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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ VALTERLEI APARECIDO DA COSTA ENSAIO PARA UMA TEORIA TRILÓGICA DO TRIBUTO: UM ESTUDO NORMATIVO SOBRE TRIBUTAÇÃO, COMPETÊNCIA E LANÇAMENTO CURITIBA 2019

ENSAIO PARA UMA TEORIA TRILÓGICA DO TRIBUTO: UM …

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

VALTERLEI APARECIDO DA COSTA

ENSAIO PARA UMA TEORIA TRILÓGICA DO TRIBUTO: UM ESTUDO NORMATIVO

SOBRE TRIBUTAÇÃO, COMPETÊNCIA E LANÇAMENTO

CURITIBA

2019

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VALTERLEI APARECIDO DA COSTA

ENSAIO PARA UMA TEORIA TRILÓGICA DO TRIBUTO: UM ESTUDO NORMATIVO

SOBRE TRIBUTAÇÃO, COMPETÊNCIA E LANÇAMENTO

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Direito, Área de Concentração em Direito do Estado, Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Direito do Estado. Orientador: Prof. Dr. José Roberto Vieira

CURITIBA

2019

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C837e

Costa, Valterlei Aparecido da Ensaio para uma teoria trilógica do tributo: um estudo normativo sobre tributação, competência e lançamento [meio eletrônico] / Valterlei Aparecido da Costa. - Curitiba, 2019.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Paraná. Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Orientador: José Roberto Vieira 1. Direito tributário. 2. Tributos. 3. Competência tributária. 4. Lançamento tributário. I. Vieira, José Roberto . II. Título. III. Universidade Federal do Paraná.

CDU 336.22

Sistema de Bibliotecas/UFPR, Biblioteca de Ciências Jurídicas Eglem Maria Veronese Fujimoto - CRB9/1217

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A Valdemar, meu pai.

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“O céu sobre o porto tinha cor de televisão num canal fora do ar”1.

William Gibson

1 William Gibson, Neuromancer, p.23.

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RESUMO

O presente trabalho objetiva conceituar tributo. Para tanto, usa como método a redução da complexidade que é direito ao conjunto de normas jurídicas, implicando um tratamento normativo da entidade tributo. Vê-se, assim, com a atribuição de discorrer primeiramente sobre o significado da expressão “norma jurídica”, realizando tal tarefa por meio de um enfoque positivista, com destaque nos aspectos: estático e dinâmico. Estaticamente norma jurídica é a conexão de uma conduta modalizada deonticamente a uma hipótese, por imputação; dinamicamente norma jurídica é o produto da aplicação de outra norma jurídica. Pontos que ancoram o estudo do tributo enquanto norma jurídica, para, em seguida, estabelecer-se um pacto semântico sobre o significado de conceituar, confrontando-o com os análogos definir, apresentar noção e tipificar. Fixadas as bases propedêuticas, passa-se a conceituar tributo. Para isso, primitivamente, adota-se uma norma como referencial, a qual é identificada, por comparação, com uma proposição avençada, conceito estático de tributo, designando-a de “norma de tributação”, a qual, ligadas por imputação, apresenta, na hipótese, a descrição abstrata de um fato lícito, de cunho econômico, no tempo e no espaço, por meio da formulação: sujeito, verbo e complemento; e, na consequência, a conduta obrigatória de dar dinheiro, quantificável, mas ainda não quantificado, por um sujeito, dado de forma geral, ao Estado, ou quem as vezes lhe faça, a ser cumprida em tempo e espaço precisáveis. Ato contínuo, é possível inventariar duas outras normas de caráter tributário, o que se promove dinamicamente, a partir da norma de tributação, tomada como meridiano. Válido, portanto, desenvolver o raciocínio de que, sendo a norma de tributação uma norma-fundada, há, para ela, uma norma-fundamento, a qual se nomina de “norma de competência tributária”. Logo, se dada a hipótese, então dever-ser, em um dos modos de conduta, observando onde e quando, por meio de um procedimento, a instituição, alteração ou extinção da norma de tributação, por um especificado sujeito. Compreensão que permite o estudo das características da competência tributária. Em relação ao sujeito, os temas são: privatividade, indelegabilidade e irrenunciabilidade; no que diz respeito à modalização de conduta, o foco é a facultatividade; para o sentido da conduta, a enumerabilidade e a inalterabilidade; para o tempo da conduta, a incaducabilidade. Ainda, no processo dinâmico de positivação, pode a norma de tributação ocupar o polo de norma-fundante, quando discernimos a “norma de lançamento tributário”. Agora, a descrição na hipótese apresenta-se como concreta, o sujeito que deve dar, até então apresentado em notas gerais, é individualizado, bem como é precificada a quantia de dinheiro a ser dada, além de especificar-se o tempo e o lugar. Entretanto, o estudo somente adquire completude quando a norma de lançamento tributário é contraposta à norma que regula a conduta de lançar, sendo colacionados o sujeito obrigado a pôr a norma de lançamento tributário e o sujeito individualizado da obrigação tributária, para, a partir daí, discorrer sobre suas modalidades. Fecha-se, assim, o ciclo, com o estudo normativo tributário em tríade, mediante três normas: tributação, competência e lançamento. Como desenlace, tem-se uma teoria trilógica do tributo.

Palavras-chaves: Tributo. Norma de tributação. Norma de competência. Norma de lançamento.

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ABSTRACT

The present work aims to conceptualize tax. For this purpose, it uses as a method the reduction of complexity that is law to the set of legal norms. Because of this, its first attribution is to discuss the meaning it adopts for the expression “legal norm”, implementing this task through the legal positivist, with emphasis on the aspect: nomostatics and nomodynamics. Statically a legal norm is the imputation of a deontic modal conduct to a hypothesis; dynamically legal norm is the product of the application of another legal norm. Points that support the study of tax while viewed as a legal norm. However, before further development, a semantic pact on the meaning of conceptualize must be made, confronting it with the analogs define, present a notion and typify. Then, with the propaedeutic foundations established, the tax is conceptualized. For this, first is adopted a standard norm as a reference, which is identified, by comparison, with an agreed proposition, static concept of tax, designated as “norm of taxation”, which, constructed as imputation, presents, in the hypothesis, the abstract description of a licit fact of economic nature, in time and space, through the formulation: subject, verb and complement; and, in consequence, the obligatory conduct of giving money, quantifiable, but not yet quantified, by a general subject to the State, or whoever makes it, to be performed in a specified time and space. After, it is possible to inventory two other norms of tax character, dynamically promoted from the norm of taxation, taken as a meridian. Therefore, it is valid to develop the reasoning that being the norm of taxation a grounded norm, there is, for her, a grounding norm, which is nominated as “norm of competence”. Thus, if given the hypothesis, then it must be, in one of the modes of conduct, observing where and when, by means of a procedure, the institution, alteration, or extinction of the norm of taxation by a specified subject. Understanding that allows the study of the characteristics of tax competence. Regarding the subject, the themes are the privateness, undelegateness and unwaiveness; about conduct modal, the focus is the facultativeness; to the sense of conduct, the listing and the unalterableness; for the time of the conduct, the unlapseness. Still, in the dynamic process, the norm of taxation can occupy the position of founding norm, when we call it as “norm of assessment”. Now, the description in the hypothesis, which was previously abstract, presents itself as concrete, the individual who has to give, hitherto presented in general notes, is individualized, as well as pricing the amount of money to be given, and specifying the time and place. However, the study only acquires completeness when the norm of assessment is opposed to norm that regulates the assess conduct, comparing the subject obliged to set the norm of assessment and the subject of the tax obligation. Thus, the cycle closes, with the tax normative study presented in triad, by means of three norms: taxation, competence and assessment. And as a result, there is a trilogical theory of tax.

Keywords: Tax. Norm of taxation. Norm of competence. Norm of assessment.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................10

PARTE I – NORMA JURÍDICA

2 NORMA JURÍDICA...................................................................................................20

2.1 SER E DEVER-SER.....................................................................................................20

2.2 A NORMA....................................................................................................................24

2.3 A NORMA JURÍDICA.................................................................................................28

2.4 UMA TEORIA DE TUDO............................................................................................32

2.5 A HOMOGENEIDADE SINTÁTICA DAS NORMAS JURÍDICAS..........................35

2.6 A FORMALIZAÇÃO DA NORMA JURÍDICA..........................................................40

2.7 NORMA E SANÇÃO....................................................................................................42

2.8 NORMA PRIMÁRIA E NORMA EVENTUAL...........................................................45

2.9 NORMA DE CONDUTA E NORMA DE COMPETÊNCIA.......................................50

2.10 INVALIDAÇÃO...........................................................................................................55

2.11 CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS: ABSTRATA-CONCRETA,

OCORRENTE-EVENTIVA, GERAL-INDIVIDUAL.................................................59

PARTE II – NORMA TRIBUTÁRIA

PARTE II.I – PROPEDÊUTICA

3 PACTO SEMÂNTICO...............................................................................................70

3.1 DEFINIR, CONCEITUAR OU APRESENTAR UMA NOÇÃO DE TRIBUTO?........70

3.1.1 A Constituição conceitua e o CTN define tributo?.........................................................76

3.2 CONCEITO DE TRIBUTO NO DIREITO E DO DIREITO.........................................78

3.3 TIPOS NO DIREITO TRIBUTÁRIO............................................................................82

3.3.1 A Constituição tipifica e CTN conceitua tributo?..........................................................88

PARTE II.II – CONCEITO ESTÁTICO DE TRIBUTO

4 NORMA DE TRIBUTAÇÃO.....................................................................................97

4.1 TRIBUTO COMO NORMA PRIMÁRIA.....................................................................97

4.2 HIPÓTESE DA NORMA DE TRIBUTAÇÃO...........................................................100

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4.2.1 Licitude........................................................................................................................101

4.2.1.1 Licitude: questão relacional.........................................................................................102

4.2.1.2 Licitude: questão distintiva: multa e indenização........................................................103

4.2.1.3 Licitude: tributação dos fatos ilícitos...........................................................................104

4.2.2 Abstração.....................................................................................................................108

4.2.3 Indiferença à volição....................................................................................................110

4.2.4 Descrição abstrata de fato econômico..........................................................................113

4.2.5 Sujeito, verbo e complemento......................................................................................117

4.2.6 Tempo e espaço...........................................................................................................121

4.2.6.1 Tempo..........................................................................................................................123

4.2.6.2 Espaço.........................................................................................................................126

4.3 CONSEQUÊNCIA DA NORMA DE TRIBUTAÇÃO...............................................131

4.3.1 Obrigação de dar..........................................................................................................132

4.3.1.1 O que se deve dar.........................................................................................................135

4.3.1.2 Quanto se deve dar.......................................................................................................136

4.3.2 Quem deve dar a quem.................................................................................................141

4.3.2.1 Sujeito ativo.................................................................................................................142

4.3.2.2 Sujeito passivo.............................................................................................................146

4.3.3 Onde e quando.............................................................................................................150

4.4 CONCEITO ESTÁTICO DE TRIBUTO....................................................................151

PARTE II.III – CONCEITO DINÂMICO DE TRIBUTO

5 COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA............................................................................161

5.1 HIPÓTESE DA NORMA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA................................162

5.1.1 Equívocos da doutrina.................................................................................................164

5.2 CONSEQUÊNCIA DA NORMA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA...................166

5.2.1 Modalização da conduta devida...................................................................................166

5.2.1.1 Facultatividade............................................................................................................168

5.2.2 Sentido da conduta.......................................................................................................170

5.2.2.1 Competência e imunidade............................................................................................170

5.2.2.2 Enumerabilidade e competência residual.....................................................................172

5.2.2.3 Inalterabilidade............................................................................................................174

5.2.2.4 Procedimento...............................................................................................................177

5.2.3 Sujeito..........................................................................................................................178

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5.2.3.1 Privatividade................................................................................................................179

5.2.3.2 “Indelegabilidade”.......................................................................................................182

5.2.3.3 Irrenunciabilidade........................................................................................................185

5.2.4 Tempo e espaço...........................................................................................................185

5.2.4.1 “Incaducabilidade”......................................................................................................187

5.3 DISTINÇÃO ENTRE TRIBUTO E CONTRATO......................................................188

5.4 CONCEITO DINÂMICO DE TRIBUTO: NORMA DE COMPETÊNCIA...............190

6 LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO.............................................................................193

6.1 LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO COMO NORMA JURÍDICA.................................194

6.1.1 Ato ou procedimento...................................................................................................195

6.1.2 Declaratória ou constitutiva.........................................................................................196

6.2 CONTINGÊNCIA DA NORMA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO.....................197

6.3 FISCALIZAÇÃO........................................................................................................201

6.4 ORDENAMENTOS QUE EXIGEM LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO.....................204

6.4.1 Norma de tributação lida como norma de competência................................................205

6.4.2 Obrigação de lançar.....................................................................................................207

6.4.2.1 Decadência e prescrição...............................................................................................208

6.4.3 Procedimento para lançar.............................................................................................209

6.4.4 Sujeitos competentes para lançar.................................................................................211

6.4.4.1 Norma de autolançamento...........................................................................................212

6.4.4.1.1 Homologação e não homologação............................................................................216

6.4.4.2 Alolançamento............................................................................................................219

6.5 CONCEITO DINÂMICO DE TRIBUTO: NORMA DE LANÇAMENTO................221

PARTE III – CONCLUSÃO

7 UM, DOIS, TRÊS......................................................................................................225

REFERÊNCIAS....................................................................................................................227

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1 INTRODUÇÃO

Acobertada ou não por uma rubrica “esotérica”, não é estranha ao homem uma

weltanschauung, uma visão de mundo, com lastro nos números. A primeira forma de assim

compreender o mundo é apresentada pela doxografia2 de PITÁGORAS de SAMOS3. E, dentre

os números, um parece ter recebido maior atenção, independentemente da forma de sua

representação (numeral)4: o número três. Passa-se, a partir dele, ao estudo das coisas, ou mesmo

à concepção de uma essência para essas próprias coisas, por meio de uma tríade, tríada. Com

efeito, o mundo e o três confluem. Assim, se algo existe, então ele pode ser decomposto em

três, sem que, com isso, perca sua unicidade.

SÓFOCLES, aquele que nasceu em Colono, um dos maiores representante da tragédia,

encantou seus concidadãos e legou à posteridade, entre várias obras, das quais poucas chegaram

até nós, três dramas que foram concebidos em separado — não havendo, inclusive, identidade

entre a ordem cronológica de suas produções e a ordem cronológica da história que contam —

, mas que a tradição encampa como três partes de um único, algo maior do que a mera soma

delas. Não há como negar que Édipo Rei (430 a.C.), Édipo em Colono (401 a.C.) e Antígona

(441 a.C.)5, individualmente, são belíssimas obras, mas se executadas juntas, adquirem um

significado ainda mais esplendoroso. Exsurge a Trilogia Tebana! E não é só o drama, como um

todo, que transpassa por um enredo triásico. O próprio Édipo tem seu destino traçado por um

terno. Destino trinitário: “Édipo, o assassino de seu pai, o marido de sua mãe, Édipo, o

decifrador do enigma da Esfinge! O que nos diz a misteriosa tríade dessas ações fatais?”6.

2 “O próprio Pitágoras não chegou a dar forma escrita a suas idéias, tampouco o fizeram seus primeiros seguidores”. Jonathan Barnes, Filósofos Pré-socráticos, p.95 (I.5). Entre parênteses, fazemos referência ao capítulo, seção ou parte em que a citação se encontra na obra. Em alguns casos, há também a numeração que se dá aos clássicos gregos. 3 “A contribuição original dos pitagóricos é, pois, uma invenção extremamente importante: a significação do número e, portanto, a possibilidade de uma investigação exata em física”. Friedrich Nietzsche, Os pitagóricos, in: Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, p.63. 4 “[...] ‘número’ tiene dos significados — pues décimos ‘número’ tanto a lo numerado y lo numerable como aquello por medio de lo cual numeramos — [...]”. Aristóteles, Física: libro IV, p.89 (219b 5-8). 5 As datas entre parênteses se referem à primeira vez que as tragédias foram representadas. Édipo em Colono foi representada postumamente, haja vista que Sófocles morreu em 406 a.C. Informação constante em Mário da Gama Kury, Introdução, in: Sófocles, Trilogia tebana, p. 7-16. 6 Friedrich Nietzsche, O nascimento da tragédia, p.65 (9). E prossegue NIETZSCHE: “Há uma antiqüíssima crença popular, persa, sobretudo, segundo a qual um sábio mago só podia nascer do incesto, o que nós, em relação a Édipo, o decifrador do enigma e desposante de sua mãe, devemos interpretar imediatamente no sentido de que lá onde, por meio das forças divinatórias e mágicas, foi quebrado o sortilégio do presente e do futuro, a rígida lei da individualização e mesmo o encanto próprio da natureza, lá deve ter-se antecipado como causa primordial uma monstruosa transgressão da natureza — como era ali o incesto, pois como se poderia forçar a natureza a entregar seus segredos, senão resistindo-lhe vitoriosamente, isto é, através do inatural? Este conhecimento eu o vejo cunhado naquela espantosa tríade do destino edipiano: aquele que decifra o enigma da natureza — essa esfinge biforme —, ele mesmo tem de romper também, como assassino do pai e esposo da mãe, as mais sagradas ordens

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E, continuando a ressaltar a importância do pensamento que se dá sobre um tripé, ainda

dentro da antiguidade, podemos lembrar o neoplatonismo de PLOTINO, que se manifesta por

meio de uma trinalidade, pois, no seu entender, o mundo seria formado de três hipóstases

(substâncias): o Uno, a Inteligência e a Alma7. Isso sem falar que foram os antigos que nos

legaram o argumento por excelência, o silogismo, que, em sua apresentação clássica, é a

conexão de três proposições, que combinam, em pares, três termos8. Assim, a afirmação de que

no “um” podemos encontrar o “três” não nos deve causar maiores embaraços, pois não há nela

nada que já não tenha sido antes, muito tempo antes, dito.

Ademais, muitos assuntos específicos são outrossim tratados de forma ternária. A

semiótica9 é um deles, pois, com PIERCE, aprendemos como uma teoria, que divide o mundo

em três partes, pode ser levada às últimas consequências. Concebe-se, primeiramente, o

elemento-chave da linguagem, o signo, em trinca, para então fazer incidir sobre o quociente

obtido novo recorte tricotômico10. Lições que deram muito bons frutos, com MORRIS

ensinando que a linguagem apresenta três planos: sintático, semântico e pragmático. Com

da natureza. Sim, o mito parece querer murmurar-nos ao ouvido que a sabedoria, e precisamente a sabedoria dionisíaca, é um horror antinatural, que aquele que por seu saber precipita a natureza no abismo da destruição há de experimentar também em si próprio a desintegração da natureza”. Ibidem. 7 “Y como quiera que tendemos hacia el Bien, hemos de ascender hasta el principio interior a sí mismo hasta llegar a hacernos uno solo con él en lugar de la multiplicidad, si es que anhelamos la contemplación del Principio y del Uno. Necesitamos ciertamente convertirnos en Inteligencia y confiar el alma a la Inteligencia como si en ella hallase su descanso; así podrá el alma salir de su sueño y recibir lo que la Inteligencia ve, pues es claro que el alma contemplará el Uno por medio de la Inteligencia, sin añadir por su parte sensación alguna ni nada que provenga al menos de la sensación”. Plotino, Enéada, Livro VI-3. 8 O argumento silogístico, um entre os vários legados de ARISTÓTELES à humanidade, é o que consiste de duas premissas (a maior, contém o termo que é predicado na conclusão; a menor, contém o termo que é sujeito na conclusão) e uma conclusão (o termo médio é aquele que não aparece na conclusão): “Quando três termos estão de tal forma ligados entre si que o último está completamente contido no termo médio e o termo médio está completamente contido ou não contido no primeiro termo, então teremos necessariamente um silogismo perfeito nos extremos. Entendo por termo médio aquele que tanto está contido num outro quanto contém um outro em si mesmo e que ocupa a posição mediana; por extremos entendo tanto o termo contido ele mesmo num outro quanto aquele no qual um outro está contido: se A é predicado de todo B e B de todo C, A terá necessariamente que ser predicado de todo C”. Aristóteles, Órganon: analíticos anteriores, p.116 (I.IV 25b 30-40). 9 “Malgrado a diferente origem histórica dos termos ‘semiologia’ (linha lingüístico-saussureana) e ‘semiótica’ (linha filosófico-peirceana e morrissiana), no presente livro se adota o termo ‘semiótica’ como equivalente a semiologia, levando em conta a carta constitutiva da Internacional Association for Semiotic Studies – Association Internacionale de Sémiotique, 1969. Há tentativas prestigiosas de atribuir aos dois termos funções semânticas diferentes (Hjelmslev, 1943; Metz, 1966; Greimas, 1970; Rossi-Landi, 1973). Digamos que os objetivos teóricos ou os pressupostos ideológicos que aqueles autores procuravam nomear por meio de uma distinção entre os dois termos devam ser reconhecidos e estudados; no entanto, é arriscado jogar com uma distinção terminológica que não conserva um sentido único nos vários autores que a empregam. Não ousando etiquetar com um expoente cada acepção do termo em questão, buscar-se-ão pouco a pouco artifícios lingüísticos com que solucionar tais diferenças”. Umberto Eco, Tratado geral de semiótica, p. 1 (0.1.1). 10 “Os signos são divisíveis conforme três tricotomias, a primeira, conforme o signo em si mesmo for uma mera qualidade, um existente concreto ou uma lei geral; a segunda, conforme a relação do signo para com seu objeto consistir no fato de o signo ter algum caráter em si mesmo, ou manter alguma relação existencial com esse objeto ou em sua relação com um interpretante; a terceira, conforme seu Interpretante representá-lo como um signo de possibilidade ou como um signo de fato ou como um signo de razão”. Charles Peirce, Semiótica, p.51 (243).

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efeito, para aquele que lecionou na Universidade de Chicago, o processo de semiose envolve

três correlatos, a saber: veículo do signo, designatum e intérprete; com cada uma das dimensões

decorrendo da forma como o signo se relacione com esses correlatos11. Metaforicamente,

diríamos nós, a linguagem é um grão trisperma, algo que possui três sementes — a sintaxe, a

semântica e a pragmática —, que podem brotar todas juntas, concomitantemente, mas,

lembrando, nem sempre isso ocorre. Assim, a sintaxe ocupa-se da formação e da transformação

de frases, sem se preocupar com qualquer outro aspecto. Importa saber como construir uma

frase com sentido ou extrair de uma frase uma nova frase também com sentido12. A semântica,

por sua vez, preocupa-se em determinar as condições para que um signo denote um objeto. Em

outros termos, como se liga algo ausente a algo presente13. Por fim, a pragmática, conforme

consagrada lição, estuda a relação da linguagem com seus utentes, tratando prioritariamente do

uso dos signos sem, no entanto, confundir-se com a semântica. Nesta (semântica), estuda-se a

possibilidade de ligar o ausente a algo presente; naquela (pragmática), foca-se o hábito de

estabelecer tais vínculos14.

E as coisas não param por aí, pois, para onde quer que se olhe, lá está ele, o número

três, impávido. Na física, as leis ou axiomas de NEWTON são a trempe da natureza, sendo cada

um dos pés representado por uma das leis: do movimento e da inércia; da superposição de

11 Charles Morris, Fundamentos da teoria dos signos, p. 17 (II.2). 12“[...] uma ‘linguagem’ [...] vem a ser qualquer conjunto de coisas relacionadas de acordo com duas classes de regras: regras de formação, que determinam as combinações independentes permissíveis de membros do conjunto, sendo tais combinações chamadas frases, e regras de transformação, que determinam as frases que podem ser obtidas de outras frases. Estas duas espécies podem ser agrupadas sob o termo regra sintática. A sintaxe é, pois, a consideração de signos e combinações de signos na medida em que se sujeitam às regras sintáticas. Ela não está interessada nas propriedades individuais dos veículos do signo ou em qualquer uma de suas relações que não as sintáticas, isto é, relações determinadas por regras sintáticas”. Charles Morris, Fundamentos da teoria dos signos, p. 28-29 (III.1). 13 “Diversamente das regras de formação e transformação que tratam de algumas combinações de signos e suas relações, a regra semântica designa dentro da semiótica uma regra que determina sob que condições um signo é aplicável a um objeto ou situação; tais regras correlacionam signos e situações denotáveis pelos signos”. Charles Morris, Fundamentos da teoria dos signos, p. 40 (IV.1). 14 “[...] por que há necessidade de adicionar a pragmática à semântica; se a semântica trata da relação dos signos com os objetos, e se os intérpretes e suas respostas são objetos naturais estudados pelas ciências empíricas, seria de parecer que tal relação dos signos com os intérpretes cairia dentro da semântica. A confusão aparece aqui por não se distinguir em níveis de simbolização e por se separarem termos semióticos dos não semióticos no uso do objeto. Tudo que pode ser designado é um assunto para uma ciência (em princípio) unificada, e nesse sentido todas as ciências semióticas são partes da ciência unificada. Quando se fazem enunciados descritivos sobre qualquer dimensão da semiose, os enunciados estão na dimensão semântica de um nível mais alto de semiose, e portanto, não são necessariamente da mesma dimensão que está sendo estudada. Os enunciados na pragmática sobre a dimensão pragmática dos signos específicos estão funcionando predominantemente na dimensão semântica. O fato de que a dimensão pragmática se torna um ‘designatum’ para um processo de nível mais elevado de descrição não significa que o interpretante de um signo em qualquer nível dado é um ‘designatum’ desse signo particular. O interpretante de um signo é o hábito em virtude do qual o veículo do signo pode ser considerado como designado certas espécies de objetos e situações; como o próprio método de determinar o conjunto de objetos que o signo em questão designa, não é um membro desse conjunto”. Charles Morris, Fundamentos da teoria dos signos, p. 56-57 (V.2).

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forças; e da ação e reação15. Na filosofia, KANT desvelou que as categorias, conceitos puros

do entendimento, sempre aparecem em três nas funções do pensamento16. Na política, a melhor

forma de organizar o Estado, conforme a convicção de MONTESQUIEU, é tripartindo os

poderes17. Na área jurídica, merece destaque o trabalho de REALE, concebendo o direito com

três dimensões: a normativa, a fática e a axiológica18. Exemplos, aliás, não faltam para cantar

loas à primazia do trino.

De toda forma, não é possível olvidar, como uma das formas mais conhecidas de

trinalidade, a religião cristã, que mesmo sendo monoteísta, professa a tese de que o Deus Único

se manifesta por três formas distintas: Pai, Filho e Espírito Santo19. Novamente há “um” e há

“três”. Ainda tendo o cristianismo como referência, não podemos deixar de citar que Pedro

negou Jesus três vezes20; e que a redenção não faltou, pois Pedro posteriormente teve a chance

15 “LEI I Todo corpo permanece em seu estado de repouso ou de movimento uniforme em linha reta, a menos que seja obrigado a mudar seu estado por forças impressas nele. [...]. LEI II A mudança do movimento é proporcional à força motriz impressa, e se faz segundo a linha reta pela qual se imprime essa força. [...]. LEI III A uma ação sempre se opõe uma reação igual, ou seja, as ações de dois corpos um sobre o outro sempre são iguais e se dirigem a partes contrárias”. Sir Isaac Newton, Princípios matemáticos, p.162 (Axiomas ou Leis do Movimento). 16 “Há sempre em cada classe um número igual de categorias, a saber, três, o que também incita à reflexão, portanto toda a divisão a priori por conceitos deve ser uma dicotomia. Acrescente-se a isso que a terceira categoria resulta sempre da ligação da segunda com a primeira classe. [...]. Contudo, não se deve concluir daí, que a terceira categoria seja apenas um conceito derivado e não um conceito primitivo do entendimento puro. Portanto, a ligação da primeira categoria com a segunda, para produzir o terceiro conceito, exige um acto particular do entendimento, que não é idêntico ao que excede em qualquer delas”. Immanuel Kant, Crítica da razão pura, p.114 (I.II.I.I.III.11). 17 “Existem em cada Estado três tipos de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes e o poder executivo daqueles que dependem do direito civil. Com o primeiro, o príncipe ou magistrado cria leis por um tempo ou para sempre e corrige ou anula aquelas que foram feitas. Com o segundo, ele faz a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, instaura a segurança, previve invasões. Com o terceiro, ele castiga os crimes, ou julga as querelas entre os particulares. Chamaremos a este último poder de julgar e ao outro simplesmente poder executivo do Estado”. Montesquieu, O espírito das leis, p.167-168 (11.VI). 18 “[...] o Direito só se constitui quando determinadas valorações dos fatos sociais culminam numa integração de natureza normativa”. Miguel Reale, Teoria tridimensional do direito, p.103. Outra forma ternária de trato no direito seria através da semiótica. Assim, “[d]o ângulo discursivo, atendo-se aos três ângulos da análise semiótica, podemos falar em validade [da norma jurídica] na dimensão sintática, semântica e pragmática”. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da Norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, p.96-97. 19 Entre as passagens que servem como base para se afirmar que Deus é um e ao mesmo tempo três, destacamos: “Indo, pois, tornai discípulos todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do filho e do espírito santo, ensinando-os a cumprir todas as coisas que vos mandei”. Mateus 28:19, Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.155. “A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós”. Segunda Epístola de São Paulo aos Coríntios 13:13, Bíblia de Jerusalém, p.2030. No entanto, a teoria da consubstanciação somente começou a impor-se com o Primeiro Concílio de Niceia (325), onde se “[...] escreve a primeira confissão de fé, o Credo de Nicéia [...]”. Uma breve história dos Papas, p.15. Com o evento, o Imperador Constantino sentiu-se confortável o bastante em sua posição e “[...] exilou Ário e seus discípulos”. André Aymard, Roma e seu império: as civilizações da unidade romana, p.385. No entanto, apenas como Primeiro Concílio de Constantinopla (381) é que o Imperador, definitivamente, “[...] depôs todos os bispos arianos de suas igrejas”. Ibidem, p.387. 20 “Pedro estava sentado lá fora, no pátio. E aproximou-se dele uma criada, dizendo: ‘Também tu estavas com Jesus, o Galileu’ Mas Pedro negou diante de todos: ‘Não sei o que estás dizendo’. Dirigindo-se ele para a porta, viu-o outra criada e diz aos que ali estão: ‘Ele estava com Jesus, o Nazareno’. E de novo ele negou mediante juramento: ‘Não conheço o homem’. Daí a pouco, aproximaram-se os que ali estavam e disseram a Pedro: ‘É

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de uma tríplice profissão de fé21. No mais, para encerrarmos as ilustrações no campo religioso,

vem bem a propósito uma remissão ao Trimúrti, às três formas, conjunto de três deuses, que

podem também ser considerados como as formas de manifestação de um único deus22.

Por fim, devemos ter ainda em conta que, mesmo quando o resultado que temos diante

de nós é uma tetralogia, ainda assim a essência triádica pode estar presente, pois pode muito

bem ter sido a obra concebida como uma trilogia, que ganhou uma introdução ou um prelúdio

a posteriori. E foi assim com WAGNER, que inicialmente concebeu der Ring des Nibelungen

(O anel dos Nibelungos) como uma grandiosa ópera trifurcada, mas acabou posteriormente

sentindo a falta de um prólogo, de um Vorabend. Disso, então, exsurge o Ouro do Reno, com o

qual ficamos todos sabendo do poder de fluir do rio de muitas histórias23, fechando-se o ciclo

do anel: das Rheingold (O ouro do Reno), die Walküre (As Valquírias), Siegfried (Siegfried) e

Götterdämmerung (Crepúsculo dos deuses)24.

Todo esse arrazoado, em torno de trios, tríades, ternos, trímeros, tripés e tercetos, tem,

por conta, expor que uma ideia focada no único — sendo, portanto, redutora de mundo — pode

ainda assim ser desdobrada. Por essa linha, o único permanece, com sua imparidade, mas não

há mais um porquê equipará-lo a um monolítico. Modo de raciocinar que pretendemos estender

ao estudo do tributo, pois se tributo é norma jurídica, isso se dá em trinca, com a norma de

tributação, a norma de competência tributária e a norma de lançamento tributário.

verdade que também tu és um deles, pois até o teu falar te denuncia’. Então ele começou a praguejar e a jurar dizendo ‘não conheço o homem!’. E imediatamente um galo contou. E Pedro lembrou-se das palavras de Jesus, quando dissera que ‘antes de o galo cantar, três vezes me terás renegado’. E saindo lá para fora, chorou amargamente”. Mateus 26:69-75, Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.147. 21 “Depois de terem almoçado, Jesus diz a Simão Pedro: ‘Simão, filho de João, amas-me mais do que estes?’ Pedro diz-lhe: ‘Sim, Senhor, tu sabes que te estimo’. Jesus diz-lhe: ‘Apascenta meus cordeirinhos’. Jesus diz-lhe pela segunda vez: ‘Simão, filho de João, amas-me?’. Pedro diz-lhe: ‘Sim, Senhor, tu sabes que te estimo’. Jesus diz-lhe: ‘Arrebanha as minhas ovelhas’. Jesus diz-lhe pela terceira vez: ‘Simão, filho de João, tu estimas-me?’. Pedro entristeceu-se, porque Jesus lhe perguntava pela terceira ‘Estimas-me?’. E diz-lhe: ‘Senhor, conheces todas coisas; tu sabes que te estimo’. Jesus diz-lhe: ‘Apascenta minhas ovelhas. [...]’”. João 21:15-17, Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.410-411. 22 “Brahma — Deus hindu, criador personificado do universo. No pensamento indiano clássico, as outras duas divindades principais, VISHNU e XIVA, formam, juntamente com Brahma, uma ‘trindade’ [...]”. John Hinnells, Dicionário das religiões: verbete “Brahma”, p.44. 23 “Um novo dia nasce sobre o Majestoso Reno, rio de águas límpidas e cristalinas. [...]. No fundo do rio, pode-se ver o recorte das grandes pedras em meio ao balanço dos líquens esverdeados que se movem numa coreografia lenta e elegante”. A.S. Franchini e Carmen Seganfredo, As melhores histórias da mitologia nórdica: o anel dos Nibelungos: primeiro ato – o ouro do Reno, p.185. 24 “[...] Richard Wagner escreveu, nesse ano revolucionário [1848], a primeira parte do conjunto de uma ópera heroica chamada ‘Siegfrieds Tod’ (A morte de Siegfried). Assim ele começou pela peça final. Um dia o nome da peça seria modificado para ‘Götterdämmerung’ (O crepúsculo dos deuses). [...]. [...] no ano de 1851, concluiu ‘Der junge Siegfried’ (‘O jovem Siegfried’, mais tarde, apenas ‘Siegfried’). No ano seguinte, em 1852, são criadas as prosas das ‘Wälkure’ (Valquírias) e do ‘Rheingold’ (Ouro do Reno). Com isso, a prosa do ‘Anel dos Nibelungos’ está praticamente pronta e, a partir de 1853, Wagner começa a compor e trabalha nisso durante vinte e seis anos, vinte e um dos quais somente na composição”. Markus Hierstetter e S. Reto Arn (org.), A saga dos Nibelungos, p.115-116 (esclarecemos entre colchetes).

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Comecemos pela ideia redutora: direito é norma jurídica, ou melhor, um conjunto de

normas jurídicas, todas elas, por um lado, estruturalmente idênticas, e, por outro lado, com uma

origem em comum. Esses são, respectivamente, os aspectos estático e dinâmico que se

manifestam na nomologia. Para a questão estática, por mais estilisticamente diversas que sejam

as normas jurídicas, todas elas são (bi) bimembres no formato: dada a hipótese, então deve ser

a consequência; ou não dada a consequência, então deve ser outra consequência. Há o mundo,

que é contingente, e há a estrutura do mundo, que, detrás da diversidade, é homogênea. Por sua

vez, no que se refere ao plano dinâmico, toda norma jurídica é produto da aplicação de outra

norma jurídica, o que provoca a inversão do entendimento tradicional, passando a ser o

ordenamento quem determina o que é a norma jurídica e não a norma jurídica quem determina

o que é ordenamento. Com isso, temos uma estrutura escalonada no direito, sendo que todas as

normas decorrem de uma norma primeva, no topo da pirâmide. Ideias que desenvolveremos na

Parte I, Seção 2, intitulada de “Norma Jurídica”.

Na Parte II, denominada de “Norma tributária”, serão desenvolvidas as bases para a

distinção da norma tributária como espécie do gênero norma jurídica. Nesse ponto, ver-nos-

emos com a tarefa de apontar o que há na norma tributária que a diferencia de outras normas

jurídicas. Entretanto, como se adotou a homogeneidade sintática como ponto de apoio para a

compreensão das normas jurídicas, não há nada na estrutura normativa que possa vir em socorro

da demarcação. Assim, devemos procurar em outros planos da linguagem, que não a sintaxe a

especificação da norma tributária. E cremos que os resultados serão frutíferos se nos

embrenharmos pela semântica, pois reputamos que tributo, como epíteto de específica norma

jurídica, é uma particular forma de saturação dos categoremas normativos.

Nessa altura do percurso, pretendemos já ter realizado a contento a equiparação do

termo “tributo” à expressão “norma tributária”. Logo, quem conceitua “tributo”, na verdade,

conceitua uma espécie de “norma tributária”. Como isso, a norma tributária não deixa de ser

espécie do gênero norma jurídica — com particular conteúdo —, e, portanto, não descuidamos

de seu caráter unitário, o que nos permitirá dispensar outros enfoques que não o jurídico, por

mais legítimos que sejam. Tributo é, nos termos da posição reducionista deste trabalho, norma

jurídica com particular conteúdo, tout court.

Todavia, não podemos perder de vista que da uniformidade estrutural não se deriva o

conteúdo particular de norma jurídica alguma, cabendo sua criação à volição de quem, para

tanto, é competente. Assim, somente o conteúdo poderá dar-nos conta de se certa norma jurídica

é uma norma tributária. Mas qual conteúdo seria esse? A resposta depende de ter-se como apoio

um ponto externo ou interno no direito positivo. Por um deles, seria a própria autoridade que

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põe a norma jurídica quem a nomearia como tributária. Assim, tributo é o que o direito positivo

estabelece. Caso de “conceito no direito”. Por outro, tributo seria a norma jurídica identificada

a partir do cotejo com uma proposição — estabelecida por convenção, sem com isso se

pretender fazer as vezes de autoridade competente —, na qual se apontam as propriedades que

preenchem a estrutura normativa, com limites na coerência e na utilidade. Cenário de “conceito

do direito”.

Nossa opção será por esse segundo caminho, tendo tributo como norma jurídica, com

específico conteúdo, sem que, com isso, queiramos apontar uma essência por traz de rótulos,

pois, ao atribuirmos tais e tais propriedades, delimitação semântica, à norma tributária, não

estaremos trabalhando com conceitos certos e conceitos errados, pois, para nós, tudo não passa

de convenção. Deixaremos claro, portanto, que tributo não é a descrição de uma particular

norma jurídica de um dado ordenamento, mas uma norma que pode ser encontrada a partir de

um rótulo aglutinador pactuado.

Com isso, nossa preocupação não será com a revelação de um conceito de tributo, o

que geralmente é feito pela doutrina, com pitadas de metafísica. Em sentido contrário, o que

buscaremos é uma conceituação de tributo por convenção, que, internamente, respeite à

homogeneidade sintática da estrutura da norma jurídica e que, externamente, seja útil. Contudo,

sentimo-nos constrangidos apenas a defender a coerência interna da conceituação, deixando

para outros a verificação de sua utilidade. Aqui, síntese de ideias que serão precisadas com mais

vagar na Parte II.I, “Propedêutica”, Seção 3, “Pacto Semântico”.

Uma vez de posse do que seja conceituar (conceito do direito), então podemos

particularizar um conceito de tributo. Para tanto, devemos ter, como linha geral, a

homogeneidade das normas jurídicas, resguardando assim o caráter unitário, com a convenção

do conteúdo dando-lhe o aspecto particular. Entretanto, com isso, não se estará a cuidar da de

uma norma em particular, mas sim de todas aquelas que possam ser identificadas com uma

proposição pactuada, a qual tem função agregadora. Fica, a partir disso, a pergunta: se tributo,

como todas as outras, é norma dotada de hipótese e consequência, quais seriam as saturações

desses categoremas que lhes seriam próprias? É nesse ponto que a pactuação se mostra decisiva.

Não terá o conceito de tributo um mero caráter descritivo, pois nosso trabalho não descreverá

nem o que é tributo para uma dada autoridade competente nem descreverá o que seria tributo

em um fantasioso mundo das ideias. É uma construção, o conceito de tributo, com fim

conglomerador, de identificação de normas jurídicas tributárias. Suas balizas são simples:

externamente, a utilidade; internamente, a coerência.

Page 19: ENSAIO PARA UMA TEORIA TRILÓGICA DO TRIBUTO: UM …

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Tributo é norma jurídica, mas não é qualquer norma, é norma com tais e tais

propriedades, distinção de ordem semântica, respeitada a estrutura normativa, conforme por nós

arranjado, sem pretensões metafísicas ou particularistas. Tributo é, por esse ângulo, encontrado

a partir de um selo que reúne normas jurídicas com certas características, conceito do direito,

que doravante denominaremos de “norma de tributação”. Feito isso, ao realizarmos esse

desenlace, pretendemos obter como produto um conceito estático de tributo, a ser conferido na

Parte II.II, “Conceito Estático de Tributo”, Seção 4, “Norma de Tributação”.

A norma de tributação, nosso conceito estático de tributo, que não é nenhuma

particular norma jurídica nem a descrição dessa particular norma, mas um pacto, terá então a

função de meridiano para o estudo dinâmico do tributo, sendo dela que exsurgirá o estudo em

tríade. Com efeito, esperando o escalonamento normativo, há, como base, a norma de

tributação, mas, dado seu caráter relacional, num processo em movimento, ora ela é criatura,

ora é criadora. Dessarte, com um afastar de passos, deixaremos de contemplar somente a norma

de tributação, para apreciarmos qual é seu fundamento de validade, bem como para contemplar

quem nela busca relação de pertinência. Há, assim, um conceito abaixo e há, igualmente, um

conceito acima da norma de tributação, em semelhança à cadeia de positivação piramidal.

Questão que trataremos na Parte II.III, “Conceito Dinâmico de Tributo”.

Se tributo é norma jurídica, identificada a partir de um conceito, então há um outro

conceito que permite identificar a sua norma fundante questão de dinâmica normativa. Sendo

assim, deve-se conceber um outro conceito de tributo do direito, agora como fundamento,

igualmente por convenção, para reunir, ao seu redor, as normas que permitem a criação

daquelas assinaladas como normas de tributação. Se, estaticamente, uma teoria da norma

tributária pode contentar-se apenas com um conceito de norma de tributação, que marca as

normas jurídicas, dinamicamente, dada a estrutura escalonada do direito, há a necessidade de

se apontar qual seria a norma que fundamenta a criação dessas normas jurídicas assinaladas,

com tudo isso respeitando o limite sintático, pois uma norma-de-norma, lex legum, não é

estruturalmente diversa da norma que é, com base nela, posta. Pretendemos, feito essa

especificação, apresentar uma “norma de competência tributária”, igualmente pactuada, ideia a

ser desenvolvida na Seção 5, “Norma de Competência Tributária”.

Agora, se a norma de tributação pode ser norma fundada, criatura, pode também ser

norma fundante, criadora, pois a depender do direito positivo, há a necessidade de maior

positivação normativa, até que, de fato, exsurja a obrigação tributária. Quando isso é o caso,

então a norma de tributação deve ser lida não como norma de conduta, leve dinheiro, mas como

norma de competência, conduta no sentido de disciplinar a produção, modificação e exclusão

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normativa. Assim, pode ser o caso de a cadeia normativa não se encerrar com prescrições gerais

e eventivas, ligadas deonticamente a descrições abstratas, pois pode carecer a norma de

tributação da positivação de outra norma jurídica, nessa ocasião, com mandamento

determinado, ou seja, com valor precificado25, a alguém específico, em vista da descrição de

uma concretude na hipótese. Em suma, o que se encontra aberto na norma de tributação é

restringido por uma outra norma jurídica, à qual designaremos “norma de lançamento

tributário”. Imagem aqui esboçada, a qual pretendemos melhor detalhar na Seção 6, da “Norma

de Lançamento Tributário”.

Quando concluído o percurso, desde a forma que concebemos a norma jurídica até a

tributação em seu sentido normativo dinâmico, na linha de que a aplicação do direito é criação

do direito, passando por questões de ordem propedêutica, com qual é o alcance que damos ao

termo “conceito”, pretendemos ter deitado raízes de uma teoria do tributo. Teoria que

nomeamos de trilógica26; pois a imaginamos como uma teoria que apenas se encerra, que se dá

por saciada, que vê cumprida sua missão, quando concebe tributo como norma jurídica, a partir

de um conceito pactuado, e, então, transpassa normativamente a tributação, a competência

tributária e o lançamento tributário.

Sabemos que a pretensão não é pequena, mesmo assim ...

“Ah, se eu tivesse

Quem bem me quisesse,

Esse alguém me diria:

‘Desiste, esta busca é inútil’.

Eu não desistia,

Porém, com perfeita paciência

Volto a te buscar.

Hei de encontrar [...]”27.

Paulo Vanzolini, Ronda

25 Não há, na língua portuguesa o verbo “precificar” e derivadas. Entretanto, utilizamos, neste trabalho, tais palavras por entendemos que são úteis, estabelecendo que precificar significar o ato de dar preço. 26 Em relação ao termo “trilógico”, os dicionários que o contem, uniformemente, dão-no na conta de um adjetivo, que se refere à trilogia. Assim, AULETE: “adj. relativo à trilogia”. Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa: verbete “trilógico”, v.5, p.4067. Bem como FERREIRA: “Adj. Relativo a trilogia”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa: verbete “trilógico”, p.1993. Ou ainda HOUAISS e VILLAR: “adj. [...] que se refere a trilogia”. Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p.2768. Registramos, ainda, que não consta o vocábulo nem em MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa, nem em Luiz Antonio Sacconi, Grande dicionário Sacconi: da língua portuguesa: comentado, crítico e enciclopédico. 27 Disponível em https://www.letras.mus.br, acesso em 27.10.2019.

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I – NORMA JURÍDICA

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“[...] se puede investigar la esencia del derecho, su estructura típica, independientemente del contenido variante que ha tenido en las diferentes épocas y países. Esta es la tarea de una teoría general del derecho, es decir, de una teoría que no se limita a un determinado orden jurídico o a determinadas normas jurídicas”28.

Hans Kelsen

2 NORMA JURÍDICA

2.1 SER E DEVER-SER

O mundo é, e, em razão disso, pode ser descrito; atividade que exige uma linguagem.

Mas, ao falarmos dessa linguagem, para bem avaliá-la, devemos ter em conta dois grupos de

regras, o de formação e o de transformação29. Quanto às regras de formação, vamos estabelecer

que não basta à linguagem ser cognoscível apenas. Deve possuir uma estrutura específica. No

nosso caso, num primeiro momento, tomaremos a linguagem em sua relação triádica, e, com

fins de padronização, valer-nos-emos dos termos “enunciado”, “proposição” e “referente” para

expor essa relação30. Por enunciado, entenderemos aquilo que se percebe sensorialmente:

gestos, palavras verbais, tinta num papel etc. Por proposição, o significado ou sentido do

enunciado. Assim, a proposição não é o enunciado, mas aquilo que se obtém do enunciado. Já

28 Hans Kelsen, ¿Qué es la teoría pura del derecho?, p.8. 29 “A seguinte lista mostra os itens que devemos decidir na construção de uma linguagem L. I. Regras formativas (= definição da ‘sentença em L’). A. Sentenças atômicas. 1. A forma das sentenças atômicas. 2. Os predicados atômicos. a. Predicados primitivos. b. Predicados atômicos indiretamente introduzidos. B. Operações de formação do primeiro tipo: conexões; sentenças moleculares. C. Operações de formação do segundo tipo: operadores. 1. Sentenças generalizadas. [...]. 2. Predicados generalizados. II. Regras de transformação (= definição de ‘conseqüência em L’). A. L-regras. (As regras de dedução lógica). B. P-regras. (As leis físicas enunciadas como válidas)”. Rudolf Carnap, Testabilidade e significado, in: ______. Coletânea de textos, p.200 (18). 30 A relação triádica é expressa em FREGE pelos termos “sinal”, “referência” e “sentido”: “[...] é plausível pensar que exista, unido a um sinal [...], além daquilo por ele designado, que pode ser chamado de sua referência (Bedeutung), ainda o que eu gostaria de chamar de o sentido (Sinn)”. Gottlob Frege, Sobre o sentido e a referência, in: ______. Lógica e filosofia da linguagem, p.131. PEIRCE fala-nos de “representâmen”, “interpretante” e “objeto”: “[u]m signo, ou representâmen, é aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. [...]. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto”. Charles Peirce, Semiótica, p.46 (228). Em OGDEN e RICHARDS, os vértices do triângulo que usam para ilustrar o tema são ocupados pelas palavras “pensamento”, “símbolo” e “referente”: “Entre um pensamento e um símbolo são mantidas relações causais. [...]. Entre o Pensamento e o Referente há também uma relação; mais ou menos direta [...] ou indireta [...]. Entre o símbolo e o referente não existe qualquer relação pertinente a não ser uma indireta [...]”. Charles Kay Ogden e Ivor Armstrong Richards, O significado de significado, p.32-33 (1). Por fim, podemos citar MORRIS, que utiliza “veículo do signo”, “designatum” e “interpretante”, além de fazer alusão a um quarto elemento, o “intérprete”: “[...] aquilo que funciona como signo, aquilo a que o signo se refere, e o efeito sobre um intérprete em virtude do qual a coisa em questão é um signo para este. Esses três componentes da semiose podem ser chamados, respectivamente, o veículo do signo, o designatum, e o interpretante; o intérprete pode ser considerado um quarto fator”. Charles Morris, Fundamentos da teoria dos signos, p.13 (II.1).

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por referência, não estamos a cuidar de coisas, mas de fatos, ou seja, de estados de coisas31. No

entanto, nessa relação triangular, não é a qualquer significado que se pode denominar de

proposição, mas apenas aqueles que se sujeitem a certo método de verificação. Por essa seara,

proposições não verificáveis não seriam proposições32. Ocorre que, indo além, podemos

considerar outras formas de proposições, fora as que se sujeitam à valência verdade ou

falsidade, ou seja, fora as descritivas33. Afinal, “[...] no hay nada que impida, desde el punto de

vista lógico, que las funciones de valuación sean interpretadas como funciones que asignan

valores no vinculados a la noción de verdad [...]”34. Estabelecido, então ,que há outras

proposições que não as descritivas, focar-nos-emos nas prescritivas, sem, contudo, perder de

vista que tal proposição, a prescritiva, por várias vezes, torna-se referência da proposição

descritiva, havendo de se tomar os devidos cuidados para precisar de qual delas se está a falar

(ver 2.13). De todo modo, seja prescritiva, seja descritiva, pois não reservamos o termo

“proposição” apenas à segunda, firme é a ideia de relação triádica, não se devendo dispensar,

ainda, pois o faremos mais adiante, o enunciado ou o referente. No entanto, sendo o caso da

prescritiva, não há mais que se falar de verificabilidade. A sua regra de formação, portanto, é

outra, para que seja considerada uma proposição com sentido. Vejamos!

O mundo é, já o dissemos. E que, para descrevê-lo, há uma linguagem analisável por

meio de regras de formação, também já o articulamos. Regras que nos permitem identificar as

proposições verificáveis. Entretanto, nada impede que a linguagem expresse as combinações

31 “O estado de coisas é uma ligação de objetos (coisas)”. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, p.135 (2.01). 32 Deixaremos de discutir aqui se, de fato, as proposições podem ser verificadas, já que isso envolveria alguma espécie de definitividade. Basta-nos neste estudo uma breve referência a POPPER: “[...] só reconhecerei um sistema como empírico ou científico se ele for passível de comprovação pela experiência. Essas considerações sugerem que deve ser tomado como critério de demarcação, não a verificabilidade, mas a falseabilidade e um sistema”. Karl Popper, A lógica da pesquisa científica, p.42 (6). 33 “[...] quantas espécies de frases existem? Porventura asserção, pergunta e ordem? — Há inúmeras de tais espécies: inúmeras espécies diferentes de emprego do que denominamos ‘signos’, ‘palavras’, ‘frases’. E essa variedade não é algo fixo, dado de uma vez por todas [...]”. Ludwig Wittgenstein, Investigações filosóficas, p.26-27 (23) (itálico da tradução). A palavra “inúmeras” foi a tradução de “unzählige”, que também se encontra em itálico no original (Ludwig Wittgenstein, Philosophische untersuchunger, s.11 (23)). Entretanto, há aqui um problema, que, já adiantamos, não é de tradução. Na língua portuguesa há uma diferença entre “numeroso”, “[e]m grande número” (Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa: verbete “numeroso”, p. 1417), e “inúmero”, “m.q. INUMERÁVEL” (Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da língua portuguesa: verbete “inúmero”, p.1641), “que não se pode numerar” (Ibidem: verbete: inumerável). Logo, devemos decidir se há muitas espécies de frases, numerosas, mas que podem ser contadas, ou se há muitas espécies de frases, inúmeras, que não podem ser contadas. Dito isso, a palavra “unzählige”, usada por Wittgenstein, deve ser traduzida para o português, tal como foi feita, por “inúmeras”, pois, em alemão, “numerosas” tem como equivalente “zahlreiche”. Entretanto, parece-nos que, por mais tipos de frases que haja, eles ainda seriam contáveis. De toda sorte, com a aluna do vienense, e tradutora do texto para o inglês, G.E.M. Anscombe, verteu o termo como “countless”, e não como “innumerable” (Ludwig Wittgenstein, Philosophical investigations, p.11 923)), é bem provável que Wittgenstein tenha tido mesmo a intenção de dizer “inúmeras”, e não apenas cometido um deslize, querendo, na verdade queria dizer “numerosas”. 34 Gladys Palau, Introducción filosófica a las lógicas no clásicas, p.45 (2.1).

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de coisas, não para coincidir com as que são, o que faz das proposições verdadeiras ou falsas,

mas para nos dar o que deve ser. Agora, não estamos mais diante do mundo que é, mas do

mundo que deve ser, lembrando que não existe um mundo do dever-ser em analogia com mundo

do ser. Com efeito, não são coisas paralelas. O mundo que deve ser é uma construção da vontade

e, portanto, depende do homem, ao contrário do mundo do ser, que simplesmente é, ao arrepio

do homem. Não é o mundo do dever-ser encontrável por meio de uma metafísica qualquer, pois

não estava em lugar algum antes de ser criado pela vontade. De igual modo, não é ele um

provável mundo do ser, uma previsão de futuro. Não é, de forma alguma, uma espécie de devir,

uma necessidade. O que será, imaginando que seja possível um vaticínio sobre o futuro, não

necessariamente deve ser. Assim, o dever-ser é uma combinação própria das coisas que não se

liga aos estados de coisas que são ou serão. Os mundos do ser e do dever-ser são irredutíveis,

conforme a famosa “lei de Hume”35, pois se os estados de coisas são ou não são como devem

ser, isso em nada muda o ser e o dever-ser.

O dever-ser é construído pela vontade. Vontade, a partir da liberdade de agir ou não

agir36, que resulta de um ato do querer37. E como a liberdade é ampla, não haveria, num primeiro

momento, um limite a essa vontade. O mundo do dever-ser, resultado da vontade, não teria

limites, a não ser o pensamento. E se sabemos que tudo o que se pode pensar, pode dizer-se —

já que “[o] que não se pode pensar, não podemos pensar; portanto, tampouco podemos dizer o

que não podemos pensar”38 —, então tudo o que se pode pensar, se pode querer. Ou seja, os

estados de coisas devem ser, independentemente se foram, são ou serão, segundo a vontade

manifestada nesse querer. O que nos leva novamente ao início: o dever-ser é uma construção

da vontade. No entanto, nosso foco não é a vontade per se, mas o enunciado dessa vontade, e o

seu significado. O mundo deve ser: esse é o significado do enunciado. Portanto, na relação

35 É conhecida por “lei de Hume” a impossibilidade de se deduzir o que deve ser (ought) do que é (is): “Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só proposição que não seja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois, como esse deve ou não deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece inteiramente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes”. David Hume, Tratado da natureza humana, p.509 (III.I.I.27). 36 “Por liberdade, então, só nos é possível entender um poder de agir ou não agir, de acordo com as determinações da vontade; isto é, se escolhemos ficar parados, podemos ficar assim, e se escolhermos nos mover, também podemos fazê-lo”. David Hume, Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, p.136-137 (I.8.I). 37 “Na deliberação, o último apetite ou aversão imediatamente anterior à ação ou à omissão desta é o que se chama VONTADE, o ato (não a faculdade) de querer”. Thomas Hobbes, Leviatã, p.55 (I.VI). 38 Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, p.245 (5.61).

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triádica, não se deve confundir o referente, o estado de coisas que deve ser a partir do ato de

vontade, o enunciado desse ato de vontade e, por fim, o significado do enunciado.

Podemos querer o que podemos pensar, mas o que podemos pensar? Não nos parece

que a resposta possa ser outra, se não: só podemos pensar o que é possível pensar. Claro que o

termo “possível” apresenta, ao menos, duas concepções: uma lógica e outra empírica. Em sua

faceta lógica, aplicado às proposições, firma-se negativamente, não sendo uma contradição, ou

seja, não sendo impossível. Por outro lado, em relação à necessidade, há uma certa dificuldade

para lidarmos, pois, se algo é necessário, então é possível. Todavia, caso não se queira reduzir

o possível ao necessário, deve-se entender que nem tudo que é possível é necessário39. Logo, o

possível, quando aplicado às proposições, não as pode levar à tautologia. Assim, as proposições

possíveis podem ser verdadeiras ou falsas. Já as proposições contraditórias serão sempre falsas

e as tautológicas serão sempre verdadeiras40.

Entretanto, num trabalho que tem por objeto o direito, o conceito lógico de

“possibilidade” não é satisfatório, pois um grau muito grande de abstração pode levar ao próprio

desaparecimento da delimitação do objeto de estudo. Vamos valer-nos, então, da possibilidade

em concepção empírica. Por essa linha, o possível não mais é obtido por uma exclusão, quando

o possível é o que não é impossível ou não é necessário. Há uma ligação com o mundo do ser.

Deixamos as leis da lógica para valer-nos das leis da natureza. Agora, o conceito de

possibilidade exige que o fato em questão esteja de acordo com as leis da física,

independentemente do poder humano41. Assim, na prescrição, a combinação das coisas

continua não dependendo do que é, mas é ancorada numa possibilidade física de ser. Tal qual

se descartam as proposições descritivas, que não podem ser verificadas, agora se excluem as

proposições prescritivas, nas quais o dever-ser, por impossibilidade física, nunca coincidirá

com o ser. Com isso, não se está negando a “lei de Hume”, pela qual o dever-ser independe do

ser, mas se está precisando, neste trabalho, que o dever-ser somente alcança, tem como limite,

o que é possível empiricamente. Não olvidamos que essa ideia pode levar à acusação de quebra

da pureza, pois há a construção de uma ponte entre o mundo possível — que é, ao menos em

39 “A proposição possível [...] é uma proposição. Ela não apenas tem de ser admitida entre as formas lógicas, se é que estas devem ser adequadas para a representação de todos os fatos da lógica, como também desempenha uma parte particularmente importante da teoria da ciência”. Charles Peirce, Semiótica, p.121 (383). 40 Bem-postas as coisas, “[c]erteza, possibilidade ou impossibilidade de uma situação não se exprimem por uma proposição, mas por uma expressão ser uma tautologia, uma proposição com sentido ou uma contradição”. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, p.233 (5.525). 41 “[O conceito de possibilidade física] demanda apenas que o fato em questão seja conforme às leis físicas, independentemente do poder humano”. Hans Reichenbach, Experience and prediction, p.38-39 (6) (tradução nossa e esclarecemos entre colchetes). No original: “It [concept of physical possibility] demands only that the fact in question be conformable to physical laws, regardless of human power”.

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potência — e o mundo que deve ser, que, em princípio, é tudo o que se pode querer. Entretanto,

desconsiderar qualquer forma de ligação impede-nos de, na verdade, encontrar o nosso próprio

objeto de estudo, pois o direito é. Existe no tempo e no espaço.

2.2 A NORMA

Tudo o que for possível empiricamente pode ser posto pela vontade como um dever-

ser, um estado de coisas devido. E o conteúdo do ato de vontade, por sua vez, pode ser

enunciado. Já do enunciado, obtém-se um significado, um sentido, ou seja, uma proposição de

dever-ser. Essa é uma estrutura mínima — vontade de um estado de coisas, enunciado e

proposição —, a tríade do dever-ser; mas, como nosso objeto é o direito e não o dever-ser per

se, devemos prosseguir com as delimitações. Assim, o próximo passo é apontar, dentro do

dever-ser, uma parte específica sua: dentre todas as possibilidades, apenas interessa a conduta

devida de outrem42. Logo, a vontade que aqui consideramos é somente aquela que constrói,

como dever-ser, a conduta — ação ou omissão — de outra pessoa. E essa vontade pode ser

enunciada: a conduta de outrem deve ser43. Agora, uma vez posto o enunciado, dele se obtém

uma proposição de dever-ser, uma proposição prescritiva. No nosso caso, um dever-ser de

conduta. E como já demarcamos a possibilidade empírica como limite, temos, então,

particularmente, uma proposição prescritiva, na qual a conduta humana é posta como um dever-

ser possível. Uma vontade exprime-se por um ato do querer que pode ser enunciado. Caso seja

enunciado, então se pode, desse enunciado, obter uma proposição que estabelece como deve

ser uma conduta humana, limitada ao que é possível empiricamente ser44. Essa é nossa

proposição prescritiva, apresentada estaticamente.

Antes de prosseguirmos, faz-se necessário um pequeno corte metodológico. A

proposição decorre do enunciado45. Assim, assumimos aqui que não há proposição sem

42 Em sentido próximo, a distinção de AQUINO entre lei eterna e lei natural: “No intelecto de Deus, há um plano que exprime a ordem de todas as coisas tendo em vista seus fins; a esse plano podemos dar o nome de lei eterna. [...]. O direito natural consiste naquela parte da lei eterna que remete especificamente ao ser humano”. Wayne Morrison, Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo, p.81 (3). 43 Não há que se confundir a vontade enunciada nem com a vontade de enunciar tal vontade nem com um enunciado que expressa ter sido essa vontade enunciada. 44 Deixamos de tratar dos casos em que a mesma vontade põe dois enunciados, cujos significados são obrigações de conduta que não podem, empiricamente, ser realizadas ao mesmo tempo. Analisado individualmente, cada enunciado permaneceria no mundo do dever-ser, pois seria possível que fosse cada um deles, mas, ao serem tratados de forma conjunta, rompem com a regra do possível. Além disso, nesses termos, a exigência de possibilidade empírica pode induzir a se imaginar um legislador racional, pois duas normas, uma obrigando e a outra proibindo a mesma conduta, embaixo da mesma condição, não poderiam ser cumpridas simultaneamente. 45 A proposição decorre do enunciado por convenção, pois a “[...] relação entre o significado e o significante é convencional; resulta de um acordo entre os que a usam [...]. Todavia, a convenção pode ser implícita ou explícita,

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enunciado. Já “[e]ntre o símbolo [enunciado] e o referente [estado de coisas] não existe

qualquer relação pertinente a não ser uma indireta, que consiste em seu uso por alguém para

representar o referente”46. O que nos permite enunciados que não correspondam a um estado

de coisas, pois, de outro modo, não se poderia enunciar coisas sobre as quais se sabe serem não

verdadeiras; sendo assim possível a construção de um estudo da linguagem que desconsidere a

referência. Por conseguinte, “[...] do ponto de vista do funcionamento de um código, o referente

deve ser excluído como uma presença embaraçante, que compromete a pureza teórica da própria

teoria”47. E se lembrarmos da nossa tríade e do papel da vontade como referência, então

podemos, ancorados nos grandes linguistas, desconsiderar essa vontade, pois somente

precisamos do enunciado para conhecer o que deve ser. Claro que, vez ou outra, vemo-nos

diante da contingência de ter que encontrar tal vontade, a “verdadeira” vontade, por outros

meios que não só a interpretação desse enunciado, seja porque há vagueza e ambiguidade, seja

porque não concordamos com o resultado da interpretação e queremos afastá-lo48. Entretanto,

dessa casual busca não decorre que a relação triádica deva ser, a todo momento, apontada49.

Basta-nos lembrar que o enunciado não surge por osmose, que não brota do nada. Assim, vamos

deixar em suspenso a relação triádica que até aqui nos trouxe, para focarmo-nos num dualismo,

no enunciado e na proposição50. Dito isso, iniciemos, de pronto, a análise da valência das

proposições prescritivas.

e está aí um dos limites que separam os códigos técnicos e os códigos poéticos”. Pierre Guiraud, A semiologia, p.37 (II.I). 46 C.K. Ogden e I. A. Richards, O significado de significado, p.32 (1) (padronizamos com os termos usados neste trabalho entre colchetes). 47 Umberto Eco, Tratado geral de semiótica, p.51 (2.5.2). 48 “Quando a lei enuncia um princípio universal, e se verifica resultarem casos que vão contra essa universalidade, nessa altura está certo que se retifique o defeito, isto é, que se retifique o que o legislador deixou escapar e a respeito do que, por se pronunciar de um modo absoluto, terá errado. É isso o que o próprio legislador determinaria, se presenciasse o caso ou viesse a tomar conhecimento da situação, retificando, assim, a lei, a partir das situações concretas que de casa vez se constituem”. Aristóteles, Ética a Nicômaco, p.125 (V.X.1137b20-25). 49 Pode-se dizer que a busca pelo referente conduz ou a uma reformulação da norma ou a uma substituição dessa norma. Aplicando esse posicionamento ao todo, temos ALCHOURRÓN e BULYGIN: “[...] sólo si la nueva base tiene las mismas consecuencias normativas que la base anterior puede hablarse de reformulación del mismo sistema; si la nueva base no recoge alguna de las consecuencias normativas de la base primitiva o tiene consecuencias que ella no tenía, no se tratará ya del mismo sistema, sino de dos sistemas diferentes”. Carlos Alchourrón y Eugenio Bulygin, Introducción a la metodología de las ciencias jurídicas y sociales, p.128 (V.4). Posição denominado por MARANHÃO de “fundacionalista absoluta”, que é quando “[...] as razões de fundo dadas pelos princípios justificadores não só estão fora, como qualquer aplicação destes implica uma tentativa de revisão do direito [...]”. Juliano Maranhão, Positivismo jurídico lógico-inclusivo, p158 (3.13). 50 Não são poucos os linguistas que reduzem o signo a um caráter dual. SAUSSURE definiu o signo como a combinação do significante e do significado: “Chamamos signo a combinação do conceito e da imagem acústica [...]. [...]. Propomo-nos a conservar o termo signo para designar o total, e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por significado e significante [...]”. Ferdinand de Saussure, Curso de linguística geral, p.81 (I.I.1). BARTHES, após citar SAUSSURE, adota que o “[...] signo é, pois, composto de um significante e um significado”. Rolando Barthes, Elementos de semiologia, p.43 (II.1.3). Igualmente empregando os termos significado e significante, temos BUYSSENS: “[...] para a parte de significação que cabe ao signo, utiliza-se o termo significado, enquanto o termo significante designa a forma do signo”. Eric Buyssens, Semiologia e

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Deve ser uma conduta humana. Essa é a proposição prescritiva que se obtém de um

enunciado. Mas qual conduta? Qualquer uma, desde que seja possível empiricamente.

Desenvolvendo essa ideia, podemos verificar que há modos para a conduta devida. Desde

ARISTÓTELES, fala-se de modos (verdadeiro, falso; possível, impossível; necessário,

contingente)51, sendo eles interdefiníveis, ou seja, “É necessário e É impossível não têm

significação idêntica e, não obstante, estão conectadas inversamente [...]”52-53. São os modos

aléticos. Por correlação, temos também os modos deônticos, pois “[j]á na Idade Média se

percebeu que um tratamento rigoroso das noções de permitido e obrigatório seria mais ou menos

paralelo ao tratamento dos conceitos de possível e necessários”54. Como síntese, podemos dizer

que “o que é” exprime-se como possível, impossível, necessário e contingente. Já “o que deve

ser” apresenta-se como permitido, proibido, obrigatório e facultativo. Agora, se identificarmos

a possibilidade à contingência, então podemos, por paralelismo, equiparar permitido a

facultativo55. Os modais deônticos, então, são reduzidos a três56.

Uma conduta deve ser num dos modos: permitido, proibido ou obrigatório. Esse é o

conteúdo da proposição prescritiva, apresentando como limite apenas a possibilidade empírica.

Entretanto, ela nada nos diz sobre sua validade. Nada há nela que nos permita afirmar se é

válida ou inválida. A proposição descritiva é verdadeira ou, pelo excludente, falsa. Contudo,

em relação à proposição prescritiva, apesar das tentativas de redução do dever-ser ao ser, não

cabem tais valências57. Como afirmamos, há uma tomada de posição, com HUME, de

comunicação lingüística, p.79 (V.1). HJELMSLEV, por sua vez, preferindo utilizar a expressão “função semiótica”, em vez do ambíguo termo “signo”, aponta estar aquela “[...] situada entre duas grandezas: expressão e conteúdo”. Louis Hjelmslev, Prolegômenos a uma teoria da linguagem, p.53 (13). 51 “[...] é preciso examinar as relações entre afirmações e negações que expressam (afirmam ou negam) o possível e o não possível, o contingente e não contingente, o impossível e o necessário”, Aristóteles, Da interpretação, in: ______. Órganon, p.100 (XII.21a1.35). 52 Aristóteles, Da interpretação, in: ______. Órganon, p.104 (XIII.22b1.8-10). 53 “Uma vez que se aplicar não é o mesmo que se aplicar necessariamente ou se aplicar contingentemente [...], fica claro que o silogismo, inclusive, é diferente em cada um desses casos e que os termos não são relacionados do mesmo modo [...]”. Aristóteles, Analíticos anteriores I, in: ______. Órganon, p.128-129 (VIII.29b1.29-35). 54 Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “lógica deôntica”, p.123. 55 “A permissão bilateral às vezes é tomada como quarto modo, o facultativo. Todavia, se o facultativo compõe-se de duas permissões alternativas, não é um modal irredutível à permissão”. Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p.77 (II.3). 56 “Há os modos deônticos ou modos de obrigação. Esses são conceitos tal qual o obrigatório (aquilo que nós devemos fazer), o permitido (aquilo que nós temos permissão para fazer), e o proibido (aquilo que nós não devemos fazer)”. G. H. von Wright, Deontic logic, Mind, n. 237, p.1 (tradução nossa). No original: “There are the deontic modes or modes of obligation. These are concepts such as the obligatory (that which we ought to do), the permitted (that which we are allowed to do), and the forbidden (that which we must not do)”. Vez ou outra, vê-se o artigo em questão como o atestado da lógica deôntica, porém, “[...] o tratamento das propriedades lógicas das normas, com emprego da lógica moderna, não começou com Von Wright, podendo ser identificado já no início do século XX, com as obras de Ernst Mally [...]”. Juliano Maranhão, Condicionalidade e a lógica de implicação normativa de von Wright, in: ______. Estudos sobre lógica e direito, p.78. 57 Ao tratar do que chamou de posição naturalista, assim manifestou-se ALEXY: “Cada enunciado normativo se tornaria assim um enunciado descritivo e, como tal, seria comprovável segundo procedimentos das ciências

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irredutibilidade dos mundos: cada mundo é tratado por uma linguagem própria e as proposições

dessa linguagem possuem valores diversos. Com efeito, “[v]alidade não é o mesmo que

verdade”58. Assim, as proposições prescritivas são válidas ou inválidas. Pode, claro, haver uma

metalinguagem que as tenha como linguagem-objeto. Assim, uma linguagem descritiva pode

ter por referente uma proposição prescritiva, sendo essa descrição verdadeira ou falsa. Ademais,

não desconhecemos que o termo “válido” é, sem dúvidas, ambíguo. ABBAGNANO, apresenta-

nos quatro concepções dele59. Entretanto, neste primeiro momento, pois retomaremos o tema

adiante (ver 2.10), basta-nos utilizar validade no sentido de observância às regras de

transformação, ou seja, validade como “[c]onformidade com as regras de procedimento

estabelecidas ou reconhecidas” 60.

Já não estamos mais preocupados com a regra de formação. Agora há uma proposição

prescritiva que estabelece como deve ser a conduta que põe outra proposição prescritiva. Disso

decorre, portanto, que, indiretamente, já que há uma conduta entre eles, um dever-ser advém de

outro dever-ser. Nesse ponto, podemos, então, falar que o sentido subjetivo, formado a partir

do enunciado, pode ser lido como sentido objetivo, uma vez que essa proposição prescritiva

decorreria de uma outra proposição prescritiva. Estamos aqui próximos dos “atos objetivantes”

de HUSSERL, ou seja, aqueles “[...] cuja síntese de preenchimento tem o caráter da

identificação e cuja síntese de decepção tem, por conseguinte, o caráter da diferenciação [...]”61.

Com isso, uma proposição prescritiva, que carece apenas do enunciado para existir no mundo

do ser, ganha um caráter objetivo, pois agora é identificada como válida a partir de outra

proposição prescritiva. Nesse ponto, é a identificação ou diferenciação que concede a validade

ou a invalidade. Assim, haveria uma proposição prescritiva, regra de transformação, que

permite identificar ou ignorar outras proposições prescritivas. Linha pela qual dizemos que a

proposição prescritiva, formada de acordo com outra proposição prescritiva, apresenta um

sentido objetivo, que a faz válida. Dado isso, podemos promover um pacto semântico. A

proposição prescritiva — conduta humana obrigatória, proibida ou permitida, que deve ser,

dentro do empiricamente possível —, quando tenha fundamento numa regra de transformação,

naturais e das ciências sociais de caráter empírico”. Robert Alexy, Teoria da argumentação jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica, p.47. 58 Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “validade”, p.215. 59 São elas: universalidade subjetiva; conformidade com as regras; utilidade ou eficiência; uma particularidade no domínio da lógica estabelecida por Rudolf Carnap. Cf. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “validade”, p.989. 60 Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “validade”, p.989. 61 Edmund Husserl, Investigações lógicas: sexta investigação, p.63 (I.II.13).

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a qual necessita também ser uma proposição prescritiva, será denominada de “norma”. Ponto

de vista dinâmico.

Estaticamente, como regra de formação, uma norma é uma prescrição de conduta

humana numa das modalidades — obrigatória, permitida ou proibida —, limitada apenas pela

possibilidade empírica. Dinamicamente, em razão da regra de transformação, norma é a

proposição prescritiva com sentido — significado — objetivo, ou seja, é a proposição

prescritiva identificada por meio de outra proposição prescritiva. Há a proposição prescritiva

válida e há a proposição prescritiva que atribui a validade. Mas, e quanto a essa proposição

prescritiva que irradia a validade, o que dela se pode falar? Como proposição prescritiva, ela

prescreve uma conduta humana — proibida, permitida ou obrigatória —, ou seja, como ela deve

ser, restringida exclusivamente pela possibilidade empírica dessa conduta. Entretanto, de todas

as condutas humanas possíveis empiricamente, escolhe unicamente a conduta de pôr enunciado

do qual se obtém uma proposição prescritiva tomada em sentido objetivo.

Se pensarmos um conjunto com apenas duas proposições prescritivas, a válida e a que

concede a validade, devemos, então, questionar se a proposição fundante é ela também uma

norma. Assim, norma é uma prescrição de conduta humana, um dever-ser, cujo sentido

subjetivo é também o sentido objetivo, pois está de acordo com outra prescrição. Ocorre que

esta última prescrição não é ela, por características intrínsecas, uma norma. Para que a

proposição fundante fosse uma norma, seria necessário que houvesse uma outra proposição que

lhe servisse de fundamento: uma proposição fundante da proposição fundante. Ocorre que

procurar o fundamento do fundamento nos levaria a um regressus ad infinitum. Para evitarmos

um maior arrazoado, eis que vamos retomar o tema no próximo tópico, ao tratamos da norma

fundamental, firmemos, por enquanto, que, em algum momento, a busca tem de cessar, o que

se faz por meio de um corte epistemológico.

2.3 A NORMA JURÍDICA

Do enunciado, obtemos uma proposição prescritiva. E se essa proposição prescritiva

apresenta lastro em outra proposição prescritiva, então podemos falar de norma, mas ainda não

sabemos se estamos diante de uma norma jurídica. E nem poderíamos saber, pois não há nada

intrínseco num enunciado que permite concluir que dele se obterá norma jurídica. Norma não

é um específico dever-ser de conduta, já que toda e qualquer conduta, desde que empiricamente

possível, pode ser devida. Do mesmo modo, em relação à norma jurídica, também não é ela

determinável pela conduta que traz em seu bojo. A determinação do que seja norma jurídica

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reside em outro ponto, pois o que nos permite cravar que uma prescrição de conduta humana é

uma norma jurídica é ser seu enunciado produzido de acordo com outra norma jurídica.

Estaticamente a norma jurídica, como outras proposições prescritivas, é uma linguagem que

constitui um dever-ser, empiricamente possível, da conduta humana, num dos modais

deônticos. Assim, por essa faceta, não é possível sua separação das outras normas. Com efeito,

somente no plano dinâmico é possível encontrar seu caráter jurídico. É uma questão, portanto,

de relação, pois “[...] na realidade, as normas jurídicas nunca existem isoladamente, mas sempre

em um contexto de normas com relações particulares entre si [...]”62.

A norma jurídica fundada somente é em razão da norma jurídica fundante. Ponto de

apoio deste trabalho, só que agora, ao contrário do que fizemos com a concepção de norma,

vamos alongar a cadeia, tomando que a norma que concede a validade é ela também uma norma

jurídica, e, portanto, é um produto da ação humana que põe um enunciado que se relaciona com

outra norma jurídica. Por essa linha, “[a] norma que empresta ao ato o significado de um ato

jurídico (ou antijurídico) é ela própria produzida por um ato jurídico, que, por seu turno, recebe

a sua significação jurídica de uma outra norma”63. Logo, um enunciado (a) somente é fonte de

norma jurídica (a) se há outra norma jurídica (b) que assim estabeleça, sendo esta última norma

jurídica (b) o produto da interpretação, do mesmo modo que (a), de um enunciado (b), que, por

sua vez, foi posto em razão de uma outra norma jurídica (c). Entretanto, essa norma criadora

(c) da norma criadora (b) é fruto, igualmente, de um enunciado (c) que só pode ser nascente se

também sobre ele dispuser outra norma jurídica (d). Como não há norma jurídica que não

advenha de enunciado e ele, per se, não é fonte de norma jurídica, carecendo, para isso, sempre,

de norma jurídica prévia, chegamos a um impasse. Estaríamos frente a um regresso até o

infinito. A norma jurídica é posta por uma conduta humana, um fato, que, por sua vez, só pode

pôr essa norma jurídica porque há uma outra norma jurídica que assim dispõe. Essa norma que

estabelece que certo fato é fonte do direito, por sua vez, também é posta por outro fato. Podemos

ir, então, regredindo, passo a passo, mas quando chegarmos ao texto constitucional, produto do

fato fundamental, não há mais para onde ir.

O texto constitucional é uma criação humana e não uma revelação. É a partir dele que

são obtidas as normas constitucionais que, numa visão hierarquizada, piramidal, são as mais

importantes — apreciando a questão de um ponto de vista da interdependência, em razão da

62 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p.19 (1.1). 63 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.4 (I.4). “A norma atua [...] como esquema de interpretação. Ela será elaborada através de um ato jurídico que, igualmente, adquire significado através de outra norma”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.71 (I.4).

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sintaxe, por deixando a questão axiológica para outros —, já que são elas que, num plano

positivado, dão as amarras do ordenamento jurídico. Entretanto, o texto constitucional também

é posto pelo fato fundamental, que “[...] requer outra norma pressuposta para juridicizá-lo, para

tornar-se fato jurídico e dar começo lógico à continuidade normativa no interior do sistema”64.

Se assim não fosse, estaríamos diante de um ser que cria um dever-ser e transgrediríamos a “lei

de Hume”. Por isso, para evitarmos contravir nosso supedâneo teórico, há a necessidade de

pressupor uma norma como fecho, há, pois, a necessidade de pressupor a norma fundamental.

Ao tratarmos da norma, deixamos claro que a prescrição que estabelece a relação para

que a norma seja norma — e não mera prescrição, ou seja, que tenha sentido objetivo e não só

subjetivo — não é ela mesma uma norma. Agora, em relação à norma jurídica, devemos, por

coerência, dizer o mesmo. A última norma do ordenamento jurídico não seria ela mesma uma

norma jurídica65. Isso não significa que desconhecemos as dificuldades que tal posição acarreta

— um desfecho do jurídico que não é jurídico—, mas não queremos aqui descarrilar a

discussão, mudando o foco do trabalho para a norma fundamental66. De certo, vamos dá-la

como aceita, nos moldes kelsenianos. Afinal, “[...] mesmo os princípios cuja certeza não é

completa podem ter a sua utilidade, se sobre eles construirmos apenas para efeito de

demonstração”67. Assim, tomamos a norma fundamental como “[...] a expressão da necessária

suposição de todo o conceito positivista do material jurídico”68. Ademais, “[s]e não

postulássemos uma norma fundamental, não acharíamos o ubi consistam, ou seja, o ponto de

apoio do sistema”69. É ela o fecho, enquanto construção teórica. De uma multiplicidade de

normas jurídicas, podemos reduzir todas a uma só origem70. Temos, com isso, ao menos do

ponto de vista da unicidade, um sistema71. de toda sorte, “[p]ara tal função [de fechar o sistema],

64 Lourival Vilanova, Teoria jurídica da revolução (anotações à margem de Kelsen), Revista brasileiro de estudos políticos, v.52, p.74. 65 Em sentido contrário, BOBBIO: “A norma jurídica que produz o poder constituinte é a norma fundamental”. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p.59-60. 66 “A polêmica concentra-se em quatro pontos: a necessidade, a possibilidade, o conteúdo e o status da norma fundamental”. Robert Alexy, Conceito e validade do direito, p.117 (3.III.1.1). 67 Gottfried Leibniz, Novos ensaios sobre o entendimento humano, v.II, p.163 [IV.XII.6]. 68 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed. p.125 (V.29). “La norma fundamental no es una norma impuesta, sino presupuesta como condición de todo el conjunto de la creación jurídica, de todo procedimiento positivo”. Hans Kelsen, Teoría pura del derecho, 1.ed., p.85 (V.29). 69 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p.59 (II.6). 70 A unicidade normativa, de um ponto de vista teórico, é uma entre as muitas coisas que devemos à teoria kelseniana: “[...] Hans Kelsen considera que todo o material jurídico positivo, presente numa certa sociedade, numa certa época de seu desenvolvimento histórico, é organizado num sistema unitário”. Mario Losano, Sistema e estrutura no direito, v.2, p.46 (I.9.c). 71 BOBBIO põe os problemas de entender-se o direito como um conjunto de normas nos seguintes termos: “[...] os principais problemas conexos com a existência de um ordenamento são os que nascem das relações das diversas normas entre si. Em primeiro lugar se trata de saber se essas normas constituem uma unidade [...]. O problema fundamental [...] é o da hierarquia das normas. [...]. Em segundo lugar trata-se de saber se o ordenamento jurídico constitui, além da unidade, também um sistema. O problema fundamental [...] é o das antinomias jurídicas. [...].

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é irrelevante se [a norma fundamental] provém de ato de pensamento, de ato de vontade, ou se

é ‘eine fingierte Norm’ [uma norma fictícia] [...]”72-73.

Do texto constitucional é possível obter norma válida, de um ponto de vista de uma

ciência do direito, porque há uma norma fundamental — pressuposta, não posta — que nos

permite ter a interpretação do texto não mais num sentido subjetivo, mas num objetivo. Isso

porque, “[c]omo norma [,] vale só o sentido de um ato de comando qualificado de certo modo,

[em terceiro lugar] Todo ordenamento jurídico, unitário e tendencialmente (se não efetivamente) sistemático, pretende também ser completo. O problema fundamental [...] é o das assim chamadas lacunas do Direito. [...]. Finalmente, não existe entre os homens um só ordenamento, mas muitos e de diversos tipos. [...]. O problema fundamental [...] é o do reenvio de um ordenamento a outro”. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p.34-35 (I.5) (esclarecemos entre colchetes). 72 Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.56 (I.16) (esclarecemos e traduzimos entre colchetes). 73 Poucos temas da teoria do direito chamam tanto a atenção como o da “norma fundamental” (Grundnorm). Afinal, “[...] muito se questiona sobre a natureza desta norma fundamental. Alguns a identificam com o próprio direito natural, outros com o pacto social e não faltam os que a consideram uma ficção da vontade ou, ainda, um juízo apriorístico”. Munir Karam, A sentença como fato criador de normas: debates, in: Luis Regis Prado e Munir Karam (coord.), Estudos de filosofia do direito: uma visão integral da obra de Hans Kelsen, p.147. Levando-se em conta as próprias palavras de KELSEN, inicialmente ele a concebeu como hipotética: “La teoría pura del derecho maneja la norma fundamental como un fundamento hipotético”. Hans Kelsen, Teoría pura del derecho, 1.ed. p.85 (V.29). [Pedimos vênia para utilizar a tradução em espanhol de ROBLES e SÁNCHEZ, mesmo havendo em português a tradução de: CRETELLA JR e CRETELLA. É que, para este trecho específico, há nela, na tradução para o português, um equívoco de monta: “A Teoria Pura do Direito opera com essa norma jurídica fundamental como se fora uma situação hipotética”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed. p.125 (V.29). Entretanto, a norma fundamental não é assumida como jurídica no pensamento kelseniano. Grundnorm significa “norma fundamental” e não “norma jurídica fundamental”. De todo modo, segue o original alemão: “Die Reine Rechtslehre operiert mit dieser Grundnorm als einer hypothetischen Grundlage”. Hans Kelsen, Reine rechtslehre, 1.aufl., s.77]. Posteriormente o austríaco mudou seu entendimento sobre a norma fundamental, passando a entendê-la como fictícia: “A norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral positivas [...] não é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, não o sentido de um real ato de vontade, mas sim de um ato meramente pensado”. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.328 (59.I.d). Mas, nem mesmo esse ponto, sobre última palavra de KELSEN sobre o assunto, é pacífico, pois, com base na visão de que a obra Teoria geral das normas é mais um apanhado de textos de várias épocas do que um todo unitário, aponta-se que “[d]evido ao fato de a Teoria Geral das Normas ser a derradeira obra de Kelsen, passou-se a acreditar acriticamente que ele havia mudado a opinião exposta na última edição da Teoria Pura do Direito, na qual a norma fundamental é tratada enquanto hipótese lógico-transcendental”. Andityas Soares de Moura Costa Matos, Norma fundamental: ficção, hipótese ou postulado?, in: Hans Kelsen, Sobre a teoria das ficções jurídicas: com especial consideração da filosofia do “como se” de Vaihinger, p.23. Sem discutirmos se é hipotética ou fictícia a norma fundamental — o que não é uma mera filigrana, pois se for hipotética, então há a possibilidade de que, de fato, haja uma norma fundamental —, não há como deixar de ressaltar sua proximidade com as ideias kantianas, que pode ser reconhecida ao compará-la com essa passagem de KANT: “Na presunção de que haja porventura conceitos que se possa referir a priori a objetos, não como intuições puras ou sensíveis, mas apenas como actos do pensamento puro, e que são, por conseguinte, conceitos, mas cuja origem não é empírica nem estética, concebemos antecipadamente a ideia de uma ciência do entendimento puro e do conhecimento de razão pela qual pensamos objetos absolutamente a priori”. Immanuel Kant, Crítica da razão pura, p.92 (II.Introdução.II). Só que essa vizinhança acaba sendo alvo de numerosas controvérsias, com a acusação, inclusive, de ser a norma fundamental uma inimiga recebida de bom grado, que põe tudo a perder, visto que “[...] ela não é estatuída por um órgão legislativo, mas é pensada por um teórico do direito e, como tal, é fruto de uma concepção filosófica kantiana, enxertada sobre um rigoroso positivismo jurídico. Assim, a norma fundamental elaborada para manter distante todo elemento extrajurídico da cidadela da teoria pura do direito, revela-se um verdadeiro cavalo de Tróia”. Mario Losano, Sistema e estrutura no direito, v.2, p.96 (II.12). De todo modo, não podemos olvidar as palavras de VILANOVA, para quem “[n]ão é a norma fundamental que produz ou traz ao nível da existência, o fato fundamental. Ao contrário, dado o fato fundamental, para colhê-lo em termos de conhecimento dogmático, pressupõe-se a norma que lhe corresponde, põe-se a hipótese normativa básica que tem o fato fundamental por conteúdo”. Lourival Vilanova, Teoria jurídica da revolução (anotações à margem de Kelsen), Revista brasileiro de estudos políticos, v.52, p.84.

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32

a saber: de um ato de comando autorizado pela norma de um ordenamento moral ou jurídico”74.

Logo, todas as normas só são válidas porque buscam seu fundamento de validade nas normas

constitucionais. Estas, por sua vez, obtidas do texto constitucional, fonte primeira do direito,

são válidas porque, nos termos da norma fundamental, “[...] devemos conduzir-nos como a

Constituição prescreve”75. Assim, “[...] o conceito de norma fundamental tem a finalidade de

impedir que a teoria de Kelsen sobre a criação de normas fique presa em um círculo vicioso ou

em uma regressão infinita”76.

2.4 UMA TEORIA DE TUDO

Atribui-se a TALES DE MILETO a condição de primeiro filósofo77. E o pensamento

que ficou consagrado como filosófico foi o de que tudo tem uma natureza primeva, no caso, a

água78. Isso porque, a partir de então, “[...] chega [-se] à consciência de que o um é a essência,

o verdadeiro, o único que é em si e para si”79. A filosofia, portanto, começa com uma restrição

do mundo, pressionando os extremos até se chegar a um, pois ele, o mundo, agora é água, o que

nos encoraja, outrossim, a adotar uma posição reducionista. Nosso trabalho, com isso, é feito

às claras e não se envergonha de se assumir reducionista. O mundo, com toda a sua

complexidade, é reduzido a dois grupos, o jurídico e o não jurídico. A partir disso, limitamo-

nos ao jurídico. E, dado o jurídico, então, nós o reduzimos à norma. Assim é feita esta obra,

sem que, com isso, entenda-se bem, coloquemos na “ilegitimidade” outras formas de proceder.

Há aqui apenas uma defesa de certo modus operandi, e não propriamente uma crítica a outros.

74 Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p. 35 (8.IV) (acrescentamos entre colchetes). 75 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.224 (V.1.c). Se a norma fundamental possui um certo conteúdo, não sendo meramente formal, e se esse conteúdo é ou não contingente, ou seja, se cada ordenamento jurídico possui uma específica norma fundamental, é um dos desafios da doutrina kelseniana. Ao que parece, KELSEN estabeleceu, para cada ordem jurídica, a sua norma fundamental, com conteúdo próprio: “Num Estado até então monárquico, um grupo de pessoas tenta, por meio de uma revolta violenta, substituir um governo legítimo, monárquico, por um governo republicano. Se for bem-sucedido, [...] interpretam-se os atos realizados na execução como atos jurídicos [...]. [...]. Se a tentativa for malograda, [...] o ato executado não será interpretado como uma promulgação de Constituição, mas significará crime de alta traição [...]”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.126-127 (V.30.a). Assim, para cada fato fundamental, de cada ordenamento jurídico, haveria a sua norma fundamental: “Este pressuposto [a norma fundamental] não é um produto da livre imaginação, pois refere-se a fatos determináveis objetivamente [...]”. Hans Kelsen, Por que a lei deve ser obedecida, in: O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p.257 (IV). 76 Joseph Raz, O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos, p.89 (III.3.C). 77 “Segundo uma tradição, que remonta aos próprios gregos antigos, o primeiro filósofo teria sido Tales de Mileto”. José Américo Motta Pessanha, Consultoria, in: Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, p.15. 78 “[...] Tales sustentava que tudo originava-se da água [...]”. Jonathan Barnes, Filósofos pré-socráticos, p.73 (I.2). 79 Georg Hegel, Preleções sobre a história da filosofia, in: Os pré-socráticos: fragmentos, doxografia e comentários, p.42 (acrescentamos entre colchetes).

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No entanto, não desconhecemos que estudos reducionistas, em dias de

multidisciplinaridade, não são muito bem-vistos80. Há uma ideia, um tanto acrítica, de que mais

é melhor. Afinal, se você pode estudar um objeto por vários ângulos, por que faria isso por um

só? Tal pergunta não nos constrange, e a responderemos com outra pergunta: depois do

resultado desse estudo por vários ângulos, como se vai dar a ele unidade? Apresentando-o em

ordem alfabética? Na verdade, geralmente o que vemos é a presença de dois ou mais trabalhos

em mesmo documento, sendo tal justaposição justificada com o rótulo da multidisciplinaridade.

Duas aproximações diversas de um mesmo objeto precisam ser harmonizadas, o que, então,

somente pode ser feito se houver uma teoria que dê conta desses estudos parciais. Ora, com

isso, a multidisciplinaridade é novamente reconduzida a um, pois a primazia se desloca dos dois

enfoques preliminares para a forma de uni-los segundo uma ordem, ou seja, a preocupação

passa a ser “juntar coisas homogêneas ou heterogêneas, de modo que apresentem unidade, que

pareçam formar um só todo”81.

Quando REALE expõe o caráter tridimensional do direito, não está sendo

simplesmente multidisciplinar, pois sua preocupação é a compreensão integral do direito, e,

então, “[...] o jurídico não é nada mais do que o social que recebeu uma forma, em virtude da

intervenção do poder axiologicamente determinado”82. Quando TELLES JUNIOR, no

inigualável Direito Quântico, narra o universo e a eclosão da vida, passando pela “biologia

jurídica”, fá-lo não como fito de multidisciplinaridade, mas para reduzir os diversos a um:

“[n]ão há mundo de valores, separado de um mundo de seres. O que existe, certamente, é o

mundo dos seres. E, no mundo dos seres, certos seres têm valor, outros não”83.

De todo modo, não nos estamos a insurgir metodologicamente contra os estudos

multidisciplinares — isso fica, quem sabe, para um outro dia —, muito menos tentando proibir

que se adjetive algo com tal termo; respeitamos o modismo da multidisciplinaridade84. A

questão é outra, pois entendemos que, ao se reduzir o complexo ao único, o ganho de coerência

e profundidade compensa o separar o mundo entre o que pertence e o que não pertence a uma

80 Não temos interesse em promover um debate sobre os novos significados que o termo “disciplina” assume quando acoplado aos prefixos “pluri”, “multi”, “inter” e “trans”. Deixamos tal pesquisa aos militantes da área. 81 Antenor Nascentes, Dicionário de sinônimos: verbete “unir”, p.57. 82 Miguel Reale, O direito como experiência, p.110 (V.V). 83 Goffredo Telles Junior, Direito quântico: ensaio sobre o fundamento da ordem jurídica, p.235 (V). 84 “As modas filosóficas mudam com o tempo (ainda que não tão rápido como outras modas), e a atmosfera filosófica de hoje em dia é diferente da que reinava trinta anos atrás. Tudo o que posso dizer em minha defesa é: o fato de que uma teoria esteja em moda não é garantia de que seja a melhor teoria, nem também de que seja uma boa teoria. São necessárias razões que a sustentem”. Eugenio Bulygin, Comentários sobre “Pode haver uma teoria do direito?” de Joseph Raz, in: Joseph Raz, Robert Alexy e Eugenio Bulygin, Uma discussão sobre a teoria do direito, p.119. Ademais, é bom não perder de vista uma recomendação que REALE fez à juventude: “[...] não se deixe levar pelos modismos filosóficos”. Miguel Reale, Teoria tridimensional do direito, p.122 (Suplementos.I).

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34

teoria. Claro que se pode argumentar, contra uma posição reducionista, que ela deixa muito sem

explicação. Dessa eventual verdade, entretanto, não decorre que se deva explicar tudo,

principalmente se esse tudo não possa ser reconduzido à unicidade. Ademais, criticar os

modelos do mundo como insuficientes é esquecer o que sejam modelos, pois eles “[...] são

analogias abstratas, e não o próprio mundo”85. Por óbvio, sempre se pode substituir um modelo

de mundo por outro, sem que isso signifique, inclusive, garantia de evolução, até porque não se

consegue chegar a uma fórmula para reconhecer a teoria vencedora86. Não raro, modelos já

descartados são reapresentados com uma nova roupagem (como exemplo, damos toda uma

geração de jusnaturalistas que estão no armário e se autodenominam com outros rótulos), e

modelos bem testados (que sem dar conta de tudo, dão conta de muito), são abandonados —

não por não entregarem o que prometem87, mas por não entregarem o que não prometem88 —,

sem que haja nada mais consistente para pôr no lugar. De todo modo, estamos a falar de modelos

e não do mundo e aqueles, quaisquer que sejam, sempre vão ser menos complexos do que este.

Alegar coragem e expor a necessidade de trocar o seguro pelo desconhecido é sempre

um bom discurso, principalmente em recintos academicizados, podendo, inclusive, render

algumas palmas a quem o proferir, mas que não autoriza, por isso, a balburdia. De nossa parte,

quem apresenta uma obra, obriga-se a explicá-la de forma coerente, localizando-a dentro de

uma teoria maior, e não simplesmente se dizer como um ser diferente, livre de amarras. Uma

coisa é uma teoria de tudo, na qual todas as teorias são por ela encampadas89. Outra coisa, bem

diferente, é, no mesmo pedaço de papel, tentar abarcar os pontos mais variados do mundo sem

algo que permita uma compreensão globalizante do diverso. De todo modo, a teoria das teorias

85 Christopher Ray, Tempo, espaço e filosofia, p.35 (1). 86 “Se houvesse apenas um conjunto de problemas científicos, um único mundo no qual ocupar-se deles e um único conjunto de padrões científicos para sua solução, a competição entre paradigmas poderia ser resolvida de uma forma mais ou menos rotineira [...]. Mas, na realidade, tais condições nunca são completamente satisfeitas”. Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, p.189 (11). 87 “La ‘Teoría general del Estado’ perderá este carácter de conglomerado más o menos arbitrario y podrá legitimarse como Ciencia auténtica, cuando logre desenvolver y solucionar, partiendo de un único principio fundamental, todos los problemas abarcados bajo esta denominación”. Hans Kelsen, Compendio de teoría general del estado, p.105 (Introducción). 88 “As teorias sociológicas reprovam o formalismo abstrato de Kelsen, alegando que o direito é um fenômeno social. [...]. [...] Kelsen limita-se a esclarecer que essa pesquisa concreta não é função do jurista, mas do sociólogo. Com as críticas dirigidas pelos jusnaturalistas à teoria pura do direito, aproximamo-nos do problema da justiça. [...]. Aqui também Kelsen responde distinguindo o valor do direito da sua validade”. Mario Losano, Introdução, in: Hans Kelsen, O problema da justiça, p. XVI-XVII. 89 “[...] seria muito difícil elaborar de uma só vez uma teoria unificada completa de tudo o que há no universo. Assim, em vez disso, progredimos encontrando teorias parciais que descrevam um espectro limitado de acontecimentos e negligenciando outros efeitos ou fazendo determinadas aproximações numéricas. [...]. No fim das contas, porém, esperamos encontrar uma teoria unificada completa e coerente que inclua todas essas teorias parciais como aproximações e que não precise de ajustes para se adequar aos fatos escolhendo-se os valores de certos números arbitrários na teoria. A busca por uma teoria assim é conhecida como ‘a unificação da física’”. Stephen Hawking, Uma breve história do tempo, p.205 (11).

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pode ser um sonho inalcançável e não temos como, nesta altura, sobre ela saber, mas mesmo

que esteja por aí, esperando ser descoberta, precisamos, até lá, virar-nos com o que temos para

explicar o mundo, e aqui damos nossa pequena contribuição, fazendo isso por meio de uma

teoria normativa do jurídico, na qual o direito é reduzido à norma jurídica, que, por sua vez,

apresenta-se de forma sintaticamente homogênea.

2.5 A HOMOGENEIDADE SINTÁTICA DAS NORMAS JURÍDICAS

A norma jurídica, enquanto proposição, é interpretação de enunciado e sua validade

advém de outra norma jurídica. No entanto, carece ainda de desenvolvimento a questão de sua

estrutura. E por estrutura queremos aqui dizer “[...] um conjunto de elementos [...] e uma ou

mais operações [...]”90. Logo, a estrutura da norma jurídica é a forma de ligação, por meio de

operadores, de seus elementos, para ficarmos no plano sintático, da sintaxe. Assim, essa forma

de ligação é o que podemos chamar de “[...] regras de formação, que determinam as

combinações independentes permissíveis de membros do conjunto [...]”91. No entanto, com

isso, chegamos a um ponto onde devemos tomar uma posição. Até agora, afirmamos que

somente podemos saber se uma norma é jurídica investigando se há outra norma jurídica que

lhe dê fundamento de validade. A questão gira, portanto, em torno das regras de transformação.

Entretanto, de um ponto de vista estático, não haveria nada que permitisse conhecer se uma

norma é norma jurídica? Já pontuamos que estaticamente ela é uma proposição prescritiva. Uma

conduta possível empiricamente deve ser, em um dos modos — obrigatório, permitido ou

proibido —, essa é a norma jurídica. Contudo, apenas com tal definição, não temos meios de

apartar a norma, sem qualquer adjetivo, da norma jurídica. Estamos diante de um caso de gênero

e espécie. A norma jurídica teria todas as propriedades do gênero norma, e, portanto, seria uma

proposição prescritiva. Todavia, que outro elemento diferenciador interno, que lhe seja único,

podemos apresentar? Uma resposta a tal pergunta leva-nos ao campo da ontologia da norma

jurídica.

Não se deve, sabemos usar palavras como “ontologia” sem um bom motivo, pois elas

produzem demais ruído, e a discussão facilmente pode ser alterada do assunto que se pretende

tratar para o significado da palavra em questão. No entanto, nem sempre isso é possível, sendo

que uma das formas de se evitar tais dissabores é especificando, de antemão, um conceito para

o termo polissêmico. No nosso caso, quando falamos de “ontologia”, não é do ser em si que

90 José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia: verbete “estrutura”, p.233-234. 91 Charles Morris, Fundamentos da teoria dos signos, p.28 (III.1).

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estamos a tratar, mas da essência de um ser que damos por existente, a norma jurídica92.

Portanto, podemos reformular a questão: existe uma essência da norma jurídica? Ocorre que,

sendo essa reformulação é um primeiro ponto, ainda não é ela suficiente. Com efeito, a essência

das coisas pode ser vista como questão interna ou externa. Internamente, uma vez admitido um

sistema de referências, podemos tranquilamente falar de essência das coisas em relação a ele.

No entanto, se questionamos esse sistema de referência, mudamos o ponto de vista, e damos

um passo além, pois “[...] a questão externa não é uma questão teórica mas ao contrário a

questão prática de saber se aceitamos ou não aquelas formas linguística”93. Portanto, dentro de

um sistema de referência dado, é possível falarmos de essência, ou seja, daquilo que faz o ente

diferente de outros entes94. Dito isso, vamos, então, construir nosso sistema de referências para

poder responder à pergunta.

Podemos afirmar, das proposições prescritivas, sem que, com isso, estejamos

igualando-as a imperativos, que são ou hipotéticas ou categóricas95. Assim, quando a conduta

for devida em qualquer situação, a proposição que isso estabelece será categórica; e quando a

conduta apenas for devida se se der determinada situação, então será hipotética. Adotando essa

formulação, poderíamos esboçar um entendimento de que as normas jurídicas se distinguem

das normas morais porque seriam sempre hipotéticas96. No entanto, preferimos uma outra

aproximação do tema, com a qual podemos reduzir as normas categóricas a normas hipotéticas,

pois os “[...] enunciados escritos na forma categórica podem ser reescritos na forma

92 “Por um lado, [a ontologia] é concebida como ciência do ser em si, do ser último ou irredutível [...]. [...]. Por outro lado, a ontologia parece ter como missão a determinação daquilo em que os entes consistem [...]. Então, é uma ciência das essências e não das existências; é [...] uma teoria dos objetos”. José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia: verbete “ontologia”, p.528. 93 Rudolf Carnap, Empirismo, semântica e ontologia, in: ______. Coletânea de textos, p.124-125 (4). 94 “[...] do ponto de vista lógico, a essência é aquilo que define uma coisa [...]”. Regina Schöpke, Dicionário filosófico: conceitos fundamentais, verbete: “essência”, p.95. 95 “[...] todos os imperativos ordenam ou hipotética- ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcançar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade”. Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes, p.50 (2). 96 KELSEN nega expressamente que as normas jurídicas possam ser categóricas, excetos as individuais que podem ser ou não: “As normas jurídicas gerais têm a forma de enunciados hipotéticos. [...]. Uma norma jurídica individual também pode ter essa forma hipotética. [...]. Existem, porém, normas jurídicas individuais que não têm caráter hipotético”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.54 (I.C.c). Posteriormente KELSEN vai explicitar que ao se referir às normas gerais, nelas está “[...] incluindo as normas gerais de omissão [...]”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p 112 (III.12). Já quanto à norma individual categórica, dá a entender, por fim, que ela é categórica apenas na aparência, pois a hipótese, e sua ocorrência, seria pressuposta: “Se a norma jurídica individual da decisão judicial é categoricamente formulada, então é porque a autoridade que fixa a norma pressupõe os fatos reais da condição: que pode ser cumprida ou infringida”. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.26 (5).

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condicional”97. Ou seja, se toda e qualquer situação, então deve ser a conduta. Damos, assim,

um passo a mais na estrutura da norma jurídica: de um ponto de vista sintático, entendemos a

norma jurídica como uma estrutura bimembre, no formato de hipótese e consequência. Só que

ainda não podemos distinguir, com base nessa lição, norma de norma jurídica.

Sobre a consequência, já sabemos que uma conduta humana é devida num dos modos

(obrigatório, permitido ou proibido), limitada ao possível empiricamente, tudo nos termos da

proposição prescritiva, que é válida ou inválida. Já quanto à hipótese, nessa nossa nova

formulação, fazem-se necessárias algumas palavras. Ela é igualmente uma proposição. E como

tal, decorre de um enunciado posto. Ademais. por questão de coerência, devemos delimitá-la,

da mesma forma que a proposição prescritiva, à possibilidade empírica. Entretanto, não mais

se aplica a necessidade de que seja uma conduta humana. Com efeito, eventos da natureza

podem ser a base para que uma conduta seja devida.

Há um mundo do dever-ser, criado pela vontade, e o que deve ser é o estado de coisas.

No entanto, de todos os estados de coisas, prendemo-nos, neste trabalho, à conduta humana,

estabelecendo como devido o fazer ou o não fazer, num dos modos deônticos. Agora,

estabelecemos que a conduta somente é devida na forma condicional, aceitando, inclusive, que

todo e qualquer estado de coisas é uma forma condicional, masque, por todo e qualquer estado

de coisas, apenas nos limitamos ao possível empiricamente, sem que haja qualquer necessidade

de que, na hipótese, esteja uma conduta humana. E para aqueles que gostam de exemplos, basta

imaginar a seguinte norma: se chover e o pluviômetro acusar acima de tantos milímetros, no

período de uma hora, então deve ser a obrigação, conduta humana, de ligar uma sirene.

Já quanto ao valor dessa proposição, a hipótese, encontramo-nos diante de uma nova

situação. VILANOVA expõe que ela “[...] não se guia por valores verificativos (V/F), mas

segundo observâncias e inobservâncias, por valores de cumprimento (fulfillment-values)”98.

Primeiramente devemos demarcar que há a norma que traz uma situação projetado no futuro e

há outra que traz um dado concreto, já realizado. Quanto à primeira, se ela não pode ser

verdadeira ou falsa, também não nos parece que possa ser qualificada em razão de ser ou não

observada. Simplesmente há uma projeção de fato, que foge a qualquer das valências apontadas.

97 Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.87 (2.9). Assim, um “[...] mandato o permiso de hacer alguna cosa incondicionalmente puede considerarse como un mandato o permiso de hacer alguna cosa bajo condiciones que son tautológicamente satisfechas”. G.H. von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.185 (IX.12). TELLES JUNIOR, citando MILL, vai numa direção contrária, expondo que “[...] as proposições condicionais [...], reduzem-se a categóricas”. Goffredo Telles Junior, Tratado da conseqüência: curso de lógica formal: com dissertações preliminares sobre o conhecimento humano e sobre a definição e a divisão da filosofia, p.137 (II.2.3.67). 98 Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.83 (2.6).

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Já quanto à segunda, a descrição de um fato, podemos, ao lado dos termos

“observância/inobservância”, que então são aplicáveis, igualmente usar “verdade/falsidade”.

Afinal, “se p, então ...”; “p verifica-se”, portanto “p é”; logo, a segunda proposição que descreve

a ocorrência de “p” possui o valor de verdadeira em relação ao mundo, e de observância em

relação à premissa maior. De todo modo, a valência da hipótese não é um ponto que influenciará

as conclusões deste texto.

Temos, em resumo, em nossa busca pela estrutura da norma jurídica, duas proposições.

Razão pela qual usamos os vernáculos “hipótese/consequência”. Assim, hipótese e

consequência são tomadas como elementos da norma jurídica, sem que sejam suficientes per

se para identificá-la, mas sendo necessários. De tudo, então, encontramos uma estrutura mínima

— frisa-se, necessária, mas não suficiente —, podendo-se assim falar de uma composição dual

para a norma jurídica, pois “[p]or variado que seja estilisticamente, tecnicamente,

idiomaticamente, o modo como o direito positivo de uma sociedade concreta se exprime, onde

há regras [...], aí encontramos sua composição dual”99. No entanto, termos como hipótese e

consequência somente têm lugar se presente um condicional e, para tanto, vamos valer-nos do

“se ..., então ...”; e se não olvidamos o início deste trabalho, no qual nos declaramos tributários

de HUME, resta-nos ligar a hipótese à consequência por meio do dever-ser, o que nos fornece

um “se ..., então deve ser ...” 100. Logo, “se” se dá certa situação (ação, omissão, evento da

natureza), “então deve ser” uma conduta. Essa é a norma jurídica, ou melhor, sua estrutura, que

é mínima, necessária, mas não suficiente. Exposição estática.

Devemos fazer um breve comentário antes do fim deste tópico. No plano do

positivismo analítico, desde a crítica de DWORKIN a HART, vem-se discutindo seriamente o

papel dos princípios no direito101. E uma forma dura de conceber os princípios leva a afastar-se

99 Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p.82 (III.7). 100 “Pero ¿por qué ha de acatarse tal límite? ¿Acaso no podría construirse un sistema deóntico en el que las inferencias prohibidas por Hume fueran válidas? Sí, se podría, ya que la construcción de un sistema depende de nuestra voluntad para la elección de los axiomas”. Delia Echave, María Urquijo e Ricardo Guibourg, Lógica, proposición y norma, p.151 (IX.2). 101 Na verdade, a crítica de DWORKIN não foi particularmente a HART: “Quero lançar um ataque geral contra o positivismo e usarei a versão de H.L.A. Hart como alvo, quando um alvo específico se fizer necessário. [...]. Meu objetivo imediato [...] é distinguir os princípios [...] das regras [...]”. Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, p. 35 e 37 (2.3). HART, reconhecendo pontos da posição de DWORKIN, passou a aceitar a existência de princípios, sem com isso entender que deveria abandonar partes importantes de sua obra-prima, O conceito de direito: “Dworkin é credor de grande reconhecimento por ter mostrado e ilustrado a importância desses princípios [não conclusivos] e o respectivo papel no raciocínio jurídico, e, com certeza, eu cometi um sério erro ao não ter acentuado a eficácia não conclusiva deles. Mas também é seguro que não tencionava sustentar através do uso que fiz da palavra <<regra>>, que os sistemas jurídicos só contêm regras de <<tudo-ou-nada>> ou regras quase-conclusivas”. Herbert Hart, Pós-escrito, O conceito de direito, p.325.

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a ideia de homogeneidade sintática102. Entretanto, não vemos como isso seja possível, ao menos

não sintaticamente. De todo modo, pode ser que talvez semântica ou pragmaticamente, alguma

divisão seja viável103. Por um lado, o semântico, poder-se-ia aceitar um grau maior de

indeterminação e de vagueza nos princípios, ou seja, uma maior abertura, como modo de

distinção das regras104. Por outro lado, o pragmático, na aplicação da norma tida como princípio,

poderia o utente querer vê-la prevalecendo no caso individual, mesmo que tenha, para isso, de

afastar outra norma, a regra, que se aplicaria de forma mais precisa ao caso. E não por questão

hierárquica ou temporal é que se daria o escamoteio, mas por razão de importância axiológica

é que seria concederia ao princípio a primazia105. Prevaleceria, então, para a aplicação, a norma

de destaque, ou seja, o princípio, mesmo que não guarde tão precisa identificação com o caso

como a regra106. No entanto, a possibilidade de separação das normas jurídica em regras e

princípios, nos planos semântico e pragmático, não altera a questão sintática, e, por conseguinte,

a da homogeneidade das normas jurídicas, que fica intocada, sem que o tema dos princípios

seja capaz de cindir as normas jurídicas de um ponto de vista estrutural107.

102 A distinção, para a posição forte, entre regras e princípio seria “[...] uma distinção entre duas espécies de normas”. Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, p. 87 (3.I.1). Assim, “[...] [p]rincípios são [...] mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. [...]. Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas”. Robert Alexy, Teoria dos direitos fundamentais, p. 87 (3.I.2). Posição que já vem de DWORKIN: “A diferença entre princípio jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. [...]. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. [...]. Mas não é assim que funcionam os princípios [...]. Mesmo aqueles que mais se assemelham a regras não apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as condições são dadas”. Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, p.39-40 (2.3). 103 “Não usarei aqui qualquer definição ou critério de identificação de princípios jurídicos que seja capaz de separá-los da classe das regras ou normas como paramentos de conduta conceitualmente distintos, simplesmente porque não acredito na viabilidade de sucesso dessa tarefa”. Juliano Maranhão, Positivismo jurídico lógico-inclusivo, p.79 (3.1). 104 Negando a indeterminação como traço distintivo entre os princípios e as regras, temos GUASTINI: “[...] a indeterminação não é um caráter suficiente para distinguir os princípios das outras normas. Isso se dá por, pelo menos, duas razões. Em primeiro lugar, na linguagem dos juristas, o uso do vocábulo princípio tem um evidente componente axiológico que o conceito de indeterminação não consegue capturar de modo algum. [...]. Em segundo lugar, a indeterminação [...] é um caráter próprio de qualquer norma jurídica a partir do momento em que cada norma é necessariamente formulada por meio de termos gerais”. Ricardo Guastini, Os princípios constitucionais como fonte de perplexidade, in: Anderson Teixeira e Elton de Oliveira (org.), Correntes contemporâneas do pensamento jurídico, p.43. 105 “[...] tratar una norma como un principio significa precisamente presuponer su superioridad — cuanto menos su superioridad axiológica — respecto de otra”. Ricardo Guastini, Interpretar y argumentar, p.201 (V.8). 106 “As teorias fundacionalistas consideram que a prevalência de um princípio justificador da regra sobre a regra significa uma alteração do direito. As coerentistas consideram que a razão decorrente do princípio pode ser parte do direito, sem que isso implique sua alteração”. Juliano Maranhão, Positivismo jurídico lógico-inclusivo, p.155 (3.13). 107 “[...] qualquer norma pode ser reformulada de modo a possuir uma hipótese de incidência seguida de uma conseqüência”. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p.43 (2.3.1.2). Isso, entretanto, não significa que, para esse autor, não haja diferença entre regra e princípio, pois “[a]s regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência [...]. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com

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2.6 A FORMALIZAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

Dada uma situação — inclusive toda e qualquer—, então deve ser uma conduta

humana. Há nessa ideia uma clara cisão do mundo da linguagem em prescrição e descrição.

Nas leis da natureza, ligamos a hipótese à consequência tendo em vista a causalidade.

Linguagem descritiva do mundo. Já no campo da prescritibilidade, a hipótese é ligada à

consequência pelo dever-ser. Com isso, estamos a nos referir à imputação, uma vez que, “[n]ada

é dito pela norma sobre o comportamento efetivo do indivíduo em questão”108; pois “[...] aquilo

que deve ser não corresponde sempre ao que é”109.

Esse é nosso mínimo irredutível da estrutura da norma jurídica. E, para fins de

simplificação, vamos formalizá-lo, promover uma abstração lógica110, usando, para tanto, uma

notação a mais próxima possível da do cálculo proposicional clássico111. Por essa linha, a

hipótese e a consequência são tomadas como fórmulas atômicas e representadas por letras

pretensão de complementaridade e de parcialidade [...]”. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p.78 (2.4.3). 108 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.51 (C.a.5). 109 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p. 152 (V.39). 110 “E destaco, por abstração lógica, a forma desembaraçando-me da matéria que tal forma cobre”. Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p.46 (I.6). 111 Não há apenas uma notação possível para a formalização. Assim, “[...] el lenguaje formal representa aquellos vínculos mediante signos especiales, que reciben el nombre de conectivos extensionales [...], signos lógicos, constantes lógicas u operadores. Pero no existe un acuerdo generalizado acerca de cómo representar estos signos. Esto da lugar a la existencia de distintas notaciones, o sistemas gráficos de escritura de la lógica simbólica”. Delia Echave, María Urquijo e Ricardo Guibourg, Lógica, proposición y norma, p.40-41 (II.2). E, dentre as possibilidades, , utilizaremos o cálculo proposicional clássico. Afinal, “[s]e o CQC [cálculo de predicados de primeira ordem] é uma lógica de primeira ordem, podemos dizer que o CPC [cálculo proposicional clássico] é uma lógica de ordem zero. Essa lógica, que tem suas origens na lógica dos filósofos estóicos, é um subsistema interessante do CQC”. Cezar Mortari, Introdução à lógica, p.63 (5.1). Não obstante nossa escolha, em nome da simplicidade, não desconhecemos que tal formalização pode, a depender das pretensões, ser insuficiente para o trato do direito, o que levou inclusive VON WRIGHT a desenvolver a “lógica da ação”, pois, para o finlandês, “[...] el simbolismo que había estado utilizando para los actos era inadecuado para expresar las características lógicas de la acción, que son de importância obvia para la lógica de conceptos-obligación”. G.H. von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.16 (prefacio). No entanto, mutatis mutandis, trocando, na citação abaixo, “lógica de predicados” por “lógica proposicional clássica”, entendemos válido, para o nosso trabalho, o ensinamento de QUINE: “Encontramos uma lógica de necessidade e possibilidade, uma lógica de perguntas, de “deves” ou “não deves”, de comportamentos, e de condicionais fortes. Na medida em que a gramática da lógica de predicados é, em princípio, adequada como um veículo da austera teoria científica, esses empreendimentos posteriores não têm parte a desempenhar em nosso sistema teórico do mundo”.W.V. Quine, Quiddities: an intermittently philosophical dictionary: entry “predicate logic”, p.159 (tradução nossa). No original: “We encounter a logic of necessity and possibility, a logic of questions, of ‘shalt’ and ‘shalt not’, of propositional attitudes, and of strong conditionals. Insofar as the grammar of predicate logic is in principle adequate as a vehicle of austere scientific theory, these ulterior endeavors have no part to play in our theoretical system of the world”.

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minúsculas do alfabeto latino (p, q, r, s etc.). Já para operadores, basta-nos112 a negação (~)113,

a conjunção (˄)114, a disjunção (˅)115 e a implicação (→)116, além de notações próprias para o

deôntico, que antes deve ser desambiguado:

[...] dever-ser é o modal genérico, cujas espécies são: o proibido, o obrigatório e o permitido (positivo e negativo). [...]. Outro sentido do dever-ser é o de forma de síntese dos dados-da-experiência. É no sentido categorial de forma de síntese ou método de ordenação da experiência [...]. Sob esse ângulo, o dever-ser é a contrapartida, no universo social, da causalidade no mundo natural117.

Sob o rótulo “dever-ser”, temos dois significados distintos. Que a conduta prescrita

deve ser num dos modos, aqui temos um ponto; mas que, dada certa situação, então deve ser a

conduta, isso é outro tópico, e, portanto, precisamos de notações diferentes. Para o primeiro

caso, dos modos de conduta, que são três, podemos usar (O) para obrigatório, (V) para proibido

e (P) para permitido118. Já para a separação do mundo entre o que é e o que deve ser, entre a

causalidade e a imputação, podemos valer-nos de (D), que é “[...] um conectivo operatório, ou

partícula não referente a objetos ou a propriedade-de-objetos. É um functor”119. No entanto, (D)

não é um mero conectivo, ao lado dos conectivos acima listados, pois “[...] o functor D é um

functor-de-functor”120. Por meio dele, não estamos expondo que a hipótese ou a consequência

112 “[...] o bicondicional é, de certo modo, supérfluo, pois seu papel pode ser desempenhado com o auxílio do condicional e da conjunção”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “conectivos”, p.46. 113 “A negação (ou contradição, ou negativa) de um enunciado é, freqüentemente, formada pela inserção de um ‘não’ no enunciado original”. Irving Copi, Introdução à lógica, p.228 (8.II). 114 “Quando dois enunciados se combinam pela palavra ‘e’, o enunciado resultante composto é uma conjunção e os dois enunciados que se combinam têm o nome de conjuntivos”. Irving Copi, Introdução à lógica, p.227 (8.II). 115 “A disjunção (ou alternação) de dois enunciados forma-se inserindo a palavra ‘ou’ entre eles. Os dois enunciados componentes, assim combinados, são chamados disjuntivos (ou alternativos). A palavra ‘ou’ é ambígua [...]. [...]. A palavra latina vel expressa a disjunção débil ou inclusiva, ao passo que a palavra latina aut corresponde à palavra ‘ou’ em seu sentido forte ou exclusivo”. Irving Copi, Introdução à lógica, p.229 (8.II). 116 Não olvidamos que “[n]ão existe um só significado de ‘se ... então’, mas vários”. Irving Copi, Introdução à lógica, p.238 (II.8.III). Muito menos que se pregue um uso restrito do termo “implicação”, pois, “[a] rigor (sic), ‘implicação’ deveria ser utilizada para indicar que uma conclusão (C) deflui de um conjunto de premissas (Γ) [...]”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “implicação”, p.101. No entanto, neste trabalho, vemos “[...] α→β como apenas uma maneira mais simples de dizer ¬(α˄¬β)”. Cezar Mortari, Introdução à lógica, p.137. No mesmo sentido, podemos citar COPI: “Definimos o novo símbolo ‘⸧’ (chamado ferradura) considerando p ⸧ q uma abreviação de ~ (p . ~q)”. Ibidem, p.238. 117 Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema de direito positivo, p.261-262 (XIII.14). 118 “Para os enunciados que obrigam determinado comportamento p, é utilizada a notação O(p); para os que proíbem (vedam) o comportamento p, é utilizada a notação V(p); e para os que permitem o comportamento p, a notação P(p)”. Fábio Ulhoa Coelho, Roteiro de lógica jurídica, p.56. 119 Lourival Vilanova, Lógica jurídica, p.102 (III). 120 Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.96 (II.13). “[...] para que a proposição seja modal, é preciso que o modo afete a cópula”. Goffredo Telles Junior, Tratado da conseqüência: curso de lógica formal: com dissertações preliminares sobre o conhecimento humano e sobre a definição e a divisão da filosofia, p.125 (II.2.3.65).

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deve ser, mas que a implicação entre a hipótese e a consequência deve ser, ou seja, nossa

afirmação é que a hipótese imputa a consequência.

Até aqui, dissemos que, dada a hipótese, podendo ser ela toda e qualquer situação

possível no mundo fático, então deve ser a consequência, uma conduta humana, também

possível de fato, num dos modos: obrigatório, proibido e permitido. Agora, podemos traduzir,

alinhavando, para complementarmos mais à frente: (D) [p→(O,V, P)q]. Há nisso, claro, uma

formalização, mas essa formalização não chega a ser completa. Quando se diz que a norma é

prescrição de conduta humana, por mais desprovido que seja isso de matéria, já se deixou o

campo da lógica formal em sentido estrito. Com efeito, com essa demarcação, já temos dois

tipos de proposições, as que tratam da conduta humana e as que não tratam. Distinção não

estrutural, mas de conteúdo. Com isso, queremos dizer que um estudo sintático do direito

apresenta também conteúdo, mesmo se o qualificarmos de mínimo: cuida de condutas, só que,

desde que possíveis, qualquer uma serve.

2.7 NORMA E SANÇÃO

Norma jurídica é uma prescrição de conduta humana que retira sua validade, ao fim e

ao cabo, da norma fundamental. Esse é o plano dinâmico. Estaticamente, por sua vez, a norma

jurídica apresenta uma certa estrutura: hipotética prescritiva, ou seja, há uma hipótese ligada a

uma consequência por meio do dever-ser. Por outras palavras, imputa-se à hipótese, se

verificado o quê nela foi descrito, a consequência, ou seja, a conduta devida. Assim,

horizontalmente a norma jurídica apresenta, como característica — necessária, mas não

suficiente — uma estrutura dual, unida pelo dever-ser; já verticalmente, norma jurídica é a que

decorre de outra norma jurídica, indiretamente, uma vez que entre elas há a conduta que assenta

o significante. Agora, ao conjunto de normas jurídicas — que se entrelaçam dinamicamente, e

são, de um ponto de vista sintático, homogêneas — denominamos de ordenamento jurídico ou

direito positivo. Afinal, “[...] o que comumente chamamos de Direito é mais uma característica

de certos ordenamentos normativos que de certas normas”121.

O direito é, portanto, um conjunto de normas jurídicas, mas não só isso, sendo esse

todo é apresentado como uma ordem coativa122. E quando se atribui ao direito o caráter de

121 Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p.28 (1.3). 122 Não vamos prender-nos a uma eventual diferença entre coação e coerção. A doutrina clássica alemã usa o termo “Zwang”, que tanto pode ser traduzido por “coação” como por “coerção” (Edel Ehlers e Gunter Ehlers, MICHAELIS TECH: dicionário de economia e direito alemão-português, português-alemão, p.322-323 respectivamente). Preferimos, dentre essas duas posições aceitáveis, que aqui adotamos como cambiáveis,

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coativo, cria-se uma ponte entre os planos do ser e do dever-ser, rompendo-se com a pureza

absoluta do modelo, pois é com base nessa ideia que se atribuirá a necessidade de um mínimo

de eficácia ao ordenamento jurídico como um todo. No entanto, neste primeiro momento, nosso

foco é — separando a coação como característica do direito como um todo da coação como

característica da norma jurídica individualizada — verificar se a norma jurídica necessita da

coação para assim ser denominada. Em suma, a questão sobre a essência da norma jurídica é

reposta agora, para saber se a coação é essencial à ideia de norma jurídica.

Coação é um termo ambíguo que pode assumir no mínimo duas feições123. Uma é a de

fato, outra é mais abstrata, a de ameaça. Em relação à questão de fato, se alguém não realiza a

conduta devida, então é coagido. Já na segunda hipótese, alguém é ameaçado com coação, caso

sua conduta não seja a devida. Entre essas duas possibilidades, como temos adotado uma

posição normativa, vamos descartar a questão fática, prendendo-nos à ameaça. Só que a

ameaça, tal como a norma jurídica, também é formulada em linguagem. Logo, é posto

igualmente um enunciado por meio de um ato de vontade, que deve ser interpretado na linha de

que se a conduta devida, dada pela norma jurídica, não se der, então deve ser cumprida a ameaça

de coação. Em outras palavras, em face da ocorrência de uma hipótese, então deve ser a conduta

num dos modos (obrigatório, proibido e permitido), e não sendo a conduta devida, então deve

ser a coação, que aparece como ameaça124. Se à primeira parte da equação chamamos de norma

jurídica, vamos agora pactuar que, à segunda parte da equação, ao menos neste primeiro

momento, denominaremos de sanção125. Dito isso, então podemos reformular a nossa pergunta:

há norma jurídica sem sanção?

Na estrutura dual, identificamos o mínimo da norma jurídica (regra de formação). Na

relação com outra norma jurídica, o caráter de ser norma jurídica (regra de transformação).

Agora devemos entender se, e como, a coação — apontada como característica do direito como

“coação”, por ser assim que o termo vem sendo traduzido, quer em espanhol, quer em português. Exemplificativamente podemos citar IHERING e KELSEN: — “[…] Recht ist der Inbegriff der in einem Staat geltenden Zwangsnormen […]”. Rudolf von Ihering, Der Zweck im Recht, p.318 (VIII.10). “El derecho puede [...] definirse exactamente: el conjunto de normas según las cuales se ejerce en un Estado lá coacción”. Rudolf von Ihering, El fin en el derecho, p.158 (VIII.10.145). — “In diesem Sinne sind die als Rechts bezeichneten Gesellschaftsordnungen Zwangsordnungen menschlichen Verhaltens”. Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, 2.aufl., p.34 (I.6.b). “[...] as ordens sociais a que chamamos Direito são ordens coativas da conduta humana”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.36 (I.6.b). 123 “Como coerção, a pena pode ter uma dupla natureza. a) Coerção indireta, mediata, psicológica, vale dizer criação dos motivos psicológicos ao agir. [...]. b) Coerção direta, imediata, mecânica, quer dizer, verdadeira e própria violência”. Franz von Liszt, Teoria finalista no direito penal, p.43-44 (V). 124 Não vamos, por enquanto, preocuparmo-nos com o modo de conduta da ameaça. 125 “A sanção, do ângulo lingüístico, é, assim, ameaça de sanção: trata-se de um fato linguístico e não de um fato empírico. As normas, ao estabelecerem uma sanção, são, pois, atos de ameaçar e não representação de uma ameaça”. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, p.70 (2.5).

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um todo, pois ser coativo é ser minimamente eficaz — concatena-se a esses dados elementares.

Para tanto, vamos considerar, em relação à sanção, a “necessidade” e a “possibilidade” de ela

ser um traço determinante da norma jurídica.

Como necessidade, dinamicamente, dispensamos a coação como traço essencial da

norma jurídica, pois é possível conhecer esta sem fazer qualquer remissão àquela, uma vez que

a referência à norma fundamental já é suficiente para dizermos que uma norma é direito

positivo, ou seja, que faz parte do conjunto jurídico e, portanto, é norma jurídica, não sendo

necessário expor que ela especificamente é uma sanção ou que se liga a uma sanção. Assim,

não há necessidade de evocar a sanção para dizer o que é norma jurídica. Ademais, uma “[...]

tal definição não mais pode ser dita formalista, porque define o conteúdo, objeto do direito”126.

O que fugiria, e muito, de uma análise primordialmente sintática como a que empreendemos

aqui. No entanto, no plano estático, a mera estrutura dual, necessária, não dá conta de apartar o

direito de seus congêneres. A índole de hipotética não é característica exclusiva da norma

jurídica e, portanto, associar essa norma a algo mais pode demonstrar sua especificidade de

jurídica. Já quanto ao que seria esse algo mais, vamos vê-lo mais adiante, mas podemos adiantar

que ele não é a sanção, ao menos não enquanto formulada como coação. Isso porque, em estudo

da possibilidade, expor que uma norma é uma sanção ou se associa a uma sanção, diz muito,

mas não diz tudo, pois há várias outras sanções que não as jurídicas127. Assim, não é possível

identificar a norma como jurídica por ser ela uma sanção ou estar ligada a uma sanção. De tudo

isso, temos que a sanção não é necessária, ao menos no plano dinâmico, nem possível, no plano

estático, como signo distintivo da norma jurídica.

Ademais, há um problema grave para a definição de sanção quando ela é tida por

coação. O direito, como conjunto de normas jurídicas, prescreve conduta humana. E se essa

conduta prescrita é causar um mal a outrem, em razão de que esse outrem não praticou certa

ação ou omissão quando isso era devido, então teríamos o que podemos chamar de sanção. A

dificuldade reside, entretanto, na ideia de mal. Como saber se uma determinada conduta que

praticamos em relação ao outro é um mal? Intuitivamente, dentro do nosso senso comum, talvez

não tenhamos dificuldades para responder tal pergunta. Mas basta um olhar mais apurado para

notarmos que a intuição não transpassa para o campo objetivo. E isso sem aventarmos o sadismo

126 Norberto Bobbio, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p.159 (II.II.39). 127 Expondo que os sistemas morais, portanto, não só o direito, possuem sanção, citamos MILL: “O princípio da utilidade tem, ou não há qualquer razão para que não possa ter, todas as sanções que pertencem a qualquer outro sistema moral. Essas sanções são externas ou internas. [...]. São elas [sanções externas] a esperança de receber benefícios e o receio de reprovação dos nossos semelhantes ou do Soberano do Universo [...]. [...]. A sanção interna do dever [...] – um sentimento na nossa própria mente, uma dor, mais ou menos intensa, concomitante da violação do dever [...]” John Stuart Mill, Utilitarismo, p.132-133 (III) (esclarecemos entre colchetes).

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e o masoquismo. É muito comum, por exemplo, que quem pratica a conduta não a veja como

um mal, mas como, v.g., uma correção. Do lado de quem a recebe, por sua vez, pode ser vista

a sanção como redenção, como uma forma de expiar os pecados128. Logo, o subjetivismo não é

o caminho.

Não podemos, ao menos numa análise sintática do direito, imaginar que a pena “[...]

deve representar, para aquele que irá sofrê-la, um sentimento de desagrado”129. Isso seria

abandonar a normatividade e mudar de ares130. Mas mesmo alguém com a autoridade de

KELSEN se vê tentado a apelar para a subjetividade para definir o ato coativo, afirmando ser

ele “[...] normalmente recebido pelo destinatário como um mal”131. Nessa linha, retribuir-se-ia

às boas condutas com prazer (sanção premiativa) e às más condutas com dor (sanção

punitiva)132. Ocorre que enveredar por tal caminho significa se afastar da ideia de direito como

um conjunto de normas encadeadas entre si, com uma origem comum, a norma fundamental,

para graduar, no melhor estilo utilitarista, a dor e o prazer. No entanto, se queremos continuar

a investigação da estrutura da norma jurídica, não nos devemos prender a como as pessoas

percebem o conteúdo da norma jurídica. A explicação sintática do direito, mesmo que com

traços semânticos mínimos, deve seguir por outra senda.

2.8 NORMA PRIMÁRIA E NORMA EVENTUAL

Dada certa situação, então deve ser a conduta (ação ou omissão). Assim prescreve a

norma jurídica. Norma resultante de um texto. Em símbolos formais, temos: [D (p→q)]. Toda

norma jurídica teria essa estrutura, sem que isso, entretanto, seja condição suficiente para

identificá-la. Afinal, estamos a falar do plano estático da norma jurídica, e, nesse plano, ela é

uma prescrição hipotética; no entanto, há outras normas que não a norma jurídica que podem

assumir a mesma estrutura. Por isso, sem nos dirigirmos ao plano dinâmico, não saberemos,

apenas de posse de uma estrutura, se nos defrontamos com norma jurídica, pois somente será

ela assim se retirar sua validade de outra norma jurídica. Disso decorre que é por meio de um

128 “Quando jejuares, perfuma a tua cabeça e lava o teu rosto, para que não pareças às pessoas que jejuas, mas sim ao teu Pai que está no [lugar] escondido. E o teu Pai, que vê no que está escondido, recompensar-te-á”. Mateus 6:17-18, Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.80. 129 Ernst von Beling, A ação punível e a pena, p.86 (II.I.2) (itálicos constam do original). 130 “Além de psicossociológica, sua determinação [da sanção] é [...] também axiológica”. Tercio Sampaio Ferraz Jr., Teoria da norma jurídica: ensaio de pragmática da comunicação normativa, p.68 (2.5). 131 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.35-36 (I.6.b). 132 “A pena, por sua força, é particularmente aplicável para prevenir as ações danosas e a única que é própria para impedir as que são extraordinariamente perniciosas. [...]. A recompensa, por sua força vivificante, é mais adequada para que se façam as ações úteis, e a única para que se executem as que são extraordinárias”. Jeremias Bentham, As recompensas em matéria penal, p.36-37 (6).

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estudo vertical do direito que a forma de validade piramidal se apresenta. Apesar disso, se

continuarmos nossa busca no plano horizontal, ao lado dessa estrutura mínima, verificamos que

há, de forma interligada, uma outra estrutura.

As tentativas iniciais, como vimos acima, eram de concatenar a norma jurídica à

sanção, lida então como coação. Contudo, o termo coação apresenta uma série de dificuldades,

razão pela qual preferimos abandoná-lo quando utilizado como associação necessária de toda e

qualquer norma jurídica, deixando-o para o direito como um todo e seu mínimo de eficácia.

Disso, porém, não decorre que a formulação [D (p→q)] careça de ser tomada isoladamente. Há

uma outra norma jurídica, decorrente verticalmente também de norma jurídica, que prescreve:

se não advir a conduta devida, então deve ser, haja vista a eventualidade de sua não ocorrência,

uma outra conduta. Simbolizando, temos: [D (~q→ev)]. Essa é a nossa proposta. Uma norma

jurídica prescreve a “S1” primeiramente uma conduta, de forma condicional. Por causa disso,

vamos chamá-la de “norma primária”. Uma outra norma jurídica também prescreve conduta,

só que agora, a “S2”, mas só eventualmente, ou seja, somente se não se der a primeira conduta.

Por isso, vamos chamá-la de “norma eventual”.

Temos duas normas jurídicas, com mesma estrutura, mas diversas no conteúdo, como

também endereçadas a pessoas diferentes133. Em relação à norma primária, para a hipótese,

fixamos qualquer conteúdo desde que a facticidade seja possível; já a consequência, respeitado

o limite empírico, deve ser ela uma conduta humana. Nossa sintaxe da norma jurídica vem

acompanhada de conteúdo mínimo. No que tange à segunda norma jurídica, sua hipótese

sempre será a não ocorrência da conduta devida, e a consequência, será uma conduta, devida

apenas na eventualidade, sem que precisemos entrar em discussões sobre se há nela questões

como dor e prazer e como alguém disso se apercebe. Abre-se, assim, o guarda-chuva. Sob a

denominação de eventualidade, cabe agora qualquer conteúdo para a conduta: pena, prêmio,

inconstitucionalidade, ilegalidade, anulabilidade etc. Com isso, estamos prontos para um

próximo passo na estrutura sintática da norma jurídica.

Que a norma jurídica, num sentido completo, é (bi) bimembre, já o havia concedido

KELSEN134. Todavia, em razão da primazia que sua Teoria Pura dá à sanção, resolveu ele, já

133 Mutatis mutandis, podemos justificar a diferença entre os destinatários da norma primária e da norma eventual do mesmo modo que HOBBES fez com as leis simples e leis penais: “[...] nas leis que são simplesmente leis, o comando se aplica a todo homem; mas nas leis penais o comando se aplica ao magistrado, que é o único responsável pela violação delas quando as penas previstas não são infligidas; aos demais só lhes compete tomar conhecimento do perigo que correm”. Thomas Hobbes, Os elementos da lei natural e política, p.182 (II.XXIX.6). 134 Na verdade, que a lei seja composta de duas partes, já apontava, quase 300 anos antes de KELSEN, HOBBES: “[...] das leis positivas humanas, umas são distributivas e outras penais. As distributivas são as que determinam os direitos dos súditos [...]; estas leis são dirigidas a todos os súditos. As penais são as que declaram qual a penalidade deve ser infligida àqueles que violam a lei, e são dirigidas aos ministros e funcionários encarregados

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na primeira edição de sua obra, chamar a norma que contém a sanção de primária (primär); já

a outra, de secundária (sekundär)135. Dando desdobramento à ideia, chegou ele a afirmar que

“[c]aso se admita que a primeira norma, que proíbe o roubo, é válida apenas se a segunda norma

vincular uma sanção ao roubo, então, numa exposição jurídica rigorosa, a primeira norma é,

com certeza, supérflua”136. Ou ainda que “[...] a norma ‘Não matarás’ é supérflua quando vigora

uma norma que diz: ‘Quem matar será punido’ [...]”137. Nesse ponto, não andou bem o

meridiano de Greenwich dos positivistas, pois aquilo que KELSEN chama de norma

secundária, de forma alguma, pode ser considerada supérflua (superfluous, überflüssig), ao

menos não no sentido de desnecessária. Afinal, não nos basta “~q” para imputar a conduta “ev”,

o que daria razão ao flagelo dos jusnaturalistas, mas “~q” deve estar antecedido de “p”. Não é

possível, assim, reduzir a norma primária à eventual sem modificação de conteúdo. Além de

que, a própria terminologia, o uso da expressão “norma primária” para aquela que contém a

sanção, não fica imune a sérias objeções. Vejamos!

Num sentido estrutural, ambas as normas são importantes. Sem uma parte, a outra não

subsiste. Logicamente os quatro membros da norma jurídica na sua formulação completa — a

“hipótese”, a “primeira conduta” devida, e, em caso de “não realização da primeira conduta”

devida, a “conduta eventual” devida — têm o mesmo peso. A norma que possui a sanção, na

doutrina kelseniana — ou, no nosso caso, a norma eventual — não é, assim, a mais importante,

não é a primeira entre seus pares. Com efeito, não tem nenhum caráter primus inter pares, a

não ser que se lhe queira atribuir caráter ideológico. Na verdade, “[a]s denominações adjetivas

‘primária’ e ‘secundária’ não exprimem relações de ordem temporal ou causal, mas de

antecedente lógico para conseqüente lógico”138. Devemos, no entanto, ressalvar que KELSEN

mudou de entendimento em relação a tal nomenclatura:

da execução das leis”. Thomas Hobbes, Leviatã, p.242 (2.XXVI). “Mas distributiva e punitiva não são duas espécies distintas de lei, e sim duas partes da mesma lei”. Thomas Hobbes, Do cidadão, p.221 (XIV.7). 135 “A norma, que determina a conduta que evita a coação — e que é o objetivo do ordenamento jurídico — significa apenas uma norma jurídica com a condição de que deve expressar-se de forma abreviada, por questões de comodidade na exposição, o que somente a proposição jurídica enuncia integral e corretamente: que sob as condições da conduta contrária deve acontecer um ato coercitivo, como consequência. Essa é a norma jurídica em sua forma primária. A norma que determina a conduta, que evita a coação, só pode valer como norma jurídica secundária”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.93 (III.14.b). Na versão em espanhol: “La norma que establece la conducta que evita el acto coactivo, conducta que es la pretendida por el ordenamiento, tiene el significado de norma jurídica a condición de que con ella se diga – de forma abreviada, por comodidad expositiva – lo que tan solo la proposición jurídica (Rechtssataz) enuncia de manera correcta y completa, consistente en que en el supuesto de que se produzca la conducta contraria se ha de llevar a efecto el acto coactivo. Esta es la norma jurídica em su forma primaria. Por tanto, la norma que establece la conducta que evita el acto coactivo solo puede valer como norma secundaria”. Hans Kelsen, Teoría pura del derecho, 1.ed., p.60 (III.14.b). 136 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.86 (I.IV.C). 137 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.61 (I.6.e). 138 Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p. 105-106 (V.1).

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Se se admite que a distinção de uma norma que prescreve uma conduta determinada e de uma norma que prescreve uma sanção para o fato da violação da primeira seja essencial para o Direito, então precisa-se qualificar a primeira como norma primária e a segunda com secundária — e não o contrário, como o foi por mim anteriormente formulado139.

Assim, “[o] muito que se divulgou no mundo com referência à norma primária e à

secundária também não mais corresponde à última opinião de Kelsen”140.

139 Hans Kelsen, Teoria geral das normas, tradução de: José Florentino Duarte, p. 181 (35). No original: “Nimmt man an, daβ die Unterscheidung einer ein bestimmtes. Verhalten vorschreibenden Norm und einer Norm, die für den Fall der Verletzung der ersten eine Sanktion vorschreibt, für das Recht wesentlich ist, dann muβ man die erste als primäre und die zweite als sekundäre Norm bezeichnen — und nicht umgekehrt, wie dies von mir im Vorhergehenden formuliert wurde”. Hans Kelsen, Allgemeine theorie der normen, p.115 (35). Na tradução de: Hugo Carlos Delory Jacobs: “Si se considera que para el derecho es esencial la distinción entre una norma que prescribe cierta conducta, y otra norma que prescribe una sanción para el caso de la violación da la primera entonces se tiene que caracterizar la primera como norma primaria y la segunda como norma secundaria — y no a inversa, como fue formulado por mí em las argumentaciones precedentes”. Hans Kelsen, Teoría general de las normas, p.148 (35). 140 José Florentino Duarte, Palavras do tradutor, in: Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.IX. MELLO, comentando especificamente a tradução de DUARTE, que acabamos de transcrever, afirma que “[e]sse entendimento [...] deve ser considerado com bastante reserva [...]”, e isso depois ter posto em dúvida a tradução realizada pelo primeiro — mesmo que com a ressalva de que “[h]á pequena diferença entre os textos das traduções [...] que, no entanto, não lhe afeta o conteúdo” —, pois a comparou com a sua própria tradução da versão inglesa General theory of norms, p.142, Oxford: Clarendon Press, 1991 — que, por sua vez, foi traduzida do alemão por Michael Hartney — quando chegou a um fim do excerto diverso do da tradução para o português: “[...] e não o contrário como expressei em capítulo anterior”. Marcos Bernandes de Mello, Teoria do fato jurídico: plano da existência, p.65 (II.10.2.1). Há, nessa posição de MELLO, dois pontos a serem discutidos. Um é a harmonia da obra Teoria Geral das Normas como um todo, pois não há dúvidas de que em capítulos anteriores (15 e 34) — o capítulo discutido em questão é o 35 — KELSEN expõe um posicionamento de acordo com sua formulação original: “[...] se se pressupõe que cada norma jurídica geral seja a ligação de duas normas, das quais uma estabelece como devida uma certa conduta e a outra põe como devida a fixação de um condicional ato de coação por parte de um órgão judicial para o caso de violação desta norma. Eu designei a segunda norma como primária, a primeira como norma jurídica secundária”. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p. 68 (15). “[...] norma aqui qualificada como ‘secundária’, a saber, a conduta que evita a sanção [...]”. Ibidem, p. 180 (34). Quanto a esse ponto, não há dúvidas de que a obra publicada postumamente — e não obra póstuma, como geralmente a ela se referem — possui suas congruências. E isso porque ela “[...] reúne textos e artigos de Kelsen escritos em épocas muito diversas de sua vida”. Andityas Soares de Moura Costa Matos, Norma fundamental: ficção, hipótese ou postulado?, In: Hans Kelsen, Sobre a teoria das ficções jurídicas: com especial consideração da filosofia do “como se” de Vaihinger, p.16 (2). De fato, já em 1965, KELSEN dá conta a KLUG de que trabalha nessa obra: “Seu artigo Notas sobre análise lógica de algumas afirmações e conceitos teóricos-jurídicos eu o conheço muito bem e dele me ocupei pormenorizadamente num amplo estudo denominado Teoria Geral das Normas, no qual trabalho há bastante tempo”. Hans Kelsen, Normas jurídicas e análise lógica: correspondência trocada entre os Srs. Hans Kelsen e Ulrich Klug, p.91 (28.7.1965). No entanto, esse longo período de produção da obra não muda um ponto importante: “[n]uma série de aspectos, Kelsen modificou e alterou sua opinião. [...] ela [a obra Teoria geral das normas] deve — não importando o ponto de vista que finalmente se reconheça correto — tornar-se conhecida como a última posição do pensamento de Kelsen sobre a Teoria das Normas”. K. Ringhofer e R. Walter, Introdução, in: Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.XVI (esclarecemos entre colchetes). Mais especificamente, num segundo ponto, a tradução do original não pode ser feita sem certa complicação, pois KELSEN usa o adjetivo/advérbio “vorhergehend” (anterior/anteriormente, precedente/precedentemente) de forma substantivada (a palavra escrita em maiúscula em alemão, conforme o original, demonstra isso). Assim, livremente, arriscamos como tradução: “... e não ao contrário, tal como foi por mim formulado no precedente”. A frase é, sem dúvidas, ambígua, pois não é possível saber a que locus precedente se refere KELSEN, se à própria Teoria geral das normas, capítulo (s) anterior (es), ou à obra (s) anterior (es), como a Teoria pura do direito. De todo modo, não nos parece que promover tal desambiguação tenha relevância. Qualquer que seja a referência da frase, não muda ela o fato de ter o autor cambiado sua posição. Contudo, o significado dessa mudança de

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Resta, por fim, a questão de saber como se ligam essas duas normas, a primária e a

eventual141. Vamos restringir-nos aqui a duas alternativas dentre as possíveis, lembrando que a

lógica nos dá o instrumento para a formalização, mas não pode decidir o que seja o direito. Ela

entra em jogo apenas após essa posição ser tomada. Dito isso, uma primeira possibilidade de

união das normas primária e eventual diz respeito à conjunção. Assim, se unimos duas

proposições com o conectivo conjuntivo (˄), teremos uma proposição molecular verdadeira se

“[...] ambos seus conjuntivos forem verdadeiros [...]”142. Caso seja possível uma analogia entre

verdade e validade, então teremos uma norma válida apenas se a norma primária e a norma

eventual forem ambas válidas. Não obstante, o cumprimento espontâneo do direito resta, nesse

caso, inexplicado, afastado como não jurídico. Visando a evitar isso, vamos aqui, adotar uma

posição mais fraca, ou seja, aquela que une as proposições por meio de uma disjunção inclusiva

(˅), ou seja, “[...] só é falsa no caso de ambos os disjuntivos serem falsos”143. Com isso,

podemos conceber apenas a norma primária, sem que a validade dela fique vinculada ao seu

descumprimento e ao dever da conduta eventual. Ademais, COSSIO já havia se dado conta

disso ao unir a endonorma à perinorma, afirmando que de “[l]a norma completa resulta, por lo

tanto, um juicio lógicamente disyuntivo”144.

No sentido vertical, norma jurídica é a que decorre de outra norma jurídica (afirmação

elíptica, por questão de simplicidade, pois omite um fato entre as normas). Entretanto, num

sentido horizontal, entendemos que ela possui uma estrutura mínima que é a forma dual,

composta por hipótese e consequência. Porém, com mais vagar, investigando o direito,

podemos encontrar, no seu conjunto de normas jurídicas, dois tipos de normas, ambas

imputáveis, e então reconhecemos que essas duas normas se ligam de forma disjuntiva. Só que,

com isso, não encontramos algo que nos possa dizer se essa norma é jurídica, pois não há como

afastar que outras ordens sociais também possam ser formadas de normas com a mesma

estrutura145. Assim, na nossa construção do que seja a norma jurídica, de forma necessária, mas

entendimento é que deve ser tida com ressalvas e não a mudança em si. Assim, parece-nos que KELSEN ter modificado a nomenclatura, passando a chamar de primária a norma que antes chamava de secundária, e a que antes designava primária, passando a ser a secundária, não implica necessariamente qualquer mudança significativa em sua Teoria Pura, pois pode, sem qualquer contradição, entender que a sanção ainda é o traço distintivo do direito, mas que se encontra na norma que fica melhor designada — v.g., na linha de VILANOVA, em razão de uma questão lógica — de secundária. 141 As opções são: “[...] e, ou-(ou-includente), ‘se ..., então’ [...]. Exclui-se [...] ‘ou-disjuntivo’, pois este conectivo exclui a verdade ou a validade simultânea dos dois membros”. Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p.120 (V.12). 142 Irving Copi, Introdução à lógica, p.227 (II.8.II). 143 Irving Copi, Introdução à lógica, p.230 (II.8.II). 144 Carlos Cossio, Teoría de la verdad jurídica, p.122 (IV.2). 145 KELSEN encontra na estrutura das normas jurídicas um modo per se de diferenciá-las das normas morais: “[...] a ligação entre a norma moral que impõe uma conduta determinada e a norma que, para o caso do cumprimento,

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não suficiente, em sua fórmula completa, primária e eventual, alinhamos [D

(p→q)˅(~q→ev)]146-147.

2.9 NORMA DE CONDUTA E NORMA DE COMPETÊNCIA

O direito é um conjunto de normas jurídicas que prescrevem a conduta humana.

Qualquer conduta, desde que seja possível empiricamente. No entanto, pode até ser verdade

que a “[...] a felicidade dos indivíduos de que se compõe uma comunidade [...] constitui o

objetivo, o único objetivo que o legislador deve ter em vista [...]”148, mas isso não muda o fato

de que uma norma jurídica retira sua validade de outra norma jurídica e não da função que

exerce para a felicidade de todos. Que bem se legisle, isso é um desejo de todos, mas não é

fonte de validade da norma jurídica o bem legislar. Assim, qualquer conduta humana pode ser

prescrita, e a validade da norma jurídica que prescreve essa conduta não depende de seu

conteúdo em si. Essa é a tese positivista, com a qual comungamos149.

Do fato, entretanto, de que qualquer conduta pode ser prescrita, não decorre que não

possam ser classificadas as normas em razão da conduta que prescrevem. Há, nessa ideia, não

negamos, um abrandamento de uma sintaxe pura, mas não devemos olvidar que, num primeiro

momento, já fizemos um corte: a consequência da norma, quer da primária, quer da eventual, é

uma conduta humana possível empiricamente. Então, agora, num segundo momento, vamos

estatui como sanção a aprovação, e para o caso do não-cumprimento, a desaprovação, não é considerada tão essencial como a ligação entre ambas as normas em questão no domínio do Direito”. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.182 (35). 146 Com a ligação da norma primária à eventual por meio do disjuntivo, alinhamo-nos ao grande VILANOVA: “O esquema da norma jurídica toma a forma ‘deve ser que se H, então C’, ou ‘D (H→C)’. Abrangendo a norma primária e a norma secundária [nossa norma eventual], temos ‘D [(H→C) v (não-C→E)]’”. Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.94 (II.12). 147 Dado “p”, então deve ser “q”; ou dado “~q”, então deve ser “ev”. Quanto a “q”, de forma mais especificada, temos (O, V, P)q. No entanto, também podemos modalizar “ev” com O, V ou P? Pela homogeneidade sintática das normas sim, mas há aqui uma questão ontológica própria. A proibição de aplicar a conduta eventual em face de não realização da conduta devida ligar-se-ia à ideia de tolerância: certa conduta é devida, entretanto, caso ocorra, será tolerada, e não se aplicará como resposta a conduta eventual. Todavia, há problema grave com esse ponto de vista, pois, com a aplicação de tolerância às condutas, estar-se-ia retirando a própria juridicidade da norma, já que do direito, de forma geral, diz-se que não recomenda nada a ninguém, ficando, portanto, por essa linha, seu caráter coativo prejudicado. Já a permissão de aplicar a conduta eventual é uma espécie de delegação do caso à conveniência do julgador. Segundo o alvitre do julgador, dada a delegação, ele poderia ou não aplicar a eventualidade, haja vista a não ocorrência da conduta devida. A ideia, nesse caso, seria renunciar à segurança jurídica e prestigiar ao máximo a concepção de justiça. De todo modo, continua, para a permissão da aplicação da conduta eventual, o mesmo problema verificado na proibição de sua aplicação, já que, mesmo em grau mais atenuado, ainda se encontra em jogo a coação do direito, que parece estar sendo afastada. 148 Jeremy Bentham, Uma introdução aos princípios da moral e da legislação, p.14 (III). 149 “[...] o positivismo jurídico assume uma atitude científica frente ao direito já que, como dizia Austin, ele estuda o direito tal qual é, não tal qual deveria ser”. Norberto Bobbio, O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito, p.136 (II.I.33)

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prosseguir com os ajustes e classificar essas condutas prescritas. Contudo, como há duas

condutas prescritas, uma na norma primária, outra na norma eventual, devemos fazer uma cisão

desse estudo. Iniciaremos, então, pela conduta prescrita na norma primária, o que nos permite

classificar essa norma em duas espécies: de conduta e de competência.

Leciona ROSS:

As normas jurídicas podem ser divididas, de acordo com seu conteúdo imediato, em dois grupos: normas de conduta e normas de competência. Ao primeiro grupo pertencem as normas que prescrevem uma certa linha de ação [...]. O segundo grupo contém as normas que criam uma competência (poder, autoridade) — são diretivas que dispõem que as normas que são criadas em conformidade com um modo estabelecido de procedimento serão consideradas como normas de conduta150.

Esse mesmo modo de classificar as normas jurídicas está presente em outros grandes

juristas, mas com nomenclaturas diferentes. HART fala de norma primária e de norma

secundária151. BOBBIO, que inicialmente se valeu da expressão norma de estrutura152, prefere

normas de organização ao lado de normas de conduta153. Se quisermos voltar um pouco na

história, cabe uma narrativa na qual a estrutura escalonada do direito — o que nos permite o

uso dos termos inferior e superior154 — passa a ser presente na doutrina com a adoção, por

KELSEN, do conceito de Stufenbau (construção em nível), formulado inicialmente por um

aluno seu, MERKL155.

150 Alf Ross, Direito e justiça, p.57 (II.7). 151 “Por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, aos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas acções, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados”. Herbert Hart, O conceito de direito, p.91 (V.1). 152 “Existem normas de comportamento ao lado de normas de estrutura”. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, p.45 (2.3). 153 “São normas de conduta as que, limitando a própria obra à coordenação de ações individuais, estabelecem as condições para obter o máximo de independência dos indivíduos que convivem entre si. São normas de organização as que, mediante um trabalho de convergência (forçada) de ações sociais, estabelecem as condições para proporcionar o mínimo de dependência necessário a indivíduos que cooperam entre si”. Norberto Bobbio, Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito, p.121 (6). 154 “A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.247 (V.2.a). “A norma que determina a criação de outra norma é a norma superior, e a norma criada segundo essa regulamentação é a inferior”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.181 (XI.A) 155 “Nos hauptproblemen der Staatsrechtslehre (Problemas Principais da Teoria Jurídica-Estatal, 1911) fundamento da Teoria Pura do Direito, Kelsen se concentra, por completo, na análise das leis. A elaboração das leis e a execução das leis permanecem, conscientemente, excluídas. A obra foi dedicada, portanto, a uma consideração estática do direito. Isso mudou, porém, sob a influência do discípulo de Kelsen, Adolf Merkl (1890-1970). No prólogo da segunda edição (não modificada) dos Hauptproblemen (1923), Kelsen escreveu sobre o desenvolvimento da doutrina, afirmando que havia ‘tomado a teoria do escalonamento como parte essencial no

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Variedade à parte quanto à terminologia, de certo temos uma classificação da norma

primária em duas espécies, tudo a depender da conduta regrada: a de produzir normas e as

demais condutas156. Ambas as normas são proposições prescritivas, ou seja, está presente nas

duas o dever-ser de conduta (empiricamente possível) na forma permitida, proibida ou

obrigatória. Só que agora, há uma conduta bem definida. Há um conteúdo semântico para

apartá-las. O que se permite, proíbe ou obriga é a conduta de pôr enunciado que, uma vez

interpretado, dar-nos-á norma jurídica. No entanto, isso não muda que tanto a norma jurídica

fundada como a norma jurídica fundante apresentam a mesma estrutura.

Vamos expor essas ideias valendo-nos de uma notação ainda mais simples do que a

anteriormente usada para a exposição da estrutura da norma jurídica. Um enunciado é posto.

Desse enunciado é obtida uma significação, a norma Np (norma primária). Essa significação

estabelece o dever-ser (D) de conduta de alguém (S1), ou seja, “q”, num dos modos obrigatório,

proibido e permitido (O, V, P). Esse dever, entretanto, somente se verifica diante da ocorrência

de uma situação prévia, de um ser, ou seja, “p”. Nesse caso, diz-se que a prescrição é hipotética

imputativa. Deve ainda ser posto outro enunciado, do qual se obtém um dever de conduta

eventual, ou seja, Nev (norma eventual), de outrem (S2), no modo obrigatório; e dizemos

eventual porque apenas deve surgir, prescrição hipotética imputativa, diante da não ocorrência

da primeira conduta devida, ou seja, “~q”. Ambas essas normas, proposições hipotéticas, são

ligadas pelo disjuntivo (˅). Há, então, a norma completa, qual seja, Nc ≡ (Np ˅ Nev)157.

Mas isso ainda não nos diz se estamos diante de uma norma jurídica. Essa é a estrutura

mínima da norma jurídica, em sua forma completa, mas não é ela uma exclusividade sua.

Apenas estamos diante da norma jurídica “N”, se presente uma outra norma jurídica, na

verdade, uma sobrenorma (sN), que disponha quem é o sujeito a que se permite ou obriga —

pode inclusive haver uma proibição de promulgar-se determinadas normas jurídicas —,

mediante certo procedimento e com tal conteúdo, pôr (ou alterar ou excluir) um enunciado cujo

sentido subjetivo deve ser entendido como sentido objetivo, ou seja, como norma jurídica. A

essa norma “sN” é que denominamos, com ROSS, de norma de competência.

sistema da Teoria Pura do Direito”. Robert Walter, A teoria pura do direito, in: Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.50 (III.1) 156 Há o conjunto universo de todas as condutas humanas possíveis empiricamente. Há o subconjunto das condutas humanas empiricamente possíveis que consistem em pôr, alterar e excluir normas jurídicas. E há o subconjunto complementar. Essa é a teoria por traz da classificação, ou seja, “[...] dado um universo U, e um conjunto A contido em U, o complemento de A, em símbolo Ᾱ, é o conjunto de todos os elementos que não pertencem a A”. Cezar Mortari, Introdução à lógica, p.48 (4.4). 157 [D(p→(O, V, P)S1q)˅(~q→OS2ev)]. Assim, se “p”, então deve ser, num dos modos, obrigatório, proibido ou permitido, a conduta “q” de “S1” ou não sendo “q”, então deve ser obrigatória a conduta “ev” de “S2”.

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A norma de competência é assim denominada em razão de um conteúdo específico, a

conduta de pôr (ou alterar ou excluir) norma jurídica, e não por uma diferença estrutural interna.

E se lembrarmos da homogeneidade sintática que aqui adotamos — as normas jurídicas são (bi)

bimembres — a norma de competência é apenas uma parte da sobrenorma completa, ou seja, é

uma sobrenorma primária. Há necessidade, portanto, de verificarmos a norma eventual que se

liga a essa sobrenorma primária, para obtermos a sobrenorma jurídica completa de competência

(sNc).

Uma “sNp” prescreve: dada certa situação “sp” (hipótese da sobrenorma), que pode

ser toda e qualquer situação inclusive, mediante determinada forma, com certo conteúdo, é

permitido ou obrigado,podendo ainda ser utilizado o modal proibido, ao sobresujeito “sS1”

(autoridade158) a conduta “sq” (consequência da sobrenorma), que quando pôe ou altera um

enunciado, cuja é ele interpretação como uma norma jurídica N. Entretanto, pode ser que N

tenha sido posta sem que se tenha dada a hipótese “sp”, ou que tenha sido respeitada a forma

ou ainda sem o conteúdo escorreito. O que vamos, aqui, com fins de simplificação, chamar de

“~sq”. Nesse ponto, então, faz-se necessária a sobrenorma eventual “sNev”.

Dado que toda parte de norma jurídica é dual, então ambas as partes da sobrenorma

são duais, e assim, a norma eventual da sobrenorma é igualmente dual159. Logo, se uma norma

“N” é posta sem as devidas observâncias estabelecidas em sN, ou seja, “~sq”, então deve ser,

da parte de “sS2”, a conduta eventual “sev”. Indo além e verificando o conteúdo dessa norma

eventual, podemos fazer uma distinção entre as que invalidam as normas postas e as demais

condutas, tudo na linha do conjunto complementar. Quanto à invalidação, pode ela assumir os

mais variados nomes, a depender do tipo de norma que se invalide: inconstitucionalidade,

158 “Por autoridad de una prescripción entendemos el agente que da o emite la prescripción”. G. Henrik von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.91 (V.7). 159 Que as normas de competência, por serem normas de conduta indireta, são direito vigente, já nos ensinou ROSS, mas também lecionou que apenas sob certas condições essa assertiva é possível. “É possível se as normas de competência tiverem como efeito a anulabilidade. [...]. A interpretação também é possível [...] se as normas de competência têm como efeito a responsabilidade. [...]. Se, entretanto, uma norma de competência não tem um ou outro desses efeitos, sua interpretação como norma de conduta indiretamente formulada dirigida aos tribunais não é possível”. Alf Ross, Direito e justiça, p.76 (II.10).

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ilegalidade, anulabilidade etc160. O subconjunto complemento, por sua vez, contém as condutas

voltadas para a autoridade que pôs a norma jurídica161.

A norma jurídica primária, a depender do conteúdo, é norma de competência, ou seja,

é norma jurídica que prescreve a produção, alteração ou exclusão de outras normas jurídicas. A

norma eventual, de igual modo, pode ser classificada a depender de seu conteúdo. Num caso, a

conduta é a de invalidar a norma posta em desacordo com a norma de competência. E para essa

situação, conduta eventual “sev” de invalidação de norma “N”, a título de definição nominal162,

vamos valer-nos da expressão “conduta de garantia”:

Na sua essência, a garantia repousa (embora não se esgote) num juízo de conformidade ou desconformidade perante a norma garantida; procura-se saber se um acto ou uma norma de grau inferior são conformes ou desconformes com uma norma de grau superior e, no caso de desconformes, procura-se inutilizá-las163.

Portanto, a conduta de garantia seria uma espécie do gênero “conduta eventual”. Na

norma de competência, um mínimo semântico, a conduta é de pôr, alterar ou excluir a norma

jurídica. Na norma eventual, outra dose de conteúdo, a conduta é de invalidação ou de garantia.

Assim, resguardados os casos em que a eventualidade seja voltada para a autoridade que

exerceu a competência, a estrutura completa da norma de competência, com conteúdo mínimo,

é: em determinadas circunstâncias, que pode ser toda e qualquer, sob certa forma, é permitido

ou obrigatório, ou mesmo proibido, pôr enunciado, seguindo um procedimento, com adequado

conteúdo, cuja significação deve ser tida por sentido objetivo, ou seja, como norma jurídica,

ou, não sendo o prescrito seguido ao pôr a norma jurídica, então deve ser obrigatória a conduta

de garantia, de invalidação, dessa norma jurídica posta.

160 KELSEN usou “des verfassungswidrigen Gesetzes” para Lei adversa à Constituição, “der gesetzwidrigen Verordnung” para Regulamento adverso à Lei e “des gesetz- oder verordnungswidrigen Urteils oder Verwaltungsaktes” para Sentença ou Ato Administrativo contrário à Lei ou ao Regulamento. Hans Kelsen, Reine rechtslehre, 1.aufl., p.94 (V.31.h). “É o problema da norma contrária à norma, que se apresenta aqui: a lei inconstitucional, o regulamento e a sentença ou o ato administrativo contrários à lei ou ao decreto”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.140 (V.31.h). Em espanhol: “[…] el problema de la norma contraria a otra norma superior, el problema de la ley inconstitucional, del reglamento ilegal, de la sentencia o del acto administrativo antirreglamentarios”. Hans Kelsen, Teoría pura del derecho, 1.ed., p.97 (V.31.h). 161 “[...] a maioria das Constituições não prevê, de modo algum, a revogação de leis inconstitucionais e se contenta com a possibilidade de tornar pessoalmente responsáveis certos órgãos [...]”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.142 (V.31.h). “Se o governo edita decretos [...] sob outras condições que não as determinadas pela Constituição, podem ser por isso responsabilizados e punidos os membros do governo que editaram o decreto. Este processo não tem de estar ligado com um processo destinado a anular à lei, se bem que o possa estar”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.304 (V.2.j). 162 “A definição nominal é entendida [...] como espécie de convenção que sugere alternativa para uma expressão lingüística previamente dada”. Leonidas Hegenberg, Definições: termos teóricas e significado, p.28 (2.3). 163 Jorge Miranda, Contributo para uma teoria da inconstitucionalidade, p.212 (III.A.106).

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2.10 INVALIDAÇÃO

A norma primária é dirigida a “S1”, já a eventual é dirigida a “S2”. Com isso queremos

dizer que, diante da hipótese, ou se dá a conduta devida por “S1”, ou, não sendo a conduta

devida por “S1”, então deve ser a conduta devida por “S2”. Nisso reside a apontada

homogeneidade sintática do direito, ou seja, todas as normas do ordenamento jurídico possuem

a mesma estrutura. E se assim é, então as normas de competência também apresentam igual

formulação. Dada a hipótese, então deve ser a conduta — permitida, proibida ou obrigatória —

de pôr a norma jurídica “N”. Amiúde, de forma mais ou menos genérica, estabelece “sN” o

conteúdo que deve possuir “N”. Conteúdo esse que pode ser prefixado de forma positiva ou

negativa, sendo, na maioria das vezes, usadas ambas as formas. Claro que não significa isso

que “N” será cópia de “sN”, pois “[m]esmo uma ordem o mais pormenorizada possível tem de

deixar àquele que a cumpre ou executa uma pluralidade de determinações a fazer”164. Além do

conteúdo, ainda pode ser estabelecido, por “sN”, um rito para enunciar o suporte do qual se

obterá N. Com efeito, essa deve ser a conduta de “sS1” ao criar “N”. Ocorre que essa norma

“N” produzida pode estar em desacordo com “sN”.

Ser e dever-ser, tal divisão é a nossa visão de mundo. Portanto, ser uma conduta devida,

é uma coisa; agora se ela é ou será, então nos referimos a outra coisa. Assim, por conduta

devida, não se entende a conduta que será. Logo, é possível compreender que mesmo sendo

devida a conduta de pôr norma jurídica, por determinado rito, com certo conteúdo, nem toda

norma “N” será posta de acordo com a norma de competência “sN”. Não há de se imaginar,

portanto, alguma coisa na linha de um “mundo jurídico ótimo”165. Assim, uma norma jurídica

“N” pode ser posta em desacordo com a norma jurídica “sN”, mas, nesse caso, então deve ser

uma conduta de “sS2” que a invalide, que a garanta. Ou é a norma “N” válida ou deve ser a

norma “N” invalidada166.

164 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.388 (VIII.1.a). “Deve haver sempre um espaço, ora maior, ora menor, de livre estimativa, de modo que a norma de grau mais alto, em relação ao ato de produção da norma ou da execução, tenha uma moldura que preencha esse ato”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.147 (VI.32). 165 “En MJO, el poder legislativo sólo dicta leyes de acuerdo a la constitución, el poder ejecutivo sólo dicta reglamentos autorizados por las leyes [...] y el poder judicial [...] sólo dicta sentencias [...] de acuerdo y conforme a las normas válidas. En MJO no hacen falta mecanismos como el control de constitucionalidad o la apelación de sentencias”. José Juan Moreso, Sobre normas inconstitucionales, in: Normas jurídicas y estructura del derecho, p.88 (V). 166 É dessa forma que lemos KELSEN quando ele expõe que “[a]s determinações constitucionais que regulam a legiferação têm o caráter de determinações alternativas. A constituição contém uma regulação direta e uma regulamentação indireta da legiferação; e o órgão legislativo tem a possibilidade de opção entre as duas”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.302-303 (V.2.j). “A determinação da norma inferior, através da superior, possui [...] o caráter de uma prescrição alternativa”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.144 (V.31.h).

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56

Com o entendimento de que uma norma jurídica deve ter certo conteúdo e ser posta

segundo tal procedimento, deve vir junto a concepção de que nem sempre isso se dará. Ocorre

que não ter a temática devida ou o enunciado ter sido produzido segundo uma técnica diversa

da prescrita não faz com que a norma “N” seja inexistente. E se nosso ponto de apoio é a

doutrina que prega a existência como validade, então podemos afirmar que se “N” existe, então

“N” é válida. Com efeito, aceitamos que as normas jurídicas são válidas mesmo que não

observem o disposto na norma de competência.

Uma norma “N” existe, mas apresenta conteúdo, ou foi posta, em desacordo com a

sobrenorma primária “sNp”. Disso decorre que é então invalidável, nos termos da sobrenorma

eventual “sNev”, não que seja, desde o início, inválida. “Existem, contudo, diferentes graus de

anulabilidade”167. Ela pode dar-se no tempo, a partir da existência da norma eventual que

invalida a norma jurídica ou, com efeitos retroativos, desde a existência da própria norma

jurídica que se invalida. Há, assim, um enunciado posto por “sS2” que invalida a norma jurídica

N, ou seja, que lhe retira a validade, com efeitos ex tunc ou ex nunc, mas sempre há a

necessidade desse enunciado para que deixe de existir a norma jurídica, não havendo, portanto,

algo como uma invalidade desde o início, ab ovo, que dispense a atuação humana. Se o homem

pôs, cabe ao homem retirar, simples assim168.

“sS1” põe “N” ou “sS2” garante “N”. Em linguagem reduzida, essa é a estrutura

sintática da norma jurídica de competência em sua disposição completa. No entanto, apesar de

falarmos de uma sobreautoridade que invalida a norma, “[...] não pode excluir-se que qualquer

indivíduo considere como ‘nulo’ algo que subjetivamente se apresenta como norma jurídica”169.

Mas isso, claro, “[...] sob o risco de ter a sua conduta, caso seja contrária à norma, considerada

pelo órgão competente como delito [...]”170. Isso porque “S1” deve conduzir-se conforme “Np”

ou “S2” deve conduzir-se conforme “Nev”. No entanto, pode “S1” entender que “N” será

invalidada por ter sido posta em desconformidade com “sN”, e então não agir como devido.

Mas, de “S1” assim interpretar “N”, diante do conjunto de normas jurídicas da qual faz parte, é

167 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.230 (I.XI.H.e). “[...] uma norma pertencente a uma ordem jurídica não pode ser nula mas apenas pode ser anulável. Mas esta anulabilidade prevista pela ordem jurídica pode ter diferentes graus”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.306 (V.2.k). 168 Deixamos aqui de tratar do caso das normas jurídicas que deixam de existir por se tornarem ao longo do tempo ineficazes, situação para a qual KELSEN utiliza o termo latino “desuetudo”, que significa abandono: “A desuetudo é como que um costume negativo cuja função essencial consiste em anular a validade de uma norma existente”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p. 237 (V.1.g). No entanto, ainda para KELSEN, “[...] enquanto não houver desuetudo (desuso), a não aplicação da lei significa uma situação de fato antijurídica”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.131 (V.30.d). 169 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.307 (V.2.k). 170 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.231 (I.XI.H.e). “[...] e, portanto, seja ordenada a execução da sanção estatuída nesta norma jurídica”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.306 (V.2.k).

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contida, não decorre que “S2” também assim lerá “N”. Pode mesmo “S2” nem ter a autorização

para julgar a invalidade de “N” em face de “sN”, sendo tal competência apenas de “sS2”. As

dúvidas, ou mesmo certezas, de “S1”, quanto à validade, ou seja, a existência de N, em razão

de seu conteúdo ou correção de sua criação, segundo o procedimento prescrito, não são

suficientes para negar a existência da norma jurídica posta. No entanto, ainda resta a questão:

¿Por qué ante una ley inconstitucional es necesario acudir ante los organismos judiciales pertinentes y, eventualmente, derogar la norma inconstitucional, mientras que nadie considera seriamente la derogación o la aplicación de una norma emitida por un loco, o por un actor en el escenario?171.

Até agora, fizemos referências a dois pontos que podem ser tratados na norma de

competência: conteúdo e procedimento. Entretanto, não tocamos no assunto do sujeito

competente para pôr, alterar ou excluir a norma jurídica. Quanto aos dois primeiros pontos,

entendemos que o descumprimento do procedimento, bem como o descompasso com o tema,

leva à invalidade, ou seja, que a norma de competência deve ser garantida. No entanto, não

podemos perder de vista que, se uma norma de competência pode prescrever a forma e o

conteúdo, isso não significa que necessariamente precisa fazê-lo para que tenha sentido. Basta

que prescreva que os enunciados, desde que deem proposições bem formadas, postos por certo

sujeito, são normas jurídicas, sem qualquer remissão a conteúdo ou a procedimento para

positivar o enunciado. Já quanto à autoridade, não pode haver omissão. No mínimo, a norma

jurídica deve especificar quem pode pôr outra norma jurídica, mas, com efeito, já não precisa

dizer nem como nem com que conteúdo. Assim,

[...] a determinação do órgão é o mínimo do que tem de ser determinado na relação entre uma norma superior e uma norma inferior. Com efeito, uma norma cuja produção não é de forma alguma determinada por uma norma superior não pode valer como uma norma posta dentro da ordem jurídica e, por isso, pertencem a essa ordem jurídica; e um indivíduo não pode ser considerado como órgão da comunidade jurídica, a sua função não pode ser atribuída à comunidade, quando não seja determinado através de uma norma da ordem jurídica que constitui a comunidade, o que significa: quando lhe não seja atribuída autorização ou competência para a sua função por uma norma superior172.

Há a autoridade que põe, o procedimento com que se põe e o conteúdo do que se põe.

Esses são dados da sobrenorma, da norma de competência, para criar uma norma jurídica. No

entanto, o procedimento e o conteúdo não são indispensáveis, e mesmo que a sobrenorma os

171 José Juan Moreso, Algunas observaciones sobre las nociones de orden jurídico y sistema jurídico, in: Normas jurídicas y estructura del derecho, p.28 (I.4). 172 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.261 (V.II.f).

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exija, a inobservância deles tem como efeito a invalidade, que deverá ainda ser aplicada. Só que

o mesmo não se dá com a autoridade competente. O enunciado (de dever-ser) é no mundo e,

portanto, identificado por mera observação. Para tanto, o foco principal é o sujeito que o

positiva. Dispensa-se, assim, a esse elemento, o sujeito, um tratamento diverso do dado ao

conteúdo e ao procedimento. Com efeito, estamos falando de algo prima facie. O enunciado,

do qual o sentido subjetivo é o objetivo, ou seja, a norma jurídica, existe porque foi posto por

autoridade competente. Só que, em relação a esse órgão, não pode haver, num primeiro

momento, dúvidas, mesmo que, depois, um outro órgão se firme como, de fato, o competente e

venha-o afastar.

Não olvidamos que tal ponto de contato com a realidade, descendo do pedestal da

sintaxe, causa desconforto, pois essa certeza em relação à autoridade competente para pôr a

norma jurídica pode ser lida como um mundo jurídico ótimo, o qual já negamos aqui adotar.

Todavia, deixamos em aberto a porta do “mínimo de eficácia”. Sem esse nexo com a realidade,

estaríamos impossibilitados de saber se um conjunto de normas imaginado por alguém,

principalmente quando minucioso, com muitos detalhes, é ou não direito. No entanto, não

pretendemos adotar um realismo jurídico duro, o que nos autoriza a falar do direito como um

dever-ser que é. De toda forma, o direito é um dever-ser que é, havendo uma ponte entre os

mundos. E tal ponte é o “mínimo de eficácia”, que se manifesta por meio da autoridade que põe

a norma jurídica. Assim, a certeza sobre o órgão que dispõe sobre a norma jurídica não advém

do plano sintático — não é relação —, ou do plano semântico — não é o quem —, mas do plano

pragmático173.

Tem de haver órgãos supremos sobre cuja competência já não poderão decidir órgãos superiores, cujo caráter de supremos órgãos legislativos, governativos (administrativos) ou jurisdicionais já não pode ser posto em questão. Eles afirmam-se como órgãos supremos pelo fato de as normas por eles postas serem globalmente eficazes174.

O enunciado existe, é uma questão de fato, pois é por meio da observação que dele

sabemos. Entretanto, estende-se, igualmente, a investigação à autoridade que o assentou175.

173 As fontes jurídicas podem ser explicadas, grosso modo, segundo duas posições. “Em geral, para os adeptos da versão fraca, o critério identifica a autoridade e obrigatoriedade das regras [...], dado que a forma pela qual são reconhecidas é uma questão de fato que constitui o critério. Já para adeptos da versão forte, em geral, como o critério desempenha função normativa, então quem detém autoridade e obrigatoriedade é o critério, como uma regra jurídica de determinado conteúdo (embora nem posta, nem válida)”. Juliano Maranhão, Positivismo jurídico lógico-inclusivo, p.36 (2.2). 174 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.306 (V.II.j). 175 Do enunciado, deslocamo-nos um passo atrás, para a autoridade que pôs o enunciado. MARANHÃO, em sentido contrário, verifica uma necessidade de se ir do enunciado para a interpretação do texto: “Tem-se,

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59

Assim, se prima facie se reconhece a autoridade competente — o que ocorre em razão da

eficácia —, então o enunciado é um enunciado jurídico176. E se queremos simplificar ainda mais

o processo de investigação, podemos, no momento atual em que nos encontramos, dispensar a

busca por quem é a autoridade que pôs o enunciado e nos limitarmos a indagar do local onde

foi assentado esse enunciado. Assim, a pergunta é: onde se encontra o suporte fático do

enunciado do qual podemos obter como interpretação norma jurídica? Nos diários oficiais177, é

possível responder, pois “[...] dado o processo moderno de publicar as leis em colectâneas

oficiais, também só muito excepcionalmente surgirão dificuldades na determinação do

texto”178. Logo, autoridade competente, órgão apto a pôr a norma jurídica, é quem faz os

enunciados positivos surgirem no mundo, gravando-os em plataforma que é reconhecida,

mínimo de eficácia, como portadora do material que, se interpretado, dá-nos as normas

jurídicas.

2.11 CLASSIFICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS: ABSTRATA-CONCRETA,

OCORRENTE-EVENTIVA, GERAL-INDIVIDUAL

A norma jurídica, numa redução sintática mínima, é bimembre179. Ou seja, [D (p→q)].

Se “p”, então deve ser “q”. Ou, de forma estendida, dado o fato, então deve ser a conduta. Mas,

de forma mais detalhada, não podemos olvidar quem deve praticar a conduta, ou seja, o sujeito.

necessariamente, que lidar com o sentido dos textos como condição para validar até mesmo a versão fraca de objetividade”. Juliano Maranhão, Positivismo jurídico lógico-inclusivo, p.101 (3.5). Isso porque, para o ilustre professor da USP, “[...] deixar a interpretação do lado de fora empobrece demais o poder explicativo da teoria e o deixa vulnerável ao ataque interpretivista. A carga colocada pelos exclusivistas nas costas da tese da discricionariedade é muito pesada”. Ibidem, p.119. 176 NEVES adota uma divisão entre validade e pertinência da norma jurídica. Com base nessa ideia, uma norma jurídica pode ser inválida e pertinente. Quanto à validade, verificam-se questões formais e materiais. Quanto à pertinência, foca-se na suficiência do ato que as pôs: “[...] a lei inconstitucional é norma pertinente invalidamente ao ordenamento jurídico estatal. [...]. [...] pertence na medida em que foi posta por órgão de produção normativa previsto na Constituição (há suporte fático suficiente do ato legislativo) enquanto não forem aplicadas por órgão competente as ‘regras de rechaço’ do sistema, seja revogação ou ato especial de expulsão por invalidade. Isto porque o sistema jurídico funciona com base no princípio da autoridade, o que implica, do ponto de vista pragmático, a imperatividade de suas normas inválidas”. Marcelo Neves, Teoria da inconstitucionalidade das leis, p.80 (V.2). 177 Nem sempre pode ser simples identificar algo como um “diário oficial”. Nesses casos, não há como não se voltar diretamente à autoridade: “E não basta que a lei seja escrita e publicada, é preciso também que haja sinais manifestos de que ela deriva da vontade do soberano. Porque os indivíduos que têm ou julgam ter força suficiente para garantir os seus injustos desígnios, e levá-los em segurança até os seus ambiciosos fins, podem publicar como lei o que lhes aprouver, independentemente da autoridade legislativa ou mesmo contra a ela. Portanto, não basta apenas uma declaração da lei, são necessárias também sinais suficientes do autor e da autoridade”. Thomas Hobbes, Leviatã, p.232-233 (2.XXVI). 178 Karl Engisch, Introdução ao pensamento jurídico, p.128 (IV). 179 Em sua completude, é (bi) bimembre, ou seja, [D (p→q)˅(~q→ev)].

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Então, em notação simples, [D (p→Sq)]. Se “p”, então deve ser “q” por “S”. Demarcados esses

elementos, então é possível elaborarmos uma classificação das normas jurídicas180.

Podemos falar sobre o passado, sobre o presente ou ainda sobre o futuro181. O que se

afirma, ou se nega, sobre o passado ou sobre o presente, é verdadeiro ou falso. Do futuro, o que

se diz é possível ou impossível, ou ainda, de forma mais específica, provável ou improvável.

Essas são nossas valências. Em suma, a questão é: “quando algo aconteceu, acontece ou

acontecerá?”182. A resposta a tal indagação é formulada em linguagem, que, por sua vez, é no

tempo, havendo, por conseguinte, uma relação de anterioridade, simultaneidade ou

posterioridade entre essa formulação da linguagem e o mundo. Referimo-nos, então, a tempo

na linguagem e tempo da linguagem. Pode-se ainda cuidar do mundo de forma atemporal. Nesse

caso, o que se expõe é apreciado a partir de ter ou não sentido, ser cognoscível, e ainda, nos

termos deste trabalho, ser possível empiricamente, mas há uma abstração de qualquer relação

temporal com o mundo, havendo, portanto, tempo da linguagem, mas não tempo na linguagem.

Assim, encontramos dois conjuntos: o formado de “p”, cujo conteúdo tem relação temporal de

passado e ou de presente com o mundo e, portanto, é ou não é; e o conjunto complemento de

“p”, que, ou não apresenta relação de temporalidade com o mundo ou estabelece essa relação

de forma meramente possível ou provável, quer sem tempo definido, quer definido no futuro,

e, portanto, ambas não podem ser verificadas como verdadeira ou falsa. Agora, podemos então

denominar “p”, cujo conteúdo tem relação de anterioridade ou simultaneidade com o mundo,

de “concreto”. Ademais, uso do termo “concreto” para o que se passa ou o que se passou não

deve causar maiores embaraços, pois “‘[c]oncreto’ aplica-se muitas vezes a algo que é tomado

como real no sentido de que é efetivo e experimentável pela sensação”183. Já para os membros

do subconjunto complemento de “p” que não são concretos, então o designamos de “abstrato”.

Com efeito, nosso subconjunto complemento é formado de proposições cujo conteúdo é

separado, isolado, ou seja, é apartado do mundo temporal184. E mesmo no caso de predições

180 Rigorosamente falando, se a proposição “q” é quem faz o que, quando e onde, então o sujeito “S” não está ao lado de “q”, mas é sim contido em “q”. 181 “[...] todo passado é substituído por um futuro, e todo futuro segue um passado, mas todo passado e futuro são criados e descendem daquilo que é sempre presente [...]”. Santo Agostinho, Confissões, p.312 (XI.X.13). 182 “Por ‘linguagem temporal’ designamos qualquer parte ou característica da linguagem que contenha informação sobre o tempo e a localização temporal de coisas e eventos”. Hugh Lacey, A linguagem do espaço e do tempo, p.14 (I.2) 183 José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia: verbete “concreto”, p.112. No mesmo sentido, ABBAGNANO: “Os filósofos designam habitualmente com o termo elogioso de C. aquilo que se insere em seu critério de realidade. Por isso, nem sempre o C. é o individual, o singular, a coisa ou o ser existente, como se poderia crer e como talvez indique o uso comum do termo”. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “concreto”, p.170. 184 “[...] no sentido filosófico mais tradicional, [o termo abstração] é uma operação intelectual que consiste em ‘extrair’, ‘separar’, ‘isolar’ elementos que, na experiência, são inseparáveis”. Regina Schöpke, Dicionário filosófico: verbete “abstração”, p.12 (esclarecemos entre parênteses).

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sobre o futuro — o mundo será, mas ele ainda não é —, onde há temporalidade projetada, ainda

assim seria lícito o termo “abstração”, pois continuaríamos descolados do real, tomando esse

termo pelo que é ou pelo que foi, pois o que pode ser ainda não é real e, portanto, não é concreto.

Ao analisarmos “p”, então sabemos se a norma jurídica é concreta ou abstrata, isso a

depender da temporalidade. Se o conteúdo de “p” é ou foi, então “p” é concreto, agora, se não

há tempo definido ou a conduta se apresenta como uma projeção no futuro, então “p” é abstrato.

Dito isso, devemos nos debruçar sobre “Sq”. Tomamos como vinculante para este trabalho a

incomunicabilidade de mundos, do ser e do dever-ser. O que deve ser não significa que já foi,

está sendo ou mesmo que será. Pode até ter sido, estar sendo, ou provavelmente, no futuro, ser,

mas isso em nada interfere no que entendemos por dever-ser. De toda sorte, mesmo quando há

uma previsão temporal para “q”, ela nunca será no passado ou no presente. Ademais, quando

no futuro, essa projeção não vaticina que a conduta “q” será, apenas que deve ser em um

período, data, instante ou momento. Assim, viável concluir que “q” nunca poderá ser uma

proposição concreta, pois, enquanto formula uma conduta devida, essa conduta sempre será

uma abstração do mundo, já que nem foi nem é, sendo, com isso, não aplicável à proposição

“q”, quando significando a consequência da norma, os valores verdadeiro/falso. Logo, se “p” é

possível adjetivar de concreto ou abstrato, por questão temporal, com “q’ isso não é possível,

já que o dever-ser é sempre programado à frente. Assim, uma divisão classificatória de “q”,

para ser viável, deve ancorar-se em outro ponto que não o temporal. Dito isso, nossa proposta

é uma distinção entre ocorrência e evento185. Por essa diferenciação, ou a conduta “q” deve ser

algo único, singular, num tempo e num espaço delimitados, ou “q” limita-se a notas gerais e

universais. Por essa classificação, a individualização é ancorada não no tempo da conduta, pois

185 Estamos valendo-nos aqui dos termos “ocorrência” (occurrence) e “evento” (event), a partir do seu uso por POPPER: “[...] seja pk um enunciado singular (o indicie ‘k’ refere-se a norma ou coordenadas individuais que ocorrem em pk). Então chamamos de ocorrência Pk a classe de todos os enunciados equivalentes a pk. [...]. [...] sejam Pk, P1, ... elementos de uma classe de ocorrências que somente diferem com respeito aos indivíduos (posição ou região espaço-temporais) em pauta; a essa classe chamamos de ‘evento (P)”. Karl Popper, A lógica da pesquisa científica, p.94 (IV.23). De modo geral, essa separação entre o único e aquilo que é comum pode ser vista em PEIRCE, que, no entanto, utiliza-se dos termos ocorrência (token) e tipo (type): “Geralmente há cerca de vinte the’s numa página e, naturalmente, são contados como vinte palavras. Num outro sentido da palavra ‘palavra’, no entanto, há apenas uma palavra ‘the’ na língua inglesa; [...]. Ela não existe [palavra] não existe; apenas determina coisas que existem. Proponho que se denomine Tipo uma tal Forma definidamente significante. Um evento Singular que acontece uma vez e cuja identidade está limitada a esse acontecimento único [...], aventuro-me a denominá-la de Ocorrência (Token)”. Charles Peirce, Semiótica, p.177-178 (4.537). Posição e nomenclatura que foram adotadas por ECO: “É justamente o fenômeno do reconhecimento que nos leva a falar de tipo, precisamente, como parâmetro para confrontar ocorrência”. Umberto Eco, Kant e o ornitorrinco, p.115 (3.3.1). Por fim, cabe ressalvar que a palavra “evento” apresenta grande relevância na teoria da relatividade de EINSTEIN, equivalendo à ocorrência de POPPER (occurrence) e PEIRCE (token): “[...] o mundo dos eventos físicos [...] é naturalmente de quatro dimensões no sentido espaçotemporal. Pois ele se compõe de eventos individuais, cada um dos quais descrito por quatro números, a saber, as três coordenadas espaciais x, y, z e uma coordenada temporal, o valor do tempo t”. Albert Einstein, A teoria da relatividade especial e geral, p.49 (17).

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ela sempre se referirá a um modo futuro projetado, independentemente da expressão linguística

do enunciado, mas sim a uma única, precisada e delimitada conduta, que não pode ser replicada.

Assim, estaríamos falando de “ocorrência”. Já quando a conduta é apenas genérica, replicável,

dado por meio de notas, que não se exaure em si mesma, faltando uma pormenorização que vai

além dos pontos dados, então estamos diante de um “evento”.

Sobre “p”, dizemos que é “concreto” ou “abstrato”, sobre “q” afirmarmos ser ele ou

um “evento” ou uma “ocorrência”, mas ainda temos, no trato da consequência normativa, a

questão de a conduta ter de ser praticada por alguém, ou seja, ainda devemos investigar o sujeito

“S”. E “[p]or sujeto (o sujetos) de una prescripción entiendo el agente (o agentes) a quienes la

prescripción es dirige o da. A los sujetos se les manda o permite o prohíbe por la autoridad

hacer y/o abstenerse de ciertas cosas”186. Dado então o que seja sujeito da norma jurídica, de

pronto, podemos descartar os casos em que a norma jurídica não teria sujeito, pois alguém deve

praticar a conduta ou omitir-se. Logo, nossas possibilidades são reduzidas ou a todos, ou a

algum (ns), ou a especificamente um. De forma geral, todos ou alguns é uma questão relativa187,

pois dado do sujeito “S” o gênero “₰” e a espécie “s”, sendo que “s’ pertence a “₰” (s ₰),

então se pode formular a norma jurídica: todo “s”, que é algum (ns) de ₰, deve “q” quando “p”;

ou algum (ns) “₰” com a propriedade “s” deve, quando “p”, “q”. Também podemos construir

que dado “p”, então algum (ns) “₰” sem a propriedade “s” deve “q”188. O que nos importa, em

todos esses casos, é que não há a particularização do sujeito, permitindo-nos que, para fins de

classificação, agrupemos todos eles, membros do conjunto “q”, num mesmo subconjunto. De

um outro lado, temos aquilo que, numa função proposicional, seria uma constante individual, e

que, no caso da norma jurídica positiva, em substituição à constante individual, é um nome

próprio189. Classificaríamos então a norma jurídica, a depender do sujeito que deve realizar ou

omitir “q” quando “p”, para mantermos os termos clássicos que a doutrina utiliza190, de

186 G. Henrik von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.93 (V.9). 187 “[...] toda classe divisível em classes reais [...] é um gênero para tudo o que está abaixo dela, uma espécie para todos os gêneros em que ela própria está incluída”. John Stuart Mill, Sistema de lógica dedutiva e indutiva, p.153 (I.VI.2). 188 Como sempre haverá um destinatário da norma, quem deverá realizar ou omitir a conduta, casos como ninguém deve a conduta “q” precisam ser tratados com cuidado. Primeiramente, porque o deve aqui se refere ao dever-ser implicacional e não aos modos de conduta. E, em segundo ponto, sem discutirmos as normas derivadas, poderíamos construir que a obrigação de ninguém realizar “q” equivale à permissão de todos realizarem “q”, uma vez que “[...] toda norma jurídica pode ser referida através de uma proibição e vice-versa”. Fábio Ulhoa Coelho, Roteiro de lógica jurídica, p.57 (17). 189 “Nome próprio é uma expressão (palavra, símbolo) que denota um objeto específico”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “nome”, p.143. 190 Utilizando particular e geral, temos von WRIGHT: “Diremos que una prescripción es particular con relación a su sujeto cuando se dirija a un individuo humano específico. [...]. Diremos que una prescripción es general en relación a sus sujetos cuando se dirija a todos los hombres sin restricción o a todos los hombres que respondan a una determinada descripción”. G. Henrik von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.94 (V.9).

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“individual”, quando o sujeito é singular, um nome próprio, e “geral”, quando não há

especificação precisa.

Como síntese, podemos expor que, em relação à hipótese normativa, a norma jurídica

é “abstrata” ou “concreta”, a depender da questão temporal, de já se ter ou não verificado no

mundo seu conteúdo. Já quanto à consequência, a norma jurídica, a depender da conduta

prescrita, que sempre é para o futuro, é uma “ocorrência” ou um “evento”. No primeiro caso,

ocorrência, há uma individualização, uma especificação; no segundo caso, evento, há notas que

podem ser mais ou menos genéricas, sem haver uma exata precisão. Por fim, ainda na

consequência normativa, há o sujeito que deve realizar a conduta (ação ou omissão). Pode ser

um indivíduo, representado por um nome próprio, particularizado, o que nos leva a denominar

a norma jurídica de “individual”, ou pode ser um sujeito indeterminado, mesmo que

determinável de forma mais ou menos genérica, o que permite então falar de norma jurídica

“geral”. Poderemos agora combinar os resultados encontrados, tanto na hipótese como na

consequência, o que nos permite falar em oito (23) espécies de normas jurídicas191. Assim,

temos as normas jurídicas: 1) concreta, ocorrente e individual; 2) concreta, ocorrente e geral;

3) concreta, eventiva e individual; 4) concreta, eventiva e geral; 5) abstrata, ocorrente e

individual; 6) abstrata, ocorrente e geral; 7) abstrata, eventiva e individual; e 8) abstrata,

eventiva e geral.

Por fim, devemos afastar qualquer ideia de que o direito positivo somente é constituído

de normas gerais e abstratas. A proposição prescritiva, cujo conteúdo apresenta um sujeito

Valendo-se de individual e geral, temos BOBBIO: “[...] julgamos oportuno chamar de ‘gerais’ as normas que são universais em relação aos destinatários [...]. […]. Às normas gerais se contrapõem as que têm por destinatário um indivíduo singular, e sugerimos chamá-la de normas individuais; [...]”. Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p.180-181 (VI.48). 191 BOBBIO combina apenas as propriedades da consequência (sujeito e conduta), desconsiderando a hipótese: “[...] combinando-se os quatro requisitos, o da generalidade, o a abstração, o da individualidade e o da concretude, as normas jurídicas podem ser de quatro tipos: normas gerais e abstratas [...]; normas gerais e concretas [...]; normas individuais e abstratas [...]; normas individuais e concretas [...]”. Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p.183 (VI.48). Ainda cuidando somente da consequência normativa, temos VON WRIGHT: “Llamaremos a una prescripción particular, si es particular con relación al sujeito y a la ocasión. [...]. Llamaremos a una prescripción general, si es general con relación al sujeto o a la ocasión (o a ambos). Se es general con relación a ambos, al sujeto y a la ocasión, la llamaremos eminentemente general”. G. Henrik von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.97 (V.11). De igual modo, KELSEN classifica as normas jurídicas com foco unicamente na prescrição: “Uma norma é individual, principalmente, se o elemento pessoal como o material da conduta in concreto, quer dizer, como a única conduta de uma pessoa individual determinada, é estabelecida como devida. [...]. Todas as outras normas são gerais, mas o caráter geral pode ter diversos graus”. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.358 (nota de fim n.10). Ao que parece, segundo CHIASSONI, é uma tradição analisar apenas a prescrição, que remonta no mínimo a BENTHAM, pois, para este último, as normas jurídicas são totalmente gerais (general throughout), quando “[...] dirigem-se a classes de sujeitos ativos e concernem as classes de comportamentos (‘objetos’)”. Por outro lado, a norma jurídica é totalmente particular (particular throughout) quando está “[...] versando sobre um ato determinado de um sujeito ativo determinado”. Há ainda as normas parcialmente gerais (partly general) e parcialmente particulares (partly particular). Pierluigi Chiassoni, O enfoque analítico na filosofia do direito: de Bentham a Kelsen, p.95 (I.12.3).

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particular que deve, no lugar certo e no instante exato, ter a precisa conduta, também é uma

norma jurídica192 — na verdade, parte da norma jurídica, que é (bi)bimembre (ver 2.8) —, desde

que se funde em uma outra norma jurídica, conforme dispõe o requisito dinâmico para a

identificação do jurídico. Por essa linha, o direito é o conjunto de normas jurídicas, dispostas

de forma relacional, sem maiores preocupações quanto à especificação de seu conteúdo, a não

ser a possibilidade empírica. Agora, a depender da posição ocupada pela norma jurídica na

cadeia, no transcorrer do processo de positivação, ora essa norma vai ser denominada de

“constituição”, ora de “lei”, ou ainda, estando mais ao pé da pirâmide, de “sentença”. Ser lei ou

ser sentença é um tema que envolve posição dentro do ordenamento jurídico, que não se

confunde com ser ou não norma jurídica193. Isso porque questões como generalização e

abstração para todas as normas jurídicas contidas em leis devem ser vistas mais na linha do

desejo para que as coisas sejam de determinada forma do que um requisito de existência da

norma jurídica. De fato, “[j]ulgamos que a consideração da generalidade e abstração como

requisitos essenciais da norma jurídica tenha uma origem ideológica não lógica [...]”194.

Portanto, que o mundo seja belo e justo, disso este autor também comunga, juntamente, temos

certeza, com o leitor. Agora, caso o mundo não seja nem belo nem justo, da forma como

gostaríamos que fosse, disso não concluímos que não seja o mundo.

192 “O Direito não consiste apenas em normas gerais. O Direito inclui normas individuais, i.e., normas que determinam a conduta de um indivíduo em uma situação irrepetível e que, portanto, são válidas apenas para um caso particular e podem ser aplicadas apenas uma vez”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.53 (I.I.C.b). “Desde os escritos mais antigos, Kelsen atribui à distinção entre normas jurídicas gerais e individuais a função crítica de refutar o modo de ver, difundido na teoria geral do direito do século XIX, segundo o qual o direito estaria composto por normas gerais. Segundo Kelsen e a Escola de Viena, pelo contrário, o direito se compõe também de normas individuais, exemplificadas sobretudo pelas sentenças judiciais”. Pierluigi Chiassoni, O enfoque analítico na filosofia do direito: de Bentham a Kelsen, p.469 (V.5.4). 193 “[...] todas as leis são julgamentos ou sentenças gerais do legislador, tal como cada julgamento particular é uma lei para aquele cujo caso é julgado”. Thomas Hobbes, Leviatã, p.242 (2.XXVI). 194 Norberto Bobbio, Teoria da norma jurídica, p.182 (VI.48)

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II – NORMA TRIBUTÁRIA

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PARTE II.I – PROPEDÊUTICA

“There's a sign on the wall But she wants to be sure

'Cause you know sometimes words have two meanings”195 Stairway to heaven, by Jimmy Page e Robert Plant

Um trabalho que se propõe a conceituar tributo deve deixar claro, de pronto, o que

entende por conceituar. Isso porque, embora possua significado especializado, é termo de uso

corrente, para o qual geralmente não dispensamos maiores cuidados. E é nisso que reside uma

das grandes dificuldades dos estudos acadêmicos, não só deste: como conciliar a linguagem

comum, natural, em que será escrito o trabalho, usada por todos, com termos técnicos, cujos

significados são específicos, mas que igualmente fazem parte do vocabulário do dia a dia. Isso

fica evidente no caso da palavra “conceito”, para a qual, apesar de constar em dicionários

refinados, não carece o falante de uma grande erudição para empregá-la196. No final, nem é

preciso ter conhecimento de que deriva do latim conceptum nem, muito menos, precisa saber-

se que sua primeira ocorrência na língua portuguesa data de 1572197.

Uma das formas de lidar com essa dificuldade seria abandonar a linguagem natural e

redigir o estudo em uma linguagem menos sujeita a variações198. Entretanto, essa proposta não

pode ser levada muito a sério, a não ser para determinados nichos, pois, além do empenho para

um autor assim se conduzir ainda se obrigaria o leitor a ter também conhecimento dessa nova

linguagem, como condição prévia de compreensão. Ademais, eufemisticamente falando, há um

certo quê de descortesia com o auditório a quem o estudo é dirigido, no querer que ele se adapte

ao autor e não que o autor se adeque ao auditório. Desse modo, a técnica da formalização da

escrita, por exemplo, pode ser apenas um recurso secundário, um reforço, e não o mecanismo

195 Disponível em https://www.letras.mus.br, acesso em 27.10.2019. Livremente: “Há uma placa na parede / Mas

ela quer ter certeza / ‘Porque, você sabe, às vezes as palavras têm duplo sentido”. 196 Encontramos o verbete “conceito” em diferentes dicionários especializados, tais como Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica, p.38, Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia, p.164-169, e Jean Dubois et al., Dicionário de lingüística, p.135. 197 Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa: verbete “conceito”, p.168. 198 “[...] tentei reduzir o conceito de sucessão em uma seqüência [...] à noção da conseqüência lógica [...], para daí poder estabelecer o conceito de número. Para evitar que nessa tentativa se intrometesse inadvertidamente algo intuitivo, cabia tudo reduzir a uma cadeia inferencial [...] carente de qualquer lacuna. Mas ao tentar realizar essa exigência da forma a mais rigorosa possível, deparei-me com o obstáculo da insuficiência da linguagem [corrente]: além de todas as dificuldades inerentes ao manuseio das expressões, à medida que as relações se tornavam mais complexas, tanto menos apto me encontrava para atingir a exatidão exigida. Tal dificuldade levou-me a conceber a presente conceitografia”. Gottlob Frege, Conceitografia, in: ______. Lógica e filosofia da linguagem, p.44-45 (Prefácio) (esclarecimento entre colchetes do tradutor).

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principal, quando o público-alvo do discurso não for nela versado. Afinal, que círculo do

inferno deve habitar o jurista que não sabe lógica?199

Em razão disso, procuramos uma outra forma de fugir da atribulação, qual seja, a

pactuação. Mas, que bem se entenda, não de tudo, o que nos levaria igualmente a uma

linguagem própria, caminho inviável, mas apenas de termos caros ao trabalho. Assim, iniciamos

pactuando um significado para o vocábulo “conceito” — para só então conceituarmos tributo

—, o que permite que esse início, essa parte propedêutica, seja lido como a elaboração de um

conceito de conceito200. Contudo, como o foco de estudo é, al fin y al cabo, o conceito de

“tributo”, e não o conceito de “conceito”, não nos vemos na obrigação de algo extremamente

rebuscado, o que nos permite utilizá-lo como sinônimo de “definição” e de “noção”, dando as

palavras por intercambiáveis201. Logo, conceituar, definir ou apresentar uma noção de tributo

serão por nós tratados como expressões comutáveis, sendo o próprio uso do termo “conceito”

feito por nós, e não de outros similares, decorrente de uma escolha (ver 3.1).

Se, entretanto, não vemos carência de distinguir os termos “definição” e “noção” do

vocábulo “conceito”, o mesmo não podemos dizer quando a oposição se dá entre “conceito” e

“tipo”. Nesse caso, mister se faz dissociar o que concebemos por conceito daquilo que

compreendemos por tipo. Tipificar ou conceituar tributo são, portanto, coisas distintas, não

equiparáveis. Vejamos. Identifica-se um objeto no mundo; ponto um. Quer-se saber se tal objeto

é um tributo; ponto dois. Pactua-se uma proposição-modelo de tributo; ponto três. Coteja-se as

propriedades do objeto com as propriedades proposição-padrão; ponto quatro. Como

possibilidade, encontra-se: a) coincidem, b) coincidem parcialmente, c) não coincidem

parcialmente, d) não coincidem202. Dado isso, se o objeto identificado deve ser lido como um

conceito, então apenas será uma tributo havendo a). Em todos os outros casos b), c) e d), não

há de se falar de tributo. Contudo, se deve ser lido como um tipo, então o objeto delimitado

apenas não será um tributo em d), sendo com certeza em a), e podendo ser, a depender do

199 “‘Por mim se vai à cidade das dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se vai à gente condenada. Foi Justiça que inspirou o meu Autor; fui feito por Poderes Divinais, Suma sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e eu, eterno, perduro. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais!’. Estas palavras, em letreiro escuro, vi escritas por cima de uma porta. Eu disse: ‘Mestre, o sentido delas me é obscuro’”. Dante Alighieri, A divina comédia, p.17 (III). 200 Conceituar “conceito” não parece algo tão paradoxal quando nos lembramos do clássico livro de Ogden e Richards, O significado de significado. 201 As palavras que analogicamente associam-se a conceito são muitas, das quais vale menção a “Significação, significado, sentido, definição, expressão, acepção, [...], conteúdo, [...], texto, contexto [...]”. Francisco Ferreira dos Santos Azevedo, Dicionário analógico da língua portuguesa: ideias afins / thesaurus: verbete “significação”, p.223. 202 Coincidir parcialmente e não coincidir parcialmente é apenas uma questão de grau.

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contexto, de modo presumível em b) e, de maneira improvável, em c). A leitura de tributo como

tipo ou como conceito leva a situações distintas (ver 3.3).

Dito isso, resta-nos expor que, ao conceituarmos “tributo”, inicialmente associaremos,

relação de função, o termo à expressão “norma jurídica”; ato contínuo esclareceremos que não

é qualquer norma jurídica que seria tributo, mas apenas aquelas com tais e tais propriedades de

ordem semântica, apontadas por pactuação; assim é porque, uma vez que sintaticamente todas

as normas jurídicas são iguais, exclusivamente, por esse plano, a distinção não seria possível.

Agora, o fato de ser tributo conceituado como norma jurídica com particular propriedade não

nos desobriga de uma melhor precisão, o que nos leva a apartar “conceito de tributo no direito”

de “conceito de tributo do direito” (ver 3.2).

Que as normas jurídicas são prescrições de condutas condicionais, disso não temos

dúvidas (ver 2.5). No entanto, isso não impede que haja fragmentos de normas que pareçam

estar exercendo a função de batizar outras normas jurídicas, de imergi-las e fazê-las surgir

renascidas203. Era antes só norma jurídica, agora é norma jurídica adjetivada. Aqui se encontra

o que denominamos de “conceito no direito”. É o direito “falando” de si mesmo. Assim, a

depender do direito positivo, podemos encontrar enunciados (fragmentos de normas) que

conceituam tributo. No entanto, aparências à parte de descrição em tais situações, a função

prescritiva encontra-se presente, pois o direito, tomado como direito positivo, não ensina nada

a ninguém, pois o que faz é permitir, proibir ou obrigar.

Com isso, uma vez conhecido o que entendemos por conceito no direito, temos então

de disciplinar do que seja “conceito do direito”. Em um primeiro momento, pode simplesmente

ser uma proposição declaratória sobre uma proposição prescritiva. Assim, o conceito de tributo

do direito teria por foco o conceito de tributo no direito. No entanto, a conceituação do direito

de tributo pode ter um campo bem maior, não cuidando de norma específica alguma,

apresentando como função principal não uma descrição específica, mas a de aglutinadora de

normas jurídicas. Por essa linha, o rótulo “tributo” é um marco com fins de sistematização de

várias normas jurídicas, normas que não são dadas anteriormente ao conceito, como se aquele

203 “[Mt] 3,6 ‘eram batizados por ele no rio Jordão’: o ‘batismo’ (báptisma) concretiza gestualmente a ‘mudança de mentalidade’ [...]. A essência semântica da palavra grega está no étimo BAPH, que encontramos tanto no verbo báptô (mergulhar alguma coisa em água) como no substantivo baphê, em que o étimo surge na forma pura. O substantivo báptisma designa (em grego clássico) o ato de mergulhar um ferro incandescente me água, para lhe fortalecer a têmpera, mas também significa o ato de mergulhar um tecido para tingir. Aquilo que é objeto de batismo torna-se mais consistente na sua têmpera e, ao mesmo tempo, é sujeito a uma mudança. Muda literalmente de cor”. Frederico Lourenço, Notas, in: Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.68 (esclarecemos entre colchetes).

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fosse uma generalização delas, mas que são agrupadas posteriormente ao redor do conceito.

Conceito esse que não é revelado, mas dado por pactuação.

Ao conceituarmos tributo, conceito do direito, fá-lo-emos à guisa de um espelho,

respeitando a estrutura da norma jurídica, hipotética-condicional, saturada de particular

conteúdo, a ser pactuado. Com isso teremos meios de encontrar a norma de tributação, o que se

dá no plano estático. Mas também conceituaremos tributo no plano dinâmico, com foco no

processo de positivação normativo, o que, então, permitir-nos-á compreender a competência

tributária como norma-fundamento da norma de tributação (ver 5), bem como abarcar a relação

existente entre a norma de tributação e o lançamento tributário, que, em uma teoria normativa,

não pode ser outra coisa que não uma norma jurídica (ver 6). Assim, exsurgirá o conceito

trilógico de tributo — norma de competência, norma de tributação e norma de lançamento —,

respeitando, para tanto, duas regras, uma interna e outra externa. Internamente, o trabalho deve

ser coerente; externamente, deve ser útil. Se é coerente, a cada escolha, a cada passo, tentaremos

demonstrar que sim. Se é útil, isso cabe a outrem julgar.

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3 PACTO SEMÂNTICO

3.1 DEFINIR, CONCEITUAR OU DAR UMA NOÇÃO DE TRIBUTO?

Que os problemas do mundo são problemas de linguagem, é uma afirmação que,

obviamente, não procede204. Agora, que os problemas jurídicos, entendidos como aqueles com

que se preocupam os teóricos do direito, são problemas de linguagem, já não nos pareceria uma

afirmação tão difícil de endossar205. Afinal, que outra explicação haveria para que uma questão

tão elementar como “o que é o direito?” ainda desperte tantas dúvidas nos juristas?206

Igualmente, “o que é tributo?” é uma pergunta que põe em polvorosa a comunidade tributária,

recebendo as mais variadas respostas. E, mais uma vez, estamos diante de um estado de

perplexidade, pois como podem os tributaristas divergir tanto a respeito de um tema central?

Deixando de lado, por improvável, a hipótese de que cada jurista queira ter uma

resposta para chamar de sua, trocando o “mas” usado por um outro tributarista pela sua mais

estilística conjunção adversativa “porém”, parece-nos bem aceitável que a discrepância resida

no estarem partindo de posições díspares, o que os leva a pontos de chegada diversos207. Na

204 WITTGENSTEIN, com a ressalva “no essencial”, dá por resolvidos os problemas: “[...] a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolvi de vez os problemas”. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, p.133 (Prefácio). Não quis, no entanto, dar por resolvidos os problemas do mundo, sendo bem mais modesto, pois o que ficou resolvido, de forma “intocável e definitiva”, foram os problemas da filosofia, podendo passar então a ocupar-se de outras atividades: “Wittgenstein em 1919 acredita que o Tractatus fornecia a solução definitiva para todos os problemas da filosofia, na medida em que eram solucionáveis, e então voltou sua atenção para outras ocupações. Ele frequentou um instituto de formação de professores, e de 1920 até 1926 lecionou em escolas primárias [...]”. A. J. Ayer, Wittgenstein, p.5 (I). No original: “Wittgenstein in 1919 believed that the Tractatus supplied the definitive solution to all the problems of philosophy, so far as they were soluble, and therefore turned his attention to other pursuits. He attended a teacher’s training college, and from 1920 till 1926 taught in elementar schools [...]”. 205 Para que os problemas jurídicos possam ser lidos como problemas de linguagem, subjaz a ideia de que o direito é linguagem. Afirmação que pode causar certo desconforto em alguns. Visando a atenuá-la, ponderou CARVALHO: “Não é ele [o direito] a própria linguagem, mas nela reside, numa forte relação dialética. Afasta-se, desse modo, o excesso da proposição segundo a qual o direito seria a linguagem mesma”. Paulo de Barros Carvalho, Prefácio, In: Joana Lins e Silva, Fundamentos da norma tributária, p.9. 206 Sobre a pergunta “o que é o direito?”, afirmou HART: “[...] nada de suficiente conciso, susceptível de ser reconhecido como uma definição, lhe podia dar uma resposta satisfatória”. Herbert Hart, O conceito de direito, p.21 (I.3). 207 Dá-nos nota GRECO que — em aula no IV Curso de Especialização em Direito Tributário, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, no dia 29 de setembro de 1973 — apontou CARVALHO, para o termo “tributo”, cinco usos distintos: “1. o dinheiro entregue ao Estado; 2. o comportamento de entregar dinheiro; 3. a obrigação jurídica cujo objeto é a entrega de dinheiro; 4. a norma jurídica que prevê a entrega; 5. a relação jurídica do tipo 3 instala por força da ocorrência de fato previsto na norma jurídica”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.32-33. Posteriormente, em sua tese de livre-docência na PUC/SP (1981), CARVALHO identificou então seis empregos do termo tributo: “[o] vocabulário ‘tributo’ é utilizado com nada menos de seis significados diversos, tanto pela doutrina, quanto pela jurisprudência e pelo próprio direito positivo”. Paulo de Barros Carvalho, A regra-matriz do ICM, p.64. O significado novo que apareceu foi o de “[...] fenomenologia da incidência fiscal, isto é, não só a norma instituidora, mas o fato concreto nela descrito e o laço abstrato que se precipita ao ensejo da ocorrência daquele evento”. Paulo de Barros Carvalho, A regra-matriz do ICM, p.77. Posição que manteve em

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seu Curso (1985), afirmando que os seis significados que se acoplavam ao significante “tributo” são: “quantia em dinheiro”, “prestação correspondente ao dever jurídico do sujeito passivo”, “direito subjetivo de que é titular o sujeito ativo”, “sinônimo de relação jurídica tributária”, “norma jurídica tributária” e “norma, fato e relação jurídica”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 1.ed., p.14. Já mais recentemente, pero no mucho, em tese apresentada para obtenção da titularidade no Largo de São Francisco (1997), fez um acréscimo, passando a serem sete os significados de “tributo”: “Hoje, não teria dúvidas em acrescentar outra dimensão de sentido [...]. A palavra ‘tributo’ é usada para denotar o procedimento completo de instauração de normas, desde a primeira autorização competencial, até as últimas providências normativas para a satisfação do direito subjetivo da entidade tributante”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.78. A partir desse pequeno histórico, reconhecemos, sem qualquer dúvida, a polissemia do termo “tributo”, ao lado do fato de que, há muito, é conhecida a questão pela doutrina. Afinal, seja como for — no início, eram cinco, depois seis, por fim, sete —, há várias associações ao vocábulo. No entanto, essa engorda de significados do termo “tributo” serve para entendermos que não são eles algo encontrados pela razão, de forma dedutiva, mas pela observação, que, assim, não estão todos eles dados, esses significados, prontos para serem descobertos, a espera de alguém brilhante. O que se faz é, na verdade, indicar que a palavra “tributo” é utilizada pela doutrina, pelo legislador, pela jurisprudência, com vários significados. O caso é de descrição do uso da linguagem. Agora, a priori, de antemão, não há nenhum mundo das ideias para ser acessado e então descobrirmos qual venha a ser o real significado de tributo. Nessa linha, uma via adequada para apontar os vários significados do termo tributo é a consulta às posições dos doutrinadores (nada impedindo que se estenda a investigação à legislação e às decisões judiciais), para então agrupá-las ao redor de núcleos. Assim, não se pode afirmar serem “apenas” sete as acepções possíveis de associação à palavra tributo, o que nos faz tomar a lista de CARVALHO de forma exemplificativa, bem como não devemos ver as separações entre os significados de forma muito rígida. Afinal, se dissermos que tributo é espécie do gênero “receita pública derivada” — que não consta em nenhuma das versões da lista de significados do professor paulista —, estaríamos usando a palavra numa nova acepção além das sete ou isso estaria contido na ideia de “dinheiro” e não haveria, portanto, necessidade de um tratamento individualizado? Ademais, quando a lista sofre um acréscimo, com a aceitação de que a palavra tributo possa também significar “processo de positivação”, não se estaria dizendo algo redundante, que já estaria compreendido no entendimento de tributo como “norma, fato e relação jurídica”? Assim, de nossa parte, dar-nos-emos por satisfeitos em apontar a diversidade com que o vocábulo é usado pela doutrina, sem contudo qualquer caráter de exaustividade. 1. Na acepção de “dinheiro” (ou outro objeto para os que entendem ser possível tributos in natura): “A relação jurídica tributária [...] vincula o sujeito passivo ao sujeito ativo, impondo ao sujeito passivo o dever de efetuar uma predeterminada prestação e atribuindo ao sujeito ativo o direito de obter a prestação. O tributo é o objeto daquela prestação que satisfaz aquele dever”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.261. “[...] optamos pela utilização do vocábulo tributo [...] com a acepção da dívida tributária, de quantum debetur (sic). De tributo como objeto da prestação”. Aires Barreto, Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais, p.89. 2. Como “receita derivada”: “[...] definir tributo como sendo receita derivada que o Estado arrecada mediante o emprego da sua soberania [...]”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p.39. “Tributo é a receita pública derivada do patrimônio dos particulares [...]”. José Eduardo Soares de Melo, Curso de direito tributário, p.46 (itálico do autor). “Os tributos [...] são as receitas derivadas que o Estado recolhe do patrimônio dos indivíduos [...]”. Ruy Barbosa Nogueira, Curso de direito tributário, p.159. “[...] [tributos] se definem como receitas derivadas obtidas pelo Estado do patrimônio de particulares [...]”. Amílcar Falcão, Introdução ao direito tributário, p.7. 3. No sentido de “prestação pecuniária” em favor do Estado: “[...] a essência jurídica do tributo é ser prestação pecuniária compulsória em favor do Estado ou de pessoa por este indicada (parafiscalidade) [...]”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.92. “Tributo é a prestação pecuniária [...] devida ao Estado ou a entidades não estatais de fins de interesse público”. Luciano Amaro, Direito tributário brasileiro, p.25. “O tributo é uma prestação pecuniária coativa de um sujeito (contribuinte) ao Estado ou outra entidade pública que tenha direito de exigi-lo”. Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.49. “[...] os tributos são prestações pecuniárias compulsórias, que o Estado exige de seus súditos em virtude do seu poder de império”. Kiyoshi Harada, Direito financeiro e tributário, p.314. “[...] tributos son las prestaciones [...] que el Estado exige em ejercicio de su poder de imperio, [...]”. Héctor Villegas, Curso de finanzas, derecho financiero y tributario, p.117. “Designa [tributo] os ingressos públicos (prestações pecuniárias) derivados obtidos do (sic) Estado no exercício de poder fiscal (compulsoriamente, através da lei fiscal)”. Bernardo Ribeiro de Moraes, Curso de direito tributário: sistema tributário da Constituição de 1969, v.1, p.228 (esclarecemos entre colchetes). “[...] tributos como prestações pecuniárias impostas [...] pelo Estado [...]”. Zelmo Denari, Curso de direito tributário, p.48. “[...] tributo é prestação originalmente pecuniária [...]”. Eduardo Jardim, Manual de direito financeiro e tributário, p.137.

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verdade, o que muito deveria surpreender é que alguém ainda fique pasmado, após realizar um

inventário comparativo das posições doutrinárias, por encontrar tantas respostas para o que seja

tributo. Ora, se os tributaristas cuidam de coisas distintas, ainda que debaixo do mesmo nome,

então nada mais natural do que aportem em lugares variegados208. O termo “tributo” assume,

assim, a função de uma ilusão — a dos ídolos do mercado — que a mente bloqueia209.

4. Na acepção de “relação jurídica”: “[...] definimos tributo [...] como obrigação (relação jurídica)”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.31. “[...] tributo corresponde a uma relação jurídica existente entre Estado e contribuinte [...]”. Regina Helena Costa, Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional, p.105. “[...] o comportamento humano decorrente da necessidade estatal de obter recursos [...] originou uma relação jurídica obrigacional de dar [conceito ontológico do tributo], de proporcionar ao Estado a obtenção de tais meios”. Ylves José de Miranda Guimarães, O tributo: análise ontológica à luz do direito natural e do direito positivo, p.49 (esclarecemos entre colchetes). De forma mais específica, entendendo tributo como objeto da relação jurídica tributária: “[tributo é] [...] o objeto da relação jurídica de direito público interno”. Renato Becho, Lições de direito tributário: teoria geral e constitucional, p.65-67 (esclarecemos entre colchetes). “Tributo é o objeto da relação tributária”. Sergio Martins, Manual de direito tributário, p.79. 5. Na acepção de “norma, fato e relação jurídica”: “Tributo “[...] é a relação jurídica que se estabelece entre o Fisco e o contribuinte (pessoa colhida pelo direito positivo), tendo por base a lei, em moeda, igualitária e decorrente de um fato lícito qualquer”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.347. 6. Ressaltando o caráter de “dever fundamental” (o que não afasta que seja uma prestação): “Tributo é o dever fundamental [...]”. Ricardo Lobo Torres, Curso de direito financeiro e tributário, p.375. “[...] [tributo] se trata de um dever fundamental [...] decorrente do Estado de Direito”. Irapuã Beltrão, Curso de direito tributário, p.22 (esclarecemos entre colchetes). “[...] o imposto se nos apresenta como um dever fundamental, isto é, um instituto jurídico que tem a sua disciplina traçada ao mais alto nível — ao nível constitucional —, onde integra a ‘constituição do indivíduo’”. José Casalta Nabais, O dever fundamental de pagar impostos, p.185. 7. Significando “norma jurídica”: “[...] tributo é norma jurídica, ao menos no que tange à sua configuração estática”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.99. “[...] um estudo científico deve procurar extremar o tributo de outras categorias jurídicas em função das previsões nele contidas, entendido como norma jurídica”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.36. “Tributo é a norma jurídica geral, não autônoma [...]”. Américo Lacombe, Obrigação tributária, p. 110. “O conhecimento do tributo passa necessariamente pelo conhecimento da norma, pois, afinal, tributo é norma”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.70. “Tributo, do ponto de vista sintático-semântico, pode ser definido como uma norma primária dispositiva, geral e abstrata [...]”. Carlos Renato Cunha, O SIMPLES nacional, a norma tributária e o princípio federativo, p.81-82. “[...] tributo deve ser entendido como norma jurídica de tributação ou simplesmente norma tributária [...]”. Márcio Severo Marques, Classificação constitucional dos tributos, p.88. 8. Com foco no “processo de positivação”: “[...] o processo de instituição (criação) do tributo, iniciado com a outorga constitucional da competência tributária, se integra, observadas as respectivas competências, com a superveniência das leis complementares, ordinárias e eventualmente outros atos normativos”. José Souto Maior Borges, A fixação em lei complementar das alíquotas máximas do imposto sobre serviços, p.6. Há, ainda, a mudança de posição de VIEIRA, agora afirmando que a Constituição cria tributo: “Diante da atribuição constitucional de competência tributária, já dispomos de norma que desenha o perfil mínimo de um tributo, outorgando-lhe, no menor grau possível, uma inquestionável identidade. [...]. Ora, se tributo é norma, como já reconhecemos, em companhia de larga e respeitável doutrina, perante tal norma constitucional, é inevitável concluir: a constituição criou tributo”. José Roberto Vieira, E, afinal, a Constituição cria tributos, in: Heleno Tôrres (coord.), Teoria geral da obrigação tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges, p.639. 208 “Los adversarios hablan dos lenguajes distintos; la pena es que creen hablar el mismo lenguaje, creen que la razón de disputar no está en la diversidad del lenguaje, sino en la diversidad de la cosa en sí a la que se refieren con aquellas palabras. [...]. [...] el hecho de que muchas controversias entre juristas sean desde el principio insolubles no significa que todas estas controversias sean inútiles. Son inútiles las que se salen de las condiciones mismas en las que es posible una ciencia”. Norberto Bobbio, Ciencia del derecho y análisis del lenguaje, in: ______. Contribucion a la teoria del derecho, p.186-187 (9). 209 “[...] os homens acreditam que a razão controla as palavras. Mas também é verdade que as palavras revidam e reaplicam sua força ao entendimento”. Francis Bacon, Novo Órganon [instauratio magna], p.61 (I.LIX). As outras ilusões são: ídolos da tribo, da caverna e do teatro. No direito tributário brasileiro, ninguém tratou tão bem do assunto quanto BECKER: “Esclarecer é explicar as premissas. O conflito entre as teorias jurídicas do Direito

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O termo “tributo”, sem dúvidas, é equívoco, o que pode causar muitas dificuldades,

levando-nos, então, a tomar parte para sua determinação, mas, já adiantamos, não haverá

nenhum arremate surpreendente ou estrambótico, nenhuma verdade a ser revelada, nenhum

final arrebatador, com as escusas devidas a quem esperava outra coisa, pois não se trata, afinal,

de um livro de suspense. Dito isso, e lembrando que já dedicamos o Capítulo 2 a sedimentar

nossa posição de que o direito é o conjunto das normas jurídicas válidas, todas elas iguais

sintaticamente, sendo distintas apenas semanticamente (ver especialmente 2.5), não seria agora

que diríamos outra coisa de tributo, a não ser que é uma norma jurídica, com a mesma estrutura

de outras normas, mas com particular conteúdo. Entretanto, expor que tributo é norma jurídica

significa exatamente o quê? Estamos, ao proceder assim, definindo-o? Conceituando-o? Ou,

quiçá, apresentando uma noção?

Antes de prosseguirmos, devemos ter em conta que o termo “conceito” pode tanto ser

oposto à definição como ao tipo. A partir desses dois pontos, vamos, nesse primeiro momento,

cuidar da dicotomia “conceito” versus “definição”, relegando para tópico posterior (3.3) o

confronto entre “conceito” e “tipo”.

Como nos ensina KANT, há filosoficamente uma diferença entre os vocábulos

conceito e definição, pois “[...] definir não deve significar propriamente mais do que apresentar

originariamente o conceito pormenorizado de uma coisa dentro dos seus limites” 210. Assim, o

que nos faz passar do conceito à definição é a oscilação de grau, no sentido da especificidade211.

Entretanto, de haver na grande filosofia uma distinção, não significa que devemos, de pronto,

aplicá-la ao jurídico. Uma linguagem especializada deve ser incorporada a outras áreas com o

devido cuidado, após se perguntar, além da possibilidade de aplicação, sobre os ganhos

decorrentes dessa incorporação, ou seja, sobre a sua servência. Sendo assim, com essas

Tributário tem sua principal origem naquilo que se presume conhecido porque se supõe óbvio. De modo que de premissas iguais em sua aparência (a obviedade confere uma identidade falsa às premissas) deduzem-se conclusões diferentes porque cada contendedor atribuiu um diferente conceito às premissas ‘óbvias’. Esta dualidade de conclusões deixa ambos os contendedores surpresos e perplexos (pois partiram das ‘mesmas’ premissas ‘óbvias’) sem que um possa convencer o outro da veracidade de sua respectiva conclusão”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário. p.11. 210 Immanuel Kant, Crítica da razão pura, p.589. E prossegue aquele que nasceu na terra dos cavaleiros teutônicos, Königsberg, local que hoje se chama Kaliningrado: “[...] um conceito empírico não pode ser definido, mas apenas explicitado. [...]. [...] também não se pode definir nenhum conceito dado a priori, por exemplo, substância, causa, direito, equidade, etc. [...]. [...] como não podemos definir os conceitos dados empiricamente, nem os dados a priori, restam apenas aqueles que são pensados arbitrariamente e nos quais posso tentar esta operação”. Ibidem, p.589-590. 211 Posição que nos parece próxima à de VIEIRA, para quem, “[d]essa larga generalidade do conceito, pode-se alcançar, mediante a delimitação, a restrita especificidade da definição [...]”. José Roberto Vieira, Medidas provisórias tributárias e segurança jurídica: a insólita opção estatal pelo “viver perigosamente”, in: Eurico de Santi (coord.), Segurança jurídica na tributação e estado de direito, p. 329-330.

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ressalvas, perguntamos nós, é possível medirmos a especificidade de uma afirmação como

“tributo é norma jurídica”, e então cravarmos se é ela uma definição ou conceito?

Na verdade, por mais que haja a diferenciação filosófica entre definição e conceito,

parece-nos que os autores preferem chamar de conceito a resposta que dão à pergunta “o que é

tributo?”, por um outro motivo que não o grau de especificidade212. Arriscamos dizer que é um

não se comprometer, pois, assim, estariam vacinados contra a crítica de que não foram

minuciosos o suficiente, já que estariam apenas conceituando e não indo às últimas

consequências, com todas as minúcias, ou seja, definindo. Por essa linha, do mero esboço,

imunizando-se de pareceres em contrário, cremos que o melhor, grau máximo de humildade,

nem seria fazer referência a conceito, mas sim a algo ainda mais lato, como uma noção, ou seja,

“[...] uma idéia ou conceito suficientemente básico”213. Dizer que tributo é norma jurídica não

passaria, então, de apresentar uma noção.

De nossa parte, por mais que tenhamos procurado no auditório dos tributaristas, não

encontramos uma demarcação clara do porquê uns falam que apresentam uma definição, outros

um conceito e, vez ou outra, alguns apresentam uma noção. Claro que o grau de especificidade

na resposta seria um bom diferenciador, entretanto, na pesquisa in locu, sobre o que diz a

doutrina, e não sobre o que diz que diz a doutrina, não nos deparamos com tal métrica.

Provavelmente seja porque, por mais que haja uma distinção, na filosofia, entre os termos

definição, conceito e noção, não sejam eles, ao menos facilmente, importáveis para o estudo do

direito tributário, com o uso dos termos parecendo-nos mais uma questão de gosto. Talvez uma

ilustração possa reforçar nossos argumentos.

212 JARDIM aponta que o comum é o uso do termo “conceito” pela doutrina tributária, em vez de “definição”, mas que, mesmo assim, prefere fazer referência à esta e não àquela: “[...] adotaremos a palavra ‘definição’ em lugar de ‘conceito’, contrariando, assim, a linguagem corrente [...]”. Eduardo Jardim, Manual de direito financeiro e tributário, p.36. 213 José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia: verbete “noção”, p.507. Em filosofia, “noção” possui um significado específico; ou melhor, dois: “[...] um muito geral, em que N. é qualquer ato de operação cognitiva, e outro específico em que é uma classe especial de atos ou operações cognitivas”. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “noção”, p.713. Em seu perfeccionismo, KANT dá-nos um significado específico: “O conhecimento [...] é intuição ou conceito (intuitus vel conceptus). A primeira refere-se imediatamente ao objecto e é singular, o segundo refere-se mediatamente, por meio de um sinal que pode ser comum a várias coisas. O conceito é empírico ou puro e ao conceito puro, na medida em que tem origem no simples entendimento (não numa imagem pura da sensibilidade), chama-se noção (notio). Um conceito extraído de noções e que transcende a possibilidade da experiência é a ideia ou conceito de razão”. Immanuel Kant, Crítica da razão pura, p.313. Outro famoso filosofo, Georg Wilhelm Friedrich HEGEL, em Wissenschaft der Logik [Ciência da lógica], igualmente, dá-nos um significado específico de “noção” que é “[...] entendida como síntese de Ser e Essência, na forma de Ideia. Quer dizer: por um lado, refere-se à essência do objeto pensado; por outro, refere-se ao pensamento, enquanto pensa naquela essência”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “noção”, p.142-143. Mas, apesar dos apontamentos desses dois expoentes, “[n]enhum dos significados específicos propostos para esse termo teve grande aceitação; hoje resta quase exclusivamente o significado genérico de operação, ato ou elemento cognitivo geral”. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “noção”, p.713.

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Na primeira edição do influentíssimo Hipótese de incidência tributária (que trabalho

de direito tributário pode dar-se ao luxo de não o citar?), ATALIBA usou o termo “definir” para

tratar do tributo, marcando que “[j]uridicamente se define tributo como obrigação jurídica

pecuniária [...]”214. No entanto, na quarta edição do festejado livro, atualizando-o de acordo

com a Constituição de 1988, fez, entre vários adendos e modificações, um acréscimo pequeno

a um parágrafo específico da obra, que ganhou enorme repercussão, pois dele decorre a ideia

de “conceito constitucional tributário”: “A Constituição de 1988 adota um preciso — embora

implícito — conceito de tributo”215. Entretanto, pouco adiante, nessa mesma quarta edição, ao

cuidar, então, do que seja tributo, expõe-nos que “[j]uridicamente define-se tributo como

obrigação jurídica pecuniária [...]”216. Questão à parte se relevante a alteração da colocação

pronominal do oblíquo átono “se”, de próclise para ênclise, tributo, quer seja como definição,

quer seja como conceito, continua a ser uma obrigação pecuniária.

De nossa parte, não vemos, no uso intercambiável dos termos “definição”, “conceito”

ou “noção”, maiores problemas. Ademais, cremos que definir, conceituar ou apresentar uma

noção de tributo, quando empregados pela doutrina tributária, significam coisas diferentes.

Com qualquer um desses termos, o que se está a fazer é associar a palavra “tributo” a uma

proposição declarativa. Ou seja, o que temos é uma função f(x)=y217. Quanto a saber se aquilo

214 Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 1.ed., p.26. 215 Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.30. No entanto, mesmo antes da Constituição de 1988, cremos que ATALIBA já entendia no sentido da existência de um conceito constitucional de tributo, tanto que nos parece correta a afirmação de VALLE: “A identificação do conceito constitucional de tributo deve-se, no Brasil, a ATALIBA [...]”. Maurício do Valle, Princípios constitucionais e regras-matrizes de incidência do imposto sobre produtos industrializados – IPI, p.164-165. E, para corroborar tal assertiva, trazemos a colação um artigo de 1971, portanto antes do Hipótese de Incidência Tributária, que é de 1973 (1.ed.), no qual ATALIBA, mesmo que ainda não se refira a um conceito constitucional de tributo, aponta a existência de conceitos constitucionais para os impostos: “[...] o conceito de serviço pressuposto pelo texto constitucional vigente (art. 24, II) não pode colidir com o de industrialização (pressuposto pelo artigo 21, V) nem com o de operação financeira (pressuposto pelo art. 21, VI), nem com o de prática de operações jurídicas que importam circulação de mercadorias (art. 23, II)”. Geraldo Ataliba, Imposto sobre serviços — diversões públicas — convites e ingressos gratuitos, Revista de direito administrativo, n.104, p.383. Dado isso, avaliamos que CARRAZZA já estava nos passos de ATALIBA quando expõe, mesmo antes da atual Constituição, em 1986, que “[...] a Constituição brasileira não estabeleceu explicitamente o que vem a ser tributo. Todavia, ela acabou [...] por dar [...] um conceito básico de tributo”. Roque Carrazza, Princípios constitucionais tributários e competência tributária, p.128-129. Posteriormente, ressalvamos, CAZZARRA substituiu a expressão “conceito básico de tributo” “por noção geral de tributo”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.347. De toda forma, o ensinamento de que há na Constituição um conceito de tributo criou raízes. COSTA afirma poder “extraí-lo”: “O conceito de tributo é extraído da própria Constituição”. Regina Helena Costa, Curso de direito tributário, p.105. BECHO percebe-o, apesar de “implícito”: “[...] sustentamos [...] que há um conceito implícito de tributo na Carta da República”. Renato Becho, Lições de direito tributário: teoria geral e constitucional, p.102. Como síntese, podemos afirmar que para boa parte da doutrina, “[...] é força convir sobre a existência de um conceito constitucional de tributo”. Paulo Ayres Barreto, Contribuições: regime jurídico, destinação e controle, p.39. 216 Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p. 31. 217 “[...] ‘Fx’ seria uma função proposicional monádica; a cada objeto, digamos b, de certo conjunto (o universo de discurso), associa uma proposição, Fb (asseverando que o objeto b tem a propriedade F)”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “função proposicional, p.86.

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que é associado ao termo é mais ou menos detalhado, mais ou menos específico, ou se é ou não

uma ideia geral, já fugiria de nosso poder de observação, isso porque desconhecemos que algum

autor do direito tributário leve a sério a distinção e tenha apresentado, por exemplo, ao lado de

um conceito de tributo, mais aberto, também um definição, mais fechada.

Postas as coisas assim, retomamos o debate, se temos tributo como norma jurídica,

então temos o quê? Uma definição, um conceito ou uma noção? A bem da verdade, não vemos

como seria possível, no estudo jurídico tributário, diferenciar os termos, e se elegemos um aqui,

neste trabalho, é apenas com fim de padronização, por convenção. Assim, optamos pelo verbo

conceituar para expressar a associação do vocábulo “tributo” à expressão “norma jurídica”, que,

por sua vez, é por nós associada à locução “prescrição condicional de conduta”, que, por sua

vez, conecta-se a “criada com fundamento em outra norma jurídica” (ver 2.3). Com isso,

começa a tomar forma nossa conceituação de tributo como norma jurídica, na qual há uma

prescrição de conduta devida por imputação, mediante a verificação de hipótese, cuja validade

decorre de outra norma jurídica.

3.1.1 A Constituição conceitua e o CTN define tributo?

O presente trabalho não tem como objetivo o estudo de nenhuma ordem jurídica

específica. Sendo assim, poderíamos dar-nos por satisfeitos como as linhas acima sobre o uso

de termos como conceituar, definir e apresentar uma noção de tributo. Entretanto, não podemos

ignorar que, para a doutrina brasileira, a questão vai além, sendo, na verdade, apresentada como

um ponto-chave do direito positivo brasileiro, razão que nos fez abrir este subtópico. Com

efeito, é uma ideia corrente que, enquanto o Código Tributário Nacional conteria uma definição

de tributo, na Constituição Federal, haveria um conceito218.

218 A ideia de que o Código Tributário contém definições e a Constituição, conceitos, é algo que podemos remeter a ATALIBA: “[...] respeitados absolutamente êsses conceitos constitucionais [de serviço, de industrialização, de operação financeira, de operações jurídicas que importam circulação de mercadorias], é que a lei complementar (prevista no inciso II, do art. 24) pode definir serviço para efeito de balizar o âmbito da competência tributária municipal na matéria”. Geraldo Ataliba, Imposto sobre serviços — diversões públicas — convites e ingressos gratuitos, Revista de direito administrativo, n. 104, p.383 (esclarecemos entre colchetes). Agora, a relação entre a definição do Código e o conceito da Constituição, é ponto divergente na doutrina. Para uns, aquela “adequar-se-ia”, “seria compatível com” ou se “aproximaria muito” deste. Nessa linha, podemos transcrever MELO: “[...] está definição de tributo [art. 3º do CTN] se adequa aos traços constitucionais [...]”. José Eduardo Soares de Melo, Curso de direito tributário, p.45 (esclarecemos entre colchetes). Ou HORVATH: “[...] seus dizeres [art. 3º do CTN] são compatíveis com o que é induzido pela Constituição Federal”. Estevão Horvath, Classificação dos tributos, in: Aires Barreto e Eduardo Bottallo, Curso de iniciação em direito tributário, p.38 (esclarecemos entre colchetes). Ou ainda DERZI: “[...] [a Constituição] leva em consideração, implicitamente, ao disciplinar o sistema tributário, certo conceito de tributo, que, sem dúvida, se aproxima muito mais daquele amplamente disciplinado no art. 3º do CTN [...]”. Misabel Derzi, Nota de atualização, in: Aliomar Baleeiro, Direito tributário brasileiro, p.31. No entanto, há os que entendem que, embora a Constituição não apresente uma definição de tributo, pois

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Como prova de que o Codex contém uma definição de tributo, toma-se seu art. 3º219.

Até aí, nada temos a opor, pois há certa especificidade no referido enunciado, e não vemos

maiores problemas que seja pactuado que estamos diante de uma definição. No entanto, a

questão ganha nosso realce quando, ao lado da definição legal, apõe a doutrina seu conceito,

agora constitucional, de tributo. De fato, a questão deixa-nos aturdidos, pois observamos que

este (o conceito) é muito mais detalhado, específico, do que aquela (a definição) (ver nota de

rodapé em 3.1). Sem nenhuma dúvida, a doutrina traja seu conceito de tributo com a mais fina

veste, tecido de muitos fios, adornado, de acordo com a indumentária, geralmente de muito bom

gosto (o que não impede, por vezes, de depararmo-nos com exageros que mais nos lembram os

novos ricos), fazendo com que pareça um farrapo a definição do CTN. Contudo, se a regra para

chamar algo de conceito ou definição é a sua especificidade, como denominaremos, então, de

conceito, e não de definição, aquilo que a doutrina nos oferece, uma vez que traz muito mais

informações, é mais detalhado do que o contido expressamente na lei? Quem tem ouvidos, que

ouça; e se tem dúvidas, tire a prova, compare: o conceito da doutrina é muito mais específico

do que a definição da lei.

De nossa parte, acreditamos que as palavras “definição” e “conceito” não são usadas

em razão do grau de especificidade, por mais que se queira dar essa explicação Na verdade,

tudo se resume a uma literalidade, à existência de um “é” após o vocábulo tributo. No artigo 3º

da Lei nº 5.172, de 25.10.1966, lê-se “tributo é ...”, já na Carta Maior não se encontra essa

essa só o CTN teria, mesmo assim dela se vale, tornando uma questão, de início, legal em constitucional. ÁVILA, ao estabelecer a existência dos conceitos constitucionais, afirma darem-se eles de dois modos: “A previsão de conceitos constitucionais pode ser feita de duas formas. De um lado, de modo direto, nos casos em que a Constituição já enuncia expressamente as propriedades conotadas pelos conceitos que utiliza. De outro lado, de modo indireto, nas situações em que o Poder Constituinte, ao escolher expressões cujas propriedades já eram conotadas em conceitos elaborados pelo legislador infraconstitucional à época da promulgação da Constituição, opta por incorporá-la ao ordenamento constitucional”. Humberto Ávila, Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos, p.112. De modo específico, em relação a tributo, manifesta-se GRECO, valendo-se da expressão “pressuposição de um conceito prévio”: “[...] a Constituição Federal não define expressamente ‘tributo’; ela pressupõe um conceito prévio que é assumido como base para cada preceito. Este ‘conceito pressuposto’ é aquele previsto no Código Tributário Nacional [...]”. Marco Aurélio Greco, Conceito de tributo, legalidade e medidas provisórias, in: Eurico de Santi (coord.), Curso de direito tributário e finanças públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico, p.423. Ainda mais incisivo é TORRES, referindo-se à constitucionalização da definição legal: “A Constituição não define o tributo. O CTN é que oferece a seguinte definição [...]. Constitucionalizou-se, assim, a definição codificada, até porque a CF 88 já a encontrou em vigor e não seria razoável concluir-se que a não tenha adotado”. Ricardo Lobo Torres, Curso de direito financeiro e tributário, p.373-374. Ocorre que, se assim realmente for, se a definição de tributo do art. 3º do CTN passou a fazer parte da Constituição, então “[...] não pode ser objeto de modificação pela legislação infraconstitucional, pois isso implicaria em se modificar o próprio conceito constitucional”. Ricardo Lobo Torres, Conceito constitucional de tributo, in: Heleno Tôrres (coord.), Teoria geral da obrigação tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges, p.561. 219 “Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

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mesma forma, “tributo é”, apesar de o termo aparecer nela 16 vezes. Essa é a razão, o constar

esse “é”, o porquê de resolver a doutrina tributária falar de definição para a Código Tributário

Nacional e de conceito para a Constituição.

De tudo isso, parece-nos que a doutrina leva bem a sério a existência de um conceito

de tributo na Constituição. Agora, se fica a distinção entre conceito e definição de pé, após uma

boa chacoalhada, isso é outra coisa. Particularmente não nos parece haver uma regra para se

dizer, na linha da gradação do geral para o específico, quando temos um conceito e quando já

estamos diante de uma definição. O fato é que a divisão vem dando-se por meio de um pacto

semântico muito simples, mas implícito, e que ninguém assume abertamente: sobre a

Constituição, dizemos que contém conceitos — independentemente do quanto estejam eles lá,

na Constituição, ou se tudo não passaria de uma interpretação bem criativa do jurista —, já para

a lei, falamos de definições, desde que contenha um “é”.

3.2 CONCEITO DE TRIBUTO NO DIREITO E DO DIREITO

Sobre a afirmação de que tributo é norma jurídica, convencionamos que se trata de um

conceito, ou seja, conceitua-se tributo ao expô-lo como norma jurídica. Ademais, não vemos

maiores problemas no intercâmbio da palavra “conceito” com os termos “definição” e “noção”.

Assim, sobre a proposição “tributo é norma jurídica”, pode-se afirmar que, a depender do pacto

que faça o autor, é um conceito, ou uma definição ou ainda uma noção, sem, a nosso ver,

incorrer em qualquer erro. Entretanto, se até aqui não se fez necessário um ajuste fino quanto

ao termo “conceito”, daqui em diante, exigir-se-á um novo cuidado, pois se faz mister

diferenciar “conceitos do direito” de “conceitos no direito”220. No primeiro caso, conceito do

direito, o uso da preposição “de” permite que demarquemos bem que uma coisa é o direito e

que outra é o conceito221. Logo, o conceito trata do objeto, mas não é o objeto, com ele não se

confundindo. Já no segundo caso, conceito no direito, por meio da preposição “em”, expressa-

se que algo está em algum lugar, portanto, dentro de222. Assim, o conceito está contido no

direito, fazendo então parte dele.

220 Sobre o tema, ver Valterlei A. da Costa e Maurício do Valle, A utilidade como critério de classificação do direito e no direito, Revista brasileira de direito, v.14, p. 186-213. 221 “de. [...] Prep. [...]. Usa-se, além de noutros casos, nos seguintes: 1. Entre dois substantivos, indicando: [...] n) a de assunto, objeto (equivalente às prep. sobre, acerca de, a respeito de) [...]”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa: verbete “de”, p.603. 222 “em. [...] Prep. [...]. 1. Entra na composição de adjuntos adverbiais que exprimem ideia de: a) lugar onde está, ou onde sucede alguma coisa [...]. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa: verbete “em”, p.726.

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Por direito positivo, entendemos o conjunto de normas jurídicas que retiram sua

validade de outras normas jurídicas, sendo essas normas jurídicas interpretações de enunciados

postos por atos de vontade (ver 2.3). Ocorre que, para além do conteúdo das normas jurídicas,

que seriam os mais diversos possíveis, respeitado o mundo físico, todas essas normas possuem

a mesma estrutura sintática (ver 2.5). Com isso em conta, podemos compreender que, ao

conceituarmos algo como norma jurídica, v.g., a propriedade, o trabalho, o crime, o

cooperativismo, a aposentadoria, ou o tributo, podemos estar cuidando de um particular

conteúdo de uma norma jurídica, ou ainda agrupando, em torno de um rótulo, como técnica de

representação, com fins de sistematização, várias normas jurídicas. Há, portanto, dois pontos

distintos. Um, como interpretação de enunciado posto por um ato de vontade, e que existe no

espaço e no tempo, com conteúdo específico. Outro, como abstração, sem uma específica

referência, com função aglutinadora de uma série de hipóteses, de um lado, e, de outro, de uma

série de consequências223. Na primeira situação, cuida-se de um particular conteúdo; na segunda

análise, de um método. Método, aliás, que tem função simplificadora, mas não constitutiva, o

que permitiria, inclusive a dispensa de palavras que funcionam como enformadeiras, só que,

então, teríamos que transcrever as séries inteiras. No entanto, “[u]ma versão desse tipo seria

[...]tão embaraçosa, que se tornaria praticamente inútil” 224. Assim, é em nome da utilidade que

se constrói o mundo jurídico com palavras ao estilo “tû-tû”225-226.

Conceituar tributo como norma jurídica pode, então, significar duas coisas. Ou tributo

é um específico conteúdo de uma particular norma jurídica ou tributo é um aglutinador de várias

normas jurídicas. Pontos esses que nos permitem falar de conceito no direito e conceito do

direito, pois, respectivamente, em um caso, faz parte do próprio direito, já em outro, é um

elemento sistematizador situado fora do direito.

223 Aqui vale o mesmo que disse ROSS a respeito do direito subjetivo: “[...] o conceito de direito subjetivo é um instrumento para a técnica de apresentação que serve exclusivamente a fins sistemáticos, e que em si não significa nem mais nem menos que ‘tû-tû’”. Alf Ross, Tû-Tû, p.54. 224 Alf Ross, Tû-Tû, p.35. 225 “Nas Ilhas Oasuli, no Pacífico Sul, habita a tribo Aisat-naf [...]. Essa tribo [...] acredita que se um determinado tabu é violado — por exemplo, se um homem encontra-se com sua sogra, ou se mata um animal totêmico, ou se alguém ingere alimento preparado pelo chefe — surge o que é denominado ‘tû-tû’. Os membros da tribo dizem, ademais, que quem comete a infração se investe de ‘tû-tû. É muito difícil explicar o que significa isso”. Alf Ross, Tû-Tû, p.13-14. 226 Os exemplos de “tû-tû” no direito são inumeráveis, podendo ir desde a “responsabilidade”: [...] o termo “responsabilidade” é ambíguo, podendo ser usado em mais de um sentido no mesmo contexto. E que essa ambiguidade decorre do fato de ser, a ‘responsabilidade’, um conceito sistemático ‘tû-tû’, cuja função é exprimir a conexão entre ‘fatos condicionados’ e ‘consequências jurídicas’”. Maurício Timm do Valle, Princípios constitucionais e regras-matrizes de incidência do imposto sobre produtos industrializados - IPI, p.304. Até o SIMPLES Nacional: “Temos a sincera impressão de que o SIMPLES nacional é uma expressão de tipo “tû-tû” no direito brasileiro. Isso porque tal nome, em si anêmico, semanticamente, engloba, na realidade, um plexo consideravelmente grande de normas jurídicas diversas entre si”. Carlos Renato Cunha, O SIMPLES Nacional, a norma tributária e o princípio federativo: limites da praticabilidade tributária, p.286.

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Enquanto elemento sistematizador, conceituar tributo não deixa de ter uma função de

reconhecimento. Com efeito, é a partir do conceito que se identifica o que é tributo. E se tributo

é norma jurídica, então, de todas as normas jurídicas, é por meio do conceituado que são

apartadas as normas tributárias das não tributárias. Por essa linha, afastamo-nos de uma

particular norma, para então formar um conjunto de elementos com certas propriedades,

gravitando ao redor de um nome. Afinal, “[...] quando desejamos ser capazes de pensar em

objetos com relação a alguns de seus atributos [...], efetuamos isto dando àquela combinação

de atributos, ou à classe de objetos que os possui, um nome específico”227. Assim, “tributo” é

um nome, não sendo muito diferente de “tû-tû”.

Aprioristicamente a sistematização em torno de um nome não se necessita prender a

alguma norma específica, pois não se trata de algo alcançável por indução, de particular em

particular, já que a conceituação é feita por meio de “[...] uma ação arbitrária da razão [...]”,

onde alguma coisa é “[...] considerada separadamente de outras” 228. Ademais, do mesmo modo

que não é uma questão indutiva, tão cá, também não é uma formalização, tão lá, pois, se assim

fosse, já não haveria mais matéria e deparar-nos-íamos com (D) p→q (ver 2.6), o que tornaria

inviável qualquer demarcação de uma norma tributária em contraste com outras normas, por

ausência de conteúdo. Com efeito, não há a possibilidade de se desgarrar de toda a matéria um

conceito de tributo, pois uma norma jurídica somente se diferencia de outra norma jurídica

quando nos atemos a seu conteúdo.

Tributo, enquanto conceito sistematizador do direito, é um facilitador, algo que se

utiliza para não se dizer tudo o tempo todo. É algo útil, mas não indispensável, o que significa

que está fora do rol daqueles conceitos fundamentais, sem os quais o direito não poderia ser

pensado229. Tributo, enquanto conceito do direito aglutinador, é uma convenção que respeita a

estrutura da norma jurídica, dando-lhe, um conteúdo, o que permite apartar as normas jurídicas

que são tributárias e as que não são tributárias.

Agora, não é só a ciência do direito que possui seus conceitos jurídicos, seus “tû-tû”,

pois os enunciados normativos, em seu bojo, contém-los também230. No caso brasileiro, em

227 John Stuart Mill, Um exame da filosofia de Sir William Hamilton, in: ______, Sistema de lógica dedutiva e indutiva e outros textos, p.287 (III). 228 Regina Schöpke, Dicionário filosófico: conceitos fundamentais: verbete “abstração”, p.12. 229 VILANOVA promoveu uma distinção entre conceito geral e conceito fundamental: “[o] mero conceito geral (Allgemeiner Begriff) se encontra nos subdomínios do direito, mas dele se pode prescindir. O conceito fundamental (Grundbegriff), este é condição da possibilidade do direito positivo e da Ciência do Direito positivo [...]”. Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.238-239 (VIII.7). 230 “Os enunciados que incluem a palavra ‘tû-tû’ se afiguram capazes de preencher as duas principais funções de toda linguagem: prescrever e descrever, ou, para ser mais explícito, expressar ordens ou regras e fazer afirmações sobre fatos”. Alf Ross, Tû-Tû, p.15.

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relação ao conceito de tributo, temos, além do art. 3º do CTN, já transcrito, ainda o art. 9º, da

Lei nº 4.320, de 17.04.1964231. Assim, além do “conceito de tributo do direito”, que

construiremos, com fins de sistematização, por convenção (ver 4), ainda temos o “conceito de

tributo no direito”, que encontramos positivado232. Questões distintas, com as quais se deve ter

o devido cuidado, pois uma coisa é um enunciado posto com fulcro em uma norma conter um

conceito de direito, outra, bem diferente, é estudioso pactuar um conceito, para melhor

desenvolver o tema.

A existência de um enunciado normativo (texto posto por autoridade), na linha de que

“α (uma variável individual) significa P (uma proposição)”, induzir-nos-ia a pensar que o

direito está conceituando. Na verdade, o que está ele a conter, dado o caráter prescritivo de toda

norma jurídica, é que, quando, em outro dispositivo, aparecer apenas “α”, então deve ser lido

como “P”. Assim, se imaginarmos um segundo enunciado “se α, então deve ser certa conduta”,

da conjunção com o primeiro enunciado, teríamos, como resultado da interpretação, a norma

jurídica: “dado α, que significa P, então deve ser certa conduta”.

Não bastasse saber que as conceituações não existem de forma autônoma, temos de ter

em conta que a autoridade normativa, quando expressa que “α é P”, não pratica um ato da razão,

muito menos nos relata algo verdadeiro sobre o mundo. O que faz é ligar juridicamente,

independentemente do mundo da razão ou da natureza — o que não quer dizer obrigatoriamente

ao contrário, mas que pode ou não coincidir, sem necessidade de nexo — um termo a outro, por

231 Art. 9º Tributo é a receita derivada instituída pelas entidades de direito publico, compreendendo os impostos, as taxas e contribuições nos termos da constituição e das leis vigentes em matéria financeira, destinado-se o seu produto ao custeio de atividades gerais ou especificas exercidas por essas entidades. 232 ATALIBA, nos passos da teoria de VILANOVA, apresentou o conceito de tributo como jurídico-positivo e não lógico-jurídico: “O conceito de tributo é nitidamente um conceito jurídico-positivo. [...] Como todo conceito jurídico-positivo, é cambiante. [...]. Enfim, é conceito contingente, ao contrário dos conceitos lógico-jurídicos, que são necessários”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 1.ed., p.33. BORGES foi ainda mais preciso, ao cuidar da “obrigação tributária”, que “[...] não é (a) conceito lógico-jurídico [...], nem (b) conceito de teoria geral do direito [...]. [...]. O conceito de obrigação tributária é extraído pela exegese do direito positivo, normas obrigacionais tributárias”. José Souto Maior Borges, Em socorro da obrigação tributária: nova abordagem epistemológica, in: Eurico de Santi (coord.), Curso de direito tributário e finanças públicas: do fato à norma, da realidade ao conceito jurídico, p.399-400. Ademais, do fato de ser um conceito contingente, dado pelo direito positivo, não deixa de ser vinculante, conforme as palavras de SANTI: “[...] não podemos retirar do enunciado do art. 3º do CTN seu inato cunho prescritivo [...]”. Eurico de Santi, As classificações no sistema tributário brasileiro, In: Heleno Taveira Tôrres (coord.), Justiça tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário, p.135. SILVA também reconhece que o conceito de tributo é algo que possa ser criado pelo direito positivo, no entanto, apenas à Constituição dá essa possibilidade: “O conceito de tributo é [...] um conceito jurídico positivo [...]. Mas isto não quer dizer que seja função dada às leis formular expressamente o conceito teórico de tributo. [...]. [...] sua definição [...] deve estar inserida em normas constitucionais, de modo que não seja vulgarmente alterado por outros textos legais”. Joana Lins e Silva, Fundamentos da norma tributária, p.150. Posicionamento que não podemos seguir, pois se tributo é uma criação do direito, então somente ao direito, e não ao jurista, compete expor com que tipo de enunciado será ele conceituado, sendo totalmente descabida, do ponto de vista de uma teoria da norma, a restrição a que apenas à Constituição seria lícito cuidar do tema.

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meio de uma função. O que temos, nesses casos, é uma prescrição e não um ensinamento. Em

curta síntese, onde se lê a variante individual “α”, então se deve ler a proposição “P”.

No direito, não há conceitos, não, ao menos, no sentido dos formulados pela ciência

do direito. Não se olvida, claro, que o direito se vale, de modo comezinho, do que aparentam

ser conceituações. “F(α) = P” é algo comum como conteúdo de norma jurídica. Entretanto, não

é, por si só, uma norma jurídica, mas um fragmento dessa norma233. Assim, a par das aparências,

tudo pesado e somado, há apenas prescrições de conduta condicionadas (ver 2.5). Isso porque

“[o] Direito prescreve, permite, confere poder ou competência — não ‘ensina’ nada”234.

Eventuais dispositivos que possam, em um primeiro momento, dar a impressão de conceituação

(α é P) são, na verdade, prescrições, advindas de atos da vontade e não de atos racionais, pois

a causa da ligação, a função, é a normatividade e não o pensamento. Em curta síntese, o que

aparenta ser uma conceituação é, de fato, uma prescrição.

Logo, não negamos que o direito positivo possa conter conceituações, são as

“conceituações no direito”, agora, se essas conceituações são do agrado da doutrina, se

coincidem com as “conceituações do direito” dos doutos, é uma questão à parte. De algum

modo, buscar se a ciência do direito e o direito positivo convergem ou conflitam, é como buscar

se o sábio e o rei são as mesmas pessoas235. De nossa parte, “[a]lgo pode ser o caso ou não ser

o caso e tudo o mais permanecer na mesma”236. Por isso, não confiamos mais no filósofo para

prescrever condutas do que confiamos em sua majestade237.

3.3 TIPOS NO DIREITO TRIBUTÁRIO

233 KELSEN, no lugar de fragmento de norma, usa “unselbständige Rechtsnormen”, ou seja, “normas não-autônomas”, na tradução de João Baptista Machado, como sendo “[...] aquelas que determinam com maior exatidão o sentido de outras normas, definindo porventura um conceito utilizado na formulação de uma outra norma [...]. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.64 (I.6.e). Hans Kelsen, Reine Rechtslehre, 2.aufl., s.58. 234 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.81 (3.III). 235 Uma questão que aumenta ainda mais a confusão entre os planos do direito positivo e da ciência do direito é que ambos podemos ser expressos por proposições com idênticas estruturas: “[...] parece-nos [...] que à concepção sintática pode ser dirigida a crítica de que a mesma expressão linguística pode ser utilizada para exprimir tanto uma norma quanto uma proposição normativa. Há tempos é reconhecida a ambiguidade das orações deônticas”. Maurício do Valle, Sobre as concepções normativas: sintática, hilética e expressiva, Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, v. 12, p.617-618. 236 Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophucus, p.135 (1.21). 237 PLATÃO acreditava que o fim dos males viria pelo rei-filósofo: “Enquanto não forem, ou os filósofos reis nas cidades, ou os que agora se chamam reis e soberanos filósofos genuínos e capazes [...], não haverá tréguas dos males [...]”. Platão, A república, p.251 (V.473d). De nosso lado, achamos que ser extremamente culto não impede alguém de se tornar um tirano: “Catarina apreciava sinceramente suas ideias [dos filósofos] e abominava a escravidão. [...]. Mas a decência de Catarina não a impediu de distribuir dezenas de milhares de almas a seus favoritos. [...]. Na verdade, como dona de milhões de almas nas terras da Coroa, ela própria era a maior proprietária de servos e sabia que essa parceria entre tsar e nobreza, baseada na convergência de interesses [...] era o pilar do império”. Simon Montefiore, Os Románov: 1613-1918, p.285 (4).

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Definição, conceito e noção, embora haja na filosofia diferenças entre os termos,

podem, ao se expor o que é tributo, ser usados como sinônimos. Sendo assim, sobre os

tributaristas declararem que “tributo é tal coisa”, não vemos empecilhos em afirmar que, com

esse ato, estão definindo, conceituando ou oferecendo uma noção. Entretanto, já não pensamos

o mesmo, já não vemos equivalência, ao se tratar de conceitos do direito e conceitos no direito.

Aqui, as expressões referem-se a coisas diferentes. Os conceitos do direito são produções do

jurista, visando a sistematizar normas jurídicas, agrupando hipóteses e consequências, ao passo

que os conceitos no direito são descrições de conteúdo da própria norma jurídica, que aparecem

em fragmentos. Dito isso, há ainda uma última precisão linguística a ser feita, a que distingue

conceito de tipo.

O termo “tipo” é um daqueles usados de forma variada, dotado de polissemia, sendo

inclusive gíria de adolescente, o que nos levaria a perguntar sobre tais situações, todas

nomeadas tipo, o que têm eles em comum238. Em razão disso, desse nome igual para coisas

diferentes, uma proposta seria iniciar o estudo sobre “tipo” por uma pesquisa de seu uso pelos

demiurgos, isolando o que, em cada caso, há de comum, na busca de uma síntese, evoluindo

para uma conceituação própria, que possuiria como correspondente aquilo que foi isolado239.

No entanto, neste trabalho, por não ser ponto fulcral, valer-nos-emos de uma já dada formulação

de tipo. Assim, parece-nos adequada, para o que segue, a pontuação weberiana, com foco no

padrão ideal, que serve como régua para medir os casos concretos, que, por sua vez,

aproximam-se mais ou menos do tipo ideal240. Nessa linha, nas pegadas de WEBER, ao cuidar

de tipo, não se perquire uma identidade, mas sim uma proximidade entre o concreto e o ideal.

238 PLATÃO já se valia do termo “tipo”, ligando-o à moldura, pois o homem que ele julgava moderado não se deveria “[...] modelar e se formar sobre um tipo de gente que lhe é inferior [...]”. Platão, A República, p.122 (III.396d). Por sua vez, em PEIRCE, tipo opõe-se à ocorrência, pois a palavra que traz um tipo “[...] não é uma coisa Singular ou evento Singular. Ela não existe: apenas determina coisas que existem. Proponho que se denomine Tipo uma tal Forma definidamente significante”. Charles Peirce, Semiótica, p.177 (II.A.1.537). Posição que nos parece ter sido seguida por ECO: “É justamente o fenômeno do reconhecimento que nos leva a falar de tipo, precisamente, como parâmetro para confrontar ocorrência”. Umberto Eco, Kant e o ornitorrinco, p.115 (3.3.1). Por fim, não podemos olvidar que “[a] biologia e a psicologia utilizam muito esse termo [tipo] e o consideram fundamental”. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “tipo”, p.959. 239 “A palavra possui significado na medida em que existam convenções que estabeleçam seu significado. A convenção pode ser apresentada de modo formal ou pode, ao contrário, resultar do uso. Quando a convenção que governa o emprego de uma determinada palavra, alcança certo estágio de desenvolvimento, uma definição pode fixar, de maneira explícita, aquela convenção”. Leonidas Hegenberg, Definições: termos teóricos e significado, p.20 (1.4). 240 “Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral de um ou de vários pontos de vista e mediante o encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento. É impossível encontrar empiricamente na realidade este quadro, na sua pureza conceito, pois trata-se de uma utopia”. Max Weber, A “objetividade” do conhecimento na Ciência Social e na Ciência Política — 1904, in: ______. Metodologia das ciências sociais, p.252 (II).

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A correspondência não precisa ser exata e a descrição de um fato não precisa ter todos os dados

que encontramos no tipo, e, mesmo assim, poder-se-ia dizer que ela pertence ao tipo. Ficamos,

então, por aqui, com o que seja tipo, pois essa ideia geral já nos basta para darmos o próximo

passo e entendermos tipo no direito.

O silogismo jurídico é uma boa forma — simplificada, é verdade — de entender-se a

aplicação do direito241. Temos a premissa maior, na qual cuidamos de uma abstração. Depois,

há a premissa menor, na qual temos a descrição concreta. Se a premissa maior é um tipo, nos

termos por nós apontados, então a premissa menor não precisa conter todos os traços da

premissa maior, bastando apenas uma certa aproximação. Assim, seria possível uma conclusão,

a decisão judicial, no sentido de que a consequência seria devida, mesmo que só se esteja diante

de uma aproximação entre o descrito na premissa maior e o descrito na premissa menor.

Ademais, outros aspectos que não só o rigor descritivo da premissa maior, podem ser

considerados para o enquadramento da premissa menor no tipo, tais como a finalidade e o

ambiente. Ao fim e ao cabo, contentar-nos-íamos como um mais ou menos e aceitaríamos a

premissa menor como relacionada à premissa maior, senão e porém a partes dela, o que faz dela

um tipo.

Com a noção de tipo weberiana, ao lado da ideia de silogismo jurídico, podemos, no

campo normativo, então distinguir tipo de conceito, pondo-os em lados opostos do tablado. Para

o primeiro, tipo, a relação entre a premissa maior e a menor não precisa ser de subsunção, não

havendo a necessidade de que esta esteja perfeitamente dentro daquela; já para o segundo,

conceito, a identidade seria imperativa. Posição que nos faz tributários não somente de

WEBER, mas também de LARENZ, pois igualmente entendemos, para o tipo, que

[a] caracterização antecipada na lei, que não impõe uma definição definitiva e suficientemente precisa, necessita de ser completada com uma multiplicidade de traços, que resultam por dedução da definição legal. Esta “dedução” está subordinada

241 “[...] há quem negue que a argumentação jurídica consiga ser estritamente dedutiva. Se essa negação é feita no sentido mais rigoroso, com a implicação de que a argumentação jurídica nunca é, ou nunca pode ser, exclusivamente dedutiva em sua forma, nesse caso é claro e demonstrável que essa negação é falsa”. Neil MacCormick, Argumentação jurídica e teoria do direito, p.23 (II).

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ao pressuposto de que as regras legais se adequam ao tipo pensado, que “se ajustam” a ele242-243.

Essas breves notas sobre conceito e tipo são suficientes para entendermos quando um

emprego do vernáculo “tributo” é feito como tipo e quando se ancora em um conceito. Para este

último caso, como conceito, então o foco está na identidade entre a ideia geral e o caso

particular. O ponto nevrálgico é a correspondência total. Já para a primeira situação, como tipo,

a proximidade basta, é suficiente, frisando que não é um caso de total divergência, pois há a

indispensabilidade de pontos em comum.

242 Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p.665 (II.VI.2.c). A citação acima diz respeito ao tipo jurídico-estrutural, havendo ainda, segundo LARENZ, os standards [padrões] e os tipos reais normativos: “Para a averiguação dos denominados standards, o jurista tem que servir-se da cooperação do investigador social empírico [...]. [...]. Na apreensão de um ‘tipo real normativo’, [...], o jurista tem de considerar previamente tanto a realidade social a que pertence o tipo tido em conta na lei como os fins da regulamentação [...]. [...]. Os tipos jurídico-estruturais são formações que podem ser encontradas na realidade social, bem como as regulamentações que lhes correspondem. Apreendê-los compete somente à Jurisprudência”. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p.666-667 (II.VI.2.c). 243 LARENZ conduz-nos ao entendimento de ser “tipo” algo fluído, o que se verifica à perfeição pela leitura deste excerto. No entanto, não é essa a interpretação que XAVIER faz do jurista alemão, pois, ao cuidar do princípio do exclusivismo, que, segundo o jurista português, é aplicável aos tributos, expôs: “trata-se [...] de uma tipicidade fechada (na terminologia de LARENZ), enquanto não admite quaisquer elementos adicionais não completamente contidos na descrição normativa”. Alberto Xavier, Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva, p.19. E é em razão de assertivas assim, com o uso do tipo como algo fechado, que DERZI propõe, ao lado do tipo stricto sensu, tipo em sentido impróprio: “O pensar tipologicamente, o tipificar, em sentido técnico, ao contrário do que se supõe não é estabelecer rígidos conceitos de espécies jurídicas, baluartes da segurança do direito. Essa função compete aos conceitos fechados, determinados e classificatórios. [...]. Os tipos propriamente ditos (ou apenas tipos), stricto sensu, além de serem uma abstração da comparação, características comuns, nem rígidas, nem limitadas, onde a totalidade é critério decisivo para ordenação dos fenômenos aos quais se estende. [...]. ‘Tipo’, em sentido impróprio, são conceitos classificatórios, cujas notas se cristalizam em número rígido e limitado”. Misabel de Abreu Machado Derzi, Direito tributário, direito penal e tipo, p.70. De todo modo, uma tentativa de explicar a divergência da posição de XAVIER, quando confrontada com a literalidade do texto de LARENZ, é cogitar que a obra consulta pelo tributarista português seria uma versão anterior à terceira edição da Metodologia da Ciência do Direito, a qual trouxe várias alterações, pois encontramos a mesma interpretação em ASCENSÃO quando versa sobre a obra do jurista alemão, tendo como texto de apoio a primeira edição [Methodenlehre der Rechtswissenschaft, 1960]: “[...] Larenz trouxe para a teoria geral a contraposição entre tipos abertos e fechados. Os tipos abertos são aqueles cujas fronteiras são imprecisas, dada a variabilidade das suas características [...]”. José de Oliveira Ascensão, A tipicidade dos direitos reais, p.62 (I.16). Nessa linha, para explicar o desencontro, TORRES: “O jurista alemão Karl Larenz dedicou diversas páginas de sua obra ao estudo do tipo. Inicialmente chegou a distinguir entre tipo aberto e fechado, ideia abandonada a partir da 3ª edição do livro, mas que exerceu grande influência no Brasil por meio da obra de Alberto Xavier [Princípios da legalidade e da tipicidade da tributação, 1978]”. Ricardo Lobo Torres, O princípio da tipicidade no direito tributário, Revista eletrônica de direito administrativo econômico, n.5, n.p. (3.a) (esclarecemos entre colchetes). Ou ainda DERZI: “[...] LARENZ até a segunda edição de sua obra, Methodenlehre der Rechtswissenschaft [...] admitia os tipos fechados. A partir da terceira edição, refez o seu ponto de vista [...], afirmando que os tipos, por definição, são sempre abertos”. Misabel Derzi, Legalidade material, modo de pensar “tipificante” e praticidade no direito tributário, in: Heleno Taveira Tôrres (coord.), Justiça tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário, p.635. Em resumo, a explicação para a divergência nos parece pertinente, pois “[n]a terceira edição da Metodologia da Ciência do Direito, de 1975, KARL LARENZ abandona esta lógica do conceito geral de HEGEL como elemento cuja desenvolução de sentido pudesse tornar visível a estrutura interna de sentido do Direito vigente e rejeita a pretensão do sistema hegeliano a um carácter absoluto”. José Lamego, Nótula do tradutor: um filho de seu tempo, in: Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p.707.

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Na “conceituação do direito”, sempre que usarmos o termo tributo, significa que

podemos, com um sim ou um não, afirmar ou negar que algo se enquadra no conceito, pois,

com ele, esse algo se identifica ou não. Uma teoria construída a partir de conceitos almeja à

precisão. Portanto, não nos parece indiferente se alguém se propõe a conceituar ou a tipificar

tributo. Entretanto, nem sempre consegue o jurista manter-se no caminho, quando escolhe

conceituar. Vez ou outra, à guisa de desculpas, alega que mantém o destino da viagem, mas se

permite tomar aquilo que imagina ser um atalho. Assim, sem constrangimento, embrenha-se

por alguma azinhaga, o que lhe permite a alegação de que, mesmo que algo não possua todas

as notas de seu conceito de tributo, ainda assim poderia ser ele um tributo. Para tanto, pode

valer-se dos mais variados motivos, justificando que possuiria o cabedal, quase todas as

características para pertencer ao conceito, o que seria, somado ao extraconceitual (contexto),

suficiente, mesmo que sem o necessário para a identidade. Quando isso se dá, entretanto, em

razão de o critério ser a proximidade — não mais a identidade, não mais a fidelidade —,

conjugada com fatores acidentais, cremos que seria melhor, então, em vez de conceito, falar-se

de tipo. No mínimo, essa mudança de nomenclatura serviria para salvar as aparências para quem

quer dar uma resposta in casu que não se ajusta à sua teoria, sem abrir mão dessa mesma teoria.

Tipo ou conceito, na conceituação do direito, são possíveis. O que nos parece é que

não são possíveis ao mesmo tempo. Não se pode bradar certezas até ser confrontado com um

caso difícil e então expor que tal coisa, mesmo tendo todas as propriedades, não se enquadra

em seu conceito ou, ao contrário, que apesar de não ter todas as características, ainda assim se

subsome a suas ideias. Ademais, não serve de álibi protestar que seu mundo é muito complexo,

que uma vã teoria não o pode conceber em sua integridade, que se recusa a pensar por meio de

caixinhas. O maior pecado de um teórico do direito, assim nos parece, são as respostas ad hoc,

apenas para os casos especiais, mantendo o resto sob o manto da certeza. Ora algo ser ou não

ser, tanto faz; ora algo é ou não, e que o céu venha abaixo.

O que queremos dizer, sem meias palavras, é que ou se faz uma teoria por meio de

conceitos ou se faz por meio de tipos, não podendo, neste último caso, como a base é a

aproximação, incomodar-se o autor com o fato de que sua teoria também seja julgada na base

do mais ou menos. No mais, é ficar com algo meio híbrido, e torcer para que ninguém perceba.

Assim, nossa insurgência não é quanto ao uso do tipo em si, mas de seu uso como permissão, a

depender da conveniência, para quebrar os próprios conceitos estabelecidos. De todo modo, se

feita de forma sutil a passagem de conceito a tipo e, depois, a conceito novamente, mesmo que

em um mesmo trabalho, sem voluntarismo de adolescente, pode até ter sucesso o autor, sendo,

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em vez de admoestado pela incoerência, condecorado por ser um livre pensador, por não ficar

adstrito a fórmulas preconcebidas. Ademais, o uso de tipo está na moda244.

Agora, na “conceituação no direito”, se o direito positivo contém propriamente

conceitos ou se é formado de tipos, quando, então, seria melhor se referir à “tipificação no

direito”, a questão central continua a ser a precisão, só que agora, não mais da formulação do

jurista para seu auditório, mas da norma superior para quem a aplicará. Com efeito, o busílis na

conceituação no direito ou “tipificação no direito” — saber se está diante de conceito ou se, na

verdade, trata-se de tipo —, envolve o grau de liberdade que deixa a norma jurídica à autoridade

que irá aplicá-la245. Assim, se tributo for conceituado pelo direito positivo como tal coisa, com

essas e essas propriedades, então o título “tributo” somente poderá ser associado a figurações

com essas mesmas propriedades pelo aplicador da norma jurídica, sob a consequência de

invalidação da norma criada em razão da aplicação. No entanto, se, para o direito positivo,

tributo é tal coisa, com essas e essas propriedades, mas, com isso, a norma tipifica tributo, em

vez de conceituá-lo, a proximidade já basta para o aplicador normativo, sem que advenha a

invalidade caso borre as margens limites de intepretação246. Com isso queremos dizer que pode

244 Não se quer aqui criticar o “estar na moda”, afinal, se estar na moda é ser elegante, quem seria contra, per se, a elegância? Entretanto, tudo muda conforme vai tendo-se um dispêndio para estar na moda, e cada um sabe o ponto-limite de seu sumpto. EINSTEIN prestigiou a elegância até o limite de ter de pagá-la com a clareza: “No interesse da clareza, foi inevitável repetir-me muitas vezes, sem preocupação com a elegância da apresentação; pautei-me, escrupulosamente, pela norma do genial físico teórico Ludwig Boltzmann, que deixava as questões de elegância a cargo de alfaiates e sapateiros”. Albert Einstein, Teoria da relatividade especial e geral, p.7 (prefácio). Para nós, a carestia começa a manifestar-se quando o pagamento deve ser feito com a moeda da coerência. Assim, este autor é receptivo a novas teorias e aceita divulgá-las de bom grado (afinal, quem não quer aparecer perante a academia trajando a vestimenta da última coleção?), desde que elas não nos cobrem, como contrapartida, a coerência. E quanto à importância que damos ao valor coerência, acreditamos estar bem acompanhados, pois lembramos que quando ROSS agradece a KELSEN, entre todos os ensinamentos que recebeu do mestre de Viena, fá-lo ressaltando ter apreendido, “[...] acima de tudo, a importância da coerência [...]”. Alf Ross, Direito e justiça, p.20 (prefácio). 245 “De acordo com o grau de liberdade que o juiz se atribui na interpretação da diretiva da lei, à luz das reclamações da consciência jurídica material e das exigências sociais, pode-se distinguir entre um estilo de interpretação (relativamente) livre e um estilo (relativamente) limitado. Todavia, é difícil decidir se a diferença de estilo é tão grande como pode parecê-lo à primeira vista. É possível que a diferença não esteja tanto no grau de liberdade de que goza o juiz quanto na franqueza com que essa liberdade é reconhecida’. Alf Ross, Direito e justiça 170-171 (IV.28). 246 Poderíamos lembrar ainda — fora desse binômio conceito-tipo, tudo ou nada para o conceito, mais ou menos para o tipo — das normas imprecisas, que não devem ser confundidas com tipos, pois saber que algo se aplica mais ou menos é diferente de não saber se algo se aplica. Com efeito, “[...] a evolução tipológica nada teve a ver com as normais imprecisões da linguagem [...]”. Luís Eduardo Schoueri, Direito tributário, p.275. De todo modo, resta a questão: seriam “[...] válidas as normas tributárias imprecisas? A resposta é, em certa medida, paradoxal. Uma norma imprecisa não deixa de ser válida pelo fato exclusivo de sua indeterminação. [...]. Porém, daí não se afirma que não haja restrições ao legislador. [...]. [...] quando o legislador não oferece nenhuma razão para justificar a indeterminação de uma norma tributária, é dizer, quando a imprecisão é ‘caprichosa’ ou ‘arbitrária’, então os juízes podem e devem declarar a invalidade ou inconstitucionalidade das normas imprecisas, em razão da violação do princípio da taxatividade”. Pablo Navarro e Eurico de Santi, São válidas as normas tributárias imprecisas? Revista dialética de direito tributário, n.148, p.80. Por fim, podemos lembrar que, segundo a doutrina, uma das formas de se afastar a imprecisão seria buscando o princípio detrás da regra. “Nesse sentido, princípios morais e de políticas públicas que justificam a criação de uma norma, com determinado conteúdo, em dada interpretação, são condições de inteligibilidade, não propriamente do conteúdo da norma, mas da norma como conteúdo de um

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haver tanto conceito como tipo de tributo no direito positivo, sendo a questão contingente, a

depender de cada ordenamento jurídico247.

3.3.1 A Constituição tipifica e CTN conceitua tributo?

Para o tributo, no direito positivo, ser tipo ou conceito é uma questão meramente

acidental, a depender de volição, que nenhuma teoria pode de antemão, a priori, estabelecer.

Tanto pode a autoridade competente vincular o aplicador da norma jurídica na linha do tudo ou

nada ou seguir pela vertente do mais ou menos. E apesar do presente trabalho não ter por escopo

nenhuma ordem jurídica particular, vemo-nos premidos a desenvolver melhor o tema, o que

faremos com o direito brasileiro como ilustração, cuidando da forma como foi feita a

distribuição de competências.

Se ainda lembramos que tipo é algo fluido, que se manifesta na linha do mais ou

menos, toda a nossa tradição foi construída sobre a negação de tributo como tipo, pois sempre

se buscou preservar ao máximo, dentro do que isso é possível no direito, a ideia de certeza, de

segurança, na identificação dos tributos248. A norma de tributação teria, assim, de permitir a

identificação, na linha do tudo ou nada, de ser o estado de coisas subsumível, ou não, à sua

hipótese. Ademais, por essa linha, a analogia não poderia ser tolerada249. De igual modo, a

ato racional e, portanto, do que se quis dizer com a norma (naquela interpretação)”. Juliano Maranhão, Positivismo jurídico lógico-inclusivo, p.141 (3.10). 247 Um ordenamento jurídico pode optar ou por conceitos ou por tipos. No entanto, esse “ou” não é excludente, mas sim inclusivo: “Indagar se o Direito Tributário contém tipos ou conceitos fechados como alternativas que se excluem, parece-nos inadequado. O certo será indagar pela predominância de uma ou outra forma de pensamento”. Misabel Derzi, Legalidade material, modo de pensar “tipificante” e praticidade no direito tributário, in: Heleno Taveira Tôrres (coord.), Justiça tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário, p.637. 248 Por todos, que tributo no direito positivo brasileiro é um conceito e não um tipo, podemos citar DERZI: “O conceito de tributo é nuclear para o Direito Tributário e deve ser precisado, acertado e determinado de forma conceitual fechada [...]”. Misabel Derzi, Tipo ou conceito no direito tributário?, Revista da Faculdade de Direito da UFMG, n.31, p.259. Entretanto, devemos ter os devidos cuidados com o sentido com que outros autores usam o termo “conceito”, pois dizer que tributo é um conceito nem sempre quer significar que se opõe a tipo. Por exemplo, ATALIBA sempre apontou a hipótese de incidência como um conceito: “A h.i. é conceito, no sentido de que é uma representação mental de um fato ou circunstância de fato”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 1.ed. p.59. Entretanto, é apenas após a quarta edição, quando já conhecia a obra Direito tributário, direito penal e tipo, de Derzi, que podemos cravar que utilizou o verbete “conceito” em oposição a tipo: “Produziu-se, no Brasil, recentemente (1988) notável trabalho técnico [...] sobre o conceito legal fechado em contraste com o tipo. [...]. A h.i. é conceito determinado e fechado, por exigência constitucional, no Brasil. Não cabe, na matéria, falar-se em tipo; é errado invocar-se o princípio da tipicidade, que não satisfaz às exigências da segurança jurídica”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed. p.58. 249 “Se a obrigação somente pode decorrer de lei, não podem ser aplicados os métodos extensivos, por meio de analogia, pois a Constituição não autoriza essa ampliação. Também assim não será admissível basear-se no escopo (ratio legis) para pretender-se restringir ou ampliar uma tributação prevista em lei” Ruy Barbosa Nogueira, Curso de direito tributário, p.114.

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89

tributação por desconsideração de um negócio jurídico deveria ficar restrita à simulação250,

afastando-se o grande guarda-chuva que é a expressão “abuso de formas”251. Tomando isso em

conta, sem maiores luxos, pois o escopo do nosso trabalho não é esse, podemos dizer que, no

direito positivo brasileiro, no que diz respeito à norma de tributação, deve ser ela compreendida

como conceito e não como tipo.

As implicações da leitura da norma de tributação como conceito, no campo dinâmico,

são evidentes. Por um lado, quando da confecção da norma de lançamento tributário, a

descrição do fato ocorrido deve ser perfeitamente transposta para a abstração da hipótese da

norma de tributação. Desse modo, ou o fato se adequa ou não se adequa, com a questão sendo,

portanto, exaustiva. Logo, a norma de tributação deve ser lida como conceito, amarrando,

quando da trama da norma de lançamento, a autoridade lançadora a um tudo ou nada. Por outro

lado, há de se saber se a norma de competência que disciplina a norma de tributação, que deve

ser lida como conceito, necessita ela mesma de ser um conceito.

Partindo também da linha tradicional, que impõe a necessidade de certeza e segurança,

não vemos como seria possível compreender a distribuição de competência tributária como uma

sugestão ao legislador infraconstitucional, como um ponto de partida para a sua atuação, pois,

por esse enfoque, deve ser apreciada como um ponto de chegada, do qual não se pode passar252.

Desse modo, se a premissa maior (norma de competência) dá as notas “a” e “b” como relevantes

e a premissa menor (norma de tributação) apresenta como pontos identificáveis “a” e “c”, mas

não b, então não haverá exercício de busca de outros complementos, finalidades,

250 “Na simulação, quer-se o que não aparece e não se quer o que aparece”. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.I, p.100. 251 Não desconhecemos que, entre nós, já se afirmou: “Em Direito Tributário, autoriza-se o intérprete, quando o contribuinte comete um abuso de forma jurídica [...], a desenvolver considerações econômicas para a interpretação da lei tributária e o enquadramento do caso concreto em face do comando resultante não só da literalidade do texto legislativo, mas também do seu espírito da mens ou ratio legis”. Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.71. Entretanto, não podemos perder de vista que tal redação data de 1965, antes mesmo do advento do Código Tributário Nacional. Depois de 1988, quanto à “consideração econômica”, SCHOUERI chegou a afastá-la por falta de previsão legal: “[...] temos que embora a ‘consideração econômica’ não possa ser afastada [...], sua aplicação não é possível, por falta de previsão legal, in casu, em lei complementar, disciplinadora das ‘normas gerais em matéria de legislação tributária’ (CF, art. 146, III). Luís Eduardo Schoueri, Planejamento fiscal através de acordos de bitributação: treaty shoping, p.79. Ocorre que já há, desde a LC 104/2001, autorização para que sejam desconsiderados atos e negócios com finalidade dissimuladora, faltando, entretanto, lei ordinária prevendo os procedimentos para tal desconsideração. De todo modo, quanto ao mérito da própria LC, acompanharemos GRECO: “A meu ver, adotou-se um modelo distorcido, que não assegura o equilíbrio e distanciamento que o exame das questões concretas enseja, especialmente em razão da gravidade de que se reveste o ato de desconsiderar atos ou negócios jurídicos licitamente praticados. Não é o modelo que considero mais adequado, mas é o de direito positivo”. Marco Aurélio Greco, Constitucionalidade do parágrafo único do artigo 116 do CTN, in: Valdir de Oliveira Rocha (coord.), O planejamento tributário e a lei complementar 104, p.204. 252 “[...] tipo como ordenação do conhecimento em estruturas flexíveis, de características renunciáveis, que admite as transições fluidas e contínuas e as formas mistas, não se adapta à rigidez constitucional de discriminação da competência tributária”. Misabel Derzi, Direito tributário, direito penal e tipo, p.137.

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contextualizações, ambientes etc. que dê jeito. Disso se conclui, então, que deve ser a

invalidação da norma criada (ver 2.10), norma de tributação (a e c), por não ser possível

comungá-la, por falta de identidade, com a norma de competência tributária (a e b). A norma

de competência tributária contém, por essa linha de raciocínio, tal qual a norma de tributação,

conceito e não tipo.

Esse raciocínio segue uma técnica de argumentação bem específica, pois se tipo é algo

fluido, que se contenta com a aproximação, e se o direito pátrio, em relação a tributo, qualquer

que seja a norma tributária, exige certeza e segurança, pontos não disputáveis, logo, não pode

tributo ser um tipo, o que implica, pelo princípio do terceiro excluído253, que seja um conceito,

em qualquer das suas formas triádicas. Com efeito, como só há duas valências para o verbete

“tributo”, conceito e tipo, e se tipo ele não pode ser, em razão da segurança e certeza, então

somente lhe resta ser um conceito. Ocorre que os defensores de tributo como tipo se valem

igualmente da mesma técnica, de dizer primeiramente o que não é tributo, para então dizer o

que é. Inicialmente expõem, à sua maneira, o que é conceito, para então afastar que conceito

seja um valor que se possa atribuir ao termo tributo. Depois, passam à afirmativa e marcam,

gravam com ferrete, que se tributo não é um conceito, logo ele só pode ser um tipo. Entretanto,

há aqui um ponto a ser frisado: o que os defensores do tipo entendem por conceito muito se

assemelha ao ritual da malhação de Judas. De fato, o que seja um conceito é apresentado por

tal corrente como se fosse um boneco do traidor, o mais caricato possível, para que possa ser

espancado. Alegam desde a impossibilidade do uso de conceitos até que, mesmo se seu uso

fosse possível, disso decorreriam graves dados à capacidade contributiva, pois, por questão de

justiça, seria necessário manter-se sempre certa dose de indeterminação em vista do caso

concreto254. São contra os conceitos, em curta síntese, porque entendem os conceitos dentro do

mundo das soluções únicas. Para nós, o que fazem, de fato, é atribuir a todos os que não

comunguem da ideia de que o direito deveria ser composto apenas de tipos a condição de

membros da Escola da Jurisprudência dos Conceitos255.

253 “Lei do Terceiro excluso (terceiro excluído) é a lei que assevera ter uma proposição apenas um de dois possíveis valores-verdade”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “terceiro excluso”, p.208. 254 “[...] a utilização dos conceitos abstratos pelas leis tributárias, além de ser uma pretensão praticamente inatingível, e de constituir-se em flagrante prejuízo à capacidade contributiva que se pretende mensurar com a tributação, causa grave lesão também à segurança jurídica, uma vez que o uso de uma linguagem inequívoca só seria alcançado com o mais alto grau de abstração, o que levaria a (sic) exclusão de toda conexão com a realidade econômica”. Ricardo Lodi Ribeiro, A tipicidade tributária, Revista de direito do estado, n.8, p.236. 255 “Foi PUCHTA quem [...] conclamou a ciência jurídica do seu tempo a tomar o caminho de um sistema lógico no estilo de uma ‘pirâmide de conceitos’, decidindo assim a sua evolução no sentido de uma ‘Jurisprudência dos conceitos formal’”. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p.23 (I.II.1).

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Até certo ponto, a culpa pela distorção do que seja um conceito, pelo seu viés

caricaturizado, não deve recair só sobre alguns, pois muitos dos que negam a possibilidade de

tributo ser um tipo adotam o entendimento de que a Constituição teria intepretação única,

dando, por conseguinte, à legislação infraconstitucional um caráter meramente declaratório256.

De nossa parte, não vemos como possa ser acolhido tal ensinamento, uma vez que a imprecisão

é um traço intrínseco na semântica do direito, e sempre vai haver uma margem maior ou menor

de interpretação257. Interpretação correta, no sentido de a única — ao menos para os casos

difíceis258 —, é sonho de uma noite de verão, no qual, bem vista as coisas, não sobra muito

mais do que a rainha das fadas apaixonando-se por alguém com cabeça de burro259. É com o

dizer que existe um único caminho260. Assim, bem vistas as coisas, deve-se, de pronto, afastar

a associação falsa de que quem reconhece indeterminação na norma de competência contida na

Constituição obrigatoriamente seria adepto de alguma teoria tipológica. Tal forma de ver o

mundo seria o mesmo que atribuir a um kelseniano os pecados da Escola da Exegese261. Não

deriva, de não ser possível alcançar a univocidade, com efeito, que tudo é tipo.

256 CARRAZZA, por exemplo, não vê problema algum em afirmar que um tema como a competência tributária, sobre o qual há livros e mais livros escritos, e muitos ainda por escrever, foi “esgotado” pela Constituição: “O assunto [competência tributária] foi esgotado pelo constituinte. Em vão, pois, buscaremos, nas normas infraconstitucionais [...] diretrizes a seguir [...]. Nesse campo, elas, na melhor das hipóteses, explicitam o que, porventura, se encontra implícito na Constituição [...]”. Roque Carrazza, Princípios constitucionais e competência tributária, p.149. Não é o caso aqui de negarmos que o constituinte tenha regulado muito — a depender da visão de mundo, excessivamente —, mas disso vai uma distância de que tenha regulado tudo. Entretanto, a impressão que temos é que, para o citado autor, tudo o que foi escrito, e o que venha a ser escrito, sobre o dito tema tem um caráter meramente declaratório, de revelar o que já está na Constituição, que, afinal, já esgotou o tema. 257“Tem sempre de ficar uma margem, ora maior ora menor, de livre apreciação, de tal forma que a norma do escalão superior tem sempre [...] o caráter de um quadro ou moldura a preencher por este ato”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.388 (VIII.1.a). 258 Se nos filiássemos a HART, poderíamos dizer que há, no direito, os casos fáceis, pois “[...] a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação [...] através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso”. Herbert Hart, O conceito de direito, 148 (VII.1). Por essa linha, para os casos fáceis, seria possível falar-se de interpretação única. Entretanto, se aceitarmos a existência de casos fáceis, devemos, por coerência, concordar que existem os casos difíceis. Restaria então a questão de saber se é possível, para esses casos difíceis, uma interpretação única. DWORKIN diz que sim: “O ‘mito’ de que num caso difícil só existe uma resposta correta é tão obstinado quanto bem-sucedido. Sua obstinação e seu êxito valem como argumentos de que não se trata de um mito”. Ronald Dworkin, Levando os direitos a sério, p.446. De nossa parte, levamos os direitos muito a sério para acreditar que, qualquer que seja o caso, fácil ou difícil, haja uma única resposta correta. 259 “NICO FUNDILHOS O que você vê? A minha cabeça parecendo com a de um asno, não é mesmo? [...]. Vou subir, vou descer e vou cantar para eles saberem que não estou com medo. [...]. (Seu canto acorda Titânia). TITÂNIA Quem é o anjo que vem me acordar em minha cama de flores? [...]. Eu lhe imploro, doce mortal, cante novamente: meus ouvidos estão enamorados de seu canto. Meus olhos estão fascinados com sua forma”. William Shakespeare, Sonho de uma noite de verão, p.57-58 (III.I). 260 “‘Este — é meu caminho, qual é o vosso?’, assim respondi aos que me perguntaram pelo ‘caminho’. Pois o caminho — não existe”. Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p.186. 261 Não podemos negar que a doutrina kelseniana, vez ou outra, como no caso das lacunas, tocou-se com a escola da exegese, pois esta “[...] via na lei escrita [...] um sistema de conceitos entre si perfeitamente articulados e coerentes”. Paulo Jorge de Lima, Dicionário de filosofia do direito: verbete “escola da exegese”, p.82. Já aquela entendeu que não haveria lacunas no direito, uma vez que “[...] quando a ordem jurídica não estatui qualquer dever

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A partir da posição de que há uma certa indeterminação nas normas de competência

tributária presentes na Constituição — mais para uns tributos, menos para outros — o quê, de

pronto, aceitamos, tem surgido uma corrente que aponta serem tais normas tipos, o que, desde

já, refugamos. Para essa corrente, os conceitos somente apareceriam na lei complementar, que

teria, então, a função de fechar o sistema. Assim, a Constituição tipificaria e a lei complementar,

que para a maior parte dos casos é o CTN, conceituaria262-263. Ilustrando esse raciocínio, a

Constituição teria tipificado renda ao dar nome ao imposto264, mas apenas no CTN

encontraríamos o conceito de renda265. Como o que há na Constituição não é precisado, estando

aberto, ganhando concretude apenas com a leitura conjugada do CTN, com o que

concordamos266, então, pela posição que imagina conceito como algo sem indeterminação, com

o que não concordamos, as normas de competência tributária, que carecem de complemento da

lei complementar, somente poderiam ser tipos.

Observamos facilmente que estamos diante de um caso claro de uso de tipo em

oposição a conceito, que entende este como algo determinado, que não poderia ser margeado

de ambiguidade. No entanto, nossa posição é que “[...] da indeterminação do significado de um

termo constitucional não decorre necessariamente a existência de um tipo, como normalmente

de um indivíduo de realizar determinada conduta, permite esta conduta”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.273 (V.2.g.γ). Assim, “[a] ordem jurídica não pode ter quaisquer lacunas. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.213 (I.XI.F.a). Posição que KELSEN manteve até o fim: “[...] toda conduta de um indivíduo que está sob uma ordem jurídica [...] é juridicamente regulada. Então pode-se [...] falar de uma plenitude do ordenamento jurídico. Então não pode haver ‘lacunas’ no Direito [...]”. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, p.168 (31). 262 Podemos chamar de “corrente de SCHOUERI” aquela que lê “tipo” na norma de competência: “[...] enquanto o constituinte contemplou a realidade econômica do ponto de vista tipológico, com a fluidez a ele inerente, impôs ao legislador complementar a tarefa de expressar a mesma realidade através de conceitos [...]”. Luís Eduardo Schoueri, Direito tributário, p.277. E, como membro dessa corrente, podemos apontar RAMOS MACHADO: “Se nas competências fossem empregados conceitos, e não tipos, o legislador complementar não teria liberdade para dirimir os conflitos de competência de mais de uma maneirar”. Raquel Cavalcanti Ramos Machado, Competência tributária: entre a rigidez do sistema e a atualização interpretativa, p.99. 263 A depender de como se compreende tipo e conceito, as conclusões podem ser bem diversas, inclusive com a posição de que, na verdade, o CTN conceituaria, pois aberto, e a lei ordinária, que instituiu o tributo, tipificaria, pois fechada: “Entre as normas gerais que completam a disciplina da matéria em um encadeamento sistemático, temos, por exemplo, definidos, em maior grau de abstração na escala conceitual, os limites circundantes que deverão ser seguidos pelo legislador ao proceder a tipificação na criação do tributo”. Yonne Dolacio de Oliveira, A tipicidade no direito tributário brasileiro, 121. 264 CF/88: Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre: [...] III - renda e proventos de qualquer natureza; [...]. 265 CTN: Art. 43. O imposto, de competência da União, sobre a renda e proventos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: I - de renda, assim entendido o produto do capital, do trabalho ou da combinação de ambos; [...]”. 266 “Em nosso socorro, para uma resposta positiva do que seja renda, deve vir aquele legislador complementar tão desprezado (art. 146, III, a, da CF)” Valterlei A. da Costa e Rosicléia Macedo Linhares, Conceito de renda: lucro ou acréscimo patrimonial? Argumentando com as consequências, Revista de ABRADT Fórum de direito tributário — RAFDT, v.3, p.230.

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se supõe”267. Afinal, uma coisa é a palavra “renda” ter um amplo espectro, cabendo ao

legislador complementar reduzi-lo; outra, bem diferente, é o legislador complementar poder

conceituar como base para o imposto algo que é próximo a renda, mas que não é exatamente

renda, que margeia, sem, de fato, sê-lo, o que, no entanto, seria possível se a norma de

competência fosse um tipo.

De nossa parte, quando usamos “conceito”, queremos dizer moldura: a aplicação

normativa deve resultar em um produto que dentro dela deve estar, e não mais ou menos nela

contida. Assim, se a premissa maior for um tipo, a premissa menor pode apenas tanger à

moldura, enquadrando-se um pouco dentro, um pouco fora, bastando o aproximado;

apreciando-se, além disso, para a ratificação do vinculado entre as normas fundante e fundada,

outras questões que não meramente normativas, como, v.g., dados históricos. No conceito, por

sua vez, a premissa menor é arremetida à moldura, estando nela contida. Por essa linha, se a

premissa maior dá as notas a e b como relevantes, mesmo que com um bom grau de

indeterminação, a premissa menor poderá apresentar como pontos identificáveis a’ e b’, ou a’’

e b’’, e tudo estará certo; contudo não poderá valer-se de a e c, o que, a depender do contexto,

seria possível no caso do tipo.

Assim, quando nos referimos, no direito positivo brasileiro, a conceito constitucional

de tributo, em oposição a tipo, fazemo-lo não porque não tenha ele algum grau de

indeterminação, mas sim porque vincula o legislador infraconstitucional, na linha do tudo ou

nada, com base em um perimetral. O que o conceito faz não é dar um exemplo para o começo

da atuação, mas impor um ponto final, um marco, do qual não se pode ultrapassar. Estamos,

assim, trabalhando com a ideia de que há um círculo maior, e que até as bordas desse círculo

maior pode o legislador infraconstitucional ir, com liberdade de atuação, mas que, a partir de

lá, incorrerá em inconstitucionalidade e a norma posta deverá ser invalidada.

267 Humberto Ávila, Competências tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito, p.60.

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PARTE II.II – CONCEITO ESTÁTICO DE TRIBUTO

“Somente uma história, um caminho resta narrar agora: aquele que é” 268.

Parmênides

Uma teoria pode escolher um ponto de apoio sem a necessidade de explicar o porquê

da opção. Caso de axioma. E é isso que, neste momento, pretendemos fazer, apontando um

marco para a construção do trabalho, resultando em teoremas, mas mantendo sempre o nexo do

que segue com relação à baliza primeira269. Dito isso, vejamos agora como pode ser feito.

Em nosso estudo, guardada a devida distinção entre norma jurídica e proposição

jurídica, tomamos tributo por uma proposição que tem função aglutinadora de certas normas

jurídicas, compartilhando da mesma estrutura (ver 3.2), o que nos amarra a uma específica

ordenação, haja vista a homogeneidade sintática por nós adotada (ver 2.5). A partir disso, para

conceituarmos tributo, o passo seguinte deverá ser estabelecer, por convenção, um particular

conteúdo normativo, com fins de apartar a norma tributária daquelas que não são tributárias.

No entanto, antes disso, devemos descortinar três questões prévias. A primeira envolve

especificarmos se é sobre a norma primária ou sobre a norma eventual que estamos a discorrer

(ver 2.8). Ou seja, o caso gira em torno de saber se estamos lidando com o binômio que contém

a primeira consequência ou com o que acomoda a segunda normativa, ou ainda com a norma

jurídica em sua completude. Outra, diz respeito à divisão por nós adotada, segundo a qual as

normas jurídicas são ou normas de conduta ou normas de competência (ver 2.9). Assim,

precisamos, ao conceituar norma tributária, de antemão, apontar se a conduta que ela prescreve

é a regulatória de outras normas jurídicas ou não. Por fim, devemos fazer referência a qual

classe de norma jurídica o tributo pertence, dentre aquelas organizadas a partir da gradação de

particularidade de conteúdo, indo desde a abstrata, eventiva e geral até a concreta, ocorrente e

individual (2.11). Devemos, portanto, em relação a tal aspecto, apontar o coeficiente de

especificação normativo.

Três escolhas preparatórias, assim, impõem-se antes de conceituarmos tributo. E são

essas escolhas que darão nosso Meridiano de Greenwich, nosso ponto de apoio, para, então,

268 Fragmento encontrado em Simplício, Comentários à Física, 144.25-146.27, in: Jonathan Barnes, Filósofos pré-socráticos, p.155 (II.9). 269 Termos como “axioma” e “teorema” talvez não sejam adequados em uma teoria do tributo. Entretanto, pedimos licença para usar tais palavras, mesmo que de forma aproximada daquela que é feita pela matemática e pela metalógica contemporâneas: “Estas distinguem entre axiomas e teoremas. Os primeiros são enunciados primitivos (às vezes também chamados postulados) que se aceitam como verdadeiros sem provar sua validade; os segundos são enunciados cuja validade se submete à prova”. José Ferrater Mora, Dicionário de filosofia: verbete “axioma”, p.60.

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desenvolvermos o restante do trabalho a partir delas, uma questão de coerência270. Com isso

em conta, em resposta ao primeiro tópico, a primazia caberá à norma primária, pois a

analiticidade faculta-nos um corte em relação à norma completa, com o isolamento de uma

parte sua, uma vez que as vantagens advindas da constrição do perímetro de conhecimento

suplantam a lassidão de um estudo total (ver 4.1).

Agora, de ser tributo uma norma primária, não nos desobriga de, com isso, apontá-lo

ou como norma de conduta ou como norma de competência, haja vista que a norma primária

pode assumir ambas as formas. E é nesse momento que as posições estática e dinâmica se fazem

presentes. Se discorrermos sobre a norma tributária em si, sem preocupações com sua fonte de

validade, bem como com a validade que ela representa para outras normas, é então o caso de

falarmos de um conceito estático de tributo. Com isso, tributo é norma jurídica, encontrada por

cotejo com uma proposição cuja função é ser identificadora, que prescreve uma conduta que

não é a de assentar outra norma jurídica, permitindo-nos assim deixar para uma fase posterior

a apreciação das proposições que arregimentam a norma que fundamenta essa nossa norma-

marco, bem a norma que nela é fundamentada. Estaticamente, as coisas simplesmente são, não

importando que as coisas passem, que vieram e que irão, conduzindo-nos a lembrar

PARMÊNIDES271. Assim, estaticamente o que interessa é tributo como norma de conduta, com

tal e tal conteúdo, a ser por nós acordado, para distingui-lo das demais normas jurídicas.

Entretanto, não basta, como ponto de partida, ter nosso marco como norma primária

de conduta, pois isso ainda diz pouco, cabendo igualmente, antes da conceituação em si, expor

o grau de especificidade de que se partirá. E, para tanto, mais uma vez, faz-se mister tomar

partido, o que realizamos apontando tributo, em seu conceito estático, como norma primária de

conduta, com conteúdo abstrato, eventivo e geral, ou seja, norma que contém, na hipótese, a

descrição de um estado de coisas projetado no futuro, ligada deonticamente a uma

consequência, que contempla, por sua vez, uma conduta em aberto, com alcance geral dos

sujeitos a serem por ela atingidos, e que somente poderá ser precisada a posteriori, mediante

dados concretos obtidos da verificação da hipótese.

270 Com EINSTEIN, aprendemos que o importante é ter um referencial e não qual seria ele: “[...] se K’ é um sistema de coordenadas que efetua um movimento uniforme e sem rotação em relação a K, os fenômenos da natureza que se desenrolam em relação a K’ obedecem exatamente às mesmas leis que em relação a K. Chamamos este enunciado de ‘princípio da relatividade’ (no sentido restrito)”. Albert Einstein, Teoria da relatividade espacial e geral, p.19 (5). 271 “A oração de Parmênides é: ‘ó deuses, concedei-me apenas uma certeza! E que ela seja uma tábua sobre o mar da incerteza, apenas larga o suficiente para permanecer sobre ela. Tomais para vós tudo o que vem-a-ser, o que é exuberante, multicolorido, florescente, enganador, excitante e vivo; e dai-me apenas a única, pobre e vazia certeza’”. Friedrich Nietzsche, A filosofia na época trágica dos gregos, XI, in: Os pré-socráticos, p.133.

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Feita essa precisão, nosso marco zero, adotada ,como ponto de partida, a norma em

sua feição inerte, é por ela que devemos iniciar a nossa conceituação de tributo, conceito

estático nesse momento, com a passagem ao conceito dinâmico só sendo possível depois,

quando então o escalonamento da ordem jurídica, do estar abaixo e acima da referência, far-se-

á presente. Aí, nesse segundo momento, ver-se-á a tríade, na qual se ampara esse trabalho,

transluzir, pois se de um ponto de vista unitário, tributo é norma jurídica, com os devidos

desdobramentos, a unicidade dá lugar a uma trinca, redundando, com isso, em três normas

tributárias. De toda sorte, nesse primeiro momento, antes de clarificar o terceto que envolve o

estudo do tributo, devemos fixar-nos em nossa Estrela Polar, produzindo um conceito estático,

que denominamos de “norma de tributação”272. Com ela, poderão ser precisadas outras duas

normas, a serem estudadas em seu aspecto dinâmico, em tópico posterior (ver II.III), as quais

já deixamos consignadas como “norma de competência tributária” (ver 5) e “norma de

lançamento tributário” (ver 6).

As três questões prévias apontadas, uma vez acordadas, trazem-nos até aqui, a um

estreitamento do campo de estudo, pelo qual já é possível construir uma proposição que

identifique tributo como norma primária de conduta, com grau de especificação abstrato,

eventivo e geral. Dado isso, é então chegado o momento de saturar os categoremas (hipótese e

consequência), com as devidas ressalvas de que estamos pactuando e não revelando o conteúdo

da nossa norma de tributação.

272 CARVALHO utiliza-se da expressão “norma tributária em sentido estrito”: “[...] nada mais congruente do que designar ‘norma tributária em sentido estrito’ àquela que assinala o núcleo da percussão jurídica do tributo [...], e ‘normas tributárias em sentido amplo’ a todas as demais”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.79. COÊLHO vale-se de “norma impositiva”: “À norma de conduta de conteúdo tributário chamaremos de ‘impositiva’”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.83.

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4 NORMA DE TRIBUTAÇÃO

4.1 TRIBUTO COMO NORMA PRIMÁRIA

Norma jurídica é a dupla prescrição de conduta condicional, unidas por disjuntivo,

limitado ao possível, que retira a sua validade de outra norma jurídica (ver 2.8). Com isso, temos

a norma jurídica em sua inteireza, apresentando uma estrutura mínima, mas completa. No

entanto, isso não impede analiticamente sua apreciação em partes, podendo o estudioso focar-

se, desde que tenha em mente o quadro maior, quer na norma primária, quer na norma eventual.

Decorrem dessa analiticidade, para a conceituação de tributo como norma jurídica, três

possibilidades: a) tributo como hipótese ligada deonticamente à prescrição ou não ocorrência

da conduta primária devida concatenada, outrossim, deonticamente à conduta eventual (norma

completa); b) tributo como hipótese ligada deonticamente à conduta primária (norma primária);

e c) tributo como descumprimento da conduta primária concatenado por imputação à conduta

eventual (norma eventual).

Quanto à primeira situação (a), um estudo completo, tendo tributo como norma

primária e norma eventual, descartá-la-emos. Isso porque tornaria o presente estudo

demasiadamente volumoso, maior do que nossas forças, podendo encontrarmos, se seguirmos

por esse caminho, o mesmo fim de Pahkóm, que, ao querer tudo, não teve nada273. Ademais,

um estudo tão completo, não está de acordo com a forma com que se usa o termo tributo, pois,

além da obrigação tributária, ainda teríamos de considerar a execução forçada pelo não

cumprimento da obrigação tributária. Com essa separação, não olvidamos que é possível

estudar a norma jurídica como um todo, podendo-se, inclusive, chegar à conclusão de que esse

é o ideal, mas o estudioso pode muito bem contentar-se com menos, desde que respeite, ao

nosso ver, duas regras.

Uma, de ordem interna, que pode ser desdobrada. O fragmento que é elevado, para

estudo, à condição autônoma deve ser passível de um mínimo de desenvolvimento em face do

quadro maior. Tal desenvolvimento, no entanto, é relacional, pois, do contrário, seria

independência, e o estudo poder-se-ia iniciar pelo fragmento em si, sem necessidade de

lembrança do todo274. Em razão disso, as regras que valem para o todo, quadro no qual está

273 “Foi cobiça desenfreada! Arruinei o negócio, vou perder tudo. Não vou conseguir chegar antes do pôr do sol”. Atemorizado, corria, suava muito e sentia que perdia o fôlego”. Liev Tolstói, De quanta terra precisa o homem?, p.46. 274 Ao que é independente em relação ao todo, HUSSERL denomina de “unidade”, já ao que é dependente em relação a esse mesmo todo, designa de “momento”: “Cada parte relativa a um todo G independente, nós nomeamos

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inserido o fragmento, valem para ele, dado então como fração destacada275. Além disso, essa

autonomia deve apresentar uma mínima significação, o que é uma concessão à semântica, pois

o trabalho pode ser parcial em relação ao todo, mas não incompleto em relação a si mesmo276.

Em suma, coerência com o todo do qual faz parte, e completude de ideia em relação ao que é

específico, por mais pontual que seja o estudo, não podem faltar. Com isso em mente, coerência

e completude, tanto um estudo da norma primária como um da norma eventual podem ser feitos

de forma individualizada. Afinal, qualquer um dos dois temas, qualquer uma das duas partes da

norma completa, permitiria um grande desenvolvimento, sem se desrespeitar os marcos gerais

da ideia de que somente em sua inteireza há norma jurídica.

Quanto à segunda regra, agora de ordem externa, o senão é a utilidade. Um estudo

muito parcial, muito específico, pode não receber da comunidade acadêmica a chancela de

proveitoso. Internamente, pode até ser que a primeira regra seja cumprida, com o corpúsculo

estudado guardando relação de coerência com o organismo, bem como apresentando um

mínimo de autonomia. Entretanto, disso pode não decorrer que, na opinião do sodalício dos

doutos, seja, de algum modo, útil277. Assim, algo muito específico pode não ser bem acolhido.

De toda sorte, não cremos, em matéria tributária, que apenas um estudo completo —

norma primária e norma eventual — poderia atender às duas regras por nós apontadas.

Internamente, quer seja isolando a norma primária, quer a norma eventual, é possível manter a

de uma unidade, cada parte dependente relativa a esse mesmo todo G, um momento (uma parte abstrata)”. Edmund Husserl, Investigações lógicas: sobre a doutrina do todo e da parte, p.266. Traduzimos livremente, no original: “Jeden relativ zu einem Ganzen G selbständigen Teil nennen wir ein Stück, jeden relativ zu ihm unselbständigen Teil ein Moment (einem abstrakten Teil) dieses selben Ganzen G”. Edmund Husserl, Logische Untersuchungen: III Zur Lehre von den Ganzen und Teilen, s.266 (17). 275 AVEIRO, ao discorrer sobre ICMS e a Exportação, também destacou o valor da coerência: “[...] o presente trabalho tomará como pressupostos o sistema jurídico sob a perspectiva da lógica alética, a qual, [...], tem a coerência como requisito indispensável [...]”. Júlio Aveiro, ICMS e a exportação: alcance da imunidade, in: Maurício Timm do Valle et al. (coord.), Ensaios em homenagem ao Professor José Roberto Vieira: ao mestre e amigo com carinho ..., p.759. 276 Mesmo um autor como CHOMSKY, quando adotou uma posição estrutural dotada de vertiginosidade, deixou um lugar para semântica: “[...] gostaríamos que o framework [estrutura] sintático da língua, isolado e exibido pela gramática, fosse capaz de sustentar a descrição semântica, e naturalmente daremos mais valor a uma teoria da estrutura formal que conduza a gramáticas que satisfaçam esse requisito de maneira mais completa”. Noam Chomsky, Estruturas sintáticas, p.150 (9.3) (traduzimos entre colchetes). 277 Num primeiro momento, podemos dizer que apenas a cada homem cabe o poder de julgar o que lhe seja útil. Assim, “[...] se os meios que ele está para usar, ou a ação que está praticando, são necessários ou não à preservação de sua vida e membros — isso só ele próprio, pelo direito de natureza, pode julgar”. Thomas Hobbes, Do cidadão, p.32 (I.9). Entretanto, se queremos algo menos solipsista, podemos ficar com o sufrágio geral dos experimentados no tema: “Se a questão é determinar qual de dois prazeres vale mais fruir, ou qual de dois modos de existência é o mais gratificante para os sentimentos, independentemente dos seus atributos morais e das suas consequências, o juízo daqueles que estão qualificados pelo conhecimento de ambos (ou, se estiverem em desacordo, do da sua maioria) tem de ser admitido como final. E esse juízo relativo à qualidade dos prazeres tem de ser aceito sem menor hesitação, pois não há qualquer outro tribunal a que recorrer mesmo na questão da quantidade. Que meios existem para determinar qual é a mais aguda de duas dores, ou a mais intensa de duas sensações aprazíveis, a não ser o sufrágio geral dos que estão familiarizados com ambas?”. John Stuart Mill, Utilitarismo, p.104-105 (2).

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coerência em relação a um modelo completo, realizando, sempre que for necessária, a devida

aproximação com o todo. Além de que, com qualquer das duas partes da norma completa, seria

possível encontrar uma autonomia. Por vez, externamente, quanto à utilidade, não vemos razões

para maiores esclarecimentos, pois está por aí toda uma literatura que, em vez de tratar a norma

jurídica em sua feição completa, prefere vê-la de forma segmentada, sendo, essa é a nossa

impressão, muito menos numerosos os trabalhos nos quais se estudam, de forma conjunta, a

conduta devida e a consequência pelo descumprimento da conduta devida. Dito isso,

deixaremos de conceituar tributo como norma jurídica completa, descartando, em razão disso,

a situação (a).

Quanto à situação (c), tributo como, na hipótese, não ocorrência de conduta primária

e imputação, na consequência, de conduta eventual, descartemo-la também, pois, se é óbvio

que cada um bem pode dar o nome que quiser ao objeto delimitado para estudo, nem por isso

deve escolher um signo que tenha na comunidade a quem dirige seu trabalho um uso totalmente

distinto. Afinal, “[a] primeira regra de bom gosto ao escrever é usar palavras cujo significados

não serão mal interpretados [...]”278. Quanto a nós, desconhecemos quem use tributo como

norma eventual (ou norma secundária ou ainda norma sancionadora). Na verdade, são

antônimos279. Ademais, mesmo que, com toda a boa vontade, aceitássemos que assim se

associasse o termo tributo à expressão “norma eventual”, o que, então, seria conectado à

expressão “norma primária”? Igualmente tributo, denominando coisas diferentes pelo mesmo

nome? Ou então, numa total inversão do que até hoje vem sendo praticado, falaríamos de

sanção? Com isso em conta, descartamos conceituar tributo como norma eventual.

Resta-nos, portanto, a variação (b). Tributo é norma primária280. Com isso, entretanto,

tributo não deixa de ser norma jurídica, apesar de não deixarmos de reconhecer que estamos

278 Charles Peirce, Semiótica, p.41 (I.B.2.223) 279 “Os antônimos são unidades de sentidos contrários [...]”. Jean Dubois et al., Dicionário de lingüística: verbete “antonímia”, p.56. 280 Ao afirmarmos que tributo é norma primária, estamos bem acompanhados, pois igualmente assim pensa CUNHA: “Tributo, do ponto de vista sintático-semântico, pode ser definido como uma norma primária [...]”. Carlos Renato Cunha, O SIMPLES nacional, a norma tributária e o princípio federativo: limites da praticabilidade tributária, p.81-82. Deve-se, ainda, ter o devido cuidado com a nomenclatura, pois há outros que entendem ser tributo uma das partes da norma completa (que é bimembre), aquela que dispõe sobre a conduta primeiramente devida, sem, entretanto, utilizar-se do adjetivo “primária”. Ancorados em Cossio, CARVALHO e COÊLHO falam de endonorma para conceituar tributo: “[...] tributo, em sua configuração estática, é a endonorma [...]”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.99. “As normas tributárias são do tipo impositivos ou endonormas [...]”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.88. Já GRECO, com base em Kelsen (ver 2.8), entende tributo por norma secundária: “[...] se — conforme a Teoria Pura — só é norma primária aquela que estabelece como devida uma sanção, tributo será um tipo de norma secundária”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.35.

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usando uma metonímia281. Assim, no plano estático, podemos promover um aclaramento do

que entendemos quando expomos que tributo é norma jurídica: tributo é norma primária, é uma

hipótese ligada deonticamente a uma conduta devida primariamente, cujos conteúdos de

saturação, quando referentes a conceito do direito, são pactuados com fim aglutinador, no qual

possam, ao redor do rótulo “tributo”, orbitar uma série de hipóteses e consequências. Assim,

tributo, como proposição normativa que espelha a estrutura da norma jurídica, em um conceito

do direito, não é algo único, particular, sem replicação. É, ao contrário, um coagulador, algo

que serve como farol, como guia no estudo; luz para a qual se atraem as normas jurídicas quando

precisado um específico ordenamento jurídico, adjetivando-as de tributárias (ver 3.1).

Com essa inicial demarcação, podemos então dar um passo adiante na nossa

conceituação, pois se tributo é norma primária, tal qual todas as outras normas primárias, então

possui, na hipótese, a descrição de um estado de coisas, de um fato, e, na consequência, a

prescrição modalizada de uma conduta humana (ver.2.5). O próximo passo, portanto, é saturar

os categoremas, o que faremos por convenção, para que, em razão de diferenças semânticas,

possam ser identificadas as normas tributárias. Dito isso, primeiramente tratemos da hipótese

da norma primária. Depois, estudemos a consequência.

4.2 HIPÓTESE DA NORMA DE TRIBUTAÇÃO

Ao adotarmos a tese da homogeneidade sintática da norma jurídica, vinculamo-nos a

uma posição na qual somente é devida a conduta diante de uma condição (ver 2.5). Em razão

disso, se todas as normas jurídicas apresentam hipótese282, o mesmo deve ser dito da norma de

tributação que, afinal, é uma norma jurídica. Isso posto, é possível entendermos o porquê se

afirma que a obrigação tributária decorre de um fato lícito, questão que, para nós, é de relação,

pois se o fato é lícito, é porque se encontra descrito na hipótese da norma primária e não por

uma qualidade inata sua. Ponto, portanto, relacional (ver 4.2.1.1). De todo modo, o tema da

licitude é a pedra de toque para apartamos tributo quer de multa quer de indenização. Se tributo

é nome que se dá a uma norma primária, a partir do cotejamento com uma proposição acordada,

multa e indenização são epítetos que podem assumir uma norma eventual (ver 4.2.1.2).

281 “As relações objetivas, que conduzem ao emprego metonímico de uma palavra ou expressão, podem ser das mais variadas: a) relação entre a parte e o todo [...]”. Joaquim Mattoso Camara Jr., Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa: verbete “metonímia”, p.208. 282 Na verdade, em sua feição completa, toda norma jurídica apresenta duas hipóteses e duas consequências, sendo as hipóteses vinculadas às consequências por um dever-ser e os dois jogos de proposições (hipótese-consequência e hipótese-consequência), ligados por disjunção.

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Ademais, se tributo é norma primária, não pode ser escamoteado o tema da possibilidade de

tributação do ilícito (ver 4.2.1.3). Depois, por termos guardado na memória a distinção das

hipóteses em abstrata e concreta (ver 2.11), discorreremos sobre as razões para eleger a norma

de tributação como uma norma abstrata, ou seja, de conter ela um estado de coisas projetado

para futuro (ver 4.2.2). Estado de coisas esse que será, entretanto, delimitado à conduta humana,

sem, contudo, preocupar-nos com a volição detrás do conduzir-se (ver 4.2.3). Além disso, nessa

passada para a precisão do conceito de tributo do direito, lançaremos mão de uma constrição

com fins de reduzir mais o perímetro, associando-o apenas às condutas de caráter econômico

(ver 4.2.4). Por fim, ainda dentro do tema hipótese, discorreremos sobre o tempo e espaço, uma

vez que se a hipótese trata de algo possível de ocorrer no mundo, então deve dizer o quando e

o onde (ver 4.2.5).

4.2.1 Licitude

Que a obrigação tributária somente se manifesta em face de um fato lícito, disso não

temos dúvidas, sendo esse, aliás, um ponto-chave na conceituação de tributo pela doutrina.

Entretanto, fica a pergunta: por que é assim? Em nossa forma de conceber o direito, como

conjunto de normas jurídicas, valendo-nos de um trocadilho com in vino veritas, apenas

podemos cogitar de uma resposta à questão a partir de um ponto de vista normativo, o que nos

remete a que lex veritatis. Por essa linha, se tributo é uma obrigação decorrente de ato lícito,

assim o é porque desse modo prescreve o direito positivo. Entretanto, neste trabalho, adotamos,

como contrapartida dos conceitos no direito, os conceitos do direito (ver 3.2). Em razão disso,

uma outra forma de fundamentar a obrigação tributária como decorrência de um fato lícito é se

estivermos firmes na posição de que tributo é norma primária, pois assim poderemos expor que

não é o fato lícito que faz com que a norma seja primária, mas é a norma primária quem permite

que adjetivemos o fato de lícito. Por essa linha, se já está demarcado que tributo é norma

primária, dizer que tributo apresenta na hipótese a descrição de um estado de coisas lícito é algo

que bem poderia ser tachado de truísmo ou mesmo redundância283. Todavia, o óbvio também

precisa ser dito.

283 Sobre o truísmo, é “[u]ma verdade evidente mas óbvia, portanto pouco importante ou pouco útil”. Nicola Abbagnano, Dicionário de filosofia: verbete “truísmo”, p.976. Quanto à abundância, “[p]ara os retóricos, era uma figura de estilo, tinha quase o mesmo sentido que repetição e designava comumente um excesso nos ornamentos do estilo”. Jean Dubois et al., Dicionário de lingüística: verbete “redundância”, p.504.

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4.2.1.1 Licitude: questão relacional

Sobre os fatos, diz-se que são lícitos ou ilícitos. A dicotomia é tão presente, paira de

tal forma sobre o jurista, com tal força onipresente, que parece intuitiva, razão pela qual

careceria de maiores explicações284. Entretanto, ao menos desde KELSEN, temos motivos para

ter cuidado com o seu uso, principalmente quando desacompanhado de maiores explicações,

pois “[...] não há qualquer fato que, em si e por si, isto é, sem ter consideração a respectiva

conseqüência estatuída pela ordem jurídica, seja um ilícito ou delito”285. Lícito e ilícito só são,

portanto, atributos porque assim dispõe o direito positivo286.

Ademais, não podemos pensar a licitude e a licitude como algo conforme ou contrário

ao direito, respectivamente287. Sem dúvidas, a norma primária prescreve conduta, o que nos dá

uma régua para adjetivá-la: se é conforme a norma primária, então é lícita; se é contrária a

norma primária, então é ilícita. Agora, disso não decorre que a conduta ilícita estaria fora do

direito, pois está ela contida na hipótese da norma eventual. Assim, se a conduta é ilícita, é

porque, desse modo, dispõe o direito positivo e não porque é contrária a esse mesmo direito.

Tendo isso em conta, podemos juntar-nos a KELSEN e apregoar: “[...] o ilícito não é um fato

que esteja fora do Direito e contra o Direito, mas é um fato que está dentro do Direito e é por

este determinado [...]”288.

Um correto tratamento do lícito e do ilícito não é adjetivá-los, respectivamente, como

jurídico e antijurídico, pois só há licitude e ilicitude a partir de um ponto de vista jurídico. De

igual modo, não se deve confundi-los, na devida sequência, quer com o bem e o mal, quer com

o bom e o ruim289. São, na verdade, questões relacionais, ligadas, nessa ordem, à norma primária

284 “Juzgo que la divisón fundamental es aquella que distingue entre actos lícitos e ilícitos”. Andreas von Tuhr, Teoría general del derecho civil alemán, v.2, p. 118. 285 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed. p.125 (IV.1.b). 286 Para outras questões, podemos usar, v.g., moral ou imoral, justo ou injusto, sem que as atribuições sejam excludentes entre si. 287 Desconsiderando esse entendimento, podemos apontar MELLO: “[...] uma classificação dos fatos jurídicos lato sensu [...] não pode deixar de ter no elemento conformidade ou não conformidade com o direito a base de sua primeira e grande divisão. De acordo com esse critério os fatos jurídicos lato sensu são (a) conformes a direito e (b) contrários a direito. Marcos Bernardes de Mello, Teoria do fato jurídico: plano da existência, p.155 (II.VII.30.3). 288 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed. p.127 (IV.1.b). 289 Sobre o “bom”, o “mau” e o “ruim”, não podemos esquecer as palavras de NIETZSCHE: “Há uma moral dos senhores e uma moral de escravos. [...]. [...] segundo a moral dos escravos o ‘mau’ inspira medo; segundo a moral dos senhores é precisamente o ‘bom’ que desperta e quer despertar medo, enquanto o homem ‘ruim’ é sentido como desprezível”. Friedrich Nietzsche, Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, p.172-174 (9.260). Para uma melhor compreensão dos termos, seguem as explicações de SOUZA: “[...] Nietzsche diferencia ‘bom e mau’, gut und böse, de ‘bom e ruim’, gut und schlecht: aquela, a oposição que expressa valores judaico-cristãos; esta, a oposição ingênua, pagã, subvertida [...] pelos fracos e ressentidos”. Paulo César de Souza, Notas, In: Friedrich Nietzsche, Genealogia da moral: uma polêmica, p.155.

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e à norma eventual. Por essa linha, dada uma situação, se pode ser ela subsumida à norma

primária, então deve ser adjetivada de lícita. Se, ao contrário, é reconduzida à norma eventual,

então se trata de ilícita. É um tema meramente sintático, que não depende da análise de

conteúdo, pois um mesmo estado de coisas pode ser eleito como lícito ou ilícito, a critério do

direito positivo290. Sendo assim, a hipótese da norma primária sempre conterá a descrição de

um fato lícito pouco importando qual seja seu teor. E se isso vale para todas as normas

primárias, e se concertamos que tributo é norma primária, então vale para a conceituação de

direito de tributo.

4.2.1.2 Licitude: questão distintiva: multa e indenização

A importância que se dá a licitude como uma das características do tributo é mais do

que consabida, sendo ressaltada para distingui-lo de outras figuras próximas, da qual

destacamos a multa291 e a indenização292. De nossa parte, quanto à diferenciação, não temos

dúvidas de que são coisas diversas: de um lado, a norma tributária em sentido estrito, que é

norma primária; de outro lado, a norma da multa e a norma da indenização, que são ambas

normas eventuais. Quer seja uma indenização a ser paga, quer seja uma multa, tais obrigações

de levar dinheiro decorrem de norma eventual; por outro lado, tributo, segundo nosso recorte,

é sempre norma primária.

À primeira vista, não haveria maiores dificuldades em separar tributo de outras figuras,

pois se temos uma norma primária e uma norma eventual, segundo nossa conceituação, apenas

290 “Somente pelo fato de uma ação ou omissão determinada pela ordem jurídica ser feita pressuposto de um ato de coação estatuído pela mesma ordem jurídica é que ela é qualificada como ilícito ou delito; apenas pelo fato de um ato de coação ser estatuído pela ordem jurídica como conseqüência de uma ação ou omissão por ela determinada é que este ato de coação tem o caráter de uma sanção ou conseqüência do ilícito”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed. p.124 (IV.1.b) 291 Nesse sentido, ATALIBA, COÊLHO e MACHADO SEGUNDO: “A multa se reconhece por caracterizar-se como sanção por ato ilícito”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.33. “[...] diferenciando-se [o tributo] da multa, porque esta [...] decorre de um fato ilícito [...]”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.90-91 (esclarecemos entre colchetes). “O tributo não pode consubstanciar sanção pela prática de ato ilícito [...]”. Hugo de Brito Machado Segundo, Código Tributário Nacional: anotações à Constituição, ao Código Tributário Nacional e às Leis Complementares 87/1996 e 116/2003, p.134. 292 Nesse sentido, ATALIBA, COÊLHO e DERZI: “Ter-se-á obrigação de indenização por dano, se o fato de que nascer a obrigação for ilícito”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.34. “Extrema-se [o tributo] da indenização porque esta [...] tem, por ‘razão de ser’, prévia, comprovada lesão ao patrimônio alheio, inclusive o estatal”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.91 (esclarecemos entre colchetes). “[...] não configura tributo aquela cobrança de valores destinados a recompor o patrimônio público lesado em decorrência de certa atividade, ainda que lícita, pois a responsabilidade pode ser objetiva ou quase objetiva nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição”. Misabel Derzi, Nota de atualização, in: Aliomar Baleeiro, Direito tributário brasileiro, p.36.

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a primeira deve receber o epíteto de tributária. Contudo, podem surgir algumas complicações

quando, a braçadas, põe-se debaixo do mesmo enfoque tanto a norma de tributação como as

normas eventuais que a ela estão ligadas por disjunção. E se falamos de “normas eventuais”,

no plural, é porque a causalidade jurídica pode muito bem ligar a uma única hipótese mais de

uma consequência293. Para exemplificarmos, antes da execução forçada, há, associada

deonticamente ao não cumprimento da obrigação tributária, uma obrigação de pagar multa e

uma de pagar juros (indenização). Entretanto, não há que se confundir essas duas normas

eventuais com a norma primária a que estão ligadas. Pode até ser que o direito positivo

determine que as normas de execução forçada que se aplicam ao descumprimento da obrigação

tributária, como norma primária, apliquem-se a elas igualmente; questão de comodidade, o quê,

no entanto, de modo algum, faz delas normas primárias294.

Por fim, arrematamos nossa posição destacando que não há mais do que uma norma

primária, o que nos impede de adotar uma terminologia como norma primária sancionadora, ou

“sancionatória”, para a multa e para a indenização que se ligam ao tributo295. Em nosso trabalho,

a norma primária sempre contém a descrição de uma situação lícita na hipótese. Porém, a partir

do momento em que estamos tratando de uma norma que contém, na hipótese, um

descumprimento de conduta devida em razão de outra norma jurídica, então já não se cuida

mais de norma primária. O quê de fato temos é: para o descumprimento de uma norma primária,

podem ser estabelecidas várias normas eventuais. Assim, ao invés da primária, são as várias

normas eventuais, normas sancionadoras, que precisam ser classificadas

4.2.1.3 Licitude: tributação dos fatos ilícitos

293 “[...] normas diversas, N’, N’’, N’’’, podem incidir sobre o mesmo suporte fáctico S e perfazer, cada uma, de per si, fatos jurídicos diversos F’, F’’, F’’’”. Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.46 (I,11). 294 Foi por aí que se perdeu o redator do art. 113, § 1º, do CTN, ao afirmar que a obrigação tributária principal também pode ter por objeto, além do tributo, a penalidade pecuniária. O que quis expor foi que “[c]aso não existisse a coincidência de regimes de cobrança, essa [a multa] seria exigível de maneira distinta do tributo [....], o que poderia gerar uma ausência de sintonia no cumprimento das obrigações [...], o que justificaria uma só disciplina”. Luiz Alberto Gurgel de Faria, Comentários aos arts. 113 a 138, in: Vladimir Passos de Freitas (coord.), Código Tributário Nacional Comentado: doutrina e jurisprudência, artigo por artigo, inclusive ICMS (LC 87/96) – ISS (DL 406/68) – IPVA, p.478. 295 SANTI, que também adota uma composição dúplice para a norma jurídica, norma primária e norma secundária, em vez de apontar a existência de várias normas que se ligam à norma primária, prefere subdividir a norma primária em norma primária dispositiva e norma primária sancionadora: “Nas normas primárias situam-se as relações jurídicas de direito material (substantivo), nas normas secundárias, as relações jurídicas de direito formal (adjetivo ou processual) [...]. Têm-se, portanto, normas primárias estabelecedoras de relações jurídicas de direito material decorrentes de (i) ato ou fato lícito, e (ii) de ato ou fato ilícito. A que tem pressuposto antijurídico denominamos norma primária sancionadora, pois veicula uma sanção [...] enquanto que a outra, por não apresentar aspecto sancionatório, convencionamos chamar norma primária dispositiva”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.43-44. No que é seguido por FERRAGUT: “Enfocando apenas as primárias (normas), temos a dispositiva e a sancionatória (sic), que se distinguem pela licitude do fato que implica a conseqüência da norma jurídica”. Maria Rita Ferragut, Presunções no direito tributário, p.37.

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Questão um pouco mais complicada, punctum dolens, do que aquela de apartar o

tributo da multa e da indenização é a da possibilidade da tributação dos fatos ilícitos. Afinal, se

é certo que a hipótese da norma tributária descreve sempre um fato lícito, então, se estivermos

diante de um fato ilícito, de tributo não se cuidará. Entretanto, devemos aprofundar essa linha

de raciocínio, pois parte considerável da doutrina entende que os fatos ilícitos são tributáveis,

apelando para a teoria pecunia non olet296, o que poria por terra nossa afirmação de que tributo

é sempre norma primária297.

De início, relembramos que uma prescrição de conduta no modo proibido (norma

primária) se faz sempre acompanhar, de modo disjuntivo, de uma consequência (norma

eventual) (ver 2.8), a qual pode ser, entre outras, um dar dinheiro. Contudo, nesse caso, como

o comando de dar se encontra em norma eventual, não pode ser tal figura um tributo,

296 Sempre que nos deparamos com o tema da tributação do ilícito, também esbarramos na expressão pecunia non olet, junto com a história de que teria a frase sido dita por Vespasiano, imperador romano, a seu filho Tito, o qual teria manifestado inconformismo contra aquilo que ficaria conhecido como o tributo sobre a cloaca. Com fins de darmos nossa contribuição a essa arte que é a combinação da história com o direito, transcrevemos o que segue: “Quando Nero, em 68, foi coagido ao suicídio pelo abandono de seus soldados, ninguém podia invocar em próprio favor a glória de César ou Augusto: assim como cem anos antes, o Império ia caber ao mais poderoso. O mais forte foi Tito Flávio Vespasiano, o primeiro Imperador da dinastia flávia. [...]. Tito era o primogênito de Vespasiano, e, como teve apenas uma filha, sucedeu-lhe seu irmão Domiciano. [...]. Desde o momento em que aceitou o Império, viu na existência de seus dois filhos uma garantia de solidez. [...]. E agiu da maneira exigida para o preenchimento desse objetivo, dando cedo a Tito o poder tribunício e o imperium proconsular e elevando Domiciano ao consulado. Graças a ele o poder parecia tornar-se um bem patrimonial cuja transmissão se operava sem dificuldades [...]. Mas para permitir a implantação dessas inovações nos costumes e dar origem a um verdadeiro direito monárquico, seria necessário que a dinastia durasse. Ora, a maneira de proceder de Domiciano provocou o seu assassínio, e, como o Senado se apressou em anular as adoções com que ele, depois da morte de seus próprios filhos, beneficiara os sobrinhos-netos, que eram, ao mesmo tempo, seus primos, fez-se novamente uma situação de tabula rasa”. André Aymard, Roma e seu império: as civilizações da unidade romana, p.71-72 (II.I.3). 297 Entre os antigos, a favor da tributação dos fatos ilícitos, podemos citar SOUSA: “[...] a circunstância de um ato, contrato ou negócio ser juridicamente nulo, ou mesmo ilícito, não impede que seja tributado, desde que tenha produzidos efeitos econômicos”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p.80. Ou FALCÃO: “A validade da ação, da atividade ou do ato em Direito Privado, a sua juridicidade ou antijuridicidade em Direito Penal, disciplinar ou em geral punitivo, enfim, a sua compatibilidade ou não com os princípios da ética ou com os bons costumes não importam para o problema da incidência tributária, por isso que a ela é indiferente a validade ou nulidade do ato privado através do qual se manifesta o fato gerador: desde que a capacidade econômica legalmente prevista esteja configurada, a incidência há de inevitavelmente ocorrer”. Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.89-90. Ou ainda BALEEIRO: “Pouco importa, para sobrevivência da tributação sobre determinado ato jurídico, a circunstância de ser ilegal, imoral, ou contrário aos bons costumes, ou mesmo criminoso o seu objeto, como o jogo proibido, a prostituição, o lenocínio, a corrupção, a usura, o curandeirismo, o câmbio negro etc”. Aliomar Baleeiro, Direito tributário brasileiro, p.1106. Entre os atuais, podemos apontar SCHOEURI como a favor da tributação do ilícito: “[...] o que se tributa é a riqueza que, nos termos do ordenamento jurídico, será detida pelo delinquente, não a conduta deste”. Luís Eduardo Schoueri, Direito tributário, p.160. Também AMARO: “[...] pode-se ignorar a ilicitude que eventualmente se constante no exame do fato concreto? A resposta, dependendo da natureza ou das características dos fatos, pode ser positiva. Desde que a situação material corresponda ao tipo descrito na norma de incidência, o tributo incide”. Luciano Amaro, Direito tributário brasileiro, p.276. E igualmente TORRES: “Se no fato gerador do tributo descrito na lei se subsumir alguma atividade ilícita ou imoral, ainda assim poderá ser cobrado tributo”. Ricardo Lobo Torres, Curso de direito financeiro e tributário, p.252.

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enquadrando-se, na verdade, como multa. Com efeito, para o presente trabalho, com o termo

“tributação” significamos norma jurídica com o seu dever de conduta condicionado, decorrente

da verificação de uma situação que não é proibida pelo direito positivo. Por essa linha,

ilustrando a exposição, podemos apontar que o produzir ou comercializar produtos pode ensejar

a obrigação tributária, tudo a depender de existir tal norma no ordenamento, mas se o produto

que se comercializa ou que se produz é ilícito, então nada será devido a título tributário. Isso

porque sua comercialização e produção deverão acarretar consequências em razão da vedação,

uma vez que a proibição apresenta como contrapartida a eventualidade, mas isso não significa

que seja ela de ordem tributária298. Vejamos isso de modo mais detalhado.

Entre as consequências, podemos exemplificar com a apreensão do produto proibido

para o comércio, bem como ainda apontar a prisão dos responsáveis pela comercialização. No

mesmo caso, podemos ainda avocar uma pena de multa pecuniária como implicação, o que

resultaria em um levar dinheiro, causando a possibilidade de certa confusão entre multa e

tributo. E isso ganha vulto se a forma de calcular a multa for igual àquela de calcular o tributo,

quando diante de uma operação comercial lícita. Todavia, o fato de calcular-se uma multa,

tendo por espelho um tributo, não se faz dela, um tributo. Pode até lhe ser dado esse nome, mas

o levar dinheiro decorrente de norma eventual não é tributo, não ao menos nos termos por nós

aqui acordados. Assim, ao é proibido comercializar certos produtos (norma primária), podem

ser ligadas em razão da causalidade jurídica, sem serem excludentes, a prisão, a apreensão do

bem comercializado e ainda a multa, a ser calculada, nesse exemplo, como se tributo fosse

(normas eventuais), mas não uma obrigação tributária. Como síntese, podemos afirmar que os

fatos ilícitos não são tributados, e não há um porquê se horrorizar com isso, pois, para quem os

pratica, outras consequências há, a depender de cada ordenamento jurídico. Assim, diante de

um fato, verifica-se se lícito ou ilícito (só o direito positivo pode dizer), para então lhe associar

as consequências jurídicas (que igualmente só o direito positivo pode dar)299.

298 Contra a cobrança de ICMS e de IPI em relação às drogas, PINHO: “[...] se alguém comercializar substância entorpecentes sem autorização legal, estará operando atividade ilícita conhecida como tráfico de drogas. Seria absurdo imaginar que incidisse Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços sobre atividade desse tipo. [...]. O mesmo se dá em relação ao fabricante da substância em questão: não há que se cogitar de pagamento de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) [...]”. Alessandra Pinho, Fato jurídico tributário, p.91-92. Já a favor da tributação, podemos arrolar SCHOUERI: “[...] numa transação envolvendo drogas, não há como negar a existência de um consumo, por parte do usuário, que revela sua capacidade contributiva (renda consumida). Acaso se pode distinguir, deste tal ponto de vista, a manifestação de riqueza por um consumo desejável de um bem, em relação ao consumo reprovável? Como justificar que a riqueza manifestada no primeiro caso seja tributada, enquanto no segundo caso não haveria tributação? Num e noutro caso, haverá consumo de renda. Privilegiar a segunda conduta implicaria incentivo inaceitável a conduta reprovável”. Luís Eduardo Schoueri, Direito tributário, p.160. 299 Em relação à essa busca pela licitude ou ilicitude do fato, ante o problema da tributação, expõe BECHO: “[...] o processo criminal é prejudicial em relação ao tributário, o que significa dizer que o processo fiscal só tem

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A questão ganha, no entanto, nova nuança se nos imaginarmos diante de um fato lícito,

enquanto fruto de um ilícito. Um exemplo seria a renda adquirida, em uma ordem capitalista,

mediante a comercialização de drogas proibidas. A tributação seria sobre a renda, cuja obtenção

seria permitida, mas que foi adquirida com a comercialização de produtos proibidos. Vê-se,

quando posta a questão nesses termos, que não mais estaríamos a cuidar rigorosamente da

tributação de um fato ilícito, mas sim de um fato, ele próprio lícito, que foi alcançado mediante

uma via proibida. Percebe-se, assim, que muito do que se discute sobre a tributação dos fatos

ilícitos é, na verdade, a questão de saber da tributação de fatos lícitos, que são resultados de

meios ilícitos. Não é propriamente a teoria do non olet que deve ser invocada, mas a do fruits

of the poisonous tree.

Que se trata de coisas distintas, a tributação do ilícito e a tributação do lícito alcançado

por meio ilícito, já bem o havia percebido BECKER300. De nossa parte, é uma questão para o

direito positivo. Pode muito bem ser a norma de tributação construída para que apenas fatos

lícitos com adjacências também lícitas sejam subsumíveis à sua hipótese. Entretanto, se nada

dispuser o direito positivo, então será o caso de entender pela tributação do fato lícito mesmo

que com ilícito nas cercanias, pois, na ausência de disposição em contrário, não se é obrigado

a procurar pela licitude da causa, bastando a do efeito301. De toda sorte, tributar fato lícito,

andamento ante a constatação judicial penal de que não há ilícito a ser punido”. Renato Becho, Lições de direito tributário: teoria geral e constitucional, p.84. Assim, antes de tudo, é questão de saber se o fato é ou não permitido pelo direito positivo, para então apontar suas consequências. 300 “O problema da tributação dos atos ilícitos, no plano jurídico, sofre uma dicotomia, pois deve ser analisado em dois momentos distintos. Primeiro momento: a lei. O problema resume-se em investigar se é, juridicamente, possível que a lei tome a ilicitude como um dos elementos integrantes da hipótese de incidência (‘fato gerador’). Segundo momento: o lançamento. Aqui, o problema que pede solução é o de se examinar se, juridicamente, a autoridade incumbida de proceder ao lançamento de um tributo (em cuja hipótese de incidência a lei não incluiu a ilicitude) pode abstrair ou ignorar a ilicitude porventura constatada quando examinada a realização da hipótese de incidência”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.600. E com esse mesmo fio condutor, de bem distinguir as coisas, o que é lícito e porventura o ilícito que o antecede, podemos arrolar CARVALHO: “Para a norma tributária é unicamente relevante aquele efeito [...] associado que esteja a fato lícito ou ilícito. O evento que origina o efeito é de todo prescindível, já que o fato hipoteticamente previsto a ele não se refere”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.97. Ou ainda MACHADO: “Não se conclua [...] que um rendimento auferido em atividade ilícita não está sujeito ao tributo. Nem se diga que admitir a tributação de tal rendimento seria admitir a tributação do ilícito. [...]. Quando se diz que o tributo não constitui sanção de ato ilícito, isso quer dizer que a lei não pode incluir na hipótese de incidência tributária o elemento ilicitude. Não pode estabelecer como necessária e suficiente à ocorrência da obrigação de pagar um tributo uma situação que não seja lícita. Se o faz, não está instituindo um tributo, mas uma penalidade. Todavia, um fato gerador de tributo pode ocorrer em circunstância ilícitas, mas essas circunstâncias são estranhas à hipótese de incidência do tributo, e por isso mesmo irrelevantes do ponto de vista tributário”. Hugo de Brito Machado, Arts. 3º a 5º, in: Ives Gandra da Silva Martins (coord.), Comentários ao código tributário nacional, v.1, p.27. 301 Em sentido contrário: “Imposto poderá incidir sobre a ostentação de riqueza ou o crescimento patrimonial incompatível com a renda declarada, no pressuposto de ter havido anterior omissão de receita. Receita, em tese, de origem lícita, porém nunca comprovadamente criminosa. Não seria ética, conhecendo o Estado, a origem criminosa dos bens e direitos, que legitimasse a ilicitude, associando-se ao delinquente e dele cobrando uma quota, a título de tributo”. Misabel Derzi, Nota de atualização, in: Aliomar Baleeiro, Direito tributário brasileiro, p.1106.

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mesmo que em contiguidade com ilícito, não desautoriza nossa afirmação de que tributo é

norma primária.

4.2.2 Abstração

Em matéria tributária, quem realiza uma exposição tem a obrigação — no mínimo, em

respeito aos ensinamentos de BECKER e ATALIBA302 — de precisar se discorre sobre o fato

ou se se atenta à norma jurídica, não sendo permitido conjugar os dois tópicos sob o mesmo

guarda-chuva, tal qual seria o abrigo sob a expressão “fato gerador”303-304. Ponto com o qual

302 “[...] o estudo monográfico de Amílcar Falcão [Fato Gerador da Obrigação Tributária] [...] não se libertou de uma concepção ‘monista’ do fato gerador [...]. [...]. É de justiça reconhecer que, na doutrina brasileira, coube a Alfredo Augusto Becker, com a sua Teoria Geral do Direito Tributário (1963), a primazia na contestação dessa orientação doutrinária [...]. [...]. Na Hipótese de Incidência Tributária, Geraldo Ataliba retoma esse tema [...]. O progresso que decorre dessa monografia básica está representado pela distinção conceitual entre hipótese de incidência do tributo e o fato material concretamente ocorrido [...]”. José Souto Maior Borges, Prefácio, in: Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 2.ed., p.2-3 (esclarecemos entre colchetes). 303 A ambiguidade em torno da expressão “fato gerador” — que se refere tanto ao fato tributário, quanto à norma tributária — também pode ser verificada em outras áreas, como, aliás, relata-nos REALE: “A palavra alemã Tatsbestand, que, ao pé da letra, significa ‘situação dos fatos’ ou ‘estado das coisas’, e que os italianos traduzem por fattispecie, indica, pois, não o fato bruto, mas sim o ‘tipo de fato’ ou o ‘fato-tipo’ previsto na norma de direito como pressuposto lógico da incidência do preceito ou dispositivo”. Miguel Reale, O direito como experiência, p. 205. 304 Podemos dizer que, até há algum tempo, a expressão “fato gerador” era onipresente na doutrina tributária. Provavelmente em razão da repercussão de artigo de JÈZE, com o sugestivo título O fato gerador do imposto, com tradução de Paulo da Mata Machado, publicado no Brasil no já distante ano de 1945. Em referido artigo, até começa bem o citado autor, perguntando, de pronto, no primeiro parágrafo, com resposta logo em seguida: “Que é [...] o fato gerador do impôsto? Por essa expressão, entende-se o fato ou o conjunto de fatos que permitem aos agentes do fisco exercerem sua competência legal de criar um crédito de tal importância, a título de tal imposto, contra tal contribuinte”. Gaston Jèze, O fato gerador do impôsto (contribuições à teoria do crédito de impôsto), Revista de direito administrativa, v.2, p.50. Com essa conceituação, ficamos sabendo, desde logo, que o fato gerador é um fato! Entretanto, mais adiante — o mesmo autor, no mesmo artigo — somos surpreendidos com a afirmação de que o fato gerador está na lei: “O fato gerador é a reunião de tôdas as condições para que um indivíduo seja submetido ao impôsto geral. [...]. Ainda uma vez, o fato gerador do impôsto é fixado pela lei; ao juiz não cabe dizer se as consequências provenientes do fato gerador são equitativas ou injustas”. Ibidem, p.61. Por aí se vê que a expressão “fato gerador” foi usada para designar coisas díspares, apesar de nem todos entenderem que o fato e norma possam ser estudados em apartado, como afirma JARACH, para quem “[...] não existe uma distinção entre a relação subjetiva abstrata e a relação obrigatória concreta, que não existe um dever tributário distinto da concreta obrigação tributária [...]”. Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.94-95. De todo modo, aceitando-se que o observado no mundo não é o mesmo que o descrito na norma, a melhor forma de bem demarcar isso é tratar realidades diversas por nomes diferentes. E quanto a serem dessemelhantes a norma e o fato, bem notado já tinha BECKER. Todavia, ao tentar realizar essa difícil tarefa que é dar nome às coisas, não foi de todo feliz, pois, para o fato, usou “hipótese de incidência realizada”: “A mesma regra jurídica não pode incidir, mais de uma vez, sobre a sua hipótese incidência realizada”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.322. Situação que o deixou exposto à crítica de que uma vez realizada, então não se trataria mais de uma hipótese. Por esse raciocínio, “[a] partir do momento em que ocorrer o fato abstratamente descrito na hipótese ele deixará de ser hipótese. Eis a razão pela qual a expressão “hipótese de incidência realizada” é uma contradição entre termos”. Maurício Timm do Valle, Princípios constitucionais e regras-matrizes de incidência do imposto sobre produtos industrializados – IPI, p.177. E parece — nesse ponto, o do batismo — não ter tido melhor sorte ATALIBA, com a expressão “fato imponível”, que usou como par de — esse sim um enroupamento consagrado — “hipótese de incidência”: “[...] sempre distinguimos estas duas coisas, denominando ‘hipótese de incidência’ ao conceito legal (descrição legal, hipotética, de um fato, estado de fato ou conjunto de circunstâncias de fato) e ‘fato imponível’ ao fato efetivamente acontecido, num determinado tempo e lugar, configurando rigorosamente a

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estamos perfeitamente de acordo, pois nossa concepção de norma jurídica permite diferenciar

o mundo do ser do mundo do dever-ser (ver 2.1). Afinal, uma coisa é a realidade, outra é a

figuração da realidade. Há, evidentemente, algo em comum entre ambas, a realidade e sua

figuração. Todavia, isso não nos permite igualá-las, a realidade e a figuração, pois sabemos que

“[a] figuração é um modelo da realidade”305.

Assim, dado o binômio norma-fato, não temos dúvidas de afirmar que uma coisa é a

norma jurídica descrever uma situação em sua hipótese, outra, bem diferente, é a efetiva

ocorrência da situação descrita. Apontamento que, por si só, já seria suficiente para afastar o

uso da expressão “fato gerador”, mas, como avigouro do argumento, ainda lembramos,

sublinhando o quanto ela é infeliz, que “[...] o ‘fato gerador’ não gera coisa alguma além de

confusão intelectual”306. Tendo tudo isso na conta, podemos repisar nossa posição de que

tributo é norma jurídica — norma primária, é verdade —, apartando-o do fato.

A hipótese da norma de tributação contém a descrição de um estado de coisas307.

Agora, segundo nosso trabalho, pode essa descrição dar-se de duas formas: abstrata ou

concretamente (ver 2.11). Concreta, dizemos de uma descrição que já se verificou no mundo,

sendo, portanto, verdadeira ou falsa. O tempo em questão é o passado. Abstrata, nome por meio

hipótese de incidência”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.49. E a desdita dá-se porque, “[...] ‘fato imponível’ seria aquele fato que ‘estaria sujeito à imposição tributária’, por isso ‘imponível’, isto é, passível de imposição. Não é, propriamente, o que ocorre. Apenas surge o fato e a incidência acontece, automática e infalível, fazendo desabrochar relação jurídica caracterizada por uma prestação de dar. Não existe o fato e a incidência anteriormente à incidência, de tal modo que, enquanto imponível, não é ainda fato e, após a incidência, em concomitância com seu nascimento, já assumiu na plenitude as virtudes de sua jurisdicidade (sic). Em vista disso, preferimos chamar o fato acontecido no campo da realidade física de ‘fato jurídico tributário’, reservando à descrição legal o nome de ‘hipótese tributária’ ou ‘suposto tributário’”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.123. De qualquer modo, independentemente do nome que se dê ao descrito na hipótese da norma e ao efetivamente ocorrido no mundo, o certo é que a expressão “fato gerador”, que era até então ubíqua, deixou de sê-la. Como síntese dessa mudança de entendimento, deixamos consignadas as palavras de VIEIRA: “[...] nosso repúdio à locução ‘fato gerador’, consagrada pelo legislador nacional, por sua equivocidade flagrante, já que alude simultaneamente a duas realidades inconfundíveis: a descrição hipotética do fato (uma abstração) e o próprio evento material (algo concreto)”. José Roberto Vieira, Imposto sobre produtos industrializados: uma águia garciamarquiana ente os tributos, in: Eurico de Santi et al. (coord.), Tributação das empresas: curso de especialização, p.177. 305 Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus (2.12), p.143. 306 Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.318. Crítica, façamos justiça, também feita por FALCÃO, um dos fautores da locução “fato gerador”: “É certo que também tal expressão é passível de crítica. Em especial, o qualificativo de gerador contém uma impropriedade. Não é o fato gerador quem cria, quem digamos assim, gera a obrigação. A fonte de tal obrigação, a energia ou fôrça que a cria ou gera é a própria lei”. Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.29. 307 Uma forma de separar tributação de isenção é demarcar que, para aquela, a descrição do estado de coisas deve ser feita positivamente, em afirmação, enquanto, para esta, de forma negativa, em negação. De nossa parte, adotamos que a norma de tributação é a combinação dessas duas descrições: “A mesma norma que tributa é a mesma que isenta. Afinal, quando descreve a situação que instaurará a relação jurídica tributária, põe qual não instaurará. [...]. A norma, enquanto significação, é única, os dispositivos legais, como significantes e seus correspondentes significados, é que podem ser vários. [...]. A norma de isenção nada mais é do que uma parte da própria norma tributária que institui o tributo”. Valterlei A. da Costa, Natureza jurídica da isenção: não incidência tout court, Revista tributária e de finanças públicas, v.139, p. 236.

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do qual designamos a descrição que está no campo da possibilidade, pouco importando o que

já se verificou ou não se verificou no mundo. Seu tempo é o futuro. Com isso, percebemos que

não é o estar diante de notas mais abertas ou menos abertas que nos fornece elementos para

identificarmos uma descrição como abstrata ou concreta, mas o fato de se referir ou não ao

passado308.

Todavia, se é uma abstração a hipótese da norma primária, então conterá ela ou um

conceito ou um tipo (ver 3.3). Para o primeiro caso, do conceito, mesmo que seja redigido pela

autoridade normativa de forma ampla, o verificado no mundo fica sujeito a uma de duas

valências: subsumir-se-á ou não. Já para a segunda situação, do tipo, o estado de coisas no

mundo pode meramente aproximar-se da descrição, com mais ou menos notas, tudo a depender

de outros fatores que não exclusivamente a própria descrição. De toda forma, podemos ter duas

espécies de normas tributárias a depender da forma de descrição contida na hipótese: abstrata,

que pode ser um tipo ou um conceito, e concreta.

Feita a separação das hipóteses da norma primária, é então possível pactuarmos que a

norma de tributação, norma tributária em sentido estrito, é aquela que contém uma descrição

abstrata de um fato lícito, pouco importando se na forma de tipo ou de conceito, a ser

identificado no futuro, o que já nos faz relegar à norma de lançamento tributário a condição de

norma que possui, na hipótese, uma descrição concreta, um algo verificado. Assim, tributo, no

plano estático, é norma primária cuja hipótese contém uma descrição abstrata de fato lícito.

4.2.3 Indiferença à volição

A hipótese da norma de tributação, abstrata, provável, voltada para futuro, traz a

descrição de um estado de coisas. E uma vez advindo ao mundo esse estado de coisas, então se

diz dele lícito. Há o fato e há a previsão do fato, sendo a licitude uma questão relacional (ver

4.2.1.1). Entretanto, do fato não se diz apenas lícito ou ilícito. Pode ainda ser classificado,

quando tomado como gênero, em uma de duas espécies: fato jurídico stricto sensu ou ato

jurídico. Para o enquadramento na primeira situação, como fato jurídico em sentido estrito, diz

308 A doutrina pátria reconhece que a norma tributária contém, na hipótese, uma abstração. Entretanto, usa esse termo em sentido diverso do que por nós é aqui empregado. Nesse sentido mais convencional, podemos citar ATALIBA: “A h.i. tributária é a hipótese da lei tributária. É a descrição genérica e abstrata de um fato. É a conceituação (conceito legal) de um fato: mero desenho contido num ato legislativo”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.54.

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respeito tudo o que não se liga à conduta humana, como eventos naturais e prática de animais.

Para a segunda, ato jurídico, a eleição, pela hipótese, é da conduta do homem309.

Em um primeiro momento, da hipótese da norma de tributação, poderíamos dizer que

seria válido escolher qualquer uma das duas situações — tanto a conduta humana como eventos

da natureza — como condição para a prescrição tributária. Afinal, de nossa parte, em um

primeiro momento, até faríamos votos a uma norma que, na hipótese, descrevesse a subida e

baixa do rio, preparando as margens para plantio, e imputasse a sua ocorrência a obrigação de

pagar tributo a deusa Ísis, o que assegurará uma a colheita fértil310. Não obstante essa

possibilidade, “[...] parece evidente que a presença de uma conduta humana como componente

cerne de suporte fáctico estabelece uma diferença substancial entre os fatos jurídicos”311. Sendo

assim, vemo-nos perante a necessidade de conceituar tributo tendo na retina essa relevante

separação, o que nos leva a pactuar como conteúdo da norma-guia de tributação, conceito de

tributo do direito, aquela que tenha em sua hipótese uma conduta humana. Ademais, não

estamos abonando a existência de qualquer impossibilidade lógica de uma norma jurídica eleger

como gatilho da conduta devida algo que não seja a conduta humana, pois o que queremos, de

fato, expor é: não denominaremos, tendo em conta nossa pactuação, uma norma assim de norma

de tributação312.

Entretanto, sobre o haver a conduta humana envolvida, é possível perguntar quanto à

vontade detrás dela. Com isso, teríamos uma nova classificação dos fatos jurídicos, tendo por

cerne a volição da conduta humana. Se ela não importa ao direito, poderíamos inclusive falar

de ato-fato313, ressaltando o quanto o querer é indiferente; já sendo a vontade um fator-chave

309 “Fato jurídico abrange [...]: a) fatores naturais, alheiros à vontade humana, ou para os quais a vontade concorre apenas indiretamente [...]. b) ações humanas [...]”. André Franco Montoro, Introdução à ciência do direito, p.466 (IV.16.4). 310 Além de contar com os deuses, o homem pode fazer sua parte: “O fenómeno da inundação é muito complexo. As chuvas de monção da Primavera, abatendo-se sobre o maciço etíope, determinam a subida dos afluentes abissínios do Nilo: Sobat, Nilo Azul, Atbara. De Julho até o fim de Outubro, as águas e o limo arrancado às margens abissínias vão cobrir o vale, no Egipto. Contudo, esta (sic) cheia benfeitora pode também assumir o aspecto de catástrofe: ou é demasiado brutal e a corrente leva tudo atrás de si, ou é demasiado fraca e deixa as terras ressequidas na impossibilidade de serem cultivadas. Assim, pode dizer-se com razão que a civilização egípcia nasceu quando a cheia foi controlada”. Pierre Lévêque, As primeiras civilizações: os impérios do bronze, v.I, p.78. 311 Marcos Bernardes de Mello, Teoria do fato jurídico: plano da existência, p.155-156 (II.I.VII.31). 312 Em sentido diverso, SOUSA: “[...] é indiferente que se trate de um fato natural, de um ato humano, ou de um negócio jurídico: para o direito tributário, todas essas hipóteses, quando adotadas pela lei como base de tributação, incluem-se na denominação única de “fato gerador’”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p.96. 313 “Os atos-fatos são atos humanos, em que não houve vontade, ou dos quais se não leva em conta o conteúdo de vontade, aptos, ou não, a serem suportes fáticos de regras jurídicas”. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.I, p.133 (IV.26.2).

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para considerar ocorrida a conduta, então guardar-se-ia para esse fato jurídico a denominação

de ato jurídico lato sensu314.

E quando trazemos essa divisão para a norma de tributação, ficamos com as portas

abertas para verificar se a conduta prevista na hipótese da norma contempla ou não a vontade.

E a resposta — com base em toda uma tradição cujo próprio uso da expressão “fato gerador”

indica — é negativa. Afinal, desconhecemos que alguém tenha usado algo na linha de “ato

gerador”. Acima de qualquer suspeita, o que jaz detrás da locução “fato gerador” é exatamente

a demonstração de uma total indiferença à volição para a prática da conduta prevista na

hipótese315.

A hipótese da norma de tributação descreve uma conduta, entretanto, não cuida de

saber do querer detrás dessa conduta. Não olvidamos, porém, que outras normas, que não a

norma de tributação, possam dispor sobre a mesma conduta, nesses casos, agregando à hipótese

certa importância para vontade, todavia, isso não muda a nossa norma de tributação. Quanto a

haver uma volição por traz do agir, não significa que a norma de tributação dela deve tomar

tento nisso, sendo, desse modo, cabível que “[...] nenhuma referência de modo localizado e

direto haverá com relação ao elemento vontade [...]”316. Assim, desse ignorar, “[...] aquilo que

em direito privado é um ato jurídico, produto da vontade do indivíduo, em direito tributário é

um mero fato — fato gerador ou imponível”317. Logo, “[...] o fato gerador é, conceptualmente,

um fato jurídico e não um ato jurídico, ou melhor, um ato de vontade com conteúdo negocial

para o Direito Tributário”318.

Podemos, então, expor, postas essas ideias, à guisa de arremate, que a norma de

tributação é norma primária, cuja hipótese apresenta uma abstração, projetada para o futuro, de

314 “[...] a vontade em praticar o ato não somente é relevante, como constitui o próprio cerne do fato jurídico. São os atos jurídicos lato sensu, que se subdividem em atos jurídicos stricto sensu e negócios jurídicos e atos ilícitos”. Marcos Bernardes de Mello, Teoria do fato jurídico: plano da existência, p.156 (II.I.VII.31). 315 Devemos aqui fazer uma ressalva, pois BECKER resguardou a possibilidade de o direito tributário positivo, na descrição da hipótese, o elemento vontade ser integrado: “A análise científica da composição há hipótese de incidência tributária revela que, muitas vezes, a vontade é elemento integrante”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.266. 316 Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.98. 317 Amílcar Falcão, Introdução ao direito tributário, p.78. Nesse mesmo sentido, podemos citar JARACH: “O que é negócio em sentido técnico para o direito privado é somente um fato para o direito tributário; o que, segundo a lógica jurídica, é uma causa dos efeitos jurídicos do direito privado, ou seja, a causa principal, a fonte da relação, é somente uma causa remota, um pressuposto, no direito tributário”. Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.105. Ou ainda ATALIBA: “[...] para o direito tributário é irrelevante a vontade das partes na produção de um negócio jurídico. Tal vontade é relevante, para os efeitos privados (negociais) do negócio”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed. p.68. 318 Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.30. Nesse mesmo sentido, podemos citar MORAES: “[...] qualquer que seja a estrutura intrínseca do fato gerador da obrigação tributária, a norma jurídica o considera, sempre, como um pressuposto de fato, embora possa se constituir através de fatos, atos ou até status jurídicos [...]”. Bernardo Ribeiro de Moraes, Compêndio de direito tributário, v.2, p.336.

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uma conduta humana, que se ocorrida será considerada um fato lícito, sendo, no entanto,

indiferente à vontade detrás desse comportamento.

4.2.4 Descrição abstrata de fato econômico

A figuração do fato na hipótese da norma de tributação é feita para projetá-lo no futuro,

o que nos leva a falar de abstração. Entretanto, o que pode ser projetado? O que, quando

verificado, ao lado dos identificadores de tempo e espaço (ver 4.2.5), pode ser apontado, pois

selecionado para isso, como gatilho da obrigação tributária? Como primeira resposta, não temos

dúvidas de que qualquer estado de coisas, desde que possível (ver 2.3), pode ser eleito e descrito

na hipótese da norma de tributação. É um caso para a volição e não para a cognição319. Assim,

não teríamos receio de acompanhar BECKER e afirmar que “[a] hipótese de incidência da regra

jurídica tributária pode ser qualquer fato (ato, fato ou estado de fato), desde que seja lícito”320.

Claro que, contra isso, sempre se poderá apontar questões outras, e assim confundir,

intencionalmente ou não, o direito positivo com algum direito natural a uma justa tributação321,

da qual, desde já, queremos deixar aqui consignado com a tinta mais forte, somos a favor,

mesmo que não saibamos muito bem explicar a outrem o que seria ela322. Mas, de todo modo,

não é o tributo justo o objeto deste trabalho. Deixemos o tema nas mãos de outros mais capazes.

A confecção da norma de tributação é, portanto, livre, limitada ao possível. Entretanto,

pode haver restrições a esse amplo exercício em norma de competência, o que implicará

obrigatoriedade de certas escolhas, sob pena de invalidação (ver 2.10). É nesse sentido, então,

de direito positivo, que têm lugar questões como a da capacidade contributiva. Ou seja, não

seria uma imposição de direito natural algum, mas sim um tema positivado na ordem jurídica,

319 “O direito, na escolha dos fatos, que hão de ser regrados [...], deixa de lado, fora do jurídico, muitos fatos, que a alguns observadores e estudiosos parecem dignos de regulação; mas esse julgamento dos técnicos do direito, ou dos não-técnicos, por mais procedente que seja, só pode passar no plano político, moral ou científico, e nenhuma influência pode ter na dogmática jurídica”. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.I, p.68. 320 Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.262. No mesmo sentido, JARACH: “É certo que o Estado por capricho, pelo seu poder de império, poderia exigir impostos com base em qualquer pressuposto de fato, mas o Estado, afortunadamente, não age assim”. Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.110. Ou ainda GRECO: “[...] qualquer fato pode ser descrito independentemente de ter conteúdo econômico ou não [...]”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.60. 321 Como exemplo dessa não dissociação entre o direito positivo e o direito natural, podemos citar KIRCHHOF: “O princípio da capacidade contributiva é um axioma ético, mas também uma síntese dos princípios de direito constitucional [...]”. Paulo Kirchhof, Tributação no estado constitucional, p.31. Ou ainda TIPKE: “El principio de capacidad económica es el único principio fundamental que respeta todos los derechos fundamentales de las Constituciones del Estado Social de Derecho”. Klaus Tipke, Moral tributaria del estado y de los contribuyentes, p.34. 322 “De fato, não sei e não posso dizer o que seja justiça, a justiça absoluta, esse belo sonho da humanidade. Devo satisfazer-me com uma justiça relativa, e só posso declarar o que significa justiça para mim [...]”. Hans Kelsen, O que é justiça?, in: ______. O que é justiça?: a justiça, o direito e a política no espelho da ciência, p.25

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ponto ao qual a autoridade que pode criar a norma de tributação estaria vinculada323. Tópico,

aliás, denominado pela doutrina de “capacidade contributiva objetiva”324. Por esse prisma, qual

o conteúdo da hipótese da norma de tributação seria assunto para uma conceituação no direito,

mediante uma pesquisa das normas de competência tributária. Entretanto, este trabalho não

cuida de uma específica ordem, mas visa a promover uma conceituação do direito de tributo

que possa ser usada como agregador de normas jurídicas, sem ter como ponto de partida uma

particular norma positivada (ver 3.2). Em razão disso, é que se vê na condição de apartar, a

partir de escolhas bem apontadas, sem nada de furtivo, de todos os estados de coisas possíveis

de constarem na hipótese, as condutas humanas (ver 4.2.3); e dessas condutas, em um segundo

momento, as de caráter econômico.

O conteúdo da abstração da hipótese da norma de tributação é econômico. Ponto

meramente conceitual. Assim, não é um caso de justiça, pois não se está a afirmar que apenas

as normas de tributação cuja hipótese contenham um fato econômico são justas, e, portanto, só

essas teriam seu lugar no mundo jurídico, fazendo com que a validade da norma jurídica

dependa de ser reto seu conteúdo325. Também não é especificamente a descrição de norma de

competência alguma, que limitaria a autoridade habilitada326. É uma questão de escolha do

323 Esse caso, de a norma de competência conter como ressalva à atuação do legislador a capacidade contributiva, aponta BECKER, fraseador exímio, como de “constitucionalização do equívoco”: “A velhice do princípio e a ambiguidade da locução ‘capacidade contributiva’ mergulharam filósofos, financistas e juristas em alucinante balbúrdia e para que a confusão ficasse total, as modernas Constituições canonizaram o princípio da capacidade contributiva, convertendo-o em regra constitucional, do Estado. É a constitucionalização do equívoco”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.484. 324 “A capacidade contributiva absoluta ou objetiva funciona como pressuposto ou fundamento jurídico do tributo, ao condicionar a atividade de eleição, pelo legislador, dos fatos que ensejarão o nascimento de obrigações tributárias”. Regina Helena Costa, Princípios da capacidade contributiva, p.28. Podemos ainda fazer referência à capacidade contributiva relativa e à capacidade contributiva subjetiva. No primeiro caso, deve-se realizar uma especificação da obrigação tributária tendo em conta as características do fato tributário, já para a segunda hipótese, a particularização dá-se em respeito a traços do sujeito passivo. Informação verbal: fala do Professor José Roberto Vieira no Curso de Pós-graduação em Direito da UFPR, no ano de 2019. 325 ALEXY afirma a existência de conexão entre direito e justiça, mesmo que lateral, pois, para ele, “[o] o direito é um sistema normativo que (1) formula uma pretensão de correção [...]”. Robert Alexy, Conceito e validade do direito, p.151 (4). Contudo, não podemos dar-lhe razão, pois um ligação entre direito e justiça, mesmo diminuta, não deixa de apresentar um caráter ideológico de justificação da ordem, como nos ensina KELSEN: “Para ser ‘direito’, ensina-se, deve a ordem positiva estatal ter alguma participação na justiça, seja realizando um mínimo ético, mesmo que se trate de uma tentativa, seja — embora de modo insuficiente — um direito justo; para ser um ‘direito’, o direito positivo deve corresponder, de algum modo, mesmo modesto, à ideia de direito. Mas, como o caráter jurídico da ordem estatal é considerado evidente, sua legitimidade é assegurada por essa teoria jurídica dos mínimos morais, que é apenas uma Teoria de Direito Natural minimizada”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 1.ed., p.84 (III.10). 326 Sobre a capacidade contributiva ser uma questão de direito positivo, podemos citar CARVALHO: “[...] em princípio, pode o legislador prever como hipótese qualquer fato lícito. E dissemos ‘em princípio’ justamente porque a tarefa de eleição dos supostos tributários está visceralmente jungida à existência ou não de princípios retores da atividade impositiva do Estado, no mais das vezes alçados a nível constitucional. É o que acontece no Brasil, onde toda a elaboração legislativa tributária deve ser condicionada ao princípio da igualdade. [...]. Diante desse quadro [....], há a necessidade premente de ater-se o legislador à procura de fatos que demonstrem signos de riqueza, pois somente assim poderá distribuir a carga tributária de modo uniforme e com satisfatória atinência ao

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conteúdo semântico, no campo da teoria, por meio de pactuação. A norma de tributação é aquela

que contém uma descrição abstrata de conduta humana, com indiferença à vontade, cuja

temática ostenta caráter econômico.

Agora, se não pretendemos intercambiar direito e justiça, igualmente não buscamos

embaralhar direito e economia. Com isso queremos expor que a concessão do selo de norma de

tributação apenas àquelas que contenham, na hipótese, a descrição de fato econômico, não nos

afasta do bom ensinamento de que todo fato, para o direito, ou é jurídico ou não existe327. Isso

porque a norma jurídica descreve fatos que, junto ao adjetivo jurídico, podem receber outros

epítetos. Por essa linha é que podemos dizer que a norma de tributação contém um fato signo

presuntivo de riqueza, porque analisamos seu conteúdo, que, por estar contido em norma, é

jurídico, mas nem por isso deixa de evidenciar outros prismas. Que fique claro: não se quer

aqui o abandono das balizas da descrição normativa para ir atrás do fato em si, enquanto

econômico, mas que apenas as opções normativas de cunho econômico sejam consideradas

norma de tributação328.

Ademais, não olvidamos que o fato econômico per se não pode ser o estopim da

obrigação tributária. Há a necessidade de norma jurídica assim o eleger329. Percebe-se, com

isso, que “[n]ão se asseverou aqui [...] ser o fato gerador, simplesmente, um fato econômico”330.

Contudo, o ser contemplado em norma, não nos impede de continuar a vê-lo também como

econômico, respeitada a nova formatação jurídica. Desse modo, os fatos jurídicos podem ser de

conteúdo econômico ou não econômico. E assim é porque, até onde sabemos, não há lei que

proíba na mesma frase constarem as palavras jurídico e econômico. Com efeito, o que nos

princípio da igualdade”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.93. No mesmo sentido, MACHADO: “[...] o legislador, ao descrever a hipótese de incidência tributária, há de observar o princípio da capacidade contributiva, nos países em cuja Constituição esteja explícita ou implicitamente acolhido”. Hugo de Brito Machado, Os princípios jurídicos da tributação na Constituição de 1988, p.41. 327 “Quem trabalha no interior de um sistema jurídico [...] vê os fatos do mundo, fatos naturais e condutas, sub specie normae”. Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.132 (III.11). 328 Primeiramente se verifica se o fato é jurídico: “Se adotarmos um critério jurídico, o fato será atribuído ora como jurídico [...] ora como não-jurídico [...], de acordo com as características instituídas em lei que determinam os contornos daquele factum tributário”. Paulo de Barros Carvalho, A livre iniciativa no direito tributário brasileiro: análise do artigo 116 do Código Tributário Nacional, in: ______. Derivação e positivação no direito tributário, v.1, p.74. Assim, o foco é no caráter jurídico, não no econômico: “A circunstância de o legislador ter escolhido para a composição da hipótese de incidência um fato jurídico, em razão do fato econômico do qual aquele fato jurídico é a causa, signo ou efeito [...] não justifica que o intérprete substitua o fato jurídico pelo fato econômico correspondente, para o efeito de considerar realizada a hipótese de incidência”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.506. Apenas constar depois de observar que o fato é jurídico é possível partir para outras adjetivações. 329 “Sem [...] previsão ou definição em lei, não se configurará o fato gerador. Haverá um fato da vida comum, ou um fato econômico, ou mesmo um fato relevante para outros ramos do Direito: para o Direito Tributário, será êle um fato jurìdicamente irrelevante, no que diz respeito ao nascimento da obrigação tributária”. Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.43. 330 Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.65.

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interessa é a ordem em que se apresentam os adjetivos, pois somente se fala de econômico para

se dizer jurídico.

Com uma divisão dos fatos jurídicos em econômicos e não econômicos, pactuamos

então que “[t]odas as situações e todos os fatos aos quais está vinculado o nascimento de uma

obrigação impositiva possuem como característica a de apresentar um estado ou um movimento

de riqueza [...]”331. Pois, sem essa remissão ao conteúdo econômico da conduta, não seria

possível estremar uma prescrição que determine um levar dinheiro em razão de adquirir renda

de uma que determine o mesmo levar dinheiro só que em razão de derrota no campo de batalha.

Com efeito, sem a ressalva, seria uma norma de tributação aquela que contivesse, na hipótese,

o ser batido em combate332. De igual modo, seria contemplada pelo conceito de tributo aquela

norma que contive na hipótese “possuir um ascendente nobre”, pois poderia ter como

continuação o seguinte: “então lhe preste homenagem, pague-lhe tributo”333. E, ainda, sem a

separação, deveríamos ler como norma de tributação aquela que tenha na hipótese algo como

um “possuir barba”, desde que associada deonticamente a uma prestação.

A norma de tributação traz, a título de síntese, na hipótese, a descrição de um estado

de coisas, uma projeção de um fato a se realizar no futuro; e como é posta, tal norma, por

volição, pode ser qualquer o conteúdo desse estado de coisas, limitado ao possível. Entretanto,

por meio de um recorte feito no campo da teoria, podemos agrupar as normas jurídicas como

normas de tributação apenas para certas hipóteses. Em uma primeira secção, é de conduta

humana que se trata, sem, no entanto, preocupações sobre a vontade subjacente a ela; no

segundo delineamento, representa essa conduta humana um fato econômico que, por estar

contemplado em norma jurídica, na norma de tributação, denominaremos, para evitar

ambiguidades, de fato jurídico-econômico.

331 Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.110. 332 O butim de guerra, entretanto, nem sempre é apontado pelo vencedor como um direito seu pela vitória, vae victis, mas como uma indenização pelo que a outra parte lhe causou, o que permitiria distingui-lo do tributo: “Em 23 de outubro [de 1918], Wilson [presidente do EUA] levou a oferta alemã aos aliados. Ingleses e franceses, depois de quatro anos de um derramamento de sangue que custara a ambos 2 milhões de mortos e 6 milhões de feridos, rejeitaram os termos moderados de Wilson. Sob uma ameaça [...], de fazer a paz em separado, o primeiro-ministro [inglês] Lloyd George aderiu, com uma única reserva. A Inglaterra não podia concordar com o segundo ponto de Wilson: liberdade nos mares. [...]. A França conseguiu inserir uma exigência de compensação integral ‘por todos os danos materiais e humanos sofridos pela população civil dos aliados em razão da agressão alemã por terra, mar e ar’”. Patrick Buchanan, Churchill, Hitler e a “guerra desnecessária”, p.61 (3) [esclarecemos entre colchetes]. 333 Uma das concepções que os dicionários trazem de tributo é exatamente a de homenagem. “TRIBUTO, s.m. [...] Homenagem. [...] lat. Tributum”. Caldas Aulete, Dicionário da língua portuguêsa, verbete “tributo”, v.5, p.4059. E não faltariam ocorrências históricas para comprovar quanto foi tido por sério o dever de prestar tributo aos mortos: “[...] o filho mais velho do falecido ou da falecida [...] apresenta-se nos textos [Livro do Mortos] como Hórus que alimenta seu pai Osíris com oferendas [...]”. Ciro Flamarion Cardoso, Tempo e espaço no antigo Egito: sua fundamentação mítica sob o Reino Novo, In: Ciro Cardoso e Haydée Oliveira (org.), Tempo e espaço no antigo Egito, p.82. Tradição que é mantida por nós com o dia dos mortos.

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4.2.5 Sujeito, verbo e complemento

A hipótese da norma de tributação figura o fato no futuro, o que faz dela uma abstração.

Mas, em nossa conceituação de tributo como norma jurídica, entendemos como insuficiente

essa formatação e adotamos também como campo semântico o conteúdo econômico, sem, com

isso, render-nos a qualquer prevalência do econômico sobre o jurídico. Afinal, é a norma que

seleciona quais fatos econômicos são relevantes e quais não são relevantes para o direito, e em

que termos, com que notas, essa importância se deve manifestar. Sendo assim, primeiro falamos

de jurídico para só então cogitarmos de econômico.

No entanto, se apontamos que a hipótese descreve um fato, não estamos tomando a

questão de forma literal, mas brevitatis causa, pois “[...] el aspecto material del hecho imponible

es el acto, hecho, conjunto de hechos, negocio, estado o situación [...]”334. Com efeito, por

descrição do fato, queremos dizer tanto a do atômico como a do molecular335. De igual modo,

ao aludirmos a fato, abarcamos tanto os que já se encontram modelados por outras normas

jurídicas, como os que recebem a roupagem jurídica diretamente da norma de tributação336. De

334 Héctor Villegas, Curso de finanzas, derecho financiero y tributario, p.283. 335 “Ainda que o mundo seja infinitamente complexo, de modo que cada fato consista em uma infinitude de estados de coisas e cada estado de coisas seja composto de um infinitude de objetos, mesmo assim deveria haver objetos e estados de coisas”. Ludwing Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, p.189 (4.2211). Ensinamento que nos permite concluir que a norma descreve ou um fato ou um conjunto de fatos, sem que seja possível reduzir o conjunto de fatos a um único fato, como aliás queria CARVALHO, ao negar a possibilidade de fatos simples e fatos complexos, sob o argumento de que “[...] pode haver o concurso de um milhão de fatos para que surja determinado efeito. Entretanto, a lei prevê apenas o resultado, como se fora a expressão de um simples acontecimento”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.130. De toda sorte, parece-nos que o mestre paulista mudou de posição: “[...] tive a oportunidade de rejeitar, peremptoriamente, a distinção dos fatos em simples e complexos [...]. Acolhendo, porém o ponto de vista do fato como sentença, oração ou enunciado, como segmento de linguagem, enfim, nada impede que venhamos a aceitar, agora, a mesma classificação”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamento jurídicos da incidência, p.115. 336 Todo fato que interessa ao direito é jurídico. Portanto, uma classificação dos “fatos geradores” em jurídicos ou econômicos deve ser ajustada para refletir esse posicionamento. Assim, será caso de “fato jurídico-econômico” se a norma de tributação o descreve diretamente ou, por outro lado, será “fato jurídico-jurídico-econômico” se a norma de tributação descreve a descrição de outra norma que, por sua vez, descreve o fato. Com esse ajuste, podemos então utilizar a classificação apresentada por FALCÃO: “Algumas vêzes, a lei inequìvocamente identifica o fato gerador, incluindo entre os seus elementos constitutivos todos aquêles que formalmente caracterizam determinado negócio jurídico privado. Pertencem a essa categoria os chamados fatos geradores jurídicos, ou ainda, abstratos ou formais, por oposição aos denominados fatos geradores econômicos, ou ainda, fatos geradores causais”. Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.77. E dessa divisão decorre que, se são “fatos abstratos ou formais”, ou seja, o nosso fato jurídico-jurídico-econômico, então “[...] o legislador pode subtrair ao intérprete o poder de investigar sobre a relação econômica que constitui o pressuposto da obrigação impositiva, fixando taxativamente em características formais o que fica para sua investigação”. Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.144. E, para o direito pátrio, no entendimento de CARVALHO, houve essa “subtração”, pois “[a] a legislação brasileira [...] não admite sobreposição do conteúdo econômico em relação à forma”. Paulo de Barros Carvalho, A livre iniciativa no direito tributário brasileiro: análise do artigo 116 do Código Tributário Nacional, in: ______, Derivação e positivação no direito tributário, p.77.

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todo modo, “[a] hipótese é um descritor, ainda que o dado ou conteúdo da descrição seja fato

já normativamente modelado”337.

Há, portanto, a descrição de um fato econômico na hipótese da norma de tributação

(ver 4.2.4). Todavia, essa situação deve ser conjugada com a afirmação de que esse fato

econômico é uma conduta humana (ver 4.2.3). Para tanto, em face desse conduzir, devemos

trazer ao primeiro plano, tal qual São João, o “verbo”338. Só que agora não como causa primeira,

mas como ação em sentido lato339; que, mesmo não estando presente no enunciado normativo,

deve ser pressuposto340. No entanto, de ser pressuposto o verbo, não significa que se verifique

de forma única. E duas situações podem ser apresentadas para afastar essa pretensão de

univocidade para todos os casos. A primeira questão é a das palavras análogas. Como amostra,

tomemos o signo “renda”, ao qual podemos associar, sem ser exaustivo, os verbos “auferir”,

“adquirir” ou ainda “obter”. Não estamos aqui dizendo que essas palavras podem ser

intercambiáveis sem qualquer prejuízo, que são sinônimos perfeitos, mas apenas que a partir de

337 Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, p.202 (X.5). 338 “No princípio era o verbo [...]”. João 1:1, Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.319. Sobre o significado de “verbo” na passagem, meritórias de transcrição as palavras de LOURENÇO: “A palavra-chave é lógos, celebremente traduzida na Vulgata de São Jerônimo por verbum (In principio erat verbum), opção que condicionou desde então todos os que traduziram o quarto Evangelho [Segundo João] para uma língua neolatina. Embora inescapável (por falta de outra opção convincente em português), ‘verbo’ não é uma tradução satisfatória. O vocábulo grego lógos tem duas acepções básicas. São elas: a) aquilo por meio do qual se exprime um pensamento racional (o que em latim se poderia traduzir por verbum, vox ou oratio), portanto ‘verbo’, ‘palavra’ ou ‘discurso’; b) aquilo que leva à própria formulação de um pensamento racional (em latim ratio), portanto a ‘razão’”. Frederico Lourenço, Notas, in: Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.319. 339 “A sua significação [do verbo] é [...] essencialmente DINÂMICA: refere-se aos movimentos em seu sentido lato, ao que se passa nos seres ou por intermédio dos seres”. Joaquim Mattoso Camara Jr, Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa: verbete “verbo”, p.298 (esclarecemos entre colchetes). 340 Deve-se a CARVALHO o ensinamento de que sempre deve o verbo estar presente na hipótese da norma de tributação: “O critério material da hipótese tributária pode bem ser chamada de núcleo [...]. [...]. Esse núcleo [...] será formado, invariavelmente, por um verbo seguido de seu complemento”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.126. Todavia, é interessante notar que CARVALHO, em artigo publicado no ano de 1970, ao cuidar do IPI, ainda não tinha apresentado sua famosíssima fórmula, pois então expôs: “[h]á três hipóteses de incidência [...]: a) o desembaraço aduaneiro [...]; b) a arrematação [...]; c) a saída do produto [...]”. Paulo de Barros Carvalho, Introdução ao estudo do imposto sôbre produtos industrializados, Revista de Direito Público, n.11, p.78-79. No mais, parece a lição ter sida seguido por VILLEGAS, mesmo que este não tenha apresentado qualquer fonte para a origem de sua exposição: “Es el núcleo [aspecto material] del hecho imponible [...]. Este aspecto material es el elemento descriptivo [...] y siempre presupone un verbo [...]”. Héctor Villegas, Curso de finanzas, derecho financiero y tributario, p.282. De toda sorte, CARVALHO, já em sua tese de livre-docência na PUC/SP, ensaiou uma classificação dos comportamentos humanos e, por tabela, dos verbos que lhes correspondem, apontando “[...] a teoria clássica dos movimentos, de origem aristotélica, que os divide (sic) em três categorias básicas: movimento voluntário, involuntário e reflexos”. Paulo de Barros Carvalho, A regra matriz do ICM, p.109. Lamentamos que não tenha, até onde sabemos, ocorrido um maior desenvolvimento do tema. Também lastimamos não ter sido apontada qualquer fonte da classificação de “origem aristotélica”. De nossa parte, encontramos, em nossa pesquisa, uma divisão, feita por ARISTÓTELES, das ações humanas em voluntárias e involuntárias: “[...] é necessário [...] definir-se a ação voluntária e a ação involuntária, definição de resto também útil aos legisladores não só para a atribuição de honras como também para a aplicação de castigos. Involuntárias são [...] aquelas ações que se geram sob coação ou por ignorância. [...]. Sendo a ação involuntária feita sob coação e por ignorância, a ação voluntária parece ser aquela cujo princípio reside no agente que sabe das circunstâncias concretas e particulares nas quais se processa a ação”. Aristóteles, Ética a Nicômaco, p.56-60 (III.I).

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um termo, no caso “renda”, não é possível derivar somente um e exclusivo verbo. Outra

passagem é quando o signo designa uma relação sinalagmática, e aqui podemos exemplificar

com a palavra “serviço”. Tanto podemos fazer referência a um “prestar serviço” como a um

“tomar serviço” e tudo o mais continua o mesmo. O preferir um não invalida o outro.

Dito isso, não olvidamos que foi o isolar o signo que nos permitiu afastar a

pressuposição do verbo de forma única. Todavia, também sabemos que, quando cotejado o

termo com outros enunciados, a pluralidade de significados pode ser reduzida, inclusive a um.

Mas tudo isso vai depender do direito positivo, do conteúdo desses enunciados. Ou seja, é

questão contingente. Desse modo, muitas vezes seria uma tentativa vã procurar esse verbo de

forma precisa, não havendo nenhum demérito em reconhecer isso. Um jurista não se torna

menos jurista se não revela a verdade única. Entretanto, o que verificamos é exatamente o

oposto, tal qual o caso do jogador que não sabe largar uma mão no jogo de cartas. Debalde,

mesmo com cartas ruins, prossegue apostando. E assim ocorre muitas vezes no direito

tributário, pois quanto mais lato é um termo, mais são trazidos outros enunciados que não se

ligam — a não ser pelo poder da imaginação, que tudo pode341 — a esse signo ao qual se quer

associar o verbo, em uma tentativa de alcançar a unicidade que não existe. No fim, há uma

construção muitas vezes brilhante, mas que não corresponde à realidade, pois tudo não passa

de uma busca inútil por um mundo ideal. Só que, quando assim procede o jurista, faz vir à

mente o auspício, pois apenas ele percebe algo que ninguém mais poderia ver342.

Há, portanto, um verbo, geralmente mais de um, explícito ou implícito, para dar conta

do fato econômico como conduta humana. Disso decorre que deve ser ele um verbo carente de

complemento343; o que não nos impede de formular a expressão na forma predicativa344. Isso

341 “Primeiro surgiram dez soldados carregando clavas em forma de naipe de Paus; eram todos iguais aos três jardineiros, retangulares e planos, com os pés e os braços saindo dos cantos. Vinham a seguir os cortesões, ornamentados com diamantes em forma do naipe de ouros; caminhavam dois a dois, com os soldados. Também em duplas, saltando alegremente de mãos dadas, vinham os infantes reais, ornamentados com naipe de copas. Atrás deles, convidados, a maior parte Reis e Rainhas; entre os convidados Alice avistou o Coelho Branco, falando apressado e nervoso, e sorrindo a tudo que diziam: passou por ela sem notá-la. Seguia-se o Valete de Copas, carregando a coroa do Rei numa almofada de veludo vermelha. E, finalmente, encerrando esse pomposo cortejo, o REI E A RAINHA DE COPAS”. Lewis Carroll, Aventuras de Alice no país das maravilhas, p.94 (8). 342 “A poucos quilômetros de Atenas estava situado o santuário de Elêusis consagrado a Démeter onde eram celebrados os famosos Mistérios. Mistérios são, na concepção religiosa dos gregos, cerimônias de que só podiam participar os iniciados. [...]. Na sala, mergulhada em profunda escuridão, ressoavam cantos lúgubres. Subitamente tochas, símbolo da revelação, iluminavam o centro do recinto. Representavam-se um drama sagrado, revelavam-se aos iniciados os segredos do mundo subterrâneo e a viagem da alma aos infernos”. Mário Curtis Giordani, História da Grécia, p.484. 343 “Em gramática tradicional, chama-se complemento objeto o sintagma nominal complemento do verbo que designa o ser ou a coisa que sofre a ação feita pelo sujeito [...]”. Jean Dubois et al., Dicionário de lingüística: verbete “objeto”, p.439. 344 “Para a gramática tradicional, predicativo é a maneira de ser ou a qualidade que o enunciado reconhece como pertencente a alguém ou a alguma coisa por meio de um verbo expresso ou subentendido [...]”. Jean Dubois et al., Dicionário de lingüística: verbete “predicativo”, p.481.

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porque, questões linguísticas à parte, por nossa ótica, não vemos diferença entre as normas de

tributação “ser proprietário” e “ter propriedade”. De igual modo, como o verbo pretende

assinalar a conduta de alguém, não pode ser impessoal345. Há, sem dúvidas, tanto a presença do

verbo como do sujeito346. Com isso, exsurge a estrutura da hipótese da norma de tributação:

“quem faz o quê”.

Há um sujeito, há um verbo e há um complemento do verbo. Sobre isso, parece não

haver discussão, pois o que se debate é a conveniência do sujeito ser explicitado347. E aponta-

se, como síntese dessa não necessidade de constar o sujeito na hipótese da norma de tributação,

que, em poucos casos, ele não seria supérfluo, já que seria possível encontrá-lo apenas por meio

do verbo. Quanto a isso, respondemos: não é a conveniência quem dita a estrutura da norma de

tributação348. Assim, se em algum caso, com fins de simplificação, a estrutura deixar de ser

totalmente explicitada, isso nada muda quanto a saber qual é essa estrutura. A hipótese da norma

de tributação possuir sujeito, é questão meramente formal349. De todo modo, nem sempre é

345 “Na língua portuguesa, há três principais padrões sintáticos de oração impessoal, com o verbo invariável na 3ª pessoa do singular para indicar sujeito zero: 1) nas orações existenciais com o verbo haver [...]; 2) nas orações que exprimem fenômenos atmosféricos [...]; 3) nas orações de verbo intransitivo na forma médio-passiva. [...]. Alguns gramáticos consideram um sujeito indeterminado na voz médio-passiva de verbo intransitivo”. Joaquim Mattoso Camara Jr, Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa: verbete “impessoalidade”, p.178. 346 Esse associar, sempre presente na norma de tributação, do quem ao como não é razão, como faz ATALIBA, para negar que se possa analiticamente estudar em separado o sujeito do verbo: “Tão íntima é a conexão entre o aspecto material e o pessoal [...] que não se pode cuidar de um, com abstração do outro”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.107. E para provar o deslize do mestre estão aí todos os estudos de análise sintática do mundo. Quem, faz o quê, quando e onde. Essa é a estrutura da hipótese da norma de tributação, podendo, cada um desses elementos, ser estudados separadamente. 347 “Parece-nos explicitamente admitida a existência deste aspecto subjetivo do fato descrito no suposto, quando se faz menção, no critério material, ao comportamento de pessoas, quando se requer um verbo pessoal, e quando se repele qualquer verbo impessoal [...]. A questão é se este dado tem relevância suficiente para ser elevado à categoria de critério da hipótese de incidência tributária”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.64. 348 Sobre o tema já escrevemos que “[...] uma suposta irrelevância de um critério na hipótese não pode determinar a estrutura da norma em si. Importante ou não, a questão é: ele está ou não presente? Para respondermos tal pergunta, basta lembramos da seguinte ordem: quem, faz o quê, quando e onde”. Valterlei A. da Costa, A norma tributária stricto sensu: estudo sintático-semântico. Revista de direito público da procuradoria –geral do município de Londrina, v. 7, p. 99. Em sentido contrário, apontado que a relevância do critério é decisiva para integrar ou não a estrutura da norma, temos CARVALHO: “[...] não razoaria versar elementos episódicos, quando o objetivo é surpreender o arcabouço essencial da norma jurídica tributária, seu mínimo irredutível ou sua unidade monádica”. Paulo de Barros Carvalho, A regra-matriz do ICM, p.146. 349 Advogando a necessidade de um sujeito na hipótese, COÊLHO: [...] ao lado dos aspectos material, temporal e espacial, acrescentamos ao fato jurígeno, na hipótese da endonorma, um aspecto pessoal. É que o fato jurígeno (um ‘ser’, ‘ter’ ou ‘fazer’) está sempre ligado a uma pessoa, e, às vezes, os tributos ou qualificações dessa pessoa são importantes para a delimitação da hipótese de incidência”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral da interpretação e da exoneração tributária, p.95-96. Ou JUSTEN FILHO: “Levando em consideração especialmente que o núcleo da hipótese (aspecto material) consiste na indicação do comportamento de alguém, comprova-se estar o modelo incompleto, já que a representação ideal de uma conduta histórica não se exaure no fornecimento das circunstâncias material, espacial e temporal. Faz-se indispensável, além disso, indicar o sujeito da conduta que objetivamente materializa o fato tributário”. Ou ainda CUNHA: “[...] o âmbito de validade pessoal nas normas gerais existe: ela vale, genericamente, para todos os que praticam o fato previsto no verbo do critério material, — objeto da ação humana. Pode-se até ocultá-lo, para fins de simplificação de análise, pois [...] em

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possível apreender o sujeito, o que já bastaria para ratificar sua autonomia. E isso se verifica de

duas formas: na primeira, de todos aqueles que podem praticar a conduta expressa pelo verbo,

a norma seleciona um ou alguns; na segunda, de todos os que o podem fazer, a norma exclui

um ou alguns. Como exemplo do primeiro caso, todos podem vender mercadorias, mas a norma

de tributação escolhe como sujeito da hipótese apenas o comerciante. De igual modo, todos

podem realizar operação com produtos industrializados, mas a seleção pode ocorrer apenas em

face do industrial. Essa é a forma positiva. Já para ilustrar a segunda situação, podemos cogitar

de uma norma que tribute a renda, mas exclua os que tem mais do que certa idade. Por essa

linha, é sujeito todo aquele que auferir, adquirir, obter renda, exceto os que tenham mais do que

tantos anos. É a forma negativa.

4.2.6 Tempo e espaço

A descrição abstrata de um estado de coisas, na hipótese, tem como foco o futuro,

sendo a projeção de algo possível. No entanto, por não ser identificado esse estado de coisas,

pois ainda não se verificou, não significa que não seja identificável, o que o obriga a vir

acompanhado especificamente de um “quando” e de um “onde”. Ou seja, a abstração é para o

além do agora, mas nem por isso deixa de existir o apontamento de um lugar e de um tempo na

hipótese, permitindo, com isso, a passagem para concreto. Com efeito, sem tempo e espaço na

hipótese abstrata, não seria possível a subsunção, pois “[o]s fatos (atos, acontecimentos;

estados) são no tempo e no espaço. Têm data e têm lugar”350. Assim, a estrutura mínima da

hipótese normativa deve conter um “quem faz o quê”, claro, mas também deve abarcar “o

quando” e “o onde” se deve fazer. Um estudo normativo, portanto, deve trazer em seu bojo ao

menos algumas linhas sobre o tempo e o espaço, sob pena de ser tachado de cambeta. E se é

assim para o exame de qualquer hipótese abstrata normativa, não seria diferente para a hipótese

da norma de tributação351. Vejamos...

grande parte das vezes, ele não é relevante na análise da norma de incidência tributária. Mas não negamos sua existência [...]”. Carlos Renato Cunha, O SIMPLES nacional, a norma tributária e o princípio federativo: limites da praticabilidade, p.105. 350 Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.1, p.76. Nesse mesmo sentido, podemos ainda citar BECKER: “Os fatos (núcleos e elementos adjetivos) que realizam a hipótese de incidência, necessariamente, acontecem num determinado tempo e lugar, de modo que a realização da hipótese de incidência sempre está condicionada às coordenadas de tempo e às de lugar”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.333. 351 “Parto da premissa segundo a qual é inconcebível ao ser humano, por força de suas limitações intrínsecas, identificar uma ocorrência qualquer sem manter relação direta com um setor do espaço e com um ponto do tempo histórico. E não serão os fatos jurídicos que vão abrir a primeira exceção”. Paulo de Barros Carvalho, Cúmulo de multa isolada e multa de ofício: estudo sobre as estruturas normativas e impossibilidade de cúmulo das multas

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Sem nos preocupar com questões filosóficas de maior monta sobre a natureza do tempo

e do espaço, podemos tomá-los como critérios identificadores, o que, para a norma de

tributação, é a recondução de certo fato econômico, quando gatilho da obrigação tributária, à

sua hipótese. Afinal, somente será possível o enquadramento do fato econômico, uma conduta

humana assim lida, à descrição abstrata da hipótese da norma de tributação se dado em local e

data definidos por ela. Assim, não é qualquer fato econômico que se adequa à norma de

tributação, mas apenas aqueles que possam ser associados ao tempo e ao espaço dispostos

normativamente352.

Percebe-se, por esse pequeno arrazoado, que o “onde” e o “quando” estão sempre

juntos na passagem do modelo de abstração ao concreto do fato, o que estaria, inclusive, de

acordo com o entendimento sobre a indissociabilidade do espaço e do tempo, na linha

quadridimensional353. Neste trabalho, no entanto, não precisaremos ir tão longe, e podemos

contentar-nos, feita essa ressalva, com um estudo separado, na norma de tributação, do tempo

e do espaço354.

isoladas e de ofício, previstas na lei n. 9.430/96, In: ______. Derivação e positivação no direito tributária, v.1, p.282. 352 A hipótese da norma de tributação dispõe sobre o tempo e o espaço para identificação futura do fato. Entretanto, esse tempo e esse espaço aparecem apenas como descrição, e não devem ser confundidos com o tempo e o espaço do fato, quando no mundo, muito menos com o tempo e o espaço da descrição concreta da verificação desse fato. Em sentido próximo, CARVALHO: “Convém separar, com bastante nitidez, o trato de tempo em que o fato se constitui e o lugar do espaço em que é produzido, das referências temporais e espaciais contidas na fórmula enunciativa. Falamos, por isso, em tempo e lugar do fato e em tempo e lugar no fato”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.122. 353 A proposta de um espaço quadridimensional ainda causa desconforto, mesmo já tendo decorridos mais de 100 anos de sua apresentação por EINSTEIN. Em razão disso, mais do que nunca, válidas ainda são as palavras do maior de todos os físicos (maior do que NEWTON?!) sobre o assunto: “Um misterioso pavor toma conta do não matemático sempre que ele escuta esta palavra ‘quadridimensional’. [...]. No entanto, nada é mais banal do que afirmar que o mundo em que vivemos é um contínuo espaçotemporal de quatro dimensões. [...] O fato de não estarmos habituados a considerar o universo como um contínuo quadridimensional ocorre porque na física pré-relativística o tempo desempenha um papel diferente, mais independente em relação às coordenadas espaciais. [...]. A Teoria da Relatividade torna natural e explícita a visão quadridimensional do ‘mundo’ [...]”. Albert Einstein, Teoria da relatividade especial e geral, p.49-50. Podemos ainda lembrar, nessa questão dimensional, da teoria das cordas, mas há aqui um grande problema: “[...] elas parecem coerentes apenas se o espaço-tempo possui dez ou 26 dimensões, e não as quatro comuns!”. Stephen Hawking, Uma breve história do tempo, p.214 (11). Por fim, com a possibilidade de tantas dimensões, só nos resta citar ABBOTT: “Esta Obra é Dedicada / Por um Humilde Nativo de Planolândia / Na Esperança de que / Da mesma forma que ele foi Iniciado nos Mistérios / Das TRÊS Dimensões / Tendo sido anteriormente versado / Em APENAS DUAS / Os Cidadãos daquela Região Celeste / Possam aspirar cada vez mais / Aos segredos das QUATRO, CINCO OU ATÉ MESMO SEIS Dimensões”. Edwin Abbott, Planolândia: um romance de muitas dimensões, p.12. 354 Em relação à “hipótese de incidência” como um todo, ATALIBA já reforçara que “[e]nquanto categoria jurídica, a hipótese de incidência é uma e indivisível. Trata-se de ente lógico-jurídico unitário e incindível”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.60. CUNHA igualmente realça a interligação dos elementos normativos, especialmente do espaço e do tempo: “[...] os critérios espacial e temporal, da hipótese normativa, estão sempre interligados — a separação, que é feita para fins analíticos, é uma abstração de um espaço-tempo que, na realidade, é uno”. Carlos Renato Cunha, ISS e o local da prestação do serviço: extraterritorialidade da lei municipal e elementos de conexão, in: Maurício Timm do Valle et al. (coord.), Ensaios em homenagem ao Professor Vieira: ao mestre e amigo, com carinho ..., p.245.

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4.2.6.1 Tempo

A relatividade do tempo, bem como sua interconexão com o espaço, não são algo para

discutir em um trabalho sobre a norma tributária. De toda sorte, a tomada do tempo como algo

independente e absoluto, em oposição à sua vinculação ao espaço e à relatividade,

respectivamente, somente trariam variação de resultados em caso de sintonia muito fina, de um

ajuste muito específico, sendo, portanto, indiferente uma tomada de posição pela relatividade

para o presente trabalho, que, afinal de contas, é sobre o direito e não a física. Assim, vemo-

nos autorizados a tomar o tempo com independência do estado de coisas355. Por essa linha, há

o estado de coisas e há o tempo, sendo que este serve como identificador daquele, a ser feito

por uma função associativa, conforme explicaremos.

Se o tempo é absoluto e independente, isso garante-lhe uma ontologia, o que nos

permite apresentá-lo como formado de unidades mínimas — momentos, instantes356 —

dispostas segundo uma ordem imutável (seta do tempo357). No entanto, essas unidades mínimas

não se confundem com o estado de coisas, pois se o tempo é diferente das coisas, conforme

assume a teoria absoluta, podemos dizer que o estado de coisas ocorre no tempo e, portanto, em

355 Não desconhecemos a supremacia do tempo em sentido relativo, fruto do sucesso empírico da teoria da relatividade, “[m]as a teoria da relatividade não é a única a fazer isso: outras teorias que envolvem espaço, tempo e movimento parecem se aplicar ao mundo físico de modo muito parecido, se não sempre com o mesmo grau de sucesso”. Christopher Ray, Tempo, espaço e filosofia, p.292 (Conclusão). Assim, há ainda muitas dúvidas sobre qual é “a” teoria que mais se identifica com o mundo. De toda sorte, utilizaremos, neste trabalho, os ensinamentos de Sir NEWTON: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, flui sempre igual por si mesmo e por sua natureza, sem relação com qualquer coisa externa, chamando-se com outro nome ‘duração’; o tempo relativo, aparente e vulgar é certa medida sensível e externa de duração por meio do movimento [...] a qual vulgarmente se usa em vez do tempo verdadeiro, como são a hora, o dia, o mês, o ano”. Isaac Newton, Princípios matemáticos da filosofia natural, p.156 (Escólio.I). Agora, se quisermos investigar um pouco mais sobre o “tempo absoluto”, vamos encontrar em PLATÃO a origem da ideia de ser o tempo algo criado à margem das coisas, composto de partes, e que se move em sentido único: “[...] ele [o criador] concebeu produzir uma imagem móvel da eternidade, e à medida que ordenava o céu ele produziu, simultaneamente, uma imagem eterna daquela eternidade que permanece na unidade, e essa imagem se movendo de acordo com o número, mesmo o que chamamos de tempo. De fato, simultaneamente à criação do céu, ele concebeu a produção de dias, noites, meses e anos, os quais não existiam antes do céu (universo) ter sido gerado. Todos eles são porções do tempo [...]”. Platão, Timeu, p.187-188 (37.d-e). S. AGOSTINHO adotou igualmente um conceito absoluto de tempo quando o dissocia do movimento: “Mandas concordar, se alguém disser que o tempo é o movimento dos corpos? Não mandas”. Santo Agostinho, Confissões, p.324 (XI.XXIV.31). Como síntese do tempo absoluto, podendo diz que “[o] tempo é distinto de qualquer movimento [...]”. Hugh Lacey, A linguagem do espaço e do tempo, p.54 (3.13). 356 Se negarmos ao tempo uma unidade mínima, então vamos ao encontro dos paradoxos de Zenão, pois não poderíamos mediar algo infinito, já que “[...] dado o fato de que, em razão da infinita divisibilidade, haverá sempre algo anterior a qualquer coisa que se tome”. Jonathan Barnes, Filósofos pré-socráticos, p.177 (II.11). 357 “Existem pelo menos três setas do tempo distintas. Primeiro, há a seta do tempo termodinâmica, a direção na qual a desordem ou entropia aumenta. Depois, há a seta do tempo psicológica. Essa é a direção em que sentimos o tempo passar, a direção em que nos lembramos do passado, mas não do futuro. Enfim, há a seta do tempo cosmológica. Essa é a direção do tempo em que o universo está se expandindo, em vez de se contrair”. Stephen Hawking, Uma breve história do tempo, p.181 (9).

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algum momento, mas não é ele próprio esse momento. Com isso, podemos associar, como par

ordenado, a todo estado de coisas, um momento358. Logo, o estado de coisas “ec” no tempo

“t1”, enquanto agrupamento, não se confunde como mesmo estado de coisas “ec” no tempo “t2”,

sendo, portanto, não equivalentes “ect1” e “ect2” [~(ect1≡ect2)]. Assim, por uma primeira leva,

o tempo, na hipótese da norma de tributação, seria a indicação de um instante, ou um momento,

no futuro, seta do tempo, que peculiarizará a descrição em abstrato do fato.

No entanto, além do momento, instante, há o período. Com efeito, se tomarmos um

momento por termo inicial e outro por termo final, teremos uma métrica do tempo, que nada

mais é do que a quantidade de momentos, unidade mínima, que há entre o termo inicial e o

termo final359. Dessas duas possibilidades — instante ou momento, por um lado, e, por outro,

período ou duração —, decorrem duas formas de associações do estado de coisas ao tempo:

diretamente o estado de coisas liga-se a um momento; indiretamente se liga a um período, por

meio de um momento contido no período. Assim, se podemos conectar o tempo quer a um

instante, momento, quer a um período, duração, então, a fortiori, também podemos classificar

o tempo da hipótese da norma de tributação de instantâneo ou periódico. Logo, o tempo na

hipótese da norma de tributação é a indicação de um instante, momento, ou de um período,

duração, no futuro, seta do tempo, que singularizará a descrição abstrata do fato.

A norma de tributação é formada de hipótese, cujo bojo contém uma abstração de um

fato econômico que, para identificação no futuro, deve ser associado a um tempo, o qual pode

ser um instante, momento, ou ainda um período, duração. Com isso, resgatamos a tão

vilipendiada classificação dos “fatos geradores” em instantâneos ou periódicos, tendo, para esse

358 “[...] enunciaremos [...] a teoria absoluta do tempo: A1. Há dois tipos de entidades temporais irredutíveis [...]: a) entidades puras, que denominaremos momentos. Elas correspondem às partes do tempo absoluto de Newton; constituem posições temporais. b) eventos [...]. Eventos têm posições temporais; ocorrem em ou ocupam momentos”. Hugh Lacey, A linguagem do espaço e do tempo, p.71-72 (IV.17). 359 Tanto o termo inicial como o termo final podem ou não estar dentro do período, a depender do critério adotado por quem faz a demarcação do período.

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último caso, também sido usado o termo “complexivo”, o qual sofreu forte crítica360-361. De

toda forma, não aprovar o nome não é causa para relegar a classificação, sendo, no máximo,

alavanca para realizar um novo batismo, como tantas vezes já se fez no direito, quando o

apresentado como novo não passa de uma troca de rótulos362.

Não olvidamos, ademais, que seja dito de uma classificação, em periódico e

instantâneo, do tempo do fato, que tenha sido ela “[...] refutada por Paulo de Barros Carvalho

[...]”363; nem desconhecemos que o criador da expressão “regra-matriz” alega que “[...] todos

os fatos são instantâneos, não tendo cabimento a classificação bipartida [em ‘fatos geradores’

instantâneos e complexivos] [...]”364. Entretanto, por mais peso que tenham ATALIBA e

CARVALHO para o direito tributário, não cremos que ficaria em má posição, mesmo que tudo

não passasse de argumento de autoridade, quem se colocasse ao lado de FALCÃO e DÓRIA.

De todo modo, questão à parte de quem é o maior tributarista da história do direito brasileiro,

nossos argumentos, para trazer de volta o arranjo da partição temporal da hipótese da norma de

tributação em duas, são simples: dizer que algo se deve dar em um momento, um instante, é

diferente de expor que algo se deve dar em um período, dentro de uma duração, não sendo

possível reduzir o último ao primeiro.

360 A depender da doutrina, os “fatos geradores” são classificados em dois grupos: [instantâneos e (complexivos ou periódicos), como sugere FALCÃO: “[...] examinada a natureza do fato gerador do ponto-de-vista de sua ocorrência no tempo [...] duas categorias de situações se apresentam perfeitamente distintas: a dos fatos geradores instantâneos e a dos fatos geradores complexivos, completivos, continuativos, periódicos ou de formação sucessiva. Instantâneos são os fatos geradores [...] que ocorrem num momento dado de tempo e que, cada vez que surgem, dão lugar a uma relação obrigacional tributária autônoma. [...]. Complexivos ou periódicos [...] são os fatos geradores [...] cujo ciclo de formação se completa dentro de um determinado período de tempo [...] e que consistem num conjunto de fatos, circunstâncias ou acontecimentos globalmente considerados”. Amílcar Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, p.126-127. Ou, por outra linha, em três: [(instantâneos) e (complexivos) e (periódicos)], como é para DÓRIA: “[...] cumpre distinguir inicialmente os fatos geradores de tributos em três categorias: fatos geradores instantâneos, continuados e complexivos. A diferenciação tradicional, na doutrina, se limita a fatos geradores instantâneos e complexivos, mas julgamos necessário acrescentar uma terceira espécie, a dos fatos geradores continuados [...]”. Antônio Sampaio Dória, Da lei tributária no tempo, p.140. De nossa parte, com vistas à simplificação, tomaremos a classificação dos “fatos geradores”, a depender do critério temporal: como instantâneos (ou momentâneos) e periódicos (ou de duração). 361 CARVALHO, entre outras críticas que faz a classificação, alega que “[...] o vocabulário empregado na designação de uma das categorias ‘complexivos’ – nem existe no vernáculo. É adaptação apressada do adjetivo italiano ‘complessivo’, que vem de ‘complesso’ e quer dizer complexo”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.142. Na verdade, a língua portuguesa contempla sim a palavra “complexivo”, conforme se verifica com uma consulta ao VOLP — examinamos, da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5.ed., de 2009. 362 “O que foi, será, o que se fez, se tornará a fazer: nada há de novo debaixo do sol!”. Eclesiastes 1:9, Bíblia de Jerusalém, p.1072. 363 Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.99. 364 Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.139-140. Em seu Curso, prossegue ainda o emérito jurista: “Se o chamado fato gerador complexivo aflora no mundo jurídico, propagando seus efeitos, apenas em determinado instante, é força convir em que, anteriormente àquele momento, não há que falar-se em obrigação tributária, pois nenhum fato ocorreu na conformidade do modelo normativo, inexistindo portanto os efeitos jurídico-fiscais próprios da espécie”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.281.

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Uma coisa é a norma conter um estado de coisas que pode, no futuro, verificar-se em

um momento t1, outra coisa é a norma englobar todos os estados de coisas que se verifiquem

no futuro entre (inclusive ou não) “t0” e “t1”. No primeiro caso, “ec.t1”, no segundo caso “t0 <

ec < t1”. No primeiro caso, somente o que se verificar em “t1” terá importância, será colhido

como jurídico, para a norma de tributação; na segunda situação, tudo que se verificar entre o

marco inicial e o marco final, terá relevância, não apenas, como quer fazer crer nossa melhor

doutrina, o último átimo do período. Assim, não temos dúvidas de que o tempo da hipótese da

norma de tributação pode ser um instante, um momento, ou um período, um intervalo de

duração365.

Por fim, devemos concluir este tópico, que já se alonga, expondo que sempre existirá

uma precificação do tempo na hipótese da norma de tributação. O que poderá variar é se será a

especificação do estado de coisas feita de forma explícita ou implícita366. Para os casos

explícitos, a norma de tributação apontará, na seta do tempo, um instante ou um período para

que a verificação do estado de coisas possa ser a ela subsumida. Do contrário, em nada

prevendo, significará que todo e qualquer momento no qual se concretizar a projeção descrita

em sua hipótese será hábil para ensejar a tributação. Afinal, “[...] a não identificação do

elemento temporal numa dada hipótese de incidência tributária, mesmo implicitamente,

equivale a tornar inoperante a norma legal e, em conseqüência, insubsistente a imposição

tributária por ela instituída”367.

4.2.6.2 Espaço

365 Em apoio à nossa linha de raciocínio: “Essa classificação [instantâneo e periódico], porém, tem utilidade não meramente didática (o que, aliás, por si só, já lhe daria trânsito nos manuais tributários). [...] o que deve se sublinhar é a circunstância de que seu fato gerador [periódico] não se forma num momento, mas sim ao cabo de uma soma de momentos temporais [...]”. Luciano Amaro, Direito tributário brasileiro, p.270 (esclarecemos entre colchetes). 366 A classificação do critério temporal da norma de tributação em explícito e implícito deve-se a CARVALHO: “[...] supostos tributários existem que fazem previsão de determinado momento em que deva ocorrer o fato jurídico. Se fato idêntico suceder, porém em instante diferente daquele aludido na hipótese, não será fato jurídico, ao menos para efeitos tributários, à mingua de satisfação do condicionante temporal especificado, em sua descrição típica. [...]. Em outras ocasiões, não se preocupa com o momento em que deva acontecer o fato hipoteticamente descrito, o que equivale a dizer que, em qualquer circunstância de tempo em que se realize, terá desencadeado os efeitos tributários normativamente concebidos”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.142-143. ATALIBA, após a transcrição de um longo excerto da tese do discípulo amado, acrescenta: “Esta longa transcrição teve em mira [...] deixar patente nossa adesão irrestrita à tese assim exposta”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.102. 367 Ormezindo Ribeiro de Paiva, Elemento temporal do fato gerador da obrigação tributária, p.10.

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Não se pode dizer que o critério espacial da hipótese tributária não goze, na

doutrina, do devido respeito. Afinal, não faltam os que dizem ser ele de maior relevância368;

nem os que afastem que tenha um caráter de simplório, mesmo que as aparências apontem em

sentido contrário369. De nossa parte, temos que o critério espacial possui relevo, é da maior

importância, envolto em enorme complexidade, qualquer que seja o ângulo pelo qual se olhe,

já que, no fundo, pressupõe um conceito de espaço, com todas as dificuldades subjacentes.

De forma geral, a doutrina define o espaço, na norma de tributação, como o lugar, o

local, a localização de um acontecimento, de uma ocorrência. Por “ocorrência” ou

“acontecimento”, devemos deixar aqui consignado que se deve separar a previsão do fato de

sua efetiva verificação (ver 4.2.3), pois isso conduz a importantes diferenciações no estudo do

espaço na norma de tributação. Dito isso, podemos então recordar que há o estado de coisas

descrito abstratamente, projetado para futuro, e há o estado de coisas no mundo, o que se

averigua. Há, assim, o fato e há a figuração do fato, cabendo à norma de tributação estabelecer

a última. Já quanto aos verbetes “lugar”, “local” e “localização”, podemos tomá-los, ao menos

para o estudo da norma de tributação, como sinônimos, não havendo prejuízos em seu

intercâmbio370; apesar de haver, quando no plano da sintonia fina, discrepância entre eles371. E

como não vemos maiores objeções, entre os três termos, ficaremos com “lugar”, dispensando

explicações. Agora, é com base na distinção entre fato e figuração do fato que é possível fazer

referência a um lugar no espaço lógico, enquanto abstração, onde se situa a descrição, e um

onde se verifica o fato, no espaço que é o mundo372. Para tanto, e para bem demarcar as coisas,

vamos usar termos diversos. Para o primeiro caso, do lugar no espaço lógico enquanto descrição

normativa, ficaremos com “lugar-geométrico”. Já para a segunda situação, lugar do fato no

mundo, então usaremos “lugar-geográfico”373.

368 “O elemento espacial do fato gerador é de maior relevância [...]”. Zelmo Denari, Curso de direito tributário, p.172. 369 “A aparente simplicidade do critério não encontra respaldo na complexidade da vida política e social contemporânea”. Renato Becho, Lições de direito tributário, p.145. 370 “Se tivermos duas frases F1 e F2 que difiram somente pelo fato de F1 ter uma unidade x e F2 uma unidade y onde F1 tem uma unidade x, e se F1 ⸧ F2 e F2 ⸧ F1 (implicação dupla), poder-se-á dizer que x e y são sinônimos”. Jean Dubois et al., Dicionário de lingüística, verbete “sinonímia”, p.556. 371 “Local é ponto em que uma coisa tem seu assento, o lugar próprio para nele ser colocado. Localidade é espaço circunscrito, considerado no que tem de especial. Lugar é o ponto em que uma coisa existe ou pode existir”. Antenor Nascentes, Dicionário de sinônimos, p.305. 372 A hipótese da norma cuida de possibilidades e não de certezas, o que nos permite dizer que localiza essas possibilidades não no espaço, enquanto mundo, mas no espaço lógico. Assim, “[a] afiguração representa uma situação possível no espaço lógico”. Ludwig Wittgenstein, Tractatus logico-philosophicus, p.145 (2.202). Por sua vez, “[o] Tractatus não define o termo ‘espaço lógico’, mas este se refere ali, claramente, ao conjunto total de possibilidades lógicas”. Hans-Johann Glock, Dicionário Wittgenstein, vernáculo “espaço lógico”, p.136. 373 Sobre a distinção, ver Valterlei A. da Costa, Critério espacial da hipótese da norma tributária. Revista de direito público da procuradoria–geral do município de Londrina, v.6, p. 171-196.

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Um ponto de estudo é o estado de coisas como possibilidade. Outro, totalmente

diferente, é o caso, o fato, enquanto verificado no mundo. Se esses pontos diversos vão

expressos em linguagem, por óbvio, as expressões devem ser diferentes, sob pena de não

refletirem a disparidade. Assim, na norma de tributação, que traz uma abstração na hipótese,

um possível estado de coisas, uma figuração, a referência a um lugar específico no espaço

lógico faz-se por coordenadas geométricas, o que nos permite, então, designá-lo de lugar-

geométrico374. Por sua vez, empiricamente o fato também é num lugar. Aquilo que é descrito

na norma, possivelmente dar-se-á no mundo físico, e, portanto, o fato advirá em um lugar. Para

esse lugar, visando a distingui-lo, denominá-lo-emos de lugar-geográfico. Com isso, podemos

entender que o lugar-geométrico só existe em razão da proposição abstrata posta pela autoridade

competente, associado a coordenadas375. Por sua vez, o lugar-geográfico é ou não é no mundo.

Assim, concluímos que a norma de tributação, em sua hipótese, ao descrever um estado de

coisas no futuro, associa à abstração coordenadas, para que, uma vez ocorrido, no mundo, o

fato, seja possível verificar se o lugar-geográfico dele (fato) é reconduzível ao lugar-geométrico

estabelecido normativamente naquela (hipótese normativa).

Outro ponto que merece fino trato, no estudo do espaço na norma de tributação, é o da

territorialidade. Entretanto, somente é possível compreender tal assunto por meio de um estudo

dinâmico da tributação, onde os aspectos extra e intra território da norma de tributação

transparecem quando cotejados com a norma de competência376. Com efeito, a existência de

374 Sem nos esquecermos de Pierre de Fermat, o mérito do desenvolvimento ou mesmo da criação da geometria analítica cabe a DESCARTES. A proposta inicial do francês era de modesta pretensão: possuir um método que fosse aplicável a todo e qualquer estudo. É com esse objetivo que surge o método cartesiano — sintetizado de forma lapidar em penso, logo sou; cogito, ergo sum —, implicando o conhecimento da verdade por meio da fixação das coisas que concebemos perfeitamente, separando-as “[...] das outras que só compreend[emos] com confusão e obscuridade”. René Descartes, Meditações metafísicas, p.96 (IV.50) (ajustamos entre colchetes). E de posse de tal método, ele mesmo o aplicou: “Como toda a Aritmética consiste apenas em quatro ou cinco operações, a saber, adição, subtração, multiplicação, divisão e a extração das raízes, que pode ser considerada um tipo da divisão, assim também não há outra coisa a fazer em Geometria, com respeito às linhas que se desejam conhecer, senão a elas adicionar ou subtrair outras para prepará-las para serem conhecidas ou, ainda, tomando uma, que chamarei de unidade a fim de relacioná-la o melhor possível com os números, a qual pode em geral ser escolhida arbitrariamente, e conhecendo outras duas, encontro uma quarta que esteja para uma dessas duas como a outra está para a unidade, que é o mesmo que a multiplicação; ou ainda encontrar uma quarta que esteja para uma dessas duas como a unidade está para a outra, o que é o mesmo que a divisão; ou, enfim, encontrar uma, duas ou várias medias proporcionais entre a unidade e alguma outra linha, o que é o mesmo que extrair a raiz quadrada, ou cúbica, etc. E não temerei introduzir esses termos da Aritmética na Geometria para me fazer compreender melhor”. René Descartes, A geometria: primeiro livro, Cadernos de história e filosofia da ciência (CHFC), v.19, p.222-223 (369.8-370.14). 375 Geralmente, visando à simplicidade, estabelecemos a identificação de um lugar-geográfico a partir de coordenadas (x,y). Isso não quer dizer, por óbvio, que o mundo é plano: “A validade, assim como a eficácia, da ordem jurídica nacional estende-se não apenas em largura e comprimento, mas também em profundidade e altura. Como a Terra é um globo, a forma geométrica desse espaço — o espaço do Estado — é, aproximadamente, a de um cone invertido”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.312 (II.II.A.f). 376 KELSEN remete o tema da territorialidade ao direito internacional: “A esfera territorial de validade da ordem jurídica internacional abrange as esferas de validade de todas as ordens jurídicas nacionais. Porque as esferas destas

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129

territorialidade significa um limite à possibilidade de escolha do espaço, em sentido normativo,

de quem põe a norma de tributação em um lugar-geométrico dado pela norma de competência.

Limite esse que é normativo, pois “[n]enhum conhecimento naturalístico, mas só um

conhecimento jurídico, pode dar resposta à questão de saber segundo que critério se determinar

os limites ou fronteiras [...]”377. Assim, a norma de competência contém as coordenadas do

território, estabelecendo que a norma de tributação, ao escolher o lugar-geométrico da figuração

tributária deve ater-se a essas coordenadas. Por outro lado, sem a restrição de que apenas ao

território apontado em norma de competência deve limitar-se a norma de tributação, então

poderá ser o caso de extraterritorialidade, ao talante da autoridade que cria a norma.

De toda sorte, o mais das vezes, o que verificamos é a norma de tributação não trazer,

em sua hipótese, quaisquer coordenadas para que se possa identificar o lugar do fato e se realizar

então a subsunção. Entretanto, como sempre deve haver um lugar-geométrico para a projeção,

considera-se, para a espacialidade da hipótese da norma de tributação, quando ela nada diga, as

coordenadas do território dispostas em norma de competência378. Assim, podemos dizer que a

espacialização do fato sempre poderá ser reconduzida à norma de tributação, para identificação

como pertencente ou não pertencente, quer de forma direta, quer de forma indireta, caso último

que ocorre por encaminhamento à norma de competência379.

são determinadas pelo Direito internacional; elas são determinadas de acordo com o princípio da eficácia. A validade exclusiva de uma ordem jurídica nacional, segundo o Direito internacional, estende-se apenas até onde essa ordem é, como um todo, eficaz, ou seja, até onde os atos coercitivos previstos por essa ordem são efetivamente postos em prática”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.307 (II.II.A.e). 377 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.319 (VI.6.a.). 378 “‘Todas as normas jurídicas do sistema se aplicam unicamente a atos executados em determinado território’. Tais leis não são normas; nem impõem deveres nem conferem poderes. Têm, contudo, relações internas com pelo menos algumas normas jurídicas do sistema, porque afetam a interpretação e a aplicação dessas normas. [...]. Admitindo-se a existência de tais leis, evita-se a repetição das condições executivas comuns a muitas leis e muitas delas se tornam, em consequência, mas simples. Em contrapartida, a ‘dependência’ dessas leis em relação a outras aumenta e elas se tornam menos autossuficientes, menos autoexplicativas”. Joseph Raz, O conceito de sistema jurídico: uma introdução à teoria dos sistemas jurídicos, p.194 (VI.3.B). 379 Uma classificação da hipótese da norma de tributação pode ser feitacom dependência à forma como faça ela alusão à espacialidade que servirá como identificadora da figuração: diz-se direta quando dispõe as coordenadas; indireta, por sua vez, quando devem ser essas coordenadas colhidas em norma de competência. Nesse sentido, mas por outro giro, podemos apontar ATALIBA, que se refere à previsão do lugar do fato como “explícita” ou “implícita”: “Um determinado fato, ainda que revista todos os caracteres previstos na h.i., se não se der em lugar nela previsto implícita ou — o que é raro e em geral dispensável — explicitamente, não será fato imponível”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.104. CARVALHO, para a identificação do fato em relação ao espaço, usa local “expresso” ou “implícito”, neste último caso, a ser apurado por indícios: “Há regras jurídicas que trazem expressos os locais em que o fato deve ocorrer, a fim de que irradie os efeitos que lhe são característicos. Outras, porém, nada mencionam, carregando implícitos os indícios que nos permitem saber onde nasceu o laço obrigacional. É uma opção do legislador”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.270. Por fim, podemos citar SCHOUERI que, tratando do “âmbito de aplicação”, faz remissão a “expresso” e a “silêncio”: “[...] a lei poderá definir seu âmbito de aplicação expressamente (quando, então, apenas os ‘fatos geradores’ ocorridos dentro do território assim definido é que estarão sujeitos a (sic) tributação) e, de outro, no silêncio, encontrar-se-á, de todo modo, limite, equivalente ao próprio âmbito de aplicação da lei tributária”. Luís Eduardo Schoueri, Direito tributário, p.542.

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130

De modo que há duas formas de disciplinar o tema: expressamente ou por remissão.

Sendo o caso de disciplina direta, então, há ainda duas possibilidades: identidade total ou a

escolha de um ponto mais específico, sem que haja total coincidência entre a territorialidade da

norma de competência e a da norma de tributação. Escolhe-se, assim, coordenadas próprias, e

não todo o campo dentro das coordenadas já estabelecidas. Com efeito, “[...] a lei pode dar

saliência ou relevo ao aspecto espacial da h.i., acrescentando a este condicionamento genérico

um fator específico de lugar, posto como decisivo à própria configuração dos fatos

imponíveis”380. Logo, a determinação espacial da norma de tributação “[...] pode conter outros

elementos mais específicos que venham em complemento daquele dado genérico [...]”381.

A norma de competência traz coordenadas que formam, se unidas, uma figura

geométrica a que chamamos de território. Com base nisso, uma primeira opção da autoridade é

adotar in totum, de forma expressa ou não, essa figura geométrica como espaço normativo da

norma de tributação. Pode, no entanto, optar por uma outra figura geométrica contida nessa

figura maior, mas não idêntica382. Por fim, ainda é possível optar por um exclusivo ponto dentro

da figura, quando se pretende um alto grau de precisão na determinação do lugar-geométrico

da hipótese tributária383. E parece-nos que são essas três possibilidades de combinação, entre a

espacialidade da norma de competência e a da norma de tributação, a base para negar a

identidade entre a territorialidade e a norma de tributação384. Logo, o grau de especificidade

com que age a autoridade, ao pôr a norma de tributação, permite-nos:

[...] classificar o gênero tributo na conformidade do grau de elaboração do critério espacial da respectiva hipótese tributária: a) hipótese cujo critério espacial faz menção a determinado local para a ocorrência do fato típico; b) hipótese em que o critério espacial alude a áreas específicas, de tal sorte que o acontecimento apenas ocorrerá se dentro delas estiver geograficamente contido; c) hipótese de critério espacial bem genérico, onde todo e qualquer fato, que suceda sob o manto da vigência territorial da lei instituidora, estará apto a desencadear seus efeitos peculiares385-386.

380 Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.104. 381 Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.133. 382 “O tributo [IPTU] grava, privativamente, os imóveis localizados dentro do perímetro urbano do Município”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.273 (esclarecemos entre colchetes). 383 “Quando a lei menciona estabelecimento, depósito, filial, sucursal etc, está fixando condições de situação do fato imponível relevantes para se qualificar a incidência e a isenção, conforme o caso”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.106. 384 “A territorialidade das leis não se confunde com o critério espacial da regra-matriz tributária [...]. Por territorialidade da norma temos todo o espaço geográfico onde a pessoa política instituidora do tributo exerce sua competência impositiva”. Renato Lopes Becho, Lições de direito tributário: teoria geral e constitucional, p.147. 385 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.272. 386 A adoção in totum, por nós, da classificação dos tributos feita por CARVALHO, de acordo com o grau de especificidade espacial da hipótese da norma de tributação, somente se pode dar com os devidos esclarecimentos. Dada a ideia de territorialidade, contida na norma de competência, resta-nos apenas outras duas posições, que não a sua identidade com a espacialidade da norma de tributação. Ou é um caso de extraterritorialidade (além); ou é um caso de demarcação dentro da territorialidade (contido). Disso não temos dúvidas. Entretanto, a distinção feita

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131

A territorialidade significa um limite à norma de tributação. Ela, ao eleger o lugar-

geométrico de sua hipótese, fica condicionada pela norma de competência. Caso nada traga,

patavina, considera-se que a norma de tributação escolheu, como campo da espacialidade, todo

aquele delimitado em norma de competência, e, por isso, fala-se de questão implícita. No

entanto, pode expressamente cuidar do tema, seja reafirmando a territorialidade que contém a

norma que funda sua criação, caso clássico de repetição, seja escolhendo ponto mais específico,

o que permite a classificação dos tributos segundo o grau de especificidade espacial contido na

hipótese da norma de tributação.

4.3 CONSEQUÊNCIA DA NORMA DE TRIBUTAÇÃO

Expor a hipótese da norma de tributação, ou seja, a descrição de um fato lícito,

projetado no futuro, mesmo que com a ressalva do conteúdo econômico, indiferente à vontade,

com identificadores de tempo e espaço, é necessário, mas não é suficiente. Isso porque, para

conceituarmos tributo, esquadrinhar o antecedente é importante, todavia é insatisfatório387, pois

isso “[...] ainda diz pouco: / há muitos na freguesia / [...]. / Como então dizer quem fala / ora a

Vossa Senhoria?”388. Com efeito, analisando apenas a hipótese, não é possível saber se estamos

diante de uma norma de tributação. Assim, devemos apresentar o consequente, para que, então,

tenhamos uma visão completa da norma de tributação.

como chave classificatória entre “pontos predeterminados” e “áreas, regiões, intervalos territoriais, extensos e dilatados”, dentro do campo da territorialidade, é extremamente complicada de adotar-se, ao menos se a base teórica for a geometria. Para tanto, basta lembrarmos da primeira definição de EUCLIDES, para quem “[p]onto é aquilo de que nada é parte”. Euclides, Os elementos, p.97 (I). Ora, uma “repartição alfandegária”, usada como ilustração de “ponto predeterminado”, não é, de fato, um ponto, pois esse possui dimensão zero. Ela é, no plano abstrato, uma figura formada de vários pontos e, portanto, possui uma área, pequena, é verdade, perto do território, mas a possui. Assim, não haveria como separar, v.g., valendo-se de uma classificação rigorosa, do ponto de vista da geometria, uma “repartição alfandegária” de um “perímetro urbano do município”, uma vez que ambos seriam áreas contidas na territorialidade. Entretanto, vamos encampar a classificação, seja porque reconhecemos a sua influência no direito tributário, seja porque não olvidamos que “[...] a matemática e a geometria fornecem materiais para construirmos modelos do mundo físico. Mas modelos são analogias abstratas, e não o próprio mundo”. Christopher Ray, Tempo, espaço e filosofia, p.35 (1). 387 Em sentido contrário, ATALIBA: “[...] a tarefa mais importante da ciência do direito está no estudo da hipótese legal”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.40. Posição essa já atenuada em relação ao texto original: “[...] a tarefa mais árdua da ciência do direito está no estudo da hipótese legal e não — por surpreendentemente que pareça — no mandamento principal. Na hipótese se concentram as questões mais tormentosas e complexas. Diante de cada problema, a dissecação da hipótese é que desafia o jurista”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 1.ed., p.37. JARDIM vai em sentido oposto, expondo que é a “[...] consequência de conteúdo prescritivo que consubstancia a própria razão de ser do direito”. Eduardo Jardim, Manual de direito financeiro e tributário, p. 162. 388 João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina (auto de natal pernambucano): o retirante explica ao leitor quem é e a que vai, In: ______. Morte e vida severina e outros poemas para vozes, p.45.

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132

4.3.1 Obrigação de dar

Toda norma jurídica prescreve uma conduta humana. Na verdade, em sua estrutura

completa, a norma jurídica prescreve, de forma disjuntiva, duas condutas, uma na norma

primária e outra na norma eventual (ver 2.8). Entretanto, para o que seja tributo, basta apenas

nos debruçarmos sobre a conduta prescrita na norma primária (ver 4.1). Com essa estipulação,

podemos então discorrer sobre essa conduta, que pode ser adjetivada de dois modos: positiva

ou negativamente389. Para tanto, o que fazemos é, a partir de um gênero, a classe de todas as

condutas possíveis contidas na norma primária, uma secção, encontrando duas subclasses390.

Dessa forma, revelamos o fazer e o não fazer, espécies do gênero conduta. Entretanto, devemos

ter o cuidado de não associar todo o não fazer, que é o conteúdo de uma prescrição, com o mero

não agir, pois o não fazer apenas ganha contexto jurídico quando o agir é possível (ver 2.2).

Assim, não podemos considerar o abster-se do impossível como um não fazer391.

Feita essa ressalva empírica, temos a conduta positiva e a conduta negativa como

possibilidades de prescrição contidas na consequência normativa. E, especificamente em

relação à conduta positiva de fazer, podemos ainda realizar uma nova classificação, pois,

segundo consagrado ensinamento, o fazer, em um sentido lato, divide-se em um fazer em

sentido estrito e em um dar, já que todo dar não deixa de ser uma forma de fazer392.

389 “Actos y abstenciones [...] son dos modos de acción”. G.H. von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.66 (III.8). 390 “Nas condições mais simples, a classificação requer uma classe e um traço característico em condições de permitir que o objeto a classificar seja distinguido de outros objetos. Usando terminologia consagrada desde a antiguidade clássica, exige-se um genus (gênero) e uma differentiam specificam (diferença específica), isto é, pede-se a classe a que o objeto pertença e o traço que possa distingui-lo dos demais objetos porventura presentes nessa classe”. Leonidas Hegenberg, Dicionário de lógica: verbete “classificação”, p.33. 391 “Un agente, en una ocasión dada, se abstiene de hacer una determinada cosa si, y solo si, puede hacer esta cosa, pero de hecho no la hace”. G.H. von Wright, Norma y acción: una investigación lógica, p.66 (III.8). 392 Que as condutas são positivas ou negativas e que as positivas se dividem em dar e fazer é lição mais do que conhecida, podendo ser encontrada em manuais dirigidos aos graduandos: “Todo dever jurídico tem por objeto uma prestação, que pode consistir num ato (fazer ou dar) ou numa abstenção (não fazer). Daí a divisão do dever jurídico em duas grandes espécies: — dever positivo, que tem por objeto uma prestação positiva, isto é, um ‘ato’ (fazer ou dar); — dever negativo, que tem por objeto uma prestação negativa, isto é, uma abstenção (não fazer). O dever jurídico positivo desdobra-se em: — dever de fazer [...]. — dever de dar ou entregar [...]. O dever jurídico negativo tem igualmente por objeto uma prestação, mas esta consiste na abstenção de um ato. É o dever jurídico de não fazer”. André Franco Montoro, Introdução à ciência do direito, p.460-461 (IV.16.2). No entanto, também é encontrado em obra de vulto, como no grande Tratado de PONTES DE MIRANDA: “A prestação pode ser (A) positiva ou (B) negativa. As prestações positivas, que são as de fazer, incluídas as de dar, podem ser (Aa) de atos pessoais ou (Ab) de objetos”. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.XXII, p.73 (2691). E mesmo uma obra como a Teoria Pura, de KELSEN, dela se utilizou: “A conduta a que um indivíduo é obrigado imediatamente em face de um outro pode ser uma conduta positiva ou negativa, isto é, uma determinada ação ou omissão. A ação consiste numa prestação do indivíduo obrigado ao outro indivíduo. Objeto da prestação é uma determinada coisa ou serviço determinado (prestação de coisa ou de serviço). Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.141 (IV.3.a).

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133

Como síntese, podemos afirmar que a conduta pode ser tomada positivamente,

ancorada em um fazer, ou, por sua face negativa, com foco no não fazer, numa abstenção do

possível. Entretanto, de forma mais minuciosa, o fazer, tomado em um sentido mais ancho,

pode ser destrinchado em um fazer stricto sensu e em um dar. Assim, a conduta prescrita é ou

um não fazer ou um fazer em sentido lato, que se desdobra em um fazer em sentido estrito ou,

ainda, em um dar. Agora, se não esquecemos que a conduta prescrita é modalizada — permitida,

proibida ou obrigatória (ver 2.6) —, então, quer seja a conduta apresentada positiva ou

negativamente, o que se está permitindo, proibindo ou obrigando é um fazer ou um não fazer.

Prosseguindo, se o fazer, em sentido lato, desdobra-se em um fazer stricto sensu e em um dar,

então podemos expor que o que se está obrigando, permitindo ou proibindo, modos de conduta,

é ou um fazer, ou um dar, ou também um não fazer, conteúdos da prescrição393.

Podemos, então, dar mais um passo em nossa conceituação de tributo. Da norma

jurídica, tomamos emprestado apenas a norma primária (ver 4.1). E quanto à norma primária,

apontamos que contém, na hipótese, a descrição de um fato lícito (ver 4.2.1), descrito

abstratamente (ver 4.2.2), independentemente de volição (ver 4.2.3), mas apto a representar um

fato jurídico-econômico (ver 4.2.4). Neste momento, discorrendo sobre a consequência,

descartemos os modos de conduta proibido e permitido, e foquemo-nos na vertente obrigatória.

Tributo é, com efeito, uma obrigação, ou, desdobrando a ideia, tributo é uma norma primária

com modo de conduta deôntico obrigatório394. Igualmente podemos preterir qualquer ideia de

que tributo seja um não fazer. Tributo é, assim, uma obrigação de fazer (em sentido lato). Resta-

nos, então, com isso estabelecer se estamos diante de uma obrigação de dar ou de uma obrigação

de fazer em sentido estrito, ou seja, falta determinar o conteúdo da consequência da norma de

tributação.

Ambas as possibilidades até seriam aceitáveis em uma conceituação de tributo, pois

não desconhecemos que, vez ou outra, foram apresentados alguns fazeres específicos (serviço

militar, serviço eleitoral) como obrigações tributárias395. Ocorre que, se assim também o

393 BORGES bem separa o dever-ser da obrigação: “[...] há várias modalidades pelas quais se manifesta o dever-ser normativo. A doutrina moderna cunhou, para esses diversos modos de expressão, a terminologia ‘modais deônticos’, que, literalmente, significa modalidades do dever-ser. [...] esses modais deônticos correspondem [...] aos seguintes tipos de conduta normada: 1º) conduta autorizada; 2º) conduta proibida; 3º) conduta obrigatória. O estar prevista em norma jurídica uma determinada conduta não significa, então, que ela seja, necessariamente, obrigatória”. José Souto Maior Borges, Obrigação tributária (uma introdução metodológica), p.40. 394 “[...] inexiste prestação jurídica que não consista num comportamento obrigatório, que não seja compulsória”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria na norma tributária, p.104. 395 “[...] a fim de que a relação jurídica tenha natureza jurídica tributária, pouco importa que a obrigação, por ela gerada, seja satisfeita por uma prestação em dinheiro ou in natura ou in labore, pois nas três hipóteses, o conteúdo jurídico da prestação sempre o mesmo [...]. [...]. O objeto da prestação é que poderá variar segundo o critério da Política Fiscal [...]”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.633.

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fizéssemos, estaríamos catalogando obrigações distintas, bem separadas pela teoria do direito,

com uma mesma etiqueta, sem, entretanto, duvidarmos que o direito positivo possa conceituar

tributo [conceito no direito (ver 3.2)] com um aspecto bem amplo. De nossa parte, nada obstante

tal possibilidade, pretendemos manter o divórcio: as obrigações de dar recebem um tratamento;

as obrigações de fazer em sentido estrito outro tratamento396. Com isso em conta, sendo o uso

em separado das obrigações de dar e das obrigações de fazer mais do que consagrado, não

vemos um porquê não realizar um segundo corte (o primeiro foi afastar as obrigações de não

fazer), rumo à conceituação de tributo, agregando ao redor do rótulo apenas as condutas de dar,

evitando, assim, ter sob um mesmo nome, coisas diferentes397. Logo, conceituamos tributo

como norma jurídica cujo conteúdo é uma obrigação de dar, afastando-o das obrigações de

fazer, como nos casos da retenção na fonte (ver 4.3.1.1)398.

Tributo é norma primária cuja hipótese contém a descrição de um fato lícito, de caráter

econômico, em modo abstrato, indiferente à intenção humana de realizá-lo, e cuja consequência

contempla uma obrigação de dar. Questão convencional, pois não acreditamos em

conceituações que correspondam à essência das coisas. Também não estamos descrevendo uma

particular ordem, o que faria com que estivéssemos a falar de conceito no direito (ver 3.2).

Assim, passo a passo, estamos mostrando o que escolhemos para fazer parte do nosso conceito

e o que deixamos de fora. Tudo é feito à luz do dia, pois, de ser uma escolha, não nos desobriga

a que o conceito de tributo esteja de acordo com as escolhas anteriores feitas neste trabalho. A

coerência é o nosso limite interno. Todavia, a coerência interna, por guia, o melhor dos guias,

não pode eclipsar o fato de que se trata de uma escolha, essa e não outra. Não apresentamos,

portanto, nosso conceito de tributo como se uma revelação fosse, como se um sonho tivesse

396 “Um último aspecto do problema da autonomia é aquele através do qual se assevera que o direito tributário mantém completa e perfeita identidade com a disciplina que estuda as prestações obrigatórias in natura ou em serviços dos particulares à administração pública, como é o caso das desapropriações, das requisições, das convocações militares [...]. Não parece estar com a razão esse modo de entender. Com efeito, o que caracteriza a relação jurídica tributária é o fato de que ela constitui uma relação obrigacional de débito [...]”. Amílcar Falcão, Introdução ao direito tributário, p.18-19. 397 “Sejam as prestações em dinheiro, ‘in natura’ ou ‘in labore, é fundamental estabelecer tratamento diferenciado, que deverá iniciar-se pela própria designação”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.105. 398 Nesse sentido, COÊLHO: “Quanto aos ‘retentores de tributos’ (desconto na fonte), estes são pessoas obrigadas pelo Estado a um ato material de fazer (fazer a retenção de imposto devido por terceiro). [...]. Não são sujeitos passivos de obrigação tributária, mas sujeitos a uma potestade administrativa”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.268. Ou ainda GRECO: “[...] nos tributos de retenção na fonte [...] existe um dever a cargo da fonte pagadora [...], o objeto desse dever é um fazer”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.41. De nossa parte, entendemos que a questão é de preponderância, pois se há a obrigação de fazer, de reter, também há a obrigação de dar aquilo que foi retido.

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135

luzido o verdadeiro significado do que seja tributo, e que aqui não estaríamos a fazer nada mais

do que compartilhando com o leitor a verdade a nós confiada399.

4.3.1.1 O que se deve dar

Convencionalmente estabelecemos que tributo é uma obrigação de dar. Entretanto, o

verbo “dar” é de sentido incompleto, necessitando de complementação, assim, quem dá, dá

algo400. E o que seria esse algo? 401 Não temos dúvidas de que essa é uma questão para o direito

positivo, quando se cuida de conceito no direito (ver 3.2). Contudo, como não nos prendemos

aqui a um específico ordenamento jurídico, podemos dar um outro passo em nossa conceituação

de tributo, pactuando um novo corte, de caráter semântico, pois, sintaticamente, bastaria expor

que tributo é meramente dar “algo”.

De tudo o que pode ser dado como obrigação, gênero das coisas mensuráveis, podemos

dividi-lo em dois grupos: de um lado, dinheiro; de outro, conjunto complemento, o resto, o que

não seja dinheiro. E por que fazemos isso? Por que nos damos ao trabalho de mais uma divisão?

Ora, por um motivo muito simples: “[g]rana, ervário, tutu, numerário, espécie, ganho, proveito,

meios, erva, dindin (sic), recursos; chame-o como quiser, o dinheiro tem importância, faz

diferença”402.

Quando apontamos tributo como obrigação de dar, apartando-o da obrigação de fazer

em sentido estrito, valemo-nos de uma sólida tradição jurídica na demarcação das obrigações.

Agora, para segregarmos a obrigação de dar dinheiro das demais obrigações de dar, elegendo

apenas a primeira como tributária, vamos usar como fundamento a supremacia que possui o

sistema monetário sobre o sistema de trocas. Afinal, não podemos considerar equivalentes dar

dinheiro e dar outro tipo de bem que não dinheiro. E não podendo atribuir a eles o mesmo valor,

pois inclusive é consagrado mundialmente um padrão monetário que carece de um lastro para

a conversão à taxa fixa403, devemos então considerar em nossa conceituação de tributo a

399 “Tendo José acordado do sono, fez aquilo que lhe ordenara o anjo do Senhor [não se divorciar de Maria] e recebeu a sua mulher”. Mateus 1:24, Bíblia: novo testamento: os quatro evangelhos, p.60. 400 DAR 1. TD (I): dá-lo (a...); dar(-lhe) algo”. Celso Luft, Dicionário prático de regência verbal: verbete “dar”, p.161. 401 “No direito antigo, era corrente o pagamento de tributos in natura, isto é, a entrega ao fisco de uma parte dos próprios bens sujeitos ao tributo [...]”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p.119. 402 Niall Ferguson, A ascensão do dinheiro: a história financeira do mundo, p.9 (Introdução). 403 “GOLD BULLION STANDARD. Sistema monetário adotado em 1925 pela Inglaterra [...]. [...]. A vantagem deste sistema é a existência de uma economia de ouro, por este não circular como dinheiro internamente, embora conservando a sua conversibilidade ou movimento no âmbito internacional. Os Estados Unidos, entre 1934 e 1971, mantiveram um gold bullion standard restrito, isto é, o dólar era conversível em âmbito internacional, mas não internamente, embora cotizado em ouro para efeitos contábeis até o fechamento da gold window, em agosto de

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distinção. Assim, em nosso contrato para conceituarmos tributo, não podemos desconsiderar

que uma coisa é dar dinheiro, e que outra coisa, bem diferente, é dar algo que, por mais valioso

que seja, não é dinheiro.

Mas o raciocínio ainda precisa de complemento, pois que se deva dar dinheiro, esse é

um ponto acordado, mas é ainda insuficiente para uma precisa demarcação, pois, para tanto,

devemos especificar que se deve dar dinheiro próprio, dinheiro que pertença a quem tem a

obrigação, não a terceiros. Não olvidamos que o tirar de um para entregar a outro pode muito

bem ser o mandamento de uma norma jurídica, mas não é assim que construímos nosso conceito

de tributo, nossa norma de tributação. Com essa afirmação, “[o] que se quer acentuar é que, se

o patrimônio donde provier o dinheiro não for do próprio contribuinte, não estaremos diante de

um dar dinheiro [...]”404. Retenção e repasse são, para nós, obrigações de fazer e, portanto,

ficarão ao largo da nossa conceituação.

De sorte que podemos conceituamos tributo como norma primária que contém, na

consequência, uma obrigação de dar dinheiro próprio, tomando a palavra “dinheiro” por seu

uso comum, sem maiores preocupações com tecnicidades.

4.3.1.2 Quanto se deve dar

Se a norma jurídica pode ser concreta ou abstrata, a depender do conteúdo da hipótese,

o pender da conduta regrada a faz ocorrente ou eventiva. Para a primeira situação, a de

ocorrência, a conduta prescrita é projetada no futuro de modo precisado; para a segunda

posição, o que se prescreve é também no tempo futuro, pois só se pode determinar o agir no

porvir, mas agora de forma genérica (ver 2.11). E quando trazemos essa ideia para a tributação,

podemos entender que ou a norma tributária expressa um definido valor pecuniário, sendo,

portanto, ocorrente, ou se limita a uma fórmula, com o quantum debeatur a ser apurado

posteriormente, caso a caso, o que faz dela eventiva405.

1971 (quando o dólar foi desvalorizado e deixou de ser conversível em âmbito internacional numa taxa fixa). Paulo Sandroni (org.), Novíssimo dicionário de economia: verbete “gold bullion standard”, p.266. 404 Marco Aurelio Greco, Norma jurídica tributária, p.41. E com essa mesma face de ideia, ainda podemos reproduzir CARVALHO: “Quando se faz referência a entregas de dinheiro ao Estado, comportamento que realiza a prestação tributária, é sumamente importante salientar que a quantia entregue deve sair do patrimônio do sujeito passivo. Do contrário, não teremos tributo, mas outro tipo de relação”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.90. 405 Em linguagem corrente, nossa posição pode ser exposta na forma de que a determinação do valor do tributo ou é fixa ou é variável. Registramos que ROCHA foge desse dualismo, apontando uma terceira forma de determinação do tributo, a avaliação: “[...] entendo que não são duas as modalidades de determinação do montante do tributo, mas trê (sic): além da fixação (termo que passo a adotar para indicar a determinação estabelecedora de montante fixo) e da quantificação (termo que passo a adotar para indicar a determinação estabelecedora de montante variável

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Se a norma de tributação, dispensado o caso particular, com indiferença à magnitude

do fato, estabelece, de pronto, o valor que será devido, então estamos diante do que a doutrina

denomina de tributo fixo406. Não há, nesse caso, a necessidade de qualquer cálculo para se

encontrar a quantia de dinheiro que se deve dar, pois a norma de tributação desconsidera as

particularidades do caso concreto, apresentando, desde o início, um valor certeiro. E, como

exemplo, nenhum é melhor do que o tributo por capitação407.

Quanto à fórmula que permite encontrar o valor devido mediante a saturação dos

categoremas, não vemos limites à criação humana. Pode ser desde a singela equação base de

cálculo multiplicada pela alíquota até questões bem mais complexas, a depender do tecnicismo

do feitor da norma jurídica. De todo modo, não há um porquê imaginar que tudo se resume a

um multiplicando e a um multiplicador. Ajustes como adições e subtrações podem ser, sem

qualquer dúvida, integrantes do modo de cálculo do tributo devido408, bem como não cremos

ser impossível construir a norma de tributação com o crédito decorrente da não cumulatividade

nela constando, apesar de que isso pode provocar mudanças no critério material da hipótese409.

resultante de operação matemática), há que se ter em conta uma terceira modalidade, a avaliação (termo que passo a adotar para indicar a determinação estabelecedora de montante variável que não resulta de cálculo, mas de uma constatação — a da valorização imobiliária decorrente de obras públicas, quando o ente tributante, à sua discrição, cobra-a na sua totalidade”. Valdir de Oliveira Rocha, Determinação do montante do tributo: quantificação, fixação e avaliação, p.100. 406 Tributos fixos “[s]ão aqueles destituídos de base de cálculo, cujo quantum debeatur aparece, desde logo, traduzido na legislação, a exemplo do imposto sobre serviços incidentes sobre a atividade de advogados, em que cada profissional paga um determinado valor anual correspondente a um dado número de salários mínimos”. Eduardo Jardim, Dicionário jurídico tributário: verbete “tributo fixo”, p.324. CUNHA aponta que há dois tipos de tributo fixo, ocultação e contração, dentro do gênero abreviação: “Na Ocultação há uma elipse sintática em que determinados elementos da Regra-Matriz não são expressos no âmbito dos textos de direito, mas que podem ser reconstruídos na interpretação por meio da qual se constrói a norma com sentido [...]. [...]. Já na Contração há uma aglutinação sintática de dois elementos da Regra-Matriz Normativa, que são unidos em um só sem a possibilidade de reconstrução e sem implicitudes”. Carlos Renato Cunha, Praticabilidade tributária: eficiência, segurança jurídica e igualdade sob uma perspectiva semiótica, p.348. 407 “Um tributo é fixo quando a lei estabelece quantia invariável em relação ao valor da matéria tributável. A captação, velho, imposto da antiguidade, é o melhor exemplo do imposto fixo: todo indivíduo adulto pagará, por exemplo, R$ 1.000,00 qualquer que seja seu patrimônio ou sua renda”. Aliomar Baleeiro, Uma introdução à ciências das finanças, p.264. 408 Nesse sentido, COÊLHO: “Comporta [o critério quantitativo] [...] adições e subtrações, além de cálculo de valorações diversificadas”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.94. Ou ainda CUNHA: “[...] existe uma maior complexidade, em alguns tributos, para a (sic) cálculo do valor devido, que não se limita a uma base de cálculo e alíquota conjugados, de forma simples”. Carlos Renato Cunha, Da regra-matriz de incidência à regra-matriz normativa, Revista de direito tributário contemporâneo, v.4, p.181. Em sentido contrário, VIEIRA: “[...] adições e subtrações posteriores à base de cálculo são irrelevantes, pois também posteriores á norma-padrão e aos seus efeitos; e as adições e subtrações anteriores já se presumem embutidas na base de cálculo”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.68. 409 Eleita a venda de produtos como materialidade do tributo, aponta-se que o critério temporal é instantâneo. A não cumulatividade, quando trazida para o caso, promove uma mudança na materialidade, transformando-a em compra e venda, e o critério temporal também modifica-se para um período de tempo, no qual são consideradas todas as compras e vendas realizadas. Além disso, muitas vezes a compensação é vista como um direito decorrente do próprio texto constitucional, como no caso do imposto de renda pessoa jurídica, sendo tachada de inconstitucional a restrição que se faz à compensação do lucro apurado com prejuízos acumulados. E, quanto a

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Apenas, em nosso modo de ver, a compensação que atinja diretamente o valor devido, como

nos casos de pagamento a maior, é que seria uma etapa posterior, estando fora, portanto, da

estrutura da norma de tributação. As possibilidades são muitas, não havendo um modo único,

determinado a priori, para se encontrar a quantia que se deve dar. Tudo vai depender, portanto,

do direito positivo.

Agora, se pode ser mais do que a singela equação base de cálculo vezes alíquota,

igualmente, pode ser menos, pois que todos os tributos devam ter base de cálculo e alíquota é

um desejo, não uma questão ontológica, que defina a própria existência do tributo410. No

entanto, coisa diversa é se a norma de competência de um particular tributo em um específico

ordenamento jurídico, ao prescrever a conduta de pôr a norma de tributação, impuser que a

criação normativa somente pode ocorrer com esse formato. Por essa linha, uma norma jurídica

que não seja desenhada com base de cálculo e alíquota, seria invalidável, e se a norma de

competência se encontra na Constituição, então é caso de inconstitucionalidade. Mas devemos

deixar em paz outros tópicos como a lógica, pois uma norma de tributação que não se utilize

dos dois consagrados fatores, ou que a esses agregue outros, pode ser adjetivada de várias

coisas, menos de ilógica.

Dentro ainda da fórmula de cálculo, chamamos a atenção para a necessidade de sempre

estar ao menos um dado incompleto, com sua posição na estrutura ocupada por uma variável,

sob pena de estarmos diante de um tributo fixo, ficando apenas faltando a realização da

operação matemática. Como ilustração, tomemos a forma mais elementar, a da base de cálculo

multiplicada pela alíquota. Geralmente a alíquota é dada de forma única, quer como

porcentagem (ad valorem), quer como unidade monetária (específica)411. Então, para que se

isso, já nos manifestamos favoráveis a constitucionalidade da trava de 30% imposta ao caso, sob o fundamento de que não há “[...] uma obrigação de comunicação irrestrita entre os períodos de apuração da renda. Essa é uma opção, mas não a única. E se é o caso de volição, então a escolha cabe ao legislador porque assim prescreve a Constituição”. Valterlei A. da Costa, Limitação à compensação de prejuízos fiscais na apuração do IRPJ: esconsa, mas constitucional, Revista ABRADT Fórum de direito tributário — RAFDT, p. 284. 410 Nesse sentido, COÊLHO: “[...] o aspecto quantitativo apresenta dois elementos: base de cálculo e alíquotas, embora nem todos os tributos possuam alíquotas e outros tantos prescindam de bases de cálculo”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.94. Em sentido contrário, NOGUEIRA: “Se tivermos presente que o tributo se expressa, em última análise, em uma quantia devida, [...] vemos que a base de cálculo e / ou alíquota são elementos fundamentais ou matemático-quantificadores da essência do fato gerador”. Ruy Barbosa Nogueira, Curso de direito tributário, p.154. 411 Quando a alíquota é única, estamos diante dos tributos proporcionais, mas nada impede que seja também oscilante, alterando-se, quer por conta do valor da base de cálculo, caso de progressividade, quer em relação ao humor de outros critérios, o que é o caso da seletividade. E, para bem demarcar, imposto progressivo “[...] é aquele que exige uma alíquota maior à medida que o valor tributável vai aumentando”. Kiyoshi Harada, Sistema tributário na Constituição de 1988: tributação progressiva, p.161 . A seletividade, por outra mão, também é um modo de variação da alíquota, só que não ligada à base de cálculo. Cuidando especialmente do IPI, expõe MORAES: “[s]uas alíquotas devem ser seletivas, isto é, variáveis em função das diferentes mercadorias”. Bernardo Ribeiro de Moraes, Curso de direito tributário: sistema tributário da Constituição de 1969, v.1, p.313. Assim, as

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mantenha o caráter de indeterminação da quantia devida, a base de cálculo deve ser apenas

determinável, mas não determinada. Caso já haja, de forma precisada, sem a necessidade de

precificação mediante o caso concreto, os valores da alíquota e da base de cálculo, então o que

resta é apenas o cálculo aritmético, permitindo-nos também, para esses casos, falar de tributo

fixo412.

A norma de tributação apresenta na consequência uma conduta de dar dinheiro,

respondendo à questão sobre o que se deve dar. Quantia, que pode já estar nela, de pronto,

determinada ou apenas se mostrando em estado determinável. Neste último caso, há uma

fórmula, que não é possível conhecer a priori, com a necessidade de substituição das variáveis

por dados verificados no mundo para se chegar a um específico número. Já no primeiro caso, a

quantia é de pronto conhecida, prontamente fixada. Assim, sendo resolvido desde logo o valor

a ser dado, com a dispensa da substituição dos fatos, então é o caso de falarmos de conduta

ocorrente, situação presente principalmente na norma de lançamento, mas que não é de todo

ausente na norma de tributação, pois, vez ou outra, deparamo-nos com tributos fixos, que podem

até ser inconstitucionais, mas não são ilógicos. Porém, o mais comum é que a quantia a ser

entregue ainda precisará de apuração, a partir de elementos concretos, estando meramente

formulada, sendo, portanto, determinável, mas não determinada. Nesse caso, a conduta da

norma de tributação é eventiva.

alíquotas alteram-se em relação ao produto que é objeto da operação. Só que, com fins de se ter uma ideia completa, o termo seletividade deve vir acompanhado de um complemento, pois se é seletivo, essa seleção se dá em relação a algo. No caso do IPI, tomado aqui como exemplo, a seletividade não deixa de ser em relação ao produto, mas é mais do que isso, diz respeito à essencialidade desse produto, pois “[n]ão se discute que o sentido da norma constitucional é promover uma seleção dos produtos objeto das operações que serão atingidas pelo imposto, utilizando a ideia de essencialidade como critério de seleção, para graduar a intensidade do tributo”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.126. Ademais, dentro do campo da essencialidade, “[l]embremo-nos, ainda, que a seletividade pode considerar não somente a natureza do produto, mas também sua finalidade específica”. Maurício Timm do Valle, O princípio da seletividade do IPI, Cadernos da Escola de Direito e Relações Internacionais, v.17, p.465. Agora, além da essencialidade, pode haver outros tipos de seletividade, como, v.g., em razão do grau de parentesco: “A alíquota do imposto sobre transmissão causa mortis poderá [...] buscar a seletividade no grau de parentesco e estabelecer que quanto menor for esse grau de parentesco, maior, então, será a alíquota do ITCM”. Valterlei A. da Costa, Imposto sobre transmissão causa mortis: alíquota seletiva em razão do grau de parentesco, Revista de direito tributário contemporâneo, v.17, p.185. Dito isso e tendo em mente que as alíquotas podem ser únicas ou variáveis, podemos concluir que, para os casos em que ela é única — compreendendo os episódios em que ela é x% de $ e os que é x $ por unidade —, não haverá necessidade de precificação sua na norma de lançamento, pois já está ela dada na norma de tributação, ficando a determinação apenas para a base de cálculo, na contingência do caso concreto. Ponto que nos induz a estar de acordo com BARRETO quanto à sua distinção entre “base de cálculo” e “base calculada”: “A base de cálculo é magnitude abstrata; a base calculada é magnitude concretamente considerada”. Aires Barreto, Base de cálculo, alíquota e princípios constitucionais, p.91. Todavia, quanto à classificação das alíquotas que realizou, em abstratas e concretas, a nosso modo de ver, apenas nos casos em que se preveja variação é que seria aplicável o entendimento de que “[é] imperioso [...] distinguir a alíquota normativa daquela utilizada no caso concreto”. Ibidem, p.42. 412 Os tributos fixos teriam base tributável, mas não base de cálculo: “A rigor (sic) terminológico, a ‘base de cálculo’ pode ser havida como uma espécie mais ampla, a ‘base tributável’. Está última se aplicaria não só aos tributos variáveis, como aos tributos fixos”. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.148.

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Devemos, por fim, analisar a afirmação doutrinária que aponta a necessidade de

equivalência do núcleo da descrição da hipótese à base de cálculo presente na quantificação da

consequência na norma de tributação413. Um primeiro ponto diz respeito à validade da norma

jurídica que apresente desacordo, quando confrontada com norma de competência. Assim, se

uma norma de competência dispõe sobre a instituição de certo tributo, quer-se com isso dizer

que hipótese e consequência da norma de tributação instituída devem, ambos, corresponder ao

que está disposto na norma de competência. Caso isso não ocorra, então deve ser a invalidação

da norma de tributação ou ainda a sua convalidação, igualando as estampas414. Entretanto, não

havendo essa norma de competência, nada impede que se construa a norma de tributação

contendo tal divergência, pois a quantificação ser um reflexo da hipótese é apenas uma

exigência de direito positivo e não de lógica415. Assim, dado “p”, então deve recolher tributo

com base em “q”, é perfeitamente possível, não havendo nada, a não ser o direito positivo que

é contingente, que estabeleça como válida apenas a norma dado “p”, então pague tributo com

base em uma dimensão de “p”. Ademais, ainda podemos manter os mínimos laços de

413 BECKER, para não deixar dúvidas sobre a importância da correspondência, trouxe a base de cálculo para dentro da hipótese da norma de tributação: “A hipótese de incidência da regra jurídica de tributação tem como núcleo: a base de cálculo [;] como elementos adjetivos: todos os demais elementos que integram sua composição”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.374. ATALIBA, pelo mesmo caminho, manteve juntos na hipótese o cerne da descrição do fato e o seu reflexo numerável: “A base imponível é ínsita à hipótese de incidência”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.107. Todavia, sobre a hipótese conter tanto a descrição do fato como ainda sua dimensão mensurável, é algo que somente se pode aceitar quando presente a ideia de um caráter meramente ilustrativo, para reforçar a proximidade de ambas as figuras, pois, seguindo a estrutura dual da norma jurídica primária, a base de cálculo, por se ligar à conduta devida, deve estar no mandamento da norma de tributação. Lição que nos foi ensinada por CARVALHO: “Por base de cálculo entendemos aquela grandeza instituída na conseqüência das endonormas tributária e que se destina [...] confirmar o critério material da hipótese endonormativa”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.174. Nesse mesmo sentido, podemos ainda citar BORGES: “A base de cálculo e a alíquota alojam-se [...] no conseqüente ou estatuição da norma”. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.149. 414 As opções são, para o caso de desencontro entre o cerne da figura e a base de cálculo, a prevalência do contido na hipótese, a prevalência do presente na consequência ou ainda a invalidação da norma de tributação. No entanto, nossa melhor doutrina restringe a questão a uma. Nesse sentido, CARVALHO: “[...] havendo desencontro entre os termos do binômio (hipótese de incidência e base de cálculo), a base é que deve prevalecer”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.346. Ou ainda SANTI e CANADO: “[...] o aspecto material da hipótese tributária deverá estar em consonância com a base de cálculo do tributo ou, caso contrário, redesenhando a hipótese tributária [...]”. Eurico de Santi e Vanessa Canado, Direito tributário e financeiro: reconstruindo o conceito de tributo e resgatando o controle da destinação, in: Eurico de Santi (coord.), Curso de direito tributário e finanças públicas, p.613-614. De nossa parte, não vemos razões para uma tomada de posição a priori. Para uma teoria da norma tributária, qualquer uma das três opções é legítima. 415 Poderia alegar-se que a necessidade de identidade entre a base de cálculo e o critério material decorre dos princípios. Contudo, no nosso entendimento, os princípios integram a norma de competência, não sendo algo à parte de delas. Nesse sentido, SANTI e PEIXOTO: “O critério material da competência informa os limites relativos ao conteúdo da norma que será veiculada com o propósito de instituir determinado tributo. Sua composição é complexa e absorve numerosas referências presentes na Constituição Federal. Assim, por ocasião do exercício da competência legislativa tributária, o órgão competente deverá atentar para [...] iii) os princípios e demais vetores constitucionais relativos aos direitos e garantias fundamentais do contribuinte em matéria de tributação [...]”.Eurico de Santi e Daniel Peixoto, PIS e COFINS na importação, competência: entre regras e princípios, Revista dialética de direito tributário, v.121, p.38-39.

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proximidade entre a hipótese e a consequência, podemos reconstruir a proposição se “p”, então

deve pagar “q”, apontando que, na verdade, ela contém uma elipse: dado p˄q, então se deve

recolher tributo com base em q. Ou seja, caso seja proprietário e a propriedade esteja alugada,

então recolha dinheiro, calculando-o sobre o valor do alquilé.

Uma outra questão ligada à imperiosidade de correspondência é a romântica e ingênua

ideia de que há apenas um único modo de associar hipótese e consequência (ver 3.3.1). Ao

ouvir algo como “mercadoria”, sai o jurista em disparada, buscando encontrar a verdadeira base

de cálculo. No entanto, esquece que é apenas um rótulo, cuja forma, como usada pelos demais

utentes, pode ser mais ou menos atestada, mas que, de modo algum, possui algo como que uma

essência. De toda forma, volta com uma verdade, a sua verdade, e relata-nos que há apenas uma

base de cálculo que poderá atender à imprescindibilidade de confluência. Talvez faça isso para

não ouvir o que a Duquesa disse a Alice: “— Você não sabe muita coisa [...]. — Essa é que é a

verdade”416. Talvez por se imaginar um benemérito, aquele a quem cabe a missão de revelar a

base de cálculo justa, salvando, assim, o pobre do contribuinte do malvado fisco. Quiçá um

Lohengrin com uma balança nas mãos417. De qualquer maneira, por uma via ou por outra, “[o]

jurista [ou] se apresenta como um sumo sacerdote ou [como um] reformador social e não como

um técnico social”418. E para demonstrar essa impossibilidade de sempre haver unicidade,

basta-nos lembrar que a base de cálculo pode ser expressa, v.g., na forma de peso, medida ou

valor. Essa é a primeira escolha. No entanto, a questão não acaba nisso, pois exclusivamente

com o rótulo “mercadoria” não é possível saber, a priori, se a “embalagem”, por exemplo, deve

sem computada no peso, na medida ou no valor da “mercadoria”. Por essa mesma linha, sendo

específico, tanto FOB (free on bord) como CIF (cost, insurance and freight) são valores que

podemos dar à “mercadoria”, não havendo meios de, sem mais dados para contextualizar,

apontar qual deles é o correto.

4.3.2 Quem deve dar a quem

Tributo é norma jurídica. Só que após um primeiro corte, restringimo-nos à norma

primária. Da norma em sua estrutura completa, norma primária e norma eventual, limitamo-nos

à primária. Assim, tributo é norma primária. E como norma que é, contém prescrição

416 Lewis Carroll, Aventuras de Alice no país das maravilhas, p.79 (6). 417 “Lohengrin, filho de Parsifal, deve, por ordem do Sagrado Graal, socorrer a duquesa Isabel de Brabante, perseguida pelo ódio de Telramund. O jovem Lohengrin chega em um barco conduzido por um cisne para vencer Telramund e desposar Isabel”., Wolfram von Eschenbach, Parsifal, p.493. 418 Alf Ross, Direito e justiça, p.385 (acrescentamos entre colchetes).

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condicionada de conduta. Na hipótese, há a descrição em abstrato de um fato, um estado de

coisas, de cunho econômico, que, por estar em norma primária, é lícito, sendo-lhe indiferente o

elemento vontade. Na consequência, das condutas possíveis, delimitamos aquela que diz

respeito à conduta de dar dinheiro, quantificável, modalizando-a obrigatoriamente. Ocorre que

essa conceituação ainda é demasiadamente genérica para as nossas pretensões, o que nos

permite um complemento da convenção até aqui realizada, com mais duas especificações

ligadas ao dar dinheiro: “quem” e “a quem”.

No direito tributário brasileiro, é praxe denominar de sujeito ativo aquele em face de

quem a prestação da obrigação de dar é devida419. No entanto, polos ativo e passivo são questões

meramente referenciais, o que nos autorizaria inclusive uma inversão, pois muito bem poderia

ser chamado de sujeito ativo aquele que deve levar o dinheiro e não quem deve suportar tal

entrega420. Poderíamos, ainda, adotar a posição kelseniana de que só há um sujeito, o que tem

a conduta regrada, sendo, por essa linha, integrante e não sujeito do próprio objeto da prestação,

aquele em face de quem a conduta é regrada.. Ou seja, que o direito, no sentido de direito

subjetivo, é, no fundo, apenas o reflexo de um dever jurídico, com a quem se deve dar sendo

estruturalmente não mais do que um complemento da própria conduta421.

Há, assim, várias posições possíveis. Entretanto, como em nossa conceituação de

tributo, a quem se deve dar apresenta um caráter determinante, como se verá logo abaixo,

manteremos a nomenclatura tradicional, evitando equívocos que possam advir de uma má

nomeação, e utilizar-nos-emos, por conseguinte, das consagradas expressões “sujeito ativo” e

“sujeito passivo”.

4.3.2.1 Sujeito ativo

419 BECKER utiliza sujeito ativo e sujeito passivo, não sem antes fazer referência a polo positivo e negativo: A relação jurídica tem dois pólos; o positivo e o negativo. [...]. A pessoa que se encontra no pólo negativo, assume a posição jurídica de sujeito passivo na relação jurídica. A pessoa que tomar lugar no pólo positivo, assume a posição jurídica de sujeito ativo”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.340. GRECO, em vez de utilizar os célebres sujeitos ativo e passivo, prefere “executor da” e “favorecido pela” entrega de dinheiro. “Executor da entrega [...] é qualquer pessoa indicada pela norma, salvo vedação constitucional nos casos de imunidade. [...]. Quanto ao favorecido, trata-se também de pessoa designada pela lei, podendo sua indicação ser feita explícita ou implicitamente”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.43. 420 “Nenhuma norma jurídica é concebível, considera Bentham, se não contiver, mesmo que implicitamente, os três elementos [...]. O sujeito ativo de uma norma jurídica é constituído pelas pessoas ou coisas, das quais tem origem o ato (a conduta, o comportamento) regulado pela norma [...]. O sujeito passivo de uma norma jurídica é constituído pelas pessoas ou coisas que constituem o termo final do ato regulado pela norma [...]. O objeto de uma norma jurídica é constituído, enfim, pelo ato, pela conduta, ou pelo comportamento, individual ou de classe, regulado pela norma”. Pierluigi Chiassoni, O enfoque analítico na filosofia do direito: de Bentham a Kelsen, p.84 (I.12). 421 “O indivíduo que tem o direito, isto é, aquele em face do qual esta conduta há de ter lugar, é apenas objeto da conduta que, como correspondente à conduta devida, está já conotada neste”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.143 (IV.3.a).

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Por mais diferentes que sejam os enunciados normativos, com uma variedade

inumerável de possibilidades, ao fim e ao cabo, o que trazem, quando despidos das aparências,

é uma regulação de conduta humana, prescrevendo ações ou omissões, ao que acrescentaríamos

a limitação ao possível. Com isso em conta, ficamos confortáveis em concordar com a assertiva

de que “[o] direito cria deveres e direitos que têm por conteúdo a conduta humana, mas não cria

pessoas”422-423. Mas, dessa não criação de pessoas, não significa que o conceito de pessoa não

possa ser aplicável, pois é ele um conceito auxiliar, promovendo unidade, sob um rótulo, de

vários deveres e direitos424. Assim, em vez de enumerar todas as condutas devidas por alguém

(direitos e deveres), usa-se, com fins de simplificação, o termo “pessoa”, que recebe como

qualificações mais comuns os adjetivos “física” e “jurídica”425. Entretanto, o que interessa à

nossa conceituação de tributo, com base no sujeito ativo, é a distinção entre sujeitos — ou

pessoas, aqui igualamos os termos —, público e privado.

Seja com o verbo dar, obrigação de dar, ou análogos — v.g., remeter ou enviar —,

estaremos diante de ações que pedem dois complementos, um direto e outro indireto426. Quanto

ao complemento direto, já sabemos que o dado, remetido ou enviado é dinheiro (ver 4.3.1.1).

Esse é um ponto importante da nossa conceituação. Agora, precisamos saber se o outro

422 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.212 (IV.7.f). No mesmo sentido, PONTES DE MIRANDA: “Rigorosamente, só se devia tratar das pessoas, depois de se tratar dos sujeitos de direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito”. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.I, p.207 (47) 423 E isso vale tanto para democracias como para regimes escravocratas, pois se alguém tem o dever de se conduzir de determinado modo, escravo ou cidadão, então poderíamos dar um passo adiante e obter, por derivação, que esse alguém tem o direito de não ser impedido de assim agir, sob o excludente de não ser punido, pouco importando, por esse ponto de vista, se há no ordenamento jurídico norma que se refira a um conceito de pessoa. Não desconhecemos que podem surgir dessa posição, pessoa como plexo de normas jurídicas, problemas de ordens outras que não a jurídica, pois assim se afastariam “[...] todas as referências que caracterizam o homem como pessoa em sentido ético”. Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, p.648 (II.VI.1.e). Entretanto, entendemos que a cobrança por justiça deve recair sobre o conteúdo das normas jurídicas, que são postas por atos de vontade, e não sobre uma concepção teórica do direito não militante (deixemos para outro lugar uma discussão sobre ser a não militância uma forma de militância). Talvez, repetindo várias vezes, entenda-se que o não falar o tempo todo de direitos humanos não é o mesmo que ser contra os direitos humanos. 424 “Isto em nada é alterado pelo fato de também a autoridade criadora do Direito, o legislador, se poder servir deste conceito [de pessoa], como aliás de qualquer outro criador pela ciência jurídica”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.212 (IV.7.f). Sobre conceitos auxiliares como rótulos, ver 3.2. 425 “Segundo a concepção dos juristas, a pessoa — tanto a física quanto a jurídica — vive como um ser autônomo diferente da ordem jurídica e dotado de existência autônoma, designado comumente como portador de deveres e direitos e ao qual se atribui, ora mais ora menos, uma existência real. Se esta realidade é restrita à pessoa física ou, como na teoria orgânica, também estendida para as assim chamadas pessoas jurídicas, é aqui indiferente. Basta constatar a tendência explícita de hipostasiar a pessoa (Realsetzung der Person)”. Hans Kelsen, Sobre a teoria das ficções jurídicas: com especial consideração da filosofia do “como se” de Vaihinger, p.66. 426 “Nocionalmente se caracterizam por serem indispensáveis para uma comunicação satisfatória feita em certos verbos, apresentando o alvo do processo verbal, sobre o qual incide (objeto direto) [...] ou para o qual o processo serve de termo de referência (objeto indireto)”. Joaquim Mattoso Camara Jr, Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa: verbete “objetos”, p.224.

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complemento do verbo que indica a conduta, o indireto, deve também ganhar um colorido,

determinação semântica, ou se basta um “a alguém”.

Em princípio, o levar dinheiro é a qualquer sujeito. Logo, uma conceituação de tributo

poderia contentar-se apenas com “a alguém”. Entretanto, devemos debruçar-nos mais

demoradamente sobre o sujeito ativo, pois há um aspecto que não pode ser ignorado, mesmo

por um trabalho eminentemente sintático como este: o recolher dinheiro é feito com vistas a

uma finalidade427. Alerta-se, todavia, que com essa afirmação não apontamos nada muito

elaborado, uma função minuciosamente refinada, ou um fim para cada norma tributária.

Pedimos vênia apenas para dar vazão a uma veia contratualista mínima, na qual, para que cada

um não decida por si mesmo o tempo todo, que haja alguém para decidir por todos, evitando

algo como um homo homini lúpus428. Em razão disso, do conjunto total de quem pode receber

dinheiro — sujeitos públicos e sujeitos privados —, convencionamos que apenas os sujeitos

considerados públicos é que poderão ocupar a posição de sujeito ativo.

Todavia, a nossa forma de especificação da conceituação de tributo, saturando o sujeito

ativo na norma de tributação, apenas ganha precisão se estivermos de posse de significados para

as expressões “sujeitos público” e “sujeito privado”. Quanto às pessoas privadas, sem maiores

pretensões, adotaremos sua concepção pela negativa, sendo privada, quem não for pública. Já

quanto à pessoa, em sentido jurídico, pública, num primeiro momento, até poderia haver certa

aproximação entre ela e o que se considera entes estatais, entretanto, “[...] las personas o entes

públicos [...] pueden o no ser estatales [...]”429. Sem dúvidas, há aquelas que são órgãos

específicos do Estado (tomando essa palavra em seu sentido material430), mas há também

aquelas que, mesmo não sendo órgãos específicos do Estado, num sentido estrito, “[...] por estar

sometidas a un régimen especial, de derecho público, son calificadas como ‘públicas’”431.

427 Não deve causar assombro que uma teoria estrutural do direito tenha pontos de contato com a funcionalidade, pois mesmo Kelsen, como nos conta BOBBIO, não se furtou a isso: “Não obstante todos os preconceitos antiteleológicos, não obstante as repetidas afirmações do postulado de que o direito é um meio, e não um fim, Kelsen deixa escapar, em uma passagem de General theory of law and State, a afirmação de que ‘o direito é indubitavelmente um ordenamento para a promoção da paz”. Norberto Bobbio, Em direção a uma teoria funcionalista do direito, in: ______. Da estrutura à função, p.58. 428 “[...] um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”. Thomas Hobbes, Leviatã, p.109 (XIII). 429 Agustín Gordillo, Tratado de derecho administrativo: parte general, t.1, p.XIV-6. 430 Na teoria kelseniana, “Estado” equivale a “Direito”: “Se sistemas sociais são sistemas de normas, se a causalidade específica do Estado [...] é a causalidade normativa, ressaltada em particular pela Escola de Viena, então é impossível conceber a teoria do Estado a não ser como teoria normativa, isto é, como o conhecimento de um sistema de normas [...]”. Hans Kelsen, O estado como integração: um confronto de princípios, p.12 (I). Entretanto, o mesmo KELSEN propõe uma dupla concepção para o termo “Estado”: “[...] podremos establecer al lado del concepto formal lato de Estado (que abarca el orden jurídico completo, o sea la suma de todas las situaciones jurídicas), otro concepto material más estrecho que abarca sólo ciertas normas jurídicas, únicamente ciertos hechos”. Hans Kelsen, Compendio de teoría general del estado, p.129 (I.14). 431 Agustín Gordillo, Tratado de derecho administrativo: parte general, t.1, p.XIV-16.

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Assim, por um ângulo, temos os entes estatais atuando, mas também sabemos que o direito

positivo pode não se confortar apenas com a atuação desses entes primeiros, o que nos permite

dizer que “[e]ssa concepção vem sendo alterada, com a perspectiva de que a função

administrativa é desempenhada também por entidades não estatais”432. Portanto, mesmo sem

ser um ente estatal, podemos falar de sujeito, em sentido jurídico, público, o que estaria ligado

mais a uma função do que a um estado.

Adotado, portanto, um conceito amplo de pessoa pública, que não se identifica com o

de ente estatal, podemos conceituar tributo como norma jurídica primária que contém no

consequente a obrigação de dar dinheiro a um sujeito, em sentido jurídico, público, abarcando,

além dos órgãos estatais, pessoas de direito que, mesmo sem serem membros do estado,

exerçam função de estado, o que nos permite compreender questões como a da

parafiscalidade433-434.

432 Marçal Justen Filho, Curso de direito administrativo, p.128. 433 Igualamos ser pessoa pública a exercer função pública, o que nos fez utilizar neste tópico uma ponte entre estudos estruturais da norma tributária e a finalidade da tributação. No entanto, não desconhecemos que essa simbiose pode não acabar bem. Vejamos isso com mais vagar. Em relação às finalidades da tributação, temos as fiscais e as extrafiscais: “[...] entre las finalidades propias de la actividad financiera del Estado distinguimos las siguientes. 1) FISCALES. La actividad financiera tiene finalidad fiscal cuando su objetivo se agota en la obtención de ingresos, siendo en tal supuesto su característica distintiva la instrumentalidad. [...]. 2) EXTRAFISCALES. [...]. Podemos decir que la actividad financiera con finalidad extrafiscal procura atender el interés público en forma directa”. Héctor Villega, Curso de finanzas, derecho financiero y tributario, p.9-10. Por sua vez, no que tange à sujeição ativa, encontramos sujeitos fiscais e parafiscais: “O sujeito ativo pode ser pessoa de Direito Público interno ou não (parafiscalidade)”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.93. Logo, sem que seja algo absolutamente necessário, ainda assim é apresentada a questão da extrafiscalidade por meio da parafiscalidade, principalmente nos livros mais antigos: “A teoria da parafiscalidade significa que o Estado pode criar tributos com objetivos não pròpriamente fiscais, ou essencialmente tributários. [...]. Temos, dêsse modo, [...] [o ponto] da parafiscalidade, representando um sistema tributário próprio ou específico das entidades autárquicas, descentralizadas do Estado”. J. Petrelli Gastaldi, Iniciação ao curso de direito tributário, p.34-35. Extrafiscalidade, no sentido de não ser meramente arrecadatório, e parafiscalidade, na concepção de ente não estatal, é uma possibilidade de combinação, mas não a única. De toda a sorte, o ponto é a função que o sujeito exerce, o que leva a doutrina nacional a entender que, a depender do caso, até uma pessoa física poderia ser sujeito ativo. Nessa linha, CARRAZZA: “[...] cremos inexistir qualquer empecilho jurídico a que um indivíduo, por desempenhar, num certo momento histórico, atividades de relevantíssimo interesse social, venha a receber do Estado, a faculdade de arrecadar um certo tributo, para o custeio do seu importante trabalho”. Roque Carrazza, O sujeito ativo da obrigação tributária, p.46. E igualmente CARVALHO: “[...] há a possibilidade jurídica de uma pessoa física vir a ser sujeito ativo de obrigação tributária. A hipótese traz como pressuposto que tal pessoa desempenhe, em determinado momento, atividade exclusiva e de real interesse público”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.311. Em sentido contrário, BECKER: “Nunca poderão ser sujeito ativo de relação jurídica tributária, nem o indivíduo humano, nem a pessoa jurídica não-estatal”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.275. 434 Especialmente sobre o direito positivo brasileiro, afirma VALLE que por não haver previsão constitucional expressa, a não ser para certos casos (ITR, Contribuição Sindical e Contribuições do “Sistema S”), e por haver expressa disposição do art. 119 do CTN prescrevendo que sujeito ativo é pessoa jurídica de direito público, então “[s]alvo os casos expressamente previstos na Constituição Federal, parece-nos que não há, no direito tributário brasileiro como posto atualmente, lugar para a parafiscalidade”. Maurício Timm do Valle, Princípios constitucionais e regras-matrizes de incidência do imposto sobre produtos industrializados — IPI, p.246.

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4.3.2.2 Sujeito passivo

A norma jurídica, na consequência, prescreve conduta, entretanto, não se pode limitar

a isso, devendo ser mais precisa e apontar quem deverá realizar essa conduta prescrita. Para

tanto, está a sua disposição duas formas: ou individualiza o sujeito de pronto, ou elege-o de

modo geral, de maneira subjetivizante, para posteriormente ser subjetivado. Nessa linha, do

modo como o sujeito é apresentado no mandamento, da graduação semântica de um a todos,

podemos classificar as normas jurídicas, respectivamente, como individuais e gerais (ver 2.11).

E se assim é para a norma jurídica, igualmente é para a norma tributária. Em razão disso,

podemos realizar um corte, ligando o sujeito geral à norma de tributação, e fixando o sujeito

individual como constante da norma de lançamento. Bem divididas as coisas, entres sujeitos

geral e individual, é possível conceituar a norma de tributação como aquela que apresenta, na

consequência, um sujeito geral, obrigado a dar dinheiro — quantificável, mas não quantificado

—, ao Estado ou a quem lhe faz as vezes. E se considerarmos a hipótese, então tributo, no

aspecto estático, como norma de tributação, é norma jurídica abstrata, eventiva e geral.

A norma de tributação contém, na consequência, um sujeito geral. Esse é um ponto

que utilizamos para a conceituação de tributo, conceito do direito; todavia, disso não se conclui

que o sujeito apresentado de modo generalizado não seja individualizável, havendo duas formas

para tanto. Pela primeira, a conduta será devida por quem praticar a situação descrita na hipótese

normativa. Assim, aquele que der vazão à passagem da abstração à concretude é quem será o

obrigado a dar dinheiro. Entretanto, uma segunda situação é aquela na qual o sujeito do

mandamento não é o mesmo da conduta descrita na hipótese, caso em que se deverá apontar o

modo de, entre todos os sujeitos, precificar-se um deles como detentor da obrigação

tributária435. De toda sorte, dadas essas duas possibilidades de individualização de quem deve

dar dinheiro, é o caso de se classificar o sujeito passivo da obrigação tributária em direto e

indireto. Quando houver coincidência entre o sujeito da hipótese e o sujeito da consequência,

estar-se-á diante do “sujeito passivo direto”. Sendo, ao contrário, distintos os sujeitos, com

435 KELSEN tratou muito bem do tema: “Um indivíduo é juridicamente obrigado a uma determinada conduta quando uma oposta conduta sua é tornada pressuposta de um ato coercitivo (como sanção). Mas este ato coercitivo, isto é, a sanção como conseqüência do ilícito, não tem de ser necessariamente dirigida [...] contra o indivíduo obrigado [...], mas pode também ser dirigida contra um outro indivíduo que se encontre com aquele numa relação determinada pela ordem jurídica. [...]. No primeiro caso, responde pelo ilícito próprio. Aqui o indivíduo obrigado e o indivíduo responsável são uma e mesma pessoa. [...]. No segundo caso, responde um indivíduo pelo delito cometido por um outro: o indivíduo obrigado e o indivíduo responsável não são idênticos”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.134 (IV.2.c).

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quem tem o dever de entregar pecúnia não sendo quem praticou a conduta descrita na hipótese,

então será o caso da presença de “sujeito passivo indireto”436.

Sobre a sujeição passiva direta, cabem algumas observações. Uma, sobre a simetria da

relação descrita na hipótese; outra, sobre a assimetria437. A primeira diz respeito aos casos em

que o estado de coisas da hipótese é uma relação simétrica entre sujeitos. Nesse caso, se “S1

está em relação com S2” equivale a “S2 está em relação com S1”, então se deve enquadrar como

sujeição passiva direta os casos em que a norma de tributação traga na hipótese S1 e na

consequência S2. Entretanto, como optamos por eleger como abstração da norma de tributação

apenas as de conteúdo econômico, a situação com que nos deparamos é a de assimetria, de

caráter sinalagmático438. Por essa linha, ilustrando, “receber” apresenta como contrapartida

“dar”439; mas não equivale “S1 recebe de S2” a “S2 recebe de S1”. Logo, não temos uma exata

igualdade de sujeitos quando a norma de tributação possui, na hipótese, o receber de S1, mas,

na consequência elege como aquele que tem a obrigação de levar dinheiro ao Estado ou análogo

S2, por ser ele quem deu a S1. Contudo, essa ausência de identidade não significa que não se

esteja diante de uma relação de sujeição passiva direta, pois tanto S1 como S2, conduzem-se de

forma interligada para o estado de coisas, no caso, a descrição do fato jurídico-econômico “dar-

receber”, já que são ângulos da mesma abstração. Assim, mesmo sem ser uma identidade

perfeita, para o caso, quem diz S1 diz S2 e quem diz S2 diz S1. Mas, para evitar ambiguidades,

preferimos então denominar o caso idêntico de sujeitos na hipótese e consequência de “sujeição

436 Note-se que aqui estamos classificando o sujeito da obrigação tributária em direto e indireto a depender de um critério totalmente intranormativo, coincidência ou não com o sujeito da hipótese. Desse modo, não empregamos um critério econômico, como fez SOUSA, para estabelecer a classificação: “[...] o tributo deve ser cobrado da pessoa que tira uma vantagem econômica do ato, fato ou negócio jurídico. Quando o tributo seja cobrado nessas condições, dá-se a sujeição passiva direta [...]. Entretanto, pode acontecer que em certos casos o Estado tenha interesse ou necessidade de cobrar o tributo de pessoa diferente: dá-se então sujeição passiva indireta”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p.92. Assim, por nossa base de discriminação ser outra, não nos preocupamos com a crítica de CARVALHO àquele a quem chamou de “mestre de todos os mestres de nosso Direito Tributário”: “[...] não haveria, em termos propriamente jurídicos, a divisão dos sujeitos em direitos e indiretos, posto que (sic) repousa em considerações de ordem econômica”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.169. Com isso, queremos expor que nossa proposta de categorização está mais próxima daquela sugerida por COÊLHO, para quem “[o] sujeito passivo pode ser direto ou indireto. Será direto quando tiver relação pessoal e direta com a situação que constituir o fato gerador da ‘sua’ obrigação”. Será indireto quando tenha o dever de pagar tributo decorrente de fato de terceiro [...]”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.93. 437 “Simétrica é uma relação que, se vale entre A e B, vale em sentido inverso. Assim, se ‘A igual a B’, então ‘B igual a A’. Assimétrica se vale em sentido direto, não em sentido inverso. Assim, ‘A maior que B’ dá a conversa ‘B menor que A’. No direito, temos relações simétricas e assimétricas, como ‘A é esposo de B’, então ‘B é esposa de A’; ‘A é pai de B’, então ‘B é filho de A’”. Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.166. 438 “SINALAGMÁTICO. [...]. [...] na terminologia jurídica, é a expressão empregada correntemente no sentido de bilateral, identificando, assim, o contrato em que se estabelecem obrigações recíprocas”. Plácido e Silva, Vocabulário jurídico: verbete “sinalagmático”, p.760. 439 Com fins de simplificação, omitimos o elemento intermediário entre “dar” e “receber”, que é “aceitar”.

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passiva direta própria” e o caso em que são diferentes os sujeitos, em razão do uso da conversão

da relação sinalagmática, de “sujeição passiva direta imprópria”440.

A sujeição passiva indireta, por sua vez, é aquela em que os sujeitos da hipótese e da

consequência são diversos e não podem ser convertidos, mesmo que modulado o sinal da

comutação, um no outro. Definida a sujeição passiva indireta como diversidade de sujeitos na

norma de tributação, sem a possibilidade de reduzir um ao outro, mesmo que com os devidos

ajustes, surge a questão da sua pertinência. A doutrina apresenta de forma mecânica a

imperiosidade de o construtor da norma de tributação optar pela igualdade de sujeitos na

hipótese e na consequência441. Provavelmente, por entender que há um sujeito passivo natural,

é que fala de substituto tributário para os casos em que esse sujeito passivo natural não se

apresente442. Entretanto, à primeira vista, não há nada que impeça ser a norma confeccionada

de modo diverso desse suposto modo natural de ser, pois dura lex, sed lex443, cabendo bradar

aos céus contra a injustiça da disparidade entre os sujeitos, pois, conforme dito e redito, este

trabalho não embaralha direito positivo com justiça444. Ocorre que, se a justiça não é um ponto

440 Preferimos uma bifurcação da sujeição passiva direta, em própria e imprópria, em vez de pôr de um lado o contribuinte e, do outro, todos os demais, como, aliás, fez PEIXOTO (para os tributos não vinculados): “Contribuinte [...] é aquela pessoa [...] que se coloca na condição de sujeito da ação descrita na hipótese de incidência tributária. Qualquer outra pessoa que determinada regra indicar, em seu consequente, como sujeito passivo, i.e., como indivíduo que terá de recolher o tributo, mas não se identifica como o agente do comportamento previsto na hipótese de incidência da regra-matriz de incidência tributária, contribuinte não será, mas responsável tributário”. Daniel Monteiro Peixoto, Responsabilidade tributária e os atos de formação, administração, reorganização e dissolução de sociedades, p.145. 441 VILLEGAS aponta essa naturalidade de identidade entre o sujeito da hipótese e o sujeito da consequência, dizendo do primeiro que é o “destinatário legal tributário”: “ASPECTO PERSONAL. Este elemento se integra por aquella persona que realiza el hecho o se encuadra en la situación que fue descripta al definir la ley el elemento material. Este realizador puede ser denominado destinatario legal tributario”. Héctor Villegas, Curso de finanzas, derecho financiero y tributario, p.283. JUSTEN FILHO concorda com o autor argentino quanto à existência de um destinatário do tributo, referindo-se inclusive à automaticidade de sua escolha, pois, para o brasileiro, “[...] a eleição de uma certa situação para compor a materialidade da hipótese de incidência importa automática seleção de sujeitos”. Marçal Justen Filho, Sujeição passiva tributária, p.262. Entretanto, discorda de VILLEGAS quanto ao adjetivo que se deve pospor ao termo destinatário quando o foco de estudo é o direito pátrio, já que “[...] no Brasil, pode-se falar não apenas em um destinatário legal tributário, mas também no destinatário constitucional tributário”. Ibidem. Sobre esse mesmo tema, ATALIBA inicialmente expos que na hipótese de incidência haveria apenas “[...] o estabelecimento do critério para identificar o sujeito passivo [...]”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 1.ed., p.85. Posteriormente explicitou essa ideia, passando a adotar a expressão “destinatário constitucional tributário”, mas a atribuindo a VILLEGAS: “O sujeito passivo é, no direito constitucional brasileiro, aquele que a Constituição designou [...]. Só pode ser posto nessa posição o ‘destinatário constitucional tributário’ (para usarmos a excelente categorização de Hector Villegas”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.77. 442 BECKER apontou que a substituição se verifica no momento político de elaboração da norma, não no plano jurídico, mas continuou a usar o termo substituição: “O fenômeno da substituição opera-se no momento político em que o legislador cria a regra jurídica”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.554. 443 “Dura Lex, sed Lex — a lei é dura, mas é a lei esclarece que o império da lei deve prevalecer, partindo da premissa de que o objetivo está no bem-estar social, no bem de todos, na punição do culpado [...]”. Irineu Antonio Pedrotti et al., Máximas latinas no direito: anotadas, p.330. 444 Nesse sentido, BECKER: “O legislador [...] tem liberdade [...] de escolher qualquer pessoa [...] para sujeito passivo da relação jurídica tributária. [...]. Esta liberdade do legislador pode, no plano filosófico-financeiro, ser fonte de gritantes injustiças: entretanto a injustiça não tem influência no tocante a validade (juridicidade) da regra

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para validade das normas jurídicas, o mínimo de eficácia é (ver 2.2), além de que, quando da

pactuação do conceito de tributo, marcamos como norma de tributação apenas aquelas que

tenham na descrição um conteúdo econômico (ver 4.2.4). Com esses dois pontos, devemos

promover alguns ajustes na ampla liberdade de escolha da autoridade normativa quanto ao

sujeito passivo.

A eficácia é algo que se verifica empiricamente, entretanto podemos aceitar de boa

chance de ineficácia, dispensando uma investigação, uma norma de tributação que descreva

uma conduta e ligue deonticamente a obrigação de levar dinheiro a alguém totalmente alheio

ao fato tributário ou, ainda, acople a obrigação a alguém totalmente estranho a quem praticou

o estado de coisas contido na hipótese445. Ademais, se tomamos como pertencente à hipótese

da norma de tributação um conteúdo econômico, seria incoerente agora desconsiderá-lo ao

tratar da sujeição passiva. A coerência implica que os desígnios anteriores sejam considerados

ao se realizar as escolhas presentes. Assim, conceituamos tributo estaticamente pactuando que

o sujeito passivo indireto, presente na consequência, deve possuir um vínculo potencial com a

abstração da hipótese, sob pena de não ser de norma de tributação que falamos, questão à parte

a possibilidade de tal norma de tributação nem norma jurídica válida ser, pois provavelmente

ineficaz.

A sujeição passiva indireta contempla os casos em que o sujeito da hipótese diverge

do sujeito da consequência na norma de tributação, excetuados os casos de simetria e,

especialmente, de sinalagma, onde a diferença se deve ao posto do observador. Mas de ser

diferente, não significa que possa ser todo e qualquer, havendo a necessidade de o sujeito da

consequência guardar uma relação potencial com a hipótese. Quanto à essa relação potencial,

pode verificar-se de duas formas. Por um ângulo, não sendo os mesmos, a ligação entre o sujeito

da consequência pode ser com o sujeito da hipótese, sem, no entanto, estar atrelado ao estado

de coisas. Como exemplo, podemos dar o caso em que a hipótese é aquele sujeito, todo e

qualquer, que realize a situação prevista, havendo indiferença à sua capacidade jurídica para a

jurídica”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.279. Em sentido contrário, COÊLHO: “[...] a questão de se saber se o legislador pode livremente escolher o ‘substituto’ jurídico daquele que deveria pela lógica e por motivos econômicos, ser o sujeito passivo da obrigação, por ter praticado o fato gerador. A indagação funda-se no valor justiça e no princípio da segurança que exige a ‘ética da tributação’”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.256. 445 Nesse sentido, KELSEN: “A responsabilização por um delito cometido por outrem, no caso em que a sanção é dirigida contra outro indivíduo que não o delinquente, apenas pode ter eficácia preventiva quando entre os dois indivíduos existe uma relação que permita presumir que o indivíduo obrigado, o delinquente potencial, também receba como um mal a execução da sanção no caso de ela incidir sobre um outro indivíduo como objeto da responsabilidade [...]”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.136 (IV.2.d).

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realização da conduta, e a consequência é formada pelo responsável legal pelo incapaz446. Para

esse caso de ligação entre os sujeitos, guardamos a expressão “sujeição passiva indireta

subjetiva”. Pode ainda, nos casos de ligação indireta, ser a concatenação entre o sujeito da

consequência e a descrição do estado de coisas, mas não de forma direta, como se dá para quem

realiza a concretização. Caso típico é o das operações comerciais plurifásicas, onde a tributação

somente ocorre sobre quem vende ao consumidor final. Situação a qual denominamos de

“sujeição passiva indireta objetiva”.

4.3.3 Onde e quando

A norma tributária em sentido estrito é norma primária, e como tal, apresenta hipótese

e consequente. Na hipótese, fato lícito, de conteúdo econômico, descrito de forma abstrata,

projetado no futuro, carecendo de intenção para sua realização; na consequência, alguém que

deve dar dinheiro, generalidade, a ser quantificado, eventualidade, ao Estado ou quem lhe faça

as vezes. Entretanto, para uma compreensão plena do tema, falta ainda dizer quando e onde se

deve dar o dinheiro. É tudo uma questão de completude de sentido, pois, sem saber a que tempo

se deve dar e a que lugar se deve levar a pecúnia, não há como cumprir a prescrição447. Com

efeito, a exposição dos dois advérbios, “onde” e “quando”, por aquele que põe o enunciado, é

de suma importância para que seja possível interpretar a norma jurídica como prescritora de

uma mensagem completa. Assim, dispor quem entrega o quê, em que quantia, a quem, é

necessário, mas não é suficiente, sendo preciso ainda dar conta do tempo e do espaço da conduta

devida448.

E aqui devemos apartar a discussão em duas: uma, é que tipo de enunciado deve ser

posto para cuidar de tais assuntos; outra, é a completude da mensagem. Para o primeiro caso,

446 Se o sujeito é incapaz, pode o direito positivo desconsiderar a situação para fins de conduta da hipótese, mas não vemos como desconsiderar essa situação no mandamento, já que tal segmento pressupõe que a pessoa compreenda que conduta deve realizar para afastar a norma eventual. Assim, a norma de tributação é construída ab ovo com sujeitos diversos, incapaz, para a hipótese, e capaz, para a consequência. Uma construção diferente seria inválida, pois a norma não teria um mínimo de eficácia. 447 Pode ser o caso de o sujeito passivo não ter de ir a lugar algum, devendo esperar pacientemente o almotacé: “[no Brasil colonial] Junto a cada donatário, o almotacé, uma espécie de fiscal do Erário, encarregava-se da arrecadação, obedecendo a ordens diretas da Metrópole”. Paul Hugon, O imposto: teoria moderna e principais sistemas, p.157. 448 Em sentido contrário, VIEIRA: “No que toca ao como, quando e onde pagar, cremos que, embora revestidas de significação econômica, constituem questões de menor relevância jurídica [quando e onde pagar] [...]”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.68. Também entende ser questão de menor importância “onde” e “quando” pagar, AVEIRO: “Evidentemente, deve ser previsto, no ordenamento, o modo como a relação jurídica se extingue, indicando os elementos necessários. [...]. Contudo, [...] tais disciplinamentos não se qualificam como fundamentais, ao menos segundo pensamos”. Júlio Aveiro, A regra-matriz de incidência do imposto em razão da morte, p.69.

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pode até ser que, em um específico ordenamento jurídico, o “onde” e o “quando” pagar possam

estar em enunciados de posição baixa, mais ao pé da pirâmide normativa, ao contrário de outros

elementos da consequência da norma de tributação. Assim, “quem”, “a quem”, “o quê” e o

“modo de calcular” esse “o quê” podem ser questões para dispositivos de boa linhagem, nobres,

relegando a instrumentos de menor porte “onde” e “quando’. Questão de direito positivo449.

Agora, qualquer que seja o veículo do enunciado, mesmo que um mal-ajambrado para certas

estéticas de mundo, ele deve existir, pois não há a possibilidade de prescrição de conduta, com

sentido completo, sem se informar o local e a data de pagamento da quantia devida.

4.4 CONCEITO ESTÁTICO DE TRIBUTO

A partir da homogeneidade sintática das normas jurídicas (ver 2.5), saturamos os

categoremas para construir uma proposição com função aglutinadora, conceito de tributo do

direito (ver 3.2), e passamos então a agrupar, ao redor dessa conceituação, normas jurídicas, às

quais designamos de normas de tributação. Da norma jurídica em sua feição completa, tomamos

apenas a norma primária (ver 4.1), desmembrando-a em hipótese (ver 4.2) e consequência (ver

4.3), unidas pela imputação. Com isso, passamos a ter, na hipótese, a descrição de um fato lícito

(ver 4.2.1), de conteúdo econômico (ver 4.2.4), com projeção no futuro, o que faz dela (da

descrição) uma abstração (ver 4.2.2), expressa pela forma sujeito, verbo e complemento (ver

4.2.5), identificável por meio de marcadores (ver 4.2.6), quais sejam, o tempo (ver 4.2.6.1) e

espaço (ver 4.2.6.2). Por sua vez, na consequência, tendo por norte seu caráter prescricional,

registramos tributo como uma obrigação de dar (ver 4.3.1), mais especificamente como uma

obrigação de dar dinheiro (ver 4.3.1.1). Quanto à quantia a ser dada, sublinhamos que a norma

de tributação traz a forma de cálculo, necessitando ainda, para alcançar o valor, de dados

concretos, o que faz dela uma norma jurídica eventiva (ver 4.3.1.2). Assim, tributo é uma

449 No Brasil, a questão envolve o princípio da legalidade, ou seja, se o “onde” e o “quando” pagar devem vir consignados em lei. Especialmente quanto à data de pagamento, ainda sob a regência da Constituição de 1969, já se manifestava nossa doutrina pela necessidade de lei: “[...] pela Constituição, fixar prazo para cumprimento de obrigação pecuniária não é matéria administrativa. É assunto que não comporta discrição. É matéria legal, porque diz respeito à quantificação da obrigação tributária do cidadão diante do Estado”. Geraldo Ataliba e J. A. Lima Gonçalves, Carga tributária e prazo de recolhimento de tributos, Revista de direito tributário, v. 45, p.27. E essas razões, que tratam da presença da lei como um imperativo para a questão do tempo de pagamento, cunhadas sob a Carta Anterior, parecem que podem outrossim ser encontradas, agora, na Carta Atual. Nesse sentido, CARRAZZA: “[...] as reduções de prazos e as alterações das formas de pagamento dos tributos implicam aumento da carga tributária. E o aumento da carga tributária deve obedecer aos princípios da estrita legalidade”. Roque Carrazza, Curso de direito tributário, p.237. Ou ainda GRUPENMACHER: “[...] a redução de prazo bem como a modificação dos critérios para o recolhimento dos tributos implicam de forma indireta no aumento da carga tributária e portanto devem obedecer ao princípio da estrita legalidade”. Betina Grupenmacher, Eficácia e aplicabilidade das limitações constitucionais ao poder de tributar, p.92.

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obrigação computável de dar dinheiro, ainda não determinada, de alguém a outro (ver 4.3.2),

com esse outro sendo, um dos polos, o Estado ou quem exerça uma função que possa ser lida

como estatal (ver 4.3.2.1). No outro polo, há aquele que deve dar, apresentado de forma geral,

podendo, a depender do cotejo com o sujeito da hipótese, ser classificado em sujeito passivo

direto, quando há identidade entre eles, e indireto, quando não há tal conformidade (ver 4.3.2.2).

Por fim, para que tenha sentido completo a afirmação de que alguém, em razão da norma de

tributação, é obrigado a dar dinheiro, a ser apurado, a outro, necessita-se ainda apontar “onde”

e “quando” da conduta devida (ver 4.3.3).

Esse é o ponto a que chegamos em nossa conceituação estática de tributo, utilizando,

para tanto, uma teoria da norma jurídica. A ideia foi mostrar, passo a passo, como construímos

o conceito, para que outros possam refazer o caminho, e, sendo o caso, fazer os ajustes

necessários. E esse trajeto, dentro do possível, tentamos fazê-lo sozinhos450, para que não

sentíssemos a tentação de vincularmo-nos à posição de ilustres tributaristas, pois, algumas

ideias possuem uma força tão grande de atração que o processo de satelitização ocorre, não pelo

chicote do mestre, mas pelo desejo do discípulo451. Em razão disso, a doutrina tributária foi

usada como uma régua de nossa posição, mas sem caráter axiomático. Assim, em alguns casos

coincidiu o que escrevemos com as lições dos grandes jurisconsultos, em outros não. Em

havendo igualdade de posição, um bom sentimento tomava conta, pois outros grandes já haviam

passado por ali. E, nos casos em que não houve a convergência, checamos novamente nosso

entendimento, verificando o motivo da divergência, e, em alguns casos, fizemos as mudanças

necessárias, mas, em outros, sentimo-nos seguros de nossa posição. Quando isso se deu, após

todas as vênias, rapapés e salamaleques que tal situação exige, relatamos o busílis da disputa e

o porquê de entendermos nossa posição como a melhor. Que fique claro, a ideia sempre foi

seguir um caminho próprio, jamais discordar por discordar, mas também nunca capitular em

450 “Uma trilha que subia teimosamente entre os seixos, maldosa, solitária, não mais animada por ervas e arbustos: uma trilha de montanha rangendo sob a teimosia de meus pés. Mudos, andando sobre o zombeteiro chiar do cascalho, pisando os pedregulhos que os faziam deslizar: assim meus pés forçavam o caminho para o alto. [...]. Para o alto: — embora ele estive em minhas costas, meio anão, meio toupeira; aleijado; aleijador; pingando chumbo em meus ouvidos, pensamentos-gotas de chumbo em meu cérebro. ‘Ó Zaratustra’, cochichou zombeteiramente, sílaba por sílaba, ‘ó pedra da sabedoria! Tu te arremessaste para cima, mas toda pedra arremessada tem de cair - cair! [...]’. Então calou-se o anão; e isso durou muito. Mas seu silêncio me oprimia; e estar assim a dois é, em verdade, mais solitário do que estar a um! [...]. Mas existem algo, em mim, que chamo de coragem: até agora, sempre matou em mim todo desânimo. Por fim, essa coragem me mandou parar e falar: ‘Anão! Ou tu, ou eu!’”. Friedrich Nietzsche, Assim falou Zaratustra, p.148-149 (Da visão e enigma, 1). 451 “Lamentavelmente [...], na vida literária, há pessoas que se contentam em gravitar ao redor de um pensador ou escritor de talento, atraídas pelo seu brilho. Renunciam, por essa via, à ousadia intelectual, numa espécie de autoregulação mutiladora de suas próprias virtudes intelectuais adormecidas. Contentem-se (sic) com um papel ‘modesto’, i. é., secundário na vida do espírito. Dá-se então o fenômeno, altamente perturbador pela sua persistência insinuante, da satelitização da inteligência”. José Souto Maior Borges, Ciência feliz, p.29.

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face do argumento de autoridade. Agora, dito tudo isso, não podemos deixar de frisar que um

trabalho como esse somente tem lugar porque alguém já nos mostrou antes que é possível um

estudo sobre a norma tributária por meio da teoria geral do direito. Assim, não importa o quanto

discrepemos em pontos específicos de BECKER, ATALIBA e CARVALHO, as homenagens

devem ser prestadas, pois, se algum dia, em nós, surgiu a ideia de um estudo sobre a norma de

tributação, com a feição que aqui apresentamos, isso se deu porque lemos esses três maestros.

Em razão disso, vamos finalizar este tópico com um singelo tributo a eles, por meio de uma

breve exposição crítica de suas posições.

Numa posição revolucionária, em Teoria geral do direito tributário, de 1963,

BECKER já usava a expressão “estrutura lógica”, para, com base nessa ideia, fazer a cisão em

duas da norma jurídica, partes as quais, neste trabalho, apresentamos como hipótese e

consequência452. A partir disso, tratou cada uma delas de forma analítica, expondo que: a

hipótese é formada de um núcleo e um ou mais elementos adjetivos, ao lado de coordenadas de

tempo e lugar453; a consequência, por sua vez, contempla os sujeitos ativo e passivo da relação

jurídica, bem como a prestação454. Fácil perceber, portanto, que uma ideia-chave desse trabalho

já estava em BECKER, que a norma de tributação, por ser norma jurídica, não tem uma estrutura

especial diante das demais normas jurídicas455. E aqui fica registrada nossa dívida.

Dez anos após a grande obra de BECKER, advém o livro de ATALIBA, Hipótese de

incidência tributária, de 1973, que apresenta, em menos de 200 páginas, duas teses: uma, foco

deste trabalho, sobre a secção da norma de tributação; outra, que pretendemos tratar no futuro,

em data incerta, mas que garantimos que não será deixada às calendas, sobre as espécies

tributárias. Há uma proximidade muito grande entre as obras, com ATALIBA citando

BECKER amiúde. Dada essa cercania, vamos aqui apresentar três observações advindas do

cotejo entre as duas obras, tendo a Hipótese de incidência tributária como parâmetro. A

primeira é positiva, pois o mestre paulista foi mais analítico em relação a cada desdobramento

452 “Dissecada em sua estrutura lógica, a regra jurídica se decompõe em duas partes: a) a hipótese de incidência (‘fato gerador’, suporte factício, ‘fattispecie’, ‘Tatbestand’); b) a regra (a norma, a regra de conduta, o preceito)”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.295. 453 “A dissecação de toda e qualquer hipótese de incidência mostrará que ela se compõe de um único núcleo e de um ou mais elementos adjetivos e que ela somente poderá se realizar na época e no espaço que foram previstos pelas coordenadas de tempo e lugar”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.329. 454 “Porque a relação jurídica é sempre pessoal (entre pessoa e pessoa), o conteúdo da prestação nunca é o bem (dinheiro, móvel ou imóvel, etc.), mas um facere ou non facere (ato ou abstenção humana) do sujeito passivo e referente àquele bem”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.347. 455 “De 1958 a 1962, durante 4 anos consecutivos, não gozei férias, nem sábados, nem domingos, nem feriados. [...]. Após esses 4 anos, em 1962 [...], eu entreguei à Editora Saraiva, em São Paulo, um livro com 62 páginas, cujo título é Teoria Geral do Direito Tributário. [...]. Aquele livro era e é pura teoria geral. Não comenta, nem analisa nenhuma legislação. Apenas ensina o seu leitor a pensar e, depois, por si mesmo, resolver o seu problema jurídico resultante de qualquer lei tributária”. Alfredo Becker, Carnaval tributário, p.28.

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da norma tributária do que o gaúcho. Nesse ponto, houve uma evolução. A segunda é neutra.

Nosso primeiro Teórico do direito tributário, com “t” maiúsculo, ao tentar mostrar a

necessidade de relação entre a base de cálculo de um tributo e a situação descrita em abstrato

desse mesmo tributo, acabou por confundir as duas situações, igualando-as456. ATALIBA dá-

se conta de que há ali duas questões distintas, mas, preso a BECKER, não consegue ainda fazer

o translado da base de cálculo para a consequência da norma de tributação457. A terceira e última

questão a ser levantada é negativa. Chega mesmo a causar espécie que um jurista do porte de

ATALIBA tenha, sem qualquer explicação, deslocado aquele que deve prestar a conduta e

aquele em face de quem a conduta deverá ser prestada para a hipótese da norma de tributação458.

Quem dá e quem recebe são questões mandamentais, da consequência normativa, que não se

encontram, de modo algum, no lugar sintático reservado à descrição do fato. De todo modo,

feitas as contas, tudo pesado e sopesado, a pequena obra em tamanho de ATALIBA é uma

gigante na literatura do direito tributário nacional, e mesmo quem a leu muitas vezes, sempre

encontra frescor quando novamente sobre ela se debruça459.

No ano seguinte ao livro de ATALIBA, em 1974, dimana a obra de CARVALHO,

Teoria da norma tributária, resultado de sua tese de doutorado, apresentada um ano antes, na

PUC/SP, tendo o próprio ATALIBA como orientador, com o sugestivo título A estrutura lógica

da norma jurídica tributária. Ganha, então, a composição da norma de tributação seu formato

mais bem elaborado460. A teoria apresenta a norma de tributação por meio de critérios —

456 “Nas regras jurídicas de tributação, o núcleo da hipótese de incidência é sempre a base de cálculo”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.329. 457 “É [a base de cálculo] [...] uma grandeza ínsita na h.i. (Alfredo Augusto Becker a coloca, acertadamente, como cerne da h.i.)”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.108. 458 “O aspecto pessoal, ou subjetivo, é a qualidade [...] que determina os sujeitos da obrigação tributária [...]. É [...] um critério de indicação de sujeitos, que se contém na h.i.”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.77. 459 Não desconhecemos que a obra em questão foi transladada para o espanhol, sob o título Hipótesis de incidencia tributaria, tradução de Roque García Mullin, com edições em Montevideo, em 1977, e Lima, em 1987, e tradução de Jorge Cucci et al., com edição igualmente em Lima, mas no ano de 2011. Contudo, não sabemos dizer seu grau de penetração em outros países. 460 Nesse sentido, COÊLHO: “A norma tributária encontrou em Paulo de Barros Carvalho o seu melhor expositor na literatura luso-hispano-americana. [...]. Esta é, talvez, a mais aguda percepção da estrutura da norma tributária”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral da interpretação e da exoneração tributária, p.94-95. E igualmente JUSTEN FILHO: “O estudo mais correto, a nosso ver, realizado no campo [da estrutura da norma tributária] incumbiu a Paulo de Barros Carvalho [...]”. Marçal Justen Filho, O imposto sobre serviços na Constituição, p.44. Quanto ao que pensa CARVALHO sobre sua obra, em 1974, expôs: “Esse modo de enxergar a regra jurídica tributária não pretende ser original e sabemos não tratar-se de posição da qual possam advir consequências práticas sensíveis”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.115. Já em 1996, foi mais assertivo: [...] [a teoria da regra-matriz] se tem mostrado utilíssima no elucidamento (sic) de conflitos jurídico, exibindo, à luz do sol, as fronteiras em que o legislador e o aplicador das normas devem manter-se, para não ofender o Texto Constitucional”. Paulo de Barros Carvalho, IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), Revista dialética de direito tributário, n. 12, p.51 (esclarecemos entre colchetes). De toda sorte, para darmos conta da importância de sua teoria, basta lembrarmos que “[...] esse esquema lógico-semântico de isolamento da incidência tributária vem sendo usado, intensamente, pela doutrina,

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deixando claro que, além dos que expõe, outros seriam dispensáveis461 —, que são: material,

espacial e temporal, na hipótese; pessoal e quantitativo, na consequência462. Contudo, se

podemos concordar que a fórmula de CARVALHO é até então a melhor, o mesmo não podemos

dizer do seu apontamento exaustivo dos critérios. Questão que merece ser mais bem analisada,

mas, antes de prosseguirmos, cabe aqui um pequeno paralelo. Afinal, com que termos se deve

apresentar a secção da norma de tributação: “elementos”, “aspectos” ou “critérios”?

BECKER não foi uniforme em sua exposição, mas, quando necessitou fazer uma

precisa delimitação, valeu-se do termo “elemento”, ao lado de “núcleo” e “coordenadas”463.

ATALIBA, por sua vez, opõe-se à ideia de que a norma jurídica tenha elementos, já que o termo

deve ser usado para os casos em que um elemento é combinado com outro elemento para então

formar algo diferente do resultado da mera justaposição. A norma de tributação, por sua vez,

seria um todo, não formado da combinação de partes, logo não teria elementos, mas sim

qualidades, atributos ou relações464. Ocorre que a norma jurídica, enquanto proposição, é sim

formada de partes, não havendo nada de errado, portanto, com o uso do vocábulo465. De toda

existindo trabalhos específicos de aplicação aos vários tributos do sistema. Vale referência às obras de José Roberto Vieira, sobre o IPI [...]”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.82. Além de que, “[a]tualmente [2009], aproxima-se de uma centena a quantidade de obras que promoveram a aplicação da Regra-Matriz de Incidência Tributária a fim de definir a natureza dos tributos brasileiros”. Clarice von Oertzen de Araujo, Prefácio à 5ª ed., in: Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.13 (esclarecemos entre colchetes). 461 “Nada mais será preciso para que conheçamos, em toda extensão, o liame jurídico estabelecido por virtude do acontecimento do suposto”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria norma tributária, p.115. 462 “Quais os critérios que poderão servir para identificar um fato lícito, que não acordo de vontades considerado em si mesmo? O critério material — descrição objetiva do fato — que é o próprio núcleo da hipótese; o critério espacial — condições de lugar onde poderá acontecer o evento; e o critério temporal — circunstâncias de tempo que nos permitirão saber em que momento se considera ocorrido o fato. [...] . Todavia, se os critérios que logramos encontrar nas hipóteses endonormativas tributárias são aqueles que nos dão elementos para reconhecer um fato que poderá acontecer no plano concreto da realidade, os critérios que encontraremos na consequência serão atinentes, única e exclusivamente, com a relação jurídica que haverá de inaugurar-se com a ocorrência daquele fato, tudo por força da imputação normativa. E de que maneira nos será possível identificar essa relação jurídica? Sabendo qual o critério para a determinação dos sujeitos — ativo e passivo — (critério pessoal) e de que modo será estabelecido o conteúdo do dever jurídico, a cargo do sujeito passivo, portanto o critério quantitativo”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria norma tributária, p.114-115. 463 “No conteúdo da hipótese de incidência, além do núcleo, existem ainda um ou mais elementos das mais diversas naturezas que adjetivam o núcleo, determinando-lhe menor ou maior especificação”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.295. Sua inspiração é PONTES DE MIRANDA: “A configuração do suporte fático é extremamente importante: ou a regra jurídica concebe o suporte fático em esquema rígido, indeformável; ou, para cada deformação, ou alteração, que lhe não mude os elementos-cerne (= elementos comuns), outra regra jurídica intervém e incide”. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.I, p.80 (13.1). 464 “Não nos parece adequada a expressão elementos da hipótese de incidência, usada por alguns autores. É que esta expressão sugere a ideia de que se está diante de algo que entra na composição doutra coisa e serve para formá-la. Cada aspecto da hipótese de incidência não é algo a se stante, de forma que associado aos demais resulte na composição da hipótese de incidência, mas, são simples qualidades, atributos ou relações de uma coisa una e indivisível, que é a hipótese de incidência juridicamente considerada”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.74. 465 “elemento […] 11. Linguística Parte de um todo linguístico […] que se pode apreciar em separado, através da análise”. Luiz Antonio Sacconi: Grande dicionário Sacconi: da língua portuguesa: comentado, crítico e enciclopédico: verbete “elemento”, p.737.

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sorte, prefere aquele que foi reitor da PUC/SP a palavra “aspecto”, para designar os atributos

da norma466. Questão que também gerou desacordo, sob a argumentação de que apenas

concretudes teriam aspecto467. De nossa parte, acreditamos que, por essa linha, estar-se-ia a

confrontar o holandês voador, já que desconhecemos a necessidade de resguardar o uso do

verbete “aspecto” apenas aos entes concretos468. Por fim, CARVALHO elegeu “critério” como

nome do dado que se usa para identificar os fatos como fatos jurídicos tributários469. Escolha

que também causou agitação470, apesar de nos parecer correta, pois é usada na função de

identificador471. De nossa parte, não vemos nada que seja decisivo, que traga vantagens, no uso

de um ou outro termo, muito menos encontramos algo tão errado que inviabilize a utilização de

qualquer um deles. Ao fim e ao cabo, cremos que tudo não passa de uma daquelas discussões

por palavras, que uma ida ao dicionário resolveria. Agora, se tivéssemos de escolher,

optaríamos por “critério”, e isso em razão de algo muito simples, que aqui relatamos para os

que têm desejo de que tudo no mundo tenha uma explicação: CARVALHO ensinou ao

PROFESSOR JOSÉ ROBERTO VIEIRA, que, por sua vez, ensinou-nos ser a secção da norma

de tributação promovida mediante critérios472.

466 “Preferimos falar em aspectos da hipótese de incidência porque, na verdade, esta unidade conceitual pode ser encarada, examinada e estudada sob diferentes prismas, sem destituir-se de seu caráter unitário e sem que a compreensão, exame e estudo de um possa permitir negligenciar ou ignorar os demais, partícipes da unidade e nela integrados”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, 4.ed., p.75. 467 […] rigorosamente, não se poderia aludir a aspectos […], relativamente à norma […]. Esses aspectos, mais propriamente, existem é no fato imponível […]”. Marçal Justen Filho, O imposto sobre serviços na Constituição, p.44. 468 “aspecto. […]. 5. Cada um dos diversos modos com que um fenômeno, uma coisa, um assunto, etc., pode ser visto, observado ou considerado; lado; face; ângulo”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa: verbete “aspecto”, p.208. 469 “Na hipótese encontramos os critérios para a identificação de um fato acontecido no mundo da realidade física. Na consequência, os critérios para a identificação da relação jurídica que se instala com o acontecimento do suposto. No plano puramente normativo, assim, não há ainda falar-se em fato, muito menos em relação jurídica. Temos somente critérios”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.89. 470 Nesse sentido, COÊLHO: “Divergimos [...] na terminologia, porquanto ao invés de (sic) ‘critérios’, utilizamos o termo aspecto para qualificar as facetas da hipótese e da conseqüência da norma jurídico-tributária”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral da interpretação e da exoneração tributária, p.95. JUSTEN FILHO também discorda do termo, mas apenas quando aplicado ao consequente: “[...] é cabível aludir a critérios de reconhecimento na hipótese. Mas não o é relativamente à conseqüência. No mandamento, há não critérios, mas determinações, imposições. Marçal Justen Filho, O imposto sobre serviços na Constituição, p.46. No entanto, não há razões para distinção. Se a norma de tributação apresenta a fórmula (D) p→Oq, tanto em “p” como em “q”, há elementos, aspectos ou critérios. Por sua vez, a obrigação “O” é um modalizador de “q”, sem com isso fazer parte do próprio “q”. Assim, uma coisa é a característica da conduta, que se expressa por meio de elementos, aspectos ou critérios; outra, totalmente distinta, é se essa conduta, uma vez demarcada, é obrigatória. 471 “critério [...] 1 norma de confronto, avaliação e escolha [...] 2 p.ext. faculdade de discernir e de identificar a verdade; juízo, razão 3 p.ext. fundamento, base para uma opção e/ou decisão [...]”. Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar, Dicionário Houaiss da língua portuguesa: verbete “critério”, p.875. 472 “E quais os critérios da regra-matriz de incidência tributária? [...]. [...] teremos, na hipótese, um comportamento de pessoas (critério material), subordinado a uma condição de lugar (reconhecida pelo critério espacial) e a uma condição de tempo (reconhecida pelo critério temporal); e na conseqüência, sujeitos ativo e passivo (critério pessoal), e base de cálculo e alíquota (critério quantitativo”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.60-61.

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Feita essa pequena digressão, podemos voltar à estrutura da norma de tributação de

CARVALHO, para verificarmos que seu maior mérito foi ter equilibrado os critérios da norma

entre a hipótese e a consequência. Todavia, em nosso modo de ver, não levou essa paridade às

últimas consequências, pois não nos basta uma relativa harmonia entre a hipótese e a

consequência, mas pugnamos por nada menos do que uma perfeita simetria entre elas, uma vez

que tenha sido acordado que na hipótese há também, como na consequência, uma conduta

humana (ver 4.2.3). Com efeito, tanto hipótese como consequência possuem os mesmos

elementos, aspectos ou critérios, que podem ser representados assim: QUEM, FAZ O QUÊ,

QUANDO e ONDE. No mais, questões de conveniência e oportunidade de apresentar a

estrutura da norma em sua completude não mudam a questão central. Assim, há, na hipótese,

os critérios: pessoal — quem —, comportamental — faz o quê, na forma verbo e complemento

—, temporal — quando — e espacial — onde; de igual modo, há, na consequência, os critérios:

pessoal — quem e a quem —, comportamental — faz o quê, um dar dinheiro —, temporal —

quando — e espacial — onde.

Por fim, resta escrever algumas linhas sobre a consagrada expressão “regra-matriz de

incidência tributária” (RMIT). Iniciemos fazendo uma observação: toda grande teoria precisa

de um título esplendoroso. E, sem dúvida alguma, regra-matriz de incidência tributária é uma

locução mais do que adequada, é um ícone do direito tributário brasileiro473. Dito isso, o que

seria então a regra-matriz de incidência tributária?474 Para o seu criador, a regra-matriz de

incidência tributária é a norma que estipula, define, a incidência do tributo475. Entretanto, ao

473 Em Teoria da Norma Tributária, de 1974, já encontramos o que hoje conhecemos por teoria da regra-matriz, mas ainda não há o epíteto, que somente com a tese apresentada em 1981, para a obtenção da livre-docência em direito tributário, na PUC/SP, passa a ser ostensivo: A Regra Matriz do ICM. Deve-se ter em conta, ainda, artigo publicado em 1978, no qual já se utiliza CARVALHO da expressão que ficaria consagrada: “No esquema de compreensão da regra-matriz [...]”. Paulo de Barros Carvalho, Hipótese de incidência e base de cálculo do ICM, in: Ives Gandra da Silva Martins (coord.), O fato gerador do ICM, p.326. Mas ainda se estava em fase da escolha, pois também se vale de “regra-modelo” e “arquétipo”: “Daí poder falar-se em regra-modelo ou arquétipo de norma jurídica [...]. Ibidem, p.324. Bem como, no mesmo artigo, experimenta “protótipo”: “[...] poderíamos aludir ao protótipo de norma [...]”. Ibidem, p.325. Em 1983, a expressão já aparece na doutrina, com GONÇALVES publicando o artigo Princípios informadores do “critério pessoal da regra matriz de incidência tributária”, na Revista de direito tributário n.23-24. 474 Sobre o assunto, já nos manifestamos no sentido de ser a regra-matriz uma construção da teoria, e não da ciência, do direito: “A regra-matriz, como teoria do direito, dá-nos uma abstração do mundo, um “diagrama lógico-semântico”, para que então possamos organizar a ciência do direito (proposições verdadeiras ou falsas), que obtemos por meio da observação e descrição. Logo, há o objeto de estudo, a norma jurídica tributária em sentido estrito, que encontramos a partir do direito posto, e há a ciência que se produz por descrição do objeto, que é a ciência do direito tributário. Só que essa descrição científica do direito tributário deve ser amoldada a partir de um arquétipo. Faz-se então evidente a necessidade de uma teoria do direito tributário para a organização do pensamento”. Valterlei A. da Costa e Matheus Ziccarelli, A regra-matriz tributária: uma formulação da teoria do direito, Revista tributária e de finanças públicas, v.141, p.254-255. 475 Em obras diferentes, encontramos passagens que remetem a ser a regra-matriz uma norma jurídica: “[...] normas que estipulam a incidência do tributo [...]. [...]. Chamaremo-las de ‘norma-padrão de incidência’ ou ‘regra-matriz de incidência tributária’ [...]”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência,

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pensarmos na regra-matriz como “D{[Cm(v.c).Ce.Ct]→[Cp(Sa.Sp).Cq(bc.al)]}”476, de forma

alguma podemos concordar que ela é uma norma jurídica. Isso porque uma coisa é a norma

jurídica, enquanto ente posto, outra, totalmente distinta, é a proposição que a descreve, bem

como ainda diversa, uma questão terceira, é a estrutura comum tanto à norma jurídica quanto à

proposição jurídica. Sendo assim, nas bases do próprio autor, a regra-matriz não pode ser, ela

mesma, a norma jurídica tributária, mas deve ser a estrutura dessa norma jurídica tributária477.

Ademais, não é ela algo meramente estrutural, pois, do contrário, não seria tributária, já que a

norma de tributação possui a mesma estrutura de qualquer outra norma jurídica. Assim, por

mais caráter de estrutura lógica que tenha a regra-matriz, principalmente quando apresentada

em fórmula, não pode deixar de ter traços semânticos, pois só assim é possível a diferenciá-la

da estrutura de outras normas jurídicas.

p.79. “[...] normas que definem a incidência do tributo [...] (norma-padrão de incidência ou regra-matriz da incidência tributária)”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.251. E a doutrina especializada comprou a ideia: Nesse sentido, GONÇALVES: “Só a lei pode criar uma regra matriz de incidência [...]”. J.A. Lima Gonçalves, Princípios informadores do “critério pessoal da regra matriz de incidência tributária”, Revista de direito tributário, n.23-24, p.261. Ou VIEIRA: “[...] a norma tributária em sentido estrito ou regra-matriz de incidência [...] é uma das mais típicas regras de comportamento”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.70. Ou ainda SANTI: “[a] regra-matriz de incidência tributária [...] é uma norma jurídica de comportamento [...]”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.127. 476 “Explicando os símbolos dessa linguagem formal, teremos: “D” é o dever-ser neutro, interproposicional, que outorga validade à norma jurídica, incidindo sobre o conectivo implicacional para juridicizar o vínculo entre a hipótese e a consequência. “[Cm(v.c).Ce.Ct]” é a hipótese normativa, em que “Cm” é o critério material da hipótese, núcleo da descrição fáctica; “v” é o verbo, sempre pessoal e de predicação incompleta; “c” é o complemento do verbo; “Ce” é o critério espacial; “Ct” o critério temporal; e “.” é o conectivo conjuntor. “→” é o símbolo do conectivo condicional, interproposicional; e “[Cp(Sa.Sp).Cq(bc.al)]” é o consequente normativo, onde “Cp” é o critério pessoal; “Sa” é o sujeito ativo da obrigação; “Sp” é o sujeito passivo; “bc” é a base de cálculo; e “al” é alíquota”. Paulo de Barros Carvalho, A regra-matriz de incidência do imposto sobre importação de produtos estrangeiros, in: Eurico de Santi (coord.), Curso de direito tributário e finanças públicas, p.524-525. 477 “[...] a Ciência do Direito Tributário vem desenvolvendo a concepção da chamada ‘regra-matriz de incidência’, esquema lógico que revela a presença de um juízo condicional [...]”. Paulo de Barros Carvalho, IPI – Comentários sobre as regras gerais de interpretação da tabela NBM/SH (TIPI/TAB), Revista dialética de direito tributário, n. 12, p.49.

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159

PARTE II.III – CONCEITO DINÂMICO DE TRIBUTO

“Os deuses são mortais, os humanos imortais, vivendo sua morte e morrendo a sua vida. Entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos” 478.

Heráclito

Uma vez pactuado qual conteúdo deve ter uma norma jurídica para que possa receber

o epíteto de norma de tributação (ver 4.4), devemos, então, perquirir a estrutura escalonada do

ordenamento jurídico (ver 2.9), verificando o que há acima e abaixo dela. Assim, se, em um

primeiro momento, encontramos um conceito estático de tributo, agora se faz necessário

apontar um conceito dinâmico, usando como guia nossa norma de tributação. Ordem de

pesquisa que nos leva a uma inversão do entendimento padrão, segundo o qual primeiro estuda-

se a norma de competência tributária, para depois estudar a norma de tributação. Aproximação,

não negamos, coerente, pois se norma jurídica há, é porque há outra norma jurídica que assim

dispõe (ver 2.3). Entretanto, optamos aqui por uma posição diferente, pois entendemos que

somente é possível conceituar a norma de competência tributária uma vez de posse da

compreensão do que seja a norma de tributação. Com efeito, se conceituamos a norma de

competência tributária como a que disciplina a norma de tributação, a afirmação somente será

completa se for acompanhada do conceito de norma de tributação. Em razão disso é que

promovemos essa anástrofe479, inclusive no título deste trabalho: “... um estudo normativo sobre

tributação, competência e lançamento”.

Todo o esforço foi feito primeiramente para termos um identificador, um aglutinador,

da norma de tributação. Então, uma vez firmada a norma de tributação como meridiano, é

possível perscrutar seu fundamento de validade. É nesse ponto, então, que nos deparamos com

a norma de competência tributária. Assim, dinamicamente, a norma de competência tributária

é a norma fundante da norma de tributação, que, nesse plano, é a norma fundada. Estaticamente,

a norma de tributação basta, apesar disso, dinamicamente, é preciso procurar seu fundamento

de validade. Nesse ponto é que encontramos a norma de competência tributária, um degrau

acima na construção em graus que é o direito positivo.

Esquadrinhado acima, devemos ulteriormente escrutinar abaixo, ainda tendo a norma

de tributação como meridiano, que assim demonstra não ocupar apenas a posição de norma

478 Heráclito, Questões homéricas, 24.3-5, in: Jonathan Barnes, Filósofos pré-socráticos, p.136 (8). 479 “A ordem inversa que colide com a norma geral da colocação constitui a figura da sintaxe chamada ANÁSTROFE [...]”. Joaquim Mattoso Camara Jr., Dicionário de linguística e gramática: referente à língua portuguesa: verbete “colocação”, p.89.

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160

fundada, mas empenha outrossim a graduação de norma fundante. O que é efeito passa a ser

causa, o imutável passa a ser dinâmico480. Agora é ela, a norma de tributação, que passa a ser o

fundamento direto de validade de outra norma jurídica, a norma de lançamento. Novamente,

em sentido estático, a norma de tributação basta, mas um estudo completo do tributo não pode

prescindir da particularização normativa. Todavia, não necessitamos mais inverter a ordem de

análise, pois agora podemos usar a ordem direta, apresentando a norma de lançamento como a

derivada da norma de tributação. Percebe-se, dessarte, que um adequado estudo do lançamento,

tomado como norma concreta, individual e ocorrente, não pode ser feito sem antes um

conhecimento da tributação, aqui como norma com seus contornos abstratos, gerais e eventivos.

Eis nossa tríade, nossa trinca, construída a partir de uma ideia básica, qual seja, tributo

é norma jurídica, que, por sua vez, pode ser desdobrada em três, passando a expor que a norma

de tributação, cujo conteúdo identificamos por meio do cotejo com uma proposição pactuada,

é um norte pelo qual posicionamos outras duas normas a ela ligadas. Supra, há a norma de

competência tributária, o fundamento de validade da norma de tributação; infra, há a norma de

lançamento, à qual, por sua vez, a norma de tributação confere validade. Em um momento,

busca-se em que se funda; em outro, a demanda é pelo que ela fundamenta. Assim, a partir da

“norma de tributação” (ver 4), são precisadas outras duas normas que dizem respeito ao tributo,

quais sejam, a “norma de competência tributária” (ver 5) e “norma de lançamento tributário”

(ver 6).

O que é, plano estático, deixa de ser o núcleo, com o devir, o aspecto dinâmico assume

o centro do palco, o que nos lembra HERÁCLITO, já que o movimento passa a ser o cerne481.

Por esse novo ângulo, o fixo é abandonado; o que, em um caso, é norma fundante, passa a ser,

em outro, norma fundada. Contudo, deixamos claro, a modificação não altera a necessidade de

referência, que é a nossa norma de tributação. O que temos é uma ampliação do leque, com “de

onde veio” e “para onde vai” sendo alçados à condição de novas pedras de toque do estudo do

tributo, sem que se esqueça “onde está”. Em curta síntese, em seu aspecto dinâmico, ao tributo

interessa não só a criatura, como também seu criador.

480 “A antiga ideia de um universo em essência imutável que pudesse ter existido e pudesse continuar a existir foi substituída para sempre pela ideia de um universo dinâmico e em expansão [...]”. Stephen Hawking, Uma breve história do tempo, p.52-53 (2). 481 “Heráclito diz: Tudo é devir; este devir é o princípio. [...]. É isto que Heráclito expressou com suas sentenças. O ser não é, por isso é o não-ser, e o não-ser é, por isso é o ser; isto é a verdade da identidade de ambos”. Georg Hegel, Preleções sobre a história da filosofia, in: Os pré-socráticos, p.103.

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5 COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Se se verificar uma especificada situação (presença ou ausência de estado de coisas),

então deve ser uma conduta (modalizada de forma obrigatória, permitida ou proibida)

relacionada à produção, alteração ou extinção de norma jurídica. Assim é a norma de

competência primária, que traz geralmente, além da autoridade competente, em maior ou menor

grau, o conteúdo da norma jurídica disciplinada — apresentado de forma positiva e negativa,

ao lado do procedimento —, bem como o tempo e o espaço no qual deve ser ela enunciada (ver

2.9). E se o conteúdo pautado é o contemplado pelo conceito estático de tributo que

apresentamos (ver 4.4), ou seja, se é a norma de tributação, então podemos falar de norma de

competência tributária. Divisão de ordem semântica, que se lastreia em conteúdo.

Entretanto, não podemos negar que há outras normas primárias de competência que,

de um modo ou de outro, podem ser confundidas com a norma de competência tributária em

questão. Inicialmente podemos lembrar que, além da norma de tributação, que é norma

primária, há a norma eventual a ela ligada de forma disjuntiva, como consequência nos casos

de não pagamento do valor devido (ver 4.1). Percebe-se, com isso, que, também para a norma

eventual, há a imperiosidade de norma de competência482. De igual modo, além da norma de

tributação, há, associadas a ela, com função instrumental, outras normas cujo foco não é um dar

dinheiro, mas sim um fazer (ver 4.3.1). Esses casos outrossim necessitam de norma de

competência. Ainda, como conteúdo de norma de competência, podemos deparar-nos com uma

obrigação de levar dinheiro decorrente de fato lícito, sem que seja a norma de tributação, que é

abstrata, geral e eventiva, mas seja, sim, a norma de lançamento, que é concreta, individual e

ocorrente (ver 6.1). Além desses casos, devemos lembrar que a norma de competência, em sua

feição completa, é formada tanto da norma primária, cujo conteúdo diz respeito à norma de

tributação, como por norma eventual, a qual estabelece as consequências para o caso de

descumprimento, ligadas por disjunção (ver 2.10).

Feitos esses apontamentos sobre a existência de outras normas, vamos, então, reservar

a locução “norma de competência tributária” exclusivamente para a norma primária que regula

a norma de tributação, com fins de evitar ambiguidades. Posição que já nos permite uma

primeira tomada de posição: competência tributária é norma jurídica (mais precisamente, norma

482 Como estamos realizando uma apresentação analítica, decompondo a norma de tributação e a norma eventual, em vez da norma jurídica completa, por questão de simetria, estamos igualmente apontando uma norma de competência para cada uma delas. Entretanto, poderíamos formular a questão de outra forma, expondo que a norma de competência diz respeito à norma em sua feição completa, primária e eventual.

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162

primária) e não, como quer a doutrina, aptidão para criar tributo483. Isso porque, a nosso ver,

apresentar a competência tributária como uma aptidão é algo incompleto e equívoco.

Incompleto pois, em vez de focar na norma jurídica, fixa-se em uma consequência sua, que não

existiria sem a norma jurídica. Afinal, se alguém tem a aptidão para criar tributos, isso somente

decorre de norma jurídica e de nem uma outra situação. É, portanto, contar meia história484.

Equívoco porque a palavra “aptidão” já induz, de pronto, a pensar-se que a competência

tributária é meramente uma disposição485. Ora, ter aptidão é ter “[c]apacidade para alguma coisa

[...]”486; o que remete à ideia de permissão, mas, conforme veremos com mais vagar, a

competência tributária pode dar-se quer na forma de obrigação quer na de proibição (ver 5.2.1).

A competência tributária é, portanto, uma norma jurídica e não uma aptidão.

Com esses esclarecimentos, vejamos, de forma analítica, a norma de competência

tributária, tendo por elementos básicos de secção a hipótese e a consequência.

5.1 HIPÓTESE DA NORMA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

Na hipótese da norma de competência, temos, desde toda e qualquer situação, sem

maiores especificações, projetada no futuro, até concretudes, pois não há empecilho lógico —

podendo, todavia, ser contestada em outros campos, como, por exemplo, o da justiça — a que

contenha algo já passado (ver 2.11). Com isso, querermos expor que, com qualquer conteúdo,

abstrato ou concreto, haja vista a homogeneidade sintática adotada neste trabalho, há sempre

uma hipótese normativa na norma de competência (ver 2.5 e 2.9).

483 Sobre ser a competência tributária a aptidão para criar tributos, é farta a nossa doutrina: “Temos assim a competência tributária — ou seja, a aptidão para criar tributos — [...]”. Luciano Amaro, Direito tributário, p.93. “A competência tributária é a aptidão para criar os tributos [...]”. José Eduardo Soares de Melo, Curso de direito tributário, p.113. “Competência legislativa é a aptidão de que são dotadas as pessoas políticas para expedir regras jurídicas [...]. Competência tributária [...] é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes [...], consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.228. “Competência tributária é a aptidão para criar, in abstracto, tributos”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.431. “[...] competência tributária, no Brasil, é a aptidão [...] de criar, in abstrato, tributos [...]”. Betina Grupenmacher, Tratados internacionais em matéria tributária e ordem interna, p.38. “[...] competência tributária é a aptidão para instituir tributos [...]”. Regina Helena Costa, Imunidades tributárias: teoria e análise da jurisprudência do STF, p.55. 484 Pode ser que meia história já baste, e tudo não passe de uma elipse. De todo modo, o que queremos aqui é chamar a atenção para o fato de não existir qualquer direito subjetivo sem uma norma jurídica que o ampare. KELSEN já havia avisado que “[n]a descrição do Direito, o direito (subjetivo) avulta tanto no primeiro plano, que o dever quase desaparece por detrás dele [...]. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.140 (IV.3.a). Nós, na mesma linha, apontamos que não há competência sem norma de competência. 485 “APTIDÃO [...] Disposição, capacidade natural ou adquirida [...]”. Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguêsa: verbete “aptidão”, v.I, p.339. 486 MICHAELIS: Moderno dicionário da língua portuguesa: verbete “aptidão”, p.196.

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163

Especificamente em tema tributário, quando a conduta regrada é a de assentar norma

de tributação, é comum que seja a disposição para todo e qualquer caso, apesar de não serem

estranhas situações como calamidade pública, guerra externa (ou sua iminência) ou imperativo

de investimento urgente e relevante, constarem na hipótese da norma de competência

tributária487. Há, portanto, dois grupos de hipóteses da norma de competência tributária:

encontramos, em um, toda e qualquer situação; em outro, os casos especificados. Ponto que tem

motivado a doutrina a classificar a competência tributária em ordinária e extraordinária488, o

quê, a nosso modo ver, não seria outra coisa do que uma classificação da hipótese da norma de

competência tributária, na linha da metonímia, pois se estaria a classificar uma parte, em vez

do todo489. De toda forma, preferimos classificar a hipótese da norma de competência tributária

— e, por extensão, a própria norma de competência — em nominada e inominada. Por

inominada, designamos os casos abertos da hipótese, na base de toda e qualquer situação. Por

nominadas, aquelas descrições que, do mundo, especificam algo, que o nominam.

487 Nossa ilustração é feita com signos retirados dos art. 148 e 154 da CF/88. Dispositivos que permitem à União instituir empréstimos compulsórios e impostos extraordinários. Como base comum desses signos, podemos dizer que há neles, sem dúvidas, a marca da excepcionalidade, o que nos põe em comunhão com VIEIRA: “[...] o legislador constitucional cogita de tributos a serem instituídos em situações de excepcionalidade [...]”. José Roberto Vieira, Competências tributárias no Brasil: mitos e mentiras, in: Paulo de Barros Carvalho (coord.), 30 anos da Constituição Federal e o sistema tributário brasileiro, p.621. Entretanto, o que viria a ser um caso de excepcionalidade, para figurar na hipótese da norma de competência tributária, pode ser algo extremamente amplo, como, v.g., um casamento real. KIRCHHOF lembra-nos de que “[o]s tributos podiam ser cobrados por serviços de guerra e para construção de fortificações, para a libertação do Rei levado prisioneiro, para a nomeação a cavaleiro do primogênito e para a primeira celebração do casamento da filha mais velha”. Paul Kirchhof, Tributação no estado constitucional, p.18 (I.1). Sendo assim, dada a imprecisão que a palavra “excepcional” pode trazer, preferimos algo mais amplo para que não tenhamos de pôr-nos na condição de julgar se a hipótese da norma de competência é ou não a descrição de algo excepcional. GAMA, atentando para a estrutura, e não para conteúdo, utilizou “condicionada” e “não condicionada” para classificar a competência tributária: “Essa modalidade [não condicionada] é de exercício livre, não demanda o atendimento de requisitos além daqueles necessários à forma e à matéria. Já a competência condicionada, exige o preenchimento de certos requisitos para que a competência possa ser validamente exercida”. Tácio Lacerda Gama, Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade, p.276 (esclarecemos entre colchetes). Entretanto, como, neste trabalho, todas as normas jurídicas são hipotéticas, e, pois, condicionais (ver 2.5), preferimos utilizar os termos “nominado” e “inominado”. 488 AMARO refere-se à competência extraordinária, mas apenas usa a expressão para os casos em que a União, em razão de guerra, possa criar tributo que, como regra, não lhe cabe: “[...] no plano dos impostos da União, além de sua competência ordinária, há, em caso de guerra, uma competência extraordinária, com base na qual [...], lhe é autorizado estabelecer impostos que, ordinariamente, pertencem à competência dos outros entes políticos (CF, art. 154, II)”. Luciano Amaro, Direito tributário brasileiro, p.95. BELTRÃO faz alusão à competência extraordinária, vinculando-a também ao imposto extraordinário de guerra, expondo que “[o] exercício da competência extraordinária possibilitará o aparecimento de tributo similar a outro já existente”. Irapuã Beltrão, Curso de direito tributário, p.153. COSTA também utiliza o verbete “extraordinário” para se referir à competência tributária, mas igualmente limita-se aos impostos da União, além de fazer do vocábulo “residual”, em vez de “ordinário”, par do termo: “Quanto às competências residual e extraordinária em matéria de impostos, atribuídas à União, não aponta materialidades, mas apenas pressupostos a serem atendidos para o seu exercício (art. 154, CR)”. Regina Helena Costa, Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional, p.45. 489 “A palavra é reservada [...] para designar o fenômeno lingüístico pelo qual uma noção é designada por um termo diferente do que seria necessário, sendo as duas noções ligadas por uma [...] relação da parte ao todo [...]”. Jean Dubois et al., Dicionário de linguística: verbete “metonímia, p.412.

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164

A hipótese da norma de competência tributária é assim mais abrangente do que a da

norma de tributação, que está restrita a uma conduta humana que conote conteúdo econômico,

conforme nossa estipulação (ver 4.2.4). Aqui, parece-nos que a regra é toda e qualquer situação,

caso inominado, não sendo, nas situações em que há a nominação, estranha à descrição de

eventos da natureza, como fenômenos físicos que provoquem grandes danos e mesmo vítimas.

Sendo assim, o campo é muito mais amplo do que um critério comportamental e seu sujeito,

mas nada impede que construamos a hipótese por meio de verbo e, a depender do idioma em

que seja vazada a formulação, sujeito490.

Ademais, seja como toda e qualquer situação, no modo inominado, seja de forma

nominada, por meio de um verbo, há de se perscrutar os advérbios onde e quando. Podem ser

eles igualmente todo e qualquer tempo e espaço como podem ser especificados. Um cataclismo

pode ser um evento a que se impute a competência tributária, mas pode ser que, durante certa

época do ano, mesmo que ele não seja desejável, seja comum. Assim, a hipótese da norma de

competência pode trazer um critério temporal, abarcando certos períodos e excluindo outros,

para que a ocorrência de tais eventos seja lida como gatilho da atuação normativa. De igual

modo, uma erupção de vulcão pode ser uma ocorrência a que se associe a competência

tributária, mas pode ser que, em determinado local, isso seja ordinário. Assim, a hipótese da

norma de competência pode trazer um critério espacial, demarcando um onde, para que tal

acontecimento seja considerado ou não uma condição para o exercício da competência

tributária.

Por fim, destacamos que não se deve embaralhar a hipótese, cuja verificação se faz

necessária para se dispor sobre a norma de tributação, conteúdo da norma de competência, com

a hipótese da própria norma de tributação, criada com base na referida norma de competência.

Assim, de um posto de vista estático, seria um erro enxertar na estrutura normativa, regra-

matriz, de certos tributos, como, por exemplo, o empréstimo compulsório, questões que

pertencem à sua norma de competência. A descrição da hipótese da norma de tributação não se

embaralha com a descrição da hipótese da norma de competência.

5.1.1 Equívocos da doutrina

490 No inglês e no alemão, como regra, o sujeito sempre é expresso: “[...] em inglês [...] de um modo geral, a estrutura básica em qualquer frase = sujeito + verbo + objeto (+ complemento). [...]. It preenche a posição do sujeito e do objeto para atender à estrutura básica indicada”. Cristina Schumacher, Inglês urgente! para brasileiros, p.35. “Toda a oração necessita expressar o REALIZADOR, mesmo que ele já tenha aparecido anteriormente [...]”. Birgit Braatz e Cristina Schumacher, Alemão urgente! para brasileiros, p.124.

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165

Os estudos sobre a norma de competência tributária, ao menos na doutrina nacional,

são infinitamente menores do que os sobre a norma de tributação. Com isso, não se criou ainda

um pensamento minimamente homogêneo, tal como no caso da estrutura da norma de

tributação. Para demonstrar isso, vamos analisar especificamente a forma como é apresentada

a hipótese da norma de competência tributária pelos nossos jurisconsultos. Antes, retomemos

algumas ideias.

Um dos pontos em que se apoia este trabalho é o da homogeneidade sintática (ver 2.5),

o que significa que a estrutura da norma é sempre (bi)bimembre (ver 2.8), sendo isso aplicável

às normas de competência (ver 2.9). Restringindo-nos à norma primária. no campo da

competência, encontramos hipótese e consequência conectadas pela imputação (ver 2.6).

Especificamente quanto à hipótese, temos a descrição de um campo amplo, que vai desde uma

conduta humana até um evento da natureza, sendo possível abarcar toda e qualquer situação,

desde que possível empiricamente. Já para a consequência, apenas pode ser seu conteúdo uma

conduta, em um dos modais, de dispor sobre outra norma jurídica. Feita essa separação, baseada

na analiticidade, não há um porquê se imiscuir temas da consequência na hipótese. Afinal, uma

questão é a condição da norma de competência; outra é a conduta prescrita, com sua forma.

Lição comezinha que não é, com a devida vênia, seguida. Vejamos!

Pôr, alterar ou excluir norma jurídica são condutas que pertencem à consequência. E,

a fortiori, a forma de pôr, alterar ou excluir a norma jurídica também se encontra na

consequência. Razões essas que tornam, para nós, inexplicável os desígnios de autores, como

GAMA491 e IVO492, para apresentarem, na hipótese da norma de competência, a conduta e seu

procedimento. Assim, sem titubear, devemos afastar da hipótese da norma de competência

tributária qualquer comportamento, ao lado de seu rito, que discipline a norma de tributação,

pois pertencem à consequência.

Outro equívoco é apresentar, na hipótese da norma de competência tributária, a pessoa

política, na condição de sujeito, linha seguida por MENDONÇA493 e por SANTI e

491 “No antecedente, o verbo descreve a conduta que precisa ser realizada para a inserção de novas normas no sistema de direito positivo”. Tácio Lacerda Gama, Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade, p.68. 492 “A norma de produção normativa em sentido amplo teria a seguinte estrutura: O antecedente: dado o fato de o sujeito competente exercer sua competência conforme o procedimento em circunstância de tempo e espaço”. Gabriel Ivo, Norma jurídica: produção e controle, p.30. 493 “[...] a estrutura da norma de competência tributária em termos gerais: Antecedente: Se for pessoa política constitucional no território brasileiro no tempo X”. Cristiane Mendonça, Competência tributária, p.69.

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PEIXOTO494, ou, com o mesmo sentido, o órgão legislativo, como quer CARVALHO495. Desde

que ATALIBA foi corrigido por CARVALHO por expor os sujeitos da norma de tributação na

hipótese (ver 4.4), pareceu-nos que não poderia mais haver dúvidas sobre a posição sintática do

sujeito da conduta na estrutura da norma. Quem tem a atuação disciplinada aparece na

consequência, ponto final. Claro que pode haver coincidência nominal entre o sujeito da

hipótese da norma de competência tributária e o sujeito da consequência, mas isso não muda o

fato de que ocupam posições sintáticas diversas. Ademais, nem sempre tem o sujeito da conduta

de estar na hipótese, como no caso de uma fictícia norma de competência tributária que permita

a instituição de tributo, com prazo certo de tempo, para custear a comemoração de datas

nacionais. Por ela, se ocorreu uma data nacional, então é permitido pôr norma de tributação.

De todo modo, mesmo que se queira frisar que apenas pessoas políticas, ou seus órgãos

legislativos, podem dispor sobre a norma de tributação, não há a necessidade de qualquer

duplicação, pois bastará assim dispor na consequência da norma de competência tributária, no

campo do sujeito da conduta. No mais, o que nos parece é que, por não haver o que fazer constar

na hipótese, já que a conduta e seu procedimento são partes da consequência, sem se dar conta

de que “toda e qualquer situação” exerce muito bem essa função sintática, duplicou-se o sujeito,

em vez de fazê-lo constar só na consequência da norma de competência tributária.

5.2 CONSEQUÊNCIA DA NORMA DE COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA

A consequência da norma de competência tributária não se diferencia de qualquer

outra norma jurídica no seu aspecto estrutural (ver 2.5 e 2.9). Com isso em mente, devemos

procurar reportar “quem”, “faz o quê”, “quando” e “onde”, para bem conhecê-la, com a única

ressalva de que o “faz o quê” deve ligar-se à disciplina de uma norma de tributação. Ao lado

disso, devemos perquirir se todos os modais deônticos —proibido, permitido e obrigado — são

aplicáveis à norma de competência tributária ou se há algum ponto que vincule apenas o modo

permitido. Perguntas que tentaremos responder abaixo.

5.2.1 Modalização da conduta devida

494 “Podem ser [a hipótese da norma de competência legislativa] de duas espécies, em que; hs (hipótese subjetiva) = estipula a necessidade de o agente ser identificado como pessoa política; e ho (hipótese objetiva) = estabelece as circunstâncias que devem ou não devem ocorrer para que surja determinada autorização”. Eurico de Santi e Daniel Peixoto, PIS e COFINS na importação, competência: entre regras e princípios, Revista dialética de direito tributário, v.121, p.37 (esclarecemos entre colchetes). 495 “Regra de estrutura: Antecedente: dado o fato da existência do órgão legislativo municipal”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.37.

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A hipótese é ligada à consequência pelo dever-ser. Entretanto, ao lado da implicação

deôntica neutra, que liga duas proposições, há a implicação deôntica modalizada que dá sentido

à conduta regrada, estabelecendo-a como obrigatória, proibida ou permitida. No entanto, nesse

caso, o deôntico, em vez de encontrar-se interproposicionalmente, localiza-se estruturalmente

no interior da consequência (ver 2.6). E se isso vale para as normas jurídicas, igualmente vale

para as normas de competência (ver 2.9). Na mesma linha de raciocínio, se é aplicável às normas

de competência, então é aplicável à norma de competência tributária, na qual, se dado um estado

de coisas, então deve ser imputada a conduta — numa das formas: obrigatória, proibida ou

permitida — em relação à norma de tributação.

A ideia geral é que as normas de competência se manifestam com qualquer modal. E

como exemplo dessa afirmação, podemos, para o caso da proibição, assinalar as cláusulas

pétreas, que nada mais são do que dispositivos que vedam a conduta de pôr normas jurídicas

com certos conteúdos, sob pena de invalidação (ver 2.10)496. Para as normas de competência

cuja conduta é modalizada como obrigatória, com fins de ilustração, podemos apontar o

“princípio da anualidade orçamentária”497, que, visto de perto, não seria outra coisa senão a

obrigação de se legislar sobre o orçamento498, sob a consequência, para o caso de assim não

agir, de, v.g., não poder encerrar a sessão legislativa. A norma de competência obriga a legislar,

a pôr a lei orçamentária, e se assim não fizer quem a isso está vinculado, deverá então receber

a consequência da norma eventual. De todo modo, lembramos que nem sempre a norma de

competência se faz acompanhar de uma invalidade, podendo, a norma eventual, trazer outras

consequências, como a responsabilização (ver 2.9). Há, por fim, as permissões, que — sem

qualquer pretensão estatística — provavelmente, são o modo mais comum de manifestação das

normas de competência, quando têm elas, por conteúdo, a regulação de norma abstrata, eventiva

e geral (ver 2.11).

Assim, todas as três opções de modos de conduta — obrigatória, proibida e

permitida — são aplicáveis às normas de competência. E se podem, todos esses modos, estar

presentes na norma de competência, por igual razão, podem fazer-se sentir na norma de

496 “Uma constituição escrita pode restringir a competência do órgão legislativo, não apenas pela especificação da forma e do modo de legislar [...] mas pela exclusão absoluta de certas matérias do âmbito da competência legislativa, impondo assim limitações substantivas”. Herbert Hart, O conceito de direito, p.77 (IV.3) 497 “O princípio significa que o orçamento deva ser atualizado todos os anos, ou seja, que para cada ano haja um orçamento”; Regis Fernandes de Oliveira e Estevão Horvath, Manual de direito financeiro, p.73. 498 “Formalmente, o orçamento não difere das demais leis. Apresenta a redação comum às leis, recebe o número de ordem na coleção destas, resulta de projeto iniciado na Câmara dos Deputados, é objeto de sanção e poderá ser vetado, como já aconteceu no Brasil”. Aliomar Baleeiro, Uma introdução à ciência das finanças, p.555.

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168

competência tributária, o que nos leva a descartar, no plano da teoria do tributo sob enfoque

normativo, que apenas a permissão seja um dos modos de conduta. Vejamos isso com mais

vagar.

5.2.1.1 Facultatividade

Este trabalho ancora-se numa divisão entre direito positivo, de um lado, e teoria do

direito, de outro. Assim, consideramos uma heresia a apresentação de um padrão encontrado

em determinadas normas jurídicas precisadas no tempo e no espaço como uma característica de

uma teoria normativa499. Daí ser possível compreender questões como a da facultatividade, pois

responder se é ela uma característica da competência tributária implica, primeiro, demarcar se

se busca um conceito do direito ou se se quer um conceito no direito (ver 3.2).

Inicialmente, antes de propriamente cuidarmos da facultatividade, devemos esclarecer

que compreendemos o modo facultativo da conduta na norma de competência como uma

permissão para se pôr norma jurídica, pois os modais deônticos, apesar de serem interdefiníveis,

são três e apenas três (ver 2.2). Assim, sob o rótulo da facultatividade, o que se estuda é a

modalização de conduta intranormativa presente na consequência da norma tributária de

competência. Ou seja, investiga-se se a conduta de pôr norma de tributação é permitida,

obrigatória ou proibida. Com isso em mente, que perquirir a facultatividade da competência

tributária é escrutinar os modos de conduta com que se assenta a norma de tributação, podemos

então retomar a questão da separação do direito positivo da teoria do direito.

No plano teórico, que toma a norma de tributação por convenção, conceito estático,

para posteriormente verificar os predicados que uma sua correspondente norma de competência

teria, conceito dinâmico, não é possível ter, por derivação dos pressupostos presentes, a

necessidade da facultatividade. Com efeito, deve-se assumir potencialmente tanto uma norma

de competência tributária que permita que se crie tributo, como também que proíba ou obrigue.

Por um lado, questões como a imunidade nada mais são do que vedações a que se estabeleça

certas normas de tributação (ver 5.2.2.1). Por outro, inteiramente possível que determinados

tributos sejam de criação obrigatória, quer diante de toda e qualquer situação, quer diante de

certas condições específicas. Para o primeiro caso, das condições inominadas na hipótese, o que

envolve toda e qualquer situação, podemos dar como exemplo algo como um “princípio da

499 “Por mais regular que se admita ter sido até agora o curso das coisas, isso, isoladamente, sem algum novo argumento ou inferência, não prova que, no futuro, ele continuará a sê-lo”. David Hume, Investigações sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, p.68 (I.4).

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169

gestão fiscal responsável”500. Para o segundo caso, da necessidade de se criar um tributo

mediante a verificação de situações nominadas, podemos pensar num gatilho em relação à

dívida pública. Assim, sempre que for ultrapassada uma determinada relação PIB / dívida

pública, então deverá ser obrigatório à autoridade competente instituir certo tributo. Com isso,

damos por demonstrado que, para uma teoria normativa do tributo, além da permissão, também

é possível a existência da proibição e da obrigação de pôr norma de tributação. Sendo assim, a

facultatividade não pode ser uma característica da norma de competência tributária.

Já para o caso de um específico ordenamento jurídico, com suas normas precisadas no

tempo e no espaço, nossa resposta à questão da facultatividade, como característica da

competência tributária, deve ser contingente. Isso porque, nesse plano, primeiramente devemos

demarcar, no ordenamento dado, todas as normas de competência tributária, para só então

verificar se todas elas contêm como modal deôntico intraproposicional apenas permissões de

enunciar normas de tributação. E se, como resultado desse processo, obtivermos um sim, então

será correto aludir à facultatividade como característica da competência tributária. Entretanto,

na linha do tudo ou nada, se houver uma única norma de competência tributária com outro

modal que não a permissão, então a facultatividade não se fará presente501. Ocorre que é

possível, em vez de um tudo ou nada, fazer-se referência à preponderância, o que permitiria

manter a facultatividade como característica da competência tributária de determinado

ordenamento jurídico, mesmo que nem todas as normas de competência tributária sejam

construídas por permissões502.

500 COSTA, ao defender a constitucionalidade do art. 11 da LRF (LC 101/2001) — artigo que dispõe sobre a obrigatoriedade de “instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente da Federação” — parece-nos que acaba jogando por terra a possibilidade de ser facultativa a competência tributária no Brasil, principalmente quando afirma que “[...] a ideia de responsabilidade afina-se com conceitos de Estado de Direito, e a gestão fiscal responsável (art. 1º, §1º) implica que o administrador institua e arrecade os tributos de sua competência para a obtenção dos recursos necessários à satisfação das necessidades coletivas. Os princípios constitucionais da moralidade administrativa e da eficiência (art. 37, caput, CR) preconizam tal responsabilidade [...]. Portanto, a facultatividade da competência tributária já está restringida pela responsabilidade imposta ao administrador no próprio plano constitucional, sendo que o art. 11 veio apenas explicitá-lo [...]”. Regina Helena Costa, Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional, p.43-44. 501 “Dizemos que uma teoria está falseada somente quando dispomos de enunciados básicos aceitos que a contradigam”. Karl Popper, A lógica da pesquisa científica, p.91 (IV.22). Porém, um único enunciado básico é suficiente para falsear uma teoria, pois “[b]asta comprovar que, aqui e agora, há um cisne preto para falsear o enunciado de que todos os cines são brancos”. José Souto Maior Borges, Obrigação tributária (uma introdução metodológica), p.75. 502 Tomemos, no caso brasileiro, o ICMS. Ao que parece, é tributo de instituição obrigatória: “Trata-se de uma outorga de competência complexa [o ICMS], onde a faculdade para permitir ou não a instituição da norma tributária é dada ao CONFAZ e não aos Estados. Para esses, a competência é condicional, pois, na ausência de autorização do órgão competente, positivada num Convênio, só lhe resta instituir o tributo obrigatoriamente”. Tácio Gama, Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade, p.280 (esclarecemos entre parênteses). Todavia, assumindo que é obrigatório instituir o ICMS, qual seria a norma eventual em caso de descumprimento da norma primária de competência (ver 2.10)? As respostas são várias, e vão desde o judiciário expedir uma ordem ao legislativo para que crie o tributo, até a situação dele próprio, o judiciário, exercer a

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170

5.2.2 Sentido da conduta

A homogeneidade sintática das normas jurídicas é um ponto de apoio deste trabalho

(ver 2.5). Em razão disso, uma classificação das normas jurídicas de caráter sintático tem

alcance restrito, já que, por esse prisma, todas as normas são iguais503. Tendo isso em conta, a

distinção das normas como de conduta e de competência teve como espeque a semântica, mais

especificamente, um particular conteúdo da consequência da norma de competência primária

(ver 2.9). Assim, sabendo que toda consequência normativa traz um comportamento humano

(sentido lato), o que caracteriza a norma de competência é a conduta que diga respeito ao caráter

dinâmico do ordenamento jurídico. Para tanto, podemos apresentar, como verbos que

expressam essa conduta, “pôr”, “alterar” ou “excluir”, sendo seu complemento a expressão

“norma jurídica”. Agora, se estamos conceituando tributo, em seu aspecto dinâmico, a norma

de competência tributária regula a conduta humana, em um dos modais (ver 5.2.1), quanto à

dinâmica da norma de tributação. Assim, é neste tópico, sentido da conduta na norma de

competência tributária, que se deve estudar a questão do procedimento para dispor sobre a

norma de tributação, bem como os pontos que envolvem propriamente o conteúdo da conduta,

qual seja, a substância predefinida da norma de tributação a que é vinculado a autoridade

normativa.

5.2.2.1 Competência e imunidade

competência em caráter substitutivo. No entanto, nenhuma dessas conjunturas é aceita por CARRAZZA, que encontra, como a única solução possível, aquela em “[...] que as demais pessoas políticas competentes para criar este imposto [ICMS] podem bater às portas do Poder Judiciário [...] e, lá, postular o ressarcimento dos prejuízos (sofridos ou iminentes) causados por tal omissão”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.587. De toda sorte, independentemente de quais são as consequências por sua não instituição, o ICMS se lido como uma exceção à regra da facultatividade, obriga-nos a tomar uma entre duas posições. A primeira, seria aceitar que o ordenamento jurídico brasileiro não é dotado da facultatividade como característica da competência tributária, como quer CARVALHO, porque o caso do ICMS “[...] permite entrever a facultatividade do exercício de competência como algo que não está presente em todos os casos, não podendo, portanto, consubstanciar o caráter necessário que acompanha a identificação dos atributos”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.238-239. A segunda, por sua vez, seria manter a facultatividade, e valer-se do brocardo “a exceção confirma a regra”, na linha de CARRAZZA: “[...] as pessoas políticas não estão obrigadas a exercitar suas competências tributárias. Pensamos que a única exceção a esta facultatividade [...] é a que toca ao imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS) [...]”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.586. 503 A distinção entre norma de conduta e norma de competência é uma categorização de cunho semântico. Entretanto, também adotamos neste trabalho uma classificação sintática das normas jurídicas quando seccionamos a norma jurídica completa em norma primária e norma eventual (ver 2.8).

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171

O vínculo de substância entre a norma fundante e a norma fundada pode ser feito de

modo positivo ou negativo. Inicialmente, tomemos “p” e “~p”, respectivamente, como formas

positiva e negativa do conteúdo da norma que será posta, limitemo-nos ao verbo “pôr”, com

vistas à simplificação, e relembremos os modos de condutas [proibido (V), obrigatório (O) e

permitido (P)]. Ato seguinte, combinemos as condutas e os modais, ao lado das regras de

interdefinibilidade dos modais, para concluir que permitir a conduta de pôr a norma de conteúdo

“p” equivale a (≡) não obrigar “~p”, como ainda equivale a não proibir “p”504. Há, portanto,

como se nota, uma relação de interdependência entre o conteúdo, que pode ser positivo ou

negativo, e o modal que se utiliza, podendo uma mesma norma ser expressa de mais de uma

forma505. Entretanto, com fins de padronização, vamos expressar toda a conduta de pôr norma

na forma positiva “p”, deixando a variação para o modal.

Com isto fixado, podemos, então, analisar se há a necessidade de uma separação entre

competência tributária e imunidade506. De forma geral, mesmo que ninguém negue a existência

de uma proximidade, a competência tributária e a imunidade são apresentadas como questões

não coincidentes, na linha da regra e da exceção à regra507, do poder e da limitação508. Assim,

por um lado, se se obriga ou, o mais comum, se se permite pôr a norma de tributação, então se

trara de competência tributária; por outro lado, se se proíbe pôr a norma de tributação, então é

caso de imunidade, com a doutrina expondo a questão como caso de impossibilidade de

tributação ou, ainda, de “intributabilidade”509. Não podemos comungar desse entendimento, já

504 “O(p) ≡ V(~p) ≡ ~P(~p) / V(p) ≡ O(~p) ≡ ~P(p) / P(p) ≡ ~O(~p) ≡ ~V(p) / P(~p) ≡ ~O(p) ≡ ~V(~p)”. Fábio Ulhoa Coelho, Roteiro de lógica jurídica, p.57. 505 ÁVILA, v.g., em vez de apontar as normas de competência tributária como permissões, constrói-as como obrigações: “As regras previstas pela Constituição de 1988 devem ser qualificadas como regras que estabelecem proibições [...], na medida em que, ao preverem [...] determinados aspectos das hipóteses de incidência de as consequências [...], proíbem que o destinatário exerça a competência relativamente a fatos geradores, bases de cálculo e sujeitos diversos daqueles previstos”. Humberto Ávila, Competência tributárias: um ensaio sobre a sua compatibilidade com as noções de tipo e conceito, p.34. 506 Nosso estudo diz respeito à norma e nada temos a dizer sobre liberdades preexistentes. Sobre isso, deixamos a palavra com TORRES: “As imunidades consistem na intributabilidade (sic) absoluta ditada pelas liberdades preexistentes. [...]. Está inteiramente superada, no constitucionalismo contemporâneo, salvo no Brasil, a orientação positivista segundo a qual a imunidade seria proibição imanente à própria Constituição ou autolimitação do poder tributário”. Ricardo Lobo Torres, Curso de direito financeiro e tributário, p.65. 507 “[...] a regra de imunidade estabelece exceção”. Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, p.246. 508 Nesse sentido, “Aliomar Baleeiro, autor clássico das imunidades, define-as, por seus efeitos, como limitações constitucionais ao poder de tributar”. Misabel Derzi, Nota, in: Aliomar Baleeiro, Limitações constitucionais ao poder de tributar, p.226. No mesmo sentido, MARTINS, ao expor que a imunidade é “[...] limitação à competência tributária por determinação exclusiva da Constituição [...]”. Ives Gandra Martins, Sistema tributário na Constituição de 1988, p.146. 509 COSTA afirma que “[...] a imunidade é a impossibilidade de tributação — ou a intributabilidade — de pessoas, bens, e situações, resultante da vontade constitucional”. Regina Helena Costa, Imunidades tributárias: teoria e análise de jurisprudência do STF, p.51. Com a devida vênia, não podemos aceitar tal entendimento. Primeiro porque não é impossível tributar aquilo que é contemplado pela imunidade, e uma rápida pesquisa pela jurisprudência do STF está aí para confirmar a alegação. O que temos é uma proibição sob consequências em caso de descumprimento. Em segundo lugar, há ainda a questão de a palavra “intributabilidade” não constar do VOLP

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que não entendemos que as coisas se possam dar a conta-gotas, pois a norma jurídica é a

interpretação dada ao fim de um processo, e não uma justaposição de interpretações

fracionadas510.

No geral, há um gênero e a exceção do gênero, sendo a norma de competência

tributária o resultado da interpretação de ambos os casos. Agora, aqui, com fins de síntese,

vamos tomar apenas os casos em que a imunidade é total, de gênero. Com isso, podemos então

conceituar a imunidade como uma forma de apresentar a competência tributária por meio do

modal proibido511. Em outras palavras, a imunidade é a norma de competência que, sob certas

condições, podendo ser toda e qualquer, proíbe a enunciação da norma de tributação512.

Ademais, como é a imunidade uma norma de competência, pode igualmente ser

classificada como nominada ou inominada, a depender da hipótese (ver 5.1). “Toda e qualquer

situação, então deve ser proibido instituir tributo” é uma forma inominada de apresentar a

norma de competência, construída como uma imunidade, por utilizar o modal proibido.

Poderíamos ainda arquitetar, na forma nominada, uma norma de competência de cunho

proibitivo, uma imunidade, exemplificando com “se houver estado de sítio, então deve ser

proibido pôr norma de tributação”.

5.2.2.2 Enumerabilidade e competência residual

— consultamos, da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5.ed., de 2009. Indo além, a imunidade é a proibição de pôr norma de tributação sobre qualquer coisa que assim discipline a norma de competência e não somente sobre pessoas, bens e situações, a não ser que se queira, com essas especificações, englobar todas as possibilidades. Por fim, totalmente dispensável a referência a uma vontade constitucional, pois bastaria dizer que no direito brasileiro a imunidade sempre decorre do texto constitucional. 510 “A segunda norma, através da qual o domínio de validade da primeira é limitado, é uma norma não-autônoma. Aquela apenas faz sentido em combinação com esta. Ambas formam uma unidade”. Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.62 (I.6.e). 511 A norma de competência eventual pode ligar ao descumprimento da norma de competência primária quer uma consequência contra o sujeito que a transgrediu, quer a própria invalidade da norma posta, ou ainda ambas (ver 2.9), mas isso em nada muda a forma como a norma primária disciplina a produção normativa. Sendo assim, não podemos concordar com FOLLADOR, que restringe a imunidade apenas aos casos em que a consequência seja a nulidade da norma de tributação: “[...] distinção entre a ‘proibição do exercício da competência’ e as imunidades. Quando o exercício da competência é proibido, o sujeito competente pode [...] atuar validamente, isto é, de praticar um ato ‘com sentido’ no sistema normativo de referência; apenas ‘não deve’ fazê-lo; onde existe uma imunidade, isto é, uma área de incompetência, o agente sequer tem condições de atuar validamente. Seu agir será nulo [...]”. Guilherme Follador, As normas de competência tributária, p.185. 512 CARRAZA e CARVALHO realizam uma associação entre a imunidade e a incompetência: “Sempre que a Constituição estabelece uma imunidade, está, em última análise, indicando a incompetência das pessoas políticas para legislarem acerca daquele fato determinado”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.627. “[...] o conceito de imunidade [...] como a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientes”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.195. Temos simpatia pela ideia, desde que fique claro que a norma de incompetência é uma espécie do gênero norma de competência, construído com o modo proibido, isso quando não é um fragmento excludente em norma de competência formada de permissão ou obrigação.

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Quem exerce a competência deve respeitar, a depender do direito positivo, um certo

conteúdo para a norma jurídica fundada na sobrenorma, o que nos levaria a discutir o grau de

liberdade da autoridade para o fabrico das normas de tributação513. No entanto, o que nos

interessa aqui não é propriamente o grau de predeterminação da norma de tributação, a margem

de atuação da autoridade competente, pois disso já tratamos acima (ver 3.2 e 3.3), mas sim saber

se apenas os tributos arrolados em lista são aqueles que poderão ser instituídos. Nessa linha,

por um lado, a criação de tributo somente se pode dar com o conteúdo determinado pela norma

de competência, por outro lado, qualquer norma de tributação com substrato diverso seria

proibida. Situação que possui como desenlace a enumerabilidade, em oposição à forma livre,

como característica da competência tributária.

Entretanto, ao lado das duas situações extremas — criação de toda e qualquer norma

de tributação, sem previsão de conteúdo, e instituição apenas das exaustivamente determinadas

—, há ainda a questão da competência residual514. Nesse caso, estabelece-se previamente o

conteúdo das normas de tributação que podem ser criadas, mas deixa-se uma válvula de escape

para a atuação do sujeito da norma de competência tributária. Assim, para alguns casos, com

certas limitações, geralmente exigências mais penosas do que as feitas para a criação normativa

513 PIZOLIO, para os casos em que a norma de competência tributária restringe a atuação da autoridade que pode dispor sobre a norma de tributação, por meio de conceitos, usa a clássica expressão “limitação constitucional ao poder de tributar”: “Considerando o conceito constitucional como elemento componente da própria outorga de competência, podemos também afirmar sua natureza jurídica que [...] é de limitação constitucional ao poder de tributar [...]”. Reinaldo Pizolio, Competência tributária e conceitos constitucionais, p.193. 514 Denominar de residual a competência tributária para além das normas de tributação enumeradas, parece-nos a forma clássica. Como exemplo desse uso tradicional, podemos citar DÓRIA: “[...] não esgotada a capacidade contributiva diferencial do país pelo catálogo dos impostos privativos, outros poderão ser criados sobre tal campo residual [...]. Antônio Sampaio Dória, Discriminação de renda tributárias, p. 20. Ou, já sob a Constituição de 1988, MACHADO: “A competência para a instituição de impostos não especificamente previsto diz-se residual”. Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, p.256. No entanto, não podemos olvidar que outro grande tributarista da nossa história, SOUSA, analisando a Constituição de 1946, preferiu utilizar, em vez de competência residual, o termo concorrente: “O art. 21 da Constituição diz que a União e os Estados poderão criar outros impostos, além dos que são atribuídos privativamente pelos arts. 15 e 19 respectivamente [...]: não diz quais sejam esses impostos, que serão portanto quaisquer outros que possam ser imaginados, desde que sejam diferentes dos privativos; chamam-se impostos concorrentes ou de competência concorrente”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p,182-183. Mas devemos considerar que, quando SOUSA abandona o emprego do termo “residual”, fá-lo tendo em conta que a possibilidade de instituir tributos não previstos de forma enumerativa deveria ser de todos os entes federativos, pois, para ele, “[...] com a definição dos três terrenos privativos, o constituinte esgotou a lista dos impostos que teve razões para destinar especificamente à União, ou ao Estado, ou ao Município. Feito isto, restavam apenas aquêles impostos — quais sejam êles — em que o constituinte não enxergou características que os fizessem tipicamente federais, ou estaduais, ou municipais. E a êsses se reconheceu um caráter nacional: já que não devem pertencer a alguém, justo é que pertençam a todos. Por isso propus o têrmo ‘concorrente’ em lugar do amorfo ‘residual’. Não se trata de um resíduo no sentido de ‘resto’, de uma res nullius que não pertence a ninguém e que por isso qualquer um pode apropriar, mas de um saldo que pertence a todos”. Rubens Gomes de Sousa, O sistema tributário brasileiro, Revista de direito administrativo, v.72, p.7.

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dos casos expressamente arrolados, o que nos permite chamá-las de pedágio, seria então

possível a criação de tributos não previstos no rol positivo das competências tributárias515.

Desse modo, como ilustração, podemos expor que, como regra geral, a norma de

competência apresentaria uma hipótese com toda e qualquer situação, inominada, implicando

uma consequência de conduta, segundo um procedimento padrão, de pôr apenas, de forma

exaustiva, as normas de tributação, conteúdo positivo, “nt1” e “nt2”; entretanto, haveria outra

norma de competência, a residual, na qual, dada certa situação específica, nominada, prevista

na hipótese, então também poderia ser posta, por um procedimento especial, mais complexo, a

norma de tributação “ntx”, sem a determinação prévia de conteúdo, a não ser alguma restrição

negativa516. Pelo exemplo, haveria, portanto, uma competência tributária enumerada, ao lado

de uma competência residual, com exercício mais brando, mas dentro de algumas regras.

5.2.2.3 Inalterabilidade

Da competência tributária, diz-se que é inalterável. Entretanto, faz-se necessário

especificar em que seria inalterável a competência tributária, pois há aqui a possibilidade de

dupla interpretação. Com efeito, tanto pode ser inalterável a norma de competência em si, como

também pode o termo estar sendo aplicável àquilo que se regula517. Ou, dito de outro modo,

quando expomos que a competência é inalterável, podemos estar tratando quer de uma alteração

515 No direito tributário brasileiro, é permitido à União, por meio de lei complementar, a criação de impostos que não constem no rol de sua competência tributária (art. 153, I a VII da CF/88), desde que eles sejam não cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados na Constituição (art. 154, I, da CF/88), podendo o mesmo ser dito das contribuições sociais (art. 195, § 4º, da CF/88). Já para as taxas e contribuições de melhoria, lembra-nos VIEIRA que a competência residual pertence aos Estados e ao Distrito Federal: “É que, como nesse caso, a competência tributária é determinada pela competência administrativa, e como a competência administrativa residual pertence aos Estados e ao Distrito Federal, acaba também por pertencer-lhes, por via de consequência, a competência tributária residual”. [...]”. José Roberto Vieira, Competências tributárias no Brasil: mitos e mentiras, in: Paulo de Barros Carvalho (coord.), 30 anos da Constituição Federal e o sistema tributário brasileiro, p.633. Raciocínio que já havia sido antes desenvolvido por CARRAZZA: “[...] nos tributos vinculados, a competência residual pertence aos Estados e ao Distrito Federal, uma vez que eles é que, em matéria administrativa, podem fazer tudo o que não foi, neste setor, expressamente deferido pela Carta Fundamental à União e aos Municípios”. Roque Antonio Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.565. 516 Havendo enumeração em norma de competência tributária, damos às normas de tributação números, por isso usamos “nt1” e “nt2” no exemplo acima. Agora, havendo previsão, mas sem especificação do conteúdo, como norma residual de tributação, então a simbolizamos por “ntx”. 517 Visando a afastar a ambiguidade, sugere VIEIRA que, em vez de “inalterabilidade”, usemos o termo “inextensibilidade”: “Como nossa manutenção dessa característica se faz da perspectiva da pessoa política destinatária da competência, e tão só no sentido de obstáculo a que ela seja ampliada, alargada ou dilatada, parece-nos mais adequado substituir a tradicional — mas pouco exata — referência à “inalterabilidade”, pela menção mais precisa da característica da inextensibilidade”. José Roberto Vieira, Competências tributárias no Brasil: mitos e mentiras, In: Paulo de Barros Carvalho, 30 anos da Constituição Federal e o sistema tributário brasileiro, p.616.

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175

na própria norma de competência, como também podemos estar a cuidar das dimensões, limites,

moldura, da norma de tributação que pode ser posta em razão da norma de competência.

A norma de competência tributária estabelece a conduta de um sujeito em relação a

uma norma de tributação, a qual, a depender do direito positivo, estará mais ou menos

disciplinada (ver 3.3), o quê, por esse prisma, implica, quanto o sujeito vai exercer sua

competência normativa, já se encontrar limitado em sua atuação, não podendo ultrapassar as

bordas da moldura interpretativa, sob pena de invalidade da norma posta (ver 2.10). Sendo

assim, sua situação é de vínculo com a norma de competência, tendo habilitação para pôr norma

de tributação, com fundamento em norma fundante, norma de competência tributária, nos

limites dados, mediante procedimento específico, mas não detém habilitação para alterar a

própria norma fundante. Nisso reside uma das ideias de inalterabilidade.

Um caso diferente é o da inalterabilidade da própria norma de competência. A

depender do direito positivo, pode ou não tal norma ser alterada. E é aqui que reside o segundo

ponto da inalterabilidade: se há ou não possibilidade de alterar a norma de competência

tributária. Estamos a tratar, portanto, não da inalterabilidade da competência tributária enquanto

exercida, mas da ausência de competência para alterar a própria norma de competência

tributária. Questão contingente, a depender do direito positivo, que pode permitir qualquer

alteração, torná-la mais custosa do que para outras situações ou simplesmente vedá-la518.

Assim, caso a norma de competência tributária em sentido estrito seja protegida de qualquer

modificação por meio de reforma — o que somente pode ser reconhecido pela observação de

um específico ordenamento jurídico —, então a inalterabilidade seria um limite não apenas dos

contornos da norma que pode vir a ser posta, como da própria norma que dá esses contornos.

Em curta síntese, sob o signo da inalterabilidade da competência tributária, albergam-

se duas realidades: a primeira, um sujeito pode dispor sobre norma de conduta apenas dentro

dos limites dados pela norma de competência tributária, do contrário, deve ser a invalidação da

norma produzida; a outra, a norma de competência tributária que regula a criação da norma de

518 “El poder de reforma constitucional es — como todo poder constituido — un poder limitado, circunscrito por las normas que lo regulan”. Riccardo Guastini, Interpretar y argumentar, p.319-320 (IV.III.1). Para o caso específico brasileiro, mais do que apropriadas as palavras de VIEIRA: “Quando a Lei Maior brasileira opta pela constitucionalização minuciosa das normas primeiras do respectivo sistema jurídico-tributário, está a perseguir a Estabilidade Jurídica, elemento essencial da ideia de Certeza do Direito e, por via de consequência, da noção de Segurança Jurídica. [...]. Não significa isso que a opção constitucional tributária brasileira implique impossibilidade de mutação do seu sistema normativo, mas que as alterações são mais lentas, de modo a prestigiar a Estabilidade Jurídica e a Segurança do Direito”. José Roberto Vieira, O direito constitucional tributário comparado numa visão copernicana: uma homenagem ao Prof. George Gomm, in: Michele Heloise Akel, Fabio Artigas Grillo, Fabriccio Petreli Toroso e Matheus Monteiro Morosi (coord.), Direito tributário paranaense, v.II, p.37-38.

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tributação não pode ser alterada519. Questões que se situam em planos diversos na hierarquia

normativa.

Por fim, fazemos uma observação dirigida a todos, e não só àqueles que fazem uma

leitura muito rígida do que comumente se denomina de cláusulas pétreas. Elas não foram

realmente gravadas na pedra, não são leis divinas520, e por mais que se tenha uma admiração

por algum texto constitucional, ele é uma criação do homem, havendo muito de distópico no

querer que ele valha para todo o sempre521. De todo modo, Ulisses, se muito pressionado, pode

encontrar forças para se desamarrar522-523.

519 VIEIRA, ao comentar a proposta de emenda constitucional nº 175/1995 — que, entre outras coisas, pretendia a substituição do IPI por um ICMS federal — alertou sobre os riscos de inconstitucionalidade que alterações de normas de competência constitucionais podem acometer: “Confiamos [...] na condenação dos projetos oficiais de Reforma Constitucional Tributária [...], sob pena de, uma vez aprovados, vermos ofendidos o Princípio da Federação, magoado o Princípio da Autonomia dos Municípios, golpeado o Princípio da Isonomia das Pessoas Constitucionais, contundido o núcleo intangível da Carta Magna e subvertido todo o nosso Sistema Jurídico Constitucional!”. José Roberto Vieira, Imposto sobre produtos industrializados: atualidade, teoria e prática, in: Paulo de Barros Carvalho (presid.), Justiça tributária: direitos do fisco e garantias dos contribuintes nos atos da administração e no processo tributário, p.530-531. E, em outro texto, reforça o preclaro mestre o significado da inconstitucionalidade: “[...] daquele que constitui o demônio público da pior espécie, o da inconstitucionalidade”. José Roberto Vieira, Crédito presumido do IPI na Industrialização por encomenda: um estado “maquiaveliano” e talvez “maquiavélico”, in: Paulo de Barros Carvalho (presid.), Sistema tributário brasileiro e crise atual, p.508. 520 “Iahweh disse a Moisés: ‘Sobe a mim na montanha, e fica lá; dar-te-ei tábuas de pedra — a lei e o mandamento — que escrevi para ensinares a eles’”. Êxodo 24:12, Bíblia de Jerusalém, p.137. 521 “Nenhuma ilusão nutriam [...] os constituintes de 1946, que buscaram o melhor dentro duma fórmula de transação entre os vários interêsses e aspirações em conflito. Êles sabiam lucidamente ser orgulho vão ou veleidade ingênua supor que pudessem acorrentar as gerações futuras”. Aliomar Baleeiro, Estados, discriminações de rendas e reforma constitucional, Revista de direito administrativo, v.30, p.25. 522 Em sua volta para casa, após a guerra de Tróia, em sua Odisseia, Ulisses, ao passar pela costa da Ilha das Sereias, ordenou que fosse amarrado ao mastro de seu navio, “[...] dando instruções a seus homens para não libertá-lo, fosse o que fosse que dissesse ou fizesse [...]”. Thomas Bulfinch, O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis, p.289 (XXIX). Baseado nessa grande história, ELSTER conta-nos em que casos Ulisses (o legislador), mesmo imaginado bem amarrado, pode libertar-se: “[...] as tentativas de restringir a sociedade com muita força poderia surtir o efeito oposto, por dois motivos. Primeiro, os cidadãos poderiam reagir à própria idéia de serem limitados. [...]. Em segundo lugar, os cidadãos poderiam achar que cláusulas muito rígidas para a aprovação de emendas são um obstáculo intolerável à mudança”. Jon Elster, Ulisses liberto: estudo sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições, p.127-128 (2.2). 523 No direito brasileiro atual, toda a discussão gira em torno da possibilidade de uma reforma que unifique uma série de tributos que pertencem a entes federados diversos, sob um único rótulo. Ou seja, as normas de competência seriam alteradas. No entanto, isso seria possível diante do art. 60, § 4º, I, da CF/88, que protege a forma federativa? CARRAZZA, com sua visão de que da Constituição é possível apenas uma única interpretação, diz-nos que não: “Esta ‘cláusula pétrea’ [art. 60, § 4º, I, da CF/88] não pode ser violada, nem por via direta, nem por via oblíqua, o que ocorreria, por hipótese, se se retirasse, mediante emenda constitucional, a competência tributárias dos Estados”. Roque Carrazza, A competência tributária dos estados-membros, diante da nova Constituição Federal, Revista de direito tributário, n.45, p.57 (esclarecemos entre colchetes). Na mesma linha, MELO aponta que “[a] inalterabilidade é contemplada como elemento substancial da competência tributária, porque acode ao irrestrito prestígio do princípio federativo, não podendo ser modificada a matéria tributável”. José Eduardo Soares de Melo, Curso de direito tributário, p.114. No entanto, podemos encontram posições mais atenuadas na nossa doutrina, como vemos em COSTA: “[...] quanto à inalterabilidade da competência tributária, somente é verdadeiro afirmá-lo se considerarmos a impossibilidade de modificação de seus contornos pelo próprio legislador infraconstitucional, porquanto por meio de emenda, ainda que existam sérias limitações (art. 60, § 4º, CR), é possível realizar alterações”. Regina Helena Costa, Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional, p.44. De toda sorte, parece-nos interessante o entendimento de GAMA, para quem basta a autonomia financeira para se resguardar a federação, nada impedindo “[...] que seja aumentado o grau de concentração da

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5.2.2.4 Procedimento

Sendo permitido ou obrigado pôr norma de tributação, então pode muito bem ser que

o direito positivo crie um determinado procedimento para tanto. Assim, não bastaria mais só a

conduta resultar num texto, que será interpretado como norma jurídica, mas também deve ser

seguido um rito, um modo específico de agir. Não se tem, por essa via, em conta mais somente

o fim, o lançar linhas, o fazer surgir enunciados, mas passa a importar o meio, o como isso é

feito524. Logo, em razão de que a conduta de assentar norma jurídica pode ser prescrita por meio

de procedimentos, vemos como imperiosas algumas observações.

Primeiramente calha muito bem separar o procedimento necessário para pôr a norma

jurídica de conduta das condições previstas na hipótese da norma de competência tributária em

sentido estrito. Com efeito, uma coisa é o procedimento por meio do qual se produzirá a norma

de tributação, outra, bem diferente, é saber quais são as condições que possibilitam o exercício

da conduta prescrita na consequência da norma tributária de competência. Com essas bases,

fácil entender que, v.g., a necessidade de urgência e relevância é algo que deve estar presente

para que se verifique a permissão de pôr norma jurídica por meio de texto conhecido por

“medida provisória”525. Agora, coisa totalmente distinta é como o chefe do executivo deve agir,

procedimento, para pôr o texto do qual, por interpretação, obter-se-á norma jurídica526.

Desse modo, deve ter-se em mente que o procedimento diz respeito à forma de

confecção do texto jurídico, ao modo de se conduzir do sujeito para se obter o fim, e, portanto,

encontra-se na consequência da norma de competência; já a condição, que pode inclusive ser

arrecadação de tributos à mão de um ente federativo, se for assegurada a repartição de receitas tributárias proporcionais [...]”. Tácio Lacerda Gama, Federação, autonomia financeira e competência tributária: é possível uma federação sem repartição de competência tributária? in: Paulo de Barros Carvalho (presid.), Sistema tributário brasileiro e as relações internacionais, p.1158. 524 Neste sentido, SANTI e PEIXOTO: “cp (critério procedimental) = previsão do conjunto de fatos jurídicos que deverão se dar de modo concomitante ou sucessivo e que têm por efeito o surgimento de determinado produto, no caso, novos enunciados prescritivos que passarão a compor o plano de expressão do ordenamento jurídico”. Eurico de Santi e Daniel Peixoto, PIS e COFINS na importação, competência: entre regras e princípios, Revista dialética de direito tributário, n.121, p.37. 525 “Medida provisória” é expressão ambígua. Tanto é medida provisória a norma constitucional que a autoriza como é medida provisória a norma posta pelo chefe do executivo. De igual modo, é medida provisória o enunciado, o suporte físico, que será interpretado. CLÈVE faz interessante comparação da medida provisória com o decreto. Por um lado, a norma regulamento é criado por decreto; por outro, a norma medida provisória é instituída por medida provisória: “[...] com a Constituição de 1988, o Presidente da República edita medidas provisórias veiculadas por um instrumento que assume idêntica denominação. O mesmo não ocorre com o regulamento, pois veiculado por meio de decretos”. Clèmerson Merlin Cléve, Medidas provisórias, p.62. 526 Em clássica obra, ATALIBA, cuidando do procedimento de produção do decreto-lei, perante a Constituição de 1967, realiza manifestação que, a nosso ver, aplica-se às medidas provisórias: “Ato privativo do Presidente da República, [o decreto-lei] surge por iniciativa sua, independentemente de qualquer provocação ou processo”. Geraldo Ataliba, O decreto-lei na Constituição de 1967, p.26.

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toda e qualquer situação, está também nessa mesma norma, só que na hipótese, o que

demonstra, per se, a necessidade de distinção. Assim, detrás de expressões como “lei ordinária”,

“lei complementar”, “emenda constitucional”, há não só um produto, texto a ser interpretado,

como também há um processo, um meio.

Por fim, para bem explanar o tema, podemos apontar o caso do empréstimo

compulsório no direito brasileiro, lendo-o como uma norma de competência tributária527. Na

hipótese, encontramos ou a existência de despesas extraordinárias ou a urgência em

investimento público de relevante interesse nacional; já na consequência, há a permissão de

conduta de pôr norma de tributação, que também recebe o nome de empréstimo compulsório,

ou seja, de criar tributo, só que isso somente por meio de lei complementar, o que implica um

procedimento, um processo legislativo, de votação favorável absoluta do parlamento528. Fica

evidente que o procedimento, no caso, lei complementar, que se estrutura na consequência

normativa, em nada se conecta com a necessidade expressa pela hipótese de ocorrência de

situações excepcionais.

5.2.3 Sujeito

A conduta prescrita pela norma de competência tributária diz respeito à norma de

tributação, em um dos modos deônticos, por meio dos verbos “pôr”, “modificar” ou “excluir”.

Ocorre que tão importante quanto saber “o quê” é permitido, proibido ou obrigado, é conhecer

o destinatário da norma, “quem”. De pronto, deixamos claro que não debandaremos do nosso

posto e ingressaremos em questões políticas, pois, se isso fizéssemos, poderíamos acabar

dizendo que o único sujeito a quem reconhecemos legitimidade para pôr a norma de tributação

seria um órgão específico do Estado, que é comumente chamado de “poder legislativo”529.

Afinal, não são estranhos desejos de que haja uma relação de legitimidade entre aquele sujeito

527 CF/88: Art. 148. A União, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios: I - para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência; II - no caso de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse nacional, observado o disposto no art. 150, III, “b”. 528 CF/88: Art. 69. As leis complementares serão aprovadas por maioria absoluta. 529 “[...] é no procedimento legislativo, nos atos da produção legislativa que, indiscutivelmente, se surpreende a realização por excelência tanto da representatividade republicana quanto da participação popular democrática”. José Roberto Vieira, Legalidade tributária e medida provisória: mel e veneno, in: Octavio Campos Fischer (coord.), Tributos e direitos fundamentais, p.182.

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que deve levar dinheiro ao Estado e o sujeito que põe a norma de tributação, como mostram as

muitas revoluções que ocorreram por causa da tributação530.

Entretanto, não há nada que vincule, de um ponto de vista estritamente teórico, um

ordenamento jurídico a não eleger, para o trato da norma de tributação, outro sujeito que não o

parlamento: questão inteiramente de direito positivo531. E — para ficarmos apenas nos casos

em que os sujeitos da norma de competência tributária estejam restritos à clássica tripartição

dos “poderes”, mas nada impede, inclusive, que sejam outros — poderíamos até fazer momice

para uma norma de competência tributária que permitisse ao judiciário instituir tributo com fins

de custear suas atividades, mas não poderíamos deixar de reconhecer como jurídica tal norma.

De igual modo, a ojeriza contra uma norma de competência tributária que permitisse ao

executivo enunciar uma norma de tributação não seria, teoricamente, uma razão de invalidade,

quer da norma de competência tributária, quer da norma de tributação. Ademais, quanto aos

“poderes”, aceita-se que a questão é de preponderância, não de exclusividade532. De toda sorte,

não há um direito natural a que somente o legislativo possa assentar a norma de tributação533.

Que essa seria uma boa norma de competência tributária, concordamos plenamente, mas disso

não decorre que o direito positivo não possa escolher de modo diverso. Um começo para que

tenhamos leis justas é compreendendo que elas são criações humanas e não revelações do

divino.

5.2.3.1 Privatividade

530 Podemos dar um colorido à exposição, pinçando dois momentos da história dos Estados Unidos. Em ambos, o cerne é a tributação sem representatividade. O primeiro trata da independência americana: “[...] em 1767, sob o comando de Charles Townshend, ministro da Economia, o Parlamento impôs novas taxas sobre vidro, tinta, papel e chá importados para as colônias. [...]. Em fevereiro de 1768, a Câmara dos Representantes de Massachusetts enviou às outras assembleias legislativas colônias uma ‘circular’ que acusava as tarifas Townshend de violação inconstitucional do princípio de não haver taxação sem representatividade”. Gordon Wood, A revolução americana, p.54-57 (II). O segundo diz respeito à guerra da secessão: “Quando o Congresso aprovou uma nova lei de tarifa alta em 1832, os representantes da Carolina do Sul protestaram, convocando uma assembleia no seu estado. Nesta assembleia os participantes declaram que tal tarifa era ‘nula, vazia e nenhuma lei, sem obrigação para este estado, os seus funcionários, ou os seus cidadãos”. Peter Louis Eisenberg, Guerra civil americana, p.40. 531 “Todo o problema político dos nossos dias gira em tôrno da elaboração da lei. Quem faz a lei é que é o mestre da vida social”. Pontes de Miranda, Comentários à Constituição de 1946, v.II, p.213. 532 “Hoje, o princípio [da separação dos poderes] não configura mais aquela rigidez de outra”. José Afonso da Silva, Curso de direito constitucional positivo, p.109. 533 VIEIRA, ao cuidar das garantias fundamentais do contribuinte, faz isso a partir de um ponto de vista do direito positivo: “De um ângulo mais largo, a legalidade tributária, como corolário da legalidade genérica, encontra-se irrecusavelmente entre os direitos e garantias fundamentais (Constituição, art. 5º, II). Já de um prisma mais estreito, esta tem um lugar privilegiado assegurado entre os direitos e garantias fundamentais do cidadão-contribuinte (Constituição, art. 150, I)”. José Roberto Vieira, Fundamentos republicano-democráticos da legalidade tributária: óbvios ululantes e não ululantes, in: Melissa Folmann, (coord.), Tributação e direitos fundamentais: proposta de efetividade, p.195.

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A clássica fórmula “discriminação das rendas” apenas pode ser completamente

entendida quando se traz como anteparo a ideia de Estado Federal, pois “[...] [é] dentro da

moldura ampla das autonomias federativas que se insere, de preferência, o tema da

discriminação de rendas”534. Assim, quando há uma ordem central e ordens locais535; e quando

os tributos previstos exaustivamente, junto com a eventual competência residual, devem ser,

para podermos falar de um sistema rígido de distribuição, divididos de tal modo que “[d]a

atribuição de competência privativa a uma unidade federada result[e] a exclusão das demais

unidades federadas quanto ao exercício de competência idêntica”536. Estamos, portanto, a

cuidar de uma das características que se aponta para a competência tributária, qual seja, a

privatividade.

Ao lado do sistema rígido de distribuição de competências, por meio da privatividade,

há o sistema flexível, ou elástico, por meio do qual uma mesma projeção de uma norma de

tributação, presente ou não no rol de tributos exaustivos, pode ser concretizada por mais de um

ente da federação. E a esse existir mais de um sujeito na norma de competência tributária é o

que se denomina competência concorrente, em oposição à competência privativa. Podemos

ainda imaginar uma federação onde apenas a ordem central institui tributo, com as ordens

parciais recebendo um repasse do que for arrecadado. Caso que não nos parece, por si só,

inviabilizar a federação, pois a autonomia financeira não necessariamente precisa vir

acompanhada de uma autonomia para instituir, alterar ou extinguir tributo537.

De todo modo, o cerne da privatividade gira em torno de se reconhecer que é atribuído

a um só ente o polo de sujeito na norma de competência tributária, implicando essa condição

de sujeito único da norma de competência, geralmente, não só a disciplina de que só ele pode

criar a norma de tributação, mas que somente a ele compete alterá-la ou exclui-la538. E sendo

534 Amílcar Falcão, Sistema tributário brasileiro: discriminação de rendas, p.19. Nesse mesmo sentido, BORGES: “O princípio básico que preside à estruturação do Estado federal é a repartição de competências [...], em particular, a repartição de competências tributárias [...]”. José Suto Maior Borges, Teoria geral da isenção tributária, p.29. 535 “A ordem jurídica de um Estado federal compõe-se de normas centrais válidas para o seu território inteiro e de normas locais válidas apenas para porções desse território, para os territórios dos “Estados componentes (ou membros)”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.451-452 (II.V.D.a.1) 536 Amílcar Falcão, Sistema tributário brasileiro: discriminação de rendas, p.39. 537 No sentido de que a autonomia financeira é minimamente suficiente para garantir a federação, mas não seria o modelo adequado, temos RAMOS MACHADO: “Em tese, numa federação, o ente central poderia cobrar todos os tributos, e, em seguida, partilhar, de forma automática e compulsória, o produto arrecadado com os entes periféricos. Seria possível também, a fortiori, a existência de uma federação em que se atribuam competências tributárias aos entes federativos, central e periféricos, e que essas competências não sejam privativas, mas comuns. [...]. Mas, embora em tese possíveis, essas formas, pode-se dizer que a brasileira é mais adequada [...]”. Raquel Cavalcanti Ramos Machado, Competência tributária: entre a rigidez do sistema e a atualização interpretativa, p.58. 538 Nesse sentido, BORGES: “No poder de tributar se contém o poder de eximir, como o verso e reverso de uma medalha”. José Souto Maior Borges, Teoria geral da isenção tributária, p.29. Posição interessante é a de

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verificada como afirmativa a questão, então também se deve ler que estão todos os demais entes

proibidos de ocupar essa posição, ou seja, que é vedada a criação de norma de tributação por

outrem quando reservada a um de forma privativa539. Disso decorre, haver ou não mais de um

sujeito autorizado a dispor sobre norma de tributação, que de um tributo apenas podemos dizer

que ou é privativo ou é concorrente, não havendo outra possibilidade, ou seja, tertium genus

non datur540. Agora, sendo a privatividade o ponto escolhido, a divisão entre os entes da

federação pode dar-se quer em relação ao conteúdo da norma de tributação, quer por meio da

CHIESA, para quem, no caso brasileiro, não haveria uma perfeita equivalência entre quem pode instituir os tributos e quem pode deles desonerar: “A competência para desonerar da tributação não tem exatamente a mesma configuração, pois não só a União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios podem desonerar da tributação no âmbito de suas respectivas competências, mas também o Estado brasileiro”. Clélio Chiesa, A competência tributária do estado brasileiro: desonerações nacionais e imunidades condicionadas, p.32. 539 Entendimento encontrado em autores tão díspares quanto HARADA, DÓRIA e MELO: “Esse princípio constitucional [discriminação de rendas tributárias], ao mesmo tempo que atribui o poder tributário a cada entidade política contemplada, inibe o exercício desse poder em relação à entidade política não contemplada [...]”. Kiyoshi Harada, Sistema tributário na Constituição de 1988: tributação progressiva, p.6 (esclarecemos entre colchetes). “[...] o texto supremo arrola os impostos que caberão, exclusivamente, a cada nível de govêrno; por consequência, sôbre o campo de sua incidência não poderão se acamar tributações múltiplas, por existir, aí, uma invasão de esfera de atribuições [...]”. Antônio Sampaio Dória, Discriminação de renda tributárias, p.20. “As pessoas políticas são dotadas de privatividade para criar os tributos que lhes foram reservados pela Constituição, o que, por via oblíqua, implica a exclusividade e conseqüente proibição de seu exercício por quem não tenha sido consagrado com esse direito”. José Eduardo Soares de Melo, Curso de direito tributário, p.113. 540 Ao tratar da Emenda Constitucional nº 18 à Constituição de 1946, e cuidando especificamente dos impostos, chegou ATALIBA à idêntica conclusão, apontando que a competência tributária ou é privativa ou é concorrente: “Não existe, juridicamente, possibilidade de qualquer tipo de impôsto escapar ao dilema: ou se configurará como privativo (arts. 15, 19 e 29) ou será concorrente (art. 21). Geraldo Ataliba, Sistema constitucional tributário brasileiro, p.113. Entretanto, ao lado do caráter privativo ou concorrente que se atribui à competência tributária, ainda, vez ou outra, deparamo-nos com o adjetivo “comum” que a doutrina lhe prega. Por essa linha, haveria uma terceira forma para a competência. Entretanto, não devemos ficar impressionados com essa terceira espécie, imaginando que possa quebrar nosso binômio, pois ela geralmente é usada como sinônimo de competência concorrente. E, como prova desse uso sinonímico, podemos citar SOUSA, para quem “[t]ributos comuns são os que a Constituição prevê expressamente como podendo ser criados tanto pela União, como pelos Estados ou pelos Municípios [...]”. Rubens Gomes de Sousa, Compêndio de legislação tributária, p.180. Entretanto, não desconhecemos que há certa celeuma sobre o tema quando envolve tributos que tenham por foco uma atuação estatal, o que faz com que balance a terminologia, pois não haveria algo comum, já que “[...] não provocam problemas de bitributação, pois são a contra-partida daquela atividade desempenhada pelo poder público”. Antônio Sampaio Dória, Discriminação de rendas tributárias, p.21. Em razão disso, VIEIRA prefere falar de mito (ou mentira) da competência comum para as taxas e contribuição de melhoria, uma vez que “[...] por trás da competência tributária, descansa, nas Taxas e nas Contribuições de Melhoria, a competência administrativa para prestar os serviços, para exercer a atividade de polícia ou par construir a obra pública. Ora, sempre que essa competência administrativa for privativa de determinada esfera de governo, por decorrência necessária, também a competência tributária o será”. José Roberto Vieira, Competências tributárias no Brasil: mitos e mentiras, in: Paulo de Barros Carvalho, 30 anos da Constituição Federal e o sistema tributário brasileiro, p.628. E, ainda, na mesma ordem de ideia, podemos lembrar o posicionamento de MACHADO: “Indicar-se como competência comum os tributos vinculados não nos parece adequado. Preferimos dizer que esses tributos são privativos de quem exercer a atividade estatal a que se ligam [...]”. Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, p.258. De todo modo, como não pretendemos cuidar das espécies tributárias neste trabalho, deixamos de analisar se as taxas e as contribuições de melhoria se encontram sob competência privativa ou concorrente, ou se melhor seria, para esses casos, uma denominação diversa, tal como comum.

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territorialidade541. No mais, qualquer que seja a forma de separação, haverá as situações

nebulosas, os casos difíceis, em que haverá dúvidas sobre quem pode tributar o quê542.

Por fim, devemos ter em conta que a classificação dos sistemas de tributação em

rígidos ou flexíveis parece ser mais uma questão de grau, do que um tudo ou nada. Afinal, bem

vistas as coisas, um único tributo que possa ser criado de forma concorrente seria suficiente

para afastar a rigidez do modelo. No entanto, não foi por esse caminho que seguiu a doutrina

nacional, preferindo a preponderância como marco para a classificação543. De todo modo, a

privatividade pode apresentar-se com certo hibridismo, com os tributos sendo bem demarcados

— quem pode instituir o quê, aparecendo de forma precisada544 —, mas, deixando em aberto,

como eventualidade, que um ente da federação possa instituir tributo atribuído a outro ente da

federação, desde que sob certas condições específicas545.

5.2.3.2 “Indelegabilidade”

541 “[...] o critério adotado pela Constituição, na partilha das competências impositivas dos Estados entre si e dos Municípios entre sim foi o territorial”. Roque Carrazza, Conflitos de competência: um caso concreto, p.44. 542 VIEIRA nega a possibilidade de conflitos de competência, pois “[...] eles não passam de mera ilusão e de pura aparência, porque, afinal, nada mais são do que conflitos de leis gerados por conflitos interpretativos”. José Roberto Vieira, O papel da lei complementar no estabelecimento das fronteiras IPI X ISS: óculos para macaco, in: Paulo de Barros Carvalho (presid.), Sistema tributário brasileiro e as relações internacionais, p.574. 543 “[...] interessa saber se a distribuição da competência tributária foi feita separadamente [...] a cada uma das categorias ou ordens de entidades federadas, de modo que para cada uma destas se configure uma área definida e ampla de competência privativa ou exclusiva, abrangedora senão da totalidade, pelo menos da porção prevalente das respectivas receitas fiscais. No caso afirmativo, a discriminação será rígida; na hipótese contrária, definir-se-á como flexível ou elástica”. Amílcar Falcão, Sistema tributária brasileiro: discriminação das rendas, p.24. 544 Em VIEIRA, encontramos a ideia de que a privatividade está ligada a uma demarcação de conteúdo da norma de tributação pela norma de competência: “A norma de competência tributária, constitucional por sua natureza, quando confere a uma das esferas de governo a faculdade inerente ao estabelecimento e tributos [...] termina por oferecer dados essenciais da norma jurídica de incidência dos respectivos tributos”. José Roberto Vieira, Equiparações de estabelecimentos comerciais a industriais: ficções que tangem o divino ou que tocam o demoníaco? in: Paulo de Barros Carvalho (coord.), Direito tributário e os novos horizontes do processo, p.708. Posição a qual nos filiamos, com duas ressalvas, caso estejamos no plano da teoria do tributo, sem nos fixarmos a um específico ordenamento jurídico: a norma de competência pode assumir qualquer roupagem, não somente a de texto constitucional (ver 5.2.2.4); ainda quanto a norma de competência tributária, pode ela ser construída tanto com o modal permitido como com o obrigatório, além da possibilidade do proibido (ver 5.2.2.1). 545 Na Constituição brasileira, podemos encontrar duas hipóteses que permitem à União instituir tributo que não lhe é atribuído exclusivamente. Uma, é em havendo território federal, quando, então, poderá instituir os impostos estaduais e, não havendo municípios no território, os municipais (art. 147 da CF/88). Outra, é em caso de deflagração de guerra externa, ou sua iminência, quando poderá instituir impostos extraordinários que, por uma primeira linha, são dos Estados e dos Municípios. Essas duas exceções à privatividade fazem com que CARVALHO a negue como característica da competência: “Tenho para mim que a privatividade é insustentável. [...]. Dir-se-á que se trata de exceção, mas é o que basta para derrubar proposição afirmativa colocada em termos universais, de tal sorte que impostos privativos, no Brasil, somente os outorgados à União”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.233. Agora, a quem se refere o “dir-se-á”? Quiçá CARRAZZA? “De nossa parte, pensamos que estas situações excepcionalíssimas [arts. 147 e 154, II, da CF/88], que só vêm confirmar a regra geral”. Roque Carrazza, Curso de direito tributário, p.445 (esclarecemos entre colchetes).

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Outra questão acerca do sujeito da norma de competência tributária é a da

possibilidade de se delegar a outro sujeito a competência para dispor sobre a norma de

tributação, debatendo a doutrina sobre ser a “indelegabilidade” uma característica da

competência tributária, apesar de tal palavra não constar no VOLP546. E, por “indelegabilidade”,

quer expor-se a impossibilidade de que quem conste como sujeito da norma de competência

tributária delegue a outrem sua posição547. Acontece que um posicionamento sobre o tema

somente é possível se se especificar um ordenamento jurídico, para nele então observar se há

ou não essa possibilidade de delegação, o que faz da questão uma contingência.

De uma forma geral, aceita-se que o sujeito (s0) — aquele que põe a norma de

competência tributária (nct1), na qual, por sua vez, consta o sujeito (s1), quem deverá dispor

sobre a norma de tributação — é o único que poderia alterar a norma de competência (nct1),

estabelecendo, assim, nova norma de competência (nct2), que substituiria a anterior (nct1). De

modo que, haveria a norma de competência primeira (nct0), que estabelece quem põe, altera ou

exclui a norma de competência (nct1), dando vazão, em caso de alteração, à nova norma de

competência (nct2). E esse alguém é s0 e não s1. Nada impede, no entanto, que a norma de

competência (nct1) seja construída de modo que o sujeito destinatário na sua consequência (s1),

possa delegar o outrem (sx) sua posição. Só que, nesses casos, entendemos pela necessidade de

disposição expressa. Por essa linha, havendo previsão expressa em (nct0), aquele que receber a

competência tributária (s1), poderá repassá-la a outrem (sx); do contrário, isso não será possível,

sendo caso então de se falar de “indelegabilidade”.

Como ilustração de um caso de delegação expressa, podemos rememorar a

Constituição de 1946, que permitia aos Estados que transferissem aos Municípios tributos de

sua competência548. A Constituição de 1969, de igual modo, permitia a delegação de

competência, só que, dessa vez, com a União podendo transferir aos Estados, ao Distrito Federal

e aos Municípios a sua competência residual549. Já como mostra da impossibilidade de

546 Consultamos, da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5.ed., de 2009. 547 “Quando se afirma que [a] competência tributária é indelegável, quer-se dizer que a instituição do tributo há de se dar única e exclusivamente através de lei proveniente da casa legislativa da entidade [...] que a Constituição expressamente tenha indicado como titular de tal faculdade”. Mauro Lopes, Direito tributário brasileiro, p.41 (complementamos entre colchetes). 548 CF/46: “Art. 29 – Além da renda que lhes é atribuída por força dos §§ 2º e 4º do art. 15, e dos impostos que, no todo ou em parte, lhes forem transferidos pelo Estado, pertencem aos Municípios os impostos: [...]”. 549 CF/69: “Art. 18, § 5º – A União poderá, desde que não tenham base de cálculo e fato gerador idênticos aos dos previstos nesta Constituição instituir outros impostos, além dos mencionados nos artigos 21 e 22 e que não sejam da competência tributária privativa dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, assim como transferir-lhes o exercício da competência residual em relação a impostos, cuja incidência seja definida em lei federal”. E como esclarecimento do alcance da expressão “lei federal”, trazemos à baila as palavras de BALEEIRO: “Essa lei pode

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184

delegação, podemos citar a atual Constituição brasileira, sobre a qual é firme a doutrina quando

expõe a impossibilidade daquele que figure como sujeito da norma de competência, ditar, ele

próprio, a norma de delegação, alterando sua situação de destinatário, e repassando a outrem

competência recebida550. Assim, no caso brasileiro atual, entende-se que, uma vez dada a

competência privativa para determinado ente da federação, fica vedada a sua delegação, por

esse ente da federação, a outro.

Devemos levar em consideração, todavia, que os exemplos dados dizem respeito à

possibilidade ou não de delegação entre entes da federação, e não abarcam, portanto, o caso de

delegação entre “poderes” de um mesmo ente da federação. Uma figuração, para esse caso de

delegação entre “poderes” de um mesmo ente federativo, seria uma norma de competência

tributária elegendo como sujeito para dispor sobre a norma de tributação o parlamento, mas

permitindo que esse mesmo parlamento delegue ao executivo a competência que lhe é

autorizada. Como reforço, podemos espraiar a explanação, dando-lhe mais cor, evocando o

direito positivo brasileiro, para o qual se verifica posição doutrinária que entende cabível ao

legislativo, por meio do rito da lei delegada, outorgar ao executivo a competência de pôr

tributo551. No mais, quando se fala de “indelegabilidade” da competência tributária, devemos

ter em conta o caráter amplo da restrição, com o termo significando que o sujeito da norma de

competência tributária, seja quem for, não pode delegar a outrem, seja quem for, sua posição

na estrutura normativa. De toda sorte, é uma questão contingente, de direito positivo, a

possibilidade de delegação, bem como, sendo ela possível, para quem e mediante qual

procedimento isso se poderia dar.

ser a ordinária e há de estabelecer, desde logo, pelo menos, o fato gerador, a base de cálculo e os limites máximos da alíquota”. Aliomar Baleeiro, Limitações constitucionais ao poder de tributar, p.502. 550 Estamos tratando da competência tributária e não da capacidade tributária, sendo a diferença entre elas o fato de que “[a] capacidade tributária ativa se correlaciona exatamente com o sujeito que ocupa a posição de credor dentro da obrigação tributária [...]”. Roque Carrazza, O sujeito ativo da obrigação tributária, p.31. Agora, dada a separação, é possível, tendo em conta o direito positivo brasileiro, asseverar que “[...] a competência tributária é intransferível, enquanto a capacidade tributária ativa não o é”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.229. No mesmo sentido, assenta-se que “[é] indelegável a competência tributária. [...]. É razoável, todavia, admitir-se a delegação, a outra pessoa jurídica de Direito público, das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos [...]”. Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, p.235. 551 A Constituição de 1988 é expressa sobre a possibilidade de delegação da função de criar leis do legislativo ao executivo: “Art. 68. As leis delegadas serão elaboradas pelo Presidente da República, que deverá solicitar a delegação ao Congresso Nacional”. Nada obstante, se é tal dispositivo suficiente para se entender que o pôr norma de tributação possa ser repassado do Congresso Nacional ao Chefe do Poder Executivo Federal, é questão em aberto. A MENDONÇA parece que sim: “[...] a Carta da República Federativa do Brasil de 1988, em seu art. 68, permite a delegação da competência legislativo-tributária do órgão legislativo para o órgão executivo de uma mesma pessoa política”. Cristiane Mendonça, Competência tributária, p.290. A CARRAZZA que não: “[...] às leis delegadas não é permitido criar ou aumentar tributo”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.262.

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185

5.2.3.3 Irrenunciabilidade

E o que se expôs sobre a “indelegabilidade” (ver 5.2.3.2), pode, igualmente, ser

apontado para a irrenunciabilidade552; ou seja, que apenas na presença de enunciado expresso é

que seria possível àquele que recebeu a competência para dispor sobre norma de tributação

renunciar a tal posição, pois poderia inclusive haver, com esse ato de renúncia, a extinção da

própria norma de competência, sem, entretanto, previsão normativa para tanto553.

A norma de competência estabelece um sujeito para dispor sobre a norma de

tributação. E o sujeito pode estar obrigado, permitido ou proibido em relação a um certo

conteúdo. Se está permitido, pode ou não pôr a norma jurídica. Se está proibido e mesmo assim

a põe, há consequências, como, v.g., a invalidação da norma posta. Na mesma linha, se está

obrigado e não age, igualmente, há consequências.

Portanto, o sujeito pode ou não se conduzir em conformidade com a norma de

competência, o que não pode é alterar a própria norma de competência, por meio de sua

exclusão como sujeito que tem a conduta regrada. Se é permitido, pode ou não agir; se é

proibido, deve omitir-se; se é obrigatório, a norma deve ser posta. Essas são as possibilidades

decorrentes da norma de competência. Entretanto, sempre nela estará como sujeito, não tendo

o condão, a não ser que haja outra norma dispondo nesse sentido, de alterá-la, renunciando a

sua posição.

5.2.4 Tempo e espaço

A norma de competência, por não ser diferente das outras normas jurídicas, em sua

estrutura, disciplina, de modo obrigatório, proibido ou permitido, uma conduta humana (ver

2.10). Entretanto, somente adquire sentido, adquire completude, se prescrever, ao lado do que

552 Sendo permitido pôr norma de tributação, o sujeito pode ou não instituir o tributo, sendo que, para o não exercício da competência, não haveria consequências. Agora, a norma de competência pode ser construída na forma obrigatória, sob a consequência de que, se não for o tributo criado até certo prazo, não o poderá mais ser. Nesse caso, modal obrigatório associado à invalidação da norma posta após certo tempo como consequência, é que se poderia falar de caducidade, mas não de renunciabilidade. De toda sorte, o não exercício, questão fática, não deve ser confundido com a renúncia, questão jurídica. Nesse sentido, MELO: “A ‘irrenunciabilidade’ significa que as pessoas políticas não detêm o direito de dispor das competências tributárias, que lhes são cometidas pela Constituição, o que não se confunde com o desinteresse no efetivo exercício de sua competência”. José Eduardo Soares de Melo, Curso de direito tributário, p.115. 553 Se a competência tributária é atribuída a um só ente, então, se houver a renúncia por parte dele, a saturação da estrutura normativa ficaria sem qualquer sujeito, o que implicaria a própria extinção da norma. Entretanto, havendo mais de um ente na posição de sujeito, a renúncia de um deles não atinge a existência da norma de competência tributária.

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186

alguém deve fazer — no caso da norma de competência, pôr, alterar ou excluir norma jurídica—

o onde e o quando tal conduta deve realizar-se554. Quem, faz o quê, quando e onde é um mantra

deste trabalho, ao menos para a consequência normativa555.

Ademais, se não esquecemos que pôr norma jurídica é pôr, antes de tudo, um

significante que será interpretado (ver 2.2), fica patente a necessidade de a norma de

competência estabelecer em que lugar isso se deve dar. E se houver um rito para a elaboração

do enunciado, que será interpretado como norma, podem, inclusive, ser estabelecidos mais de

um lugar. Claro que também pode ser o caso de expressamente não haver qualquer referência

a um lugar específico para a confecção normativa. Isso, entretanto, não quer dizer que não haja

um critério espacial. Simplesmente significa que pode ser ele todo e qualquer. Agora, em vez

de termos latos como todo e qualquer, pode ser o caso, principalmente para significantes

representativos com “lei”, que haja uma previsão de lugar muito bem determinado, como um

exclusivo prédio, em uma específica cidade.

Por outro turno, na consequência da norma de competência, o critério temporal

também se faz presente. De forma geral, quando a conduta de pôr norma jurídica estiver na

modalidade permitida, apresentar-se-á para qualquer data, período, mas não são incomuns

recessos obrigatórios de órgãos de produção normativa, o que significa que a permissão se dá

apenas para certo tempo, o que nos leva à construção de que, para os outros marcos, é então

proibida a conduta de assentar norma. Por sua vez, para o modo de conduta obrigado, deve

haver, de maneira minimamente determinável, data ou período, pois somente assim será

possível averiguar se a obrigação foi cumprida ou descumprida. Ademais, uma obrigação para

se cumprir ao alvedrio não é uma obrigação, mas uma permissão.

De toda sorte, não se deve confundir os critérios temporal e espacial da norma de

competência tributária com o conteúdo que se deve atribuir a norma de tributação, que, por sua

vez, pode trazer um tempo e um espaço que lhe seja próprio. Assim, que determinada norma de

competência tributária só possa ser exercida até certa data, é seu critério temporal, presente na

consequência, que, por seu turno, é diferente dos critérios temporais, para a hipótese e a

554 Nesse sentido, GAMA: “Todo verbo descreve ação ou estado que se dá no espaço e no tempo. Isso ocorre de tal forma que seria possível e até intuitivo afirmar que os indicadores de espaço e de tempo são pressupostos à enunciação de qualquer ato. A referência de tempo delimita o lapso temporal em que a conduta pode ser realizada. Já a referência de espaço indica onde a enunciação deve ocorrer”. Tácio Lacerda Gama, Competência tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade, p.71. 555 Em nossa conceituação estática de tributo, restringimos, por pactuação, a hipótese normativa a uma conduta humana (ver 4.2.4). Entretanto, é possível que contenha ela, a depender da perspectiva que se queira dar, elementos outros, como eventos da natureza. Já a consequência, por sua vez, sempre será uma conduta humana.

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187

consequência, que essa mesma norma de competência possa previamente definir para a norma

de tributação.

À guisa de desenlace, podemos concluir que a norma de competência tributária possui,

em sua consequência, critérios espacial e temporal. Dito isso, como a doutrina dá destaque ao

que aponta como uma das características da competência tributária, a “incaducabilidade”, que

nada mais é do que uma permissão para, a qualquer tempo, assentar a norma de tributação,

vamos promover um maior desenvolvimento do tema em apartado.

5.2.4.1 “Incaducabilidade”

A ausência de qualquer marco temporal para praticar a conduta prescrita na norma de

competência liga-se a uma das características que se aponta para a competência tributária, qual

seja, a “incaducabilidade,” mesmo que tal palavra não conste no VOLP556. De toda forma,

entende-se por “incaducabilidade” a não existência de um prazo para o exercício da permissão

de se pôr norma de tributação, “[...] uma vez que o seu não-exercício, ainda que por longo

tempo, não acarreta[ria] o efeito de impedir que a pessoa política venha, a qualquer tempo, a

exercê-la [...]”557.

De pronto, devemos deixar claro que é uma questão contingente, de cada ordenamento,

haver ou não prazo para o exercício da permissão de pôr norma jurídica. Logo, não é uma

questão que possa ser definida a priori, sem o recurso à observação558. Entretanto, havendo um

prazo para que a norma de tributação seja posta, então é possível apresentar a questão sob um

outro prisma, pois se é permitido pôr a norma jurídica até uma específica data, então, numa

intepretação por camadas, por derivação, é proibido criar essa mesma norma jurídica após tal

data. O que é permitido até certo período, por uma outra leitura, significa que é proibido após

o transcurso desse período. Haveria, portanto, uma relação entre a facultatividade e os casos

caducáveis, pois se é permitido, apenas até um determinado marco temporal, pôr norma de

556 Consultamos, da Academia Brasileira de Letras, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, 5.ed., de 2009. 557 Regina Helena Costa, Curso de direito tributário: Constituição e Código Tributário Nacional, p.43 (adaptamos entre colchetes). 558 Tanto CAZZARRA quanto CARVALHO, este último com argumentos mais políticos do que jurídicos, elegem a “incaducabilidade” como característica da competência tributária. Entretanto, devemos ter presente que estão a falar do direito positivo brasileiro e não da norma de competência, sob o prisma de uma teoria do tributo. “A competência tributária é [...] incaducável, já que seu não exercício [...] não tem o condão de impedir que a pessoa política, querendo, venha a criar [...] os tributos que lhe forem constitucionalmente deferidos”. Roque Carrazza, Curso de direito constitucional tributário, p.575. “Impõe-se [...] a perenidade das competências, que não poderiam ficar submetidas ao jogo instável dos interesses e dos problemas por que passa determinada sociedade”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.232.

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188

tributação, então também se quer dizer com isso que é proibido enunciá-la após o decurso do

prazo.

5.3 DISTINÇÃO ENTRE TRIBUTO E CONTRATO

O desejo de que apenas seja a autoridade competente para instituir tributo um conselho

de representantes dos que arcarão com a tributação é ponto governamental que acaba

transbordando para o conceito estático de tributo, com a doutrina em peso estabelecendo a

instituição em lei como elemento componente seu559. No entanto, por mais que nos agrade o

pensamento de que tributo deva ser instituído por lei, não podemos deixar de ver, na alocação

dessa ideia no próprio conceito de tributo, uma tentativa de transvestir uma teoria política em

uma teoria geral do tributo. Afinal, se tributo, por um ângulo, é uma norma de conduta primária,

sob a forma abstrata, eventiva e geral, com as delimitações semânticas que apresentamos para

sua identificação (ver 4.4), então quem é a autoridade que pode assentar tal norma em nada

interfere no conceito estático. Desse modo, devemos bem apartar o criador da criatura para não

corrermos o risco de atribuir a um a propriedade do outro.

Não olvidamos que sem a possibilidade de se escorar no elemento lei para conceituar

tributo, ter-se-ia certa dificuldade para diferenciar tributo de contrato, enquanto ambos previsto

em legislações560. Com efeito, de um ponto de vista estático, podemos ler tanto para o tributo

como para o contrato, tomados como normas primárias, na hipótese, a descrição de uma

situação lícita, e na consequência, uma obrigação, ligadas pela implicação deôntica. Devemos,

então, promover uma distinção, sem termos de confundir a norma fundante com a norma

fundada.

Quanto à criação das normas jurídicas, é possível a adoção de uma classificação em

autônomas e heterônomas561. No primeiro caso, da autonomia, a norma de conduta é criada por

559 ATALIBA define tributo como “ex lege”: “Define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex lege [...]”. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, p.34. COÊLHO deixa o latim de lado e expõe tributo como “previsto em lei”: “Tributo é toda prestação pecuniária [...] previsto em lei [...]”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Teoria geral do tributo, da interpretação e da exoneração tributária (o significado do art. 116, parágrafo único, do CTN), p.90. CARVALHO vê redundância na afirmação de que o tributo é instituído em lei: “[...] por dizer-se que se trata de prestação jurídica, já se estará aludindo à instituição em lei”. Paulo de Barros Carvalho, Teoria da norma tributária, p.107. 560 O cotejo entre tributo e contrato deve ser feito no mesmo plano, ambos como normas abstratas, gerais e eventivas ou ambos como normas concretas, individuais e ocorrentes. 561 “A diferença entre o Direito administrativo como Direito público e o Direito privado não reside no fato de a relação entre Estado e pessoa privada ser diferente da relação entre pessoas privadas, mas na diferença entre uma criação heteronômica e uma criação autônoma de normas secundárias”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.295 (II.I.D.d).

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189

quem ter de a ela submeter-se. Assim, “[a]través do ato do sujeito é criada uma norma ou são

criadas normas pelas quais é constituído numa obrigação o sujeito que põe o ato”562. Há,

portanto, uma identidade entre o sujeito da norma de conduta e o da norma de competência. E,

por isso, fala-se de autonomia. No segundo caso, da heteronomia, a conduta é devida em razão

de norma jurídica da qual o sujeito não toma parte diretamente da sua confecção563. E um caso

exemplar dessa dissociação entre quem deve a conduta e quem põe a conduta devida é o da

tributação, pois “[...] a obrigação do contribuinte é determinada por uma norma secundária

[norma primária neste trabalho, ver 2.8] de cuja criação o sujeito a ser obrigado não

participa”564. Como consequência, fala-se então de heteronomia. Com isso estão lançadas as

bases para uma diferenciação entre tributo e contrato, a partir do plano dinâmico, no qual a

produção normativa entra em cena. Assim, deve-se analisar a norma fundante e a norma

fundada, cotejando os sujeitos de ambas, sendo a existência de discrepância entre esses sujeitos

um traço definitivo para se distinguir tributo de contrato565.

Podemos concluir, então, que, dinamicamente, no processo de produção normativo, há

a necessidade de que, após o cotejo entre a norma de competência e a norma de conduta dela

derivada, não sejam os sujeitos de ambas os mesmos para que possamos falar de tributo. Assim,

sobre o sujeito da norma de competência tributária, basta-nos que não seja o mesmo da norma

de tributação. Posição que nos permite deixar para cada ordenamento jurídico outras precisões

— questões contingentes, a serem decididas inteiramente pelo direito positivo, estranhas,

portanto, a uma teoria do tributo —, tal como a de ser o sujeito da norma de competência um

parlamento, com vedação de qualquer outro. Isso porque não haveria nenhuma ofensa à lógica

se a norma de competência tributária apontasse como autoridade competente para pôr a norma

de tributação o chefe do poder executivo. O que se teria, em tal caso, entre outras observações

possíveis, seria uma ofensa a uma estética de mundo, pois se pode muito bem não desejar viver

num mundo onde tributos são cobrados sem a concordância — mesmo que indireta, via

562 Hans Kelsen, Teoria pura do direito, 2.ed., p.290 (V.2.h). 563 Nas democracias, há participação, só que indireta, por meio de representantes. Todavia, se pensarmos em concordância imediata, na linha do que se chama de democracia direta, devemos distinguir dois pontos: no primeiro, se somente quem concordar será tributado; no segundo, se, mesmo discordando, ainda assim se deve levar dinheiro ao Estado, desde que seja a vontade da maioria. Para a primeira situação, as linhas entre tributo e contrato diluem-se. Já para o segundo caso, podemos ainda manter os termos autonomia e heteronomia, não sendo o fato de ter sido diretamente ouvido, aquele que deve levar dinheiro, suficiente para afastar a divisão, já que seria um terceiro, a maioria, quem lhe impõe o dever, independentemente de ter votado com ou contra essa maioria. 564 Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.294 (II.I.D.d) (esclarecemos entre colchetes). 565 Foi com base na lição kelseniana que distingue as normas em autônomas e heterônomas que GRECO promoveu sua distinção entre tributo e preço público: “[...] o elemento da definição de tributo que serve para extremá-lo (sic) do preço é ser uma norma jurídica de formação heterônoma”. Marco Aurélio Greco, Norma jurídica tributária, p.57.

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190

legislativo — daqueles que devem levar o dinheiro ao Estado. Entretanto, para distinguir tributo

de contrato, não há a necessidade de trazermos ao centro do debate o imperativo de serem os

tributos instituídos por lei, bastando-nos diferenciar a produção normativa em autônoma e

heterônoma.

5.4 CONCEITO DINÂMICO DE TRIBUTO: NORMA DE COMPETÊNCIA

O direito positivo disciplina a criação, modificação e extinção das normas jurídicas

(ver 2.9). E se assim é para todas as normas que são jurídicas, não poderia deixar de ser para as

que aglutinarmos sob a rubrica de “norma de tributação” (ver 3.2). Logo, uma vez identificadas,

entre todas as normas jurídicas, as que são de tributação, por meio do cotejo com uma

proposição pactuada, é então o caso de se questionar a fonte de validade dessas normas, que

outra coisa não pode ser do que outra norma jurídica (ver 2.3). Estamos então a falar da norma

de competência tributária, a norma que disciplina a criação, modificação e extinção da norma

de tributação. Contudo, em sua configuração completa, a norma de competência apresenta uma

composição dúplice, formada de norma primária e norma eventual, ligadas por disjunção (ver

2.10), o que nos impôs um corte, deixando a designação de “norma de competência tributária”

apenas para a norma de competência primária. Então, a partir disso, com base na

homogeneidade sintática (ver 2.5), é que pudemos estudar a norma de competência tributária,

seccionando-a em hipótese e consequência normativas.

Na hipótese da norma de competência tributária, encontramos a descrição de um

estado de coisas, que pode ser desde um evento da natureza até uma particular conduta humana,

bastando estarem precisados no tempo e no espaço. Quanto ao estado de coisas, sua forma de

expressão é o verbo, ficando a existência de um sujeito a depender de especificidade verbal ou

de particularidade da língua em que é expresso; quanto ao tempo e espaço, são indispensáveis,

pois, sem a demarcação de um “onde” e de um “quando”, não há a possibilidade de uma

identificação do fato. Pode também a hipótese contemplar um campo amplo, o que geralmente

acontece quando a consequência contém o modo de conduta permitido. Para esses casos, não é

incomum que a hipótese da norma de competência assuma a forma “todo e qualquer estado de

coisas em todo e qualquer tempo e espaço”, sem que isso, segundo nossa formulação, em nada

altere o caráter bimembre da norma jurídica. O que temos, então, é que a norma de competência

tributária, a depender da hipótese, é nominada ou inominada (ver 5.1)566.

566 Em sua formulação completa, a norma jurídica é (bi)bimembre (ver 2.8)

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191

A consequência da norma de competência tributária, tal qual a de qualquer outra norma

jurídica, é bem compreendida se se saturar, sem olvidar os modos de conduta, os termos:

“quem”, “faz o quê”, “quando” e “onde”. E foi a partir disso que procedemos nosso estudo

dinâmico do tributo. Quanto ao modal deôntico, a norma de competência tributária comporta

qualquer um deles, podendo ser construída quer como permissão, obrigação ou proibição (ver

5.2.1). Pode até ser que, para um particular ordenamento jurídico, não haja norma de

competência tributária arquitetada sob a forma de obrigação, entretanto, é mais do que comum,

ao lado da permissão de se pôr certa norma de tributação, proibir-se a instituição de outras,

quando se fala então de imunidade (ver 5.2.2.1). Assim, mesmo nos casos em que apenas há as

permissões, em contraposição às obrigações, ainda se deve ter os devidos cuidados para apontar

a facultatividade como característica da competência tributária, pois, ao lado dessas permissões,

provavelmente, haverá proibições de se pôr certas normas de tributação (ver 5.2.1.1).

Já quanto ao “fazer o quê”, é nele que reside o busílis da distinção entre norma de

competência e norma de conduta, sendo o tema estendido para o estudo tributo, pois a norma

de competência tributária é a particular norma que disciplina a dinâmica da norma de tributação.

Assim, o “fazer o quê” da norma de competência tributária, a conduta devida, é ou um pôr, ou

um modificar ou um extinguir a norma de tributação (ver 5.2.2), segundo um procedimento (ver

5.2.2.4). Pode a norma de competência tributária conter, com maior ou menor grau, a

identificação da norma de tributação a ser posta, o que pode ser feito com uma lista exaustiva,

ao lado de um campo residual (ver 5.2.2.2). Ademais, quando há essa predefinição de conteúdo,

com vínculo de substância na produção normativa, sob consequência de invalidade, é então que

se diz que a competência tributária é inalterável, o que deve ser entendido como uma limitação,

um daqui não se pode passar, endereçada ao sujeito disciplinado para enunciar a norma de

tributação (ver 5.2.2.3).

Dando desdobramento ao tema, ainda dentro da estrutura da consequência da norma

de competência tributária, se há um “o quê”, então há um “quem”. É a questão do sujeito, aquele

que é obrigado, permitido ou proibido de proferir a norma de tributação. E aqui, pela forma

clássica de tratar do tema (república e federação), dois destaques são necessários: primeiro, há

um desejo de que o sujeito da norma de competência tributária seja o parlamento, conferindo

assim legitimidade à tributação; outro, é que, em uma federação, podemos ter como sujeitos

tanto a ordem global como as parciais. Quanto ao primeiro ponto, a questão somente pode ser

vista como uma busca pela melhor norma jurídica, não havendo qualquer impedimento — num

plano teórico, a partir de uma teoria da norma posta como ato de vontade, que tem como limite

a eficácia e não a justiça — para que outros assumam a condição de sujeito da norma de

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192

competência que não um órgão legislativo, formado de pessoas escolhidas por meio de eleições

livres (ver 5.2.3). Quanto ao segundo tópico, havendo uma federação, é então que se discute a

questão da privatividade, ou seja, se, para cada norma de tributação predefinida, há um e apenas

um sujeito competente, que seja integrante da federação, para sobre ela dispor (ver 5.2.3.1). E

é ainda dentro do tópico do sujeito que questões como a da “indelegabilidade” (ver 5.2.3.2) e a

da irrenunciabilidade (ver 5.2.3.3), apontadas como característica da competência, têm lugar,

pois a posição de sujeito na norma de competência tributária — quer para renunciar a ela quer

para delegá-la a outro — não pode ser alterada por esse mesmo sujeito, a não ser que haja

disposição expressa para tanto. Mas, nada impede que aquele que pôs a norma de competência

tributária altere o sujeito que nela conste como destinatário da competência.

Por fim, se há a prescrição de uma conduta humana, um quem deve fazer o quê, para

que haja um sentido normativo completo, devem ainda se fazer presentes as demarcações

temporal e espacial (ver 5.2.4). A conduta — proibida, permitida, ou obrigatória — de assentar

a norma de tributação, deve sem qualquer dúvida, ser precisada com um “quando” e um “onde”.

O quê, por seu turno, não deve ser confundindo com o “quando” e o “onde” da norma de

tributação — quer os constantes na hipótese, quer os presentes na consequência. Ademais,

especificamente quanto ao marco temporal da consequência da norma de competência

tributária, é nesse item que se apresenta a discussão sobre ser a “incaducabilidade” uma

característica da competência (ver 5.2.4.1). Como síntese, podemos expor que, se a norma de

competência tributária é construída no modo de permissão, então a norma de tributação pode

ser posta em qualquer tempo no futuro. Porém, caso haja um prazo para pôr a norma de

tributação, sob pena de se assim não fizer, então será invalidável a norma que for posta

posteriormente, é caso de não mais se falar de permissão, mas de obrigação, sob a consequência

da norma eventual, o que poderíamos então sintetizar como caducidade.

Page 195: ENSAIO PARA UMA TEORIA TRILÓGICA DO TRIBUTO: UM …

193

6 LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

Dinamicamente uma norma é norma jurídica porque seu fundamento de validade é

outra norma jurídica (ver 2.3). Norma fundante e norma fundada, o que nos possibilita um

desdobramento em norma de competência e norma de conduta (ver 2.9). E o mesmo raciocínio

é legítimo para o estudo do tributo, quando tomado como norma jurídica. Afinal, se a norma de

tributação, nossa norma de referência, identificada a partir de uma proposição acordada, é

norma jurídica, então carece de uma norma de competência, uma norma fundante, que, para

nós, é a norma de competência tributária (ver 5). Entretanto, a norma de tributação pode não só

ocupar a posição de norma fundada, podendo também ser, a depender do direito positivo, norma

fundante, o que, desse modo, leva-nos a uma outra norma jurídica na estrutura escalonado do

ordenamento jurídico. Quando for esse o caso, perfaz-se a tríade normativa, exsurgindo uma

teoria trilógica do tributo: a partir da norma de tributação, verifica-se acima a norma de

competência tributária, que é necessária, e abaixo se averigua a norma de lançamento, que é

contingente

Com isso, nossa posição afasta a equivocidade de que padece o termo “lançamento”567,

pois, sem desmerecer outros pontos de vista, lançamento tributário outra coisa não é, para este

trabalho, do que norma jurídica. Contudo, para diferenciá-la da norma de tributação, desde já,

deixamos consignado que a norma de lançamento tributário é uma norma cujo conteúdo é

concreto, individual e ocorrente (ver 2.11), ao contrário daquela cujo teor é abstrato, geral e

eventivo (ver4.4)568. Feita essa demarcação, é possível dar um passo além, expondo que a norma

de lançamento tributário pode ser capturada sob duas perspectivas: estática e dinâmica. Pelo

ângulo estático, a norma de lançamento tributário é a descrição de um fato lícito, verificado no

tempo e no espaço, de conteúdo jurídico-econômico, expresso no formato sujeito, verbo e

complemento, ligada por imputação a uma conduta obrigatória, de alguém identificado, a dar-

567 “Entre nós enraizou-se a expressão ‘lançamento’, cuja origem etimológica aponta para o significado de calcular, efetuar um lance; em Itália [...] fala-se em accertamento tributario, inobstante uma forte corrente da doutrina preconizar [...] a substituição deste conceito pelo de atto de imposizone; na Alemanha empregam-se as noções de Steuerveranlagung, Steuerfestsetzung, Steuerverfügung e Steuerbescheid; em França fala-se na liquidation de l’impôt, distinta da assiette, mas já na Bélgica a expressão consagrada é a de cotisation; nos países de língua castelhana tanto se usa a expressão liquidación como determinación; nos países anglo-saxônicos é geralmente utilizado o termo tax assessment; em Portugal a lei adotou a expressão ato tributário, com a qual se designa o ato administrativo típico da função de aplicação das leis tributárias aos casos concretos, que também é correntemente chamado de liquidação”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.3-4. 568 Tomamos a locução “norma de lançamento tributário” como gênero da norma concreta, individual e ocorrente tributária, abarcando espécies, que serão apresentadas abaixo SANTI, por sua vez, reserva, para o gênero, a expressão “ato-norma formalizador”, o qual comporta “[...] duas espécies de normas jurídicas individuais e concretas: o ato-norma administrativo de lançamento tributário e ato-norma formalizador instrumental”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.185.

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194

se no futuro, com data e local especificados, de dar dinheiro, em valor precificado, ao Estado

ou a outro que lhe faça as vezes, igualmente designados. Já pelo padrão dinâmico, a norma de

lançamento tributário é o produto decorrente de um processo, o que possibilita a investigação

se dar na base do cotejamento, pois, por essa aproximação, há a norma de lançamento, mas há

também a norma que disciplina o lançar, no sentido de enunciar a norma de lançamento.

Feita essa distinção entre aspectos estático e dinâmico, é então que será possível

realizar a comparação entre os dados da norma posta, a norma de lançamento tributário, e os

elementos presentes em outra norma, a norma que organiza esse instituir, a norma de

competência da norma de lançamento, expondo, depois, nossa posição sobre os assuntos mais

candentes, dentro do tema lançamento tributário.

6.1 LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO COMO NORMA JURÍDICA

O presente trabalho apresenta como guia metodológico a concepção de direito como

um conjunto de normas jurídicas, todas elas iguais sintaticamente (ver 2.5), e encadeadas entre

si (ver 2.9). Assim, como desdobramento da ideia de que o direito é norma, não deve causar

espécie que tomemos tributo como norma jurídica, para, um passo adiante, deslaçá-la em três

normas jurídicas, tudo a partir da norma de tributação, encontrada por cotejo com uma

proposição acordada (ver 3.2). Assim, por um lado, sobre a norma de tributação, temos a norma

de competência tributária; por outro, sob a norma de tributação, temos o lançamento tributário,

que, em um estudo normativo, outra coisa não é do que uma específica norma jurídica.

Em relação à norma de tributação, pactuamos que é uma norma primária, abstrata,

geral e eventiva (ver 4.4), agora, sobre a norma de lançamento tributário, dado o caráter

dinâmico do direito positivo, é o caso de particularizá-la também como uma norma primária,

só que concreta, individual e ocorrente (ver 2.11). Assim, o lançamento tributário, expressão

polissêmico, ganha uma precisão, passando a ser entendido neste trabalho, estaticamente, como

norma jurídica que contém, na hipótese, a descrição de um estado de coisas concreto, e, na

consequência, um sujeito individualizado associado a uma conduta prescrita bem precisada.

Ou, por outro giro, há a descrição, de modo concreto, de um fato lícito, que se concatena

deonticamente com uma conduta, modalizada como obrigatória, de dar dinheiro, em valor

quantificado, prescrita a alguém individualizado, como conteúdo normativo. Além disso, a

norma de lançamento tributário pode ser analisada dinamicamente, sob a forma regra e regra-

de-regra, ou, como adotamos neste trabalho, norma de conduta e norma de competência (ver

2.9). Por esse ângulo, a norma de lançamento tributário é norma de conduta, pois tem como

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mandamento um específico dar dinheiro, só que, em razão disso, devemos buscar sua norma

fundante, o seu amparo de validade, uma vez que as normas jurídicas não são válidas per se.

Antes, entretanto, de prosseguirmos com o estudo estático e dinâmico do lançamento tributário,

na condição de norma jurídica, vamos apreciar duas questões que se ligam à natureza do

lançamento tributário: por um lado, se seria um ato ou um procedimento; por outro, se teria

caráter declaratório ou constitutivo.

6.1.1 Ato ou procedimento

Há o enunciado, o qual se encontra num suporte físico, e há a interpretação desse

enunciado, a norma (ver 2.2). Entretanto, para a produção desse enunciado, pode muito bem a

norma de competência estabelecer um determinado ritual que pode ir desde fórmulas

complicadas até a forma livre. E é a partir dessas explanações que vamos destrinçar a afirmação

de ser o lançamento tributário um procedimento, pois, nesses casos, a fixação principal da

atenção está na forma de confecção do enunciado569. Todavia, não podemos deixar de apontar

que, por tal senda, o fim da jornada é a conhecida ambiguidade processo / produto, já que, em

vez de se expor o que algo é, acaba-se enfocando o modo pelo qual ele é faturado. Ademais,

como problema adicional para a tese procedimental, devemos lembrar que pode, inclusive, não

haver procedimento algum a ser seguido para se assentar enunciado. Portanto, “[...] a existência

de um procedimento, ainda que rudimentar, não é essencial à existência do lançamento — que

em certos casos pode dele prescindir”570.

Pode-se superar o inconveniente de não haver procedimento prescrito em alguns casos

igualando-se a forma livre a um procedimento, na linha de que se não há rito, então todo e

qualquer é permitido, oportunizando-se, com isso, compreender o porquê nossa doutrina aponta

um aspecto triplo para o lançamento tributário, dizendo ser ele “norma”, “procedimento” e

“ato”. Mas, para que possamos aderir a tal posição, precisamos primeiramente desambiguar o

termo “norma”, que pode aparecer quer como primeiro na sequência, quer como último, quando

então o lançamento é apontado como “ato”, “procedimento” e “norma”571. Principiemos nosso

569 “[...] podemos constatar [...] que realmente se trata de um procedimento, pois o lançamento consiste sempre em vários atos jurídicos sucessivos, dirigidos à mesma finalidade de individualização do crédito tributário e todo ato que se segue pressupõe necessàmente o anterior e prepara e prenuncia o subsequente”. Ruy Barbosa Nogueira, Teoria do lançamento tributário, p,33. 570 Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.24. 571 Em obra com o sugestivo título de Lançamento tributário como ato administrativo, OLIVEIRA prefere, em vez de desambiguar a expressão “lançamento tributário”, espraiá-la como ato, procedimento e norma. Ipsis litteris: “Adiantamos que nosso entendimento de lançamento é ato, procedimento e norma [...]”. Vivian de Freitas e Rodrigues de Oliveira. Lançamento tributário como ato administrativo: procedimento e controle, p.91. Mais à

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raciocínio com o termo “norma” abrindo o encadeamento. Cm isso, para que a sequência faça

sentindo, deve ser ele, o termo “norma”, entendido como norma de competência. Assim, há a

norma de competência, que estabelece um procedimento para enunciar algo, o que é feito por

meio de um ato. Mas, para que esteja completo o processo dinâmico da tributação, deve-se

entender que a interpretação desse ato é uma norma jurídica, o que nos remete à situação em

que o vocábulo “norma” é usado como fecho. A sequência completa é, portanto, formada de

um quarteto: norma (de competência), procedimento, ato, norma (de lançamento).

Com isso, podemos concluir que somente é possível a investigação do procedimento

do qual decorre o lançamento tributário no plano dinâmico, além de que deve ser apontado um

específico ordenamento jurídico para essa investigação. Isso porque uma teoria do tributo não

pode revelar, de antemão, qual procedimento, ou mesmo sequer cogitar da sua existência, pois

pode não existir, que melhor combine com certa norma de tributação572; ademais, estaticamente,

o lançamento tributário já se apresenta como norma jurídica, como produto, não havendo

qualquer razão, por esse plano, da investigação de ter sido ele produzido por meio de um único

ato ou como uma série de atos, como um procedimento.

6.1.2 Declaratória ou constitutiva

Há ainda um outro ponto que se deve ressaltar quanto à afirmação de ser o lançamento

tributário um ato jurídico, independentemente de esse ato ser a conclusão de um procedimento

ou não. Isso é feito por certa linha de pensamento, para quem, a partir de um ponto na cadeia

de positivação normativa, não mais haveria criação jurídica, mas apenas declaração, mera

aplicação do direito, cujo resultado então não se designaria como norma jurídica, mas ato

jurídico573. Ocorre que tal formulação somente seria possível se desconsiderarmos um ponto-

frente explica sua posição: “Um ato tributário, um ato de lançamento tributário, visto sob o ponto de ato, nada mais é que uma concatenação de atos que, somados, chamam-se procedimento, todos regulados por normas que visam inserir norma individual e concreta no sistema do direito positivo. Essa norma individual e concreta última chama-se de lançamento tributário”. Idibem, p.96. Essa posição, de apontar um caráter triplo para o lançamento tributário, é reveladora de quem bebeu em CARVALHO: “[...] podemos aludir ao “lançamento”, concebido como norma, como procedimento ou como ato”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 18.ed., p.399. 572 Nesse sentido, SANTI: “É o próprio ordenamento jurídico, mediante as normas que prescrevem o exercício formal da competência administrativa, quem decide se o suporte fáctico suficiente para postura do ato-norma é um ato isolado ou um procedimento”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.149. 573 Registramos aqui a posição de XAVIER: “Como ato de aplicação da norma tributária material ao caso concreto, o ato tributário é, por natureza, um ato que declara uma obrigação ou que reconhece ou denega um direito decorrente da referida norma”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.66. Todavia, não podemos esquecer as palavras de BOBBIO: “Que o juiz declare, e não crie, o direito não é uma teoria, mas uma ideologia (é a ideologia que quer manter a ilusão da certeza do direito)”. Norberto Bobbio, Estrutura e função na teoria do direito de Kelsen, In: ______. Da estrutura à função, p.195.

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chave desse trabalho, qual seja, que a aplicação do direito equivale à criação do direito. Com

isso, nossa conclusão é a de que, por mais concreta que seja a descrição contida na hipótese,

por mais individualizada que esteja a conduta, com todas as suas determinações precisadas,

estamos, ainda assim, diante de uma norma jurídica, o que nos impinge a afirmar, para evitar

dúvidas sobre seu caráter constitutivo, que o lançamento tributário é norma jurídica574.

Assim, a vetusta questão de saber se o lançamento tributário possui caráter constitutivo

ou declaratório, deve ser respondida tendo em conta que é ele uma norma jurídica o quê, por si

só, garante-lhe a condição de não ser meramente uma declaração575. Antes de norma jurídica,

não há conduta devida576. De toda sorte, por não olvidamos que, sendo norma jurídica, o

lançamento tributário apresenta aquela estrutura bimembre, e que, na sua hipótese, encontra-se

a descrição de um fato concreto, o qual se tem por realizado, até podemos compreender o porquê

de tanto apego ao aspecto declaratório. Entretanto, isso não altera o ponto fulcral do tema, pois

a conduta devida, a obrigação de levar dinheiro ao Estado, é por ele, o lançamento tributário,

constituída.

6.2 CONTINGÊNCIA DA NORMA DE LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

O tributo, a partir de um enfoque normativo, desdobra-se em três normas: de

tributação, norma-guia; de competência, norma que concede validade; e de lançamento, norma

574 Interessante a nomenclatura utilizada por SANTI, mantendo a tradição do termo “ato” para designar o lançamento tributário, mas o combinando com “norma”. O citado autor define lançamento tributário como “[...]o ato-norma administrativo que apresenta estrutura hipotética-condicional, associando à ocorrência do fato jurídico tributário (hipótese) uma relação jurídica intranormativa (conseqüência) que tem por termos o sujeito ativo e o sujeito passivo, e por objeto a obrigação deste em prestar a conduta de pagar quantia determinada pelo produto matemático da base de cálculo pela alíquota”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.155-156 (itálicos do original). 575 A discussão sobre o caráter constitutivo ou declaratório do lançamento tributário apresenta nuances, fora do campo de tudo ou nada, como se vê na posição de MACHADO: “O lançamento [...] é constitutivo do crédito tributário, e apenas declaratório da obrigação correspondente”. Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, p.153. Contudo, a contemplação não agrada a todos: “[...] é erro rotundo dizer que o lançamento institui o crédito. O erro continua redondo para aqueles que querem conciliar correntes inconciliáveis e proclamam que o lançamento declara a obrigação e constitui o crédito. A obrigação nem sempre necessita ser declarada, e o crédito nasce sempre com ela”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Curso de direito tributário brasileiro, p.751. Cabe, ainda, registro do entendimento de HORVATH, que, mesmo assumindo posição pela tese declarativista (sic), aponta que, no fundo, a questão seria de referencial: “Adotamos a tese declarativista, porquanto entendemos que a obrigação nasce com a ocorrência do fato gerador, sendo somente declarada mediante o ato de lançamento. [...]. Não podemos, sem embargo do que dissemos acima, deixar de frisar que, em verdade, a constitutividade ou declaratividade de qualquer ato dependerá [...] do referencial que houver sido adotado para a elaborar o raciocínio. Se o lançamento é declaratório quanto a reportar-se à obrigação surgida com a ocorrência do fato imponível, não há dúvidas de que também ‘constitui’ deveres e direitos que, antes da prática daquele ato não se conheciam”. Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p.77-78. 576 “[...] o lançamento aplica normas jurídicas gerais e abstratas [...]. Mas, simultaneamente, cria normas individuais que irradiam direitos e deveres para o Fisco e sujeito passivo. Esses direitos e deveres eram inexistentes antes da conclusão do lançamento”. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.115.

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máxima da positivação. Todavia, essa é apenas uma regra, que comporta exceção, já que a ideia

de normatividade triádica do tributo, em seu processo dinâmico, é algo que deve ser apreciado

empiricamente, em análise sobre um específico ordenamento jurídico, sem que possa jamais

ser estendida à categoria de teoria que dispense os dados concretos. Ao fim e ao cabo, o processo

dinâmico da tributação é lógico-jurídico, mas se ele é triádico, por sua vez, é questão jurídico-

positiva. Afinal, nada impede que o ordenamento jurídico construa, antes da norma de

tributação, v.g., duas normas de competência. De igual modo, pode adotar uma posição

reducionista, ao menos para algumas normas de tributação, limitando tudo a uma norma de

competência e a uma norma de conduta, sendo ela, na sua forma abstrata, eventiva e geral,

dispensando, assim, que se ponha outra norma de conduta, como uma norma concreta, ocorrente

e individual577.

Hipoteticamente podemos exemplificar esse minimalismo com uma norma de

competência tributária que permite, dadas certas condições, mediante um procedimento

estabelecido, com conteúdo pré-definido, instituir tributo, ou seja, pôr norma de tributação, a

qual, uma vez posta, descreve abstratamente um fato lícito e prescreve a obrigação de um sujeito

não particularizado, característica geral, de levar dinheiro ao Estado, quantum calculável, mas

não precisado, sua característica eventiva. Ainda, neste mesmo exemplo hipotético, se ecoar

em concreto a situação descrita em abstrato, então deve ser, a um específico sujeito, a obrigação

de conduta determinada (levar uma quantia exata de dinheiro), sem a necessidade de que essa

obrigação dependa da positivação de qualquer outra norma mais específica. Isso porque, uma

vez “[r]ealizado o evento típico e inaugurada a relação jurídica, o sujeito devedor encontrará na

lei todas as informações relativas ao fiel cumprimento da obrigação que lhe cabe [...]”578.

Claro que pode o ordenamento jurídico ser construído de um outro modo, no qual a

norma abstrata, eventiva e geral não bastaria para que a obrigação passasse a ser devida, sendo

577 MACHADO percebe com clareza que uma discussão sobre o lançamento tributário pode ser desenvolvida em duas frentes: uma, a partir do ponto de vista da teoria da norma; outra, tendo em conta um particular ordenamento jurídico: “A questão que se coloca, então, é a de saber se no plano da Teoria Geral do Direito, sem levarmos em conta nenhum ordenamento jurídico positivo, é possível um tributo sem lançamento”. Hugo de Brito Machado, Impossibilidade de tributo sem lançamento, Revista dialética de direito tributário, n.90, p.56. E acaba por responder negativamente à questão formulada— com o que não podemos concordar, conforme exporemos —, por entender que a verificação, por parte do Estado, de ter sido ou não cumprida a conduta de levar dinheiro equivaleria ao lançamento: “[...] este existirá, sempre, consubstanciado na manifestação da Administração Tributária a respeito da determinação, feita pelo sujeito passivo, do valor do tributo”. Ibidem, p.60. 578 Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, 1.ed., p.255. Devemos, todavia, registrar que o autor mudou de posição: “[...] a norma geral e abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisivamente, a edição de norma individual e concreta. Uma ordem jurídica não se realiza de modo efetivo, motivando alterações no terreno da realidade social, sem que os comandos gerais e abstratos ganhem concreção em normas individuais”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.218. Outro que entende pela imperiosidade da construção de toda a cadeia de positivação é SANTI: “[...] não há tributo que prescinda de ato-norma que formalize seu crédito”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.220.

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necessário um outro passo na cadeia de positivação. Entretanto, essas duas possibilidades de

construção demonstram que uma norma concreta, individual e ocorrente é algo acidental diante

de uma teoria do direito, pois não há qualquer obstáculo que impeça o modelo mínimo, com

apenas uma norma de competência e uma norma de conduta não precisada, não passando o

caso, portanto, de uma questão de conveniência579.

Assumindo a contingência da norma de lançamento, voltemos nossa atenção para a

norma de tributação, que, não olvidemos, é norma primária. Nela consta, na hipótese, uma

abstração e, na consequência, um sujeito dado de forma geral, com uma conduta de passar de

mãos a bolsa, sem a exatidão de quanto ela deve conter, sendo dada apenas a forma de cálculo

(ver 4.4). Contudo, se dermos como verificado o descrito em abstrato, então se abrem duas

possibilidades: ou a conduta prescrita se realiza ou não se realiza. Com a primeira hipótese, a

cadeia de causalidade normativa é interrompida. Já para a segunda situação, faz-se necessária

a positivação da norma eventual (ver 2.8). E é aqui que, para nós, reside o busílis. A norma

primária, mesmo que abstrata, eventiva e geral, se assim dispuser o direito positivo, obriga de

pronto, sem a necessidade de positivação de outra norma primária mais específica. A partir

disso, a adequação da conduta daquele que é obrigado pode ou não ser observada de fato. No

primeiro caso, sendo verificada, não haveria norma a assentar; entretanto, pela segunda

hipótese, sendo verificado o não cumprimento da obrigação, então surgiria a necessidade de

positivação da causalidade jurídica, não via outra norma primária, mas sim por meio de uma

norma eventual.

O processo dinâmico normativo significa que todo ato de aplicação é ato de criação. E

se tomarmos a cadeia normativa inteira, ao longo do processo de causalidade jurídica, teremos,

numa ponta, o fato fundamental, que não aplica norma alguma, a não ser a norma fundamental

— e que se diga, não é norma jurídica (ver 2.3) —, e, no outro extremo, o último ato material

579 Encontramos em KELSEN uma leitura da norma de lançamento como uma contingência: “[...] um projeto de lei financeira obriga os indivíduos a pagar impostos de acordo com sua renda prevendo sanções no caso de o imposto não ser pago. Mas, de acordo com algumas ordens jurídicas, um indivíduo concreto só é submetido à obrigação efetiva de pagar tal e tal imposto se um órgão competente, um funcionário do fisco, após avaliar seu rendimento, ordenar que ele o faça”. Hans Kelsen, Teoria geral do direito e do estado, p.293 (II.I.D.c). Entre nós, sobre a acidentalidade do lançamento, ninguém foi mais direto do que BECKER: “Se a exigibilidade [...] do direito [...] ficasse sempre condicionada a uma demonstração ou comprovação histórico-jurídica do acontecimento dos fatos que realizam a hipótese de incidência, então estaria perdida a praticabilidade do direito. [...]. Entretanto, aquela simultaneidade no nascimento do direito e sua exigibilidade [...] pode, por exceção, ser quebrada [...]. Porém, esta quebra de simultaneidade é anormalidade na fenomenologia do nascimento da relação jurídica. [...]. Para que aquela anormalidade na fenomenologia jurídica seja admissível no mundo jurídico, é absolutamente necessária a existência de uma regra jurídica cuja regra [...] seja justamente a criação daquela anomalia [...]. A criação de uma tal regra jurídica fica ao arbítrio do legislador, o qual procurará, racionalmente, um ponto de equilíbrio entre a praticabilidade e a certeza do direito”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.356-357.

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decorrente de norma eventual, já que mantemos a linha do mínimo de eficácia como critério de

validade (ver 2.2). Ocorre que, entre esses extremos, na cadeia normativa, pode muito bem não

ser o caso de aplicação da norma eventual, tendo em conta o cumprimento espontâneo da

obrigação de conduta prevista na norma primária. E não foi por outro motivo que preferimos

unir a norma primária à norma eventual por meio do sincategorema disjuntivo (ver 2.8). Assim,

caso não ocorra o comportar-se de acordo com a norma primária, ou seja, caso não se verifique

a conduta nela prescrita, então, e só então, é que se faz necessária a positivação de uma nova

norma eventual, agora dotada de maior concretude. A norma eventual, que em um primeiro

momento é abstrata, geral e eventiva, que que liga à norma de tributação — não sendo o dinheiro

carreado a quem de direito, então deve ser, da parte de alguém, a realização da execução forçada

—,agora é novamente construída, só que de modo concreto, individual e ocorrente — tendo em

conta que o dinheiro não foi entregue, então deve alguém específico retirar à força, se assim for

preciso, uma exata quantia.

É nessa divisão entre norma primária e norma eventual que reside o ponto-chave da

positivação, pois, para uma teoria normativa do tributo, sendo abstratas, eventivas e gerais tanto

a norma de tributação, como a norma eventual que a ela se liga de forma disjuntiva (ver 4.1),

apenas esta última precisaria ser positivada, já que o verter recursos para os cofres públicos

pode ser devido sem o mister de qualquer outra norma jurídica, bastando, para isso, que assim

disponha o direito positivo.

Desse modo, o que buscamos expor é que a norma primária de conduta, mesmo que

abstrata, eventiva e geral, pode ser cumprida de plano, não carecendo, para tanto, de qualquer

nova norma mais específica, e que, apenas em caso de seu descumprimento, necessitar-se-ia

então de uma nova formalização em linguagem580. Com isso em mente, de um ponto de vista

580 Em sentido contrário, podemos citar CARVALHO, HORVATH e MENDONÇA: “[...] as normas gerais e abstratas não ferem diretamente as condutas intersubjetivas, para regulá-las. Exigem o processo de positivação, vale dizer, reclamam a presença de norma individual e concreta a fim de que a disciplina prevista para a generalidade dos casos possa chegar ao sucesso efetivamente ocorrido, modalizando deonticamente as condutas”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.83 (itálicos do original). “[...] parece ser que a única forma de realização das normas gerais e abstratas seja mediante as normas individuais e concretas”. Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p.26. “Como as condutas humanas perseguidas pelo direito [...] não são atingidas com as meras previsões gerais e abstratas, encartadas em regras jurídicas de escalão constitucional, legal ou mesmo infralegal, faz-se necessária a edição de normas individuais e concretas, para colher casos específicos”. Cristiane Mendonça, Competência tributária, p.84. Com a devida vênia, não podemos ter como correto um entendimento que associa a toda norma primária abstrata, geral e eventiva uma norma primária, concreta, individual e ocorrente. E para corroborarmos essa desnecessidade, um exemplo é mais do que suficiente. Imaginemos a seguinte norma: exceto para os casos de excludentes de ilicitude (hipótese), deve ser a proibição de matar (consequência) [norma primária], ou [disjunção] se matar (hipótese), então deve ser a obrigação da aplicação da pena de reclusão (consequência) [norma eventual]. Ora, com base nessa norma, desde já, estamos todos obrigados a não matar, a não ser que presente algum excludente, sem a necessidade de qualquer outra norma mais específica. Por outro lado, apenas em caso de se matar alguém, com a ausência do excludente, é

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dinâmico, podemos conceber um ordenamento jurídico no plano tributário, plano da norma

primária, com apenas duas normas: uma, a norma de competência; outra, a norma de tributação,

que determina a obrigação de levar dinheiro ao Estado; não havendo a necessidade de qualquer

terceira norma, como a de lançamento. Eis que, à guisa de arremate, não temos dúvidas em

expor que ter ou não lançamento tributário, no sentido de norma jurídica, é uma questão do

soprar dos ventos, ao alvitre de quem põe o direito positivo.

6.3 FISCALIZAÇÃO

A norma primária, abstrata, eventiva e geral pode vincular a conduta do sujeito sem a

necessidade de qualquer outra positivação. Não há, com efeito, qualquer imperativo lógico para

que aquilo que está descrito abstratamente seja descrito de forma concreta, muito menos que a

conduta dada apenas de forma genérica, eventiva, seja precificada na forma de uma ocorrência,

ou ainda que o sujeito apresentado como geral precise tornar-se individual. Em suma, a conduta

prescrita em norma primária, abstrata, eventiva e geral pode muito bem ser devida sem a

precisão de qualquer outra norma mais específica. Não obstante, que certo ordenamento jurídico

estabeleça que apenas é devida a conduta regrada em norma primária, abstrata, eventiva e geral

quando for positivada na forma de uma norma também primária, mas concreta, ocorrente e

individual é questão de ocasião. Duas são, portanto, as possibilidades: em um caso, pode muito

bem ser possível que um específico ordenamento jurídico estabeleça que se dado o descrito em

abstrato, hipótese da norma de tributação, então deve ser, para o sujeito prescrito, a obrigação

de entregar moeda ao Estado, de pronto, sem a necessidade, para tanto, de intervenção de

qualquer norma concreta, ocorrente e individual; em outro, a simples verificação do descrito na

hipótese da norma de tributação não bastará para que a obrigação seja devida, necessitando-se

ainda de uma norma de lançamento, com a passagem, por meio da positivação, do abstrato,

geral e eventivo para o concreto, individual e ocorrente.

Não se olvida, por óbvio, que sem uma positivação normativa mais específica,

havendo apenas a norma abstrata, eventiva e geral, fica a cargo do sujeito interpretar, de modo

particular, se é devida ou não a conduta prescrita. Entretanto, essa operação mental feita em

nada se confunde com o pôr uma norma jurídica mais específica. Uma coisa é reconhecer os

fatos como subsumíveis à hipótese abstrata de uma norma jurídica, e, então, interpretar como

devida uma particular conduta; outra coisa, bem distinta, é produzir um enunciado onde os fatos

então que deve ser a obrigação de se assentar a norma concreta (descrição do descumprimento), com a prescrição, para alguém individualizado, de uma pena específica, fixada, dando-lhe caráter ocorrente.

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202

e a conduta devida são apresentados de forma particularizada. No primeiro caso, dispensa-se a

exteriorização de qualquer linguagem; já na segunda situação, ela é premente. Assim, “[n]ão

devem, pois, confundir-se com os atos de aplicação da lei tributária, as suas operações de

aplicação, caracterizadas pela natureza de juízos lógicos, aos quais falta a exteriorização numa

conduta e a produção de efeitos próprios”581.

Para um ordenamento que dispensa a norma de lançamento, basta apenas que o sujeito

passivo da norma de tributação a interprete, combinando-a com os fatos, para então concluir se

tem ou não a obrigação de fazer circular o guinéu, sendo, ato seguinte, caso entenda como

devida a conduta, decidir se vai, de fato, cumpri-la ou não. Agora, não há nisso um ato de

aplicação do direito, que, ademais, em nosso trabalho, confunde-se com a criação do direito

positivo582. Logo, devemos considerar duas questões, que são totalmente distintas: uma, é que

a norma jurídica é posta, não pensada; outra, é que a norma jurídica, para ser cumprida, deve

ser interpretada. Assim, a norma de tributação é norma posta, não pensada, que pode vincular

desde sempre, sem a necessidade de outra norma, como uma norma de lançamento. Porém,

situação diversa é ter a norma de tributação que ser interpretada e combinada como os fatos,

para que, então, um específico indivíduo conclua se é obrigado a entregar dinheiro ao Estado,

e em que quantia. No entanto, esse interpretar a norma junto aos fatos não se confunde com o

ato de assentar a norma jurídica de lançamento. São prescrições diversas: em um caso, leve

dinheiro ao Estado; em outro, enuncie a norma de lançamento tributário (ou mesmo de

autolançamento, termo que guardamos para uma situação mais específica, conforme 6.4.4.1)583.

Questão distinta da interpretação e do cumprimento da norma de tributação, bem como

da necessidade de se enunciar norma de lançamento, é a da imputação à autoridade competente

581 Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.50. No mesmo sentido, podemos ainda apontar BORGES: “Identifica-se [o verbo lançar] [...] com uma operação lógica, uma operação intelectual. Mas essa operação lógica não basta, por si só, para a autonomização dos contornos jurídicos da noção de lançamento. Antes, é irrelevante para a sua caracterização. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.84 (esclarecemos entre colchetes). 582 Nesse sentido, BORGES: “A observância é relação de simples conformação da conduta à norma. A relação de aplicação, para a sua efetividade, envolve reversamente a necessidade a necessidade de ato formal [...]. Quem cumpre a norma, implicitamente a interpreta; quem aplica a norma, previamente a interpreta. Os resultados da interpretação são porém, em tais hipóteses, diversos. A conformação entre conduta e norma (subsunção) se esgota na simples observância do preceito. A aplicação da norma implica, como resultado, a criação de outras normas”. José Souto Maior Borges, Curso de direito comunitário, p.42-43. [...] a criação e aplicação do Direito devem ser distintas da simples obediência, conformação ou subsunção ao Direito”. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.110. 583 Nesse sentido, JARACH: “[...] existem tributos [...] que a obrigação não só existe, senão que é exigível e deve ser cumprida prescindindo de qualquer ato de determinação por parte de um órgão estatal. Alguns escritores são chamados à atividade lógica do obrigado, com que ele determina a existência de sua obrigação e o montante da prestação adequada, autoaccertamento, isto é, autodeterminação. Este nome, dado a uma atividade puramente lógica é errôneo e contém, o que é pior, um fundamental equívoco sobre a natureza dela”. Dino Jarach, O fato imponível: teoria geral do direito tributário substantivo, p.69.

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do dever de verificar se aquele que está obrigado a levar dinheiro em razão direta da norma de

tributação interpretou-a e agiu em conformidade584. Um interpreta e comporta-se (ou não)

conforme o prescrito em norma jurídica; outro, também interpreta, analisando os fatos e

verificando sua subsunção à norma, mas seu comportamento não é o de levar dinheiro ao

Estado, mas sim, em caso de desconformidade praticada pelo primeiro, positivar uma norma

eventual.

Agora, como essa verificação deve dar-se, é questão inteiramente de direito positivo,

sem a possibilidade de uma determinação padrão a priori. Apesar disso, ressaltamos que um

modo simples de fiscalizar outrem é estabelecer a ele a obrigação de prestar contas a quem

fiscaliza. Afinal, “[c]om relação a todos os tipos de atos e atividades, reivindicações e

refutações, cidadãos de uma sociedade podem ser chamados a demonstrar a justificação legal

para o que fazem”585. Com isso, podemos pensar, ao lado da obrigação de prestar contar,

questões como a denúncia espontânea, por meio da qual não há apenas a confissão de quem

deveria pagar e não pagou, mas há juntamente o efetivo pagamento, tudo sob a motivação de

ver a pena pelo descumprimento elidida586.

Assim, há a obrigação de levar o dinheiro (obrigação de dar, decorrente de norma de

tributação), há a obrigação de prestar contas (obrigação de fazer, presente em norma primária),

e há a obrigação de punir quem não entregou o dinheiro e/ou não prestou contas (constante de

norma eventual). Com isso, queremos frisar, com as mais fortes cores, que não se deve

promover um sincretismo entre a obrigação de prestar contas ao Estado e a obrigação de levar

dinheiro ao Estado, uma vez que cada obrigação decorre de uma norma jurídica específica, com

suas respectivas normas eventuais587.

584 “Cuando la determinación de la obligación tributaria debe ser efectuada directamente por el propio deudor [...], la Administración tiene que estar facultada para comprobar que, en efecto, el tributo ha sido satisfecho en la oportunidad y forma previstas en el ordenamiento. El conjunto de actos que integran el procedimiento para llevar a cabo tal comprobación es lo que denominamos ‘fiscalización’”. Humberto Medrano Cornejo, Prescripción, intangibilidad de la determinación impositiva y fiscalización, in: Heleno Tôrres (coord.), Teoria geral da obrigação tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges, p.391. 585 Neil MacCormick, Argumentação jurídico e teoria do direito, p.23 (II). 586 Sobre a denúncia espontânea, no formato arrependimento-confissão-reparação, citamos VIERA: “[...] arrependendo-se o sujeito passivo da prática da infração tributária, o instituto do art. 138 do CTN abre-lhe a perspectiva de tornar eficaz o seu arrependimento, desde que, antes de qualquer iniciativa do sujeito ativo, promova a confissão espontânea da infração (voluntariedade), fazendo-a acompanhar do pagamento do tributo devido e dos respectivos juros de mora (reparação), hipótese em que ficam definitivamente afastadas quaisquer penalidades que, de outro modo, lhe seriam aplicáveis, uma vez que esse dispositivo extingue a punibilidade da infração tributária confessada e reparada”. José Roberto Vieira, Denúncia espontânea e multa moratória: confissão e crise na “jurisdição administrativa”, in: Luiz Eduardo Gunther, Jurisdição: crise, efetividade e plenitude institucional, p.383. 587 “Os órgãos de fiscalização têm por missão específica o exercício de uma função de controle, de cumprimento das obrigações tributárias dirigida a uma pluralidade de situações, independente do eventual lançamento de tributos em casos individualizados”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.64.

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A norma de tributação é apenas parte da norma completa, que contém ainda a norma

eventual (ver 2.8 e 4.1). Entretanto, a cadeia normativa, ao longo do processo de positivação,

pode ser escrita apenas com a concretização da norma eventual, pois pode muito bem não

pretender o feitor do direito positivo que seja necessária uma norma de lançamento — concreta,

individual e ocorrente — para que a conduta de levar dinheiro ao Estado passe a ser devida.

Quando for assim, verificamos apenas a imperiosidade de um revestimento em linguagem para

o descumprimento do previsto na norma de tributação, na qual haverá a descrição do não

pagamento, bem como com a prescrição, agora individualizada e ocorrente, da obrigação de se

retirar — se preciso for, à força — quantia determinada, a ser entregue ao Estado ou outro que

exerça função pública, situação que denominamos de execução forçada588.

6.4 ORDENAMENTOS QUE EXIGEM LANÇAMENTO TRIBUTÁRIO

A positivação de uma outra norma — norma de lançamento — além da norma de

tributação, como imperativo para que a obrigação tributária surja, é apenas uma opção que pode

ou não ser adotada. Afinal, duas normas primárias são suficientes para expor a dinâmica da

tributação: a norma de competência e a norma de tributação. Apesar de suficiente, no grau

mínimo, um ordenamento jurídico pode optar por uma tríade, pois é igualmente lícito dispor

que apenas na presença de uma positivação do abstrato, eventivo e geral por outra norma

jurídica, agora concreta, ocorrente e individual, norma de lançamento tributário, é que seria

devida a conduta589.

Isso posto, uma teoria do tributo deve comportar as duas situações sob pena de ser, na

verdade, a descrição de um particular ordenamento. Tudo isso sem perder de vista que somente

a investigação poderá responder se a verificação da hipótese da norma de tributação já enseja a

588 A ideia aqui é a de máxima simplificação, pois, do não cumprimento da obrigação presente na norma de tributação, passamos diretamente à ordem para o último ato material do processo de positivação do tributo, que é a entrega de dinheiro ao Estado, mesmo que sem o consentimento do obrigado. Entretanto, a depender de cada direito positivo, há uma enormidade de etapas a serem cumpridas antes disso. Basta lembrarmos que a expropriação se pode dar sobre outros bens que não dinheiro. Neste caso, mantendo a nossa linha, a de que aquilo que se entrega ao Estado é dinheiro (ver 4.3.1.1), então deve haver prescrições para a conversão desses bens em dinheiro, uma vez que “[...] o exeqüente, que tinha um crédito em dinheiro, continua com o direito de recebê-lo em espécie, de sorte que os bens penhorados devem ser convertidos em pecúnia para seu pagamento”. José Afonso da Silva, Execução fiscal, segundo o novo código de processo civil, p.93. 589 “Se o lançamento tributário é uma formalidade legal definida como necessária [...], essa formalidade precisa ser cumprida no contexto da fiscalização responsável. [...]. [...] não podemos ignorar a lei, nem usar o pretexto de não gostar das soluções dadas pela lei, para fazer o direito que julgamos mais conveniente — sob pena de perdermos o referencial (a lei) que deve pautar o trabalho do aplicador do Direito”. Luciano Amaro, Lançamento, essa formalidade! in: Heleno Tôrres (coord.), Teoria geral da obrigação tributária: estudos em homenagem ao Professor José Souto Maior Borges, p.390.

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obrigação de transportar dinheiro ao Estado ou se, para surgir tal obrigação, seria ainda

necessária a norma de lançamento tributário.

No entanto, se a resposta for pela imperiosidade da norma de lançamento tributário,

então isso significa que a norma de tributação — a norma que descreve o fato lícito ao qual liga

deonticamente uma obrigação de levar dinheiro ao Estado, com os dados para a quantificação

do valor e para a individualização do sujeito — não seria, na verdade, uma norma de conduta,

como comumente se entende590, mas uma norma de competência, pois o que ela de fato regula

é a conduta de produzir outra norma jurídica, sendo, então, essa nova norma quem regulará a

conduta de dar.

6.4.1 Norma de tributação lida como norma de competência

Para uma teoria normativa do tributo, no plano dinâmico, de modo diminuto, apenas

duas normas primárias já são suficientes, a norma de competência tributária e a norma de

tributação. Pela primeira, disciplina-se a conduta de pôr, alterar ou excluir a segunda (ver 5);

pela segunda, a conduta regulada é a de levar dinheiro ao Estado (ver 4). Entretanto, podemos

buscar um modelo mais detalhado, alongando a cadeia de positivação, com um pé da pirâmide

normativa maior, introduzindo em nossa maquete uma norma concreta, ocorrente e individual,

que, em matéria de tributação, chamamos de lançamento tributário. Quanto a isso, não há

nenhum impedimento. Entretanto, se assim o fizemos, não podemos perder de vista a mudança

que nosso ordenamento modelo sofre, pois a norma de tributação, que numa construção com

apenas duas normas, é norma de conduta, passa então a ser norma de competência.

A norma de competência tributária dispõe sobre a criação da norma de tributação. Essa

última norma, no modelo dual, com apenas duas normas, tem de ser a norma de conduta, ou

seja, a norma que prescreve a obrigação de levar dinheiro ao Estado. Já, na relação triádica,

com três normas, o foco da norma de tributação passa a ser outro, pois ela, em vez de regular a

conduta de entregar dinheiro, passa a regular a conduta de pôr a norma de lançamento tributário.

Só que, neste modelo, é a norma de lançamento tributário quem ocupa a posição de determinar

o levar dinheiro ao Estado, ou seja, é quem se posiciona como norma de conduta. Há, portanto,

uma mudança de status da norma de tributação, pois ela, em vez de regular a conduta de levar

590 Nesse sentido, CARVALHO e VIEIRA: “[...] a regra-matriz de incidência tributária é, por excelência, u’a norma de conduta [...]”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p.357. “Quanto à norma tributária em sentido estrito ou regra-matriz de incidência tributária, indubitavelmente, é uma das mais típicas regras de comportamento”. José Roberto Vieira, A regra-matriz de incidência do IPI: texto e contexto, p.70.

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dinheiro ao Estado, disciplina a conduta de pôr outra norma jurídica, qual seja, a norma de

lançamento tributário, o que faz dela, nos termos desta exposição, uma norma de competência.

Não que não haja, na norma de tributação, quando lida como norma de competência,

a descrição de fato lícito, na hipótese, e, na consequência, entre outras coisas, a forma de

calcular o devido. Isso permanece. O que não mais encontramos é o mandamento direto de dar

dinheiro, razão que nos impõe, nos termos deste ensaio, a deixar de fazer referência a ela como

norma de conduta. Assim, temos duas possibilidades, a demandar definição pelo direito

positivo: ou a norma de tributação dispõe sobre o pagamento, ou a norma de tributação regula

a forma de pôr a norma de lançamento tributário, para que ela, então, disponha sobre o

pagamento. Ademais, a situação é excludente, ou uma ou outra, pois a conduta devida ou é a

de pagar, dar dinheiro, ou é de pôr a norma de lançamento591. Porém, sendo devido pôr a norma

de lançamento tributário, até o advento dela, não há a obrigação tributária, no sentido de

obrigação de dar dinheiro.

Na norma de tributação, quando lida como norma de conduta, modelo dual (uma

norma de competência e uma norma de conduta), é encontrada, na consequência, a obrigação

de dar dinheiro, não se carecendo de qualquer outra norma jurídica mais específica para que

essa conduta seja devida. Ela, norma de tributação, basta per se. Uma vez cumprida a obrigação,

não há a necessidade de se alongar a cadeia de positivação normativa, ficando a imperatividade

de positivação apenas para caso de descumprimento. Somente não sendo realizada a conduta

devida, não sendo o dinheiro aportado às burras do fiscum, é que, então, surge a obrigação de

positivação da norma eventual. Com isso, quer dizer-se que pode muito bem um ordenamento

jurídico ser construído apenas com a positivação da norma eventual tributária, sem qualquer

apelo à positivação além da norma de tributação, que é abstrata, geral e eventiva. E, de fato,

tudo não passa de uma questão contingente, a ser decidida por quem constrói o ordenamento

jurídico. Assim, ou ir-se-á confeccionar a norma de tributação como norma de competência,

por meio da qual o devido é pôr norma de lançamento tributário, que é concreta, eventiva e

individual; ou edificá-la-á como norma de conduta, sendo devido, com a realização do descrito

na hipótese, sem a necessidade de qualquer norma de lançamento tributário, o dar dinheiro.

591 Quanto à norma de tributação determinar o conteúdo da norma de lançamento tributário, não é o mesmo que determinar a obrigação tributária. Assim, ao se falar em função dupla para a norma de tributação, o que se quer apontar é que tanto determina o enunciar a norma de lançamento, como prescreve o conteúdo que deve ter esse enunciado. Nesse sentido, BORGES: “As normas jurídicas tributárias de caráter geral e abstrato, sobretudo as leis ordinárias do tributo, podem exercer uma dupla função. A primeira consiste em determinar o órgão aplicador e o processo de aplicação da norma tributária. A segunda consiste em determinar o conteúdo dos atos administrativos tributários — e, entre estes, o conteúdo do lançamento. Por meio de uma dessas funções, o Fisco estabelece normas individuais que consistem na aplicação de normas gerais aos casos concretos”. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.81.

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207

De nosso exposto, é possível concluir que a norma de tributação pode ser assentada de

dois modos: ou como norma de conduta ou como norma de competência. Por essa última via,

antes de posta a norma de lançamento tributário, não há a obrigação de se levar dinheiro ao

Estado, sendo que o obrigatório passa a ser uma outra atuação, a de pôr a norma concreta,

ocorrente e individual, com essa sim contendo, na consequência, a obrigação, já

individualizada, de carrear uma precisa quantia ao Estado. Para esse último caso, a norma de

tributação — que é fundada na norma de competência tributária — passa a ser a norma fundante

na cadeia normativa, pois não é por meio dela que se verifica a obrigação de dar pecúnia, a qual

somente passa a ser devida com a norma de lançamento tributário.

6.4.2 Obrigação de lançar

No plano teórico, a passagem da norma de competência para a norma de conduta pode

ser permita, proibida ou obrigatória (ver 2.9). Assim, seria ou permitido ou proibido ou

obrigatório a certo sujeito dispor sobre norma de conduta. E para o caso específico do

lançamento tributário, sendo ele norma jurídica, também seria lícita tal leitura. Entretanto,

vamos focar-nos em um modal específico de conduta, pois o comum é se falar que o ato de

lançar é vinculado592. Ocorre que, com isso, outra coisa não se quer dizer a não ser que é

obrigatório o estatuir uma norma concreta, ocorrente e individual, respeitando forma e conteúdo

estabelecidos em norma de tributação, sob empuxo de consequências prescritas em norma

eventual (ver 2.8)593.

No modelo tríadico, a norma de tributação obriga a pôr outra norma, a norma de

lançamento, e não a dar dinheiro. Mas não é só nesse caso que ocorre mudança, com ela também

se verificando na norma eventual que se conecta à norma de tributação. Para os casos em que a

obrigação de levar dinheiro é o foco, a norma eventual, ao lado de outras possibilidades, como

inclusive a prisão, prescreve a execução forçada para seu descumprimento. Porém, para os casos

em que a obrigação é a de se pôr a norma de lançamento, a norma eventual que se liga à norma

592 “[...] não é o ato-norma que recebe o qualificativo de vinculado, discricionário ou obrigatório: é a atividade que o precede, consubstanciada no suporte fáctico do fato jurídico suficiente para a edição do ato-norma administrativo”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.172. 593 SOUSA elege a expressão “cobrada mediante atividade administrativa vinculada” como “[...] elemento definidor do tributo em contraste com outras receitas públicas [...]”. Rubens Gomes de Sousa, Comentários ao Código Tributário Nacional: parte geral, p.47. Entretanto, a forma vinculada somente ganha relevo na conceituação de tributo se lermos a norma de tributação como norma de competência, sendo então obrigatória — ou seja, vinculada — a produção, processo de positivação, de norma concreta, eventiva e individual. Além de que se entendermos tributo como norma de conduta, a forma vinculada de sua cobrança não pode fazer parte de seu conceito, cabendo à norma eventual prescrever as consequências para os casos em que o valor devido não é levado ao Estado.

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208

de tributação pode assumir duas formas: uma é a de decadência, situação na qual a obrigação

de lançar até certa data torna-se a proibição de lançar após data posterior, tudo sob a condição

de ter-se por invalidada a norma de lançamento posta594; outra é quando a consequência pelo

descumprimento é dirigida diretamente contra quem tinha a obrigação de enunciar a norma de

lançamento. Neste último caso, sendo autoridade pública, fala-se em responsabilidade

funcional595; para os demais casos, fala-se em crime de omissão de prestação de informações596.

De toda sorte, deve ter-se em conta que não se está necessariamente diante de uma

situação excludente, na qual apenas uma ou outra consequência pode advir do não cumprimento

da obrigação de dar seguimento ao processo de positivação, assentando a norma de lançamento.

Com efeito, pode-se muito bem ligar deonticamente a uma única hipótese mais de uma

consequência, o que permitiria uma construção normativa na qual, do não cumprimento da

obrigação de lançar, adviria tanto a invalidação do lançamento, quando realizado após o prazo

estipulado, como a responsabilização funcional do agente obrigado que a não realizou597.

6.4.2.1 Decadência e prescrição

Prescrição e decadência são questões de direito positivo, não existindo per se, como

uma espécie de direito natural598. Todavia, podemos estudá-las por um ângulo maior, da

conceituação do direito, e não meramente no direito (ver 3.2). Por essa linha, podemos assentar,

594 Lembrando que se a norma foi posta, então ela é válida até ser excluída do ordenamento jurídico (ver 2.10). 595 Não devemos esquecer que não é apenas o não lançar que pode trazer a responsabilidade funcional, mas igualmente o lançar em excesso: “[...] é no instante do lançamento que podem se concretizar crimes contra o patrimônio público [...], bem como, e mais importante ainda, contra o sujeito passivo (excesso de exação), em que o agente do fisco não observa a lei e exige mais do que o contribuinte ou responsável deva pagar a título de tributos e penalidades, segundo o fato gerador ocorrido”. Fábio Fanucchi, Curso de direito tributário brasileiro, v.I, p.275. 596 “A conduta omissiva deve ser [...] idônea a produzir um potencial efeito lesivo ao erário público, assumindo o caráter de ocultação intencional de fatos com relevância tributária (fatos que fundamentam o nascimento da obrigação tributária ou repercutem sobre o quantum devido)”. Cezar Roberto Bitencourt e Luciana de Oliveira Monteiro, Crimes contra a ordem tributária, p.165. 597 Nós traçamos como ponto de partida apenas uma norma, a norma de tributação lida como norma de competência, para então ligarmos a ela duas normas eventuais. SANTI também opta por duas normas para consequência do não lançamento, mas faz uma construção diversa da nossa: “O agente público é [...], simultaneamente, sujeito de um dever jurídico e titular de um poder jurídico. É pólo passivo de um dever jurídico de empreender o ato-fato de lançamento tributário, em face do Estado-administração, que é o pólo ativo nesta relação. É pólo ativo do direito subjetivo público (competência) de efetuar o ato-fato de lançamento, em face do contribuinte, que é pólo passivo nessa outra relação. [...]. Essas duas relações jurídicas de direito público são projetadas por duas normas jurídicas diversas e, quando descumpridas, ocorrem, também, efeitos distintos: do descumprimento do dever de lançar, decorre a responsabilidade funcional (Art. 142, parágrafo único do CTN); do não exercício do poder de lançar, decorre a decadência (Art. 173 do CTN)”. Eurico de Santi, Decadência e prescrição no direito tributário, p.115-116. 598 Sobre a prescrição, nesse sentido, PONTES DE MIRANDA: “O instituto da prescrição é de direito positivo. Se havia e há fundamento para êle, ou se é necessário depois de se chegar a certo grau de civilização, é outra questão. Pontes de Miranda, Tratado de direito privado, t.VI, p.100-101.

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como traço comum a ambas, o serem específicas normas eventuais, em oposição às normas

primárias (ver 2.8). Ainda na linha ordinária, são consequências pelas práticas de condutas

extemporâneas, qual seja, a invalidade (ver 2.10). Assim, a norma de competência permite ou

obriga que se ponha norma jurídica até certa data, o que também significa que proíbe que se

ponha após tal data. Contudo, caso a referida norma seja posta depois do transcurso de prazo,

então é o caso de ser ela invalidada. Feita essa precisão, podemos, então, denominar a específica

norma eventual, ligada pela disjunção à norma de competência primária, de norma de

caducidade, da qual a decadência e a prescrição são espécies.

A norma de caducidade prescreve a invalidade de certa norma posta após uma

estipulada data. Esse é o gênero que, por sua vez, comporta espécies, a serem encontradas por

meio de um elemento diferenciado, qual seja, o tipo de norma que se deve invalidar: primária

ou eventual599. Se havia a proibição de se pôr uma norma primária após um dado prazo, então

deve ser a invalidade da norma posta posteriormente. Essa é a norma de decadência. Agora, se

havia a proibição de se pôr uma norma eventual após um marco, então deve ser a invalidade de

tal norma posta de modo extemporâneo. Essa é a norma de prescrição.

Podemos, feita a demarcação, aplicar esse entendimento à teoria do tributo que aqui

construímos. Inicialmente, imaginemos que há uma norma jurídica (1) que obrigue, até certa

data, a pôr a norma de lançamento tributário, proibindo-a depois; agora, suponhamos que

mesmo tendo passado o prazo, a norma de lançamento tributário é posta; logo, deve ser a

invalidação dessa norma posta. Ato contínuo, conjecturemos uma norma jurídica (2) que

obrigue, para os casos de descumprimento da norma de lançamento tributário, dentro de um

certo limite temporal, a enunciação de norma eventual, a qual, por sua vez, prescreve a execução

forçada; agora, consideremos que a norma eventual de execução forçada foi posta de forma

serôdia; por conseguinte, deve ser a invalidação da norma posta. Com isso, podemos estabelecer

a norma (1) como norma de decadência tributária, ou seja, a que determina a invalidade da

norma de lançamento, por intempestividade; e a norma (2) como norma de prescrição, ou seja,

a que prescreve a invalidade da norma de execução forçada, quando enunciada tardiamente.

6.4.3 Procedimento para lançar

599 Em sentido próximo, podemos citar SANTI: “[...] enquanto a decadência ocupa-se do direito consubstanciado na norma primária, a prescrição se dirige ao direito previsto na norma secundária, disciplinando o direito de ação perante o Estado-Juiz para efetivação deste dever. A primeira volta-se para a percussão de direito substantivo; a segunda, de direito adjetivo”. Eurico de Santi, Decadência e prescrição no direito tributário, p.155.

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210

A norma de tributação, quando lida como norma de competência, prescreve, se

verificada sua hipótese, a determinado sujeito, por meio de um procedimento, a conduta de

lançar, ou seja, a de pôr a norma concreta, ocorrente e individual, a qual, esta sim, deverá ter

como conteúdo uma obrigação de dar dinheiro. Entretanto, quanto ao modo de realizar esse

estatuir, pode ela assumir uma gradação, desde a forma mais detalhada até uma livre, caso em

que se fala de ausência de procedimento. De toda sorte, se haverá um procedimento ou não a

ser seguido para se instituir validamente a norma de lançamento, e qual será ele, mais ou menos

complexo, é questão de direito positivo, a ser apreciada mediante o estudo da norma de

competência, sem a possibilidade de determinação a priori, no campo da teoria normativa do

tributo600.

Outro ponto importante, na questão do procedimento para pôr a norma de lançamento,

é não o confundir com atos mentais. Com efeito, estamos aqui tomando procedimento como

uma sequência cronológica de atos exteriores que resultem no suporte físico no qual constará o

enunciado que, uma vez interpretado, dar-nos-á a norma de lançamento. Já o processo mental,

o pensar antes do agir, em como agir, não é por nós aqui considerado601. Afinal, direito positivo

é direito posto, não direito pensado.

Por fim, é no procedimento previsto para se assentar a norma de lançamento,

especificamente a quem cabe sua iniciativa, que tem lugar o estudo de tradicional classificação

do lançamento tributário: por um lado, de ofício; por outro, com base em declaração602. No

primeiro caso, quem tem a obrigação de pôr a norma de lançamento tributário inicia a

exteriorização dos procedimentos sem qualquer provocação. Já na segunda situação, aquele que

tem a obrigação, apenas pode assentar a norma lançamento tributário após receber informações

de outro. E, dessa situação, de haver dois sujeitos, um enuncia a norma de lançamento, outro

dá início ao procedimento para isso resultar, é a razão de, vez ou outra, encontrarmos o

600 Nesse sentido, SANTI e MAIA: “É o próprio ordenamento jurídico por meio das regras de competência (estrutura) [...], que determina a forma legal deste agir para a consecução de introduzir uma norma jurídica no sistema”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.161. “[...] somente através do conhecimento do objeto e da observação da realidade colocada em cada contexto é que se poderá concluir se o lançamento efetivamente se configura como um ato isolado [...] ou ele poderá ser precedido de uma série de outros atos executados com vista à formalização do lançamento”. Mary Elbe Gomes Queiroz Maia, Do lançamento tributário: execução e controle, p.35. 601 “O puro ato de pensamento constitui movimento, contudo de caráter interno, porque não se manifesta exteriormente. Lembremo-nos de que os atos meramente internos não têm relevância para o direito, todavia sim para a moral ou para a religião”. Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário, p.400. 602 Há “[...] dois procedimentos impositivos utilizados para a apuração do tributo: um procedimento clássico, acionado por iniciativa da administração, e outro procedimento não menos clássico, acionado por iniciativa do contribuinte no estrito cumprimento de deveres administrativos legalmente previstos”. Zelmo Denari, Curso de direito tributário, p.188.

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211

lançamento com base em declaração também designado como lançamento misto603. De nossa

parte, nada temos a opor a tal nomeação, pois ela quer dar realce ao processo e não ao produto,

desde que fique claro que quem lança, no sentido de pôr norma jurídica, é apenas um e não

ambos os sujeitos.

6.4.4 Sujeitos competentes para lançar

Um ordenamento, no que diz respeito ao tributo, pode ser construído segundo um de

dois modelos, ao talante daquele que põe as normas jurídicas. Por um esquema, a norma de

tributação é norma de conduta; por outro, é norma de competência. Sendo norma de conduta, é

diretamente dela que decorre a obrigação de pagamento; sendo, por sua vez, norma de

competência, então prescreve não o dar dinheiro, mas um fazer, a obrigação de lançar, tomada

aqui como a obrigação de pôr norma concreta, eventiva e individual, ou seja, a norma de

lançamento, sendo que, só a partir da confecção desta última norma, surgirá a obrigação de

pagar.

Sabemos, então, que, por norma de lançamento tributário, queremos expor uma norma

concreta, individual e ocorrente, ou seja, uma norma que descreve um fato jurídico-econômico,

praticado por um específico individuo, já concretizado no tempo e no espaço, bem como

prescreve a um sujeito individual uma obrigação de levar dinheiro, quantia calculada, ao Estado,

ou outro que lhe faça as vezes, também particularizado. No entanto, essa é uma posição estática

da norma de lançamento tributário, sendo possível evoluir o entendimento para o aspecto

dinâmico, o que faremos por meio de um cotejo entre o sujeito que tem a obrigação de lançar

— que consta na norma de tributação, quando ela é lida como norma de competência — e o

sujeito que deve levar dinheiro ao Estado — por força da norma de lançamento.

A comparação entre o sujeito que tem a obrigação de fazer na norma de tributação,

lida como norma de competência, e o sujeito que tem a obrigação de dar, decorrente da norma

de lançamento, resultará em uma entre duas possibilidades: ou os sujeitos são iguais; ou os

sujeitos são diferentes. Para o primeiro caso, quando quem deve pôr a norma concreta, eventiva

e individual é o mesmo que aquele que deve recolher aos cofres públicos pecúnia, então

603 DERZI apresenta suas razões para não aceitar o adjetivo “misto” ao lado do substantivo “lançamento”: “Afaste-se [...] terminologia buscada na doutrina estrangeira, inaplicável ao ordenamento positivo nacional, segundo a qual o lançamento disciplinado no art. 147 seria misto, porque realizado pela Administração e pelo contribuinte. As informações e declarações prestadas pelo sujeito passivo ou por terceiro legalmente obrigado apenas servem de suporte ou base para a prática do ato administrativo. Antecedem, portanto, ao lançamento como ato administrativo, que se aperfeiçoa posteriormente. Elas integram o procedimento para lançar, mas não o lançamento sem si, como ato”. Misabel Derzi, Nota de atualização, in: Aliomar Baleeiro, Direito tributário brasileiro, p.1218.

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212

denominamos, de forma estipulativa, sem maiores preocupações com usos diversos que se

fazem do termo, a norma de lançamento tributário de “norma de autolançamento”604. Já para o

segundo caso, de sujeitos diversos na cadeia de positivação, devemos prosseguir nossa

investigação, analisando a quem a norma de tributação, lida como norma de competência,

obriga a lançar. Então, vamos encontrar várias opções à disposição do confeccionador da norma

para eleger como sujeito que deverá pôr a norma de lançamento tributário, sendo essa escolha

uma questão de volição605.

6.4.4.1 Norma de autolançamento

Tomemos um hipotético ordenamento cuja organização piramidal do tributo seja

triádica, o que implica: uma norma de competência, que cuida da feitura da norma de tributação;

um outra norma, também de competência, pois, nesse caso, a norma de tributação passa a dispor

sobre a produção normativa da norma de lançamento tributário; e, por fim, uma norma de

conduta, contendo, na hipótese, a descrição de uma fato jurídico-econômico, concretizado no

tempo e espaço por um sujeito, e, na consequência, a prescrição individual de uma obrigação

de carrear dinheiro ao Estado, especificado enquanto órgão, ou a outro que lhe faça as vezes,

em quantia determinada. Agora, realizemos uma comparação entre o sujeito que deve lançar,

tomado o verbo como ato de pôr específica norma jurídica, e o sujeito que deve entregar

dinheiro ao Estado. Mas, que fique claro, tal paragonar somente é possível porque deixamos de

tomar a norma de lançamento tributário em seu sentido estático, para a apreciarmos em sua

feição dinâmica606. Dessa comparação, pode ser que resulte em sujeitos iguais. Situação, então,

que nos permite, de forma precisa, denominar a norma produzida de “norma de

autolançamento”.

604 HORVATH usa o termo “autolançamento”, mas entende que não seria de todo acertado no direito brasileiro, pois nele todo ato de lançamento deve ser ato da administração: “[...] utilizamos o termo ‘autolançamento’ por tratar-se de voz corrente na doutrina internacional. Faz-se esta ressalva, tendo em vista que não seria própria esta denominação, segundo o direito, pois [...] em que pese o fato de o particular participar ativamente do ‘procedimento de lançamento’ [...], o ato liquidatório [...], é um ato administrativo e, portanto, privativo da Administração”. Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p.112. 605 Nesses termos, já se manifestou BECKER: “A pessoa incumbida de praticar os atos que realizam o lançamento, pode ser tanto o sujeito ativo da relação jurídica, quanto o sujeito passivo, ou ambos, ou terceiro. Tudo depende do que estiver predeterminado na regra jurídica que disciplina o lançamento e cuja criação fica ao arbítrio do legislador”. Alfredo Becker, Teoria geral do direito tributário, p.361. 606 Nesse sentido, SANTI: “O ato-norma administrativo e o ato-norma de formalização instrumental apresentam idêntica estrutura sintática. Revestem-se igualmente na forma enunciativa de vetores semânticos equivalentes: prescrever a obrigação de pagar o tributo devido”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.188.

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213

Não se quer com isso apontar que outros usos que se façam do termo “autolançamento”

sejam errados ou coisas do gênero, mas apenas desanuviá-lo para o presente trabalho, o que só

é possível tendo às claras o processo de criação da norma jurídica. Com efeito, dinamicamente,

a partir de uma concepção triádica de tributo, a norma de tributação é lida como norma de

competência e estabelece a obrigação do sujeito, uma vez verificada a situação descrita em

abstrato, de assentar nova norma jurídica, em vez de levar dinheiro ao Estado. Essa norma posta

é a que chamamos de autolançamento, sendo, no plano estático, compreendida como uma

descrição de um fato, no modo concreto, bem como a prescrição, a partir da individualização

do sujeito, da obrigação de levar dinheiro, já agora em quantia determinada, estado de

ocorrência, ao Estado, ou quem exerça essa função, também particularizado, nada diferindo de

outras normas de lançamento

Temos, então, duas situações que dispensam a atuação de um outrem que não o sujeito

da obrigação tributária. Os casos de autolançamento e os casos que carecem de lançamento.

Pelo primeiro, a obrigação somente surge após norma concreta, individual e ocorrente, que é

enunciada por aquele que a deve cumprir; pelo segundo, a obrigação faz-se presente,

decorrendo diretamente da norma de tributação, carecendo, portanto, de qualquer outra norma.

Contudo, haveria dificuldades para diferenciar a prestação de informação para fins de

fiscalização, nos casos em que não há a necessidade de norma de lançamento, da situação que

exige um pôr norma de autolançamento. Isso porque, em ambas as situações, informa-se a quem

de direito fatos contemplados na hipótese da norma de tributação.

Há, portanto, um ponto em comum nas duas situações: quer como fiscalização, nos

casos em que se dispensa norma de lançamento, quer como enunciando de norma de

autolançamento, descreve-se a ocorrência de fato previsto na norma de tributação. Dito isso,

um bom marco para separar as coisas é a questão temporal das condutas de descrição607. Se a

conduta de prestar informação for devida em data posterior à conduta de levar dinheiro, fica

evidente que não estamos diante de uma norma de autolançamento, pois a norma jurídica

sempre regra a conduta no futuro (ver 2.2). O estado de coisas da hipótese já pode ter ocorrido,

mas a prescrição é sempre no futuro (ver 2.11)608. Sendo assim, se a conduta de levar dinheiro

607 Nesse ponto, muito útil é a separação realizada por CARVALHO entre o “tempo do fato” e o “tempo no fato”: “O tempo do fato é aquele instante no qual o enunciado denotativo [...] ingressa no ordenamento do direito posto [...]. [...]. Algo diverso, porém, é o tempo no fato, isto é, a ocasião a que alude o enunciado factual, dando conta da ocorrência concreta de um evento”. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência, p.122-123. 608 A hipótese, geralmente, e a consequência, sempre, contêm conduta humana. A da hipótese já se pode ter verificado, a da consequência, necessariamente, é projetada no futuro, pois não se pode prescrever o passado. Um exemplo disso seria: tendo em conta anteriormente se ter verificado um fato no passado, mesmo que não previsto em norma, então deve ser certa conduta, no modo obrigatório, no futuro. Caso que pode ser apontado como injusto,

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214

é obrigatória em uma data e a conduta de prestar informação é obrigatória em data posterior à

primeira data, não pode ser a prestação de informação a causa da conduta obrigatória de dar,

não se tratando, nesses termos, de norma de autolançamento.

A norma de autolançamento deve, pelos mesmos motivos, ser posta antes da data da

obrigação tributária. Porém, com isso se deve entender exatamente o quê? Para nós, significa

que a norma constituída pelo sujeito da obrigação deve ser dada ao conhecimento de quem pode

assentar a norma eventual, ou seja, promover a execução forçada, até a data em que a conduta

de dar dinheiro é devida609. Do contrário, sem esse conhecimento, é como se a norma não

existisse, pois não pode a autoridade competente averiguar o regular cumprimento da conduta

devida, pois nem conhecimento dela tem, e, em caso negativo, dar início à execução forçada.

Contudo, se o direito positivo determina que se faça tal ato a posteriori, depois da data do

pagamento, então tudo não passa de um mero dever de prestar contas, não se devendo fazer

qualquer alusão a autolançamento610.

A diferença entre prestar informações ao fisco e pôr norma de lançamento tributário

não reside, porém, só no critério temporal da descrição. Afinal, a norma jurídica, sendo que a

norma de lançamento não é diferente, possui também prescritor611. Assim, a investigação para

diferenciar ambas as situações é perquirir se a conduta de levar dinheiro decorre de uma

prescrição cujo enunciado foi posto por quem tem essa obrigação de dar ou se, de forma diversa,

advém da própria norma de tributação, que então é lida como norma de conduta.

E como desdobramento dessa ideia, podemos afirmar que, se a conduta for devida em

razão de norma de autolançamento tributário, o seu descumprimento pode ensejar, sem qualquer

mas não como ilógico. Agora, se ambas as condutas estão no passado, então não é caso de prescrição, mas de descrição. Em sentido contrário, SANTI: “Causa estranheza, à primeira vista, a verificação de que as normas individuais e concretas não se ocupem como as normas gerais e abstratas na estimulação de condutas futuras. Ora, como as hipóteses dessas normas são concretas, i.é, denotam um fato acontecido no espaço e tempo passado, não podem motivar qualquer conduta; é a mesma tese que impugna as normas abstratas com efeito retroativo: não se pode motivar condutas que já ocorreram”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.167. 609 Concordamos com HORVATH quando expõe que “[...] o autolançametno [...] não produz efeitos jurídicos enquanto não se exteriorize materialmente, seja numa declaração (legalmente apta a formalizar o débito) [...]”. Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p.125. Entretanto, não o podemos seguir quando complementa o raciocínio: “[...] seja diretamente no pagamento do débito”. Ibidem. Isso porque pagar tributo não pode equivaler a pôr norma jurídica, já que o autolançamento outra coisa não é do que uma norma jurídica. 610 Entendendo que, em qualquer caso, a confecção de documento de arrecadação equivaleria ao cumprimento de um “dever tributário acessório”, temos XAVIER: “A elaboração dos referidos documentos (as ‘declarações-liquidações’ a que se refere a doutrina espanhola), de harmonia com a lei fiscal, bem como a indicação neles do imposto correspondente ao valor da transação, constitui, porém, não a forma de um ato jurídico de aplicação da norma tributária material, anterior ao pagamento, mas a simples realização de um dever tributário acessório, imposto por lei para meros efeitos de fiscalização ou controle da legalidade dos pagamentos efetuados”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.83. 611 “Por intermédio do autolançamento se qualificam os fatos e dados e se quantifica o débito tributário, o que, por si só, basta para diferenciá-lo claramente da mera descrição fática em que se consubstancia a declaração”. Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p.184.

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215

desenvolvimento maior, a execução forçada. Não haveria, por essa linha, a necessidade de que

se constitua em linguagem o fato lícito nem que se quantifique a obrigação. Pode muito bem

limitar-se a verificar que a prescrição contida em autolançamento não foi cumprida e então

prescrever a retirada à força dos bens daquele que não entregou o dinheiro. Dispensa-se a

positivação da norma primária, passando diretamente à positivação da norma eventual. Já

quando há a prestação de informações, sem autolançamento, e se verifica que quem de direito

não cumpriu o devido, em decorrência direta da norma de tributação, então há a imperiosidade

de primeiramente se constituir em linguagem a descrição do fato e a prescrição individual de

conduta, para então associar a essa norma as consequências pelo descumprimento da obrigação

tributária. Pode até ser que tudo isso seja feito em um único documento, mas disso não decorre

que não esteja lá, de forma inaugural, a norma de lançamento, enunciada sob a rubrica “auto de

infração” 612.

De tudo, podemos reforçar a conclusão anterior, de que atos mentais não fazem as

vezes de uma norma de lançamento (ver 6.2), e agora estender o raciocínio às normas de

autolançamento: sem a exteriorização de uma descrição e de uma prescrição, não há norma de

autolançamento613. Entretanto, o que consideramos como exteriorização? Primeiramente a

existência de um suporte físico que contém os enunciados que serão interpretados como norma

jurídica. Em segundo lugar, a exteriorização somente estará completa com a notificação de

quem de direito. Assim, o suporte físico produzido, mas não comunicado, não pode ser

considerado uma exteriorização.

Com esse aporte, estamos prontos para concluir e responder se o preenchimento de

uma guia de pagamento de tributo pode ser considerado o significante de uma norma de

autolançamento. Para tanto, devemos procurar se há, em tal documento, a descrição de um fato

ocorrido, bem como uma prescrição de dar dinheiro. Havendo somente o valor a pagar, sem

maiores detalhes, temos, no máximo, um fragmento. Além disso, devemos ainda indagar da

intersubjetividade de tal documento, pois apenas se for essa guia de pagamento, antes do seu

612 “O lançamento aplica a norma tributária material, em cuja hipótese se integra um fato tributário e cujo mandamento se traduz na criação de uma obrigação tributária; ao invés, o ato de aplicação de uma pena fiscal concretiza a norma penal tributária, em cuja hipótese se integra um fato punível, constituído por uma infração à lei fiscal e cujo mandamento se traduz na sanção correspondente. [...]. É certo que lançamento — ato relativo a tributo — e auto de infração — ato relativo a (sic) penalidade — encontram-se por vezes formalmente confundidos no mesmo texto ou documento, que ora surge designando por um outro modo. Mas a simples corporização num só documento não pode conduzir o jurista a confundir realidades que, pela substância, se distinguem”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.58-59. 613 Nesse sentido, XAVIER: “[...] tudo está em saber se o processo lógico de determinação e caracterização dos fatos e subsunção destes na norma, que o particular realiza logicamente antes do pagamento do imposto, se exprime ou não num ato jurídico autônomo e distinto do pagamento do tributo”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.76.

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216

vencimento, informada ao fisco, é que poderemos cogitar de norma de autolançamento, já que,

nesse caso, não sendo pago o devido, então se poderia seguir diretamente a execução forçada.

6.4.4.1.1 Homologação e não homologação

De forma contingente, pode haver, para um determinado ordenamento jurídico, a

necessidade de positivação da norma de lançamento tributário para o surgimento da obrigação

tributária. Questão que envolve saber quem deve lançar, no sentido de pôr norma jurídica.

Agora, quando são iguais aquele que deve lançar e aquele que deve levar dinheiro ao Estado,

estamos diante de uma norma de autolançamento tributário, o que somente pode ser captado no

plano dinâmico. Portanto, o que caracteriza a norma de autolançamento não é nenhuma

propriedade intrínseca sua, que, como qualquer outra norma jurídica, é formada de uma hipótese

e um consequência, unidas pela imputação (ver 2.5), muito menos sua constituição semântica,

que é concreta, individual e ocorrente, pois as demais normas de lançamento tributário também

são assim. Logo, o que permite afirmar que uma norma de lançamento tributário, como gênero,

é uma norma de autolançamento, espécie, é a igualdade de sujeitos na norma fundante e na

norma fundada.

Quanto ao conteúdo da norma de autolançamento, está o sujeito obrigado a lançar

vinculado à substância e ao procedimento estabelecidos na norma de tributação, lida, para esses

casos, como norma de competência, pois, havendo desconformidade, a norma de conduta posta

— concreta, individual e ocorrente — deverá ser invalidada (ver 2.10). Assim, há a norma

primária, que determina o lançamento, e há a norma eventual, que determina a invalidação do

lançamento, caso ele não se tenha dado nos moldes prescritos. Ademais, para os casos em que

haja a invalidação da norma de autolançamento posta, o que é feito com a expedição de uma

norma eventual, é que guardamos a marca da “não homologação”.

De modo geral, acoplar o termo “homologação” à expressão “lançamento tributário”,

faz surgirem várias questões. Sendo assim, iniciarmos pela própria palavra, pode ser de valia.

Se sabemos que a palavra “homologação” significa “[...] ato, processo ou efeito de homologar

[...]614, e se, por seu turno, conhecemos que homologar é um verbo derivado do adjetivo

homólogo615, o qual, por sua vez, é composto do antepositivo hom (o), “[...] do gr. homós ‘igual,

614 Antônio Houaiss e Mauro Villar, Dicionário Houaiss da língua portuguesa: verbete “homologação”, p.1548. 615 “De homólogo + -ar [...]”. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo dicionário da língua portuguesa: verbete “homologar”, p.1054.

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217

semelhante’ [...]”616, e do pospositivo log (o), “[...] do gr. lógos ‘palavra, estudo, tratado’

[...]”617, então podemos desvelar o verbete “homologação” como ato, processo ou efeito de

produzir palavras iguais618. Assim, homologar, para o nosso caso, é o estabelecimento em

linguagem, por um terceiro, do reconhecimento de que a norma concreta, ocorrente e individual

— a norma de autolançamento tributário —, foi posta de acordo com a norma de tributação,

que, para o caso, é norma de competência.

Vê-se, por essa linha, que a homologação de um autolançamento não representa, ela

mesma, um lançamento, pois não põe, altera ou extingue qualquer norma jurídica619. Todavia,

pode ser que a norma de autolançamento posta não tenha seguido forma e/ou conteúdo

prescritos, sendo então imperiosa sua invalidação, e, ato contínuo, a enunciação de uma nova

norma jurídica, também concreta, ocorrente e individual, que traga, de forma correta, a

descrição do fato verificado, o sujeito individualizado que deve levar o dinheiro ao Estado, bem

como a precisa quantia devida. Além de quê, junto a essa nova norma jurídica, norma de

lançamento tributário, também são postas outras normas jurídicas, como consequências do não

cumprimento adequado da norma de competência que determina o autolançamento620.

Ademais, possivelmente, todas essas novas normas advirão da intepretação de enunciados

presentes em um único documento, o que pode causar dificuldades para as individualizar.

De tudo isso, podemos dizer que neste trabalho usamos os termos “homologação” e

“não homologação” de forma bem restrita, aplicados à questão da validade da norma de

autolançamento tributário. Não que, com isso, queiramos afirmar que a validade da norma de

autolançamento decorra de sua homologação, pois, uma vez posta, ela já vincula a conduta,

com os casos de suspensão de exigibilidade dependendo de cada direito positivo. O que nos

importa aqui é retomar que a validade se confunde com a própria existência da norma jurídica

616 Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa: verbete “hom (o)”, p.341. 617 Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa: verbete “log (o)”, p.393. 618 Em vez de “homologação”, poderíamos simplesmente dizer “confirmação”. Caldas Aulete, Dicionário contemporâneo da língua portuguesa: verbete “homologação, v.3, p.2083. 619 Podemos encontrar essa linha de ideia em XAVIER: “[...] a verdade é que uma homologação expressa não constitui em si mesmo um lançamento em sentido técnico, pois este consiste numa exigência de prestação tributária [...]”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.87. SANTI, por sua vez, não chega a identificar a homologação ao lançamento fazendário, mas entende que aquela pressupõe este: “Sem formalizar o crédito ‘de ofício’ ou ‘por declaração’ a atividade homologatória é inócua. Quem homologa, homologa alguma coisa (o crédito instrumental) em relação a algo (o crédito lançado)”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.219. 620 SANTI relata-nos quatro situações possíveis: “Quatro atos administrativos distintos: quatro fato jurídicos: quatro motivações distintas: (i) fato jurídico tributário, (ii) fato jurídico do não pagamento, (iii) fato jurídico da mora e (iv) fato jurídico sancionador instrumental. Diversas as normas jurídicas que incidem sobre estes fatos tornando-os jurídicos: regra-matriz de incidência tributária, a primeira; regra-matriz de multa pelo não pagamento, a segunda; regra-matriz da mora, a terceira e regra-matriz sancionadora instrumental, a quarta”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.243

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(ver 2.10), não carecendo, assim, a norma de autolançamento tributário de qualquer

homologação para ser válida. A homologação é um processo posterior, uma declaração de que

a norma de autolançamento foi posta segundo forma e conteúdo estabelecidos, sendo ela

desacompanhada de comando, ao menos daquele que tenha por sentido um dar dinheiro.

Pode ser ainda o caso de ser dada uma interpretação mais restritiva do termo

“homologação”, não dizendo respeito o termo à norma de lançamento posta, mas apenas a uma

confirmação de que a conduta prescrita por essa norma foi cumprida. Por essa linha, “[...] se

trata[ria] de uma quitação no caso de homologação expressa” 621. A decorrência disso é que o

que se homologaria seria o pagamento622, cabendo o signo “não homologação” aos casos em

que o pagamento não se concretizasse, ou seja, em que o dinheiro devido não fosse levado ao

Estado. Todavia, não se pode prescindir de igualmente indagar da correção do autolançamento,

enquanto norma posta, pois não basta verificar se a quantia prescrita não foi levada ao Estado,

mas também se faz necessário confirmar se a prescrição foi posta de acordo com a norma de

competência. Em razão disso, reservamos os termos “homologação” e não “homologação”,

respectivamente, para a “adequação” e a “não adequação” da norma de autolançamento à sua

norma-fundamento.

Por fim, lembramos que se encontra associado ao termo “homologação” o adjetivo

“tácito”. Ocorre que, nesse caso, da homologação tácita, não há presente qualquer linguagem

estabelecendo a conformidade da norma de autolançamento tributário à norma de competência

na qual se funda. Tudo então se explica por meio de ficção, na linha do se não houver a

homologação dentro de um determinado período, mesmo assim, considera-se como se tivesse

ela ocorrido. No entanto, não precisamos ir tão longe para elucidar a homologação tácita,

bastando lembrar que o que está em jogo é a possibilidade de excluir do ordenamento jurídico

uma norma e substituí-la por outra. Desse modo, a homologação tácita não seria outra coisa do

que não uma norma que proíbe, após certo prazo, a modificação da norma de autolançamento

tributário posta, sem a necessidade de se apelar para qualquer ficção, sem a imperiosidade de

se dar por ocorrido algo que não se verificou. É caso de caducidade, simplesmente (ver

6.4.2.1)623.

621 Estevão Horvath, Lançamento tributário e “autolançamento”, p.169 (adaptamos entre colchetes). 622 Para aqueles que entendem que somente a autoridade administrativa pode lançar, não havendo lançamento propriamente dito no caso do “lançamento por homologação”, então, por decorrência dessa premissa, a homologação somente poderá ser do pagamento. Como exemplo desse raciocínio, podemos citar COÊLHO: “Que lançamento? O que a Fazenda homologa é o pagamento”. Sacha Calmon Navarro Coêlho, Liminares e depósito antes do lançamento por homologação: decadência e prescrição, p.50. 623 Nesse sentido, XAVIER: “A decadência [...] não é do lançamento por homologação, mas do eventual lançamento de ofício que cabe à autoridade realizar quando constate omissão ou inexatidão do sujeito passivo”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.90.

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Ademais, devemos ter o cuidado de entender o passar do tempo, por si só, como causa

jurídica, pois há a necessidade de que esse transcurso de tempo esteja vertido em linguagem.

Afinal, “[...] se não existisse, no sistema jurídico, norma proibitiva da omissão, ou norma que

fizesse obrigatória a ação, a omissão não passaria a essa categoria de fato jurídico causal”624.

Por essa linha, a homologação tácita significa que se até um determinado período a norma de

autolançamento tributário não for invalidada, então não mais poderá ser. No entanto, se, mesmo

assim, for assentada modificação, o que se tem então é que essa nova norma deve ser invalidada,

reconhecendo-se a higidez da norma de autolançamento, não porque simplesmente decorreu o

tempo, mas porque assim prescreve uma outra norma jurídica.

6.4.4.2 Alolançamento

O dinheiro deve ser levado ao Estado, ou a quem exerça função pública. Esse é um

marco que adotamos na conceituação de tributo (ver 4.3.2.2), podendo, tal prescrição, decorrer

ou diretamente da norma de tributação ou da norma de lançamento tributário. Agora, dever o

dinheiro ser levado ao Estado, ou quem esteja desempenhando uma atividade estatal, não

implica que a norma jurídica que assim determina tenha de ser posta exclusivamente por esse

mesmo Estado. Do sujeito competente para pôr a norma de tributação, já cuidamos acima (ver

5.2.3); bem como igualmente discorremos sobre os casos em que a norma de lançamento é

posta pelo próprio sujeito que a deverá cumprir (ver 6.4.4.1). Vamos restringindo-nos, então,

aos casos em que há norma de lançamento, mas o sujeito da obrigação tributária é diverso do

sujeito obrigado a lançar.

Porém, antes de prosseguirmos, devemos reforçar que é apenas no plano dinâmico que

se torna possível a classificação, enquanto gênero, das normas de lançamento tributário por nós

adotada: havendo coincidência entre os sujeitos da norma de competência e da norma de

conduta, então é caso de “autolançamento”; por sua vez, havendo dissonância entre os sujeitos,

sendo quem deve lançar diverso de quem deve carrear o dinheiro estamos então diante de uma

norma de “alolançamento”625.

No caso da norma de alolançamento, ao contrário da norma de autolançamento, a

obrigação de lançar recai sobre alguém que não é aquele que deverá estar obrigado a dar

pecúnia. O foco, portanto, é na discrepância de sujeitos. E, uma vez realizado esse primeiro

624 Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito, p.66 (I.21). 625 “al (o)- elem. comp., do gr. allo- ‘outro, diferente’ [...]”. Antônio Geraldo da Cunha, Dicionário etimológico da língua portuguesa: radical “al (o)”, p.28.

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220

contorno, podemos progredir na particularização, na analiticidade, o que faremos separando, de

um lado, o Estado, de outro, um sujeito qualquer que não seja o Estado. Temos, assim, uma

classificação das normas de alolançamento em duas: alolançamento estatal, quando a norma de

lançamento é posta pelo Estado, e alolançamento de terceiro, quando a enunciação é feita por

particulares, que não sejam o próprio sujeito da obrigação tributária, pois então seria caso de

autolançamento.

Que um terceiro — nem o Estado nem o particular da obrigação de dar — possa

enunciar a norma de lançamento tributário pode parecer estranho. E, de fato, não é uma ideia

simpática. Agora, disso não decorre que não possa o direito positivo estabelecer assim. E se

lembrarmos que outros, que não o Estado, podem receber tributos, então a excentricidade da

possibilidade pode diminuir. De todo modo, é uma alternativa possível, que uma teoria do

tributo não pode descartar de pronto.

Por sua vez, o caso do “Estado”, por ser o termo extremamente lato e abrangente,

comporta que se realize, sobre ele, uma partitura. Assim, do gênero, apresentamos duas classes

de entes estatais: por um turno, a administração, em sentido restrito (ver 4.3.2.1); por outro giro,

conjunto complemento, os demais órgãos do Estado que não sejam a administração.

Entre os estes estatais que não a administração, caberia um grande estudo, que vão

desde os outros “poderes”, quando se toma a administração como o executivo, até órgãos

paraestatais, como autarquias e fundações. Neste trabalho, damo-nos por satisfeitos apenas em

fazer a divisão, deixando o desenvolvimento, caso a separação seja de valor, a outros. De todo

modo, lembramos que não é excepcional apontar que ao poder judiciário cabe instituir a norma

concreta, individual e ocorrente, mesmo que não se queira chamar essa norma de norma de

lançamento tributário626.

Já quanto à administração ser o sujeito competente para lançar, não há a necessidade

de um grande arrazoado para expor o caráter ortodoxo de tal formulação, via pela qual caberia

àquele que tem o direito de receber o dinheiro a obrigação de realizar a constituição em

linguagem da norma concreta, individual e ocorrente. Na verdade, não é incomum que se tome

essa particular espécie de norma de lançamento pelo gênero norma de lançamento627. E as

626 “Podemos citar algumas formas de constituição do crédito tributário: [...] c) autos judiciais na Justiça Comum Estadual, na apuração do imposto causa mortis; d) autos judiciais em geral, quanto à (sic) custas judiciais; e) autos judicias na Justiça Comum Estadual e Federal, na apuração da contribuição social e imposta (sic) de renda retido na fontes em lides previdenciárias; f) autos judiciais na Justiça do Trabalho, na apuração da contribuição social e imposto de renda retido na fonte”. Gilberto Santi, Lançamento tributário em autos judiciais, p.46. 627 Nesse sentido, XAVIER e SANTI: “O lançamento é [...] um ato de aplicação da norma tributária material ao caso concreto. Mas ele ainda se individualiza por ser [...] um ato organicamente administrativo, no sentido de que é praticado por órgãos integrados na Administração ativo, no exercício de uma função administrativa. Distingue-se por isso dos atos que igualmente envolvem uma aplicação da norma tributária material ao caso concreto, mas

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221

causas disso podemos reduzir a duas: porque assim dispõe o direito positivo628; ou porque, em

linhas gerais, a ordem tributária seria mais bem construída se aquele que tem o dever de receber

é também aquele que deve lançar. Por qualquer dos dois ângulos, nossa resposta é a mesma:

nem o direito positivo nem a conveniência ditam as possibilidades teóricas de uma teoria do

tributo. Que, para um particular ordenamento, só haja uma ou algumas das possibilidades, ou

que, dentro de um padrão de julgamento, uma via seja melhor do que a outra, não são questões

que se apresentam no plano em que nos ocupamos neste trabalho.

Registra-se, por fim, quanto à norma de alolançamento estatal administrativo, que há

uma identidade a ser considerada, tal qual no autolançamento, só que lá a igualdade é entre

quem põe a norma de lançamento tributário e quem tem a obrigação, já cá, os iguais são quem

tem a obrigação de lançar e quem tem o direito de receber o valor a ser pago.

6.5 CONCEITO DINÂMICO DE TRIBUTO: NORMA DE LANÇAMENTO

Em um trabalho que tem por enfoque o aspecto normativo do tributo, a figura do

lançamento tributário não poderia ser pensada de outra forma que não a de norma jurídica.

Nesse ponto, então se forma a tríade que funda nossa teoria. A partir da norma de tributação

(ver 4), identificada por meio do cotejo com uma proposição pactuada, foi possível identificar

tanto sua norma de validade, a norma de competência tributária (ver 5), como a norma a que

ela dá validade, a norma de lançamento (ver 6).

Considerando que a norma de lançamento é uma norma fundada na norma de

tributação — abstrata, geral e eventiva (ver 4.4), — podemos compreendê-la na cadeia de

positivação, como uma norma concreta, ocorrente e individual (ver 6.1). Com isso, lembrando

da forma bimembre da norma primária, apresenta, em seu membro anterior, a descrição de um

fato de caráter econômico, já concretizado no tempo e no espaço, expresso por meio da fórmula

sujeito, verbo e complemento; agora, na consequência, fazem-se presentes uma específica

obrigação de dar, como quantia precificada, questão ocorrente, com as individualizações de

que são da competência dos tribunais”. Alberto Xavier, Do lançamento no direito tributário brasileiro, p.63. “Só o crédito tributário lançado [...] corresponde ao prescritor do ato-norma administrativo de lançamento tributário, norma individual e concreta produzida por autoridade administrativa competente e segundo forma prevista em lei”. Eurico de Santi, Lançamento tributário, p.186. 628 Bem entendendo que a conceituação de lançamento como atividade administrativa é uma construção do direito positivo, temos BORGES: “A definição de lançamento formulada pelo art. 142 do CTN pode ser identificada como um conceito jurídico-positivo, no sentido de que corresponde apenas a uma construção dessa categoria normativa pelo Direito Positivo brasileiro”. José Souto Maior Borges, Lançamento tributário, p.94.

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222

quem deve dar e de quem deve receber, além do quando e onde. Plano estático da norma de

lançamento tributário.

Não vemos, no entanto, que todo tributo deva ser expresso por meio de uma trilogia,

pois reconhecemos que a ordem jurídica possa ser construída sem a norma de lançamento

tributário (ver 6.2). Assim, a depender da volição de quem põe a norma de tributação, pode

confeccioná-la de duas formas: como norma de competência, sendo seu mandamento, então,

assentar a norma de lançamento (ver 6.4.1); ou como norma de conduta, da qual decorre

diretamente a obrigação de dar dinheiro, sem a imperiosidade de qualquer outra norma mais

específica. Para estes casos, não se devem confundir as informações que são prestadas à

fiscalização com as normas de lançamento tributário, uma vez que, entre outras coisas, aquelas

são elaboradas após a conduta devida, e estas, pelo fato de a prescrição ser sempre no futuro,

devem ser-lhe anteriores (ver 6.3).

Sendo o caso de o ordenamento jurídico exigir a norma de lançamento para que a

conduta de dar dinheiro se faça presente, devemos investigar a questão por meio da ótica

dinâmica. Nesse ponto, o eixo volta-se para uma comparação entre o sujeito que é obrigado a

lançar e o sujeito que é obrigado a dar dinheiro. Feito isso, se o resultado do cotejo for uma

igualdade, então é o caso de falarmos de “norma de autolançamento”. Assim, bem isolamos

uma espécie de norma de lançamento: situação em que aquele que deve levar pecúnia é o

mesmo que deve pôr a norma da qual decorre essa obrigação (ver 6.4.4.1).

Uma vez sendo o caso de norma de autolançamento, é de se investigar o tema da

homologação e da não homologação. Para a homologação, presente o reconhecimento de que a

norma de lançamento foi posta segundo a norma de competência, podendo ainda se abarcar

com o termo as situações em que a conduta devida em razão da norma de lançamento foi

realizada. Já para a hipótese da “não homologação”, a simples afirmação de que a norma de

lançamento não foi posta em conformidade não é o suficiente, impondo-se a substituição dessa

norma desconforme por outra, além de, junto a isso, fazê-la acompanhada das devidas normas

eventuais, que advêm desse agir em desacordo (ver 6.4.4.1.1).

Há também outra espécie de norma de lançamento, que se configura quando aquele

que é obrigado a dar dinheiro é diverso de quem tem a obrigação de lançar. Para esses casos,

de divergência entre os sujeitos, é que reservamos o termo “alolançamento”. Assim, temos, por

um lado, a norma jurídica que obriga alguém a lançar, e, por outro lado, a norma de lançamento

que obriga outro, que não o sujeito lançador, a dar dinheiro. Para essa situação, podemos

realizar um maior desenvolvimento, apontando que o obrigado a lançar pode ser cindido em

dois grupos: num lado, o Estado; no outro, um particular, sem ser o próprio obrigado a dar

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223

dinheiro. Quanto a ser um particular, é uma questão de conveniência, nada tendo a opor uma

teoria do tributo quanto a isso; quanto a ser o Estado, é possível prosseguirmos com partitura

da classe, apontando, v.g., a Administração ou o Judiciário (ver 6.4.4.2).

Podemos, dito isso, arrematar nosso trabalho, expondo que a opção adotada foi ter o

lançamento tributário como norma jurídica, e a norma de lançamento como gênero, cujas

espécies foram encontradas por meio de um cotejo entre quem tem de levar o dinheiro e quem

tem de pôr a norma concreta, individual e ocorrente. Assim, encontramos duas espécies de

norma de lançamento: autolançamento e alolançamento. Por sua vez, dentre as normas de

alolançamento, promovemos uma nova classificação: ente estatal ou terceiro, que não é o

Estado. Por seu turno, somente dentro da classificação norma de alolançamento estatal é que

nos deparamos com os casos em que administração é aquela obrigada a lançar. Uma, portanto,

dentre as muitas opções.

Claro que, mesmo com todas essas opções à mesa, pode ser que o direito positivo eleja

como competente para realizar o lançamento tributário apenas a administração, questão que, de

todo modo, não pode ser conhecida a priori pelo teórico. E dizemos isso para expor que, no

plano da teoria do tributo, há lugar para uma obrigação de lançar, no sentido de pôr norma de

lançamento tributário, que seja própria da administração, ou seja, para se entender o lançamento

tributário como um alolançamento estatal administrativo, sem, com isso, dizermos que somente

à administração compete pôr a norma tributária concreta, ocorrente e individual. Mas isso, de

modo algum, permite concluir, em um propósito de teoria do direito, que somente à

administração pública caberia o posto de sujeito lançador. Até pode ser desse modo, de forma

particular, mas, se assim for, isso ocorre por conta de um ato volitivo de quem põe a norma de

competência, estabelecendo, na consequência dessa norma, apenas um e específico sujeito apto

a lançar, e não em razão de uma imposição da teoria do direito. A imprescindibilidade de

lançamento e quem deve ser o sujeito competente para enunciá-lo são questões contingentes, a

serem determinadas por cada ordem, não pertencendo a uma teoria normativa do tributo.

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224

III – CONCLUSÃO

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225

7 UM, DOIS, TRÊS

“O leão, o tigre e o chacal [...] saíram, em peregrinação amistosa [...]. Ao cair da tarde [...], chegaram [...] [em] uma pequena e verdejante planície. No meio dessa planície achavam-se [...] três pacíficos animais: uma ovelha, um porco e um coelho. [...] o leão [...] voltou-se para o tigre e rosnou, em tomo possivelmente amistoso: — Ó tigre admirável! [...]. Tu, que és vivo e esperto, deves saber, com talento, dividir três por três. [...]. Meu caro chacal [disse o leão]! Sempre fiz de tua inteligência o mais elevado conceito. Somos dois e os animais apetitosos são três. Pois bem: vais dividir os três por dois! — Na Matemática do mais forte, penso eu [o chacal], o quociente é sempre exato, e ao mais fraco, depois da divisão, nem o resto deve caber!”629.

Malba Tahan

Um, dois, três. Era uma vez alguém que sabia contar. Mas o que deveria contar,

pensou? Como fazia parte da corte do direito, resolveu, então, contar normas jurídicas. Contudo,

antes de iniciar tal tarefa, necessitava saber o que eram elas. Após consultar os sábios, aprendeu

que normas jurídicas são construções humanas, resultantes da aplicação de outras normas

jurídicas, todas elas minimamente representadas por uma hipótese ligada, por imputação, a uma

consequência. Sabia o que eram normas jurídicas; jubiloso, bateu palminhas! Mas quais deveria

contar? Todas elas? Isso não! Afastou a ideia, não era exequível. Resolveu que deveria pastoreá-

las, apartá-las, reagrupá-las e então contar a partir de um dos conjuntos. Mas por qual critério?

Como pertencia, dentro da corte, à cúria do direito tributário, segregaria, de um lado, as normas

tributárias; de outro, as demais. Era isso, deveria contar as normas tributárias. Mas quais seriam

elas? Conhecia o significado de norma jurídica, mas norma tributária lhe escapava. Podia, de

novo, consultar os demiurgos, mas essa era uma direção que não granjeava sua simpatia. Podia,

com ares de inteligente, acessar diretamente o sentido da expressão no mundo das ideias, mas

nem acreditava em mundo das ideias nem queria tentar ludibriar ninguém. Logo, deixou a

revelação a outros. A saída, elucubrou, seria propor um pacto: que tal se norma tributária for

uma norma jurídica que impute a descrição de um fato lícito — sujeito, verbo e complemento

—, no tempo e espaço, de conteúdo econômico, à consequência de alguém, apresentado de

modo geral, ser obrigado a dar dinheiro ao Estado ou equiparado, em valor determinável, com

advérbios de tempo e lugar? Os membros do conselho nada disseram, o que lhe bastou, pois,

quem cala, consente. Satisfeito com sua própria proposta, resolveu intitulá-la: doravante, ela se

chamaria “norma de tributação”. E não se importou que outros já houvessem por aqueles mares

navegado, pois agora tinha algo para chamar de seu. A felicidade tem dessas coisas, geralmente

629 Malba Tahan, O homem que calculava, p.212-218 (esclarecemos entre colchetes).

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226

não se precisa de muito. Baixinho, disse “um”! Então lhe ocorreu que a norma de tributação

estava desacompanhada. Alguma coisa estava errada: se o homem não foi feito para ser sozinho,

a norma de tributação também não. Foi aí que atentou: se a norma de tributação era norma

jurídica, haveria de existir uma outra norma, fundamento de sua criação. As coisas estavam

fazendo sentido. Assim, pôde derivar que, se há uma norma de tributação, então há igualmente

uma “norma de competência tributária”: se dada a hipótese, então deve ser, em um dos modos

de conduta, por alguém, o instituir, alterar ou excluir a norma de tributação, em um onde e um

quando. O conjunto que iria contar já não era mais unitário. “Um, dois”, proferiu, ainda

hesitante! Porém, ainda carecia de algo. “O que será? O que será?”. E entre as interrogações,

algo germinou: se a norma de tributação era uma norma fundada, por que não poderia ser ela

outrossim uma norma fundante? Alegria, alegria, e soaram os tambores. Fiat lux! Havia,

portanto, uma norma produto da aplicação da norma de tributação, a qual conteria a descrição

de um fato já verificado, com a obrigação individualizada de alguém dar dinheiro, em quantia

precisa, em lugar e prazo certo. Contudo, faltava um nome; assim a batizou de “norma de

lançamento tributário”. Achou o nome muito bonito, por mais que não houvesse nada de

especial nele. Agora, tinha diante de si uma trinca. Abriu e fechou os olhos, e lá continuavam

elas, impávidas, as três normas. “Um, dois, três”, declamou! Sentiu-se satisfeito. E todos

puderam viver felizes para sempre.

FINIS

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227

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