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ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO: SABERES DOCENTES, PRODUÇÃO CURRICULAR E SIGNIFICAÇÃO DE QUALIDADE NO PROCESSO DE INSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL NO COLÉGIO PEDRO II. Cristiane Gomes de Oliveira Universidade do Estado do Rio de Janeiro Colégio Pedro II Resumo: Este trabalho traz algumas reflexões em torno das intenções/tensões presentes no processo de instituição da Educação Infantil (EI) em um colégio da rede pública federal do Rio de janeiro, sob a égide da tradição de oferta de educação pública de excelência nas outras etapas da educação básica construída ao longo de 177 anos de existência desta, que é considerada a maior escola pública de Educação Básica da América Latina. O processo de produção curricular para a EI do Colégio Pedro II se constitui o objeto de estudo desta pesquisa, a partir da análise do movimento de busca de uma identidade das práticas e saberes docentes que signifiquem qualidade na oferta da EI pública e gratuita, visando compreender como se dão as relações entre formação docente, escola e sociedade e destas com a criação de sentido do currículo. Para esta análise, problematizo a separação entre texto e discurso assim como a concepção de produção curricular polarizada entre projeto/implantação. Busco aporte teórico em concepções pós-estruturalistas para a identificação do espaço-tempo escolar como espaço de produção de sentidos, e de significação do currículo como processo de enunciação, de produção social e cultural. Parto do pressuposto que a criação de uma proposta pedagógica para a EI em uma escola tradicional que se propõe a oferecer esta etapa da educação básica, em um contexto de transformações legais e na concepção de oferta educacional à infância, ocorre no tensionamento e negociação entre os diferentes saberes, fazeres e experiências docentes e de todo um coletivo de educadores que almejam o fechamento de uma prática identitária. Argumento que a qualidade é um significante vazio cujos sentidos estão sendo criados através de estratégias de articulação em processos de tradução de práticas e concepções de tradição, que são fixações provisórias. Palavras-chave: educação infantil, qualidade no ensino, currículo. 1 - (RE)SIGNIFICANDO A INFÂNCIA E O LUGAR DA EDUCAÇÃO INFANTIL Esta pesquisa traz como objeto de estudo a análise do processo de produção curricular para a oferta da Educação Infantil (EI) em uma tradicional instituição federal de ensino do Rio de Janeiro. A partir da análise dos movimentos de busca de uma proposta pedagógica que construa uma identidade para as práticas e saberes docentes que signifiquem qualidade na oferta da EI pública e gratuita, busca-se compreender Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade EdUECE - Livro 3 01954

ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO: SABERES DOCENTES, … ENTRE A TRADIÇÃO E A... · pesquisas que analisam e colocam em xeque as funções da EI na atualidade, especialmente

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ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO:

SABERES DOCENTES, PRODUÇÃO CURRICULAR E SIGNIFICAÇÃO DE

QUALIDADE NO PROCESSO DE INSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL

NO COLÉGIO PEDRO II.

Cristiane Gomes de Oliveira

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Colégio Pedro II

Resumo:

Este trabalho traz algumas reflexões em torno das intenções/tensões presentes no

processo de instituição da Educação Infantil (EI) em um colégio da rede pública federal

do Rio de janeiro, sob a égide da tradição de oferta de educação pública de excelência nas

outras etapas da educação básica construída ao longo de 177 anos de existência desta, que

é considerada a maior escola pública de Educação Básica da América Latina. O processo

de produção curricular para a EI do Colégio Pedro II se constitui o objeto de estudo desta

pesquisa, a partir da análise do movimento de busca de uma identidade das práticas e

saberes docentes que signifiquem qualidade na oferta da EI pública e gratuita, visando

compreender como se dão as relações entre formação docente, escola e sociedade e destas

com a criação de sentido do currículo. Para esta análise, problematizo a separação entre

texto e discurso assim como a concepção de produção curricular polarizada entre

projeto/implantação. Busco aporte teórico em concepções pós-estruturalistas para a

identificação do espaço-tempo escolar como espaço de produção de sentidos, e de

significação do currículo como processo de enunciação, de produção social e cultural.

Parto do pressuposto que a criação de uma proposta pedagógica para a EI em uma escola

tradicional que se propõe a oferecer esta etapa da educação básica, em um contexto de

transformações legais e na concepção de oferta educacional à infância, ocorre no

tensionamento e negociação entre os diferentes saberes, fazeres e experiências docentes

e de todo um coletivo de educadores que almejam o fechamento de uma prática

identitária. Argumento que a qualidade é um significante vazio cujos sentidos estão sendo

criados através de estratégias de articulação em processos de tradução de práticas e

concepções de tradição, que são fixações provisórias.

Palavras-chave: educação infantil, qualidade no ensino, currículo.

1 - (RE)SIGNIFICANDO A INFÂNCIA E O LUGAR DA EDUCAÇÃO INFANTIL

Esta pesquisa traz como objeto de estudo a análise do processo de produção

curricular para a oferta da Educação Infantil (EI) em uma tradicional instituição federal

de ensino do Rio de Janeiro. A partir da análise dos movimentos de busca de uma proposta

pedagógica que construa uma identidade para as práticas e saberes docentes que

signifiquem qualidade na oferta da EI pública e gratuita, busca-se compreender

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como se dão as relações entre formação docente, escola e sociedade e destas com a criação

de sentido do currículo.

Para além da compreensão da micropolítica na análise da instituição da EI no

Colégio Pedro II, o presente estudo contribui para a análise das relações entre concepções

de infância, práticas educacionais e políticas curriculares que se estabelecem no contexto

atual da EI no Brasil, refletindo sobre indicadores de “qualidade” e aspectos da instituição

analisada que caracterizam a tradição de escola pública de “excelência”, observando os

reflexos da busca de consolidação dessa imagem na garantia das especificidades da EI e

seu impacto na oferta desta primeira etapa da educação à população. Trago para este

estudo a consideração de que a Educação infantil conquista, especialmente nas últimas

três décadas, um espaço de destaque no cenário educacional com especificidades nesta

conquista. Para além disso, a obrigatoriedade na oferta desta etapa da educação (Lei nº

12.796/2013), instituída como a 1ª etapa da educação básica (LDB 9.394/96), promove

não só a ressignificação da infância como também a problematização do significado de

qualidade em instituições que pretendem perpetuar na oferta dessa etapa da educação, o

discurso hegemônico de ensino público de excelência.

A educação como direito garantido à infância é considerada uma conquista, fruto

de longo processo de transformações sociais que tiveram reflexos diretos na revisão das

funções das instituições educativas que atendem a crianças de 0 a 6 anos e nas políticas

educacionais que se referem a essa etapa da educação. Tais transformações têm como

grande marco na política pública a Constituição Federal de 1988, conquistando a partir

de então diversos avanços na política educacional para a Educação Infantil, fomentados

por discussões e ações que promovem a revisão de conceitos e quebra de estigmas

historicamente construídos sobre a infância.

A concepção de infância é considerada mutável nas diferentes épocas e contextos

se caracterizando a partir de cada período histórico para atender à inserção e ao papel da

criança na sociedade. Nos estudos mais recentes e na legislação vigente no Brasil pode-

se considerar que a concepção de infância é alicerçada na história e na cultura. As crianças

são identificadas e devem ser valorizadas como atores sociais que agem, interpretam e

representam sobre o mundo, na relação com seus pares e adultos (e não em oposição a

estes), sendo produtos e produtoras de cultura. Devem ser respeitadas nas suas

singularidade (etnia, classe social, valores) e contradições da sociedade (contexto

histórico, político econômico e cultural), e compreendidas, portanto, não como um

modelo de infância, mas pertencente a culturas de infância.

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A “nova institucionalidade” da infância, assim denominada por estudos

relacionados à oferta da Educação Infantil (CORSINO & NUNES, 2009) a partir da

garantia legal de direito à educação dada às crianças, oferece subsídios para uma série de

pesquisas que analisam e colocam em xeque as funções da EI na atualidade,

especialmente no que se refere à relação entre adultos e crianças e na constituição de

identidades a partir dessa relação, ou seja, ao espaço, ao tempo e a voz ofertados às

crianças nas interações que vivenciam nessas instituições, questionando as práticas

culturais e sociais nelas desenvolvidas e valorizadas e a garantia das especificidades dessa

faixa etária nas práticas educacionais.

A análise do conteúdo dos documentos oficiais referentes à oferta da EI no Brasil

revela que os mesmos representam, indubitavelmente, um ganho sem precedentes na

história em nosso país, fruto de movimentos da sociedade civil e de estudos que

identificam as especificidades e singularidades infantis, reconhecendo as crianças como

atores sociais plenos, que devem ser entendidas no seu tempo histórico, inserida numa

classe social, pertencente a uma etnia, constituída por sua tradição cultural e capaz de

ressignificar elementos dessa cultura por meio de experiências e interações.

Grande parte das pesquisas que trazem esta etapa da educação como objeto de

análise apresenta, entre as abordagens, o avanço em relação à perspectiva educacional

dada às creches e pré-escolas (fugindo ao cunho assistencialista) e implicações dos

avanços legais e das concepções de infâncias na formação e prática docente confrontando

a coexistência de novas e antigas práticas educacionais na EI. A análise do papel da EI e

da qualidade ofertada nas instituições dessa modalidade de ensino na atualidade,

problematizando o hiato e os desafios existentes entre as conquistas propostas na

legislação vigente e efetivação da mesma através da análise das práticas educacionais,

também compõe grande parte desses trabalhos onde são avaliadas questões como

princípios, ações pedagógicas e condições de trabalho consideradas necessárias à

realização de um trabalho em prol da infância, onde a criança é respeitada nas suas

especificidades e são garantidos os direitos correspondentes à formação humanitária de

sujeitos cidadãos.

A análise do papel da EI na atualidade e da qualidade da oferta nas instituições

dessa modalidade de ensino, contam com diretrizes e parâmetros que orientam sobre os

Fins e Objetivos da Educação Infantil (expressos nas Diretrizes Curriculares Nacionais

para a Educação Infantil - Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009) e Indicadores de

Qualidade da Educação Infantil, elaborados pelo Ministério da Educação por meio da

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Secretaria de Educação Básica, em 2009 para orientar a comunidade escolar na avaliação

e na melhoria da qualidade da escola. O planejamento, a multiplicidade de experiências

e linguagens, a formação e condições de trabalhos dos professores e demais profissionais

são apenas alguns dos elementos que fazem parte da realidade escolar considerados

indicadores fundamentais na reflexão sobre a qualidade que podem auxiliar na

identificação de propostas expressas em projetos educacionais para a EI confrontadas

com a prática cotidiana.

No que se refere às implicações dos avanços legais e das concepções de infâncias

na formação e prática docente, deve-se considerar que a função docente na EI, antes

exercida por qualquer profissional que “gostasse de criança” e tivesse “boa vontade”,

após a LDB passou ser de responsabilidade de um professor com formação de nível

superior em curso de licenciatura de graduação plena obtida em universidades e institutos

superiores de educação. A formação em nível médio na modalidade normal é admitida

como formação mínima para o exercício do magistério. Assim a carreira do professor da

EI foi equiparada a carreira do professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental

(LANTER, 2011; NUNES, M.F; CORSINO, PATRÍCIA, KRAMER,S. et AL.,2011).

Se por um lado estas recentes pesquisas indicam crescimento no investimento na

qualificação de profissionais que atuam diretamente com crianças de 0 a 6 anos, por outro,

Corsino & Nunes (2009) identificam práticas pedagógicas e formas de interação entre

pares e entre adultos/crianças que podem ser consideradas negativas e outras positivas

nesse processo de ressignificação da infância, e compartilham exemplos de

ações/relações de professores observadas no cotidiano escolar que contribuem para a

reflexão sobre a necessidade de um olhar crítico e, por vezes, subversivo nas práticas

cotidianas e nas diversas questões gestoras e administrativas que impactam diretamente

nessas ações, em busca de um atendimento de qualidade.

Entre aspectos que implicam inviabilização de garantias de efetivação plena dos

direitos das crianças, estudos de autores como Sarmento, Kuhlmann Jr., Kramer

(NUNES, 2009) apontam, no âmbito escolar, a coexistência de antigas e novas práticas

educacionais e pedagógicas, por vezes antagônicas (de assistencialismo, de perspectivas

compensatórias ou preparatórias para o ensino fundamental) distorcendo concepções de

autonomia e de cidadania, e as condições de trabalho dos professores que atuam nessas

instituições.

As experiências dos envolvidos no processo educacional da infância são,

portanto, consideradas elementos fundamentais para a compreensão dos processos

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institucionais e suas práticas, a fim de que possamos revisitar nossas práticas e

concepções em busca desse lugar de interações, de expressões, de diversidades, de

produção de culturas, de respeito e humanização que a educação infantil deve garantir.

1.1 - O Colégio Pedro II como lócus de investigação.

O Colégio Pedro II, instituição federal de ensino ligada diretamente ao Ministério

da Educação, têm servido como laboratório de propostas curriculares do governo e como

campo de observação para diferentes pesquisas relacionadas às ações político -

pedagógicas nos diferentes segmentos de ensino que oferece, por ocupar lugar de

destaque no cenário da educação pública brasileira. Traz em sua trajetória de 177 anos

de existência, o discurso de “instituição de excelência” por oferecer “educação pública de

qualidade” tendo ao longo da história, personalidades ilustres como parte do corpo

docente e por formar cidadãos que projetam positivamente o nome da instituição, entre

eles, ex-presidentes da república, políticos e artistas renomados (ALÓ,2012; OLIVEIRA;

LOPES;2008 apud LOPES & MACEDO, 2011b,p.267).

A partir da Lei nº 12.677/2012 de 25 de junho de 2012 o Colégio Pedro II passou

a ser reconhecido como "uma instituição federal de ensino, pluricurricular e multicampi,

vinculada ao Ministério da Educação e especializada na oferta de educação básica e de

licenciaturas”, equiparado aos institutos federais para efeito de incidência das

disposições que regem a autonomia, a utilização dos instrumentos de gestão do quadro de

pessoal e de ações de regulação, avaliação e supervisão das instituições e dos cursos de

educação profissional e superior. Consequentemente passou a ter a mesma estrutura e

organização dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. As antigas

Unidades Escolares passaram à condição de campi, ficando a criação de novos campi

condicionada à expedição de autorização específica do Ministério da Educação e a antiga

Direção Geral do Colégio Pedro II passou a ser denominada Reitoria. Desde 2013 o

colégio está sob a gestão do 1º reitor eleito, passando por processos de revisão/adequação

do Projeto Pedagógico Institucional e regimento interno para adequação a estrutura dos

Institutos federais, com a especificidade de oferecer educação básica.

Atualmente o colégio conta com cerca 2.000 servidores (1.250 professores

efetivos) que atendem em torno de 12.000 alunos distribuídos em 14 Campi localizados

em 7 bairros da cidade do Rio de Janeiro, e nos municípios de Duque de Caxias e Niterói.

Com o intuito de colaborar com Políticas Públicas Educacionais brasileiras e

ações do sistema público na oferta de EI de qualidade, e contribuir para o novo cenário

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desta 1ª etapa da Educação Básica (Colégio Pedro II, 2011), no ano de 2010 a então

Diretora-Geral solicitou à Diretoria de Ensino a elaboração de projeto que pudesse

credenciar a Instituição junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para

obtenção de verbas do Projeto PROINFÂNCIA para construir uma Unidade de Educação Infantil

no Campus Realengo. A escolha do Campus deu-se considerando a estrutura física do espaço

disponível, as condições sócio-econômicas da comunidade do entorno e o desafio lançado pelo

então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e o Ministro da Educação Fernando

Haddad, na ocasião da inauguração do campus Realengo, em transformá-lo em um centro de

referência da Educação Básica, oferecendo uma escola de qualidade àquela comunidade carente

de recursos.

Com a conclusão da estrutura física da Unidade de Educação Infantil no final de 2011, os

dois primeiros anos de funcionamento (2012/2013) da EI foram oferecidos à população sob a

direção e administração do corpo técnico-pedagógico dos anos iniciais do Ensino Fundamental

do Campus Realengo 1. O corpo docente foi composto, em sua maioria, por 3 processos seletivos

para professores substitutos no regime de contrato para atuação especificamente na Educação

Infantil, e por alguns profissionais efetivos que declararam interesse em compor aquela equipe.

No ano de 2013 foi realizado o 1º concurso público para compor o corpo docente da E.I.

do Colégio, que teve 544 inscritos concorrendo a 9 vagas, com aproveitamento dos 18 primeiros

classificados. Em 2014 o então Reitor do Colégio designou uma Coordenação Setorial para

garantir a autonomia na gestão da Unidade de Educação Infantil (UEI), através da composição de

uma equipe com a atenção e recursos voltados ao atendimento das especificidades desta 1ª etapa

da Educação Básica.

“Com o objetivo de oferecer um trabalho pedagógico de qualidade, marca que

vem caracterizando o Colégio Pedro II ao longo de sua história, a Unidade de Educação

Infantil ”(COLÉGIO PEDRO II, 2011,p10.) atende atualmente a 168 crianças da faixa

etária de 3 a 5 anos distribuídas em dois turnos. Os alunos ingressam na EI por meio de

Sorteio Público, regido por edital próprio e prosseguem os estudos na instituição até o

Ensino Médio, se atendidas às disposições legais e interesse dos responsáveis.

Atualmente as crianças estão agrupadas por faixa etária compondo, por turno (manhã e

tarde): 1 turma de 3 anos (Grupamento I), 3 turmas de 4 anos com 12 crianças cada

(Grupamento II) e 2 turmas de 5 anos com 18 crianças cada (Grupamento III), todas

atendidas pelo sistema de bidocência. Porém, “considerando que a proposta do trabalho

é potencializar todos os aspectos do desenvolvimento e que é na interação com o outro

que ocorrem as aprendizagens” (COLÉGIO PEDRO II,2011,p.10), a rotina pode ser

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organizada de forma que se estabeleça contato com crianças de níveis de desenvolvimento

diferenciados e/ ou semelhantes com proximidade de interesse.

Com a instituição da Coordenação Setorial, a Unidade de EI conta hoje com um

quadro de cerca 60 funcionários com a atenção voltada às especificidades da EI, entre

corpo docente, equipe técnico-pedagógica e administrativa e pessoal de serviços

terceirizados compondo a comunidade escolar.

Diante de tal cenário, constituem-se as questões da pesquisa: que concepções de

infância, práticas e expectativas professores e sujeitos da atual comunidade escolar do

Colégio Pedro II trazem para esse novo cenário em construção da nova institucionalização

da infância e da instituição da EI no Colégio Pedro II? Partindo do pressuposto que o

currículo “não se implanta, não se aplica, mas se produz de forma contínua e nessa

produção tem efeitos sobre a prática” (FRANGELA,2008,p.2). Como esses efeitos

constituem a significação do que é qualidade na EI?

2 – (DES) ENCONTROS NA PRODUÇÃO CURRICULAR: DIFERENÇAS,

CONTINGÊNCIAS E ENUNCIAÇÕES NA BUSCA DE UMA POLÍTICA

IDENTITÁRIA.

No movimento de olhar os contextos de políticas educacionais e curriculares, em

busca de reflexões que elucidem essa inter-relação do pensar e fazer da/na escola, como

uma relação dialética entre global/ local, ensinar/aprender, oficial/praticado

,escola/professor e professor/aluno (BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.140.) cabe

problematizar a concepção reducionista de política e de currículo como documentos

produzidos em instâncias distantes da escola para serem implementados, identificando,

em contraponto, uma produção escolar que possui características próprias na construção

permanente do currículo.

Na análise da construção do currículo da EI no Colégio Pedro II, busco

argumentos em concepções pós-estruturalistas para avançar na ideia de implantação de

um projeto e de polarização entre texto e discurso, potencializando ações que constituem

o tempo-espaço do cotidiano escolar e as práticas docentes como produções de

significação para o currículo. Nesse sentido, o tempo é contingencial, próprio de uma

produção cultural e social, onde as escolhas vão se justificando em contextos que levam

a fechamentos provisórios, embora não sejam, necessariamente, efêmeros ou fugidios,

na tentativa de significar o lugar e a importância da infância na Educação Básica e da

qualidade ofertada na educação pública, através da produção curricular.

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A experiência vivenciada na participação em 3 bancas de processo seletivo (em

2011, 2012, 2013) e no concurso de professores para instituição da Unidade de Educação

Infantil - UEI, (em 2013) evidenciou a multiplicidade de formação e concepções de

infância apresentadas pelos professores - que coexistem com realidades e representações

diversas diretamente ligadas as formas de vida e papéis atribuídos a criança na sociedade,

na família, na escola e na mídia - associada a multiplicidade de níveis/ trajetórias de

formação de profissionais que atuam (ou pretendem atuar) na EI. Ao fim do processo

seletivo, foi possível identificar através das escritas e narrativas dos candidatos os

desafios que seriam enfrentados na coexistência de posições e noções contraditórias, nos

seus diferentes valores sociais, suas crenças, e as formas de perceber o trabalho na EI,

indicando as tensões que emergem desse processo de (re)construção de práticas

educacionais e políticas curriculares que coadunem com as perspectivas de infância

prevista em lei para “adequação” das instituições educacionais que atendem e virão a

atender as crianças de creches e pré-escolas. Considerando que a perspectiva educacional

e discussão curricular sobre a educação na EI é um investimento recente, este fator

associado às especificidades institucionais constitui uma rede complexa de significações

curriculares e de disputa por uma concepção hegemônica.

2.1- A história começa quando eu entro nela?

Conforme relatado anteriormente, os dois primeiros anos de funcionamento da

UEI no Colégio Pedro II foi composto, em sua maioria, por um corpo docente de

professores em regime de contrato (vigente em 2012 e 2013), e por corpo técnico

pedagógico dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental que não compõe a UEI após a

instituição da Coordenação Setorial para a EI. Contudo, entre os 39 professores que

constituem o atual corpo docente EI, 16 estão em regime de contrato vigente desde 2013,

aos quais foram somados 8 professores efetivos selecionados especificamente para a EI.

Em tempo de reestruturação do Colégio Pedro II e reformulação do Projeto Político

Institucional, e de instituição da EI com movimentos de produção curricular e de um

Projeto Político Pedagógico que dê identidade à EI em consonância com a tradição da

Instituição, esse encontro do corpo docente coma os demais profissionais que passaram a

compor a equipe técnico-pedagógica da Coordenação Setorial caracteriza um encontro

que acentua as diferentes práticas e concepções, configurando um tempo intersticial de

um entre-lugar (BHABHA, 2013) gerador de contíguos híbridos do fazer/pensar a escola,

a EI e a produção curricular. Vale ressaltar que entre os 29 professores da equipe docente

da EI, 10 estão ligados aos departamentos de diferentes áreas de conhecimento (Artes

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Visuais – 2; Informática Educativa – 2; Educação Musical – 2 ; Educação Física – 4), do

colégio Pedro II e foram designados pelos respectivos chefes de departamento para

compor a equipe da EI, possuindo ou não experiência anterior com EI.

Tais diferenças são evidenciadas nas orientações e decisões cotidianas

contingenciais, e nos registros das reuniões entre diferentes componentes da equipe:

coordenação setorial, de coordenação e orientação pedagógica com os professores dos

diferentes grupamentos, nas reuniões de planejamento semanal, nos encontros e

mediações da orientação educacional, nas dúvidas, inquietações e colocações feitas pelos

assistentes de alunos e técnicos sobre as especificidades que interferem na lógica de

funcionamento da EI e de concepções da infância associada ao educar e cuidar. Os

principais tensionamentos observados referem-se: ao objetivo e fins da EI, as experiências

(ou não experiências) e compreensão de formas de procedimento e de instrumentos de

avaliação (portfólios, relatórios), à concepção de trabalhos e construção de currículo por

projetos, às funções e diferenças de concepções acentuadas pela bidocência, à

compreensão e valorização das diferentes áreas de conhecimento como potencialização

da oferta e desenvolvimento de múltiplas linguagens para/com a criança e a consequente

necessidade de desterritorialização e disputa dessas diferentes áreas construídas na

concepção hegemônica de currículo por disciplinas, evidenciadas na distribuição de

tempos de aulas, de quantitativos de professores, dos conhecimentos a serem oferecidos

que conflituam entre as diferentes concepções curriculares para a EI.

Nesse contexto, recorro a pressupostos pós-estruturais para trazer como

argumento a necessidade de compreensão do currículo não como objeto, mas como

enunciação. Como a ação de não anular, aniquilar as diferenças, mas de identificá-las e

pensar o currículo como esse processo de diferir e negociar, processo social e cultural.

Na abordagem teórica de Homi Bhabha (2013), o ato enunciativo é entendido como lugar

de produção de sentido, que assume uma prioridade ética e política em relação ao

enunciado (representado, significado, dado, pronto, representado). As diferenças e as

identidades não estão, portanto, dadas ou previamente definidas, mas vão se constituindo

contingencialmente, nas rasuras das diferenças incômodas. A prática política não é

compreendida nesse contexto como representação de interesses e identidades pré-

constituídas, mas como constituintes das próprias identidades. Por mais forte que sejam

os choques e os embates culturais e os poderes homogeneizantes, estes não são capazes

de apagar totalmente as diferenças culturais. As identidades sempre entram num processo

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de negociação, de “reescritura das identidades, sem que ocorra o apagamento das

fronteiras” (BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.77).

Toda identidade cultural é, portanto, fundamentalmente híbrida. O “espaço

liminar” seria zona de conflito, de interação e assimilação recíproca que todo encontro

entre culturas implica, e como estas se constroem na interação com outras, a identidade

cultural será sempre um conceito múltilplo e provisório, um conglomerado de diferenças

(BHABHA,2011, p.9). Toda enunciação pressupõe uma diferença, mas pressupõe

também determinados acordos em torno dessa significação e práticas de regulação, de

cerceamento da diferença sobre a ideia do que vem a ser uma boa escola.

3 - ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO CULTURAL: O ENTRE-LUGAR DA

EDUCAÇÃO INFANTIL NA SIGNIFICAÇÃO DE EDUCAÇÃO PÚBLICA DE

QUALIDADE.

Na busca de construção de uma produção identitária através uma prática que

pretende ser uníssona e apresente significações para a qualidade na oferta da EI, são

identificados movimentos de produção um projeto político institucional de um currículo

para a EI que transitam entre a tradição preservada pelo Colégio Pedro II de escola de

excelência na oferta de educação pública e de produção curricular, e traduções culturais

que significam a produção de um currículo de qualidade para a 1ª etapa da educação

básica. Nesse processo são observadas ambivalências em constantes negociações em

busca de equivalências que levem a fechamentos de um currículo.

A compreensão da concepção de tradução na perspectiva discursiva é relevante

para ressignificação do currículo como fluxo enunciativo de fechamentos de sentidos

provisórios, na disputa de poder por sentidos que se tornem hegemônicos. A concepção

discursiva de tradução aqui utilizada é a concepção derridiana, que defende a ideia de

tradução como atos de produção de sentido, de discurso, de prática de subjetivação,

pautada na ideia de iteração, distanciando-se da noção de reprodução essencialista, de

manutenção de uma tradição. A tradição, sempre que traduzida já não é a mesma. É

performática. É uma tentativa de fixação que é constituída de deslocamentos, envolve

outras contingências. Traduzir é negociar, compartilhar, transitar entre conceitos e ocupar

espaços de ambivalência. Trazendo para o campo do currículo, a tradução é uma

experiência de abertura ao outro. É nessa negociação e tradução que podemos caracterizar

o currículo como entre-lugar, espaços impossíveis de demarcações pelo caráter

constituído por intertícisios, diferenças, negociações e multiplicidade de diálogos

(BHABHA,1998 apud BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.77 ).

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É com base nesses pressupostos, de identificação do currículo como enunciação e

tradução cultural, que identifico nesta pesquisa a construção do currículo da EI como

entre-lugar na busca de um sentido de qualidade na oferta da EI, constituindo-se como o

“condutor incisivo de tradução e da negociação entre culturas que se legitimam de forma

diferenciada”. (BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.75 ).

Na concepção de LOPES, se o currículo uma é produção cultural, um conjunto de

ações em processo de significação, de enunciação como produção de sentido constante

pelo ato de diferir pressupondo acordos, sentidos e significados com fixações provisórias

na disputa pela significação da qualidade, essa qualidade é um significante vazio. A

qualidade é, portanto, uma questão de currículo “caso consideremos essa qualidade e esse

currículo como projetos a serem construídos, sem certezas, sem uma resposta única

possível, pois são múltiplos os contextos que produzem sentidos pra essa qualidade.”

(2012,p.26 e 27).

A ausência de certeza não pode significar, no entanto, paralisia. Há que se

considerar a certeza de equivalências provisórias e precárias, que fixadas entre as

diferenças são temporárias e não podem virar obrigatoriedade, como horizonte fixo na

produção curricular, reconhecendo a fluidez que permite as mudanças. É sob esse aspecto

que se compreende que a produção curricular nos diferentes contextos e contingências,

em espaços e tempos deslizantes onde o currículo não é objetificado ou implementado

pela/na escola. Mas é ele mesmo linguagem e cultura, enunciação, uma luta política por

sua própria significação (LOPES & MACEDOa, 2011).

Se por um lado a inclusão total de ideias, demandas e equivalências é um ideal

impossível de realizar, por outro, é a não realização da totalidade que garante a política.

(BUTLER & LACLAU, 2013). O fato de ser um projeto impossível não significa,

portanto, que não seja um projeto pelo qual não trabalhemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALÓ, Leda Cristina de F.M. P. A implantação da Educação Infantil no Colégio Pedro II:

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