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Ensaio sobre o cisne - baudelaire
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
LETRAS DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERRIA ELITERATURA COMPARADA
Imagens de exlio e melancolia: Algumas leituras do poema Le Cygne
Clarissa Xavier Pereira
So Paulo2015
I. Introduo a uma leitura
O poema Le Cygne, publicado na parte Tableaux Parisiens do livro Fleurs
du Mal, um dos mais evidentes exemplos quando se pensa na escrita
fundadoramente moderna de Baudelaire. Pensaremos, no estudo que se segue, o
poema a partir do seu vis inaugural, considerando os aspectos que marcam a
obra do autor e a prpria literatura que surge desde ento. Sendo um poema de
leitura to densa, para contempl-lo nos utilizaremos da crtica feita por grandes
autores, comentando as relaes e dilogos que se estabelecem sobre eles, e os
momentos nos quais escolheremos um vis mais amplamente abarcador.
Talvez o mais recorrente efeito estilstico da obra de Baudelaire seja
sempre partir do princpio da juno de contrastes, elemento que alguns crticos,
como Octavio Paz, j estabeleceram como princpio fundamentalmente potico. A
capacidade de unir termos que funcionam muitas vezes como opostos, gerando
uma nica imagem profunda que os contempla algo to recriador do mundo
quanto a prpria poesia na qual o efeito se insere, e em Baudelaire tal princpio
dita mesmo o ttulo do livro: Flores do mal. Ora, so as flores, tema at clich da
poesia, que podemos pensar at como os floreios de linguagem, nos oferecem
algo que tambm algo doentio: so flores reunidas sob o signo do mal. Neste
buqu doente temos alguns temas recorrentes: queda, morte, tdio, a cidade
moderna, viagem, fuga, evaso.
Baudelaire introduz muitas coisas que eram at ento incomuns na
literatura e a partir dele tornaram-se marcas da modernidade. Ter como tema a
cidade e o coletivo, falando da condio do sujeito que vive em meio a outros
uma marca que se observa de imediato. Se consolida com ele a mistura de
gneros, poema em prosa. E o poeta maldito, que figura da prpria poesia
baudelairiana, reaparece no mais em primeira pessoa, tratando dos seus
sentimentos, mas em sua condio de poeta-criador, metaforizado por figuras,
como no poema L'albatros. O crtico Hugo Friedrich afirma sua posio de que a
lrica de Baudelaire em si uma construo, no h mais a identificao entre o
poeta emprico e o eu-emprico. Essa dissociao representada por ele
atravs do termo despersonalizao da lrica potica (FRIEDRICH, 1978), e pelo
prprio Baudelaire quando diz lgrimas sim, mas no as que vm do corao.
Temos ento uma noo nova de poeta lrico e da experincia que sua lrica
entrev; um lrico racional, que se refere, no mais a amada, mas a
Andrmaca por exemplo, traando relaes de manejo literrio em vez das
narrativas de suas prprias aventuras. Pensemos que a prpria ideia da emoo
lrica num contexto urbano provoca renovao no estilo, o encontro do objeto
cidade enquanto matria potica funda uma base importante da literatura
moderna.
comum ao longo do livro a poesia de interpelao, que se dirige a
algum, como o teatro com seus interlocutores. O poema O Cisne se dirige
diretamente a Andrmaca: Andromaque, je pense vous!, diz ele, o que muito
importante se pensarmos nesse efeito de interlocuo como uma chave de leitura
que aponta na verdade para outro texto. Em Baudelaire a interlocuo e a
intertextualidade caminham juntas, fazendo com que referir-se a algum no
poema tome consigo a condio de reverberar outro texto. No caso de
Andrmaca a referncia , na verdade, uma tripla referncia: a Homero, a Racine
e a Virglio. Ainda sobre as relaes intertextuais n'O cisne, podemos pensar a
referncia literatura clssica unida ao registro elevado, da tragdia, que
dialogam diretamente com o tema da memria: uma memria individual, do
sujeito que caminha pelas ruas e reflete sobre a prpria experincia, e uma
memria que em muitos momentos a crtica chamar de coletiva, mas aqui a
pensaremos diante do termo memria da literatura, que aquela que se constri
pela intertextualidade, e cujos ganchos mnemnicos puxam a experincia de
sujeitos oriundos da leitura. A memria nesse poema sobretudo frtil, como
quando diz Ce Simos menteur qui par vos plers grandit/A fecond soudain ma
mmoire fertile, o rio que perpassa Andrmaca atravessa a memria do flneur
parisiense no sculo XIX: tudo recordado, revivido, recriado, a memria
substancialmente criadora.
O flneur citado outro personagem muito comum ao longo das Flores do
mal, o artista que vaga pelo mundo, bomio, e que na literatura baudelairiana
aparece como aquele que registra frames da vida na cidade enquanto faz seus
passeios a esmo, colhendo matria para sua criao, e recolhe a experincia do
mundo fazendo-a recombinar-se, ressoando sua percepo atravs da juno de
elementos colhidos que ele promove em seu recorte moldural, com isso forma os
quadros parisienses.
A ideia de lugar ideal expressa ao longo do livro de diversas formas, ele
o locus amoenus, como no poema Convite viagem, ou as vezes
simplesmente o local da ausncia, o local destrudo e substitudo por algo que
intensifica o fato irrefrevel daquele lugar que se mostra para o poeta caminhante
ser o no-lugar. Em Le Cygne o poeta pensa em Andrmaca e num cisne que
foge da gaiola, ambos personagens capturados e levados para um no-lugar no
qual sua existncia desconexa e, consequentemente, ridcula.
Nos Quadros Parisienses h a valorizao do artifcio, daquilo que
construdo em relao ao que natural: valorizado o universo da mulher assim
como a prpria mulher; o autor faz o elogio da maquiagem como se o construto
do universo feminino em seu artifcio de enfeites, roupas e maquiagem,
representasse a mulher tanto quanto ela prpria. O efeito expresso de que
aquilo que faz parte da cultura e do construto assimila a prpria natureza, como
se a metonimizasse. A oposio entre natural e artificial um tema do romantismo
que Baudelaire retoma em alguns momentos numa chave em que valoriza o
natural, e em outras o recusa. Em Correspondncia encontramos a exaltao da
natureza, oposto do que ocorre no Elogio da maquiagem. Diz ele que o poeta
o tradutor da linguagem da natureza, e em outros momentos, encontramos a
completa recusa do natural. possvel ver o elogio do artifcio relacionado ao
prprio trabalho do poeta, que cria imagens e narrativas a partir da fico ou do
rearranjo daquilo que colhe no mundo; a poesia, nesta perspectiva, um paraso
artificial, criadora e recriadora de mundos.
A partir de ento observamos que a recolha da cidade enquanto material
da lrica funda o carter sbito da experincia, o choque do que a experincia
fugaz e transitria como no poema A uma passante, a passante a que o eu
lrico se dirige o encanta, mas no fim h a conscincia de que ele nunca tornar a
v-la , a experincia da lrica moderna de Baudelaire da ordem da apario, do
lampejo, e cabe ao poeta, no momento da recolha, transform-la em sua sntese
perene. A cidade mostrada em Le Cygne , talvez, o mais importante cenrio do
ambiente moderno que ressoa na poesia de Baudelaire, nele encontramos uma
srie de oposies entre as quais o sujeito est suspenso: a transformao veloz
do ambiente urbano, em relao memria infinita do que j se foi, do que
decorre o lugar, de onde o sujeito advm e o lugar no qual ele est colocado o
sujeito capturado, no pelo espao, como Andrmaca e o cisne, mas pelo
prprio tempo que o trai e gera no lugar onde ele se ps esttico a transformao.
A ideia de transformao recorrentemente a prpria ideia de beleza em
Baudelaire, sendo a cidade transformada e sua experincia eletrizante aquilo que
ao mesmo tempo rapta e encanta.
Opondo-se ao eltrico, observamos que o recolhimento no quarto tem sua
importncia tal qual a observao da cidade durante o momento das caminhadas
do flneur. No poema Le Cygne tudo memria, e a memria vem no
recolhimento no quarto, do momento de criao introspectiva, fazendo com que
as coisas vistas ressuscitem. Passado o furor eletrizante da cidade, h no
recolhimento o papel de dar uma forma ao que passou, to presente na arte
mnemnica extremamente conjurada pela literatura clssica vem da memria
recolhida a reconstituio da cidade que o quarto transforma em sntese, nesse
momento se instaura a possibilidade de captar o eterno no transitrio.
II. O contexto sociopoltica de Dolf Oehler alinhado a uma sntese Benjaminiana
Walter Benjamin, em seu ensaio intitulado Sobre alguns temas em
Baudelaire fala sobre a dificuldade do poeta lrico na modernidade, sendo este
algum que possui conscincia da prpria poesia enquanto moderna, dissidente
temporal do mundo em que habita. O poeta lrico moderno vive a era industrial
das transformaes frequentes, v o seu espao constantemente alterado, tal
qual a surpresa melanclica do eu lrico de Le Cigne quando percebe que as
obras de reconstruo das ruas por onde passa j no o abarcam: o colocam
numa condio de exilado. Para pensar na experincia da cidade industrializada
sendo matria da lrica moderna, Benjamin recorre filosofia de Bergson, que
descreve uma relao de experincia e memria do espao urbano a partir da
qual se pode refletir o processo de criao potica do lrico moderno francs.
a experincia inspita ofuscante da poca da industrializao
em grande escala. Os olhos que se fecham diante desta experincia
confrontam outra de natureza complementar na forma por assim
dizer de sua reproduo espontnea. A filosofia de Bergson uma
tentativa de detalhar e fixar esta imagem reproduzida, Ela oferece
assim indiretamente uma pista sobre a experincia que se apresenta
aos olhos de Baudelaire, sem distores, na figura de seu leitor.
(Benjamin, 1994)
O tratamento das questes vistas e pensadas ao longo dos poemas
relacionado obra Em busca do tempo perdido, por sua questo com memria
Proust elabora a memria da conjuno entre recordaes individuais e coletivas,
levando a esse mbito a rememorao enquanto fator construtivo da nossa
memria, formado pelo que recordamos de maneira voluntria e involuntria, e
pelo que a ns rememorado a partir do contato com as outras facetas de uma
mesma memria expostas pelas pessoas que tambm a viveram. Ora, a
concepo de memria construda pelo coletivo surge na obra de Baudelaire com
intensidade, justamente por ser o eu lrico um ser sempre angustiado e atento ao
que por ele permeado na cidade populosa. Para Benjamin, necessrio
considerarmos o tema da sociedade vivente nas descries de cidade moderna
que lemos nos poemas. Ao pensar Le Cygne sob esse signo podemos nos dar
conta que h uma construo oriunda do coletivo at literalmente no poema
posto que a melancolia do ser passante surge a partir da viso do Louvre,
construo contempornea ao autor, que se coloca sobre outras construes
histricas. No ensaio Um socialista hermtico, Dolf Oehler se detm sobre esse
tema. a viso do complexo do Louvre que dispara a primeira associao
e destampa a fonte das memrias no difcil pensar aqui no
modo de funcionamento da mmoire invontaire de Proust ; a
rememorao imperiosa, falsa e forada da glria napolenica
desperta a rememorao autntica. Essa relao dialtica entre
opresso e liberdade, afirmada desde a primeira estrofe, constitui o
cerne de O cisne (Oehler, 2004)
A temtica daquele que, segundo Baudelaire numa dedicatria, nas
cidades gigantescas, est afeito a tramas de suas inmeras relaes
entrecortates para Benjamin informa que a relao do poeta com as massas
urbanas no est relacionada com nenhuma classe social ou grupo especfico. O
que comove sua condio de flneur diante da multido amorfa de passantes
(Benjamin, 1994). Decerto tema comum em diversos poemas d'As Flores do Mal
e tambm dos seus Poemas em Prosa,o coletivo de sujeitos que formam o
construto e reconstruto dirio da grande cidade. Para Benjamin o coletivo e a
cidade so elementos, no s recorrentes, como indissociveis na literatura de
Baudelaire, de modo que os Quadros Parisienses so invariavelmente quadros
sobre a superpopulao e o sujeito que vive por ela perpassado em seu cotidiano.
Oehler, no entanto, considera que h no cisne a questo das especficas
classes sociais, cuja luta de classes e o tema da revoluo francesa podem no
funcionar como os poemas dos tempos hericos da luta de classes, mas
funcionam como perfrase do absurdo inescapvel daquele herosmo.
III. A arquitetura potica de Calasso
Roberto Calasso analisa a poesia de Baudelaire a partir da criao da
cidade sobre a qual ela trata, para o crtico h na poesia de Baudelaire,
fundamentalmente, a construo de uma cidade e de uma sociedade baseada
num catico ordenamento ornamentado.
Para Racine, a humanidade devia ser observada no interior da corte
de Versalhes, porque aquele lugar, justamente por seu artificialismo
(que era o todas as molduras), exaltava a evidncia das paixes,
submetidas a uma portentosa lente de aumento. Baudelaire viveu em
Paris como um corteso prisioneiro de Versalhes (Calasso, 2012)
Ora, a artificialidade , de fato, trabalhada por Baudelaire em diversos
momentos dos Quadros Parisienses, o artifcio oriundo da criao, de modo que
o construto da cidade artificial, da cidade moderna que claramente cultura em
oposio a natureza, tambm o que o crtico chama de terreno preparado e
macerado, que a prpria poesia de Baudelaire. Calasso diz que a Paris de
Baudelaire o caos dentro de uma moldura, sendo aquilo que a contm o recorte
da memria, posto que a funo da moldura nos aproxima do momento
introspectivo de construo potica, no qual a cidade eltrica recebida de dentro
do quarto, pelas memrias colhidas, e o que dela se apreende nesse momento
atravs da janela (outra moldura, outro recorte do caos).
IV. O espelho da memria literria de Jean Starobinski e Victor Brombert
Victor Brombert diz que a chave do poema est em entender o primeiro
verso, no qual o eu lrico se refere Andrmaca, personagem da mitologia grega.
No poema Andrmaca instaurada numa segunda pessoa, com a qual o poeta
dialoga sobre Paris. Segundo o crtico, a relao que podemos contemplar entre o
poema de Baudelaire e a epopeia de Virglio , sobretudo, em seu carter
temporal. Em seu ensaio 'Le Cygne': The Artifact of Memory ele cria uma noo
temporal do poema, analisando a maneira como os verbos que invocam o
presente pressupem outros do passado, de forma que, em vez de deix-los para
trs enquanto experincia, os envolve numa justaposio. Como se no poema
que Brombert diz possuir o tempo como processo central, os tempos verbais se
contradissessem a ao de pensar e a de ter estado caminhando no so
sequenciais, so simultneas. O paradigma temporal prescrito no poema compe,
no s a histria vivida pelo eu lrico, como tambm a relao traada por ele pela
histria da literatura.
Yet even in Virgil's epic, the episodes in the past; it is relived through a
narration, as a return to a former time, a 'flashback'. () Through its
rhetorical and thematic structure, 'Le Cygne' is both a poem of time
gone by and simultaneity, the assulion to the founding of Rome (the
new Troy), integrated into the order of History, proposes a reassuring
continuity. (Brombert, 1998)
Jean Starobinski, em seu livro A melancolia diante do espelho rene trs
ensaios acerca da obra de Baudelaire, analisada sob o signo da melancolia. O
crtico faz uma analogia entre o ritmo constante do alto e baixo na obra do poeta e
a figura do melanclico, sendo este aquele que pode-se elevar aos mais altos
pensamentos e ainda assim ser, no mesmo movimento, corrompido pela bile
negra (representao do mundo clssico sobre a melancolia). Ora, a partir de tal
leitura podemos encontrar nas Flores do Mal certamente tal poeta que das ruas
e do quarto, que escava o cu. No entanto, para Starobinski o que se retm da
figura melanclica no a imagem do eu lrico, que fala sobre si, mas o objeto
contemplado, o ser imaginado ou rememorado, frase que certamente
vislumbramos no poema Le Cygne, no qual a melancolia se perfaz atravs de
duas principais figuras, lanadas uma sobre a luz da outra: Andrmaca, que
advm da memria literria, e o prprio cisne que d ttulo ao poema, visto na
cidade.
A anlise de Starobinski parte da formao dos quadros (tableaux) de
Baudelaire a partir do que o crtico chama de elementos antigos, que beiram o
lugar-comum; ora, so esses topoi que reconstituem as relaes de memria e
histria alegorizadas ao longo do poema a recriao parte do elemento imitado
(mimesis) para aquilo que inaugural, e que se coloca de tal modo diante da
tradio. Andrmaca a personagem que alegoriza a reminiscncia, o
pensamento que a ela se dirige e que a todo momento se reinstaura no poema,
insistindo na atitude reflexiva; conjurar Andrmaca na figura da mulher, rainha e
escrava, capturada e exilada para uma nova terra que simula a sua de origem
uma atitude muito prxima da que o eu lrico do poema tem ao ser,
simultaneamente, exilado do seu passado e vivente no mesmo local cada um a
seu modo, e ambos se cruzam em seu movimento oposto. So personagens que
vivem uma iluso de local familiar, cujo parecer aquele que seria seu habitat serve
apenas para intensificar a irrevogvel conscincia de no o ser. Diz o crtico que
'Le Cygne', como se sabe, o poema do exlio e dos exilados, no entanto uma
condio que ele atribui diretamente modernidade, por ser o exlio do construto,
o exlio do tempo que atravessa o sujeito capturado e o perpassa de
irreconhecimento frente ao 'reconstruto', fruto da coletividade j investigada por
Oehler e Benjamin. Ora, o sujeito moderno reconhece-se irreconhecvel em seu
locus quando o investiga em seus passeios, de onde o artista retira os quadros
de suas fotografias mnemnicas, e de onde se exibem seus espaos
descontinuados, e seu tempo que no parece mais diz-lo respeito.
O lugar, o instante presente suscitam bruscamente uma
superposio de lugares e momentos anteriores, todo um pretrito
marcado pela destruio, o luto, a perda: esse espao anterior s
encontra apoio e corrobora na memria do poeta. Dele procede a
cadeia de analogias que vincula as figuras: estas so 'chers
souvenirs que o habitam para sempre' (Starobinski, 2012)
Poderamos pensar, a partir da chave aberta pelo crtico, que a memria do
sujeito moderno construda a partir do que no se encontra mais, a perda
evidencia que o que no se tem j houve, e que tal ausncia compor o flneur
em seus demais encadeamentos de 'souvenirs', ditar o ordenamento que ele
dar aos seus indissociveis passeios e, desse modo, a sua prpria construo
da memria.
V. Composies da crtica literria
Starobinski percorre o poema de Baudelaire com uma pertinncia singular
diante dos outros crticos, posto que pensa o poema em seu ponto de simetria, o
v diante do espelho no qual as referncias passam a refletir as obras que
ancoram. A diviso formal disposta pelo autor evidencia os efeitos de alto e baixo,
e em seus temas percebemos a concepo de histria traada, um construto
que reflete a prpria construo potica assimilada pela metalinguagem que a sua
meno instaura. Ora, o poeta aquele que constri os quadros parisienses
dispondo-os diante de sua perspectiva. A construo e reconstruo costura
muitos pontos importantes para o poema, posto que, numa anlise mais literal, a
cidade em si contempornea de Baudelaire passava por infindveis destruies
para a reconstruo, algo sobre o que trata Calasso. Uma possvel causa do
spleen do ser passeante que frui a cidade sua a mudana e a corrente
experincia de falta, na qual o movimento de queda dos monumentos e sua
antagnica reverticalizao so simultneos ocorrem num ritmo quase
paralelo, no qual um movimento conjura o outro invariavelmente. O ser exilado e
melaclico teria seu spleen e seu ideal mais uma vez unidos, pois aqui tambm
os movimentos de queda e ascenso so auto-referentes.
Ainda sobre a relao entre a cidade que o poeta v e o que dela nele
ressoa, tema bastante central de todas as crticas comentadas at aqui, para
Starobinski h mais uma vez uma juno de opostos, que est marcada pelo uso
dos verbos voir e penser - diz ele que ambos constituem um trabalho de
representao que resultar no pleno desdobramento de um 'quadro parisiense'.
A intertextualidade em Baudelaire se mostra, sobretudo, na maneira, ao
estilo Delacroix, de compor um reordenamento a partir da sobreposio de figuras
e fundos, sendo Paris e o mundo clssico da nova Troia um fundo composto
sobre o qual se evidenciam as figuras do cisne e de Andrmaca, e sobre os quais
ressoam alegoricamente o que se v e o que se pensa. A anlise de Starobinski,
sobretudo, percorre as figuras e fundos utilizados por Baudelaire ao longo do
poema tendo em vista a forma como essas so perpassadas por lugares-comuns
(topoi) da arte, e como o sentido construdo e reconstrudo a partir das relaes
de intertextualidade e referncias, amplamente usadas tanto no contedo, como a
referncia que captura da personagem da Eneida, quanto nos aspectos formais,
de empreender a tcnica de composio dos quadros tal qual procede
Delacroix.
Talvez a respeito de Dolf Oehler, Starobinski diz que estavam certos os
que afirmaram que 'Le Cygne' comporta um sentido sociopoltico, mas seria um
engano reduzi-lo a isso., suponhamos que seria uma referncia para marcar que
sua anlise se prope a abarcar os elementos de construo do poema, sem que
se recuse a anlise sociopoltica, porm estabelecendo que esta deva ser
ampliada.
Diante de tudo, preciso notar, contudo, que a alegoria, no uso que dela
faz Baudelaire, manifesta-se de maneira dupla (Starobinski). Ora, como vimos,
h tanto figuras que remetem a temas, como o cisne fugido da gaiola, e a
personagem mtica, representando o exlio, quanto temas abstratos (a Douleur e o
Souvenir) que so dispostos no poema com a primeira letra maiscula, e que se
transformam em temas passveis de alegorizar as figuras vistas e pensadas e a
prpria condio do sujeito que por elas permeado. Nesse sentido, o poema
sobre a falta e a memria dela demonstra seus temas numa tendncia de conjurar
e evocar, nunca se consumando naquilo que inicia ele no traz de volta o
perdido, mas sintetiza na construo o que inabalavelmente expe aquilo que
falta, em sua irrevogvel condio de inapreensvel, em que cada aproximao
refaz tambm o movimento contrrio, do que se percebe distante, do que se
pensa e se v ausente.
Diz Starobinski que Todos os 'je pense' do poema dirigem-se a seres
desafortunados eles mesmos pensativos e atormentados pelo infortnio de
outros seres ou de outros lugares; todo pensamento , portanto, ancorado em
algum: o eu lrico se reporta Andrmaca, o poema Victor Hugo (escritor
na poca exilado), o pensamento se move na direo de certos seres, o que
para ns muito importante, posto que o enunciador do poema no captura as
figuras e as maneja a seu dispor em outro movimento ele percebe (v) a
existncia delas no mundo (e na literatura), e o fato de que elas j traam uma
srie de relaes mnemnicas e histricas. O poeta moderno, construtor de
quadros, aproxima suas figuras, as redireciona, recria o mundo atravs do
enquadramento em seu mpeto fotogrfico. Desse modo, as figuras de Baudelaire
no podem responder a um produto oriundo de uma justaposio elas
estabelecem relaes que podem construir e reconstruir os temas, num trabalho
de revitalizao da memria. A falta nunca a uma nica pessoa, uma falta que
remete a outros. Na lrica moderna de Baudelaire, a ausncia compreendida
numa perspectiva de construo coletiva.
VI. Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Charles Baudelaire:
um lrico no auge do capitalismo. So Paulo, Brasiliense, 1994.
BROMBERT, Victor. Le Cygne: The artifact of Memory. In: The hidden reader
(Stendhal, Balzac, Hugo, Baudelaire, Flaubert). Cambridge, Havard University
Press, 1998.
CALASSO, Roberto. A Folie Baudelaire. So Paulo, Companhia das Letras, 2012.
FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lrica moderna: da metade do sculo XIX a
meados do sculo XX. So Paulo, Duas Cidades, 1978.
OEHLER, Dolf. Um socialista hermtico. In: Terrenos vulcnicos. So Paulo,
CosacNaify, 2004.
RAYMOND, Marcel. Introduo. In: De Baudelaire ao surrealismo. So paulo,
Edusp, 1997.
STAROBINSKI, Jean. A melancolia diante do espelho. Trs Leituras de
Baudelaire. So paulo, Editora 34, 2014.