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Explicação dos Pássaros podia ter sido tantas outras histórias. Histórias que porventura se encaixariam mais facilmente na nossa compreensão e na nossa imaginação. Mas, esse não foi o conto que António Lobo Antunes decidiu desenvolver neste seu quarto romance publicado. O autor decidiu sim construir um espectáculo de variedades literário que aborda o suicídio de forma lúcida, corajosa e desenvolvida, sem receio de tabus, sem recorrer a estereótipos que passam por cima da realidade humana e psicológica desta tragédia, e sem demonstrar qualquer reserva em iluminar indubitavelmente este tópico tão frequentemente ocultado da verdade pela vergonha. Esta, também, podia ter sido uma história que se punha estritamente a favor ou contra o indivíduo, a favor ou contra a sociedade. Mas não o é! Lobo Antunes parece decidido, quer no desenvolvimento do enredo, quer no desenvolvimento do personagens, em evitar a advocacia, quer do todo quer do indivíduo, e parece determinado a demonstrar, em vários níveis de relacionamento, e recorrendo a diversas formas de narração, a fragilidade que existe na simples tentativa de ser, e a hipocrisia geral gerada pela mentalidade social que serve para o beneficio implícito e acolhedor dos que se incluem e do falhanço repetitivo e solitário que espera muitos dos que se excluem. E, finalmente, Explicação dos Pássaros podia ter sido a história em que um jovem abandona a família, a mulher, e todo seu passado burguês, e se transforma num revolucionário do proletariado, encontrando na sua nova mulher

Ensaio sobre Explicação do Pássaros

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Explicação dos Pássaros podia ter sido tantas outras histórias. Histórias

que porventura se encaixariam mais facilmente na nossa compreensão e na

nossa imaginação. Mas, esse não foi o conto que António Lobo Antunes decidiu

desenvolver neste seu quarto romance publicado. O autor decidiu sim construir

um espectáculo de variedades literário que aborda o suicídio de forma lúcida,

corajosa e desenvolvida, sem receio de tabus, sem recorrer a estereótipos que

passam por cima da realidade humana e psicológica desta tragédia, e sem

demonstrar qualquer reserva em iluminar indubitavelmente este tópico tão

frequentemente ocultado da verdade pela vergonha.

Esta, também, podia ter sido uma história que se punha estritamente a

favor ou contra o indivíduo, a favor ou contra a sociedade. Mas não o é! Lobo

Antunes parece decidido, quer no desenvolvimento do enredo, quer no

desenvolvimento do personagens, em evitar a advocacia, quer do todo quer do

indivíduo, e parece determinado a demonstrar, em vários níveis de

relacionamento, e recorrendo a diversas formas de narração, a fragilidade que

existe na simples tentativa de ser, e a hipocrisia geral gerada pela mentalidade

social que serve para o beneficio implícito e acolhedor dos que se incluem e do

falhanço repetitivo e solitário que espera muitos dos que se excluem.

E, finalmente, Explicação dos Pássaros podia ter sido a história em que um

jovem abandona a família, a mulher, e todo seu passado burguês, e se

transforma num revolucionário do proletariado, encontrando na sua nova mulher

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e no seio da cultura do Partido Comunista um novo universo que o acolhe e o

faz sentir finalmente útil e completo. Mas, também aqui Lobo Antunes evita

mostrar favoritismo político em prol dum enredo que explora e desmascara a

fantasia do idealismo político, e favorece a exposição da hipocrisia política e

das suas consequentes fendas morais.

Bem, o que é então, concretamente, o teor de Explicação dos Pássaros? O

que Lobo Antunes desenhou, foi uma história que relata os últimos quatro dias

de vida de Rui S., um professor universitário de História, e que contextualiza a

sua decisão de tomar a própria vida ao nos oferecer um relato corrido do estado

psicológico e emocional do protagonista, ao recolher uma colectânea de

lembranças do seu passado, bem como uma apresentação de diversos

testemunhos e pontos de vista de personagens na vida de Rui S.

Com alguma ironia, o romance começa com Rui S. a declarar, quando

ainda em Lisboa: “-Um dia destes dou à praia aqui, devorado pelos peixes como

uma baleia morta” (Antunes, 9). Quatro dias depois Rui S. é descoberto numa

praia, em Aveiro, morto na areia, já muito pinicado pelas gaivotas .

É, também, ainda no primeiro capitulo, “Quinta-Feira”, que o autor revela

um dos seus inspirados mecanismos narrativos, o circo de interlocutores, que

oferece ao narrador uma ruptura no espaço e no tempo, e que lhe permite inserir

na narração comentários, testemunhos, críticas, e recordações, duma forma

alucinante e rodopiante de um diverso grupo de personagens da vida do

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protagonista, como que um coro da tragédia grega, agora metamorfoseado para

coadjuvar a génese pós-modernista de Lobo Antunes. Determinante no primeiro

e no ultimo capítulo, especialmente no último, onde acompanha a aproximação

ao suicídio de Rui S. como se fosse uma transmissão televisiva, repleta de

anúncios publicitários ridículos, e que aufere ao narrador explorar a indiferença

da família, das ex-mulheres, e dos restantes membros do elenco da vida de Rui

S., e assim o narrador concentra um dos pontos focais do romance: a repartição

de culpas pela miserabilidade, e consequente trágico fim da vida de Rui S. Ou

seja, o autor não se remete somente a apontar o dedo aos falhanços de Rui S.,

ele determina que a falta de coerência da família e da sociedade, a sua

tendência para o julgamento, a sua hipocrisia, e a sua austera expectativa para

o conformismo, foram tão, ou mais, pertinentes para o desfecho do protagonista

como as suas próprias idiossincrasias. Esta abismo entre as duas partes é

visível quando, a caminho da morte, após alguns parágrafos onde irmãs, ex-

mulher, esposa, pai, cunhado, entre outros fazem fila para oferecer as suas

censuras, o protagonista pensa:

Quais asneiras? Pensou ele sentado na areia, no meio das ervas, a espiar a agua, densa, varoposa, imóvel, do Vouga. A separação da Tucha, o aborto da Marília, o não ter ido para a empresa como o velho queria, noa ter sequer aceite, por orgulho? por coerência? (Mas coerência com o quê?), por um mero infantil instinto de revolta, um lugar nominal na direcção? Quais asneiras?, pensou ele intrigado, vasculhando o súbito, angustioso, enorme vazio da memória ate onde o abraço da lembrança conseguia. (Antunes, 237-8).

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Ainda no primeiro capítulo se começa a desvendar e a desdobrar o

significado do título do romance, Explicação dos Pássaros:

Um dia, em miúdo, ao fim da tarde, achavam-nos na quinta e um bando de pássaros levantou voo do castanheiro do oco na direcção da mancha da mata, azulada pelo inicio da noite. As asas batiam num ruído de folhas agitadas pelo vento, folhas miúdas , fitinhas, múltiplas, de dicionário, eu estava de mão dada contigo e pedi-te de repente Explica-me os pássaros. Assim, sem mais nada, Explica-me os pássaros, um pedido embaraçoso para um homem de negócios. Mas tu sorriste e disseste-me que os ossos eram feitos de espuma da praia, que se alimentavam das migalhas do vento e que quando morriam flutuavam de costas no ar, de olhos fechados como as velhas na comunhão. Imaginar que cinco ou seis anos depois o que te interessava eram as notas de Geografia e Matemática provocava-me uma espécie esquisita de vertigem, de impressão de absurdo, de impossibilidade, quase cómica” (Antunes, 43-4).

Este, aparentemente, simples momento de infância acaba por se avolumar

numa obsessão e passa a ser o invólucro do abismo metafórico na vida de Rui

S.. Como explica Eunice Cabral no seu ensaio, “In the Name of a Father: In

Search a Lost Name and Place”:

The expression “explanation of birds” labels this moment of childhood happiness of mythic proportions. It also indicates a typical kind of emotional ellipsis, since in fact we know that no one can provide a rational, literal explanation of birds unless the explanation is the equivalent of or takes the place of an expression of love. On this emotional level it can fill in the blank spaces and bridge the gaps that are apparent to reason. Indeed the expression “explanation of birds” implies a coherent subjective or emotional meaning in which a “leap” of the poetic kind takes place. In Portuguese the expression betrays an omission: because its semantic core is grasped by approximation (é apreendido por aproximação ??), its meaning is centrifugal. In order to avoid lapses and ellipses, one would have to add to it, creating an expression like “explanation of certain aspects of birds”. For these reasons “explanation of birds” conforms to a child’s linguistic logic, according to which (despite lapses) parents always understand what the child wants to say, that is, they are able to translate their child’s unique language into the common tongue. (Cabral)

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Toda esta dinâmica fica ainda mais clara quando mais tarde nos é

apresentado o episódio com Amílcar Esperança, o vizinho de Rui S. No prédio

em que ele vivia antes de ir viver com a Marília. Ao ver o exagerado número de

pósteres que o vizinho tinha como recordação dos tempos em que era esposo

de Madame Simone, domadora de rolas, e que portanto o figurava no meio de

muitos pássaros, o Rui teve a seguinte reacção algo surpreendente,

uma tarde perguntou-me Porquê tantos pássaros, e eu elucidei-o É a minha finada esposa que amestrava rolas, e o doutor, compreende, caladinho a ouvir, a estudar os bichos, a examinar os bicos, as pupilas, as asas, o arame fininho das patas, as rémiges brancas, cinzentas, azuladas, que por um instante vogaram no sótão numa farândola aflita por cima do cocoruto do anão, do me cocoruto, do cocoruto do doutor que as contemplava, siderado, de bochechas gordas a tremer, naquele sorriso de boneco de barro dele, desses a quem se puxa um cordel e sai, salvo seja, um pila de alto lá com ela da batina, o anão contou-lhe do que os bichos eram capazes com as carrocinhas de lata e os baloiços de corda e o sujeito a ouvir de boca aberta, Talvez que a madame Simone me soubesse explicar os pássaros, disse ele, ando há trinta anos à procura disso, (Antunes, 186)

Ou seja, a inabilidade de responder ou de obter resposta a uma pergunta

que se afigura como símbolo de um mundo infantil em que tudo ainda era como

se quer que seja; feliz, agradável, justo, e acima de tudo, um mundo que existia

antes da ruptura com a família, antes da censura e crítica daqueles de quem

esperava mais solidariedade.

Mais tarde, quando já se encontra no bairro da morte, a reacção do pai em

considerar a pergunta como um tremendo absurdo, sublinha duma forma ainda

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mais marcante a ruptura que existe entre eles, e entre o Rui S. E a realidade que

entretanto se foi desenvolvendo sem sua participação activa e consciente.

Finalmente, há que realçar a função dos pássaros nos últimos instantes

da sua vida, tanto a presença das gaivotas na praia antes do suicídio que se

pareciam a um metrónomo a marcar o tempo de espera que antecipava o fim

próximo:

as gaivotas guinchavam cada vez mais perto, ouvia-lhes o bater rapido das asas, sentia-lhe o aroma salgado das penas, e um reflexo do mar cresceu-lhe por momentos no interior das pálpebras,” (Antunes, 245).

E, merece a lembrança, o facto de que quando foi encontrado morto na praia, já

estava, “semidevorado pela incontrolável gula das gaivotas” (Antunes, 78).

Porventura uma forma subtil de exprimir um dos riscos das obsessões: que no

fim nos podem engolir.

Uma última peça de relevo para desvendar este meio enigma que é o titulo

deste romance de Lobo Antunes, foi a transformação, uma vez mais, no

derradeiro capítulo do romance, da colecção de borboletas do pai de Rui S. em

pássaros, e não simplesmente pássaros, mas, “-Estão aqui todos os pássaros

da quinta - esclareceu o pai enquanto as folhas de cartão com aves crucificadas,

de redondas órbitas de gelatina e patas curvas, negras e vermelhas, se

amontoavam ao acaso na alcatifa” (Antunes 223). Portanto, estes eram os

pássaros da quinta, local onde que alberga tantas recordações felizes de uma

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infância que se esvanecia, de tal forma que, no últimos momentos antes da

morte, Rui S. percorre a dita quinta mentalmente mas esta aparece abandonada

e em ruínas. Por demais, é através destes pássaros embalsamados que o pai do

Rui S. se oferece a explicar os pássaros ao filho, sugerindo-lhe que o segredo

poderia desvendado se ele lhes cortasse a barriga, é desta forma que o pai o

incita indirecta e imaginariamente a matar-se:

O pai surgiu à sua esquerda a cheirar a desodorizante e a perfume e disse-lhe Já vistes os pássaros?, apontando para a alcatifa de arbustos, de frutos podres, de seixos e de cagalhões secos do chão, e ele notou, a agarrar o cabo da faca, cravados com alfinetes nas folhas de cartolina, de bracos abertos e órbitas redondas e espantadas, a mãe, as irmãs, a Filipa, o Carlos, o obstetra, a Marília, senhor Esperança, o cego, o tio viúvo, (…) o pai ajeitou o cabelo contra a s têmporas e entregou-lhe a faca de papel, Vou-te ajudar a entender os pássaros, disse ele, vou-te ajudar a compreendê-los (…) viu-se a si mesmo numa placa de cartão etiquetada e numerada, a penugem do peito, o bico, as patas, as pupilas, arremelgadas de pavor, as asas desfraldadas dos braços, debrucei-me, curioso, para mim, e agora as gaivotas gritavam estridentes no meu crânio, os eucaliptos oscilavam a primeira revoada de pardais soltou-se em desordem do pomar na direcção da mata, Corta a barria a esse, disse o meu pai apontando-me com o dedo, corta a barriga a esse para eu to explicar” (Antunes 245-6).

Através destes e de outros exemplos fica aparente que a preocupação

mor de de António Lobo Antunes em Explicação do Pássaros é a investigação e

exposição do diverso número de aspectos que contribuem para o desfecho final

de Rui S., o suicídio, e de maior importância, o seu percurso em direcção a esse

desfecho. Bem, tal como não foi a ênfase do autor de advogar, também eu

neste ensaio não intenciono fazer a defesa de Rui S. nem de apontar um dedo

acusatório a qualquer das facetas que constituem o seu universo. Contudo,

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pareceu-me útil acentuar os aspectos que me pareciam mais fáceis de omitir:

que apesar das muitas falhas de Rui S. enumeradas ao longo da obra e das

devidas consequências que elas geraram quer para ele quer para os que o

rodeiam (“Asneiras sobre asneiras sobre asneiras- disse o médico de muito

longe.-Centenas de asneiras pagam-se caro” (Antunes, 239) ) também as

fendas desse mesmo universo, quer sejam institucionais quer individuais,

merecem ser iluminadas e analisadas de forma a se retirar uma visão

equilibrada dos acontecimentos.

Afigura-se-me que facilmente se poderia, e como é aparentemente hábito

social nos casos do suicídio, deduzir que Rui S. se encarregou de cavar a sua

própria cova, e como é vulgar nestes casos, de o desprezadamente catalogar de

cobarde. E, em conjunto com a falta de êxitos na sua vida, que se pudesse

chegar a ainda mais conclusões precipitadas.

Contudo, o simples facto de que o narrador nos informa desde muito cedo

na obra do que irá acontecer a Rui S., parece fortemente sugerir que o foco da

obra se materializa não no desfecho mas no percurso. Ademais, convém

também aperceber-mo-nos das imperfeições do quadro social e familiar do

protagonista: do pai autoritário mas ausente, da mãe e das irmãs fúteis e

preconceituosas, das mulheres que casaram ambas come ele por razões que

ficam aquém do amor, e duma sociedade que especialmente naquela era pós-

revolução exigia dos seus contribuintes uma participação política zelada e com

pouco espaço de manobra.

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Enfim, é deste modo eximio e sagaz com que Lobo Antunes forja e edifica

todas estas complexidades humanas e sociais, tanto na sua forma de interpretar

o mundo como no seu estilo literário único de depois o exprimir, que fazem de

Explicação do Pássaros um romance com um ponto de vista excepcional e útil

para a expansão da nossa auto compreensão.