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Entendendo a reforma psiquiátrica no Brasil História, políticas públicas e reflexão

Entendendo a reforma psiquiátrica no Brasil · sociologia de tradição marxista italiana, do existencialismo e da teoria crítica (escola de Frankfurt)

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Entendendo a reforma

psiquiátrica no Brasil

História, políticas públicas e reflexão

Saúde Mental

“Saúde Mental é o conjunto de ações de promoção, prevenção e tratamento referentes ao melhoramento ou à manutenção ou à restauração da Saúde Mental de uma população” (Saraceno, 1999). Tem correlação com dimensões legislativas, sociais, econômicas, culturais e políticas.

Abordagem holística e pluridisciplinar, abordagem complexa e orientada à comunidade e não exclui a abordagem biológica.

Psiquiatria (modelo biomédico) X Saúde Mental (holismo biopsicossocial)

Paradigma médico

Influenciado pela abordagem biológica

1. linear (dano definido provoca uma condição de doença e os tratamentos são reparações

desse dano).

2. individualista (saúde e doença são determinados pelos recursos/carências do

indivíduo e os tratamentos são intervenções exclusivamente dirigidas a ele)

3. a-histórico (ignora as interações indivíduo-ambiente)

Paradigma da Saúde Pública

Saúde mental comunitária:

1. sistêmico (saúde e doença como processo interativo e complexo).

2. comunitário (intervenções com grupos sociais)

3. histórico:

• ações individuais: curar, promover melhorar, evitar recaída

• ações dirigidas a grupos e comunidades:

prevenção da doença e promoção da saúde – identificação de grupos vulneráveis e construção,

junto a eles, de “oportunidades preventivas”.

Do modelo biomédico para o

biopsicossocial

Implica em mudanças importantes:

1. na formulação das políticas de saúde mental

2. na formulação e financiamento de programas

3. na prática cotidiana dos serviços

4. no status social dos médicos

5. descentralização dos recursos dos serviços para a comunidade (local privilegiado da intervenção)

6. não há separação lugar da doença / lugar da saúde; profissionais / pacientes; pacientes / comunidade.

– relação entre cidadania e saúde.

Teorias e Práticas Psiquiátricas influenciadas

por fatores econômicos, políticos e

ideológicos

Sociedades pré-capitalistas (Antigüidade & Idade Média): tolerância do louco baixa expectativa de vida; pequeno número de doentes; conceito de doença mental restrito; aptidão / inaptidão para o trabalho não era critério na definição do normal / anormal.

Europa, final do séc. XV: se inicia uma nova forma de organização do trabalho; repressão à mendicância, vagabundagem e ociosidade ápice no séc XVII: criação de instituições (casas de correção, de trabalho e hospitais gerais).

Emergência do louco como problema social: prática de confinamento

Final séc. XVIII / Inicio séc. XIX: surgimento da psiquiatria I Reforma ou Revolução Psiquiátrica: loucura passa a ser considerada doença, passível de tratamento médico sistemático; criação de hospitais psiquiátricos (Pinel na França; Tuke na Inglaterra)

Tratamento Moral: medicina educativa e pedagógica; disciplina.

Inicio do séc. XX: II Revolução Psiquiátrica (Kraepelin; Jaspers, Bleuler, Schneider – Alemanha): nova proposta nosográfica.

Antipsiquiatria (Laing, Cooper, Esterson – Inglaterra): loucura como fenômeno social

II Guerra Mundial: movimento de crítica ao hospital psiquiátrico busca de alternativas, experiências de

transformação da assistência psiquiátrica

Brasil 1852: inaugurado o primeiro hospício (Hospício Pedro II –

RJ), hospícios isolados em locais afastados; função saneadora

Intensificação dos processos de exclusão e proposta de recuperação do “material excluído” (doentes mentais e marginalizados sociais)

Surgimento das colônias agrícolas O médico psiquiatra Juliano Moreira (1873-1932) era seu grande defensor. objetivo de tratar, recuperar pelo trabalho agrícola e devolver à comunidade como “cidadão útil” (São Paulo: Juqueri, 1898).

Crescimento da população de internos: ampliação dos hospitais e construção de novos, demandas por mais verbas e mais leitos.

Década de 1930, período do Estado Novo, grandes hospícios construídos foram reformados e ampliados. Tornam-se o centro de toda a política de saúde mental.

Após anos 40: criação dos primeiros ambulatórios (em 1961 eram 17 em todo o país)

Até a década de 1950, foi visível a estatização dos grandes hospitais, seguindo uma política de estadualização.

Fim da década de 50: situação caótica nos hospícios (superlotação, maus tratos, deficiência de pessoal, condições físicas); ineficiência do setor público

Nos anos de 1960, época da ditadura militar, a política manicomial sofreu grande expansão, devido à contratação e ao financiamento pela Previdência Social de clínicas privadas, que futuramente se constituiriam o grande problema da política de saúde mental no Brasil.

"em nome de uma racionalidade necessária e viabilizadora da expansão de cobertura, dá prioridade à contratação de serviços de terceiros em detrimento dos serviços médicos próprios da Previdência Social" (Oliveira & Teixeira, 1985:210).

1964 em diante: psiquiatria de massa (progressiva extensão do cuidado psiquiátrico a

grupos cada vez maiores da população) – alto custo da doença mental para o processo produtivo investimento em saúde mental como

proposta economicamente rentável; clientela dos hospitais psiquiátricos passaram a incluir

neuróticos e alcoolistas

Ideologia privativista: contratação de leitos em hospitais privados: mercantilização da loucura função iatrogênica incentivo às internações expansão de leitos.

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil

Seu início é contemporâneo da eclosão do

“movimento sanitário”, nos anos 70, em

favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da

saúde coletiva, eqüidade na oferta dos

serviços, e protagonismo dos

trabalhadores e usuários dos serviços de

saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de cuidado.

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil

O processo de Reforma Psiquiátrica brasileira tem uma história própria, inscrita num contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar

Vamos entender um pouco este cenário internacional

As Novas Tentativas de Reforma

Na Europa surgiram movimento para contrapor

ou superar o modelo vigente. Nesse período os

grandes hospícios eram comparados aos campos de concentração nazistas.

Esses movimentos podem ser divididos em três grupos, como forma de organização, baseando-se

nos trabalhos de Birman & Costa (1994) e Amarante (1995):

– Os movimentos que priorizavam as críticas à estrutura asilar: Estão incluídos os movimentos das Comunidades Terapêuticas (Inglaterra e Estados Unidos) e da Psicoterapia Institucional (França).

–Movimentos que priorizavam a

comunidade como lugar de atuação da

psiquiatria. Nesse grupo incluem-se a Psiquiatria Preventiva e a Psiquiatria de

Setor.

–Movimentos instauradores de rupturas

na constituição do Saber médico sobre a

loucura. Estão presentes neste grupo o movimento da Antipsiquiatria e a

Psiquiatria Democrática Italiana.

Movimentos Internacionais

Reformas restritas ao âmbito asilar

Maxwell Jones (1907-1990), que experimentou novas relações hierárquicas entre cuidados pessoais e doente - “aprendizagem social”

Comunidades Terapêuticas – Inglaterra: modelo inovador de tratamento psiquiátrico que substituiu o antigo conjunto de normas rígidas e eletrochoques por psicodramas, discussões sociais, filmes educacionais e opiniões sobre a vida em comunidade

Movimentos Internacionais Reformas

restritas ao âmbito asilar

A “psicoterapia institucional" surge no

cenário da França trazendo consigo uma

idéia então inovadora: a de que o espaço institucional tem características doentias e,

por isso, deve ser tratado.

precursor do movimento François Tosquelles,

Expressão forjada em 1952 pelo psiquiatra

francês Daumezon Georges (1912-1979)

Movimentos Internacionais

Reformas restritas ao âmbito asilar

Visava reformar a instituição asilar

favorecendo um relacionamento dinâmico

entre agentes de saúde e pacientes.

Foram muitas as críticas recebidas, já que

a reforma não pretendia se opor ao

espaço asilar em si, e sim a ser uma

forma de questionamento restrita ao

funcionamento desse mesmo espaço.

O objetivo era salvar o manicômio.

Movimentos Internacionais

Reformas de superação asilar Psiquiatria de Setor, França: esta nova

prática teria por objetivo resgatar o caráter terapêutico da psiquiatria e ao mesmo tempo contestar o asilo como espaço terapêutico.

Estruturar um serviço público e desenvolver o tratamento por meio da criação de equipes multiprofissionais (psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros) responsáveis por uma área geográfica. A assistência deslocada do hospital, até então único espaço de tratamento.

Movimentos Internacionais

Reformas de superação asilar

O hospital psiquiátrico não sairia totalmente da cena terapêutica, e sim teria a função de auxiliar no tratamento, constituindo-se em uma etapa no tratamento do paciente que, após a internação, fosse reinserido na comunidade.

Os manicômios, considerando-os ‘relíquias do passado’, continuavam não só a existir, como a reafirmar a sua força, já que faziam parte da própria

Movimentos Internacionais

Continente Americano

Presidente Kennedy, em 5 de fevereiro de 1963 propõe “um programa nacional de saúde mental que consiste na inauguração de uma ênfase e de uma abordagem inteiramente novas para cuidar de doentes mentais”

A Psiquiatria Preventiva – comunitária - experiência que ‘pretendeu’ uma reforma radical na psiquiatria, cujo objeto passaria a ser a prevenção e erradicação das doenças mentais.

Movimentos Internacionais

Continente Americano Gerald Caplan, principal teórico deste modelo

“a Psiquiatria Preventiva se propõe a atuar de forma mais abrangente em termos de assistência ao doente mental, principalmente por abrir possibilidades e perspectivas para se questionar e buscar as alternativas tanto ao modelo hospitalar como a outras formas de assistência” (Tundis, 1985:53).

O tema da prevenção possibilitou um deslocamento da doença para a saúde, caracterizando o debate em torno das possíveis causas da patologia.

Movimentos Internacionais

Antipsiquiatria Inglesa Corrente doutrinária na área de saúde mental

que tinha como característica principal a contestação da validade da ciência médica para resolver os transtornos psiquiátricos.

Chama a necessidade de se prestar mais atenção às influências nocivas que a sociedade e a família exercem sobre o doente. Muitos representantes opuseram-se à existência dos hospitais psiquiátricos, os quais, segundo Amarante, reproduziam “as mesmas estruturas opressoras e patogênicas da organização social.

Movimentos Internacionais

Experiência Italiana

Sofreu influências da Antipsiquiatria, da sociologia de tradição marxista italiana, do existencialismo e da teoria crítica (escola de Frankfurt).

Na década de 1960, a crítica ao paradigma asilar teve, em Gorizia (Itália) a sua primeira grande ruptura em relação à constituição da psiquiatria como saber sobre a loucura.

Foi transformado em comunidade terapêutica por Franco Basaglia,

Movimentos Internacionais

Experiência Italiana Basaglia juntamente com um grupo de

psiquiatras, "propôs devolver o doente mental à sociedade, desarticulando a instituição, o manicômio“

o manicômio passou a ser compreendido como uma organização que serve ao controle social.

Em 1971, o grande hospital de Trieste, foi aberto à comunidade, passando a fazer parte da arquitetura urbana da cidade.

Os Jardins passaram a ser cenário de atividades culturais, educativas, enfim, de várias possibilidades de convivência e criação de novas formas de vida.

Parque San Giovani - Hospital Psiquiátrico (Trieste, Itália)

Comunidade Terapêutica Enfance

Voltando ao Brasil

Nos anos de 1970 que foram marcados por uma profunda crise política, aconteceu o início da reorganização política do país, intensificando as discussões sobre a assistência à saúde.

Entre os anos de 1978 e 1980 configurou-se o atual movimento pela reforma psiquiátrica brasileira, tendo como protagonista principal o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM).

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil MTSM era caracterizado pela resistência à

institucionalização, pela participação de profissionais de várias categorias e da população em geral. – Desmontagem do aparato de exclusão:

substituição do modelo hospitalocêntrico; resgate da cidadania.

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil A Previdência Social sofria uma ‘crise financeira’ em

decorrência dos escassos recursos e das fraudes ocorridas freqüentemente no setor saúde.

Surgiu uma nova modalidade de convênio, a co-gestão, que previa a colaboração entre o Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS) e o Ministério da Saúde (MS). O MPAS, ao invés de comprar serviços do MS, passou a participar da administração das unidades hospitalares.

Foi criado, em 1981, o Conselho Consultivo da Administração de Saúde Previdenciária, o plano Conasp, que apresentava um plano específico para a assistência psiquiátrica.

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil Segunda metade déc. 80 (Nova

República): processo da reforma

psiquiátrica segue tendência dos movimentos de redemocratização do país

– 8ª. Conferência Nacional de Saúde (1986);

– I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987);

– criação do primeiro Centro de Atenção

Psicossocial (CAPS), na cidade de São Paulo (1987);

– apresentação do Projeto de Lei 3.657/89 (Projeto Paulo Delgado)

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil O II Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP),

em 1987, adota o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio de Janeiro).

Surge o primeiro CAPS no Brasil, na cidade de São Paulo, em 1987, e o início de um processo de intervenção, em 1989, da Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes.

O processo de Reforma

Psiquiátrica no Brasil Déc. 90: implantação do SUS (Sistema

Único de Saúde);

reestruturação da assistência psiquiátrica passa a ser política oficial de governo;

criação de mecanismos e normas de

qualificação e fiscalização para os serviços

de internação e estimulação para a criação

de redes de atenção psicossocial

Histórico da Reforma

1º momento: Crítica do modelo hospitalocêntrico (1978-1991)

2º momento: Começa a implantação da rede extra-hospitalar (1992-2000)

3º momento: A reforma psiquiátrica depois da lei nacional (2001-...)

Legislação:

– Declaração de Caracas (14/11/1990)

– Lei 10.216 (06/04/2001) ou “Lei Paulo Delgado”

– Portaria / SNAS nº 224 (29/01/1992)

– Portaia / SAS nº 147 (25/08/1994)

Políticas de Saúde Mental

Reforma Psiquiátrica: substituição progressiva dos hospitais psiquiátricos pelo cuidado

comunitário / ambulatorial.

Ações: construção de redes unidades básicas

de saúde; NAPS / CAPS; moradias assistidas;

serviços de emergência; enfermarias psiquiátricas em hospital geral; projetos na área de educação, trabalho, moradia e justiça.

Tabela 1 – Percentual de gastos por estado com recursos extra-

hospitalares, sobre o total de gastos em saúde mental (2001)

UF Gastos com

internações hospitalares

Gastos com recursos

extra-hospitalares

%

RO 255.984 0 0.00

AC 162.611 0 0.00

AM 740.023 0 0.00

RR 0 0 0.00

PA 735.172 720.687 49.50

AP 32.032 0 0.00

TO 1.397.544 366.933 20.80

MA 8.698.791 2.258.761 20.61

PI 4.520.062 918.375 16.89

CE 9.220.127 2.603.764 22.02

RN 8.478.894 770.791 8.33

PB 8.538.848 1.471.663 14.70

PE 32.637.082 1.216.229 3.59

fonte: DATASUS/MS

(continuação Tabela 1 – Percentual de gastos por estado com recursos extra-

hospitalares, sobre o total de gastos em saúde mental (2001)

AL 9.432.342 950.077 9.15

SE 3.221.566 290.041 8.26

BA 19.674.201 1.881.782 8.73

MG 38.661.740 7.379.133 16.03

ES 6.073.326 457.525 7.01

RJ 79.619.854 4.387.014 5.22

SP 133.887.961 12.763.391 8.70

PR 8.180.083 3.435.194 8.22

SC 12.797.266 859.529 9.51

RS 1.814.133 1.601.982 11.13

MS 3.650.969 126.225 6.51

MT 3.650.969 965.909 20.92

GO 16.268.807 749.679 4.41

DF 2.037.797 549.355 21.23

TOTAL 449.083.451 46.724.039 9.42

Amarante (1998) e Delgado (2001) ressaltam que a reforma psiquiátrica não implica no simples desmonte da antiga estrutura assistencial e na sua substituição por novos equipamentos. As transformações técnicas e institucionais, por si só, não são capazes de resolver a questão da exclusão, do alienismo, dos mecanismos ideológicos e de controle social: a questão crucial da desinstitucionalização não é de caráter técnico-administrativo: trata-se do que poderíamos designar como a progressiva “devolução à comunidade” da responsabilidade em relação aos seus doentes e aos seus conflitos (Delgado, 2001, p. 184-185).

Neste sentido, o conceito de reabilitação psicossocial tem norteado o tratamento do portador de transtornos mentais