, no Cunene (este de 1969, destruídona guerra civil), exprimem uma tipologia claramente de edifício público moderno, com corpo prismático e geométrico sobre pilotis.

Mas as obras mais qualificadas, no plano do edifício público estatal em pequenas cidades de província, foram sem dúvida as dos então chamadosPalácios das Repartições, em Moçambique: em Porto Amélia/Pemba, em Vila Cabral/Lichinga, por João José Tinoco, de 1966‐1968, e em Quelimane,por João Garizo do Carmo. Constituem amplas, elegantes e arejadas estruturas em betão, com utilização de galerias e grelhas nas fachadas, e desistemas de ventilação natural nas coberturas. Nelas se nota, sobretudo nos trabalhos de Tinoco, a influência da arquitetura brasileira moderna, jámencionada a propósito da arquitetura religiosa.

As edificações das sedes municipais propiciaram a experimentação de formas modernistas, em Quelimane, de gosto art déco, e depois modernas, emMocuba, na área de Quelimane. Neste último caso, devem destacar‐se, em Angola, o edifício de Novo Redondo/Sumbe e o de Mariano Machado/Ganda,ambos por Castro Rodrigues; o projeto para Vila Luso/Luena, e o de Cabinda, este por Luís Garcia de Castilho.

Os edifícios de serviços públicos percorreram idêntica evolução expressiva. Exemplifique‐se com uma obra modernista, o edifício da Estatística, emLourenço Marques, com corpo cilíndrico no gaveto; com uma de arquitetura do Estado Novo, o Edifício da Fazenda, em Luanda; e com um caso jáclaramente moderno, o edifício da Secretaria Provincial da Agricultura, Florestas e Serviços Dependentes, por João José Tinoco e António Matos Veloso(Lourenço Marques, 1967).

Obras eminentemente funcionais e de sentido prático, os mercados municipais dos principais centros urbanos desde cedo exibiram uma capacidade deafirmação das técnicas e das expressões modernas na sua concepção. Na época estudada, deve destacar‐se o conjunto dos mercados modernos deAngola, que são as grandes obras exemplares desta concepção inovadora e contemporânea, nalgumas das suas maiores cidades: em Luanda, o Mercadodo Quinaxixe (de 1950‐1953, por Vasco Vieira da Costa, demolido em 2008), o de Benguela e o do Lobito (este por Castro Rodrigues, de 1963). Tambémdeve referir‐se o Mercado do Caputo, em Luanda, por Simões de Carvalho, com leves e elegantes coberturas soltas em betão aparente, erigido numa áreapopular. Os mercados de frescos, no meio urbano tropical, são, por essência, obras onde as necessidades funcionais sobrelevam todos os outros aspectos– e a grandeza e a dimensão estética a que exemplos como o de Quinaxixe elevaram a tipologia, não tiveram na época situações comparáveis no Portugalibérico.

Transportes, comunicações

A arquitetura ligada aos sistemas de transportes teve nas áreas coloniais um amplo desenvolvimento, mercê do intenso crescimento verificado nasestruturas materiais. Para além de várias obras já mencionadas como infraestruturas, registem‐se as edificações com carácter mais urbano, sejam deconcepção modernista, como a Estação Ferroviária do Caminho de Ferro de Benguela, no Lobito, por Cassiano Branco, de 1936, sejam de expressãoafirmativa e espetacularmente moderna – como a da Estação Ferroviária da Beira, por Francisco de Castro, Paulo Sampaio e João Afonso Garizo doCarmo, de 1958‐1966 – capazes de competir pela dimensão e pelo arrojo inovador com qualquer obra similar do Portugal ibérico.

Refiram‐se, como bons exemplos de arquitetura moderna no conjunto das comunicações navais, os edifícios de Comando Naval: o de Luanda, porAntónio Campino (1917‐1997), e o do Mindelo (Cabo Verde), por Lucínio Cruz (1914‐1999).

As arquiteturas ligadas às radiocomunicações foram em grande número, decorrentes da importância que, de forma rápida e crescente, os processosinovadores neste campo assumiram ao longo do século XX. Disseminados por quase todas as vilas, povoações e cidades, os edifícios dos correios,telégrafos e telefones, e da radiodifusão, marcaram decisivamente a arquitetura colonial de Angola e Moçambique. Passaram a constituir uma referênciaurbana das áreas centrais dos povoados. Sirvam de exemplo o edifício modernista dos Correios e Telefones de Lourenço Marques, em gaveto curvilíneoe dinâmico, e o dos Correios de Benguela, de desenho já moderno, por Lucínio Cruz, de 1950. Obras exemplares ligadas à radiodifusão são omonumental Radio Clube de Moçambique, em Lourenço Marques, com poderoso sistema de grelhas nas amplas fachadas e simbólica torre, por PaoloGadini, dos anos 1940‐1950, e a vasta edificação da Radiodifusão de Angola, por Pinto da Cunha e Simões de Carvalho, atual Rádio Nacional, de 1963‐1967, com um extenso sistema estruturante de pátios e fachadas em grelha – outra obra incomparável, em escala e eficácia técnica, com o que então sefazia no Portugal ibérico. Deve realçar‐se também, como a obra mais interessante de São Tomé, o elegante edifício da Companhia Santomense deTelecomunicações, também com utilização de uma vasta grelha abstrata de betão na fachada.

Cinemas, hotéis e clubes

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A chamada “arquitetura de espetáculos” brilhou especialmente no “século do cinema” que foi o século XX. Tal como na Europa, também nas cidades daÁfrica tropical o tema se desenvolveu amplamente, com especial relevo para a modalidade tipológica do cinema como esplanada ao ar livre e, àsemelhança do que se fazia no Portugal ibérico, com o frequente recurso ao modelo misto dos cine‐teatros. Citemos um caso exemplar de obramodernista: o Cine África, antigo Manuel Rodrigues, com torre central, em Lourenço Marques, e um exemplo de grande volume, próximo da estética daarquitetura do Estado Novo, o Cine‐Teatro Monumental, por Fernando Batalha, de 1952, em Benguela. A obra mais espetacular desta tipologia é,porém, a do antigo cinema Restauração, atual Assembleia Nacional, em Luanda, com torre fina e abstrata rematando um longo e denso corpohorizontal, por João Garcia de Castilho e Luís Garcia de Castilho, construído entre 1946 e 1951.

As esplanadas cinematográficas, ao ar livre, apareceram nas principais cidades angolanas. Destaque‐se o Miramar, dos irmãos Castilho, de 1964, napanorâmica encosta sobre a baía de Luanda, e o Flamingo, no areal do Lobito, de Castro Rodrigues, de 1963. Em Moçambique as salas de cinemaassumiam igualmente o seu papel mundano, com exibição de um certo luxo e elevada qualidade de ambientes e materiais. Citem‐se o Cinema Dicca, porJoão José Tinoco, de 1967‐1969, em Lourenço Marques, e, na Beira, o cinema São Jorge, por João Garizo do Carmo, de 1953, com ampla grelharevestindo a fachada curvilínea.

Os hotéis constituíram um tema essencial na modernização dos sistemas urbanos nesta fase. Tal como os cinemas, participaram ativamente naredefinição de uma ideia moderna de conforto nas principais cidades e vilas coloniais. Do período modernista, refira‐se como exemplo o Hotel Girassolem Lourenço Marques, com a original e emblemática forma cilíndrica, e o espetacular Grande Hotel da Beira, por José Porto e Francisco de Castro, dosanos 1940‐1955, com vida curta. Na década de 1950, surgem os edifícios de hotelaria com expressão moderna, que marcaram os principais centrosurbanos moçambicanos e de que são exemplo, na Beira, o Hotel Embaixador, por Francisco de Castro, de 1956‐1957, e, em Lourenço Marques, opolícromo Hotel Tamariz, por Pancho Guedes, de 1954. Em Angola, o panorama urbano foi marcado também por alguns exemplos de elevada qualidade,como, em Luanda, o do Hotel Presidente, por António Campino, de fins dos anos 1960, para o qual o autor investigou o tema internacionalmente, oHotel Mombaka, em Benguela, e o Hotel Luso, em Vila Luso/Luena, por Luís Taquelim da Silva, exemplo de hotel moderno em pequena povoação.

Os clubes e agremiações privadas desempenharam um papel assinalável na vida quotidiana das classes coloniais mais urbanas. Os seus edifícios‐sedeprocuravam relevar arquitetonicamente a importância dos grupos sociais representados. Exemplifique‐se com a Associação dos Naturais deAngola/Anangola, por Vasco Vieira da Costa, em Luanda, e, em Moçambique, com a sede do Automóvel Touring Clube da Beira, de 1957, por PauloSampaio.

Edifícios comerciais e bancários

Em obras modernistas, os espaços comerciais contribuíram desde as décadas de 1930‐1940 para a definição de um ambiente inovador e atraente nasvárias urbes coloniais. Associados aos equipamentos do conforto urbano representados pelos cinemas, hotéis e clubes, os edifícios comerciaisintroduziram e/ou alargaram a possibilidade do consumo de novos produtos, importados e locais, num quadro de vida citadina mais sofisticada,contribuindo para a sociabilização e formação das classes médias coloniais em ascensão. Como exemplo modernista, cite‐se o edifício da Casa Coimbra,no coração da Baixa de Lourenço Marques. Em Luanda, da fase de formação moderna dos anos 1950, refira‐se o edifício Mobil/Carvalho e Freitas, noLargo da Mutamba, por João Garcia de Castilho, com Alberto Pessoa, com as habituais grelhas corbusianas de ventilação/iluminação na fachada, paracomércio, escritórios e hotel – anunciando a nova linha internacionalista aplicada nas tipologias comerciais urbanas. Como obra característica dos anos1960, em Luanda, é de destacar o vasto edifício dos Coqueiros, executado para os caminhos‐de‐ferro, perto do Estádio Municipal, igualmente por JoãoGarcia de Castilho, de 1969‐1970.

Muitas outras edificações com carácter comercial foram erigidas em Angola, correspondendo aos sucessivos ciclos económicos de riqueza a que seassistiu nas décadas analisadas: café, petróleo e diamantes, além das resultantes da dinâmica socioeconómica introduzida pela Guerra Colonial.Refiram‐se em Luanda, das décadas de 1950 a 1970, alguns exemplos mais marcantes desta construção diretamente ligada aos ciclos produtivos, como oedifício Cirilo & Irmão, por Francisco Pereira da Costa (1923‐1976) e Pinto da Cunha, de 1958, para um empresário ligado ao café, e os vários prédioscomerciais por Vasco Vieira da Costa, como o da torre do edifício Mutamba, atual sede do Ministério da Habitação e Obras Públicas, de 1968‐1969 (>imagem da entrada no sub‐capítulo 2.3.), e a torre SECIL, na Avenida Marginal.

Em Lourenço Marques, a fase dos anos 1950‐1970 traduziu‐se também em edificações de certa escala, na área central. Refira‐se, por Pancho Guedes, oinventivo prédio Abreu, Santos e Rocha, de 1954‐1956, com grelhas e fachadas de sentido escultórico; e o Prédio TAP/Montepio de Moçambique, porAlberto Soeiro, de 1960. De um modo ou de outro, estes edi‐ fícios desenvolviam a dinâmica das suas linhas horizontais, com recurso às galerias de usocoletivo – um tema eminentemente moderno no espaço arquitetónico do prédio em altura. Pela sua notabilidade e qualidade construtiva, deve destacar‐se o prédio Montegiro, em Quelimane, por Arménio Losa e Cassiano Barbosa, do Porto, que foi concebido como um complexo habitacional, turístico eindustrial, em 1954, e o Nauticus (Hotel Portugal), em Nampula, por Pancho Guedes. Os edifícios bancários representam uma variante dos imóveiscomerciais, que adquiriam um carácter emblemático nos maiores centros urbanos coloniais onde se inseriam, procurando uma afirmação de prestígiodas entidades promotoras, traduzida frequentemente – para além do projeto de arquitetura qualificador – pela aplicação de obras de arte aos espaços deutilização pública. Nos anos de 1950 houve um investimento oficial ligado aos bancos do estado (Banco de Angola, em Angola, e Banco NacionalUltramarino, nas restantes áreas), com recurso à imagem então dominante, neotradicional, de feição classicizante ou barroca; na década de 1960 já oseu tema arquitetónico era assumidamente moderno; e, finalmente, na de 1970, o tema dos bancos privados emerge, associado ao ícone da torre comoobjeto de prestígio arquitetónico acima de todos. Refiram‐se três exemplos dentro de cada uma destas fases: o Banco de Angola, em Luanda, de cerca de1953‐1956, por Vasco Regaleira, numa expressão revivalista classicizante e neobarroca; o Banco Nacional Ultramarino, em Lourenço Marques, por JoséGomes Bastos, com clara expressão moderna, luxuosa, concluído em 1965; e a Torre do BCCI, por João José Tinoco, erigida no centro de LourençoMarques com expressão brutalista no seu betão aparente, concluída já depois de 1975. Acrescentem‐se os variados exemplos das redes de agênciasbancárias de tipo loja comercial térrea, com as de Moçambique onde trabalhou João José Tinoco (Banco Pinto & Sotto Mayor, dependências emMalhangalene, Matola, Machava, e Lourenço Marques), e em Inhambane e Nampula – por vezes com intervenções de grande qualidade ambiental edecorativa. Neste como noutros casos de redes bancárias privadas, a introdução, num amplo conjunto de pequenos centros urbanos coloniais, dos seussingelos mas inovadores espaços interiores públicos, de feição moderna, ajudou a disseminar e a vulgarizar as formas contemporâneas.

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Arquitetura de habitação

A edificação de bairros sociais de moradias, conjuntos de habitação social coletiva e bairros cooperativos e privados, quer para as classes mais pobresquer para as classes médias, assumiu em todas as colónias em estudo grande importância e significado. Por outro lado, a construção de moradias deelevada qualidade arquitetónica nos bairros mais ricos das principais cidades, refletiu o modo de vida afirmativo e ostentatório dos colonos maisendinheirados.

Refiram‐se, como exemplos de iniciativa pública salazarista, os bairros económicos ou sociais, dentro da habitual linguagem do Estado Novo, que, nosanos de 1940‐1950, privilegiava para este tipo funcional os conjuntos de pequenas casa unifamiliares e/ou geminadas, com expressão neo‐regional de“casa portuguesa” – como sucedeu no antigo Bairro de Craveiro Lopes, na Praia, em Cabo Verde, e no antigo Bairro Salazar, em São Tomé, atual Bairro3 de Fevereiro).

Com a modernização dos modelos arquitetónicos operada ao longo da década de 1950‐1960, os tipos de habitação coletiva construídos pelaadministração colonial evoluíram para conjuntos de habitação em altura, em banda, ou em blocos sequenciais com vários fogos por andares. Umexemplo qualificado é o Bloco para os Servidores do Estado, por Vasco Vieira da Costa, na Avenida de Lisboa/Avenida da Revolução de Outubro, emLuanda, de cerca de 1965, que apresenta uma série de módulos sequenciais, em plataforma, descendo a encosta de forma escalonada; outros casos sãoos blocos de habitação coletiva da PRECOL/Unidade de Vizinhança n.o 1 do Bairro Prenda, ou do Musseque Prenda, por Simões de Carvalho e Pinto daCunha, de 1963‐1965, um conjunto inserido numa área planeada pelo município luandense, segundo as boas regras do urbanismo moderno europeu,aplicado de modo experimental e inovador (com triplex) ao contexto africano.

Na concepção e edificação de moradias de alto standard, com expressão moderna arrojada, participaram muitos dos melhores arquitetos fixados nascolónias. Vários deles erigiram as suas casas próprias nesta tipologia, ou desenharam‐nas para os quadros e profissionais mais qualificados daadministração colonial. É disto exemplo a Casa Inglesa, por Vasco Vieira da Costa de posição alcandorada e privilegiada na Alta de Luanda, e a moradiaprópria por Simões de Carvalho, no Bairro Prenda, de 1966, ambas em Luanda. Em Moçambique poderiam realçar‐se várias moradias de originaisformas escultóricas, edificadas no bairro elegante da Polana de Lourenço Marques por Pancho Guedes, bem como a sua Casa Vermelha, neo‐vernácula,de 1967‐1970, no Bairro de Sommerchield. Como exemplos de habitação coletiva de grande escala, nesta cidade, refiram‐se o Bairro COOP, de JorgeValente, dos anos 1960, e as chamadas Torres Vermelhas, de Carlos Veiga Pinto Camelo, de 1970‐1974.

Situação contemporânea

O que fica hoje, para o futuro, como Património de Origem Portuguesa?

Numa síntese final, há que relevar, em termos gerais, a dimensão paisagística da grande maioria dos espaços urbanos edificados pelos portugueses oucontando com a sua intervenção e influência. O tema da cidade‐paisagem – a urbe que se constrói em conjugação e equilíbrio com o espaço deimplantação e a sua envolvente – levado a cabo em muitos sítios e lugares com a percepção sensível do seu valor locativo, funcional e simbólico,conduziu em muitos casos à consumação de conjuntos construídos com uma clara dimensão estética – tenha sido ou não esta uma opção e/ou intençãodos seus edificadores.

Cada cidade, vila ou povoação, fortaleza, entreposto ou aldeia, erigida nesses locais especiais, apresenta igualmente, em regra e nos casos em que o seurecheio material pôde chegar até nós – vários edifícios com uma dimensão singular, seja pelo seu valor estilístico ou construtivo, pela sua expressãovernácula ou pelo respetivo significado histórico.

O que ficou destes patrimónios urbanos e arquitetónicos, na vasta área estudada, permite também assinalar uma tendência para a edificação de obrasque representam, por vezes contidas numa só construção, as várias influências, culturais e artísticas, sofridas pela cultura portuguesa, em viagemsecular, nas regiões em questão – que, de um modo ou de outro, puseram em contexto e em diálogo os grandes mundos civilizacionais, do Ocidenteeuro‐americano, comercial, pré‐industrial e industrial, com o Oriente, Próximo e Extremo, e no seu cruzamento com as culturas africanas e islâmicas.

Neste contexto, e se quisermos referir como exemplos alguns casos concretos mais notáveis, particulamente representativos do património de origemportuguesa atualmente existente na África Subsaariana, podemos enumerar os seguintes:

A Cidade Velha da Ribeira Grande, na Ilha de Santiago de Cabo Verde, conjunto arruinado da primeira experiência de urbe euro‐africana nos trópicos,que se pode considerar um vestígio precioso, embora muito degradado, de uma micro‐urbe característica da primeira época da colonização portuguesa.Esta cidade, que atualmente constitui uma ruína urbana, com uma população escassa que ruralizou os espaços da antiga urbe, ocupa na maioriapequenas habitações de cobertura em colmo, ou, modernizadas, em telha ou chapa. Beneficiou de algumas obras de restauro dos monumentos (Forte deSão Filipe, Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Pelourinho, por Luís Benavente, da DGEMN) a partir da década de 1960. Nos anos de 1990 iniciaram‐se obras de construção e consolidação, como a nova pousada, por Siza Vieira, 2004, e a pesquisa arqueológica nas ruínas da Sé Catedral, pelo IPPAR.Foi declarada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO em Junho de 2009.

O conjunto das roças nas ilhas de São Tomé e do Príncipe representa um notável exemplo arquitetónico da exploração agrária colonial, organizada emminúsculos espaços insulares autónomos entre si, em função de um ambiente equatorial, e com a melhor construção industrial da sua época. Em SãoTomé e Príncipe, o destaque valorativo deve ir portanto não apenas para as duas preciosas pequenas cidades das ilhas, mas sobretudo para esteconjunto das suas numerosas instalações rurais, de carácter agroindustrial, que testemunha a exploração intensiva de matérias‐primas num curtoperíodo de tempo, com uma rica diversidade de pequenos aglomerados de elevado valor urbano, territorial e arquitetónico.

Em Angola, da fase da Idade Moderna (séculos XVI a XVIII), pode destacar‐se a cidade de São Paulo de Luanda, verdadeira Lisboa do Sul de África,juntamente com o conjunto das fortalezas do Kwanza e a singular fábrica de ferro pombalina de Nova Oeiras.

Como centros urbanos das novas nações africanas, implantadas nos séculos XIX e XX, e especialmente notáveis pelo seu vasto recheio arquitetónico e

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equipamental de evidente qualidade e dimensão moderna, não se pode deixar de citar Lourenço Marques/Maputo e a Beira, em Moçambique; o Lobito,Moçâmedes/Namibe, e Lubango/Sá da Bandeira, em Angola.

Finalmente, na África Oriental, não se podem esquecer as arruinadas e históricas edificações de origem portuguesa construídas para fins militares emespaços costeiros, insulares ou interiores, que hoje se situam no norte de Moçambique, na Tanzânia, no Quénia e na Etiópia. Entre eles merecemdestaque o Forte Jesus em Mombaça, cujas muralhas foram, por duas vezes, em 1958 e em 2001, objeto de intervenção da Fundação CalousteGulbenkian e o marco de Melinde/Malindi, como testemunho do périplo de Vasco da Gama em 1498 e dos primeiros contactos dos europeus com oOriente.

Estes lugares, edifícios e monumentos merecem figurar ao lado daqueles que uma instância internacional, a UNESCO, classificou já como Património daHumanidade. São atualmente as ilhas de Goreia/Gorée, no Senegal, ligadas ao comércio dos escravos e sucessivamente conquistadas por holandeses,ingleses e franceses (1978); a Ilha de James, com os distritos do Baixo Niumi e Alto Niumi e Município de Banjul, ao longo do Rio Gâmbia, na Gâmbia,que inclui, além do forte construído em 1827 pelos ingleses para controlar a entrada e saída dos barcos carregados de escravos, as ruínas do postocomercial e de uma capela do tempo dos portugueses e ainda edifícios do século XIX deixados pelos comerciantes franceses (2003); a Fortaleza de SãoJorge da Mina (Elmina), com os fortes e castelos da região do Volta, na Grande Accra, e os entrepostos comerciais fortificados entre Keta e Beyin, noGana, igualmente ligados à escravatura (1979); a Ilha de Moçambique, com os seus antigos edifícios detalhados no artigo que neste volume lhe édedicado (1991); as ruínas dos entrepostos existentes nas pequenas ilhas de Kilwa Kisiwani (Quíloa) e Songo Mnara, na região de Lindi, na Tanzânia,onde, durante séculos, se fazia o comércio de ouro, ferro, escravos e marfim (1981); e, finalmente, Gondar, na Etiópia, com a sua cidade‐fortaleza deFasil Ghebbi, residência do imperador etíope e as suas construções de influência hindu, árabe e portuguesa, nomeadamente as igrejas fundadas pelosmissionários jesuítas (1979).

Se este conjunto de lugares e edifícios e monumentos fosse verdadeiramente representativo do legado deixado em África pelos portugueses, dir‐se‐ia quea sua presença foi francamente dominada por atividades comerciais destinadas a explorar as riquezas naturais de África, e em particular pelo comérciodos escravos. Tal juízo, porém, seria injusto. O legado africano construído de origem portuguesa representa muito mais do que isso. Se foi fortementemarcado por interesses económicos, como toda a atividade humana, como todo o colonialismo europeu, nem por isso deixou de suscitar também umafecunda troca de bens artísticos e intelectuais, de ideias e de crenças, sem a qual a civilização africana seria certamente mais pobre. O inventário queaqui se apresenta mostra bem a sua variedade, a sua abundância, e o valor artístico e técnico de muitas das suas realizações. Sem esquecer o que estas,sem dúvida, representaram como propaganda política e exploração económica, espera‐se que o seu inventário contribua para preservar a memória doque elas tiveram e têm, também de positivo, para os africanos de hoje e para a Humanidade em geral.

José Manuel Fernandes

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