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Entre a memória e o esquecimento: O cinema argentino pós-ditadura militar.
Euller Gontijo de Oliveira [email protected]
Universidade Federal de Goiás
Embasado nos estudos, pesquisas e reflexões acerca das relações Cinema-História, o
presente trabalho, é parte constituinte de uma pesquisa em andamento a nível de Mestrado
que objetiva compreender a partir da linguagem cinematográfica, como o cinema argentino
pós ditadura militar vem contribuindo na construção de memórias e formação de identidades
a partir do passado ditatorial vivido pelos argentinos entre os anos de 1976-1983.
É sob esse prisma que encontramos nos recursos audiovisuais uma preciosa fonte para
a compreensão do passado, enquanto documento de uma época que não só encena o passado,
mas, sobretudo expressa o presente e se alicerça aos projetos do futuro; segundo Nóvoa
(2008:31) os filmes demonstram de modo incontestável a sua eficácia também como
instrumento formador de consciências e sua função como agente da história.
Para Barros (2008) o cinema enquanto agente histórico permite um estudo acurado
das práticas e representações culturais do lugar que o produz, nesse sentido:
O cinema é produto da história, um excelente meio para a observação do lugar que o produz, isto é, a sociedade que o contextualiza, que define a sua própria linguagem possível, que estabelece os seus fazeres, que institui as suas temáticas. Por isto qualquer obra cinematográfica, seja um documentário ou pura ficção é sempre portadora de retratos, de marcas e de indícios significativos da sociedade que o produziu. (BARROS, 2008 p.53)
Nesse sentido, a pertinência deste trabalho está em trazermos para o debate dois
filmes que dialogam diretamente com um dos episódios mais traumáticos da história latino-
americana, que foram as ditaduras militares. Nosso recorte espaço-temporal focará o período
pós-ditatorial na Argentina e tem como marco inicial o ano de 1985, ano de lançamento do
filme: A História Oficial, do diretor Luis Puenzo; e se encerra em 1999, com o lançamento do
filme Garagem Olimpo, do diretor Marco Bechis.
A escolha desses dois filmes circunscreveu-se à linguagem cinematográfica que cada
um apresenta. O diretor Luiz Puenzo trabalha o tema da ditadura de forma alegórica, num
espelhamento nação-familia, que trás em si as imbricações da esfera pública com a esfera
privada, numa linguagem na qual o drama vivido durante a ditadura é alegoricamente
representada no ambiente familiar.
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Em contrapartida, o diretor Marco Bechis constrói sua narrativa sob outra perspectiva,
a partir do cotidiano de um centro clandestino de detenção (CCD), o diretor procura mostrar
as formas de tortura e os mecanismos de repressão por que passavam os detentos. O que nos
chama a atenção no filme Garagem Olimpo é que o CCD não foi construído em um lugar
isolado, ao contrário, se utilizavam prédios públicos, oficinas e em várias cenas aparecem
pessoas passando diante do prédio no qual funcionava o centro de detenção Garagem
Olimpo1, indicando uma convivência silenciada com a prática do terror, mostrando uma
cidade, um país omisso. Essa é uma das teses centrais do filme, várias cenas deixam evidente
esse silêncio; sob planos gerais, a cidade é apresentada do alto, em seu trânsito normal de
pessoas e carros e depois a câmera volta-se para o interior do centro de detenção, no mesmo
espaço social da cidade.
Segundo Zarankin (2008:194) o fato dos CCD’S terem ocupado edifícios já existentes,
que não foram construídos para fins de detenção, se convertem em um “não-lugar”; sua
condição de clandestinidade lhes outorgava a vantagem da invisibilidade e da impunidade. A
clandestinidade dos Centros de Detenção permitiu todo tipo de violência física e psicológica
aos detentos, não havendo limites nas formas de tortura. Nesse não-lugar onde era permitido
tudo aos torturadores, acabavam por tornar os detentos não-pessoas, retirando-lhes sua
identidade e, em muitos casos, suas vidas.
Um primeiro ponto de intersecção entre os dois filmes é a idéia de omissão,
apresentada de formas distintas; enquanto em Garagem Olimpo esse discurso é construído a
partir da apresentação dos centros clandestinos em meio à normalidade da vida cotidiana, no
filme A História Oficial constrói-se esse discurso na figura de Alícia, uma professora de
História que “não sabia” o que estava acontecendo à sua volta; somente a partir do reencontro
com sua amiga Ana, recém-chegada do exílio que, narrando os horrores que passou enquanto
esteve presa e sendo testemunha do que acontecia dentro do centro de detenção, no qual as
mulheres grávidas, após o parto tinham seus filhos retirados e levados para famílias que os
“adotavam” é que Alícia passa a desconfiar que sua filha adotiva poderia ter sido retirada à
força de uma mãe e então parte em busca da verdade sobre os verdadeiros pais de Gaby.
Uma prática comum e especifica da ditadura argentina foram os seqüestros dos filhos
dos detentos considerados subversivos ou aqueles que nasciam em cativeiros; geralmente
estes eram entregues às famílias de militares ou aos próprios membros dos grupos
repressores. A Comissão nacional sobre o desaparecimento de pessoas (CONADEP) e
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investigações posteriores documentaram cerca de duzentos casos desse tipo. Segundo as
avaliações dos grupos de especialistas que auxiliam as organizações de familiares de
desaparecidos nos diversos países latino-americanos, as hipóteses utilizadas para compreender
tal comportamento repressivo giram em torno de uma questão central:
As crianças arrancadas do convívio familiar e tornadas prisioneiras expressavam o endurecimento extremado da violência estatal no sentido de apagar qualquer vestígio do “inimigo interno”. [...] O sequestro de crianças deve ser inserido dentro da lógica da guerra contra-revolucionária e vinculado à dinâmica do Terrorismo de Estado. Mostrar que nem as crianças escapavam da “guerra suja” desencadeada a partir do estado, em uma flexibilização ilimitada do conceito de “inimigo interno”, elemento basilar da Doutrina de Segurança Nacional. (PADRÓS, 2005 p.143-144.)
Enrique Padrós (2005) apresenta também outros objetivos advindos dessa prática
repressiva:
- Castigar os familiares da criança;
- Interrogar as crianças com discernimento;
- Quebrar o silêncio dos pais torturando os filhos;
- Beneficiar-se com a apropriação das crianças como “botim de guerra”;
- E por fim educá-las com uma ideologia contrária à dos pais.
Para a associação Abuelas de Plaza de Mayo, a apropriação de crianças seqüestradas
ou nascidas em cativeiro correspondeu ao estágio maior do Terrorismo de Estado (TD). Para
apagar os vestígios dessas crianças, utilizaram-se os recursos da ação encobridora da adoção,
procurando dar uma base legal ao rapto; criou-se uma infra-estrutura estatal constituída de
centros clandestinos de detenção, hospitais, orfanatos, paróquias, cartórios, veículos para
transportes, assim como recursos humanos específicos, compostos por médicos, advogados,
padres, soldados, enfermeiros, carcereiros, funcionários aduaneiros, que forjavam
documentos, datas e testemunhas.
Os desdobramentos da prática dos seqüestros e da apropriação de crianças não são
problemas que se restringiram ao período ditatorial, pois se prolongaram para além da
cronologia da ditadura; a complexidade dessas ações deixou marcas profundas na sociedade
argentina; são feridas que permanecem expostas, não no passado, mas de um vigente passado-
presente.
Nesse sentido, a busca por reforçar a Identidade e pela conservação da memória
marcou as artes em geral; muitos filhos de desaparecidos se tornaram cineastas, escritores,
jornalistas, fotógrafos; formaram inclusive um grupo H.I.J.O.S. (Hijos por la identidad y la
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justicia, contra el olvido y el silencio),2 que tratou de registrar para a posteridade os anos
sombrios da ditadura, que marcaram suas histórias pessoais, suas identidades e suas
memórias.
Nesse sentido, o cinema se apresenta como um excelente suporte, agindo no
enquadramento da memória como nos afirma Pollack:
O filme é o melhor suporte para fazê-lo: donde seu papel crescente na formação e reorganização, e portanto no enquadramento da memória. [...] O filme-testemunho e documentário tornou-se um instrumento poderoso para os rearranjos sucessivos da memória coletiva. ( POLLACK, 1989 p.11)
É nessa perspectiva que se orienta este trabalho: perceber os reflexos desse drama
representado no cinema argentino. É sob estas versões da história da ditadura que começam a
aparecer as memórias sobre o ocorrido e é percorrendo estes rastros presentes na filmografia
argentina que procuramos a partir dessa pesquisa compreender os discursos sobre a ditadura e
o jogo de disputa entre a memória e a identidade, que se fundam a partir da relação com esse
passado ditatorial.
No período pós-ditatorial ocorreu um processo de releitura sobre o passado ditatorial,
o qual procura reelaborar os sentidos e dar vazão às disputas pela memória. Esse processo
articula narrativas e memórias que anteriormente foram postas à margem e que agora
começam a emergir.
Antes mesmo de a ditadura ter tido fim, já começaram a aparecer protestos e disputas
por uma memória do traumático processo. Segundo Romero (2007), emergiu uma memória
militante, que reivindicou as lutas prévias à ditadura e aos combatentes, até então
apresentados como “vitimas inocentes”; também emergiu uma memória que o autor chama de
rancorosa, preocupada em ajustar as contas com o passado e outra memória reparadora;
esta memória se ajusta à do filme A História Oficial.
Desde o fim da ditadura em 1983 não pararam de produzir filmes sobre o tema, além
dos que estamos trabalhando nesta pesquisa, destacam-se: La noche de los lápides (1986) de
Héctor Oliveira, Un Muro de Silencio (1992) de Lita Stantic, Kamchatka (2002) de Marcelo
Piñeyro, Botin de Guerra (2000) de David Blaustein, Valentín ( 2002 ) de Alejandro Agresti,
dentre outros. Segundo Andrea Molfetta (2008) em grande parte destas obras existe a
colocação de personagens que são o alter-ego do autor, no registro de pequenas historias de
origem autobiográfica. Neste conjunto de filmes ouvimos a voz de uma geração que assoma a
maturidade da sua juventude tomando as salas para falar do país, reativando a representação.
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Todos esses filmes discutem o tema da ditadura e boa parte dessa filmografia foi
analisada numa importante obra coordenada por María Elena Paulinelli (2006), Cine y
Dictadura. Por meio de uma coletânea de artigos a autora propõe uma reflexão de como o
cinema argentino vem abordando o tema da ditadura. O cinema é testemunha de como cada
sociedade discute e dialoga sobre os próprios conflitos e a partir de suas criações estéticas
propõe imaginários possíveis, cujos discursos fílmicos permitem redescobrir ou revelar
diversos pontos de vista sobre fatos ou acontecimentos da história dos povos, além de incluir-
se no imaginário coletivo dos distintos grupos sociais.
Outro relevante trabalho foi coordenado por Viviana Rangil (2007), cuja coletânea de
artigos discute a relação do cinema com a política. Neste trabalho, o cinema é tomado não
apenas como arte, mas também como lugar de crítica e de ação política, numa investigação
pautada nessa relação, enquanto força mobilizadora do social e como se expressa tal relação
no contexto do cinema argentino contemporâneo. Dados econômicos e institucionais nos
mostram como o cinema argentino se funda em condições pontuais e novas estratégias de
produção que criaram o espaço para um cinema fortemente independente.
Andrea Molfetta (2008) em seu artigo: Texto e Contexto do novo cinema argentino
dos anos 90 nos mostra como desde o inicio da década de 90, assiste-se ao aumento
progressivo do número de estudantes de cinema. Buenos Aires oferece uma variedade extensa
e especializada de cursos, da crítica à realização, nas mais importantes instituições, como o
INCAA (Instituto Nacional de Cinematografia e Artes Audiovisuais) e o ENERC (Escuela
Nacional de Realización y Experimentación Cinematográfica). Por outro lado, surge um
dinâmico movimento de instituições de ensino privadas que chega ao seu ápice com a criação
da Fundação Universidade do Cinema (FUC). Sob a direção de Manuel Antin, um dos mais
importantes cineastas da geração anterior, também chamado de “nuevo cine argentino”, o
cinema de forte inspiração literária da década de 60, a FUC nasceu com um planejamento
curricular de graduação e pós-graduação, e uma estrutura de produção que soube aproveitar as
vantagens da conversibilidade para crescer em matéria tecnológica. Assim, os estudantes
possuem na FUC uma formação teórica e laboratorial de nível universitário, isto
acompanhado de um ensino prático da realização, fundado na constituição de equipes de
produção, de roteiro, de montagem, etc.
MOLFETTA (2008) nos apresenta outros fatores para o desenvolvimento
cinematográfico, como o efeito da paridade peso-dólar, chamada de Regime de
Conversibilidade, implantada no primeiro governo de Menem, e que lhe garantiu a reeleição
em 1994, permitiu a aquisição generalizada de aparelhos digitais importados, especialmente
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pequenas câmeras e tecnologia de edição, que logo estavam disponíveis nas mais importantes
produtoras e escolas.
Há ainda quatro ações institucionais que marcaram, a partir da política cultural, novos
horizontes para o campo intelectual cinematográfico:
- A Nova Lei do Cinema;
- O renascimento do Festival Internacional de Cinema de Mar del Plata;
- O nascimento do BAFICI (Buenos Aires Festival Internacional de Cinema Independente) e a
projeção internacional como mecanismo econômico;
- O compromisso do INCAA com a distribuição dos filmes nacionais.
Este movimento demorou alguns anos até que em 28 de setembro de 1994 foi
aprovada a Lei 24377 de Fomento e Regulação da Atividade Cinematográfica Nacional. Esta
lei foi chave no ressurgimento do cinema argentino por conta da reforma impositiva que
desencadeou, e fez possível que jovens diretores estreassem em 35mm. Com esta lei, os
fundos para fomento foram ampliados notavelmente, e houve importantes câmbios políticos
dentro do Instituto Nacional do Cinema e das Artes Audiovisuais (INCAA), câmbios que
possibilitaram um melhoramento na administração e distribuição dos recursos.
Os fundos de fomento passaram, em 1994, de 8 milhões de dólares para 40, graças a
Lei 24377, que criou dois novos impostos: um de 10% sobre cada aluguel, venda ou edição de
VHS, e outro de 25% sobre cada filme emitido na televisão e registrado no COMFER (Comité
Federal de Radio y Difusión). Estes novos impostos, somados ao já existente de 10% sobre os
ingressos vendidos em salas, chamado de subsídio industrial, fizeram aumentar
consideravelmente os fundos para a produção cinematográfica Argentina.
Outro importante trabalho sobre o tema em questão é a pesquisa desenvolvida pela
Professora Maria Luiza Rodrigues Souza (2007), do Departamento de Sociologia da UFG,
cuja pesquisa de doutorado norteou as questões referentes ao cinema e às narrativas
cinematográficas da ditadura brasileira e argentina. Este trabalho no Brasil é um dos pioneiros
a debater a questão cinema-ditadura e será nossa referência principal para pensarmos na
problemática em questão.
Entretanto, em todos estes trabalhos percebe-se uma lacuna, que o presente trabalho
procura responder, no que tange a reflexão do papel do cinema na construção de memórias e
conseqüentemente das identidades acerca do passado ditatorial. Nesse sentido, o caminho que
busca-se percorrer neste trabalho é analisar estes diferentes discursos e releituras acerca do
passado ditatorial, tomando como objeto as fontes audiovisuais que se apresentam como
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interessante objeto de pesquisa para o estudo das memórias construídas acerca da ditadura
Argentina.
Partindo da premissa de que um filme é veiculo de memória como nos assegura Jelin
(apud Paulinelli, 2006:22) ou como esclarece Maria Luiza Rodrigues Souza (2007:14), ao
trabalhar o passado ditatorial, os filmes, enquanto filmes-arquivo, estão sobretudo, elaborando
o que está fora dele e, ao mesmo tempo, naquele passado imbricado, o que é eleito e
construído diegeticamente constitui uma evocação do e para o presente.
Nesse sentido, é preciso pensar nestes filmes-arquivos enquanto campos de lutas e
enfrentamentos que se configuram nas intenções de definir os sentidos sobre o passado.
Segundo Clarice Ehlers Peixoto ( 2001) os filmes produzem o efeito de ativar a memória, nos
dando a sensação de (re)viver situações que foram registradas ao longo da vida. Mesmo que
não esteja ligado diretamente à nossa realidade atual, os filmes de memória nos permitem
uma relação com a memória familiar, como nos assegura Peixoto:
As lembranças evocadas por estas imagens apresentam aos jovens uma história que não viveram mas da qual fazem parte, convidando-os, assim, a incorporar à sua história essa memória familiar. O uso social dessas imagens permite a criação de um verdadeiro rito de memorização e de integração das gerações, dentro e fora da tela. ( PEIXOTO,2001:175)
Nesse sentido, é interessante observarmos que, embora não tenham vivido esse
período, muitos filhos ou parentes de desaparecidos e vitimas da ditadura, tornaram-se
cineastas, fotógrafos, escritores, e trataram de registrar roteiros diversos que tem no tema da
ditadura o grande enredo, os reflexos da ditadura é uma marca profunda presente ainda na
vida de muitos que tem no seio familiar a ausência de um ente querido em decorrência da
ditadura.
Os filmes que se encontram inseridos em contextos de releitura desse passado
ditatorial, mediante seus mecanismos técnicos e representacionais, apresenta-se a
possibilidade de analisar como cada sociedade discute e dialoga sobre seus próprios conflitos
e a partir de suas criações estéticas, propondo imaginários possíveis, nos quais a cultura se
constitui desde os múltiplos encontros de diferentes visões/versões.
No ano de lançamento do filme A História Oficial (1985), estavam em julgamento os
militares que atuaram na ditadura, e com eles todo um questionamento do papel da classe
média nesse processo. É nesse sentido que podemos ler na personagem Alicia a representação
de toda uma classe média, que se dizia não saber de nada, e que ao ser questionada, preserva
ainda uma reserva moral como nos esclarece Xavier (2003) capaz de ir em busca da verdade,
e reparar suas omissões, mesmo correndo o risco de perder a filha. O filme é em alguma
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medida um posicionar-se da classe média que estava sendo questionada no período, e
representada na personagem de Alícia.
Temos também neste filme a versão fílmica da teoria dos dois demônios, que surgiu
no período pós-ditatorial e que dividiam a sociedade argentina e os acontecimentos da ultima
ditadura em vitimas e torturadores. É interessante observarmos os recursos sonoros utilizados
pelo diretor, operantes na diegese do filme, no encontro de Alícia com Sara, a possível avó de
Gaby; ao mostrar as fotos do filho e da nora, os espectadores podem ouvir sons de
metralhadora de jovens que estão brincando no vídeo-game; relacionando as imagens com os
ruídos, temos uma interessante construção imagética, que nos leva a uma associação entre o
desaparecimento dos personagens da foto e seus envolvimentos com a ditadura. Como
podemos interpretar estes recursos discursivos presentes no filme, quais as intencionalidades
do diretor ao utilizar tais recursos?
Com relação ao filme de Marco Bechis, a discussão toma outro rumo; se A História
Oficial foi um dos primeiros filmes a fundar uma memória sobre a ditadura, trabalhando o
tema de forma alegórica, num espelhamento nação-familia, o filme Garagem Olimpo, filmado
no final dos anos 90, trás o tema da ditadura de forma clara e objetiva.
Para análise e levantamento de problemáticas sobre este filme é preciso pensar
primeiramente o lugar de fala desse diretor, como nos assegura Certeau (2002:65) certamente
não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem leituras, tanto quanto se possa
estendê-las capazes de suprimir a particularidade do lugar de onde falo e do domínio em que
realizo uma investigação. Nesse sentido, a história de vida do diretor enquanto um ex-detento
da ditadura tem muito a nos dizer sobre seu filme.
Estando no lugar de quem viveu, ou melhor, sofreu a ditadura, o filme de Bechis tenta
ser uma memória oficial das violações aos direitos humanos em versão fílmica. O diretor não
só procura descrever o funcionamento dos centros de detenção como também parece querer
esgotar os distintos relatos que povoam a memória da ultima ditadura militar na Argentina. É
possível tratar de forma global os temas referentes à ditadura, como procura fazer o diretor de
Garagem Olimpo? O filme não só apresenta o cotidiano no interior do centro de detenção,
como apresenta a atuação da igreja católica, que utilizava a confissão como instrumento de
delação; há também apresentação das distintas militâncias políticas como a de Maria em suas
aulas na vila; há também a jovem que coloca uma bomba debaixo da cama do diretor do
centro de detenção; há apropriação dos bens dos desaparecidos e também um tema central no
filme, que foram os vôos da morte; o termo utilizado no período era os transladados, pessoas
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eram jogadas vivas no mar. Não é sem razão que o filme começa e termina com imagens do
mar, fazendo uma relação direta com esses vôos.
O cinema permite colaborar na constituição das identidades de uma nação e a
possibilidade de uma memória histórica fazer-se presente, mantendo vivos os acontecimentos
passados entre os integrantes de uma sociedade. Nesse sentido, defendemos que os filmes
pós-ditadura possibilitam um trabalho de memória, (res) significando o passado, em função
das questões postas no presente e se articulam ao futuro, ou seja, manter viva a memória da
ditadura para que nunca mais o país se permita cair em tal violência.
Ao longo desses quase trinta anos após o término da ditadura na Argentina, não
tardaram a aparecer variadas versões e discursos acerca deste passado. As fontes audiovisuais
trataram de registrar e trabalhar roteiros diversos que sob diferentes prismas abordam esse
tema. As questões levantadas a partir das fontes que utilizaremos para este trabalho são
múltiplas e partem de questões internas, focadas na construção das narrativas dos próprios
filmes e também de questões externas: quais rastros da ditadura permanecem na trama social e
individual? Como os filmes argentinos se articulam com as subjetividades sociais no
momento de sua produção? Qual o lugar ocupado pelo cinema na transmissão da memória
acerca da ditadura? Para além destas questões internas/externas existe uma pergunta central
que instiga a realizar este trabalho, que é compreender porque ainda persiste o tema da
ditadura na filmografia argentina. Passaram-se quase trinta anos e este é um passado que se
faz ainda presente, nos relatos, nas artes, no cinema. Quais as relações entre a memória e a
identidade que podemos estabelecer a partir dessa constatação?
Pensando o lugar de produção do filme, a pergunta a se fazer não é como o filme
representa a ditadura, mas qual é o papel dessa representação? Por que passados tantos anos o
tema da ditadura ainda serve de enredo na construção dos filmes argentinos? No caso do
filme de Bechis, a pergunta é: Há possibilidade de representar o horror que foi a ditadura?
Pelo fato de ter sido testemunha direta da ditadura como devemos ler o seu filme? É possível
a partir da experiência pessoal do diretor acerca da ditadura, ampliar essa experiência para
uma coletividade?
Sob o impulso destas questões que encontramos nesses dois filmes argentinos duas
excelentes fontes, não só de compreensão da ditadura, mas a compreensão de que a cada
momento histórico novas releituras vão sendo feitas acerca daquele passado histórico e nos
coloca um desafio de compreendermos o papel do cinema nas suas condições sociais de
produção.
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Notas: 1 Era comum os centros de detenção receberem nomes que remetiam aos deuses, segundo
Calveiro (apud SOUZA, 2007:92): llevaba este nombre porque, según el personal que lo
manejaba era el lugar de los dioses. Os torturadores tinham o controle sobre a vida e morte
dos torturados. Uma das falas do torturador deixa explicito: Nosotros decidimos cuando se
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