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ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA COM BRINCADEIRAS: UMA ALTERNATIVA IMPORTANTE PARA O INICIO DA ESCOLARIZAÇÃO Luciana Cristina Cardoso - UFSCar Resumo O presente texto apresenta dados e análises de minha dissertação de mestrado que teve por objetivo identificar, compreender e analisar noções matemáticas construídas por crianças de seis anos quando participavam de brincadeiras no contexto da Educação Infantil, tendo como base o construtivismo piagetiano. A coleta de dados ocorreu antes da Lei n° 11.274/2006, que estabeleceu a duração de nove anos para o Ensino Fundamental e a inclusão das crianças de seis anos nesse nível da educação básica. Apresento, portanto, considerações sobre como se pode aprender e ensinar matemática, tendo como referência a faixa etária das crianças, suas necessidades e interesses, independente do nível de escolaridade que frequentem. A pesquisa da própria prática foi de natureza qualitativa e teve como fonte de dados observações sistemáticas das crianças nos momentos de brincadeira no parque, gravações em áudio e vídeo de tais momentos, gravações em áudio e vídeo das discussões sobre as regras das brincadeiras em sala de aula, registros gráficos das crianças após o brincar e o diário da pesquisadora. A intervenção objetivou promover a construção de noções matemáticas presentes nas brincadeiras selecionadas pela professora-pesquisadora, sendo elas: mãe- da-rua, coelhinho sai da toca, alerta e queima. Na análise dos dados busquei identificar quais noções matemáticas presentes nas brincadeiras foram construídas, explicitadas e representadas pelas crianças e como o processo ocorreu. Os resultados indicaram que utilizar brincadeiras é uma estratégia adequada para que crianças desta faixa etária construam noções matemáticas como as de: medir, contar, comparar, acrescentar, retirar, localizar-se no espaço, identificar e representar figuras geométricas planas, fazer uso da linguagem matemática, criar estratégias e solucionar problemas. Além disso, foram detectadas algumas outras habilidades como argumentar, aceitar limites, lidar com frustrações, cooperar e respeitar a vontade do grupo, que de acordo com a vertente teórica adotada, culminam no desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático. Palavras-chave: ensino e aprendizagem de matemática; brincadeiras infantis; atuação de professores; prática pedagógica com crianças de 6 anos. O ensino da matemática e os dilemas de uma professora iniciante - a pesquisa da própria prática Estudos realizados por diversos pesquisadores, como Mizukami, Silva, Libâneo, Gatti e Nóvoa, todos estes apresentados nas mesas redondas do XI Congresso Estadual Paulista sobre Formação de Educadores e I Congresso Nacional de Formação de Professores (Águas de Lindóia, 2011), apontam a necessidade de retomada das pesquisas que envolvem as práticas em sala de aula. Segundo eles, a escola precisa ser o contexto formativo do docente em serviço. Além disso, as pesquisas precisam retomar a prática como ferramenta de análise e devolver a ela os resultados de tais estudos. Precisamos XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.001067

ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA COM BRINCADEIRAS: UMA ... · em sala de aula, ... Encontrei também, ... reflexão acerca da temática ao apresentar uma proposta bem sucedida de

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ENSINAR E APRENDER MATEMÁTICA COM BRINCADEIRAS: UMA

ALTERNATIVA IMPORTANTE PARA O INICIO DA ESCOLARIZAÇÃO

Luciana Cristina Cardoso - UFSCar

Resumo

O presente texto apresenta dados e análises de minha dissertação de mestrado que teve

por objetivo identificar, compreender e analisar noções matemáticas construídas por

crianças de seis anos quando participavam de brincadeiras no contexto da Educação

Infantil, tendo como base o construtivismo piagetiano. A coleta de dados ocorreu antes

da Lei n° 11.274/2006, que estabeleceu a duração de nove anos para o Ensino

Fundamental e a inclusão das crianças de seis anos nesse nível da educação básica.

Apresento, portanto, considerações sobre como se pode aprender e ensinar matemática,

tendo como referência a faixa etária das crianças, suas necessidades e interesses,

independente do nível de escolaridade que frequentem. A pesquisa da própria prática foi

de natureza qualitativa e teve como fonte de dados observações sistemáticas das

crianças nos momentos de brincadeira no parque, gravações em áudio e vídeo de tais

momentos, gravações em áudio e vídeo das discussões sobre as regras das brincadeiras

em sala de aula, registros gráficos das crianças após o brincar e o diário da

pesquisadora. A intervenção objetivou promover a construção de noções matemáticas

presentes nas brincadeiras selecionadas pela professora-pesquisadora, sendo elas: mãe-

da-rua, coelhinho sai da toca, alerta e queima. Na análise dos dados busquei identificar

quais noções matemáticas presentes nas brincadeiras foram construídas, explicitadas e

representadas pelas crianças e como o processo ocorreu. Os resultados indicaram que

utilizar brincadeiras é uma estratégia adequada para que crianças desta faixa etária

construam noções matemáticas como as de: medir, contar, comparar, acrescentar,

retirar, localizar-se no espaço, identificar e representar figuras geométricas planas, fazer

uso da linguagem matemática, criar estratégias e solucionar problemas. Além disso,

foram detectadas algumas outras habilidades como argumentar, aceitar limites, lidar

com frustrações, cooperar e respeitar a vontade do grupo, que de acordo com a vertente

teórica adotada, culminam no desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático.

Palavras-chave: ensino e aprendizagem de matemática; brincadeiras infantis; atuação

de professores; prática pedagógica com crianças de 6 anos.

O ensino da matemática e os dilemas de uma professora iniciante - a pesquisa da

própria prática

Estudos realizados por diversos pesquisadores, como Mizukami, Silva, Libâneo, Gatti e

Nóvoa, todos estes apresentados nas mesas redondas do XI Congresso Estadual Paulista

sobre Formação de Educadores e I Congresso Nacional de Formação de Professores

(Águas de Lindóia, 2011), apontam a necessidade de retomada das pesquisas que

envolvem as práticas em sala de aula. Segundo eles, a escola precisa ser o contexto

formativo do docente em serviço. Além disso, as pesquisas precisam retomar a prática

como ferramenta de análise e devolver a ela os resultados de tais estudos. Precisamos

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resgatar as práticas existentes em salas de aula sob a luz do professor reflexivo Donald

Schön (1983 e 1987, apud MIZUKAMI et. al 2002, p. 16), num processo que caminhe

para a construção da cultura coletiva de escola, reforçando práticas de cooperação e

partilha, apresentados por Nóvoa (2011).

Em síntese, a pesquisa relatada neste artigo (CARDOSO, 2008), caracterizada como

uma pesquisa–intervenção de natureza qualitativa, envolveu minhas próprias limitações

enquanto professora iniciante no que dizia respeito ao ensino da matemática na

Educação Infantil. Mais especificamente, está vinculada à interface entre ensinar e

aprender matemática construindo conceitos básicos e o brincar. Para seu

desenvolvimento foram selecionados quatro jogos ou brincadeiras que podiam, no meu

entender, ser exploradas matematicamente: Coelhinho sai da toca, Mãe-da-rua, Queima

e Alerta.

A pesquisa teve por objetivo identificar, compreender e analisar noções matemáticas

construídas por crianças de seis anos quando participavam de brincadeiras no contexto

da Educação Infantil, tendo como base o construtivismo piagetiano. A coleta dos dados

foi realizada ao longo de 2005, ou seja, antes da aprovação da Lei n° 11.274/2006, que

estabeleceu a duração de nove anos para o Ensino Fundamental e a inclusão das

crianças de seis anos nesse setor da Educação.

O texto aqui exposto trata de um grupo de crianças com seis anos de idade que eram

minhas alunas e que, no momento de coleta dos dados, ainda cursavam a Educação

Infantil. Fui, portanto, professora e pesquisadora ao mesmo tempo. Papéis nem sempre

fáceis de serem conciliados, mas necessários para uma ação pedagógica cada vez mais

consciente e intencional como professora e, também para a construção de

conhecimentos acadêmicos que têm estreita relação com o cotidiano das escolas e, que

sendo assim considerados, podem vir a iluminar outras práticas pedagógicas em outros

contextos.

Foram realizadas observações das crianças nos momentos de brincadeira no parque,

discussões sobre as regras das brincadeiras em sala de aula, registros gráficos das

crianças após o brincar e registros sistemáticos da pesquisadora em diários de campo.

A análise dos dados mostrou que o ensino da matemática pode ocorrer neste contexto de

brincadeiras e que utilizar brincadeiras é uma estratégia adequada para que crianças

desta faixa etária construam noções matemáticas como as de: medir, contar, comparar,

acrescentar, retirar, localizar-se no espaço, identificar e representar figuras geométricas

planas, fazer uso da linguagem matemática, criar estratégias e solucionar problemas.

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Encontrei também, algumas outras habilidades como: argumentar, aceitar limites, lidar

com frustrações, cooperar e respeitar a vontade do grupo, que de acordo com a vertente

teórica adotada, culminam no desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático. Ao

final da pesquisa me deparei com um questionamento: será que poderíamos propor esta

metodologia de trabalho para o ensino da matemática também no primeiro ano do

Ensino Fundamental?

Encontrei neste evento, o ENDIPE, o espaço apropriado para colocar este

questionamento, pois as políticas públicas têm poder de influenciar as ações em sala de

aula, sobretudo a Lei acima citada, que provocou mudanças estruturais e curriculares.

Não tenho como objetivo, responder a este questionamento no presente texto, mas

propor uma reflexão acerca da temática ao apresentar uma proposta bem sucedida de

como explorar conceitos matemáticos tendo em vista a faixa etária das crianças, que

estando na Educação Infantil ou no primeiro ano do Ensino Fundamental, têm as

mesmas necessidades.

Considerando documentos oficiais e orientações gerais sobre propostas metodológicas e

organizacionais relacionadas ao Ensino Fundamental de Nove Anos, identifiquei grande

preocupação em não transpor culturas e práticas já cristalizadas neste nível de ensino

para o primeiro ano deste novo modelo. Neste sentido, as metodologias vinculadas ao

modo como se ensina e como se aprende os conteúdos pertinentes ao primeiro ano do

novo Ensino Fundamental, ganharam e vêm ganhando cada vez mais destaque. Com

isso, destaco três grandes eixos que foram, de certo modo, contemplados na pesquisa e

que se tornaram também uma preocupação em publicações oficiais que orientam as

ações educativas deste setor: a importância da estrutura espacial da escola e modos de

explorar todos os ambientes e formas de agrupamentos, de modo a favorecer uma ação

comunicativa construtiva; a organização dos currículos e programas, de modo que

favoreçam os conhecimentos trazidos pelas crianças, como ponto de partida e, uma

reflexão acerca do tempo escolar, tempo este, muito mais associado ao rendimento e

envolvimento do grupo do que vinculado ao tempo tradicionalmente denominado por

hora/aula.

Ciente das dificuldades de uma proposta que atenda a tais necessidades, apresento o

trabalho desenvolvido tendo em vista a aprendizagem de conceitos matemáticos por

crianças de seis anos de idade. A ideia não é sugerir a transposição do que foi feito no

contexto da Educação Infantil para o Ensino fundamental. A intenção é, justamente,

provocar reflexão acerca das práticas docentes com o ensino da matemática no primeiro

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ano do Ensino Fundamental. É importante destacar que, ao longo da pesquisa procurei

responder a seguinte questão: Que noções matemáticas as crianças de seis anos

constroem quando participam de determinados jogos e brincadeiras no contexto da

Educação Infantil?

Por noções matemáticas, podem-se entender todas as relações que as crianças

estabelecem mentalmente, por meio do raciocínio lógico-matemático, levando em

consideração os princípios de ensino delineados por Kamii (2003, p.42): “a criação de

todos os tipos de relações; a quantificação de objetos; A interação social com os colegas

e professores”.

Tendo como suporte a teoria piagetiana e ciente de que Piaget não esteve preocupado

em fundar uma teoria da educação, não posso deixar de destacar que suas pesquisas

influenciam o campo educativo, sobretudo pela possibilidade de transformar a escola

passiva em uma escola ativa, na qual a criança deixa de ser alguém que apenas ouve e

segue as orientações da professora para tornar-se construtora de conhecimentos a partir

das suas ações físicas e intelectuais.

(...) Se se deseja (...) formar indivíduos capazes de criar e trazer progresso à

sociedade de amanhã, é claro que uma educação ativa verdadeira é superior a uma

educação consistente apenas em moldar os assuntos do querer pelo já estabelecido

e os do saber pelas verdades simplesmente aceitas (...) (PIAGET, 1980, p. 34).

O ensino e a aprendizagem da matemática por meio de brincadeiras em grupo

Considerando a especificidade da matemática como objeto de estudo e a construção do

conhecimento sob a perspectiva piagetiana, é importante destacar que ao brincar

individualmente, a criança refaz mentalmente situações a que é exposta em sua vida

cotidiana. Já o brincar em grupo, ou denominado coletivo, exige dela a coordenação de

diferentes pontos de vista. Ela se vê em situações diferentes daquelas a que é exposta no

brincar individual, pois lá ela orienta as suas próprias decisões. No grupo ela precisa

argumentar e convencer seus pares de suas próprias convicções. (KAMII e DEVRIÉS,

1991).

Por isso procurei, na fase de observação das brincadeiras das crianças e sem interferir de

qualquer forma, identificar quais eram suas preferências. O diário de campo traz dados

que mostram o interesse natural das crianças por jogos em grupo e jogos com regras.

(...) percebi que as crianças demonstravam grande interesse por brincadeiras

coletivas, sobretudo aquelas em que representavam papéis. Além dessas,

brincadeiras que envolviam corridas e habilidades corporais, principalmente de

perseguição foram recorrentes. (Diário de campo, 01/08/2005).

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De acordo com o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (BRASIL,

1998), os estudos sobre desenvolvimento e aprendizagem contribuíram também para

compreender que a matemática deveria explorada, na escola, como o era em sua origem,

ou seja, a partir da resolução de problemas. Quanto a esse aspecto, o universo da escola

infantil se constitui espaço propício para propor situações-problema relacionadas ao

desenvolvimento do pensamento matemático.

Na aprendizagem da matemática o problema adquire um sentido muito mais

preciso. Não se trata de situações que permitam “aplicar” o que já se sabe, mas sim

daquelas que possibilitam produzir novos conhecimentos a partir dos

conhecimentos que já se tem e em interação com novos desafios. (...). (BRASIL,

1998, p.211).

Nessa perspectiva, jogos e brincadeiras têm o seu papel ainda mais valorizado, visto

poderem ser percebidos e utilizados como situações, problemas que considerem os

conhecimentos prévios das crianças como ponto de partida para o enfrentamento de

novos desafios.

Ainda segundo o Referencial, o trabalho com resolução de problemas faz com que as

crianças desenvolvam suas capacidades de generalizar, analisar, sintetizar, inferir,

formular hipóteses, refletir e argumentar, o que vai ao encontro da finalidade da

Matemática na educação infantil, de favorecer o desenvolvimento das capacidades de:

reconhecer e valorizar os números, as operações numéricas, as contagens orais e as

noções espaciais como ferramentas necessárias no seu cotidiano; comunicar idéias

matemáticas, hipóteses, processos utilizados e resultados encontrados em situações-

problema relativas a quantidades, espaço físico e medida, utilizando a linguagem oral e

a linguagem matemática; ter confiança em suas próprias estratégias e na sua capacidade

para lidar com situações matemáticas novas, utilizando seus conhecimentos prévios.

O episódio descrito abaixo, retirado do diário de campo, traz evidências disso e indica

como uma situação real, caracterizada enquanto um problema durante o brincar pode

contribuir para a descentração do pensamento, no sentido de buscar coletivamente, por

meio da argumentação, uma solução viável. Destaco neste trecho, não apenas as noções

matemática de limites e vizinhança, mas o trabalho coletivo, que remete ao primeiro

eixo apontado no início de nosso texto, que envolve diferentes formas de organização

das crianças e dos espaços escolares. E, ainda, a organização do currículo centrado no

conhecimento que as crianças trazem sobre determinados assuntos, como em nosso

caso, as regras das brincadeiras. No momento da brincadeira o grupo dialoga e articula

idéias tomando como base suas próprias vivências e brincando no ambiente do parque.

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Guilherme passou várias vezes por fora do risco lateral do campo e nenhuma

criança se queixava do ocorrido até que Alberto percebe e diz: “— Oh Guilherme,

não vale passar por ai não! Você tá roubando!” E Guilherme, sabiamente

reponde: “Por que não pode? Você não falou nada disso lá na classe...”.

Então Alberto, preocupado em fazer entender todas as regras, pede para que eu

pare a brincadeira: “— O Lu, fala pra eles que não pode sair de dentro do

campo!”

Pesquisadora: “Mas Alberto, foram vocês que explicaram como brincar. O que

podemos fazer para resolver isso?”

Giulia: “A gente pode mudar algumas regras e brincar de outro jeito, não pode? E

se dessa vez valer passar por fora?”

Alberto: “Claro que não! Se tem o risco no chão, pra que serve? É pra ver e não

passar depois dele. Só pode brincar aqui dentro, por isso fizemos o risco! Vocês

esqueceram?”

As crianças decidem continuar a brincadeira respeitando o limite do risco do

campo e logo todos já haviam experimentado a sensação de ser a mãe-da-rua.

(Diário de campo, 16/08/2005, Mãe-da-rua).

A concepção exposta no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil vai

no sentido de que

Aprender matemática é um processo contínuo de abstração no qual as crianças

atribuem significados e estabelecem relações com base nas observações,

experiências e ações que fazem, desde cedo, sobre elementos de seu ambiente

físico e sociocultural. (BRASIL,1998, p. 217).

De acordo com a concepção piagetiana, o jogo se torna um recurso válido para a criança

e para o professor na medida em que a aprendizagem torna-se mais significativa para a

criança e o professor pode perceber como a criança se comporta nas mais diversas

situações, resolvendo conflitos, buscando soluções e articulando idéias e assim

potencializar recursos voltados para a aprendizagem. (KAMII, 1991).

Na brincadeira Mãe-da-rua, apresentada acima, ao construir as regras para a realização

de uma brincadeira e segui-las, a criança estabelece inúmeras relações, não só sociais,

mas também de raciocínio-lógico, pois ao explicitar a regra por ela mesma criada

ampliará sua compreensão e tentará encontrar formas, maneiras diferenciadas para

vencê-la, no sentido de, inclusive, superar suas próprias limitações. Essa concepção é

fortemente defendida em publicações oficiais que norteiam o trabalho pedagógico do

primeiro ano do Ensino Fundamental. A exemplo disso destaco um trecho do

documento Ensino Fundamental de Nove Anos – Orientações Gerais:

As propostas pedagógicas (....) devem promover em suas práticas de educação e

cuidados a integração entre os aspectos físicos, emocionais, afetivos, cognitivo-

lingüísticos e sociais da criança, entendendo que ela é um ser total, completo e

indivisível. Dessa forma, sentir, brincar, expressar-se, relacionar-se, mover-se,

organizar-se, cuidar-se, agir e responsabilizar-se são partes do todo de cada

indivíduo (....).

Levando isso em conta, as brincadeiras propostas na pesquisa podem ser consideradas

estratégias poderosas para o primeiro ano do Ensino Fundamental.

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A exploração dos jogos em grupo – detalhamentos de uma proposta

Como vimos anteriormente, o ponto de partida para a seleção das brincadeiras que

seriam exploradas na pesquisa foi a observação sistemática dos jogos ou brincadeiras

que as crianças organizavam no momento do parque livre. Essa observação preliminar

ocorreu por 10 dias seguidos e, para isso, lancei mão de anotações em diário de campo.

Como resultado dessas observações, percebi que as crianças demonstravam grande

interesse por brincadeiras coletivas, sobretudo aquelas em que representavam papéis.

Além dessas, brincadeiras que envolviam corridas e habilidades corporais,

principalmente de perseguição foram recorrentes.

Passado este primeiro momento de análise das brincadeiras mais freqüentes

selecionamos, levando em conta também a faixa-etária das crianças, as que se

adequavam ao que me propus pesquisar, ou seja, brincadeiras em que fosse possível a

exploração de noções matemáticas e o desenvolvimento do o pensamento lógico-

matemático sendo elas: Coelhinho sai da toca, Mãe-da-rua, Queima e Alerta.

Tendo como base o rigor metodológico inerente a uma pesquisa desse porte elaborei um

“plano de ação” e, a partir disso, defini que as brincadeiras seriam propostas uma vez

por semana, totalizando um mês de exploração. O relato do diário de campo que aborda

a análise da brincadeira Mãe-da-rua, remete a um dos eixos apresentados anteriormente,

no qual o currículo e a organização curricular consideram os conhecimentos trazidos

pelas crianças, dando a elas o papel de co-construtoras de seus próprios conhecimentos.

Num primeiro contato com a brincadeira ficou definido que as crianças

brincariam fazendo uso apenas das regras que já conheciam. Quando realizamos a

sua exploração inicial, observei que somente duas crianças já haviam brincado,

pois freqüentavam clubes nos finais de semana e o primeiro contato com tal

brincadeira havia ocorrido nestes ambientes. Foram elas as responsáveis por

apresentar a brincadeira aos amigos e isso fez com que, desde o início, as regras

fossem discutidas pelo próprio grupo a partir de dúvidas de compreensão que

sugiram. (Diário de campo, 16/08/2005, Mãe-da-rua).

Terminado este primeiro momento, retomei cada uma das brincadeiras, explorando-as

por mais duas vezes, totalizando 4 meses de contato com a construção e a reconstrução

de regras, bem como a exploração de conceitos matemáticos.

A exploração intencional de cada brincadeira, mesmo em sua exploração inicial,

começou sempre com uma conversa informal sobre as regras já conhecidas pelas

crianças. Para que essa conversa tivesse para as crianças um caráter informal,

sentávamos em roda, no chão e, sob a minha orientação, as crianças relatavam as regras

e estipulavam como a brincadeira seria organizada. Essa conversa era registrada por

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mim, em um cartaz coletivo, no qual as regras eram escritas e todos assinavam. Isso foi

feito sempre no ambiente da própria classe, pois o parque apresentava muitos estímulos

e as crianças poderiam se distrair.

Em seguida, nos dirigíamos para o parque e brincávamos todos juntos, inclusive eu, pois

em algumas brincadeiras era importante para as crianças que me vissem como alguém

mais experiente e que também brinca, joga e cria estratégias para vencer.

Ao longo da realização das brincadeiras também foram feitas algumas intervenções,

com o intuito de auxiliar as crianças na resolução de pequenos conflitos ou na superação

de dificuldades enfrentadas. Essas intervenções eram colocadas, de modo geral, sob a

forma de questionamentos, permitindo que as crianças explicitassem seu pensamento e

tomassem decisões sobre estratégias. Nesses casos, os registros nos diários de campo

foram anotados pela memória, após cada episódio.

Passada uma semana, retomávamos as regras utilizadas para a brincadeira e discutíamos

quais eram adequadas e quais precisavam ser modificadas ou incluídas no corpo das

regras válidas. Neste momento, eram expostas as regras escritas anteriormente e o grupo

fazia a leitura e discussão das mesmas; procurava sempre problematizar situações

quando estas não eram lembradas pelas crianças, tendo como base as anotações feitas

em diário de campo. Após a discussão sobre as regras da brincadeira, agora com uma

nova folha em mãos eu reescrevia as regras reelaboradas pelas crianças com base na

vivência que haviam tido. Ao final todos assinavam seus nomes, inclusive eu, num

gesto de aceitação das regras reelaboradas. Só então era solicitado às crianças um

desenho da brincadeira.

Os registros por meio de desenho não foram solicitados ao final de cada brincadeira,

pois poderiam se tornar uma obrigação na visão das crianças e o meu objetivo com estas

representações gráficas era exatamente conseguir uma expressão espontânea da

brincadeira, para que pudesse observar aquilo que havia sido mais significativo para

cada criança e, também, apreender as hipóteses matemáticas que formulavam. Por isso,

o desenho foi utilizado apenas ao final da última exploração da brincadeira, como

registro da produção do conhecimento elaborado pelas crianças.

O desenho, forma de representação do pensamento, é para a criança algo muito

significativo, pois ao desenhar ela (...) encontra um recurso importante para a

comunicação e a expressão de sentimentos, vontades e idéias. O desenho aparece como

uma linguagem, assim como o são o gesto ou a fala, e é a sua primeira escrita. (...)

(SMOLE, 2000, p. 95).

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Ao desenhar a criança refaz mentalmente tudo aquilo que vivenciou na brincadeira. E,

no momento do registro propriamente dito, ela precisa encontrar maneiras de expressar

tudo o que sentiu no papel, levando em conta os mais diversos aspectos envolvidos no

brincar, como a representação do espaço da brincadeira, a quantidade de crianças, o

sexo e a identidade de cada uma, as suas próprias preferências e os sentimentos

revelados durante este brincar, como a raiva, a frustração ou o sucesso.

Ao longo do texto foram apresentadas as sequências de atividades ou vivências que

compuseram os dados da pesquisa. Vale destacar que, em todos os momentos (de

conversas, brincadeiras, desenhos etc.) o tempo foi um aspecto de muita relevância, pois

não foi, de modo algum, determinado pelo tempo cronológico e sim pelo interesse do

grupo e o envolvimento que demonstravam por meio das participações nestas

atividades. É muito importante, quando falamos de crianças com seis anos de idade,

pensarmos na organização do tempo muito mais vinculado ao tempo vivido e às

riquezas das experiências do que no tempo da hora/aula, determinada por alguém ou por

um sistema maior que desconhece as especificidades de cada grupo e de cada atividade.

Deixamos aqui um tema para ser pensado por todos nós: priorizamos, em nossas classes

de primeiro ano, o tempo de envolvimento do grupo? Consideramos o que as crianças

têm a nos dizer sobre o que já conhecem? Como utilizamos o tempo em favor de

atividades comunicativas e que de fato contribuem para que as crianças sejam

construtoras de seus próprios conhecimentos?

Considerações finais

A análise dos dados mostrou que todas as brincadeiras, umas mais, outras menos,

colaboraram, de fato, para a aquisição de noções matemáticas, lembrando que por

noções matemáticas, entendo toda e qualquer atividade mental que possa promover o

desenvolvimento do pensamento lógico-matemático e o estabelecimento de relações,

mesmo que não numéricas. Até mesmo, porque as crianças exploraram noções

matemáticas por meio da linguagem e do movimento. As relações que estabeleceram se

deram mentalmente, pois em nenhum momento utilizaram lápis e papel para fazer

contas. Elas representaram seus pensamentos por meio de desenhos e da reestruturação

das regras.

O diálogo sobre cada uma das brincadeiras propostas sempre foi de grande valor no

trabalho com as crianças, inclusive para o desenvolvimento do raciocínio lógico-

matemático. Segundo Lorenzato (2006),

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É importante que o professor tenha sempre em vista que a atividade em si não

garante a aprendizagem significativa. Por isso é fundamental que, após cada

atividade, o professor facilite a conversa entre as crianças sobre o que fizeram e o

que descobriram (p.90).

Durante a exploração de todas as brincadeiras as crianças vivenciaram situações em que

se fizeram necessárias as habilidades de: medir, contar, comparar, acrescentar, retirar,

localizar-se no espaço, identificar e representar figuras geométricas, fazer uso da

linguagem matemática, criar estratégias, solucionar problemas, argumentar, aceitar

limites, lidar com frustrações, cooperar e respeitar a vontade do grupo. De acordo com a

vertente teórica adotada, sabe-se que todas estas habilidades culminam no

desenvolvimento do raciocínio lógico-matemático.

Com esta pesquisa, foram discutidas as noções matemáticas presentes em jogos e

brincadeiras infantis, no entanto, ao longo da coleta de dados me deparei com uma série

de habilidades não matemáticas, mas de grande importância para a aprendizagem

posterior de noções matemáticas como, por exemplo, habilidades interpessoais, respeito

às decisões tomadas em grupo, cooperação, aceitação de limites e superação de

frustrações, capacidade de aprender com o outro, argumentação, flexibilização de

regras, entre outros.

Como educadora e pesquisadora, fui ao mesmo tempo aprendiz, porque aprendi a olhar

minha própria prática com criticidade, aceitando, assim como as crianças, as minhas

limitações, mas não me curvando diante delas. A cada nova dificuldade surgiam novas

formas de encará-las, buscando na teoria o suporte necessário. Pode-se dizer que ao

desenvolver e escrever este trabalho, também fiz uma espécie de formação continuada,

pois estudei, levantei hipóteses, questionei minha atuação e, a meu ver, o mais

importante disso tudo, busquei novos rumos quando necessário.

A dissertação elaborada e apresentada (CARDOSO, 2008), produto final desse processo

de formação, trouxe à luz o meu lado pesquisadora e contribuiu fortemente para a

consolidação de minha ação docente. A construção dessa nova professora, agora

também pesquisadora, não se deu sem conflitos e questionamentos. Vários foram os

momentos em que o “peso” de me manter, de certa forma, distante de alguns laços

afetivos que estavam envolvidos tanto nas relações estabelecidas com as crianças,

quanto nos vínculos que me uniam à escola, me fizeram parar e questionar até que ponto

tudo aquilo era válido. No entanto, momentos assim me fizeram ver que esse é um dos

grandes desafios do fazer docente, que mesmo sem os rigores metodológicos da

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pesquisa acadêmica, precisa estar pautado em referências teóricas e precisa ser

constantemente reconstruído.

Bogdan e Biklen (1994) discutem as especificidades do trabalho do professor e do

pesquisador. Procurei sintetizar tais idéias elaborando um quadro (Apêndice 1).

Habilidades necessárias para o professor e para o pesquisador) que enfatiza as

diferenças entre o professor e o pesquisador. Este recurso foi importante para que eu

mesma, enquanto professora-pesquisadora compreendesse até que ponto era uma ou era

a outra.

Ao finalizar a pesquisa, ficou clara a necessidade, enquanto professora, de uma prática

um tanto mais intencional do que aquela que desenvolvi, pois muitas noções

matemáticas só foram percebidas por mim depois que sistematicamente analisei os

dados, verificando, então, que as brincadeiras poderiam ter sido mais exploradas. Isso

leva à necessidade de o professor se debruçar sobre a brincadeira de forma intencional e

repetir essa análise ao longo do tempo. Essa é, sem dúvida, uma característica da

docência: aprender com a prática em função da reflexão crítica sobre ela.

Como destacamos desde o início do texto, entre as preocupações iniciais desta pesquisa,

estava a possibilidade de promover a interface entre ensinar e aprender matemática

construindo conceitos básicos por meio do brincar. E nesse processo, podemos dizer

que as crianças adquiriram conceitos matemáticos por meio da linguagem e do

movimento, e eu, aprendi a melhor ensinar essas noções, a construir e reconstruir minha

ação nos dois sentidos: de professora e de pesquisadora.

Referências:

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO

FUNDAMENTAL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (v.3).

Brasília: MEC/SEF, 1998.

BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO BÁSICA

Ensino fundamental de nove anos – orientações gerais. Brasíli: MEC/SEB, 2004.

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2005, n.93, Seção 1, p.1.

BRASIL. Lei n. 11.274, de fevereiro de 2006. Altera a redação dos artigos 29, 30, 32 e

87 da Lei n. 9394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União. Brasília, 7 de

fevereiro de 2006, n.27, Seção 1, p.1.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.001077

12

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Associados, 2006.

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1980.

SMOLE, K. A matemática na educação infantil. A teoria das inteligências múltiplas

na prática escolar. Porto Alegre: Artmed, 2000.

Apêndice 1

QUADRO 1. Habilidades necessárias para o professor e para o pesquisador.

Funções / habilidades necessárias

para o pesquisador:

Funções / habilidades necessárias para

o professor:

- conduzir a investigação; - elaborar currículos, dar aulas e

disciplinar os alunos;

- rigor no que diz respeito ao registro

detalhado daquilo que descobre;

- registros menos detalhados e mais

informais, sem caráter acadêmico;

- não há interesse pessoal nas

observações que faz, o seu interesse está

na pesquisa;

- a vida, a carreira e o autoconceito do

professor estão ligados ao modo como

ele desempenha o seu trabalho;

- domina técnicas para o uso de

diferentes procedimentos com o

objetivo de recolher e analisar dados.

- domina técnicas com o objetivo de

ensinar os alunos;

- baseia-se em teoria e estudos

realizados anteriormente como pano de

fundo para a análise dos dados,

comunicando os seus resultados.

- questiona a sua prática, busca auxílio

na teoria, mas não o faz de maneira

sistemática.

XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012

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