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27 QUÍMICA NOVA NA ESCOLA O Professor e o Conceito Átomo N° 3, MAIO 1996 riências de vida diversas decorrentes de suas interações sociais e com o mundo. Essa diversidade torna inevi- tável a existência de visões diversas sobre os fenômenos que os circun- dam, uma vez que o objeto de conhe- cimento não está solto no tempo e não é independente da história. Disso resulta a necessidade de uma intensa negociação de signifi- cados em sala de aula. Por entendermos que a situação de en- sino guarda essa dinâ- mica, nossas análises e discussões funda- mentaram-se nas pro- posições sócio-intera- cionistas de Vygotsky (1984, 1989). Essa perspectiva teórica é especialmente promissora no que respeita ao papel da instrução, enquanto constitutiva do desenvolvimento do aluno, à qualida- de da mediação do professor e à com- plexidade dos processos de concei- tualização do aluno. O desenvolvimento do conceito átomo em sala de aula demanda um processo de ensino e aprendizagem que envolve noções abstratas — a concepção de modelos, palavras e símbolos. O processo de apropriação do conceito pode adquirir caracterís- ticas muito complexas em vista do re- E ste trabalho apresenta resultados de pesquisa realizada durante o curso de doutoramento na Universidade Esta- dual de Campinas (Romanelli, 1992). Foi desenvolvido a partir de um inter- esse nas relações que se estabelecem entre aluno, professor e objeto de conhecimento no processo de ensino- aprendizagem de química. A ênfase é no nível do ensino médio, quando são abordados conceitos que envolvem noções abstratas e que requerem a concepção de modelo. Tendo em vista esse interesse, foi selecionado para estudo o conceito átomo, tendo como objetivo investigar a forma como o professor concebe seu papel de mediação no processo de apropriação desse conceito pelo aluno. A escola é o lugar eleito socialmen- te para a construção de tipos especí- ficos de conhecimento, e é aí que a ação docente se configura como uma atividade humana transformadora. Que elementos metodológicos afetam o trabalho dos envolvidos nesta ativi- dade? Nossa proposta de análise buscou inter-relacionar a situação do ensino, do problema da aprendizagem e dos aspectos afetos ao professor. Profes- sor e aluno refletem seu contexto his- tórico e geográfico, trazendo expe- A seção “Pesquisa no ensino de química” relata investigações relacionadas a problemas no ensino de química, explicitando os fundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados na pesquisa e analisando seus resultados. Este artigo relata uma investigação sobre o papel mediador do professor no processo de ensino-aprendizagem do conceito átomo. átomo, conceito de modelo, mediação do professor O PAPEL MEDIADOR DO PROFESSOR NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO CONCEITO Lilavate Izapovitz Romanelli ATOMO A escola é o lugar eleito socialmente para a construção de tipos específicos de conhecimento, e é aí que a ação docente se configura como uma atividade humana transformadora conhecimento de que esse conceito é um modelo científico e, como tal, transitório, uma hipótese que contribui para a interpretação da constituição e das propriedades das substâncias. Como as relações que se estabelecem entre o aluno e o objeto de conheci- mento são fundamentalmente defla- gradas pelo professor, preocupou-nos sobremaneira investigar as questões: Em que medida o professor tem claro que um dos aspectos essenciais da sua mediação implica a aborda- gem do átomo como modelo? Como o professor se manifesta quanto ao fato de todos os modelos e teorias serem tentativas de dar sentido ao mundo? Como o aluno está construindo seu conhecimento sobre o átomo ten- do em vista a mediação do professor? A aprendizagem do conceito átomo, por escapar à esfera das percepções, passa a demandar da palavra um papel diferenciado. Na experiência intuitiva, no cotidiano, a palavra aparece mediando a relação das pessoas com a experiência em- pírico-concreta. Não é mais assim a construção de conceitos científicos (Vygotsky, 1989, p. 71-101), em espe- cial conceitos que envolvem modelos, pois em relação a esses o trabalho em nível de proposições de linguagem substitui a experimentação sensorial. Será que o ensino leva em conta essa complexa dimensão das funções da linguagem na construção do conheci- mento? O processo de formação de con- ceitos no adolescente é caracterizado por um movimento contínuo de idas e vindas de um estágio primitivo de PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA

Ensino-aprendizagem de química

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artigo que descreve a metodologia de aprendizagem do conceito de átomo.

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QUÍMICA NOVA NA ESCOLA O Professor e o Conceito Átomo N° 3, MAIO 1996

riências de vida diversas decorrentesde suas interações sociais e com omundo. Essa diversidade torna inevi-tável a existência de visões diversassobre os fenômenos que os circun-dam, uma vez que o objeto de conhe-cimento não está solto no tempo e nãoé independente da história. Dissoresulta a necessidade de uma intensanegociação de signifi-cados em sala de aula.

Por entendermosque a situação de en-sino guarda essa dinâ-mica, nossas análisese discussões funda-mentaram-se nas pro-posições sócio-intera-cionistas de Vygotsky(1984, 1989). Essaperspectiva teórica é especialmentepromissora no que respeita ao papelda instrução, enquanto constitutiva dodesenvolvimento do aluno, à qualida-de da mediação do professor e à com-plexidade dos processos de concei-tualização do aluno.

O desenvolvimento do conceitoátomo em sala de aula demanda umprocesso de ensino e aprendizagemque envolve noções abstratas — aconcepção de modelos, palavras esímbolos. O processo de apropriaçãodo conceito pode adquirir caracterís-ticas muito complexas em vista do re-

E ste trabalho apresentaresultados de pesquisarealizada durante o curso de

doutoramento na Universidade Esta-dual de Campinas (Romanelli, 1992).Foi desenvolvido a partir de um inter-esse nas relações que se estabelecementre aluno, professor e objeto deconhecimento no processo de ensino-aprendizagem de química. A ênfase éno nível do ensino médio, quando sãoabordados conceitos que envolvemnoções abstratas e que requerem aconcepção de modelo.

Tendo em vista esse interesse, foiselecionado para estudo o conceitoátomo, tendo como objetivo investigara forma como o professor concebeseu papel de mediação no processode apropriação desse conceito peloaluno.

A escola é o lugar eleito socialmen-te para a construção de tipos especí-ficos de conhecimento, e é aí que aação docente se configura como umaatividade humana transformadora.Que elementos metodológicos afetamo trabalho dos envolvidos nesta ativi-dade?

Nossa proposta de análise buscouinter-relacionar a situação do ensino,do problema da aprendizagem e dosaspectos afetos ao professor. Profes-sor e aluno refletem seu contexto his-tórico e geográfico, trazendo expe-

A seção “Pesquisa no ensino de química” relata investigaçõesrelacionadas a problemas no ensino de química, explicitando osfundamentos teóricos e procedimentos metodológicos adotados napesquisa e analisando seus resultados. Este artigo relata umainvestigação sobre o papel mediador do professor no processo deensino-aprendizagem do conceito átomo.

átomo, conceito de modelo, mediação do professor

O PAPEL MEDIADOR DO

PROFESSORNO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DO CONCEITO

Lilavate Izapovitz Romanelli

ATOMO

A escola é o lugareleito socialmente paraa construção de tipos

específicos deconhecimento, e é aí

que a ação docente seconfigura como uma

atividade humanatransformadora

conhecimento de que esse conceitoé um modelo científico e, como tal,transitório, uma hipótese que contribuipara a interpretação da constituição edas propriedades das substâncias.Como as relações que se estabelecementre o aluno e o objeto de conheci-mento são fundamentalmente defla-gradas pelo professor, preocupou-nossobremaneira investigar as questões:

• Em que medida o professor temclaro que um dos aspectos essenciaisda sua mediação implica a aborda-gem do átomo como modelo?

• Como o professor se manifestaquanto ao fato de todos os modelos eteorias serem tentativas de dar sentidoao mundo?

• Como o aluno está construindoseu conhecimento sobre o átomo ten-do em vista a mediação do professor?

A aprendizagemdo conceito átomo, porescapar à esfera daspercepções, passa ademandar da palavraum papel diferenciado.Na experiência intuitiva,no cotidiano, a palavraaparece mediando arelação das pessoascom a experiência em-

pírico-concreta. Não é mais assim aconstrução de conceitos científicos(Vygotsky, 1989, p. 71-101), em espe-cial conceitos que envolvem modelos,pois em relação a esses o trabalho emnível de proposições de linguagemsubstitui a experimentação sensorial.Será que o ensino leva em conta essacomplexa dimensão das funções dalinguagem na construção do conheci-mento?

O processo de formação de con-ceitos no adolescente é caracterizadopor um movimento contínuo de idas evindas de um estágio primitivo de

PESQUISA NO ENSINO DE QUÍMICA

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pensamento (acesso ao objeto deconhecimento pelas sensações eexperimentação) para um mais ama-durecido (acesso ao objeto de conhe-cimento por formulação de hipótesesou especulações que podem indepen-der da experimentação). A aprendiza-gem dos conceitos científicos envolveos alunos na construção de modelosmentais para entidades que não sãopercebidas diretamente. Um dosaspectos das idéias dos alunos quetem grandes implicações na aprendi-zagem de conceitos científicos é a deque o ato de perceber domina o atode pensar (Driver,Guesne e Tiberghien,1985).

Os dados para es-ta pesquisa foramconstruídos a partir de(a) transcrição de aulassobre o átomo de trêsprofessores de escolaspúblicas; (b) questio-nário e entrevistas apli-cados aos alunos após o ensino sobreo átomo, com o propósito de avaliarseu conhecimento a respeito desseconceito, e (c) transcrição dos encon-tros que mantivemos com cada pro-fessor. Frente a esse conjunto dedados, efetuamos análise proposicio-nal1 tanto das aulas quanto dasrespostas dos alunos e análise doconteúdo das falas do professor nosencontros. Procuramos, então, diag-nosticar a percepção dos professoressobre seu papel no processo, atravésda investigação de suas concepçõesde ensino, de aprendizagem frente aosdados obtidos e do conceito átomo,principalmente quanto ao seu caráterde modelo.

A coleta de dados para cada clas-se das três escolas ocorreu em quatromomentos: observação das aulas,aplicação de questionário a todos osalunos da classe observada, realiza-ção de entrevistas com parte dosalunos da classe e realização deencontros com o professor.

A análise desses conjuntos dedados organizou-se em torno de di-mensões conceituais do objeto deconhecimento focalizado. As princi-pais foram: a constituição do átomo,sua representação gráfica e o conceito

de modelo. Por exemplo, frases quecontinham informações como “pró-tons fazem parte do núcleo” configu-raram proposições da dimensão cons-tituição do átomo. A proposição “o nú-cleo ocupa a região central” ou “paraDalton, o átomo era uma bolinha” fo-ram consideradas na dimensão repre-sentação gráfica e como conceito demodelo consideramos, por exemplo,“os modelos de Dalton e Thomsonainda podem responder a algumasquestões”.

Para obtermos os dados de apren-dizagem dos alunos, organizamos o

questionário com ques-tões mais diretas comrelação às dimensõesconceituais de interes-se para o estudo. As-sim, dentre as ques-tões propostas soli-citamos um desenhode como o aluno ou aaluna imaginava o áto-mo. O desenho elabo-

rado acabou sendo o foco central dasquestões que ocorreram nas entrevis-tas que fizemos com parte dos alunosem cada classe.

Os encontros com cada professorconstituíram a última etapa do traba-lho, por meio da qual buscamos reunirdados e argumentos para caracterizara análise que ele ou ela fazia sobreseu ensino e a aprendizagem dosalunos. Estudando essa análise apre-sentada pelos professores, foi possívelinvestigar como concebiam o objetode conhecimento, o papel do aluno noprocesso de conhecimento e seupróprio papel.

Antecedendo o primeiro encontro,entregamos a cada professor todas astranscrições de suas aulas sobre o áto-mo e, com base nesse conteúdo, bus-camos diagnosticar as idéias doprofessor sobre o ensino, o conceitode átomo e de modelo, procurandocaptar suas estratégias de mediaçãopara o encontro aluno—objeto deconhecimento.

O segundo encontro foi planejadode forma a apresentar ao professor osresultados do questionário respondidopelos alunos. Visávamos investigar aavaliação do professor sobre as respos-tas dos alunos e sua interpretação.

Um professor, um livro-texto... e os alunos?

A abordagem dada ao ensino peloprimeiro professor (P1) refletia inteira-mente a do livro adotado. Uma apre-sentação histórica de todos os mode-los foi feita na primeira aula e os dese-nhos correspondentes do livro forampassados na lousa. As demais aulas(perto de 80% do total) foram dedica-das a mais algumas informações so-bre o modelo atômico atual e às regrasde preenchimento de elétrons em ní-veis e subníveis do átomo e a exercí-cios sobre isso. O trecho abaixo podeilustrar a natureza da abordagem doprofessor P1:

...mesmo quem não estudouquímica já ouviu falar (...), já teveuma idéia do que seja o átomo.Agora vocês imaginem antiga-mente: os cientistas nunca ti-nham ouvido falar em átomo!

Sua idéia de modelo ficava confu-sa, tendo em vista a maneira com queinteragia com as informações dispo-níveis:

Rutherford (...), ele não sabiaquantas camadas tinha a eletros-fera. (...) Aí, mais tarde veio Bohre (...) pegou a estrutura atômicade Rutherford e aperfeiçoou edescobriu então quantas eram ascamadas.

Quanto aos dados de aprendi-zagem, os alunos de P1 evidenciaramuma regularidade de respostas quantoà dimensão de constituição do átomoe se dispersaram em relação àsoutras. Em seus desenhos e, princi-palmente, em suas falas, pode-seconstatar por vezes uma confusãoentre átomo e núcleo do átomo, comoneste exemplo: “o átomo é a menorpartícula do núcleo”. Para outro aluno,“os elétrons estão entre as camadas”(Fig. 1); para outro, ainda, “há umlimite entre o núcleo e a eletrosfera”(Fig. 2). Muitos estudantes represen-taram, nos desenhos, uma linha quecircunscrevia as partículas do núcleo.Para um desses, aquela linha repre-sentava “um material constituído poruma substância meio gelatinosa”. Adispersão nos dados refletiu, a nosso

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A aprendizagem dosconceitos científicosenvolve os alunos na

construção de modelosmentais para entidades

que não sãopercebidasdiretamente

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ver, o fato de as sistematizaçõesconceituais oferecidas pelo professorem sala de aula terem sido insatis-fatórias, carentes de consolidação.

Um professor, os textos... e otempo?

O ensino de átomo pelo segundoprofessor (P2) baseou-se em especialnuma abordagem histórica do desen-volvimento do conceito, ao longo devárias aulas. P2 descreveu muitosaspectos sobre o átomo além daque-les relacionados às dimensões queperseguíamos. Incorporou textos ex-tras, reportagens e muitas descriçõessobre como ocorreram as pesquisascientíficas que levaram ao desenvolvi-mento dos modelos atômicos. Recor-rendo a analogias para dar idéia dasdimensões atômicas, posicionou-secriticamente em relação aos fatos quenos costumam ser transmitidos:

As noções (em ciências) sofremmodificações (...) A tentativa dedar informações sobre o átomocontraria nosso raciocínio ha-bitual.

P2 ouvia os alunos, mas princi-palmente para fazer de sua fala, longae descritiva, o ponto de partida de umnovo tema ou para lhes captar umpensamento:

Se você estivesse no lugar deThomson, que tipo de reformu-lação você faria desse modelo?

Quanto aos dados de aprendiza-gem, destacamos que para a repre-sentação do átomo ocorreu uma fran-ca reprodução do desenho que o pro-fessor fizera na lousa (Fig. 3) todas asvezes que se fazia referência aomodelo atualmente aceito. Entretanto,essa figura não teve o mesmo signifi-cado para todos os alunos. Algunsdisseram que “os prótons, os elétrons

que abordava todas as dimensõesfocalizadas na pesquisa.

Com relação aos dados dos alu-nos, podemos nos deter no fato deque as representações gráficas seresumiram a apenas três tipos, por-tanto dispersando menos que nosoutros casos. Há algumas afirmativaspeculiares, como “o átomo só existese existirem essas três partículas(próton, elétron e nêutron)” (Fig. 4) e“não há partículas como os nêutronsentre os elétrons, por isso eles nãoficam juntos” (Fig. 5). Para conceituarmodelos os alunos deram respostasmuito longas, tendendo a enunciar osmodelos propostos em ordem crono-lógica. Apesar da coerência da maioriadas respostas com as idéias expostassobre modelos, um aluno afirmou: “oátomo foi visto no microscópio”.

Considerações em relação àaprendizagem

Dentre as dimensões considera-das, a constituição do átomo evidente-mente envolve um grupo de atributosbem mais estabelecidos tradicional-mente no ensino do que as outras.

Provavelmente, a natu-reza classificatória demuitos dos atributosatrai o professor (e,também, o aluno) nadeterminação, muitasvezes automática, doconteúdo a ser ensi-nado e estudado.

Quanto à dimen-são conceito de mode-lo, vemos que a abor-dagem de todos osprofessores, embora

por meio de ênfases diferenciadas,apresentou a idéia de modelo com umcaráter dedutivo. Segundo eles, oscientistas fizeram experiências, e a

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Figura 3Figura 2Figura 1

e os nêutrons estão em torno doátomo”. Os alunos de P2 demonstra-ram mais familiaridade com muitasidéias em relação à experimentaçãoem ciências e às teorias e modelos ge-rados na evolução da concepção deátomo. Isto parece refletir a convi-vência com as exposições do profes-sor. Contudo, ainda assim encontra-mos idéias como “a figura (que estáno livro) é a foto do átomo” e “modeloé o desenho das partes da matéria”.

Um professor, um projetoalternativo... e asistematização?

O ensino do terceiro professor (P3)acompanhado se configurou de modobastante diferenciadodos anteriores, tendoem vista a adoção deuma proposta de ensi-no que implicava a par-ticipação ativa dos alu-nos quanto aos textose instruções de ativida-des e experimentações,quase sempre em gru-po. A proposta visavafavorecer ao aluno con-dições de elaboração ediscussão de suasidéias. O papel do pro-fessor, neste caso, era o de administraras atividades dos alunos, acom-panhando-os constantemente, discu-tindo com os grupos. Nos momentosem que um novo conceito deveriaser consolidado, cabia ao profes-sor reunir as idéias dos alunos,ouvi-las, socializá-las e sistemati-zá-las de forma a conduzir aaprendizagem para os conceitoscientificamente aceitos. A intera-ção de P3 com os alunos foi muitoboa e, de fato, abriu espaço paraa especulação dos alunos, se-guindo a orientação da proposta

Na tentativa de abordaro átomo através damatéria, os alunosestabeleceram um

divórcio entre o nívelmacroscópico e o

explicativo,inconsistência

compatível com omodo como o ensino

foi organizado edesenvolvido

Figura 4 Figura 5

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dimensões da representação gráfica edo modelo do átomo se superpuseramem suas manifestações.

Podemos dizer, em vista da análisedos dados, que o resultado da apren-dizagem desse processo de ‘modelar’e representar o átomo pode ser confi-gurado em três níveis graduais deapreensão. Em um nível de elaboraçãoprimitiva, alguns alunos afirmaram que

“o átomo era a figura dolivro/o desenho do pro-fessor”. Em um nívelsubseqüente, encon-tramos a maioria dosalunos relacionando afigura a uma forma derepresentar o átomo.Finalmente, em nível demaior elaboração men-tal, apareceu a catego-ria: “a figura é uma

forma de representar a idéia”. Somenteeste tipo de resposta traduz desenvol-vimento avançado na mente do alunodo conceito de modelo.

Considerações sobre osprofessores

De maneira bem resumida, pode-mos destacar as seguintes conside-rações sobre estas investigações: osprofessores ficaram perturbados aover sua própria fala como “objeto deanálise”. Embora apresentassem, deimediato, uma rejeição ao registrodessa fala, foram encorajados a umacondição de reflexão.Acreditamos que, co-mo afirmam Góes eTunes (1990), “a açãode analisar, emboranão seja condição sufi-ciente, mostra-se ne-cessária a um redire-cionamento deliberadodas práticas em sala deaula” (p. 25). Todos os professoresadmitiram a existência de problemasno processo de ensino, mas divergi-ram quanto aos fatores a que atri-buíram responsabilidades. Ao consi-derarmos o conteúdo do discurso dosprofessores, constatamos que situa-ram no âmbito externo à sua respon-sabilidade as soluções ou modifi-cações necessárias para a melhoriada aprendizagem; não estabeleceramrelações entre seu ensino — a ação

pedagógica — e as dificuldadesapresentadas pelos alunos. As possi-bilidades de melhoria nos resultadosda aprendizagem não se estabele-ceram, fundamentalmente, em funçãodas transformações do ensino. Para oprimeiro professor, por exemplo, aaprendizagem não foi a desejávelporque “a escola não tem labora-tórios” e “os alunos não têm base”.Para o segundo professor, falta-lhetempo para ser possível “incorporarmais textos”, mais conteúdo. Em umdesabafo, o segundo professor disse“(...) é mais cômodo ter algumascoisas mais ou menos estruturadas,mesmo que eu saiba que até incorre-tas ou (...) pouco eficaz mesmo no quediz respeito ao processo ensino-aprendizagem, mas eu acho que agente se acomoda um pouco e vairepetindo”. Assim sendo, parece-nosexistir uma concepção de educaçãoque divorcia aprendizagem e ensino.

Isolados em sua prática cotidiana,a maioria dos professores não temcomo considerar que por seu trabalhoperpassa necessariamente um pro-cesso de transformação do conheci-mento, tanto no momento em que elepróprio tem acesso a esse conheci-mento e dele se apropria quanto nomomento em que o apresenta para oaluno. A riqueza das relações emer-gentes do encontro entre professor,aluno e objeto de conhecimento de-pende do modo como o professor vai

atribuir significado àação do aluno e à suaprópria. O processo deaprendizagem do alu-no “resulta de umaapropriação das for-mas de ação, que édependente tanto deestratégias e conheci-mentos dominados

pelo sujeito quanto de ocorrências nocontexto interativo” (Góes, 1991).

Quanto às características dasinterações dos professores com oobjeto de conhecimento, pudemosconstatar que: o primeiro professor,considerando o conhecimento cientí-fico do átomo bem estabelecido eorganizado, apresentou-o aos alunoscomo se ele fosse um corpo inviolável,sem que sua atitude no ensino puses-se em apreciação qualquer aspecto

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partir dos resultados destas ocorria amudança nos modelos. Outro aspec-to muito associado ao conceito demodelo foi sua atribuição aos cientis-tas. Acreditamos que a idéia dessaatribuição restrita inibiu a possibilidadeda manifestação do professor no sen-tido de elaborar seu próprio modelo,bem como de estimular modelos ela-borados pelos alunos.

Ao investigarmos asidéias sobre matéria esua relação com áto-mos, percebemos queos alunos incorporarama forma dos átomoscomo unidades isola-das que se somam demaneira vaga paraconstituir a matéria. Natentativa de abordar oátomo através da maté-ria, estabeleceram um divórcio entre onível macroscópico, sensorial, e o ex-plicativo, o ideacional, inconsistênciacompatível com o modo como o ensinofoi organizado e desenvolvido.

Muitos alunos chegaram ao ensinomédio já concebendo átomos e molé-culas mas, entre eles, imaginam um‘meio’ contínuo variável, podendo serar, conforme as circunstâncias. Estacategoria de concepção é bem estávelna mente dos alunos. Sua existênciapode ser explicada pelo conflito quevivem entre o raciocínio científico e ocotidiano (Anderson, 1990). Na maneiracientífica de conceber a matéria, aspartículas dinâmicas, entre as quais háo vazio, são consideradas um modelorelativo ao mundo observável. Istosignifica, portanto, que o pensamentocientífico sobre a matéria se dá em doisníveis diferentes, porém relacionados.O processo de construção desseconhecimento tem se estabelecido pro-vavelmente como uma oscilação entrea experimentação e a elaboraçãoabstrata da mente humana.

Quando nossa atenção é dirigidapara a forma como os alunos lidaramcom a representação gráfica, umaspecto significativo emerge: os átomosraramente foram considerados pelosalunos no sentido hipotético, mas foramaprendidos como fatos, da mesmaforma que apreenderam sobre fatos domundo observável. Isto porque as

A riqueza das relaçõesemergentes doencontro entre

professor, aluno eobjeto de

conhecimento dependedo modo como o

professor vai atribuirsignificado à ação doaluno e à sua própria

Em geral, osprofessores não sepreocupam com amaneira como os

alunos aprendem nemcom o porquê desse

aprendizado

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do mesmo. Assumiu o conceito átomocom tendo natureza estática e atribuiu-se a responsabilidade de torná-lodisponível ao aluno tal qual o tomou.Ao redispô-lo acriticamente, esperavareconhecê-lo retomado, da mesmaforma, pelo aluno: “Eu imaginava queeles fossem fazer direitinho: a eletros-fera, o núcleo (...). Eu nunca imagineique viesse, por exemplo, uma boli-nha... Não sei como o átomo dele éassim.” Na mediação do segundo pro-fessor também foi observado umensino concebido por transmissão.Entretanto, encontramos um professorparcialmente ativo quanto à maneirapela qual se colocou frente ao objetode conhecimento. O conteúdo nãochegou para o aluno como a mesma‘matéria prima’ apresentada nos livrosou textos. O professor interagiu, nomomento do ensino, com o objeto deconhecimento, criticando sua aborda-gem no livro-texto e relacionando-o adiversas informações contextuais —interpretando-o, enfim. De certa forma,esta postura do professor evidencioupara o aluno o processo de interaçãosujeito—objeto de conhecimento. Oprofessor envolveu-se com o conteú-do e evidenciou a existência de muitasrelações do conceito átomo com oprocesso de sua construção e com ocotidiano das pessoas. O terceiro pro-fessor omitiu-se quanto à manifesta-ção de sua maneira de ver o objetode conhecimento e confiou demais napossibilidade da aprendizagem dosalunos pela interação exclusiva com omaterial escrito. Disto decorreu umadificuldade de aproximação das idéiasconstruídas pelos alunos sobre oconceito átomo com o conceito maisatual estabelecido cientificamente. Oterceiro professor, por exemplo,reconheceu sua própria dificuldadeem tecer as ligações entre as idéiasdos alunos e as aceitas cientifica-mente: “Esse negócio de fechar me-lhor certas coisas... Então, você temque ter jogo de cintura para enfiaraquela linha, sabe.”

Considerações finaisNossos resultados apontam para

a efêmera ou inexistente relação queos professores fizeram entre osconceitos de teoria, modelo e repre-sentação gráfica deste. Assim como

são frágeis suas reflexões sobre oensino desses aspectos, também nãoexplicitaram elementos que anuncias-sem uma concepção sistematizada doprocesso de aprendizagem. Não háevidências de preocupações sobrecomo os alunos aprendem, ou espe-culações sobre o porquê do que foiaprendido. Não houve ocorrência, anão ser nas aulas do terceiro profes-sor, de situações em que se buscas-sem argumentos sobre as concep-ções dos alunos, como se estasfossem completamente irrelevantes.Quando o professor admite taisespaços em seu trabalho, está dandoum primeiro passo para a compreen-são de que os processos de aprendi-zagem não são etapas desarticuladasna vida escolar do aluno, mas quepodem ser explicadas à luz de teoriaspsicológicas. A partir de então, torna-se possível organizar ou estruturar oensino de forma nem dogmática nemarbitrária. Assim, tanto se respeita acondição do aluno quanto a sistema-tização do conteúdo.

Acreditamos ser possível alterar,mesmo que lentamente, o perfil denossos professores, representadospor esses três casos. Precisamoselevar, simultaneamente, o nível dereflexão e a capacidade de atuaçãodos professores que já se encontramnas escolas e dos que se aplicam acursos de licenciatura. Para isso, énecessário promover interações entrepesquisadores e professores com vis-

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tas ao estabelecimento de condiçõesem que o processo de trabalhopedagógico possa ser disposto paraanálise do professor. É função dopesquisador atuar na sistematizaçãoe redisposição desses dados para oprofessor, encorajando-o ao desenvol-vimento de critérios de análise e cate-gorização dos resultados de seu traba-lho docente.

É urgente promovermos mudançasno ensino das ciências em geral e daquímica, mas os atuais resultadossugerem que as possibilidades deinovações pedagógicas estão condi-cionadas tanto à explicitação pelo pro-fessor de suas concepções sobre seupapel mediador no processo deconstrução do conhecimento quantoà compreensão pelo professor dadinâmica de interação do sujeito-alunocom conceitos que demandam altograu de abstração.

Lilavate Izapovitz Romanelli é bacharel,licenciada e mestre em química pela UFMG, espe-cialista em ensino de ciências pela Universidade deLondres e doutora em educação pela Unicamp;docente no ensino médio do Colégio Técnico, nalicenciatura em química, na especialização em ensinode ciências no CECIMIG e no mestrado da Faculdadede Educação da UFMG.

Nota

1. A análise proposicional consiste emextrair orações que expressam definiçõesconceituais ou atributos conceituais. Porexemplo: átomo é uma partícula, átomotem elétrons.

Estadual de Campinas, 1992.VYGOTSKY, L.S. Pensamento e

linguagem. São Paulo: Livraria MartinsFontes, 1989.

VYGOTSKY, L.S. Formação social damente. São Paulo: Livraria MartinsFontes, 1984.

Para saber maisJUSTI, R. S. Sobre espaços vazios

e partículas - Movimento de idéias sobrea descontinuidade da matéria em umprocesso contínuo de ensino-aprendi-zagem de química no II Grau. Disserta-ção de mestrado. Faculdade de Educa-ção da Universidade Estadual deCampinas, 1991.

MORTIMER, E.F. Evolução do ato-mismo em sala de aula; mudança deperfis conceituais. Tese de doutorado.Faculdade de Educação da Universida-de de São Paulo, 1994.

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ROMANELLI, L.I. Concepções doprofessor sobre seu papel mediador naconstrução do conhecimento do con-ceito átomo. Tese de doutorado. Facul-dade de Educação da Universidade