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Entre a memória e o esquecimento: O cinema argentino pós-ditadura militar. Euller Gontijo de Oliveira [email protected] Universidade Federal de Goiás Embasado nos estudos, pesquisas e reflexões acerca das relações Cinema-História, o presente trabalho, é parte constituinte de uma pesquisa em andamento a nível de Mestrado que objetiva compreender a partir da linguagem cinematográfica, como o cinema argentino pós ditadura militar vem contribuindo na construção de memórias e formação de identidades a partir do passado ditatorial vivido pelos argentinos entre os anos de 1976-1983. É sob esse prisma que encontramos nos recursos audiovisuais uma preciosa fonte para a compreensão do passado, enquanto documento de uma época que não só encena o passado, mas, sobretudo expressa o presente e se alicerça aos projetos do futuro; segundo Nóvoa (2008:31) os filmes demonstram de modo incontestável a sua eficácia também como instrumento formador de consciências e sua função como agente da história. Para Barros (2008) o cinema enquanto agente histórico permite um estudo acurado das práticas e representações culturais do lugar que o produz, nesse sentido: O cinema é produto da história, um excelente meio para a observação do lugar que o produz, isto é, a sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto qualquer obra cinematográfica, seja um documentário ou pura ficção é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que o produziu. (BARROS, 2008 p.53) Nesse sentido, a pertinência deste trabalho está em trazermos para o debate dois filmes que dialogam diretamente com um dos episódios mais traumáticos da história latino- americana, que foram as ditaduras militares. Nosso recorte espaço-temporal focará o período pós-ditatorial na Argentina e tem como marco inicial o ano de 1985, ano de lançamento do filme: A História Oficial, do diretor Luis Puenzo; e se encerra em 1999, com o lançamento do filme Garagem Olimpo, do diretor Marco Bechis. A escolha desses dois filmes circunscreveu-se à linguagem cinematográfica que cada um apresenta. O diretor Luiz Puenzo trabalha o tema da ditadura de forma alegórica, num espelhamento nação-familia, que trás em si as imbricações da esfera pública com a esfera privada, numa linguagem na qual o drama vivido durante a ditadura é alegoricamente representada no ambiente familiar. III Encontro Nacional de Estudos da Imagem 03 a 06 de maio de 2011 - Londrina - PR 1134

Entre a memória e o esquecimento: O cinema argentino … Gontijo... · importantes cineastas da geração anterior, também chamado de “nuevo cine argentino”, o

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Entre a memória e o esquecimento: O cinema argentino pós-ditadura militar.

Euller Gontijo de Oliveira [email protected]

Universidade Federal de Goiás

Embasado nos estudos, pesquisas e reflexões acerca das relações Cinema-História, o

presente trabalho, é parte constituinte de uma pesquisa em andamento a nível de Mestrado

que objetiva compreender a partir da linguagem cinematográfica, como o cinema argentino

pós ditadura militar vem contribuindo na construção de memórias e formação de identidades

a partir do passado ditatorial vivido pelos argentinos entre os anos de 1976-1983.

É sob esse prisma que encontramos nos recursos audiovisuais uma preciosa fonte para

a compreensão do passado, enquanto documento de uma época que não só encena o passado,

mas, sobretudo expressa o presente e se alicerça aos projetos do futuro; segundo Nóvoa

(2008:31) os filmes demonstram de modo incontestável a sua eficácia também como

instrumento formador de consciências e sua função como agente da história.

Para Barros (2008) o cinema enquanto agente histórico permite um estudo acurado

das práticas e representações culturais do lugar que o produz, nesse sentido:

O cinema é produto da história, um excelente meio para a observação do lugar que o produz, isto é, a sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto qualquer obra cinematográfica, seja um documentário ou pura ficção é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que o produziu. (BARROS, 2008 p.53)

Nesse sentido, a pertinência deste trabalho está em trazermos para o debate dois

filmes que dialogam diretamente com um dos episódios mais traumáticos da história latino-

americana, que foram as ditaduras militares. Nosso recorte espaço-temporal focará o período

pós-ditatorial na Argentina e tem como marco inicial o ano de 1985, ano de lançamento do

filme: A História Oficial, do diretor Luis Puenzo; e se encerra em 1999, com o lançamento do

filme Garagem Olimpo, do diretor Marco Bechis.

A escolha desses dois filmes circunscreveu-se à linguagem cinematográfica que cada

um apresenta. O diretor Luiz Puenzo trabalha o tema da ditadura de forma alegórica, num

espelhamento nação-familia, que trás em si as imbricações da esfera pública com a esfera

privada, numa linguagem na qual o drama vivido durante a ditadura é alegoricamente

representada no ambiente familiar.

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Em contrapartida, o diretor Marco Bechis constrói sua narrativa sob outra perspectiva,

a partir do cotidiano de um centro clandestino de detenção (CCD), o diretor procura mostrar

as formas de tortura e os mecanismos de repressão por que passavam os detentos. O que nos

chama a atenção no filme Garagem Olimpo é que o CCD não foi construído em um lugar

isolado, ao contrário, se utilizavam prédios públicos, oficinas e em várias cenas aparecem

pessoas passando diante do prédio no qual funcionava o centro de detenção Garagem

Olimpo1, indicando uma convivência silenciada com a prática do terror, mostrando uma

cidade, um país omisso. Essa é uma das teses centrais do filme, várias cenas deixam evidente

esse silêncio; sob planos gerais, a cidade é apresentada do alto, em seu trânsito normal de

pessoas e carros e depois a câmera volta-se para o interior do centro de detenção, no mesmo

espaço social da cidade.

Segundo Zarankin (2008:194) o fato dos CCD’S terem ocupado edifícios já existentes,

que não foram construídos para fins de detenção, se convertem em um “não-lugar”; sua

condição de clandestinidade lhes outorgava a vantagem da invisibilidade e da impunidade. A

clandestinidade dos Centros de Detenção permitiu todo tipo de violência física e psicológica

aos detentos, não havendo limites nas formas de tortura. Nesse não-lugar onde era permitido

tudo aos torturadores, acabavam por tornar os detentos não-pessoas, retirando-lhes sua

identidade e, em muitos casos, suas vidas.

Um primeiro ponto de intersecção entre os dois filmes é a idéia de omissão,

apresentada de formas distintas; enquanto em Garagem Olimpo esse discurso é construído a

partir da apresentação dos centros clandestinos em meio à normalidade da vida cotidiana, no

filme A História Oficial constrói-se esse discurso na figura de Alícia, uma professora de

História que “não sabia” o que estava acontecendo à sua volta; somente a partir do reencontro

com sua amiga Ana, recém-chegada do exílio que, narrando os horrores que passou enquanto

esteve presa e sendo testemunha do que acontecia dentro do centro de detenção, no qual as

mulheres grávidas, após o parto tinham seus filhos retirados e levados para famílias que os

“adotavam” é que Alícia passa a desconfiar que sua filha adotiva poderia ter sido retirada à

força de uma mãe e então parte em busca da verdade sobre os verdadeiros pais de Gaby.

Uma prática comum e especifica da ditadura argentina foram os seqüestros dos filhos

dos detentos considerados subversivos ou aqueles que nasciam em cativeiros; geralmente

estes eram entregues às famílias de militares ou aos próprios membros dos grupos

repressores. A Comissão nacional sobre o desaparecimento de pessoas (CONADEP) e

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investigações posteriores documentaram cerca de duzentos casos desse tipo. Segundo as

avaliações dos grupos de especialistas que auxiliam as organizações de familiares de

desaparecidos nos diversos países latino-americanos, as hipóteses utilizadas para compreender

tal comportamento repressivo giram em torno de uma questão central:

As crianças arrancadas do convívio familiar e tornadas prisioneiras expressavam o endurecimento extremado da violência estatal no sentido de apagar qualquer vestígio do “inimigo interno”. [...] O sequestro de crianças deve ser inserido dentro da lógica da guerra contra-revolucionária e vinculado à dinâmica do Terrorismo de Estado. Mostrar que nem as crianças escapavam da “guerra suja” desencadeada a partir do estado, em uma flexibilização ilimitada do conceito de “inimigo interno”, elemento basilar da Doutrina de Segurança Nacional. (PADRÓS, 2005 p.143-144.)

Enrique Padrós (2005) apresenta também outros objetivos advindos dessa prática

repressiva:

- Castigar os familiares da criança;

- Interrogar as crianças com discernimento;

- Quebrar o silêncio dos pais torturando os filhos;

- Beneficiar-se com a apropriação das crianças como “botim de guerra”;

- E por fim educá-las com uma ideologia contrária à dos pais.

Para a associação Abuelas de Plaza de Mayo, a apropriação de crianças seqüestradas

ou nascidas em cativeiro correspondeu ao estágio maior do Terrorismo de Estado (TD). Para

apagar os vestígios dessas crianças, utilizaram-se os recursos da ação encobridora da adoção,

procurando dar uma base legal ao rapto; criou-se uma infra-estrutura estatal constituída de

centros clandestinos de detenção, hospitais, orfanatos, paróquias, cartórios, veículos para

transportes, assim como recursos humanos específicos, compostos por médicos, advogados,

padres, soldados, enfermeiros, carcereiros, funcionários aduaneiros, que forjavam

documentos, datas e testemunhas.

Os desdobramentos da prática dos seqüestros e da apropriação de crianças não são

problemas que se restringiram ao período ditatorial, pois se prolongaram para além da

cronologia da ditadura; a complexidade dessas ações deixou marcas profundas na sociedade

argentina; são feridas que permanecem expostas, não no passado, mas de um vigente passado-

presente.

Nesse sentido, a busca por reforçar a Identidade e pela conservação da memória

marcou as artes em geral; muitos filhos de desaparecidos se tornaram cineastas, escritores,

jornalistas, fotógrafos; formaram inclusive um grupo H.I.J.O.S. (Hijos por la identidad y la

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justicia, contra el olvido y el silencio),2 que tratou de registrar para a posteridade os anos

sombrios da ditadura, que marcaram suas histórias pessoais, suas identidades e suas

memórias.

Nesse sentido, o cinema se apresenta como um excelente suporte, agindo no

enquadramento da memória como nos afirma Pollack:

O filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização, e portanto no enquadramento da memória. [...] O filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da memória coletiva. ( POLLACK, 1989 p.11)

É nessa perspectiva que se orienta este trabalho: perceber os reflexos desse drama

representado no cinema argentino. É sob estas versões da história da ditadura que começam a

aparecer as memórias sobre o ocorrido e é percorrendo estes rastros presentes na filmografia

argentina que procuramos a partir dessa pesquisa compreender os discursos sobre a ditadura e

o jogo de disputa entre a memória e a identidade, que se fundam a partir da relação com esse

passado ditatorial.

No período pós-ditatorial ocorreu um processo de releitura sobre o passado ditatorial,

o qual procura reelaborar os sentidos e dar vazão às disputas pela memória. Esse processo

articula narrativas e memórias que anteriormente foram postas à margem e que agora

começam a emergir.

Antes mesmo de a ditadura ter tido fim, já começaram a aparecer protestos e disputas

por uma memória do traumático processo. Segundo Romero (2007), emergiu uma memória

militante, que reivindicou as lutas prévias à ditadura e aos combatentes, até então

apresentados como “vitimas inocentes”; também emergiu uma memória que o autor chama de

rancorosa, preocupada em ajustar as contas com o passado e outra memória reparadora;

esta memória se ajusta à do filme A História Oficial.

Desde o fim da ditadura em 1983 não pararam de produzir filmes sobre o tema, além

dos que estamos trabalhando nesta pesquisa, destacam-se: La noche de los lápides (1986) de

Héctor Oliveira, Un Muro de Silencio (1992) de Lita Stantic, Kamchatka (2002) de Marcelo

Piñeyro, Botin de Guerra (2000) de David Blaustein, Valentín ( 2002 ) de Alejandro Agresti,

dentre outros. Segundo Andrea Molfetta (2008) em grande parte destas obras existe a

colocação de personagens que são o alter-ego do autor, no registro de pequenas historias de

origem autobiográfica. Neste conjunto de filmes ouvimos a voz de uma geração que assoma a

maturidade da sua juventude tomando as salas para falar do país, reativando a representação.

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Todos esses filmes discutem o tema da ditadura e boa parte dessa filmografia foi

analisada numa importante obra coordenada por María Elena Paulinelli (2006), Cine y

Dictadura. Por meio de uma coletânea de artigos a autora propõe uma reflexão de como o

cinema argentino vem abordando o tema da ditadura. O cinema é testemunha de como cada

sociedade discute e dialoga sobre os próprios conflitos e a partir de suas criações estéticas

propõe imaginários possíveis, cujos discursos fílmicos permitem redescobrir ou revelar

diversos pontos de vista sobre fatos ou acontecimentos da história dos povos, além de incluir-

se no imaginário coletivo dos distintos grupos sociais.

Outro relevante trabalho foi coordenado por Viviana Rangil (2007), cuja coletânea de

artigos discute a relação do cinema com a política. Neste trabalho, o cinema é tomado não

apenas como arte, mas também como lugar de crítica e de ação política, numa investigação

pautada nessa relação, enquanto força mobilizadora do social e como se expressa tal relação

no contexto do cinema argentino contemporâneo. Dados econômicos e institucionais nos

mostram como o cinema argentino se funda em condições pontuais e novas estratégias de

produção que criaram o espaço para um cinema fortemente independente.

Andrea Molfetta (2008) em seu artigo: Texto e Contexto do novo cinema argentino

dos anos 90 nos mostra como desde o inicio da década de 90, assiste-se ao aumento

progressivo do número de estudantes de cinema. Buenos Aires oferece uma variedade extensa

e especializada de cursos, da crítica à realização, nas mais importantes instituições, como o

INCAA (Instituto Nacional de Cinematografia e Artes Audiovisuais) e o ENERC (Escuela

Nacional de Realización y Experimentación Cinematográfica). Por outro lado, surge um

dinâmico movimento de instituições de ensino privadas que chega ao seu ápice com a criação

da Fundação Universidade do Cinema (FUC). Sob a direção de Manuel Antin, um dos mais

importantes cineastas da geração anterior, também chamado de “nuevo cine argentino”, o

cinema de forte inspiração literária da década de 60, a FUC nasceu com um planejamento

curricular de graduação e pós-graduação, e uma estrutura de produção que soube aproveitar as

vantagens da conversibilidade para crescer em matéria tecnológica. Assim, os estudantes

possuem na FUC uma formação teórica e laboratorial de nível universitário, isto

acompanhado de um ensino prático da realização, fundado na constituição de equipes de

produção, de roteiro, de montagem, etc.

MOLFETTA (2008) nos apresenta outros fatores para o desenvolvimento

cinematográfico, como o efeito da paridade peso-dólar, chamada de Regime de

Conversibilidade, implantada no primeiro governo de Menem, e que lhe garantiu a reeleição

em 1994, permitiu a aquisição generalizada de aparelhos digitais importados, especialmente

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pequenas câmeras e tecnologia de edição, que logo estavam disponíveis nas mais importantes

produtoras e escolas.

Há ainda quatro ações institucionais que marcaram, a partir da política cultural, novos

horizontes para o campo intelectual cinematográfico:

- A Nova Lei do Cinema;

- O renascimento do Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata;

- O nascimento do BAFICI (Buenos Aires Festival Internacional de Cinema Independente) e a

projeção internacional como mecanismo econômico;

- O compromisso do INCAA com a distribuição dos filmes nacionais.

Este movimento demorou alguns anos até que em 28 de setembro de 1994 foi

aprovada a Lei 24377 de Fomento e Regulação da Atividade Cinematográfica Nacional. Esta

lei foi chave no ressurgimento do cinema argentino por conta da reforma impositiva que

desencadeou, e fez possível que jovens diretores estreassem em 35mm. Com esta lei, os

fundos para fomento foram ampliados notavelmente, e houve importantes câmbios políticos

dentro do Instituto Nacional do Cinema e das Artes Audiovisuais (INCAA), câmbios que

possibilitaram um melhoramento na administração e distribuição dos recursos.

Os fundos de fomento passaram, em 1994, de 8 milhões de dólares para 40, graças a

Lei 24377, que criou dois novos impostos: um de 10% sobre cada aluguel, venda ou edição de

VHS, e outro de 25% sobre cada filme emitido na televisão e registrado no COMFER (Comité

Federal de Radio y Difusión). Estes novos impostos, somados ao já existente de 10% sobre os

ingressos vendidos em salas, chamado de subsídio industrial, fizeram aumentar

consideravelmente os fundos para a produção cinematográfica Argentina.

Outro importante trabalho sobre o tema em questão é a pesquisa desenvolvida pela

Professora Maria Luiza Rodrigues Souza (2007), do Departamento de Sociologia da UFG,

cuja pesquisa de doutorado norteou as questões referentes ao cinema e às narrativas

cinematográficas da ditadura brasileira e argentina. Este trabalho no Brasil é um dos pioneiros

a debater a questão cinema-ditadura e será nossa referência principal para pensarmos na

problemática em questão.

Entretanto, em todos estes trabalhos percebe-se uma lacuna, que o presente trabalho

procura responder, no que tange a reflexão do papel do cinema na construção de memórias e

conseqüentemente das identidades acerca do passado ditatorial. Nesse sentido, o caminho que

busca-se percorrer neste trabalho é analisar estes diferentes discursos e releituras acerca do

passado ditatorial, tomando como objeto as fontes audiovisuais que se apresentam como

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interessante objeto de pesquisa para o estudo das memórias construídas acerca da ditadura

Argentina.

Partindo da premissa de que um filme é veiculo de memória como nos assegura Jelin

(apud Paulinelli, 2006:22) ou como esclarece Maria Luiza Rodrigues Souza (2007:14), ao

trabalhar o passado ditatorial, os filmes, enquanto filmes-arquivo, estão sobretudo, elaborando

o que está fora dele e, ao mesmo tempo, naquele passado imbricado, o que é eleito e

construído diegeticamente constitui uma evocação do e para o presente.

Nesse sentido, é preciso pensar nestes filmes-arquivos enquanto campos de lutas e

enfrentamentos que se configuram nas intenções de definir os sentidos sobre o passado.

Segundo Clarice Ehlers Peixoto ( 2001) os filmes produzem o efeito de ativar a memória, nos

dando a sensação de (re)viver situações que foram registradas ao longo da vida. Mesmo que

não esteja ligado diretamente à nossa realidade atual, os filmes de memória nos permitem

uma relação com a memória familiar, como nos assegura Peixoto:

As lembranças evocadas por estas imagens apresentam aos jovens uma história que não viveram mas da qual fazem parte, convidando-os, assim, a incorporar à sua história essa memória familiar. O uso social dessas imagens permite a criação de um verdadeiro rito de memorização e de integração das gerações, dentro e fora da tela. ( PEIXOTO,2001:175)

Nesse sentido, é interessante observarmos que, embora não tenham vivido esse

período, muitos filhos ou parentes de desaparecidos e vitimas da ditadura, tornaram-se

cineastas, fotógrafos, escritores, e trataram de registrar roteiros diversos que tem no tema da

ditadura o grande enredo, os reflexos da ditadura é uma marca profunda presente ainda na

vida de muitos que tem no seio familiar a ausência de um ente querido em decorrência da

ditadura.

Os filmes que se encontram inseridos em contextos de releitura desse passado

ditatorial, mediante seus mecanismos técnicos e representacionais, apresenta-se a

possibilidade de analisar como cada sociedade discute e dialoga sobre seus próprios conflitos

e a partir de suas criações estéticas, propondo imaginários possíveis, nos quais a cultura se

constitui desde os múltiplos encontros de diferentes visões/versões.

No ano de lançamento do filme A História Oficial (1985), estavam em julgamento os

militares que atuaram na ditadura, e com eles todo um questionamento do papel da classe

média nesse processo. É nesse sentido que podemos ler na personagem Alicia a representação

de toda uma classe média, que se dizia não saber de nada, e que ao ser questionada, preserva

ainda uma reserva moral como nos esclarece Xavier (2003) capaz de ir em busca da verdade,

e reparar suas omissões, mesmo correndo o risco de perder a filha. O filme é em alguma

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medida um posicionar-se da classe média que estava sendo questionada no período, e

representada na personagem de Alícia.

Temos também neste filme a versão fílmica da teoria dos dois demônios, que surgiu

no período pós-ditatorial e que dividiam a sociedade argentina e os acontecimentos da ultima

ditadura em vitimas e torturadores. É interessante observarmos os recursos sonoros utilizados

pelo diretor, operantes na diegese do filme, no encontro de Alícia com Sara, a possível avó de

Gaby; ao mostrar as fotos do filho e da nora, os espectadores podem ouvir sons de

metralhadora de jovens que estão brincando no vídeo-game; relacionando as imagens com os

ruídos, temos uma interessante construção imagética, que nos leva a uma associação entre o

desaparecimento dos personagens da foto e seus envolvimentos com a ditadura. Como

podemos interpretar estes recursos discursivos presentes no filme, quais as intencionalidades

do diretor ao utilizar tais recursos?

Com relação ao filme de Marco Bechis, a discussão toma outro rumo; se A História

Oficial foi um dos primeiros filmes a fundar uma memória sobre a ditadura, trabalhando o

tema de forma alegórica, num espelhamento nação-familia, o filme Garagem Olimpo, filmado

no final dos anos 90, trás o tema da ditadura de forma clara e objetiva.

Para análise e levantamento de problemáticas sobre este filme é preciso pensar

primeiramente o lugar de fala desse diretor, como nos assegura Certeau (2002:65) certamente

não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa

estendê-las capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que

realizo uma investigação. Nesse sentido, a história de vida do diretor enquanto um ex-detento

da ditadura tem muito a nos dizer sobre seu filme.

Estando no lugar de quem viveu, ou melhor, sofreu a ditadura, o filme de Bechis tenta

ser uma memória oficial das violações aos direitos humanos em versão fílmica. O diretor não

só procura descrever o funcionamento dos centros de detenção como também parece querer

esgotar os distintos relatos que povoam a memória da ultima ditadura militar na Argentina. É

possível tratar de forma global os temas referentes à ditadura, como procura fazer o diretor de

Garagem Olimpo? O filme não só apresenta o cotidiano no interior do centro de detenção,

como apresenta a atuação da igreja católica, que utilizava a confissão como instrumento de

delação; há também apresentação das distintas militâncias políticas como a de Maria em suas

aulas na vila; há também a jovem que coloca uma bomba debaixo da cama do diretor do

centro de detenção; há apropriação dos bens dos desaparecidos e também um tema central no

filme, que foram os vôos da morte; o termo utilizado no período era os transladados, pessoas

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eram jogadas vivas no mar. Não é sem razão que o filme começa e termina com imagens do

mar, fazendo uma relação direta com esses vôos.

O cinema permite colaborar na constituição das identidades de uma nação e a

possibilidade de uma memória histórica fazer-se presente, mantendo vivos os acontecimentos

passados entre os integrantes de uma sociedade. Nesse sentido, defendemos que os filmes

pós-ditadura possibilitam um trabalho de memória, (res) significando o passado, em função

das questões postas no presente e se articulam ao futuro, ou seja, manter viva a memória da

ditadura para que nunca mais o país se permita cair em tal violência.

Ao longo desses quase trinta anos após o término da ditadura na Argentina, não

tardaram a aparecer variadas versões e discursos acerca deste passado. As fontes audiovisuais

trataram de registrar e trabalhar roteiros diversos que sob diferentes prismas abordam esse

tema. As questões levantadas a partir das fontes que utilizaremos para este trabalho são

múltiplas e partem de questões internas, focadas na construção das narrativas dos próprios

filmes e também de questões externas: quais rastros da ditadura permanecem na trama social e

individual? Como os filmes argentinos se articulam com as subjetividades sociais no

momento de sua produção? Qual o lugar ocupado pelo cinema na transmissão da memória

acerca da ditadura? Para além destas questões internas/externas existe uma pergunta central

que instiga a realizar este trabalho, que é compreender porque ainda persiste o tema da

ditadura na filmografia argentina. Passaram-se quase trinta anos e este é um passado que se

faz ainda presente, nos relatos, nas artes, no cinema. Quais as relações entre a memória e a

identidade que podemos estabelecer a partir dessa constatação?

Pensando o lugar de produção do filme, a pergunta a se fazer não é como o filme

representa a ditadura, mas qual é o papel dessa representação? Por que passados tantos anos o

tema da ditadura ainda serve de enredo na construção dos filmes argentinos? No caso do

filme de Bechis, a pergunta é: Há possibilidade de representar o horror que foi a ditadura?

Pelo fato de ter sido testemunha direta da ditadura como devemos ler o seu filme? É possível

a partir da experiência pessoal do diretor acerca da ditadura, ampliar essa experiência para

uma coletividade?

Sob o impulso destas questões que encontramos nesses dois filmes argentinos duas

excelentes fontes, não só de compreensão da ditadura, mas a compreensão de que a cada

momento histórico novas releituras vão sendo feitas acerca daquele passado histórico e nos

coloca um desafio de compreendermos o papel do cinema nas suas condições sociais de

produção.

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Notas: 1 Era comum os centros de detenção receberem nomes que remetiam aos deuses, segundo

Calveiro (apud SOUZA, 2007:92): llevaba este nombre porque, según el personal que lo

manejaba era el lugar de los dioses. Os torturadores tinham o controle sobre a vida e morte

dos torturados. Uma das falas do torturador deixa explicito: Nosotros decidimos cuando se

muere. Acá somos dios. 2 ESTEVE, Laia Quílez. Autobiografia y ficción en el documental contemporâneo argentino.

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FILMOGRAFIA

LA HISTORIA OFICIAL. Direção: Luiz Puenzo. Produção: Oscar Kramer. Roteiro: Aída Bortnik e Luiz Puenzo. Argentina, 1985, DVD (112 min. )

GARAGE OLIMPO. Direção: Marco Bechis. Produção: Daniel Burman e Diego

Dubicovsky. Roteiro: Marco Bechis. Argentina, 1999. DVD (98 min).

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