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ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO:
SABERES DOCENTES, PRODUÇÃO CURRICULAR E SIGNIFICAÇÃO DE
QUALIDADE NO PROCESSO DE INSTITUIÇÃO DA EDUCAÇÃO INFANTIL
NO COLÉGIO PEDRO II.
Cristiane Gomes de Oliveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Colégio Pedro II
Resumo:
Este trabalho traz algumas reflexões em torno das intenções/tensões presentes no
processo de instituição da Educação Infantil (EI) em um colégio da rede pública federal
do Rio de janeiro, sob a égide da tradição de oferta de educação pública de excelência nas
outras etapas da educação básica construída ao longo de 177 anos de existência desta, que
é considerada a maior escola pública de Educação Básica da América Latina. O processo
de produção curricular para a EI do Colégio Pedro II se constitui o objeto de estudo desta
pesquisa, a partir da análise do movimento de busca de uma identidade das práticas e
saberes docentes que signifiquem qualidade na oferta da EI pública e gratuita, visando
compreender como se dão as relações entre formação docente, escola e sociedade e destas
com a criação de sentido do currículo. Para esta análise, problematizo a separação entre
texto e discurso assim como a concepção de produção curricular polarizada entre
projeto/implantação. Busco aporte teórico em concepções pós-estruturalistas para a
identificação do espaço-tempo escolar como espaço de produção de sentidos, e de
significação do currículo como processo de enunciação, de produção social e cultural.
Parto do pressuposto que a criação de uma proposta pedagógica para a EI em uma escola
tradicional que se propõe a oferecer esta etapa da educação básica, em um contexto de
transformações legais e na concepção de oferta educacional à infância, ocorre no
tensionamento e negociação entre os diferentes saberes, fazeres e experiências docentes
e de todo um coletivo de educadores que almejam o fechamento de uma prática
identitária. Argumento que a qualidade é um significante vazio cujos sentidos estão sendo
criados através de estratégias de articulação em processos de tradução de práticas e
concepções de tradição, que são fixações provisórias.
Palavras-chave: educação infantil, qualidade no ensino, currículo.
1 - (RE)SIGNIFICANDO A INFÂNCIA E O LUGAR DA EDUCAÇÃO INFANTIL
Esta pesquisa traz como objeto de estudo a análise do processo de produção
curricular para a oferta da Educação Infantil (EI) em uma tradicional instituição federal
de ensino do Rio de Janeiro. A partir da análise dos movimentos de busca de uma proposta
pedagógica que construa uma identidade para as práticas e saberes docentes que
signifiquem qualidade na oferta da EI pública e gratuita, busca-se compreender
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301954
como se dão as relações entre formação docente, escola e sociedade e destas com a criação
de sentido do currículo.
Para além da compreensão da micropolítica na análise da instituição da EI no
Colégio Pedro II, o presente estudo contribui para a análise das relações entre concepções
de infância, práticas educacionais e políticas curriculares que se estabelecem no contexto
atual da EI no Brasil, refletindo sobre indicadores de “qualidade” e aspectos da instituição
analisada que caracterizam a tradição de escola pública de “excelência”, observando os
reflexos da busca de consolidação dessa imagem na garantia das especificidades da EI e
seu impacto na oferta desta primeira etapa da educação à população. Trago para este
estudo a consideração de que a Educação infantil conquista, especialmente nas últimas
três décadas, um espaço de destaque no cenário educacional com especificidades nesta
conquista. Para além disso, a obrigatoriedade na oferta desta etapa da educação (Lei nº
12.796/2013), instituída como a 1ª etapa da educação básica (LDB 9.394/96), promove
não só a ressignificação da infância como também a problematização do significado de
qualidade em instituições que pretendem perpetuar na oferta dessa etapa da educação, o
discurso hegemônico de ensino público de excelência.
A educação como direito garantido à infância é considerada uma conquista, fruto
de longo processo de transformações sociais que tiveram reflexos diretos na revisão das
funções das instituições educativas que atendem a crianças de 0 a 6 anos e nas políticas
educacionais que se referem a essa etapa da educação. Tais transformações têm como
grande marco na política pública a Constituição Federal de 1988, conquistando a partir
de então diversos avanços na política educacional para a Educação Infantil, fomentados
por discussões e ações que promovem a revisão de conceitos e quebra de estigmas
historicamente construídos sobre a infância.
A concepção de infância é considerada mutável nas diferentes épocas e contextos
se caracterizando a partir de cada período histórico para atender à inserção e ao papel da
criança na sociedade. Nos estudos mais recentes e na legislação vigente no Brasil pode-
se considerar que a concepção de infância é alicerçada na história e na cultura. As crianças
são identificadas e devem ser valorizadas como atores sociais que agem, interpretam e
representam sobre o mundo, na relação com seus pares e adultos (e não em oposição a
estes), sendo produtos e produtoras de cultura. Devem ser respeitadas nas suas
singularidade (etnia, classe social, valores) e contradições da sociedade (contexto
histórico, político econômico e cultural), e compreendidas, portanto, não como um
modelo de infância, mas pertencente a culturas de infância.
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301955
A “nova institucionalidade” da infância, assim denominada por estudos
relacionados à oferta da Educação Infantil (CORSINO & NUNES, 2009) a partir da
garantia legal de direito à educação dada às crianças, oferece subsídios para uma série de
pesquisas que analisam e colocam em xeque as funções da EI na atualidade,
especialmente no que se refere à relação entre adultos e crianças e na constituição de
identidades a partir dessa relação, ou seja, ao espaço, ao tempo e a voz ofertados às
crianças nas interações que vivenciam nessas instituições, questionando as práticas
culturais e sociais nelas desenvolvidas e valorizadas e a garantia das especificidades dessa
faixa etária nas práticas educacionais.
A análise do conteúdo dos documentos oficiais referentes à oferta da EI no Brasil
revela que os mesmos representam, indubitavelmente, um ganho sem precedentes na
história em nosso país, fruto de movimentos da sociedade civil e de estudos que
identificam as especificidades e singularidades infantis, reconhecendo as crianças como
atores sociais plenos, que devem ser entendidas no seu tempo histórico, inserida numa
classe social, pertencente a uma etnia, constituída por sua tradição cultural e capaz de
ressignificar elementos dessa cultura por meio de experiências e interações.
Grande parte das pesquisas que trazem esta etapa da educação como objeto de
análise apresenta, entre as abordagens, o avanço em relação à perspectiva educacional
dada às creches e pré-escolas (fugindo ao cunho assistencialista) e implicações dos
avanços legais e das concepções de infâncias na formação e prática docente confrontando
a coexistência de novas e antigas práticas educacionais na EI. A análise do papel da EI e
da qualidade ofertada nas instituições dessa modalidade de ensino na atualidade,
problematizando o hiato e os desafios existentes entre as conquistas propostas na
legislação vigente e efetivação da mesma através da análise das práticas educacionais,
também compõe grande parte desses trabalhos onde são avaliadas questões como
princípios, ações pedagógicas e condições de trabalho consideradas necessárias à
realização de um trabalho em prol da infância, onde a criança é respeitada nas suas
especificidades e são garantidos os direitos correspondentes à formação humanitária de
sujeitos cidadãos.
A análise do papel da EI na atualidade e da qualidade da oferta nas instituições
dessa modalidade de ensino, contam com diretrizes e parâmetros que orientam sobre os
Fins e Objetivos da Educação Infantil (expressos nas Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação Infantil - Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009) e Indicadores de
Qualidade da Educação Infantil, elaborados pelo Ministério da Educação por meio da
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EdUECE - Livro 301956
Secretaria de Educação Básica, em 2009 para orientar a comunidade escolar na avaliação
e na melhoria da qualidade da escola. O planejamento, a multiplicidade de experiências
e linguagens, a formação e condições de trabalhos dos professores e demais profissionais
são apenas alguns dos elementos que fazem parte da realidade escolar considerados
indicadores fundamentais na reflexão sobre a qualidade que podem auxiliar na
identificação de propostas expressas em projetos educacionais para a EI confrontadas
com a prática cotidiana.
No que se refere às implicações dos avanços legais e das concepções de infâncias
na formação e prática docente, deve-se considerar que a função docente na EI, antes
exercida por qualquer profissional que “gostasse de criança” e tivesse “boa vontade”,
após a LDB passou ser de responsabilidade de um professor com formação de nível
superior em curso de licenciatura de graduação plena obtida em universidades e institutos
superiores de educação. A formação em nível médio na modalidade normal é admitida
como formação mínima para o exercício do magistério. Assim a carreira do professor da
EI foi equiparada a carreira do professor dos anos iniciais do Ensino Fundamental
(LANTER, 2011; NUNES, M.F; CORSINO, PATRÍCIA, KRAMER,S. et AL.,2011).
Se por um lado estas recentes pesquisas indicam crescimento no investimento na
qualificação de profissionais que atuam diretamente com crianças de 0 a 6 anos, por outro,
Corsino & Nunes (2009) identificam práticas pedagógicas e formas de interação entre
pares e entre adultos/crianças que podem ser consideradas negativas e outras positivas
nesse processo de ressignificação da infância, e compartilham exemplos de
ações/relações de professores observadas no cotidiano escolar que contribuem para a
reflexão sobre a necessidade de um olhar crítico e, por vezes, subversivo nas práticas
cotidianas e nas diversas questões gestoras e administrativas que impactam diretamente
nessas ações, em busca de um atendimento de qualidade.
Entre aspectos que implicam inviabilização de garantias de efetivação plena dos
direitos das crianças, estudos de autores como Sarmento, Kuhlmann Jr., Kramer
(NUNES, 2009) apontam, no âmbito escolar, a coexistência de antigas e novas práticas
educacionais e pedagógicas, por vezes antagônicas (de assistencialismo, de perspectivas
compensatórias ou preparatórias para o ensino fundamental) distorcendo concepções de
autonomia e de cidadania, e as condições de trabalho dos professores que atuam nessas
instituições.
As experiências dos envolvidos no processo educacional da infância são,
portanto, consideradas elementos fundamentais para a compreensão dos processos
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EdUECE - Livro 301957
institucionais e suas práticas, a fim de que possamos revisitar nossas práticas e
concepções em busca desse lugar de interações, de expressões, de diversidades, de
produção de culturas, de respeito e humanização que a educação infantil deve garantir.
1.1 - O Colégio Pedro II como lócus de investigação.
O Colégio Pedro II, instituição federal de ensino ligada diretamente ao Ministério
da Educação, têm servido como laboratório de propostas curriculares do governo e como
campo de observação para diferentes pesquisas relacionadas às ações político -
pedagógicas nos diferentes segmentos de ensino que oferece, por ocupar lugar de
destaque no cenário da educação pública brasileira. Traz em sua trajetória de 177 anos
de existência, o discurso de “instituição de excelência” por oferecer “educação pública de
qualidade” tendo ao longo da história, personalidades ilustres como parte do corpo
docente e por formar cidadãos que projetam positivamente o nome da instituição, entre
eles, ex-presidentes da república, políticos e artistas renomados (ALÓ,2012; OLIVEIRA;
LOPES;2008 apud LOPES & MACEDO, 2011b,p.267).
A partir da Lei nº 12.677/2012 de 25 de junho de 2012 o Colégio Pedro II passou
a ser reconhecido como "uma instituição federal de ensino, pluricurricular e multicampi,
vinculada ao Ministério da Educação e especializada na oferta de educação básica e de
licenciaturas”, equiparado aos institutos federais para efeito de incidência das
disposições que regem a autonomia, a utilização dos instrumentos de gestão do quadro de
pessoal e de ações de regulação, avaliação e supervisão das instituições e dos cursos de
educação profissional e superior. Consequentemente passou a ter a mesma estrutura e
organização dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. As antigas
Unidades Escolares passaram à condição de campi, ficando a criação de novos campi
condicionada à expedição de autorização específica do Ministério da Educação e a antiga
Direção Geral do Colégio Pedro II passou a ser denominada Reitoria. Desde 2013 o
colégio está sob a gestão do 1º reitor eleito, passando por processos de revisão/adequação
do Projeto Pedagógico Institucional e regimento interno para adequação a estrutura dos
Institutos federais, com a especificidade de oferecer educação básica.
Atualmente o colégio conta com cerca 2.000 servidores (1.250 professores
efetivos) que atendem em torno de 12.000 alunos distribuídos em 14 Campi localizados
em 7 bairros da cidade do Rio de Janeiro, e nos municípios de Duque de Caxias e Niterói.
Com o intuito de colaborar com Políticas Públicas Educacionais brasileiras e
ações do sistema público na oferta de EI de qualidade, e contribuir para o novo cenário
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EdUECE - Livro 301958
desta 1ª etapa da Educação Básica (Colégio Pedro II, 2011), no ano de 2010 a então
Diretora-Geral solicitou à Diretoria de Ensino a elaboração de projeto que pudesse
credenciar a Instituição junto ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) para
obtenção de verbas do Projeto PROINFÂNCIA para construir uma Unidade de Educação Infantil
no Campus Realengo. A escolha do Campus deu-se considerando a estrutura física do espaço
disponível, as condições sócio-econômicas da comunidade do entorno e o desafio lançado pelo
então Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e o Ministro da Educação Fernando
Haddad, na ocasião da inauguração do campus Realengo, em transformá-lo em um centro de
referência da Educação Básica, oferecendo uma escola de qualidade àquela comunidade carente
de recursos.
Com a conclusão da estrutura física da Unidade de Educação Infantil no final de 2011, os
dois primeiros anos de funcionamento (2012/2013) da EI foram oferecidos à população sob a
direção e administração do corpo técnico-pedagógico dos anos iniciais do Ensino Fundamental
do Campus Realengo 1. O corpo docente foi composto, em sua maioria, por 3 processos seletivos
para professores substitutos no regime de contrato para atuação especificamente na Educação
Infantil, e por alguns profissionais efetivos que declararam interesse em compor aquela equipe.
No ano de 2013 foi realizado o 1º concurso público para compor o corpo docente da E.I.
do Colégio, que teve 544 inscritos concorrendo a 9 vagas, com aproveitamento dos 18 primeiros
classificados. Em 2014 o então Reitor do Colégio designou uma Coordenação Setorial para
garantir a autonomia na gestão da Unidade de Educação Infantil (UEI), através da composição de
uma equipe com a atenção e recursos voltados ao atendimento das especificidades desta 1ª etapa
da Educação Básica.
“Com o objetivo de oferecer um trabalho pedagógico de qualidade, marca que
vem caracterizando o Colégio Pedro II ao longo de sua história, a Unidade de Educação
Infantil ”(COLÉGIO PEDRO II, 2011,p10.) atende atualmente a 168 crianças da faixa
etária de 3 a 5 anos distribuídas em dois turnos. Os alunos ingressam na EI por meio de
Sorteio Público, regido por edital próprio e prosseguem os estudos na instituição até o
Ensino Médio, se atendidas às disposições legais e interesse dos responsáveis.
Atualmente as crianças estão agrupadas por faixa etária compondo, por turno (manhã e
tarde): 1 turma de 3 anos (Grupamento I), 3 turmas de 4 anos com 12 crianças cada
(Grupamento II) e 2 turmas de 5 anos com 18 crianças cada (Grupamento III), todas
atendidas pelo sistema de bidocência. Porém, “considerando que a proposta do trabalho
é potencializar todos os aspectos do desenvolvimento e que é na interação com o outro
que ocorrem as aprendizagens” (COLÉGIO PEDRO II,2011,p.10), a rotina pode ser
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EdUECE - Livro 301959
organizada de forma que se estabeleça contato com crianças de níveis de desenvolvimento
diferenciados e/ ou semelhantes com proximidade de interesse.
Com a instituição da Coordenação Setorial, a Unidade de EI conta hoje com um
quadro de cerca 60 funcionários com a atenção voltada às especificidades da EI, entre
corpo docente, equipe técnico-pedagógica e administrativa e pessoal de serviços
terceirizados compondo a comunidade escolar.
Diante de tal cenário, constituem-se as questões da pesquisa: que concepções de
infância, práticas e expectativas professores e sujeitos da atual comunidade escolar do
Colégio Pedro II trazem para esse novo cenário em construção da nova institucionalização
da infância e da instituição da EI no Colégio Pedro II? Partindo do pressuposto que o
currículo “não se implanta, não se aplica, mas se produz de forma contínua e nessa
produção tem efeitos sobre a prática” (FRANGELA,2008,p.2). Como esses efeitos
constituem a significação do que é qualidade na EI?
2 – (DES) ENCONTROS NA PRODUÇÃO CURRICULAR: DIFERENÇAS,
CONTINGÊNCIAS E ENUNCIAÇÕES NA BUSCA DE UMA POLÍTICA
IDENTITÁRIA.
No movimento de olhar os contextos de políticas educacionais e curriculares, em
busca de reflexões que elucidem essa inter-relação do pensar e fazer da/na escola, como
uma relação dialética entre global/ local, ensinar/aprender, oficial/praticado
,escola/professor e professor/aluno (BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.140.) cabe
problematizar a concepção reducionista de política e de currículo como documentos
produzidos em instâncias distantes da escola para serem implementados, identificando,
em contraponto, uma produção escolar que possui características próprias na construção
permanente do currículo.
Na análise da construção do currículo da EI no Colégio Pedro II, busco
argumentos em concepções pós-estruturalistas para avançar na ideia de implantação de
um projeto e de polarização entre texto e discurso, potencializando ações que constituem
o tempo-espaço do cotidiano escolar e as práticas docentes como produções de
significação para o currículo. Nesse sentido, o tempo é contingencial, próprio de uma
produção cultural e social, onde as escolhas vão se justificando em contextos que levam
a fechamentos provisórios, embora não sejam, necessariamente, efêmeros ou fugidios,
na tentativa de significar o lugar e a importância da infância na Educação Básica e da
qualidade ofertada na educação pública, através da produção curricular.
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A experiência vivenciada na participação em 3 bancas de processo seletivo (em
2011, 2012, 2013) e no concurso de professores para instituição da Unidade de Educação
Infantil - UEI, (em 2013) evidenciou a multiplicidade de formação e concepções de
infância apresentadas pelos professores - que coexistem com realidades e representações
diversas diretamente ligadas as formas de vida e papéis atribuídos a criança na sociedade,
na família, na escola e na mídia - associada a multiplicidade de níveis/ trajetórias de
formação de profissionais que atuam (ou pretendem atuar) na EI. Ao fim do processo
seletivo, foi possível identificar através das escritas e narrativas dos candidatos os
desafios que seriam enfrentados na coexistência de posições e noções contraditórias, nos
seus diferentes valores sociais, suas crenças, e as formas de perceber o trabalho na EI,
indicando as tensões que emergem desse processo de (re)construção de práticas
educacionais e políticas curriculares que coadunem com as perspectivas de infância
prevista em lei para “adequação” das instituições educacionais que atendem e virão a
atender as crianças de creches e pré-escolas. Considerando que a perspectiva educacional
e discussão curricular sobre a educação na EI é um investimento recente, este fator
associado às especificidades institucionais constitui uma rede complexa de significações
curriculares e de disputa por uma concepção hegemônica.
2.1- A história começa quando eu entro nela?
Conforme relatado anteriormente, os dois primeiros anos de funcionamento da
UEI no Colégio Pedro II foi composto, em sua maioria, por um corpo docente de
professores em regime de contrato (vigente em 2012 e 2013), e por corpo técnico
pedagógico dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental que não compõe a UEI após a
instituição da Coordenação Setorial para a EI. Contudo, entre os 39 professores que
constituem o atual corpo docente EI, 16 estão em regime de contrato vigente desde 2013,
aos quais foram somados 8 professores efetivos selecionados especificamente para a EI.
Em tempo de reestruturação do Colégio Pedro II e reformulação do Projeto Político
Institucional, e de instituição da EI com movimentos de produção curricular e de um
Projeto Político Pedagógico que dê identidade à EI em consonância com a tradição da
Instituição, esse encontro do corpo docente coma os demais profissionais que passaram a
compor a equipe técnico-pedagógica da Coordenação Setorial caracteriza um encontro
que acentua as diferentes práticas e concepções, configurando um tempo intersticial de
um entre-lugar (BHABHA, 2013) gerador de contíguos híbridos do fazer/pensar a escola,
a EI e a produção curricular. Vale ressaltar que entre os 29 professores da equipe docente
da EI, 10 estão ligados aos departamentos de diferentes áreas de conhecimento (Artes
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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Visuais – 2; Informática Educativa – 2; Educação Musical – 2 ; Educação Física – 4), do
colégio Pedro II e foram designados pelos respectivos chefes de departamento para
compor a equipe da EI, possuindo ou não experiência anterior com EI.
Tais diferenças são evidenciadas nas orientações e decisões cotidianas
contingenciais, e nos registros das reuniões entre diferentes componentes da equipe:
coordenação setorial, de coordenação e orientação pedagógica com os professores dos
diferentes grupamentos, nas reuniões de planejamento semanal, nos encontros e
mediações da orientação educacional, nas dúvidas, inquietações e colocações feitas pelos
assistentes de alunos e técnicos sobre as especificidades que interferem na lógica de
funcionamento da EI e de concepções da infância associada ao educar e cuidar. Os
principais tensionamentos observados referem-se: ao objetivo e fins da EI, as experiências
(ou não experiências) e compreensão de formas de procedimento e de instrumentos de
avaliação (portfólios, relatórios), à concepção de trabalhos e construção de currículo por
projetos, às funções e diferenças de concepções acentuadas pela bidocência, à
compreensão e valorização das diferentes áreas de conhecimento como potencialização
da oferta e desenvolvimento de múltiplas linguagens para/com a criança e a consequente
necessidade de desterritorialização e disputa dessas diferentes áreas construídas na
concepção hegemônica de currículo por disciplinas, evidenciadas na distribuição de
tempos de aulas, de quantitativos de professores, dos conhecimentos a serem oferecidos
que conflituam entre as diferentes concepções curriculares para a EI.
Nesse contexto, recorro a pressupostos pós-estruturais para trazer como
argumento a necessidade de compreensão do currículo não como objeto, mas como
enunciação. Como a ação de não anular, aniquilar as diferenças, mas de identificá-las e
pensar o currículo como esse processo de diferir e negociar, processo social e cultural.
Na abordagem teórica de Homi Bhabha (2013), o ato enunciativo é entendido como lugar
de produção de sentido, que assume uma prioridade ética e política em relação ao
enunciado (representado, significado, dado, pronto, representado). As diferenças e as
identidades não estão, portanto, dadas ou previamente definidas, mas vão se constituindo
contingencialmente, nas rasuras das diferenças incômodas. A prática política não é
compreendida nesse contexto como representação de interesses e identidades pré-
constituídas, mas como constituintes das próprias identidades. Por mais forte que sejam
os choques e os embates culturais e os poderes homogeneizantes, estes não são capazes
de apagar totalmente as diferenças culturais. As identidades sempre entram num processo
Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
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de negociação, de “reescritura das identidades, sem que ocorra o apagamento das
fronteiras” (BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.77).
Toda identidade cultural é, portanto, fundamentalmente híbrida. O “espaço
liminar” seria zona de conflito, de interação e assimilação recíproca que todo encontro
entre culturas implica, e como estas se constroem na interação com outras, a identidade
cultural será sempre um conceito múltilplo e provisório, um conglomerado de diferenças
(BHABHA,2011, p.9). Toda enunciação pressupõe uma diferença, mas pressupõe
também determinados acordos em torno dessa significação e práticas de regulação, de
cerceamento da diferença sobre a ideia do que vem a ser uma boa escola.
3 - ENTRE A TRADIÇÃO E A TRADUÇÃO CULTURAL: O ENTRE-LUGAR DA
EDUCAÇÃO INFANTIL NA SIGNIFICAÇÃO DE EDUCAÇÃO PÚBLICA DE
QUALIDADE.
Na busca de construção de uma produção identitária através uma prática que
pretende ser uníssona e apresente significações para a qualidade na oferta da EI, são
identificados movimentos de produção um projeto político institucional de um currículo
para a EI que transitam entre a tradição preservada pelo Colégio Pedro II de escola de
excelência na oferta de educação pública e de produção curricular, e traduções culturais
que significam a produção de um currículo de qualidade para a 1ª etapa da educação
básica. Nesse processo são observadas ambivalências em constantes negociações em
busca de equivalências que levem a fechamentos de um currículo.
A compreensão da concepção de tradução na perspectiva discursiva é relevante
para ressignificação do currículo como fluxo enunciativo de fechamentos de sentidos
provisórios, na disputa de poder por sentidos que se tornem hegemônicos. A concepção
discursiva de tradução aqui utilizada é a concepção derridiana, que defende a ideia de
tradução como atos de produção de sentido, de discurso, de prática de subjetivação,
pautada na ideia de iteração, distanciando-se da noção de reprodução essencialista, de
manutenção de uma tradição. A tradição, sempre que traduzida já não é a mesma. É
performática. É uma tentativa de fixação que é constituída de deslocamentos, envolve
outras contingências. Traduzir é negociar, compartilhar, transitar entre conceitos e ocupar
espaços de ambivalência. Trazendo para o campo do currículo, a tradução é uma
experiência de abertura ao outro. É nessa negociação e tradução que podemos caracterizar
o currículo como entre-lugar, espaços impossíveis de demarcações pelo caráter
constituído por intertícisios, diferenças, negociações e multiplicidade de diálogos
(BHABHA,1998 apud BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.77 ).
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É com base nesses pressupostos, de identificação do currículo como enunciação e
tradução cultural, que identifico nesta pesquisa a construção do currículo da EI como
entre-lugar na busca de um sentido de qualidade na oferta da EI, constituindo-se como o
“condutor incisivo de tradução e da negociação entre culturas que se legitimam de forma
diferenciada”. (BARREIROS & FRANGELLA ,2007,p.75 ).
Na concepção de LOPES, se o currículo uma é produção cultural, um conjunto de
ações em processo de significação, de enunciação como produção de sentido constante
pelo ato de diferir pressupondo acordos, sentidos e significados com fixações provisórias
na disputa pela significação da qualidade, essa qualidade é um significante vazio. A
qualidade é, portanto, uma questão de currículo “caso consideremos essa qualidade e esse
currículo como projetos a serem construídos, sem certezas, sem uma resposta única
possível, pois são múltiplos os contextos que produzem sentidos pra essa qualidade.”
(2012,p.26 e 27).
A ausência de certeza não pode significar, no entanto, paralisia. Há que se
considerar a certeza de equivalências provisórias e precárias, que fixadas entre as
diferenças são temporárias e não podem virar obrigatoriedade, como horizonte fixo na
produção curricular, reconhecendo a fluidez que permite as mudanças. É sob esse aspecto
que se compreende que a produção curricular nos diferentes contextos e contingências,
em espaços e tempos deslizantes onde o currículo não é objetificado ou implementado
pela/na escola. Mas é ele mesmo linguagem e cultura, enunciação, uma luta política por
sua própria significação (LOPES & MACEDOa, 2011).
Se por um lado a inclusão total de ideias, demandas e equivalências é um ideal
impossível de realizar, por outro, é a não realização da totalidade que garante a política.
(BUTLER & LACLAU, 2013). O fato de ser um projeto impossível não significa,
portanto, que não seja um projeto pelo qual não trabalhemos.
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Didática e Prática de Ensino na relação com a Sociedade
EdUECE - Livro 301965