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ENTRE BIG CHOPS E BLACK POWERS: IDENTIDADE, RAÇA E
SUBJETIVIDADE EM/NA “TRANSIÇÃO”
Larisse Louise Pontes Gomes*
RESUMO
O presente artigo1 busca discutir como o processo de “transição capilar”-
dinâmica intensa, principalmente, no ambiente on-line2 - está relacionado com uma
possível construção de identidades vinculada a uma estética negra. A subjetividade da
pesquisadora servirá como via de um olhar, estrategicamente, duplo: de dentro – de
quem já “experienciou” o processo abordado; e de fora - de quem agora se esforça para
entendê-lo em seus múltiplos significados. A pesquisa concentrou-se na trajetória de
mulheres de Maceió-AL provenientes de um grupo virtual. Fez-se uso também de
experiências de sujeitos de grupos virtuais de outros estados, caracterizando uma
maneira coletiva que esse processo se organiza e uma transcendência de fronteiras em
termos geográficos.
Palavras-chave: Transição Capilar; Identidade; Raça; Estética negra; Cabelo.
*Bacharel em Ciências Sociais e especialista em Antropologia – Universidade Federal de Alagoas
(UFAL). Mestranda em Antropologia Social – Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e
pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos de Identidades e Relações Interétnicas – NUER/UFSC.
E-mail: [email protected]
1 Este artigo,- sob orientação do Prof. Ms. Gilson José Rodrigues Junior – foi submetido e aprovado
como trabalho de conclusão do curso de Especialização em Antropologia pela Universidade Federal de
Alagoas e Museu Théo Brandão de Antropologia e Folclore em 2014.
2 O ciberespaço é um importante canal de acesso para chegar às entrevistadas, onde ocorreu o primeiro
insight sobre o tema e é o ambiente onde muitas pessoas se organizam e buscam ajuda/apoio para iniciar
o processo de transição.
2
INTRODUÇÃO
Com tudo na cabeça: Território livre, ancestral e contemporâneo, dinâmico e
tradicional é a cabeça. Lugar que revela o homem, seu grupo social, sua
história, a cabeça define a identidade e traduz o sentimento de pertencimento
a um grupo. Pentear e mostrar os cabelos é comunicar, receber
reconhecimento da cultura, manifestar beleza e padrão estético. (LODY,
2004, p. 59)
O cabelo é uma das partes do corpo que mais se encontra exposta em
determinadas sociedades da cultura ocidental, a exemplo da Brasileira. Sem dúvida é
um elemento que carrega uma forte carga identitária e preocupação estética. Como tema
de pesquisa, já tratado por pesquisadores brasileiros como Nilma Lino Gomes (2008),
Raul Lody (2004) e Ângela Figueiredo 3(1994) - só para citar alguns exemplos -, não se
esgotou. Ora como símbolo de identidade, ora como símbolo de raça4, tal símbolo
reemerge diante da lente das novas tecnologias, como as redes sociais e de movimentos5
como o de “transição capilar”. Por isso, o cabelo se revela como elemento/instrumento
social, cultural e político capaz de alterar, influenciar e construir identidades. Portanto, o
cabelo será analisado a partir do contexto do ciberespaço e das trajetórias de
interlocutoras que vivenciaram ou ainda vivenciam o processo de transição capilar em
Maceió-AL, principalmente.
A transição capilar é um processo assim denominado por pessoas que decidem
parar de fazer determinados procedimentos químicos, tais como: relaxamentos,
alisamentos e/ou escovas “inteligentes” com o objetivo de modificar o formato do fio de
3 Não consegui ter acesso à obra até o momento. A obra: “Beleza pura: símbolos e economia ao redor do
cabelo do negro” foi resultado da conclusão de curso de graduação da autora em Ciências Sociais,
defendida na Universidade Federal da Bahia em 1994 e orientada por Jocélio Teles Santos. Sem dúvida o
estudo é um dos pioneiros sobre cabelo na perspectiva das relações raciais no Brasil.
4 Ainda que seja problemática a utilização do termo raça, pois traz toda uma discussão que se limitava a
uma perspectiva biológica, é o termo que melhor compreende a realidade desse universo de pesquisa,
ainda que seja necessário problematizá-lo.
5 Entendo a organização estabelecida a partir de redes sociais online e off-line como um movimento
social, no sentido de muitos participantes almejarem uma mudança social frente a estereótipos que
ocasionam situações como racismo. Deixo claro, porém, que tal objetivo e consciência/preocupação não
são unânimes, mas sem dúvida está sendo pautado nas discussões que tenho acompanhado.
3
seu cabelo. Como a própria expressão indica é um processo de transição, de mudança e
que como a maioria das mudanças implica em transformações, adaptação e a saída de
um lugar-comum para outro diferenciado. Diante disso, a aceitação é um elemento que
se constitui ao longo do processo e após a decisão de passar pelo o Big Chop (Big chop
= grande corte.), termo muito usado entre os grupos e que faz referência a decisão de
fazer um corte radical, para tirar toda a parte alisada do cabelo e deixar apenas a parte
que cresceu de forma “natural”6. Tal etapa no processo revelam conflitos
intrafamiliares, o desengavetamento do racismo, de uma estigmatização fenotípica e de
uma possível “descoberta” de uma identidade.
Para tanto, o foco central deste trabalho será apreender como ocorre esse
processo; Entender qual a implicação dessa experiência, principalmente após o big chop
(BC) e entre o interstício BC e black power na identidade/identificação desses grupos e
pessoas. Entre o BC e o Black Power a trajetória das interlocutoras, assim como do cabelo, se
modifica conforme as experiências propiciadas pela transformação capilar e ganham novos
sentidos. Pós-BC, há uma grande ansiedade para o que o cabelo cresça rapidamente. Um dos
motivos para isso, evidenciado mais adiante, é o conflito causado pela não-aceitação de ter um
cabelo curto. O comprimento curto do cabelo em mulheres é interpretado, em muitos casos,
como uma forma de obliterar toda e qualquer feminilidade estética. O inverso, homens com
cabelos longos, parece indicar o mesmo conflito, mas por sua vez, interpretado como sinônimo
de “marginalidade” e/ou outros estereótipos depreciativos, preconceituosos.
Antes de começarmos a desmembrar efetivamente o que esse trabalho se propôs,
penso que preciso fazer uma breve alusão de como ele foi construído. Quais técnicas e
métodos foram empregados para que o resultado final pudesse ser alcançado. A partir
do momento que enxerguei o cabelo como possível objeto de pesquisa e comecei a
trabalhar para desenvolvê-lo, ainda assim, parecia-me algo superficial e incerto. Será
que estava procurando cabelo em ovo?
A motivação para realizar essa pesquisa é proveniente de uma experiência
pessoal. Comecei a usar produtos alisantes/relaxantes para o cabelo na infância. Por
volta dos 22 anos, resolvi que não queria continuar com esse processo. Queria o meu
cabelo “natural”. Durante o processo de voltar ao “natural”, mais precisamente entre os
6 O termo ”natural” será empregado no decorrer do trabalho para fazer alusão ao cabelo sem produtos
alisantes ou relaxantes. Ou seja, o cabelo com formato do fio como é de fato, sem alteração de textura.
4
anos de 2012 e 2013, descobri grupos de pessoas em redes sociais e blogs - em
formados em sua maioria por mulheres - que estavam passando ou já tinham passado
pelo o processo de transição capilar - até aquele momento não sabia que era assim
classificado. Chamou a minha atenção o discurso sobre identidade e identidade negra.
Por isso, perceber as inúmeras realidades imbricadas em cada história me deixou
motivada para entender esse universo. Entre os relatos propagados nesses grupos, um é
recorrente: a curiosidade das pessoas em tocar em um cabelo “natural”, mais
especificamente, crespo. Parece exagero quando apenas imaginamos essa situação, mas,
alguns dias depois que fiz um BC fui até a universidade e lá, uma pessoa me perguntou:
“Posso tocar no seu cabelo?” então, constatei que de fato as histórias não eram
exageradas. Fiquei um pouco surpresa com aquela pergunta inusitada, e constrangedora,
mas dei permissão. Após tal episódio, fiquei me perguntando por que essa curiosidade
alheia?
Além disso, a mídia, as campanhas publicitárias e a indústria de beleza parecem
se concentrar em um padrão estético não condizente com a maioria das brasileiras e dos
brasileiros. O trabalho com comunidades quilombolas, onde o foco eram as mulheres
vítimas de violência e racismo também impulsionou a reflexão sobre como as
características fenotípicas podem marcar7.
A metodologia escolhida será de ordem qualitativa e será centrada nas trajetórias
das interlocutoras da cidade de Maceió-AL. A reconstituição das trajetórias individuais
nesse trabalho foi possível devido ao método da entrevista semi-estruturada. Porque se
optou por entrevistas semi-estruturadas? Bem, a utilização desse método, segundo Flick
(2004), dá margem para que os sujeitos possam expressar coisas e opiniões de uma
maneira que em uma entrevista mais fechada, como a utilização de questionários, por
exemplo, não ocorre. O autor elenca vários tipos de entrevistas semi-estruturadas:
entrevista focal, semipadronizada, centralizada no problema, com especialistas,
mediação/direção e etnográfica. A entrevista centralizada no problema foi aqui usada,
pois é “...onde é possível coletar dados biográficos com relação a um determinado
problema.” (FLICK, p.100, 2004) e por isso ajudou a remontar a trajetória das
7 Há no imaginário social, a ideia que em comunidades quilombolas existem exclusivamente negros. No
lugar onde desempenhei esse trabalho não era diferente. Quando as pessoas chegavam às comunidades e
se deparavam com outra realidade havia um “choque” e surgiam questionamentos sobre a “verdadeira”
identidade daquelas pessoas que faziam parte da comunidade.
5
interlocutoras que fazem parte deste trabalho. Ainda assim, é salutar ter em mente que
não há receitas pré-determinadas na pesquisa antropológica, portanto, faço o meu
próprio caminho, construo cada etapa conforme as necessidades do campo sem me
desprender do projeto, pelo menos não inteiramente. A primeira ida a campo deu
elementos e o ambiente necessário para empreender uma entrevista etnográfica, não que
isso tenha sido calculado, mas, deu certo. O caráter da entrevista e as interlocutoras que
tive acesso permitiram que isso fosse realizado.
É melhor pensar nas entrevistas etnográficas como uma série de conversas
cordiais nas quais o pesquisador introduz novos elementos lentamente para
auxiliar informantes a responderem como informantes. O uso exclusivo
desses novos elementos etnográficos ou a sua introdução muita rápida farão
com que as entrevistas assemelhem-se a um interrogatório formal.
Desaparecerá a harmonia, e os informantes podem acabar suspendendo sua
cooperação. (SPRADLEY, 1979 apud FLICK, p. 105)
Conduzir bem a entrevista sem perder a “harmonia”,8 a espontaneidade não é
tarefa fácil, mesmo parecendo o contrário. Mas, é um bom exercício. Se bem realizada,
a técnica pode proporcionar bons relatos, o que na minha concepção, aconteceu.
A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se
preocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ser
quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos,
aspirações, crenças e atitudes. Esse conjunto de fenômenos é entendido aqui
como parte da realidade social, pois o ser humano se distingue não só por
agir, mas por pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a
partir da realidade vivida e partilhada com seus semelhantes. (MINAYO,
2007, p. 21)
Sustentada por um arcabouço teórico centrado - principalmente, em categorias
como raça e identidade - a metodologia compreenderá a conciliação de uma netnografia
juntamente com histórias de vida em uma combinação que tentará dar conta da
pluralidade desse universo. O uso de grupos de discussão - parecido com a dinâmica do
grupo focal -, grupos estes já construídos na rede social escolhida, será imprescindível.
Ainda que pareça um tanto ambicioso, vide o formato escolhido para o trabalho final de
conclusão do curso – artigo - será uma tentativa para apreender da melhor forma, as
especificidades que o tema suscita. Como se pode conferir entre os vários relatos
etnográficos de Bonneti e Fleisher (2007) parece ser consensual a ideia de não haver
8 Talvez o autor tenha se excedido ao tratar a situação de entrevista como um momento de “harmonia”.
De fato, a situação de entrevista, como diz Rita Pires do Rio Caldeira (1981) é uma situação que pode
causar mal-estar e sofrer inúmeras interferências, não é neutra. Ou como Foote-Whyte (1990) descreve
em uma pesquisa que tem como técnica a observação participante, mas acredito que também caiba aqui, a
pesquisa e a relação - pesquisadora e informante é permeada em certa medida por expectativas.
6
receitas prontas para fazer uma etnografia. Ainda que acredite que “não ter uma receita”
já é uma receita, por isso busco elaborar a minha, especificamente, para esse trabalho.
I – ENTRE TRAJETÓRIAS DENTRO E FORA DO CIBERESPAÇO
O interesse pelo o tema como pesquisa foi iniciado no ambiente online. No
entanto, a análise etnográfica extrapola esse espaço e continua no offline, ainda que o
desenvolvimento do trabalho esteja envolto pela dinâmica do ciberespaço. Utilizei como
técnica – ou seria improviso de pesquisa? - principal para demonstrar o campo feito
virtualmente, os print screens. Recurso simples, onde eu pude colher diversos relatos e
discussões “fotografando”, praticamente, a tela do computador. Assim, alguns relatos
que aparecerão aqui são imagens-impressões dos grupos na rede social que acompanho.
Tal escolha me possibilitou captar parte da dinâmica do grupo. Essa inventividade (ou
seria improviso?) metodológica da qual lancei mão me fez lembrar de outra experiência
que fez uso de mecanismos/instrumentos virtuais em rede. O recurso do bate-papo –
MSN (Messenger) - como instrumento de pesquisa no trabalho de Pelúcio (2007), por
exemplo, é interessante de ser observado. Entrevistas e relatos ocorridos nessa
plataforma foram importantes para estreitar laços e não perderam o tom espontâneo da
vida não-virtual. Por ora não me preocuparei em esmiuçar a categoria de ciberespaço.
Dito isso, tomo, temporariamente, a posição de Rifiotis (2010, p. 17) “... ao invés de
definições apriorísticas de Ciberespaço, Cibercultura etc., que poderiam se confundir
com um nominalismo, retomamos as interrogações básicas sobre como se dão as
relações neste espaço.” É exatamente nisso que estou interessada e é neste interesse que
percebo, também, a necessidade de problematizar melhor, a categoria ciberespaço
somado ao fato de ser impossível ignorar a vida dinâmica que ocorre online e que têm
sido nos últimos anos constantemente, senão objeto, cenário de muitas pesquisas e
debates na comunicação, sociologia, antropologia e outros campos no Brasil e fora dele.
Tanto dentro como fora do ciberespaço, alguns cuidados e posturas devem ser
incorporados, como: informar ao grupo sobre a pesquisa que está sendo desenvolvida e
solicitar permissão para realizar as entrevistas. Mas, como explicar o que você faz/está
fazendo para o grupo investigado? Como explicar a sua 'figura'? Esses questionamentos
são inevitáveis, mas nessa pesquisa o diferencial está na minha “proximidade”, o que
possibilita que os sujeitos da pesquisa acabem me enxergando como mais uma mulher
7
que passou pelo o processo de transição. Por outro lado, esse lugar pode ser um
incômodo se não for bem dosado. Deve-se ficar atenta para, enquanto pesquisadora, não
se tornar “refém”, porta-voz, “defensora” do grupo se isso comprometer os objetivos da
pesquisa.
Fui a campo com a intenção de criar uma aproximação, construir uma relação de
confiança e estabelecer os primeiros contatos – nem tão primários assim, pois, como já
disse, o “contato” começou na rede social, onde entrei primeiro como mais uma pessoa
em transição que buscava apoio, receitas e tudo que pudesse me ajudar no processo de
transição a partir das experiências de pessoas que estavam passando pela mesma
situação que eu; segundo, e posteriormente, como estudante de antropologia. Após essa
fase virtual, tive a chance de estabelecer uma interação face a face, como diria Goffman
(2013), com diversas pessoas do grupo instituído na rede. Isso ocorreu no encontro
“Encrespa Geral” realizado em Novembro de 2013, onde a intenção era reunir pessoas
que estavam passando ou já tinham passado pelo o processo de transição e/ou BC9 em
um movimento que estava ocorrendo simultaneamente em várias capitais brasileiras e
no Japão10
- através de uma brasileira que mora lá. Essa foi a primeira oportunidade de
encontrar a pesquisa de campo virtual no real. Lá, a própria dinâmica do encontro
favoreceu a técnica supracitada. As meninas sentadas em círculo se apresentaram e
contaram um pouco de si, sua história e seu cabelo. E foi nesse momento que percebi o
quanto a história de vida não poderia ser ignorada. Todas de alguma forma começavam
a falar da tomada de decisão de parar de usar química a partir da sua trajetória de vida e
familiar.
Essa primeira ida, ou como eu prefiro dizer “esse passeio” ao campo de trabalho
elucidou muitas dúvidas em relação à metodologia. Não estava imbuída de uma ampla
literatura sobre o objeto e metodologia pretendida, mas já tinha esboçado alguns
interesses provenientes das observações virtuais e de outras experiências de campo, que
não foram muitas. Talvez, se a bagagem teórica tivesse sido maior, o olhar poderia ter
sido diferenciado, mas acredito que isso possibilitou outras formas de enxergar,
também.
9 = Big Chop
10 Atualmente, o evento “Encrespa Geral” está presente nos continentes da Oceania, América do Norte,
África e Europa e conta com dezenas de pessoas no Brasil que organizam o evento em diversos estados.
8
Da Matta chamou a fase inicial do trabalho do pensar etnográfico de “fase
teórico-intelectual”, esclarecendo que esta seria essencialmente orientada
pelas leituras e discussões já travadas no ambiente acadêmico. Porém, o que
ele não considera é que muitas vezes estamos verdadeiramente confusos com
tanta teoria, e não esclarecidos ou guiados por elas. Essa confusão pode
turvar nosso olhar inicial ou, numa perspectiva mais otimista, colocar lentes
que focam de maneira restrita nossa percepção inicial. Mas é nesse
“confronto com uma realidade que traz novos desafios para ser entendida e
interpretada” (Peirano, 1992: 9) que vamos conferindo novos sentidos à
teoria apreendida. (PELÚCIO, 2007 P.70)
De fato, o confronto entre realidade e teoria no trabalho de campo é benéfico.
Ainda que ir a campo com uma bagagem teórica mais leve torna o “passeio” mais
interessante e distante de uma “domesticação teórica”11
– ideia desenvolvida por
Cardoso de Oliveira (2010) que apesar de fazer parte de um pensamento disciplinador
da formação antropológica do autor, a meu ver, suscita problemas, pois pode levar a
situações onde o pesquisador é encarcerado por categorias tão fixas que o impedem de
ver além.
Nessa investigação a subjetividade e a emoção permeiam e permearam o campo
em certa medida, pois a pesquisadora que vos escreve, ocupa um lugar “peculiar”, neste
trabalho. Peculiar no sentido da distância - A ideia da imparcialidade científica não
convence mais, - mas, não significa que não seja necessária uma distância entre
pesquisador e pesquisado. Segundo Velho (2003) driblar sentimentos, emoções e
desnaturalizar algumas noções é um exercício, de fato, desafiador. Nessa pesquisa,
particularmente, familiarizo o que parecia “estranho” e simultaneamente, no jogo de
Velho (2008) busco “estranhar o familiar” a partir de uma “objetividade relativa”. Mais
do que isso, pretende-se “...fazer da “participação” um instrumento de conhecimento”
(SAAD, 2005, p.157).
Por isso, não é em vão que Grossi (1992) busca compreender a relação subjetiva
entre o antropólogo e seu objeto de estudo no campo, preocupação esta que cada vez
mais ganha espaço nos debates antropológicos. A trajetória e tendências ideológicas do
pesquisador são fatores que podem fazer diferença no trabalho de campo.
Das entrevistas e entrevistadas
11
Livro – O trabalho do Antropólogo; Texto: “O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir e escrever”; Ver
página 19.
9
No dia 29 de julho de 2014, terça-feira, em Maceió-AL realizou-se a primeira
entrevista. O encontro foi marcado no local de trabalho da interlocutora, ambiente este
pertencente à família. O fenômeno investigado pertence a uma classe, se não
inteiramente, mas predominantemente a camada média. Foram realizadas até o dia 05 de
agosto do mesmo ano, 08 entrevistas, a maioria teve como cenário a Universidade
Federal de Alagoas, pois era um espaço comum para muitas das entrevistadas que
estudavam ali ou em outros casos, moravam próximo.
As entrevistas seguiram um roteiro inicial (anexo 112
), mas conforme a
interlocutora, outras questões eram levantadas. Em tom quase confessional e ao mesmo
tempo de um papo descontraído - às vezes, tão espontâneo quanto um encontro de
comadres -, as entrevistas ocorreram focadas na trajetória de vida como ponto de
partida. Sem dúvida, uma experiência onde o ouvir, ou como diria Cardoso de Oliveira
(2006), o “saber ouvir” foi basilar, visto que a fala das interlocutoras era impregnada de
experiências compartilhadas com a entrevistadora, o que proporcionou uma relação
dialógica distante de uma assimetria- pesquisadora e pesquisadas. Ou seja, falavam um
mesmo idioma com fluência, a interação assim, desembocou em uma participação
observante.
Cada entrevistada me mostrou um aspecto diferenciado da relação estética,
identidade e sociedade que será revelado no decorrer do trabalho.
II- IDENTIDADE, RAÇA E SUBJETIVIDADE - TRANÇANDO AS PARTES
Os usos que fazemos do (nosso) corpo podem variar de sociedade para
sociedade - de cultura para cultura. É o que alega Mauss (2003) no ensaio “Técnicas do
Corpo”. As formas como se faz uso do próprio corpo pode diferir, também, entre
homens e mulheres. No entanto, isso não é explicado apenas por fatores biológicos,
físicos e psicológicos. Os fatores sociais influem nessa relação através de processos
como a educação. Ou seja, nós aprendemos a agir de uma maneira - andar, correr, nadar,
comer. Além disso, o uso que se faz do corpo ganha sentidos que se modificam de
geração para geração13
, ou conforme as fases da vida. Tal premissa poderá ser percebida
12
P. 22
13 Os sentidos diferenciados entre gerações é um ponto interessante para a presente investigação. O
significado do cabelo entre mulheres (a maioria jovens) que decidiram passar pelo o processo de
transição, possivelmente, difere da forma como suas mães e avós se apropriavam do mesmo. Pressuponho
10
nas falas de algumas interlocutoras mais adiante quando relatam a mudança do olhar
para si quando eram crianças e tornaram-se adolescentes, por exemplo.
A primeira lição do corpo em sociedade é que em nenhum lugar do mundo,
até hoje, o corpo biológico é o corpo social. O corpo sempre tem um sujeito,
está inserido em alguma comunidade, grupo, etnia ou nação. O corpo sempre
é marcado, em alguma medida, pelas convenções culturais daquele grupo
humano. (CARVALHO, p.6)
A identidade como bem expõe Gomes (2008) é um processo que é construído
em um cenário conflitivo e através do contraste do “eu” diante do “outro”. Por isso
conclui-se que é uma instância negociada em diversos momentos. Trazer isso para o
processo de transição capilar é entender que o cabelo é muito mais que um elemento
biológico, é social e cultural e pode ser também um veículo de comunicação entre o
individual e social. Articular essa complexidade é de uma amplitude que transborda
qualquer paradigma quantitativo. Suscita uma reflexão entre corpo, identidade e um
posicionar-se na sociedade ou no mundo. Gomes (2008) dialoga com Merleau-Ponty
trazendo a dimensão do corpo como símbolo da existência no mundo e como elemento
que fundamenta as percepções. Por isso,
É no corpo que se dão as sensações, as pressões, os julgamentos. Esses não
acontecem de forma independente, mas estão intimamente entrelaçados,
constituindo uma estrutura, uma unidade que tem uma ordem – a sua forma
de corpo. É essa forma que garante o modo de ser-no-mundo e torna possível
a compreensão de como as relações são construídas como o mundo e no
mundo. (GOMES, 2008, p. 230-231)
Tal concepção está diretamente ligada à ideia de identidade. Afinal o que define
o seu “estar-no- mundo”? Em quais parâmetros esse “estar” está alicerçado e
continuamente reelabora-se ou ressignifica-se se não, a princípio, através do corpo e das
marcas elementares deste corpo? O cabelo, como parte constituinte desse corpo
também está configurado mediante a esse “estar-no-mundo” e por isso, sofre mudanças,
deslocamentos, se expressa. É titular no jogo corporal que qualifica partes da
identidade social. No caso do cabelo crespo cria-se um sentimento ambivalente que
reverbera na “identidade do “eu””, expressão que Goffman tomou emprestado de
Erikson, que tem como perspectiva de si “o sentido subjetivo de sua própria situação e
sua própria continuidade e caráter que um indivíduo vem a obter como resultado de suas
várias experiências sociais.” (2013, p. 116).
que a representação estética hegemônica de outrora era a mesma que temos hoje, mas de que forma isso
as influenciava? Essa e outras questões apontam a necessidade de ampliar o tema para outros trabalhos.
11
A construção da subjetividade negra, como assinala Figueiredo (2008), está
intimamente associada a referenciais do ser negro/negra. Tais referenciais, essenciais
principalmente na infância são, em muitos casos, inexistentes. Que referenciais são
esses? Algumas interlocutoras apontaram suas mães, tias ou outra figura parental
próxima. Quando perguntado a uma das interlocutoras se os resultados agradavam após
os procedimentos químicos, a mesma responde que sim, mas...
Eu não me sentia bonita, eu não sabia que o meu cabelo poderia ser bonito,
entendeu? Porque era aquela coisa, eu não tinha exemplos. Eu não tinha
exemplos de mulheres fortes. Um exemplo, na minha família não tem. A
minha vó que é negra, eu chego com um cabelo desse assim e ela diz: bora
cortar isso aí? Bora cortar. [J.B, 23 anos]
E continua em outro momento:
Mas eu não tenho, nem na minha família por parte de mãe que é uma coisa
mais misturada, mais branca, enfim. Não tenho, como eu posso falar?
Exemplos! A minha mãe tinha (cabelo cacheado). Mas, assim, ela sempre
usou relaxamento também. E o meu irmão. [J.B]
Na fala da interlocutora, além de deixar perceptível a falta de referências no
núcleo familiar em relação a uma representação estética negra, pode-se evidenciar
outras nuances do emaranhado desse universo crespo como a classificação de cores
relacionada ao tipo e textura de cabelo e o hábito de manipular o cabelo quimicamente
incorporado como uma tradição familiar e que é passado de geração em geração:
Pesquisadora: Você tem irmã?
Tenho, e elas têm cabelo crespo. Tem uma inclusive que tem um cabelo bem
mais crespo que o meu, mas sempre alisa, sempre alisa. [E a sua mãe?] Não,
a minha mãe tem um cabelo mais solto, mais ondulado. Ela usa natural, a
única química que ela usa é para pintar o cabelo, mas ela sempre usou. E
existia uma forte resistência para ela em aceitar o meu cabelo do jeito que ele
naturalmente é. [Mas, por que você acha isso?] Primeiro porque... eu não sei.
Assim, a minha mãe nasceu no interior, tem aquela mente, sabe? Até
relacionado... não vou dizer que é aquele preconceito maldoso, entendeu?
Mas é aquele preconceito que acontece porque ela não teve informação, ela
não teve estudo. Porque ela não teve oportunidade de abrir mais a mente dela.
Um exemplo clássico, ela não me reconhece enquanto negra negra. Ela fala,
que eu sou moreninha clara. Aí eu falo, não mãe, eu sou negra. [Ela é negra?]
Ela é um pouco mais clara que eu. [Então, ela também não se vê como
negra?] Ela não se vê como negra. [Seu pai é negro?] Meu pai é mais escuro
que ela. Agora o meu vô, o meu vô é escravo. O meu vô era descendente
mesmo, entendeu? A minha vó que era bem clara. Aí deu essa misturada toda
na família. Mas a minha mãe não se vê como negra. Como ela tem um cabelo
um pouco mais... ela tem um cacho um pouco mais solto. Quase ondulado o
cabelo dela. Então assim, acho que isso também contribui para que ela queira
me enquadrar também ali, sabe? Até porque isso também aconteceu com as
minhas irmãs. Até hoje as minhas irmãs alisam o cabelo, as filhas delas
também alisam. [J.P, 23 anos]
Na rede social também surgem relatos nesse sentido:
12
Figueiredo (2008, p. 249) também identificou tais nuances em seus estudos:
“Desde muitos jovens, as mulheres negras são socializadas para terem o cabelo alisado,
muitas relataram experiências em que a família e, principalmente, a mãe, impunha que
elas tivessem os cabelos alisados.”. Essa perspectiva geracional, familiar é uma
instância que merece ser explorada com mais profundidade, posteriormente, pois é
notório o início da experiência de manipulação capilar ocorrer em casa, através da mãe
ou outras figuras – geralmente femininas – do círculo de parentesco próximo. Ainda
assim, com a transição capilar, tais recorrências continuam sendo questionadas,
confrontadas. Tal mudança, proporcionada pelo duplo movimento de “tomada de
consciência” e ação social pré ou pós transição capilar é uma atitude que revela seu teor
político e impulsiona a necessidade de reabrirmos o debate sobre estereótipos, racismo e
identidade negra.
II.II- Ser crespa: mudanças sentidas,
Pode ser identificada uma mudança de dentro para fora e de fora para dentro
após o processo de transição. Por exemplo, uma das interlocutoras percebe que isso
provocou um despertar político motivado pela transição e a aceitação de si por si:
...depois que eu comecei a cortar o meu cabelo e colocar nas redes sociais, eu
comecei a ter um negócio assim de me politizar, entendeu? Em questão de eu
ser negra. De me gostar de ser negra porque até então eu não tinha essa coisa
aflorada, sabe? Os meus pais, não que eles sejam culpados, mas, eu não tinha
13
essa coisa dentro de casa de “ah você é linda desse jeito. Você é negra, a sua
cor é linda.” A minha mãe tinha um pouco dessas coisas, mas não era
aquela...Ah sei lá, era a minha mãe, eu pensava ela faz essas coisas porque é
a minha mãe. Tá entendendo o que eu tô tentando dizer? Eu não me via
bonita porque os outros não me faziam me sentir bonita. [J.B, 23 anos]
Segundo Gomes (2008, p. 21), a mudança no cabelo para o negro tem como
expectativa três possibilidades de significados: sair do lugar de inferioridade imposta
pela relação com um padrão ideal de beleza – o branco, a introjeção dessa inferioridade,
ou ainda um sentimento de autonomia onde se é livre para usar o cabelo de diversas
formas. Independente da possibilidade de significado dada a mudança capilar na
transição, não há dúvida que estamos diante de um processo conflituoso e que pauta
uma série de tensões que se subscrevem em diferentes áreas da vida social – relações de
gênero e raça - como explicitado anteriormente.
Estamos, portanto, em uma zona de tensão. É dela que emerge um padrão de
beleza corporal real e um ideal. No Brasil, esse padrão ideal é branco, mas o
real é negro e mestiço. O tratamento dado ao cabelo pode ser considerado
uma das maneiras de expressar essa tensão. A consciência ou o encobrimento
desse conflito, vivido na estética do corpo negro, marca a vida e a trajetória
dos sujeitos. Por isso, para o negro, a intervenção no cabelo e no corpo é mais
do que uma questão de vaidade ou de tratamento estético. É identitária.
(GOMES, 2008, p. 21)
Investigar a relação entre cabelo, raça, identidade e gênero é lidar com a
multiplicidade e contextos variados. Segundo Oliveira (1976), a identidade emerge no
contexto dos grupos sociais como um fenômeno bidimensional, ou seja, a identidade se
coloca como pessoal/individual, social/coletiva e estão interligadas.
...a identidade social surge como a atualização do processo de identificação e
envolve a noção de grupo, particularmente a de grupo social. Porém, a
identidade social não se descarta da identidade pessoal, pois esta também de
algum modo é um reflexo daquela. (OLIVEIRA, 1976, p.5)
E ainda, a identidade por estar em processo permanente de construção, faz
emergir uma identidade contrastiva, pois é o posicionamento do “nós” diante dos
“outros” realizado através da distinção. É o fator que marca uma diferenciação entre
outros grupos. O exemplo do texto de Barth (2005) sobre o paquistanês que foi morar
na Noruega é claro nesse sentido:
Ele reflete ativamente sobre sua posição na Noruega. Sua ideia sobre o que é
ser um muçulmano se torna diferente do que era quando ele vivia em uma
sociedade muçulmana. Além disso, a ideia de ser “paquistanês” é uma ideia
nova e em expansão. (...) Ele nunca tinha se considerado como sendo
paquistanês antes, mas as antigas diferenças étnicas do Paquistão parecem
bastante irrelevantes em contraste com a experiência que ele tem ao se
confrontar com o que é ser norueguês. (BARTH, 2005, p. 19-20).
14
No discurso de pessoas que passaram ou estão passando pelo o processo de
transição, a identidade negra é ressaltada e o cabelo “natural” surge como principal
símbolo. Uma interlocutora conta que nos espaços de movimento social-político que
frequentava havia uma pressão pelo fato dela usar o cabelo alisado. O primeiro grupo do
qual fez parte havia a tentativa de abordar questões afro/negras sobre diversas
perspectivas e uma delas era o cabelo. Ainda assim, ninguém era forçado a nada. Em
outro grupo com a mesma preocupação, havia uma “pressão” por parte dos militantes
negros para que ela deixasse de usar o cabelo daquela forma:
(...) pessoal já era mais radical, e aí eu já tava mais adulta. Já tinha saído da
universidade, já tinha me formado e tal. (...) E aí que tinha uma galera mais
cabulosa com essa história de cabelo, e eu era única preta com cabelo
escovado (risos). E eles ficavam revoltados, e eu fazia: “eu faço com o meu
cabelo o que eu quiser! Isso não me torna menos preta. Eu tô aqui no
movimento e do meu cabelo eu faço o que eu quiser”. (V.R, 32 anos)
Então questiono: O cabelo pode ser um dos elementos que marcam essa
distinção? O que é ser negro? O que é ser negra? Para Sousa (1983):
Saber-se negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua
identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências,
compelida a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a
experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recria-se em suas
potencialidades. (p. 17-18)
Segundo Nogueira (1955, apud OLIVEIRA, 2000, p.9) no Brasil o preconceito é
caracterizado pela aparência. Essa “marca” que caracteriza uma raça, torna-se a “chave”
para abrir a “gaveta” do preconceito. Além disso, diante desse contexto, o trabalho
retoma a discussão sobre o que Oliveira (2000) chamou de “processo de
estigmatização” tomando como base a ideia de “marca” de Oracy Nogueira. Sem
dúvida o conceito de estigma que emerge no pensamento de Goffman também não pode
ser colocado de lado.
A atitude de categorizar outras pessoas está intimamente associada com pré-
noções que são estabelecidas sobre o caráter do outro e assim cria-se uma expectativa
com relação quem essa pessoa seria, ou seja, como Goffman (2013) denominou, é
atribuído uma “identidade social virtual” ao sujeito em oposição- e ao mesmo tempo em
complementaridade - a “identidade social real”, onde o sujeito de fato mostra e
comprova de fato quem é. Em outras palavras, pode-se sintetizar tal raciocínio a ideia de
que a identidade social virtual está calcada em suposições em tom de potência, e a
identidade social real, como o adjetivo indica, é condizente com a realidade efetiva do
15
indivíduo. O que isso tem a ver com o processo de milhares de meninas que se
encontram em transição? Talvez, a pergunta não deveria ser essa, e sim: porque tal
raciocínio coaduna com a intencionalidade para algumas, ou resistência para outras, em
passar por um processo de alteração estética de um elemento corporal que indica ressoar
fortemente no social? Pode-se começar a responder tal questionamento baseado no
próprio conceito de estigma, na ideia de identidade social virtual e real. O cabelo é um
atributo em evidência na aparência de muitas pessoas, logo, ter “boa” aparência é ter tal
elemento dentro de categorias entendidas como “normais” que quase sempre são
tomadas a partir de parâmetros estéticos hegemônicos. Por isso, o cabelo crespo deixa a
condição boa e “normal” estabelecida em suspenso, pois causa estranheza e está quase
sempre associado a estereótipos negativos (Na realidade não sei se há estereótipos
positivos. Há? Deixo para você leitor refletir). E a definição de Goffman encaixa nesse
contexto:
Um estigma é, então, na realidade, um tipo especial de relação entre atributo
e estereótipo, embora eu proponha a modificação desse conceito, em parte
porque há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade levam
ao descrédito. (p. 13)
Em qualquer tipo de estigma há um traço comum, uma distinção que provoca
um afastamento social e de si, uma relação social mediada pela exclusão. Sem dúvida, o
cabelo crespo é o atributo que está propenso a provocar no indivíduo portador dele, um
sentimento de vergonha, pois este introjetou da sociedade geral que esse elemento é feio
e “ruim” e busca meios para eliminá-lo, pois acredita que assim conseguirá se
desestigmatizar e se tornar um “igual” ou como diria, Goffman (2013), um “normal14
”,
um efeito que pode ser catastrófico para atingir uma aceitação externa. Pude verificar
que esse “normal” que é almejado por muitas mulheres na transição é manifestado de
diversas formas e em diferentes contextos: na adolescência, no espaço escolar ou na
busca por um trabalho. Em todos esses cenários estar fora do padrão é conflituoso e em
muitos casos, doloroso ou vexatório. Em muitos casos, essa sensação de “não sou igual
a todo mundo” só é sentida quando se tenta enquadrar. Perguntada qual era o sentimento
14
A ideia de “pessoal normal” pode ser entendida como aquela que não tem estigma. E para além disso,
há de se fazer uma rápida analogia com relação aos produtos de cabelos disponíveis no mercado de
cosmético e higiene pessoal classificados como “Para cabelos normais”. O que seria um cabelo normal?
Certamente, o crespo não está elencado nessa categoria. Mas essa discussão entre produtos, consumo e
identidade deixo para outro oportunidade.
16
em relação ao cabelo antes e depois do primeiro alisamento capilar, uma das
interlocutoras responde:
O que eu lembro, até onde eu lembro. Antes disso, eu não tinha nenhum
problema maior assim com o meu cabelo, a não ser na escola que os meninos
pegavam no pé. “ah, cabelo de pixaim! Cabelo de bucha!” Mas nunca foi
uma coisa que me afetou de fato. Eu comecei a me importar justamente
quando eu comecei a alisar o meu cabelo. Depois que eu passei a alisar o
cabelo, eu sabia que eu tava me escondendo de alguma coisa. Quando eu
cortei (foi) que realmente ele ficou cheião. Então quando eu passei a alisar foi
quando eu passei a ter mais receio e a pensar mais no meu cabelo e porque de
tá sempre alisando. Ainda mais porque como eu tava ficando maiorzinha,
então tem aquela necessidade de você querer se enquadrar a um padrão, né?
Quando você é mais nova você não pensa muito nisso. Mas quando você vê
as menininhas da sua sala com o cabelo escovadinho bonitinho ou então o
com o cachinho formadinho bonitinho. E você já tá ficando mocinha. Então é
nesse período que você começa a sentir um pouco (e relembra os
pensamentos que tinha): “poxa vida, mas o meu cabelo não é assim.”
“Fulaninho diz que cabelo dela é bonito, mas não elogia o meu cabelo. É,
então realmente deve ter algum problema” Então assim, só no momento após
alisamento foi que eu comecei a me incomodar mais em relação ao meu
cabelo. (J.P, 23anos)
O relato acima demonstra também uma espécie de tempo ideal para fazer a
passagem/mudança no cabelo via química, a adolescência. Com outra interlocutora,
exponho uma experiência na adolescência e no colégio que parece com a da
interlocutora e ressaltando, de acordo com as nossas vivências, a perspectiva que
demonstra a pouca presença de negros nos espaços de uma escola privada-tradicional,
por exemplo. O fato de alisar e usar o cabelo sempre preso parece indicar uma
insegurança ou pelo menos um não sentir-se à vontade consigo. A interlocutora
completa:
... não sei explicar. Você é uma coisa, mas não é você, entendeu? Você sabe
que não é seu, você sabe que não faz parte de você, mas mesmo assim você
usa e quando você sai para algum canto, as pessoas vão saber que não é seu e
vão tentar... Deve ser por isso que eu não alisava. Porque achava que o povo
ia pensar: „porque essa menina alisa o cabelo, vai ficar espichado?‟ Pra quê?
(J.B, 23 anos)
Continuo na temática escolar e rememoro que os episódios de conflito, brigas e
discussões, sempre tinham alguma ofensa, e sempre era focado no cabelo. A
interlocutora complementa: “No cabelo, bicho!” E imediatamente começa a
exemplificar alguns apelidos, como: assolan15
, palha de aço, bucha. E relembra um
episódio que aconteceu com ela:
15
Marca de uma palha de aço.
17
Eu briguei com um menino e ele disse, “você quer que eu fale da sua
aparência?” E eu, “não, não” E eu não gostava. Lógico, quem gosta né? Mas
ele sabia o ponto fraco da pessoa. (J.B, 23 anos)
No contexto de transição capilar, a auto aceitação aparece como um antídoto
contra o efeito devastador de um estigma ou de um estereótipo. Quando perguntada o
que mudou antes da transição e depois, uma das interlocutoras relatou:
Eu me senti mais mulher, sabe? Eu vi o meu lugar no mundo. Eu me aceitei.
É questão de aceitação, tudo, cabelo, cor de pele, tudo é questão de aceitação.
Eu vi uma frase que você cortar o cabelo não é questão... na transição,
independente de você ser negra ou não... não é questão de você se sentir bem,
autoestima e tal, claro que isso mexe, mas é um ato político porque é aquela
coisa de você mostrar pra o mundo que você se aceita. Que você gosta do
jeito que você é, entendeu? E com isso, a partir do momento que comecei a
cortar o meu cabelo, eu comecei a me sentir bem. (J.B, 23 anos)
A interlocutora dimensiona o cabelo na esfera política, além da individual-
social. Como um ato de se apresentar ao mundo e ao próprio social. Tal relato é chave
para outra discussão, principalmente, quando a mesma ressalta: “Eu me senti mais
mulher, sabe?” - a de gênero.
Na obra de Pritchard (2005), há uma passagem que revela uma curiosa
manipulação dessa parte: “As cinzas do esterco queimando são esfregadas nos corpos
dos homens e usadas para tingir e alisar o cabelo...”. Entre os Nuer, a preocupação com
a estética capilar fica evidente, assim como a vontade em mudar o formato do fio. Além
disso, tal passagem tem como protagonista, o gênero masculino. Por isso, será que
mulheres e homens experienciam essa parte do corpo da mesma forma? Tal
questionamento é proveniente da observação em grupos virtuais. Majoritariamente, os
grupos que foram observados são integrados por mulheres.
“Mulher tem que ter cabelo grande16
”
Entre as entrevistas realizadas e as observações em grupos na rede social em que
acompanhei, um dos relatos recorrentes é sobre o comprimento do cabelo. Mais
especificamente, a experiência – em muitos casos traumática – do Big Chop por se
tratar de um momento onde o corte é feito e a preocupação com o tamanho é latente.
Muitas contornam esse momento optando por deixar o cabelo crescer junto com a parte
alisada. Outras seguem e mesmo demonstrando confiança e coragem, escutam de seus
16
Fala proferida por um dos familiares de J.B quando a mesma cortou o cabelo curto.
18
amigos, companheiros, pais ou irmãos a seguinte frase: “mulher tem que ter cabelo
grande.”.
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Com isso, sem dúvida, se faz necessário refletir os posicionamentos de gênero
que se faz frente a serem homem e mulher no que diz respeito ao cuidar de si, ao se
enxergar e ao se apresentar, identitária e esteticamente. Como bem colocado por Gomes
(2008, p. 231): “As impressões sobre o ser negro, os sentidos dados ao cabelo crespo
são dimensões simbólicas que também se fazem presentes e exprimem a forma como
homens e mulheres negras pensam e tematizam o próprio corpo.”
19
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É difícil concluir algo que ainda suscita muitas questões. Concluir dá impressão
que encerro o tema quando na realidade ele continua transitando em mim. Trabalhar
com as perspectivas de raça, identidade e gênero é algo desafiador e novo para essa
pesquisadora que ainda pretende experienciar mais campos. Admito que desde a minha
graduação eu tive um pouco de resistência em trabalhar tais temas, principalmente raça,
pois, parecia ser obrigatório o fato de me identificar como negra ter que trabalhar com
temáticas relacionadas a isto. Mas, diante da experiência que motivou esse trabalho
percebo o quão é necessário que façamos pesquisas a partir de uma perspectiva onde
nós também somos os sujeitos. É perceptível o pulsar do caráter subjetivo desse
trabalho, desde a escolha do tema até os relatos.
O cabelo é um elemento que traz em si a potencialidade de pensar diversos
temas quase simultaneamente. Por isso procurei compreender esse elemento articulado
às categorias de identidade, raça e gênero a partir do processo de transição capilar.
Assim, foi possível entender que tal processo é a engrenagem que aciona uma memória
muitas vezes atrelada a um processo de silenciamento. Ser negra ou ter uma estética
negra significava ser feia, dentro de uma estética hegemônica. Como na fala de algumas
interlocutoras, a transição possibilitou elas descobrirem-se belas da maneira que são,
sejam quase carecas pós-Big Chop – e isso não as torna menos mulher - ou com seus
black powers “ouriçados”. Isto possibilitou também, para muitas, descobrirem-se negras
e reconfigurarem alguns padrões estabelecidos. Tal reconfiguração encontra espaço em
suas próprias casas e famílias – pois elas tornam-se as referências que um dia elas não
tiveram -, no relacionamento cotidiano e no enfrentamento de um racismo engavetado,
mas sempre manifesto quando “confrontado”.
Se o cabelo movimentou e movimenta tantas pessoas em um cenário virtual e
para além dele, é um fato que precisa continuar sendo investigado. Há muitas vias a
serem percorridas para que possamos entender essa dinâmica que parte de um plano
individual e ao mesmo tempo sociocultural.
20
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22
ANEXO 1
ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1- Quando você começou a usar química no cabelo?
2- Por que você começou a usar química no cabelo?
3- Como você se sentia antes de usar?
4- Quando e por que você decidiu a não querer a usar química no cabelo?
5- Quanto tempo durou sua transição?
6- Quando você fez o BC/cortou o cabelo? Como você se sentiu?
7- O que foi mais difícil e/ou mais complicado em todo o processo de transição?
8- Como você se sentia antes e depois do BC?
9- Sofre ou sofreu algum preconceito? De quem e/ou como foi?
10- Como você conheceu/chegou às comunidades no Facebook?
11- Você lembra qual foi o primeiro site, blog, comunidade ou grupo que acessou?
12- Você tinha conhecimento que havia outras meninas que estavam fazendo o
mesmo que você?
13- Você acha que esses grupos te ajudaram/ajudam no processo de transição? Por
que/como?