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O mundo artístico brasileiro esteve, durante grande parte do século XIX, pautado pela referên- cia à Academia Imperial de Belas Artes e ao siste- ma de valores artísticos por ela propagados. 1 Por muito tempo, a pintura histórica foi concebida como o mais importante gênero, impondo-se sobre aquelas faturas menores, como o retrato, a natureza-morta, a paisagem etc. Entre os artistas nacionais que se dedicaram ao gênero não há se- quer um nome feminino até 1922, ano emblemá- tico, ao menos segundo uma historiografia da arte modernista, da “crise” do academismo. 2 Somente então, num período de contestação direta da legi- timidade da Academia como instituição propaga- dora de valores para o campo das artes, é que uma mulher se realiza no gênero. Refiro-me à tela Sessão do Conselho de Estado (1922) (1) realizada por Georgina de Albuquerque. A primeira observação dessa obra é sur- preendente, pois ela contraria claramente determi- nadas expectativas que orientam a visão comum a respeito do que deve ser uma pintura histórica, sobre atributos específicos da autoria e sobre os motivos que melhor figuram um momento gran- dioso da história nacional. Georgina solucionou de forma singular a questão do tema, relativo à comemoração do centenário da Independência. Em vez de abordar um evento histórico triunfal, como uma cena de batalha, tal como o repertório acerca da pintura histórica nacional poderia lhe sugerir, apresentou um episódio diplomático den- tro de um gabinete oficial. Ainda mais destoante é a figura heróica aí representada: uma mulher! Após uma leitura breve da legenda explicativa sabe-se, afinal, quem é a personagem central re- ENTRE CONVENÇÕES E DISCRETAS OUSADIAS: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil* Ana Paula Cavalcanti Simioni * O presente texto foi originalmente apresentado na XXV Anpocs, realizada em outubro de 2002 em Ca- xambu, na mesa redonda intitulada “Sociologia das Artes Plásticas no Brasil”. RBCS Vol. 17 n o 50 outubro/2002

ENTRE CONVENÇÕES E DISCRETAS OUSADIAS: Georgina de

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O mundo artístico brasileiro esteve, durantegrande parte do século XIX, pautado pela referên-cia à Academia Imperial de Belas Artes e ao siste-ma de valores artísticos por ela propagados.1 Pormuito tempo, a pintura histórica foi concebidacomo o mais importante gênero, impondo-sesobre aquelas faturas menores, como o retrato, anatureza-morta, a paisagem etc. Entre os artistasnacionais que se dedicaram ao gênero não há se-quer um nome feminino até 1922, ano emblemá-tico, ao menos segundo uma historiografia da artemodernista, da “crise” do academismo.2 Somenteentão, num período de contestação direta da legi-timidade da Academia como instituição propaga-dora de valores para o campo das artes, é que

uma mulher se realiza no gênero. Refiro-me à telaSessão do Conselho de Estado (1922) (1) realizadapor Georgina de Albuquerque.

A primeira observação dessa obra é sur-preendente, pois ela contraria claramente determi-nadas expectativas que orientam a visão comum arespeito do que deve ser uma pintura histórica,sobre atributos específicos da autoria e sobre osmotivos que melhor figuram um momento gran-dioso da história nacional. Georgina solucionoude forma singular a questão do tema, relativo àcomemoração do centenário da Independência.Em vez de abordar um evento histórico triunfal,como uma cena de batalha, tal como o repertórioacerca da pintura histórica nacional poderia lhesugerir, apresentou um episódio diplomático den-tro de um gabinete oficial. Ainda mais destoante éa figura heróica aí representada: uma mulher!Após uma leitura breve da legenda explicativasabe-se, afinal, quem é a personagem central re-

ENTRE CONVENÇÕES E DISCRETAS OUSADIAS: Georgina de Albuquerque e a pintura histórica feminina no Brasil*

Ana Paula Cavalcanti Simioni

* O presente texto foi originalmente apresentado naXXV Anpocs, realizada em outubro de 2002 em Ca-xambu, na mesa redonda intitulada “Sociologia dasArtes Plásticas no Brasil”.

RBCS Vol. 17 no 50 outubro/2002

tratada, a Princesa Leopoldina, em meio a reuniãode Conselho de Estado presidida por José Bonifá-cio, na qual se discutiu a necessidade de o Brasiltornar-se independente de Portugal, momentoesse que teria antecedido o brado do Ipiranga.3

A ruptura com as expectativas ocorre porque,segundo E. Gombrich,4 o espectador, quando estádiante de um quadro, opera com a sua capacidadede reconhecimento, isto é, mobiliza tanto seu co-nhecimento acerca dos objetos representados,quanto da maneira de representá-los e, para tanto,retira de sua memória toda uma tradição de telasanteriores àquela que se lhes apresenta, com asquais efetiva um diálogo, compondo uma tradição.Conforme o autor, nós espectadores

[...] esperamos receber uma certa notação, certossímbolos, e nos preparamos para entendê-los [...].Os psicólogos chamam tais níveis de expectativade “contextos mentais” [...]. Toda cultura e todacomunicação dependem da interação entre ex-pectativa e observação, das ondas de gratificação,desapontamento, conjeturas acertadas e jogadasem falso, que constituem a nossa vida diária [...].

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O quadro de Pedro Américo de Figueiredo eMelo, Independência ou Morte (1888) (2), tantasvezes exposto, reproduzido, citado e estudadoque praticamente se tornou a “imagem oficial” doevento, não é o único modelo de figuração domarco da Independência, mas a referência maisóbvia da construção de Dom Pedro I como heróida nação que se constituía. Por meio desta telacriou-se o mito de uma proclamação da Indepen-dência como um evento bélico e conduzido porum benfeitor de armas em punho. Tal criação foitão difundida que, em vez de vista como “inven-ção”, foi tomada por “representação” de um fato.

A pintura de Georgina desafiava esse “con-texto mental” ao se contrapor à de Américo emcertos pontos, tais como: a) pela adoção de umaimagem de herói inovadora, uma vez que centra-da em um personagem feminino (real e nãoalegórico,6 algo já mais recorrente); b) a sua com-posição, construída a partir de uma inversão domodus operandi tradicional, em que acima estãodispostos os figurantes, em vez de os protagonis-

tas; c) pela feitura, diversa daquela “estética doacabado”, nas palavras de Pierre Bourdieu, quebem definem o estilo acadêmico; e, finalmente, d)por um motivo extra-artístico: o autor da obra éuma mulher, uma pintora, e a tela é uma pinturade gênero histórico,7 geralmente produzida pormãos masculinas.

A quebra de expectativa com relação à tradi-ção ocorre, assim, por motivos que são de ordemestética e, também, extra-artísticos. A associaçãoentre a pintora e a heroína, numa semelhança porgêneros, é evidente demais para ser desprezada,embora seja, do ponto de vista absolutamente for-mal, algo “além” da arte, algo “do mundo”, do so-cial, e, por conseguinte, de fora, externo. Não sedeve, todavia, compreender essa tela por meio deanálises estilísticas que negligenciem o espaço so-cial a partir do qual a autora a construiu. Esse lu-gar está delimitado por uma situação de gênero8

que, por sua vez, indica toda uma outra série deatributos, como a formação artística, um mercadoespecífico, as estratégias diversas de afirmaçãopessoal e uma rede possivelmente diversa de so-ciabilidade. A maneira com que tudo isso se arti-cula e toma forma numa tela é que o ponto insti-gante, e também por isso mais difícil, para umaanálise. Seguindo a proposição de Antonio Candi-do, é preciso abandonar a dicotomia entre fatoresexternos e internos, uma vez que

[...] o elemento social se torna um dos muitos queinterferem na economia do livro [e poderíamosdizer da tela], ao lado dos psicológicos, religiosos,lingüísticos e outros. Neste nível de análise, emque a estrutura constitui o ponto de referência, asdivisões pouco importam, pois tudo se transfor-ma, para o crítico, em fermento orgânico de queresultou a diversidade coesa do todo.9

Uma compreensão abrangente acerca dossignificados gerais de Sessão do Conselho de Esta-do exige certos cuidados. O primeiro é o de cir-cunscrever seu diálogo com outras obras, dentrode uma determinada tradição e, a partir daí, per-ceber os seus avanços e os seus recuos. Tal méto-do derivado da história da arte mais contemporâ-nea pode ser somado a outros, propostos pela his-

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tória da arte feminista e pela sociologia da cultura.É central a questão da formação artística recebida,não apenas porque aí se encontram os modelosque necessitam ser incorporados em construçõesposteriores como a questão mais propriamente so-ciológica: trata-se de uma artista mulher, formadaem condições específicas, diversas das masculinas.Para tanto, é preciso recuperar, ainda que sumaria-mente, as condições de produção do trabalho artís-tico feminino no Brasil do século XIX. Esse ponto,por sua vez, nos leva aos modelos de realização daarte acadêmica e ao modo com que foram acessa-dos, desigualmente, pelas mulheres.

Alegorias da masculinidade: a tradição doherói masculino na pintura histórica

Sabe-se que a implantação do sistema acadê-mico10 nos meios artísticos nacionais se deu comMissão Artística Francesa, em 1816. A Jean Baptis-te Debret (1768-1848) foi entregue a cadeira depintura histórica, dando início ao gênero no Bra-sil. O modelo dessa pintura seguiria os preceitosaprendidos com seu primo e mestre, o mais im-portante pintor francês do início dos oitocentos:Jacques Louis David.

Contrapondo-se a uma cultura que valorizavaos elementos femininos, tal como o rococó, estilodominante nas cortes dos setecentos,11 David cons-truiu telas bastante marcadas pelo herói masculinoe viril, onde a imagem se torna tão mais poderosaquanto maior o rigor na apresentação anatômicado corpo humano. O Juramento dos Horácios(1784) (3) é emblemático a esse respeito: observa-se o surgimento da força dos músculos tesos, talqual espadas dos homens hercúleos, ao que a fra-gilidade das mulheres caídas do outro lado da telafunciona como oposto complementar. Se o herói émasculino e sua virilidade se expressa em seu cor-po forte, a fragilidade é feminina e seu corpo é dor-mente, testemunho de sua desproteção.

A fraqueza feminina é novamente abordadaem Os Lictores trazendo a Brutus os Corpos de seusFilhos (1789), adquirindo na obra característicaspsicológicas do descontrole, de paixão, ao passoque o pai é o herói controlado e soberano de si e

de seu temperamento. De maneiras diversas, osdiscípulos de David continuaram a investir nessa“simbólica dominação masculina”. Nas composi-ções do mestre as desigualdades apareciam demodo ainda contido em virtude de seu realismo,12

e também de sua participação ativa na implantaçãode um regime revolucionário e republicano que, aprincípio, deveria incluir as mulheres. É preciso in-clusive lembrar que os primeiros tempos da revo-lução concederam espaços às artistas e David foium de seus mais importantes promotores.13

Com seus discípulos, a dominação sexual,antes insinuada, adquire uma evidência espanto-sa. Em Jupiter e Thetis (1811), Ingres faz uma ana-logia ao Império napoleônico através da imagemde um homem/divindade gigantesco que se im-põe, com seu corpo descomunal, sobre a diminu-ta e sinuosa mulher, emblemática de uma relaçãode submissão. O recurso à analogia permite a In-gres aprofundar o exercício da dominação, deuma maneira que teria causado resistências à artede David, sem qualquer tipo de medo da opiniãopública. Recurso semelhante é usado por Dela-croix, especificando-se que aí se encontra no ima-ginário orientalista – por si só um testemunho dadominação política – a solução para um aprofun-damento da dominação masculina, que no casode A Morte de Sardanapalus (1827) (4) beira umerotismo macabro. O mesmo pintor a estabelecera imagem da revolução por meio da alegoria fe-minina foi capaz de concebê-la como objeto eró-tico, cuja vida e morte podem ser decididas emfunção dos desejos masculinos. Ambos usaramcomo recurso para que suas obras fossem bemaceitas pelo público o recurso do distanciamentoalegórico, ora temporal, compondo as telas comose fossem de um passado mítico (até mesmo reli-gioso), ora depositando no oriente inventado esonhado as pulsões eróticas que não se aventura-vam a reconhecerem em sua própria sociedade.

É verdade que o Brasil parece dissolver a in-tensidade das tradições. A obra de Debret no Bra-sil, segundo Rodrigo Naves, perde a intensidadeda matriz francesa, seu vigor neoclássico se esvaie dissolve-se nas aquarelas, como resultado deuma sociabilidade avessa ao espírito revolucioná-rio que alimentara a arte de David.14 Embora as

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causas apontadas pelo crítico sejam discutíveis, defato a pintura histórica de Debret feita de acordocom as exigências da família real, não demonstra oscontrastes entre masculino e feminino iniciadospelo mestre, aliás, parece mesmo adquirir um teordecorativo. Não apresenta também tamanho rigorna composição de seus heróis e ainda menos umaatenção tão especial ao corpo masculino. O mesmojá não se pode dizer de seu discípulo Manuel deAraújo Porto-Alegre, que, quando diretor da Acade-mia (1854-1857), evidenciou a absorção dos pa-drões neoclássicos ao exigir dos pensionistas deter-minadas atitudes.

Se nas obras de Debret e mesmo nas de Por-to-Alegre não está evidente o cânon davidiano comrelação à composição histórica, isto não quer dizerque os valores, os modelos tivessem sido esqueci-dos. A importância do estudo do corpo humano,das aulas de nu, do conhecimento de anatomia e desua transcrição fiel para as telas é bastante visívelnas exigências que faz a Victor Meirelles, seu discí-pulo querido, no período em que ele está em Paris.Em carta, Porto-Alegre indica os passos que o jo-vem deveria seguir para compor a Degolação deSão João Batista:

Antes de compor, veja a ação em geral, veja depois,cada uma das suas personagens: estude-as moral efisiologicamente para que elas possam, cada umade per si, compor um todo harmônico e verdadei-ro. [E prossegue analisando o quadro enviado, queparece frustrar as expectativas de um corolário neo-clássico, baseado na observação minuciosa do cor-po humano.] A figura do algoz tem boa cabeça; opescoço, o tórax e o abdômen estão sofrivelmentemodelados e melhor coloridos, porque não temtons sujos, porém, parece-me que há uma falhazi-nha miológica na região intercostal. O braço direi-to, no que toca o antebraço, não está mau, porémnão está acentuado com energia, nem tem clarezana musculação: o deltóide deveria ser mais fibroso,assim como mais marcado o tríceps braquial; quan-to ao antebraço, punho e mão, esses não foram es-tudados com tanto amor como o tórax e o abdô-men. [...] As pernas parecem curtas, e um tanto iner-tes no modo de acentuar a musculação: o que estáperfeitamente modelado é a parte externa da regiãopoplítea e, sobretudo, a inserção posterior do trí-ceps da coxa.15

Tamanha exigência de conhecimento anatô-mico revela a importância do estudo de modelovivo, tido como etapa fundamental para a compo-sição da pintura histórica.16 O produto final consis-tia numa obra que fora lentamente gerada. O alu-no iniciava seu aprendizado no desenho, primeira-mente de partes do corpo humano e, num estágioposterior, passava a aprimorar sua observação apartir dos bustos de gesso, com os quais se exerci-tava nos estudos de luz e volume. Cumprida essaetapa estava apto a subir um degrau e se tornar umestudante sênior, para tanto o ritual de batismo in-cluía o desenho a partir do modelo vivo, conside-rado o momento mais importante na sua instru-ção.17 Feito isso, poderia finalmente iniciar-se nospincéis, primeiramente com uma cópia de algumdetalhe de composição de algum grande mestre. Atécnica ainda não visava a um ato construtivo, cria-tivo, mas ao treino técnico. Essa etapa era denomi-nada ébauche. A partir de 1816 foi introduzida umainovação no sistema francês, qual seja, aulas decomposição cujo resultado final seria a produçãode esquisses por cada aluno. Esses seriam uma es-pécie de ensaio geral da tela concebida, em que adisposição da composição, cores e luminosidadesjá estariam presentes, mas com pinceladas soltas esem uma preocupação com o acabamento. A últi-ma etapa seria o fini, a tela propriamente dita, emque se recupera o esquisse, mas controlando osefeitos de luz e conferindo-lhe acabamento, me-diante o qual qualquer vestígio das mãos do pintordeveria ser retirado a fim de lhe conferir a impres-são de perfeição almejada.

A Académie, ou desenho a partir de um mo-delo vivo, era a etapa que separava o rapin (es-tudante inicial) do estudante avançado, sendo,portanto, etapa primordial da formação de artis-tas e tendo um significado simbólico na carreira.Para tanto, contribuiu a própria hierarquia dosgêneros acadêmicos, em que pintura histórica rei-nava no patamar mais elevado. Esta se assentanuma tradição em que os grandes feitos eram, re-correntemente, simbolizados por um herói cujocorpo era modelado por músculos pulsantes, tes-temunhando de seu vigor e força, qualidades vis-tas como masculinas. O desconhecimento do cor-po humano obstaculizava a carreira de um pintor

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que se pretendesse seguidor dos ditames neoclás-sicos.18 Foi justamente nesse ponto que o sistemaacadêmico operou a exclusão das mulheres deseu universo. Mesmo que depois tenham sidocriadas expressões, como a de “uma arte femini-na”, para se rotular e segregar os trabalhos dasmulheres, uma vez que a expressão era aplicada,genericamente, às artes menores, como a pinturasobre porcelana ou tapeçaria. O que as excluiunão foi a ausência, natural, de capacidade estéti-ca, mas um preconceito cujas bases são sociais eque lhes interditou o acesso ao estudo do nu.19

O século XIX, no Brasil, gerou um númeroimportante de pintores históricos. Nenhuma mu-lher faz parte da galeria. Os dois mais reputadosartistas desse período foram Victor Meirelles e Pe-dro Américo. Para além da diversidade com queconcebiam a pintura acadêmica, tão bem assina-lada pelo crítico do período Gonzaga-Duque,20

ambos foram alunos da Imperial Academia, ten-do a oportunidade de se formarem no cânon econhecerem as obras dos grandes mestres em Pa-ris. O Museu Nacional de Belas Artes possui vá-rios estudos de modelos vivos feitos por eles, oque mostra que eram, cada um à sua maneira,exímios desenhistas. Se a educação artística nãodetermina um estilo comum, ao menos abre asportas para que sigam carreiras paralelas.

Com isso volta-se a um ponto levantado noinício deste texto: há questões aparentemente ex-teriores ao mundo da estética que são fundamen-tais para que se compreenda a gênese dos valo-res estéticos e a exclusão que eles operam. Aquestão da participação das mulheres no mundoda pintura acadêmica permite que esse sistema,auto-intitulado imune às pressões externas (con-cebendo a diferença entre os artistas como assen-tada em dons, por exemplo), se revele eivado deconstrangimentos e relações de poder. A diferen-ça entre homens e mulheres no que se refere àformação artística imputa espaços distintos, parauns e outros, nesse universo.

A educação artística das mulheres no Brasil

O tema da formação das artistas acadêmicasno exterior já está relativamente bem documenta-

do pela bibliografia internacional. Embora a com-paração seja inevitável e necessária, não cabe noespaço circunscrito de um artigo. Assim, estetexto se limita a tratar apenas da questão da for-mação das artistas nacionais. No Brasil, a lei quepermitiu o ingresso das mulheres nos cursossuperiores foi promulgada em 1879, vigorando apartir do último decênio dos tempos imperiais.Até então estava formalmente interditada qual-quer possibilidade acerca de uma completa pro-fissionalização feminina, excluindo-se o professo-rado, que não exigia mais do que a Escola Nor-mal. Tal permissão incluía o acesso à ImperialAcademia de Belas Artes, mas parece não ter sidoimediatamente seguida.

Vários motivos podem ser apontados paraesse aparente descaso feminino em relação àoportunidade que se lhes abria. A ausência deuma tradição feminista de combate por direitossociais, como a das norte-americanas ou aindafrancesas, é uma das causas. Diferente da França,onde as mulheres já haviam se organizado comoum grupo de reivindicação desde meados do XIXe exigiam sua entrada na École de Beaux-Arts,21 noBrasil, a lei fora promulgada a partir das reivindi-cações de um grupo restrito de mulheres (escrito-ras no geral),22 cuja preocupação estava centradanas instituições de ensino profissionalizante tradi-cionais, como as faculdades de direito ou de me-dicina. Outro obstáculo diz respeito à dificuldadede serem aprovadas nos exames de admissão,uma vez que eram raras as escolas secundáriasque aceitavam mulheres em suas fileiras.23 A con-sulta aos catálogos das Exposições Gerais de Be-las Artes (após 1889, chamados Salões) revela quea lei demorou a se traduzir num ingresso efetivode mulheres na escola. Elas, por algum tempo,continuaram sua formação tradicional: em ateliêsparticulares de professores vinculados à academiaou na Académie Julian, em Paris. Talvez a vergo-nha, uma sanção mais sutil, mas nem por isso me-nos eficaz, possa ter sido outro motivo. Afinal,uma mulher que pretendesse uma formação aca-dêmica estaria cometendo alguns desvios: um de-les seria pleitear uma carreira pública, o que con-trariava o espaço que lhe era sugerido pelos valo-res sociais, e o outro seria se postar (o que exigiamuita coragem) diante de um modelo, vivo e nudiante de seus olhos.

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As primeiras matriculadas nas aulas de mode-lo vivo foram as escultoras Julieta de França e Ni-colina Vaz de Assis, em 1898. Até então moças e se-nhoras insistentemente cursavam uma matéria, amais elementar: desenho de ornatos. Poucas ousa-vam um passo adiante, como inscrever-se nos ate-liês de pintura e escultura. Entre aquelas que visa-vam a uma formação mais sólida havia uma esco-lha comum: a ida para Paris, a fim de estudar numaescola que, reconhecidamente, teve o mérito degarantir às mulheres de elite de todo o mundo oacesso ao mesmo tipo de ensinamento acadêmicodesfrutado pelos homens: a Académie Julian.

Entre as brasileiras que se formaram sob aorientação de Rudolph Julian,24 está justamenteGeorgina Moura Andrade de Albuquerque, nasci-da em 1885 na cidade de Taubaté. Seus primeirosestudos de pintura se deram com um professorparticular, o sr. Rosalbino Santoro. Foi como suaaluna que expôs em 1903 na X Exposição Geralde Belas Artes, ainda com o nome de solteira. Noano seguinte ingressou na Escola Nacional de Be-las Artes, onde conheceu o seu futuro marido, Lu-cílio de Albuquerque, também aluno da institui-ção. Em 1905 participou da XII Exposição Geralsem declarar ser aluna da instituição, apenas fa-zendo notar o nome de seu mestre, Henrique Ber-nardelli. Em 1906, parte para a Europa já casadacom Lucílio, que recebera o prêmio de viagem aoexterior. Sua estadia em Paris trouxe-lhe uma am-pla formação em técnicas diversas, adquiridas nasaulas de Paul Gervais e Decheneau, com os quaisse informou sobre as artes aplicadas. Institucional-mente participou dos dois grandes centros de for-mação, a École de Beaux-Arts, fato que fará cons-tar em todas as exposições de que participou e,ainda na Académie Julian, uma instituição funda-da em 1868 e que tradicionalmente recebia brasi-leiros.25 Aí teve como professor Henry Royer. Oaprendizado na escola seguia critérios acadêmicoscomuns à École de Beaux Arts, tendo inclusive emseus quadros professores da tradicional institui-ção, tais como Cabanel, Bouguereau entre outros.

Julian percebera que havia um interesse im-portante da clientela feminina internacional emuma educação artística nos moldes da masculina,em última instância, percebeu que a profissionali-zação feminina seria um bom negócio.

Apesar de o curso ser caro e as classes dehomens separadas das de mulheres, ainda assimlhes fornecia o mesmo tipo de treinamento. Achave da formação era o desenho, que exigia des-treza, trabalho e paciência; ao que se seguiam ascópias de grandes mestres. Além disso, estimula-va uma competitividade interna, por meio de prê-mios, criando um ambiente mais próximo ao daÉcole, preparando suas alunas, inclusive psicolo-gicamente, para as duras exposições que deve-riam enfrentar. O seu diferencial, todavia, foi o es-tabelecimento de classes de estudo do modelovivo para mulheres, que se saiba o primeiro cur-so a ser-lhes oferecido mundialmente.

Muitas mulheres estrangeiras aportavam emParis procurando acessar as instruções que lheseram vetadas em seus países, entre elas a russaMarie Bahkirtseff, que representou bem as aulascom modelos em sua tela In the Studio (1881) (5).O jovem modelo posa, com seu tapa sexo, paramoças ávidas por capturarem com o melhor ângu-lo possível a anatomia de seu corpo. Há váriosnus femininos elaborados por elas que provamque Julian não apenas estimulava o gênero, comotambém tornava mais sofisticado o ponto de vistado observador, por meio de poses pouco conven-cionais. A solução era clara: as modelos seriampreferencialmente mulheres, no caso de homensposariam com um pano em suas partes “perigo-sas”. Isso garantia a boa formação das mulheres,sua inclusão nos estágios da formação de artistas,sem provocar a ira de seus pais, ou da “boa“ so-ciedade. Os estudos de Académie tinham aindauma segunda importância para as mulheres: viabi-lizavam suas carreiras como retratistas, mercadoque lhes era mais promissor.26

A passagem de Georgina pela escola garan-tiu-lhe uma série de aprendizados, entre eles oaprimoramento na representação do modelo vivo.Além disso, a instituição incitava os debates sobrearte feita por mulheres, e até mesmo uma compe-titividade interna entre elas, ocasionando umacerta consciência sobre a situação das mulheresartistas. Do ponto de vista formal, a educação re-cebida permitia-lhes que se dedicassem a gênerosdiversos, ainda que o retrato fosse o mais rentá-vel, também havia a possibilidade de se dedica-rem à pintura de gênero histórico. E por que não

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o faziam? Desde o século XIX algumas pintorasbrasileiras passaram por lá, sendo a primeira Ber-the Worms, importante retratista em São Paulo.Mas somente em 1922, com o trabalho de Georgi-na, vemos uma mulher se dedicando ao gêneroque fora tido, no passado, como o mais elevadodentro da hierarquia acadêmica.

Novamente, é impossível pensarmos em umaúnica causa. Em primeiro lugar, deve-se lembrarque, quando as mulheres ingressam em massa nasacademias – isso no plano mundial se dá em finaisdo XIX –, é justamente o momento em que tais ins-tituições estão em plena crise. A saturação do sis-tema que lhes servia de base gerou seus próprioscríticos,27 como os impressionistas, que estrutura-ram um sistema artístico paralelo e independentedo oficial, indicando a agonia daquele esquemacentralizador. A grande pintura histórica já careciade encomendas e também de público nos maiorescentros e, desde os anos de 1830, na França, pre-senciava o declínio de sua magnitude em relação àpintura de gênero. A III República fomentou umrevival por meio de encomendas públicas que vi-savam a “educar as massas” segundo a moral doEstado, de sorte a valorizar temas determinados eum estilo classicizante. Porém, isso ocorria conco-mitantemente à perda de centralidade do Salon eda própria Académie diante de um sistema artísti-co complexo, inclusive pelo fortalecimento de ummercado artístico paralelo e não subordinável aogosto oficial. No Brasil, houve um certo mecenatodurante a I República sobretudo por parte do Mu-seu Paulista, em São Paulo, mas este não era com-parável às encomendas públicas ensejadas pelaGuerra do Paraguai, as quais engendraram as obrasde Pedro Américo e de Vitor Meirelles que torna-ram célebre a exposição de 1879.

As encomendas advindas de São Pauloincluíam poucas mulheres, e quando o faziam aescolha se pautava pelas paisagistas, e não pelasretratistas.28 Ainda assim é possível que a come-moração do Centenário da Independência, junta-mente com a política de Taunay, levada a cabo noMuseu Paulista, de constituição de uma “memóriapaulista” por intermédio de realizações iconográ-ficas, tenham estimulado um revival, mobilizandoos artistas a adequarem o gênero aos ditames da“moda” e do tempo.29

Ainda que com a República as mulheres te-nham passado a expor em maior número seus tra-balhos nos salões, as telas de grandes dimensõesmantinham-se como tabus. Os motivos são dificil-mente recuperáveis dada a ausência de documen-tação, e entramos, assim, na ordem dos prováveis.Uma tela histórica é feita em grandes dimensões epara ser exposta em logradouros públicos, parafreqüentadores desconhecidos, anônimos. Trata-se de um gênero que não está destinado à esferadoméstica. E também não se trata de uma produ-ção que possa ser vista como resultado de umaprimoramento nas “prendas do lar”. Difere radi-calmente do retrato privado e também das nature-zas-mortas, gêneros afeitos aos ornamentos doslares burgueses. Uma mulher que ousasse pintarum quadro histórico estaria rompendo com aequação, já mais do que conhecida, de que a elacaberia o espaço da casa, enquanto ao seu mari-do e aos seus filhos homens estava destinado oespaço da rua, do trabalho, em suma, da vida pú-blica. Desafiar esta ordem das coisas poderia tra-zer dissabores. E isso ocorria não apenas no Bra-sil, mas também na França:

[...] as mulheres ainda tinham de combater a visãopredominante (codificada nas exclusões institucio-nais e nos discursos da crítica, da ciência, da me-dicina, do direito e da moralidade) de que um en-gajamento sério e profissional com a arte estavaalém das capacidades de uma verdadeira mulher.Se houvesse mulheres que demonstrassem uma ca-pacidade artística excepcional, então o sentimentoera que elas tinham necessariamente de renunciara seus atributos intrinsecamente “femininos”, e as-sim ameaçavam solapar toda a estrutura social so-bre a qual se erguia a França moderna. Se as mu-lheres fossem abençoadas com uma sensibilidaderefinada e uma percepção estética desenvolvida,isto deveria ser expressado nas atividades adequa-das dos afazeres domésticos, o bordado, a monta-gem de álbuns e a pintura de aquarelas, nada mui-to difícil ou ambicioso, nada que as afastasse deseus deveres primários de esposas e mães. Ser umaartista profissional era, em muitos lugares, transgre-dir as expectativas sociais [...].30

Uma coisa era ser uma mulher educada, quesoubesse receber bem, entabular boas conversas,fazer-se agradável ao piano, e cujas mãos servis-

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sem para decorar e tornar o lar um espaço acon-chegante. Essa era a mulher desejável dentro dospadrões vigentes. Se o pendor artístico respeitas-se os limites da casa, era um dom legítimo, mas setornava impertinente quando associado a um de-sejo de afirmar-se em público. A pintura era umaprenda e não uma carreira. As artimanhas pelasquais as mulheres eram desencorajadas a se tor-nar artistas profissionais exigem uma pesquisabastante minuciosa do discurso dos críticos, daimprensa, das caricaturas de época, e também daspremiações acadêmicas. Embora não se possa ain-da tecer afirmações contundentes a esse respeito,o próprio testemunho de Georgina Albuquerqueinsinua algumas pistas sobre o tipo de desafio queas mulheres encontravam.

Há pouco, mesmo, o senhor me falou de umquadro meu de que disse gostar muito, e que, ge-ralmente agradou. É aquela menina repousandosob a sombrinha encarnada...

Pois sabe o que aconteceu a esse quadro?Pintei-o pensando pleitear uma medalha, um

prêmio qualquer, de estímulo no salon. Mandei-oà exposição. O quadro agradou, todos me disse-ram isto, inclusive membros do júri, mas não ob-teve a medalha. Apenas, como ficha de consola-ção, deram-me 500$, mandando o júri igual quan-tia, para outra pintora, muito talentosa, que con-correra à mesma recompensa que eu.

A minha colega, mais sonhadora e impressioná-vel, talvez, sofreu um golpe, tão rude, que aban-donou o pincel, não quis mais se dedicar à arte,deixou a profissão onde começara tão bem. Eunão. Melhor formada para essas decepções, guar-dei os 500$ e continuei a trabalhar, com perseve-rança e destemor.31

Premiações injustas agregadas a prêmios deconsolação, críticas adocicadas às obras, estadosde gravidez que interrompiam as carreiras e exi-giam uma dedicação total ao lar, vários eram osdesafios dessas mulheres. Georgina relata o episó-dio de sua amiga que, menos teimosa e determi-nada que ela, diante do primeiro caso de negaçãode seu talento, desistiu de sua trajetória artística. Éde se imaginar a que tipo de comentários e pres-sões estaria sujeita uma mulher que ousasse pin-

tar uma tela de gênero histórico, centrada na figu-ra de um herói cujo corpo bem delineado a todosmostrasse que estivera sentada, horas, diante deum modelo nu; e cuja pretensão era competir, di-retamente, no campo em que os artistas homenshaviam pleiteado a aclamação pública de suasqualidades geniais. Essa mulher, no mínimo, frus-traria as crenças de que a submissão e o recatoeram as qualidades de seu sexo.

É provável que esse temor fosse comum a vá-rias mulheres dessa geração. Uma coisa era pintar,expor, outra era considerar essa atividade um tra-balho que as expusesse para além do espaço des-tinado à mulher: o doméstico. Em atitude oposta,Georgina, em 1922, exibiu uma tela em que reivin-dicava o posto antes reservado apenas aos ho-mens: o de pintora de gênero histórico. Sua ousa-dia estava ancorada em uma carreira artística deprestígio: em 1907, recebera sua primeira mençãohonrosa, em 1912 e 1914, obtivera medalhas deprata nos Salões nacionais e, em 1919, obteve apremiação máxima: a medalha de ouro com a telaFamília. Tal feito ensejou oportunidades institucio-nais. Em 1920, tornou-se a primeira mulher na his-tória da arte brasileira a participar de um júri aca-dêmico. Sob tais bases sólidas deflagrou a atitudepouco convencional de pretender firmar-se comopintora de história. E não é improvável que alme-jasse figurar nas salas de algum museu, sendo agra-ciada com uma encomenda pública e com a perpe-tuação de seu nome na galeria dos ilustres pintoresresponsáveis pela criação de uma memória para anação. Após essa digressão é hora de retornar àtela Sessão do Conselho de Estado, pois é na sua fei-tura que as ambigüidades e ousadias de uma pin-tura elaborada por uma mulher tomam corpo.

A ousadia contida de Georgina

Qualquer tentativa de compreender os reaisintuitos que guiaram as mãos de Georgina naconstituição da tela tem algo de especulação. Aúnica documentação com que se pode contar é aprópria obra, testemunho por si mesmo polissêmi-co, que nos permite apenas interpretações incer-tas. A análise ganha solo mais firme quando pau-

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tada pela relação a uma determinada tradição depintura, a qual, neste caso, excluiu a mulher tan-to da atividade criadora quanto de uma primaziavisual, posto que o heroísmo esteve associado àsqualidades masculinas. Ao que parece, Georginatentou afirmar-se, em sua tela, como uma mulherpintora de tema histórico, por meio da figuraçãode um novo tipo de herói. Se a iniciativa é ousada,a fatura indica um viés de conservadorismo ou decompromisso com linguagens que poderiam sertomadas, se referendadas por parâmetros rígidos,como excludentes.

Georgina firmara sua reputação como artis-ta impressionista, estilo que, na França, provocoua crise do sistema acadêmico ao propor como so-lução final das telas o ébauche e não mais o fini,desafiando a própria noção de arte tradicional.32

Escreve Bourdieu que a arte acadêmica se carac-teriza pelo controle estatal, que exige dos preten-dentes, ao deter o monopólio das chances de car-reiras, essa arte da destreza técnica, essa pinturaque não se afirma autônoma, mas, ao contrário,se pretende “legível” em vez de “visível”:

Com efeito, a virtuosidade técnica que é, com aexibição de cultura, a única manifestação admiti-da da maestria, só pode realizar-se negando-se: oacabado é o que faz desaparecer todo o vestígiodo trabalho, da manufatura (como a pinceladaque, segundo Ingres, não deve ser visível, ou otoque, “qualquer que seja a maneira como é diri-gido ou empregado, é sempre um sinal de infe-rioridade em pintura”, como escreve Delécluzeem Les Débats), ou mesmo da matéria pictórica (éconhecido o privilégio conferido à linha em rela-ção à cor que se torna suspeita pela sua seduçãoquase carnal), em suma, de todas as manifesta-ções da especificidade do ofício é ele que fazcom que, no termo desta espécie de realizaçãoautodestrutiva, a pintura seja uma obra letradacomo as outras, passível da mesma decifraçãoque a de uma poesia.33

Manet negara tudo o que dizia respeito à téc-nica tradicional na segunda metade dos oitocen-tos. Recusara a supremacia do fini, subvertera aescala dos temas e passara a cultuar o que antesera visto como assunto indigno para a arte subli-me: as cenas cotidianas, as cortesãs, as cenas de

bares, a natureza vista de fora do ateliê. Do pontode vista da feitura, ele contestava a noção de que“o esboço se distinguia do quadro como a impres-são que convém à fase primeira, privada, do traba-lho artístico, distingue-se da invenção, trabalho dereflexão e de inteligência feito na obediência às re-gras e apoiado na busca erudita, sobretudo históri-ca”.34 Como afirma Bourdieu, “Manet, ao impor àsua obra uma construção cuja intenção não é a deajudar à ‘leitura’ de um sentido, condena a umasegunda decepção, sem dúvida mais fundamental,um olhar acadêmico acostumado a perceber apintura como uma narrativa, uma representaçãodramática de uma ‘história’”.35

Quando Georgina adere ao impressionismo,já em inícios do século XX, o estilo havia se “aca-demizado”. O II Império francês caracterizou-se,ao longo dos anos de 1850 até 1870, pela difusãode uma solução pictórica que estava a meio termotanto das linguagens produzidas pelas vanguar-das, como a de Courbet, quanto de uma estéticadefendida por acadêmicos tradicionalistas, dandoensejo a produções de compromisso, denomina-das juste milieu. A III República manteve a ten-dência às soluções intermediárias, ora levando aum naturalismo classicizante ora a uma incorpora-ção acadêmica do impressionismo. As obras deCabanel, Bouguereau, professores de vários artis-tas brasileiros que estagiaram no exterior, incluin-do aqueles que passaram pela Académie Julian,combinavam a luz e a cor modernistas (absorvidasdo romantismo e do impressionismo) com a cen-tralidade do desenho e das temáticas conhecidase apreciadas por um público burguês.36 Conformeaponta Alexandre Eulálio, eram justamente essasobras que contavam com algum mercado consu-midor no Brasil:

Já então o colecionismo começava a se definir se-gundo um paladar eclético, estimulando (era ine-vitável) pelos costumes mundanos da Paris III Re-pública. Multiplicam-se então as viagens à Europa[...]. A pintura que pode interessar a esse públicoterá de ser naturalmente aquela acessível ao filis-teísmo mundano e novo rico, não a grande pin-tura, sempre difícil e sem concessões – nem aque-la do passado, nem, muito menos, a experimen-tação vanguardista do tempo.37

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Se utilizássemos os critérios vigentes até osanos de 1970 para classificarmos a obra de Georgi-na veríamos que sua tela jamais seria tomada pelosacadêmicos como uma pintura de boa qualidade.Suas afinidades estilísticas e temáticas com MaryCassatt são tão evidentes que qualquer espectadora enquadraria nas mesmas fileiras da pintora im-pressionista norte-americana. Como ela, consagra-ra-se pintando cenas cotidianas de mulheres ao sol,nos parques, com seus filhos. Temas que cabiambem a uma mulher, e também a uma pintora im-pressionista. Porém, no Brasil, Georgina sempre foiconhecida como pintora acadêmica. Contribuiupara tanto uma série de motivos associados à suatrajetória: ser esposa de um pintor reconhecidopela academia, ter exposto freqüentemente nos sa-lões, ter seguido uma carreira vinculada à institui-ção, chegando mesmo a ocupar o posto de direto-ra, após ter sido professora da casa.

A tela Sessão do Conselho de Estado é indica-tiva desse movimento de academização do im-pressionismo e, em contrapartida, de inovação dapintura acadêmica. O colorido intenso dominadopelos tons em laranja e amarelo, que aparecemem outros trabalhos seus, proporcionam grandevibração ao quadro, mais do que seria adequadoa uma pintura bem feita nos moldes neoclássicosvigentes ao longo do século XIX. As pinceladasfortes foram mantidas, de modo que qualquerpreocupação com a perfeição do acabamento, emque uma ilusão de realidade pudesse se manifes-tar, está aí ausente. Tanto nas cores, quanto notipo de pincelada, a tela é evidentemente impres-sionista. Mas tanto a temática, o enquadramento,quanto a grande dimensão e a clara preocupaçãocom a fidedignidade aos rostos dos retratados, as-semelham-na a uma pintura de gênero históricoconvencional. Isso a afasta dos impressionistas, namedida em que uma das bandeiras contra a aca-demia era a subversão dos temas ditos consagra-dos para a arte; a profanação que procederamcontra a arte tradicional foi a de se contraporem àsua narratividade, sobretudo histórica. AssimGeorgina nos apresenta uma estranha combina-ção: um estilo aparentemente impressionistanuma tela que se pretendia, segundo as classifica-ções costumeiras do sistema acadêmico, ser umgênero mais conservador.

Do ponto de vista formal, o mínimo que sepode dizer é que Georgina foi tímida, pois busca-va essa solução de compromisso já repetidamen-te utilizada por artistas franceses os quais conhe-ceu, ou como aluna ou como espectadora, em seuperíodo de formação na França. Tais fórmulas,presentes ainda nos anos de 1980 em artistasdenominados juste milieu foram absorvidas porvários outros artistas brasileiros como Visconti,Calixto, Amoedo, Décio Villares, Manoel LopesRodrigues, Firmino Monteiro, entre outros, consti-tuindo-se como um patamar de atuação seguro,com um público relativamente estável, ou, em ou-tras palavras, demonstrava um desejo de atualiza-ção, um gosto pelo moderno, mas sem grandesânsias pela ruptura com o sistema acadêmico.

Porém, é esse tipo de composição pouco ou-sado formalmente que garante sua inovação, sepensada à luz da tradição da pintura histórica bra-sileira e seu significado para as mulheres artistas.Primeiramente por afirmar-se publicamente comouma mulher pintora que escolheu o desafio deenfrentar a temática histórica. Afinal expunha-seao julgamento público (e esse termo amedrontavasuas colegas) sua capacidade de pintar uma telacom grandes dimensões, onde estava em jogo acompetência na representação do corpo humano.A passagem pela Académie Julian mostra-se aífrutífera, são muito bem feitos os retratos, notan-do-se a ênfase nos rostos. Mais engenhosa e cu-riosa é a escolha do tema: atribuir relevância his-tórica à princesa Leopoldina no que diz respeito àIndependência do Brasil.

A realização de Georgina não pode, portan-to, ser compreendida apenas a partir de um pon-to de vista estético. Se os olhos forem os do críti-co de arte, se verá em sua obra apenas o que pos-suem de mais frágil: a absorção estilística de umafatura associada a um gosto burguês, como é ojuste millieu. Mas se for recolocada dentro de umadeterminada tradição artística de um modo maisamplo, englobando os valores sociais e políticosque são reproduzidos pelo sistema de ensino ar-tístico, o qual distribui desigualmente as chancesde carreira para os indivíduos, torna-se perceptí-vel a discreta ousadia de sua proposta. No míni-mo subverteu a imagem de herói correntemente

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aceita e mais, ampliou as linhas que demarcavamo espaço de atuação das artistas mulheres. Comopostulam as historiadoras da arte feministas, a in-venção de um olhar puro é um exercício da do-minação masculina. Quem quiser trabalhar comarte feita por mulheres não pode aceitar o cânone julgar suas obras a partir de um padrão que asexcluiu, por séculos, de todo o sistema de produ-ção e consagração das obras.38

A tradição de nossa pintura, que conformanosso imaginário, depositou em homens, principal-mente nos regentes, os feitos grandiosos de nossahistória. As mulheres, com exceção das princesasIsabel e Leopoldina, permaneceram como acompa-nhantes, nos bastidores. Na tela, Georgina centroua cena na princesa Leopoldina, indicando o seu pa-pel de articuladora política, visto como fundamen-tal para o evento celebrado. O modo com que ofaz também deve ser destacado: ela não está aocentro, com uma espada, e tendo abaixo os ho-mens (ou o povo, se se quiser), tal qual aparecianas pinturas alegóricas ou naquelas em que o he-rói era um homem. Essa heroína é serena (contra-riando a noção da mulher como um ser sem con-trole sobre suas paixões); não se coloca acima doshomens (mas eles lhe rendem homenagem, aindaque estejam mais altos); não faz a guerra, mas aarticula; não dá “o grito”, mas o engendra, sua for-ça é intelectual.

Vale a pena lembrar que esse “golpe” deGeorgina fora tomado poucos anos depois de re-ceber a medalha de ouro na Exposição Geral deBelas-Artes de 1919 e, graças a isso, ter-se torna-do a primeira artista mulher a participar de um júri(de pintura, no caso), no ano seguinte. Seu gestosingular tinha sólidas bases institucionais, como aposição na academia, a carreira bem-sucedida, omatrimônio com um também condecorado pintoretc. Georgina soube como poucas artistas mani-pular a seu favor os mitos em torno de um casa-mento feliz, em uma época de valorização da mu-lher culta como boa mãe republicana. Sua tela étambém uma projeção dos ideais em torno da de-sejada mulher republicana: feminina, culta, forte,mas jamais “competitiva”. A princesa Leopoldina éuma de suas melhores expressões, ainda que as-sociada a um passado Imperial. Também Georgi-

na representava esse protótipo desejado de umamulher que soubera harmonizar os interesses derealização profissional com as exigências e as sa-tisfações de uma vida familiar feliz. Como Angio-ne Costa afirma, o casal foi responsável, conjunta-mente, pela criação de uma grande obra: a vidaperfeita.

A casa de D. Georgina e de Lucilio de Albuquer-que é um sereno recanto onde se vive da arte epara a arte. Aquele casal realiza bem o ideal deperfeição, dificilmente atingido, e vai dando àvida a mais graciosa impressão de encanto, possí-vel num lar de artistas [...]. São o que se pode de-sejar um casal acertado, duas criaturas que se uni-ram para a realização de uma grande obra e vãodando ao seu sonho a elasticidade concreta deuma vida perfeita [...].39

Georgina foi capaz de combinar trunfos di-versos como os de uma sólida formação artística;uma determinação incomum que se evidencia napersistência com que expunha nos salões;40 a ima-gem de mulher competente nos moldes republica-nos, o que incluía uma formação intelectual emesmo profissional que não obliterasse as ativida-des de mãe e esposa, às quais se dedicou infati-gavelmente e, finalmente, o apoio do marido,também pintor, Lucílio de Albuquerque, cujocompanheirismo proporcionou-lhe o conforto in-terno necessário para que ousasse ultrapassar asbarreiras erguidas para as mulheres de sua gera-ção. Sua auto-afirmação como pintora de temáticahistórica se deu no ano em que o sistema acadê-mico sofreu as mais demolidoras críticas. É curio-so notar que, pouco antes de Anita Malfatti e deTarsila do Amaral se consagrarem como artistasexemplares do modernismo, justamente o estiloque se insurgia contra o academismo, era uma ou-tra mulher que, navegando por outras correntesestéticas, afirmava-se, publicamente, como artistae profissional.

NOTAS

1 Sabe-se que o impacto da instituição, entretanto, é de-sigualmente importante ao longo do vasto território

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nacional. Em alguns lugares, como Salvador, os sis-temas locais continuaram fortes e resistiram aos no-vos modelos que chegaram da França, com a Mis-são Artística de 1816.

2 Refiro-me ao impacto da Semana de Arte Modernae sua demolição, ao menos no plano dos valores edas idéias, do estilo e da importância da Academia.

3 Diz a legenda da tela “Convocou-se ao Conselho deEstado para o dia primeiro de setembro (ou 2), às10 hs da manhã. Já estavam todos os ministros pre-sentes no Paço. Fez José Bonifácio a exposição ver-bal do estado em que se achavam os negocios pu-blicos, e concluiu dizendo que não era mais possi-vel permanecer naquella dubiedade e indicisão, eque para salvar o Brasil cumpria que se proclamas-se immediatamente a sua separação de Portugal.Propoz então que se escrevesse a D. Pedro que semperda de tempo puzesse termo alli mesmo em SãoPaulo a uma situação tão dolorosa para os brasilei-ros. Todos os ministros applaudiram o alvitre e comelles emulou no enthusiasmo a Princeza Real.” (Ro-cha Pombo, 1905, p. 743). Percebe-se que a pintoraescolhe como marco para a Independência o mo-mento de seu engendramento, no qual a princesatoma papel ativo, e não o de sua realização simbó-lica levada a cabo pelo governante. Ao que parece,o regente foi um mero executor das decisões toma-das em sua ausência, pelos “intelectuais” de Estado,dentre os quais a sua própria consorte.

4 Refiro-me, em especial, aos estudos desenvolvidos porele em Arte e ilusão: um estudo da psicologia da repre-sentação pictórica, 1986 e La Imagen y el Ojo, 1993.

5 Ver E. Gombrich, 1988, pp. 51-52. Neste livro o au-tor mostra o quanto a “memória artística” ou sche-matta, ou seja, a série de convenções sobre a repre-sentação, é que guia a própria possibilidade de re-presentar, construindo o olhar. Não existe, portanto,um olhar puro que capta a realidade, mas sim ummodo de apreensão conformado numa determinadatradição, que percebe, no real, aquilo que mereceser fixado, op. cit., pp. 77-78.

6 A mulher foi tratada como alegoria da República ouda Nação diversas vezes no Brasil. Estou conscienteda importância do tema mas infelizmente não pudeaprofundá-lo neste texto, pois demandaria uma pes-quisa iconográfica que ainda está em andamento eleituras apropriadas. Sobre a utilização das alegoriasfemininas na pintura brasileira vale a pena ler JoséMurilo de Carvalho, 1990.

7 Segundo o Grand dictionnaire universel du XIXesiècle, “l’expression peinture de genre a été imagi-

née par la critique moderne, pour designer les com-positions dont les sujets sont empruntes à la réalitéet copiés, pour ainsi dire, sur le vig, par oppositionà celles qui expriment, d’une façon idéale, des scè-nes historiques, religieuses ou de pure fantasie, etqui constituent la ‘peinture d’histoire’”. Todavia, aolongo do século XIX, as oposições entre os gênerosforam se atenuando, sobretudo por meio da adoçãode soluções intermediárias por parte dos artistas,combinando temas históricos com cenas cotidianas,ou mesmo as características formais mais arrojadasdo realismo (e também do impressionismo) com as-suntos elevados. A pintura de gênero histórico podeser vista como uma dessas soluções de compromis-so ao combinar temas tradicionalmente considera-dos elevados, com uma fatura mais modernizante.

8 Nos últimos decênios, os debates sobre gênero fo-ram incorporados à história social da arte, trazendoabordagens renovadoras para a disciplina. Em es-pecial consultar Griselda Pollock, 1994; e LindaNochlin, 1994.

9 Antonio Candido de Mello e Souza, 2000, p. 8,grifos meus.

10 Por sistema acadêmico entende-se o conjunto dasinstituições envolvidas com o ensinamento e práticasacadêmicas: Imperial Academia de Belas-Artes e asExposições Gerais de Belas Artes (mais tarde, com aRepública, denominados Escola Nacional de BelasArtes e Salões Nacionais de Belas Artes, respectiva-mente). Seria interessante também levar em conside-ração os ateliês particulares de professores vincula-dos à Imperial Academia na medida em que amplia-vam o círculo de aspirantes à profissão, ainda quefornecendo um ensinamento menos “oficial”, masnem por isso avesso aos padrões vigentes.

11 A sociedade de corte francesa estava assentada emuma desigualdade de posições sociais baseadas nosangue e na tradição, porém, entre si os nobreseram vistos como iguais, incluindo homens e mu-lheres. As mulheres eram socialmente importantesora como promotoras de salões, e assim, de círcu-los de sociabilidade centrais, ora como intelectuaisou artistas. Duas pintoras se destacaram no período:Adélaide Labile-Guiard (1749-1803) e Elisabeth Vi-gée-Lebrun (1755-1842), ambas retratistas bastantesolicitadas pela corte e sobretudo pela Rainha.Quando se pensa em um “estilo feminino” está sepensando em pintores como Boucher, entre outros, eos retratos de corte em que os modelos estavam bas-tante marcados pela pompa, ritual e trejeitos revelan-do sua posição aristocrática. David, em contraposiçãoa isso, “limpa” as figuras heróicas de seus trabalhos

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de qualquer tipo de exagero na indumentária, ou daexpressão, que possa lembrar vestígios dessa socie-dade teatral. Seus retratos acentuam a bravura dosfeitos, das conquistas, do trabalho, reforçando umamasculinidade das atitudes dos modelos.

12 O estilo de David consistia, entre outros fatores, emapresentar cenas heróicas de um presente, ou me-lhor, de tornar presente o heroísmo. Uma das coisasque desejava era o reconhecimento por parte dopúblico de que os eventos históricos tutelados porNapoleão Bonaparte, a quem sua pintura servia,eram grandiosos tal qual os do passado, sobretudoaquele que originara a civilização ocidental. A idéiade uma dominação de homens sobre mulheres estáimplícita em suas telas, mas não escancarada umavez que, ao menos inicialmente, as mulheres deve-riam participar da república instaurada. Mas taldominação, com contornos eróticos bastante valori-zados pelo público dos salões, é aceitável quandoescondido por trás de uma roupagem alegórica. Éfreqüente, por exemplo, na pintura orientalista. Etambém será aceitável, no Brasil, quando se trata docorpo feminino da mulher indígena. Temos exem-plos como: Moema, ou ainda, A Faceira, sem eque-cermos de Marabá. A esse respeito ver BernardeteDias Cavalcanti, 1998.

13 Alguns trabalhos mencionam o papel de Davidcomo professor de pintoras mulheres, ressaltandoque, logo após a Revolução, as mulheres conhece-ram grande abertura para participarem dos Salões.Ao longo do XIX, porém, viram esse espaço dimi-nuir e acompanharam a criação de um espaço sepa-rado para as mulheres, que passaram a receber for-mações distintas. Ver Whitney Chadwick, 1986, e,em especial, Margaret Fields Denton, 1998.

14 Rodrigo Naves afirma que a tradição barroca doBrasil, aliada à uma sociabilidade em que a escravi-dão é um incômodo permanente e demasiadamen-te visível nas ruas, obrigaram Debret a “rebaixar”suas experimentações neoclássicas e tentar encon-trar uma nova forma que lhe permitisse fixar as ce-nas cotidianas, o que o levou para as aquarelas. Umneoclassicismo assentado em uma concepção repu-blicana e igualitária era inviável num país marcadopela desigualdade. Ver Rodrigo Naves, 1997.

15 Citado por Jorge Coli, s. d., pp. 35-36.

16 N. Pevsner analisa a centralidade que o estudo apartir do modelo ao vivo adquiriu na montagem dosistema acadêmico francês, ao longo do séculoXVII. Foi o seu monopólio por parte da academiaque garantiu que prevalecesse sobre as antigas cor-

porações. Quando se chega ao século XVIII, o sis-tema adquiriu grande complexidade, sendo muitomais do que uma organização de aprendizado, massim um ponto de cruzamento de formação artística,de criação estética, de adequação da oferta de obraspara uma clientela específica, com princípios pró-prios de funcionamento. O século XIX conserva aorganização tradicional da instituição até sua perdade prestígio na transição para o século XX. Ver Ni-cokolaus Pevsner, s.d.

17 Alber Boime, s. d., p. 30.

18 Vale ressaltar que, ao longo do século XIX, a pintu-ra histórica foi perdendo importância em relação àpintura de gênero.

19 Esse é a causa da exclusão das mulheres do estudodo nu para as historiadoras da arte lidas até agora.O mesmo argumento é citado por Tamar Garb, Mar-garet Denton, Catherine Feher, Anthea Callen, Gri-selda Pollock.

20 Sobre as exposições artísticas e os pintores de finaisdo século XIX a mais importante obra conhecida éArte Brasileira, publicada inicialmente em 1888, deautoria de Luis Gonzaga-Duque Estrada, o maiseminente crítico do período.

21 Há vários livros e artigos que discutem essa questãocom mais profundidade, entre eles: Marina Sauer,1990, e Tamar Garb, 1994, 1998 e 1999.

22 Algumas teses já chamaram a atenção para o fato deque as mulheres reivindicavam sim seu lugar na es-fera pública, mas eram poucas, e no geral eram jor-nalistas e propagavam suas idéias através da im-prensa feminista. A esse respeito ver Maria de Lour-des Eleutério, 1997.

23 Acerca da dificuldade da educação feminina no sé-culo XIX destaca-se, entre outros, Maria Theresa C.C. Bernardes, 1989.

24 Embora a pesquisa ainda esteja em andamento, já épossível afirmar que algumas artistas expressivaspassaram pela escola de Julian, entre elas: Fédorado Rego Monteiro, Tarsila do Amaral, Bethe Worms,Georgina de Albuquerque, Helena Pereira da SilvaOhashi e Nair de Teffé.

25 Jorge Coli menciona vários pintores importantes doXIX que passaram por lá. Estranhamente, não men-ciona pintora alguma. São eles: Belmiro de Almeida,em 1884; Mário Barbosa, entre 1902 e 1903; Rodol-fo Bernardelli, 1893; José Marques Campão, em1910; Henrique Cavalleiro, em 1919, Roberto Colin,em 1905; Eliseu Visconti, entre 1893 e 1896 e PedroWeingartner, 1882-1884. Ver Jorge Coli, s. d., p. 193.

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26 Sobre a formação das alunas na Académie Julian ea ênfase na formação de retratistas ver Gabriel Weis-berg e Jane Becker (orgs.), 2000.

27 A esse respeito ver WHITE, H. White e C. White,1993.

28 Sobre as encomendas de telas por parte do MuseuPaulista, ver Caleb Faria Alves, 2000, cap. 3. O au-tor refere-se a encomendas feitas em 17 de maio de1920 para José Wasth Rodrigues, Aurélio Zimmer-mam, Henrique Manzo, Niccolo Petrilli, Jonas deBarros, P. Gabbiati, Benedito Calixto e uma mulher,Maria Luiza Pompeu de Camargo. Sabemos que estaera paulista, uma expositora assídua dos Salões,premiada com menção honrosa e que se dedicavasobretudo à técnica da aquarela.

29 A tela de Auguste Bracet Primeiros Sons do Hino daIndependência, que também foi adquirida no Cente-nário de 1922, celebra um evento histórico com umasolução de gênero. O pintor escolhe um tema – DomPedro I tocando ao piano o hino da Independência –que se presta à ambientação doméstica, enfatizandoo caráter privado e mesmo burguês de um episódiopatriótico.

30 Tamar Garb, 1998, pp. 239-240.

31 Angione Costa, 1927, pp. 88.

32 Esta é a tese defendida por Albert Boime em livro jácitado. Bourdieu incorpora parcialmente essa idéia,ao definir a arte acadêmica como a “estética do aca-bado”, ou seja, do fini.

33 Pierre Bourdieu, 1989, p. 270.

34 Idem, p. 271.

35 Idem, p. 273.

36 Com relação a esse período denominado III Repú-blica, que compreende as décadas finais do séculoXIX, ver MAINARDI, Patricia Mainardi, 1994.

37 Alexandre Eulálio, 1992, p. 159.

38 A esse respeito ver Tamar Garb, 1998. A autoraapresenta várias das metodologias propostas pelasfeministas. Há um grupo que se dedica a estudar aspintoras esquecidas pela historiografia e mostrar suagenialidade, desse modo operando com o métodotradicional da história da arte: busca pela individua-lização do artista. Um segundo grupo procura ascondições sociais de produção da arte feita por mu-lheres e evita qualquer tipo de julgamento de suasobras. Parece-me que o último partido é o mais in-teressante para a sociologia da cultura, embora nem

sempre seja fácil evitarmos juízos de valor acercadas obras.

39 Angione Costa, 1927, p. 85.

40 Georgina expôs seguidamente nos salões nacionaistotalizando 16 participações. Foi a mulher com maiornúmero de participações entre 1844 e 1922, seguidapor Irene Ribeiro (12) e Nicolina Vaz (11). Foi tam-bém a mais premiada, obtendo todas as consagra-ções fornecidas pelo sistema, desde a simples men-ção honrosa até a grande medalha de ouro e, final-mente, a direção da Academia na década de 1950.

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1. Georgina de Albuquerque Sessão do Conselho de Estado, 1922Museu Histórico Nacional.

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2. Pedro Américo de Figueiredo e MelloIndependência ou Morte!, 1888 Museu Paulista

3. Jacques Louis DavidO Julgamento dos Horácios, 1785Paris, Louvre

4. Eujène DelacroixA Morte de Sardanapaulus, 1827

5. Marie BashkirseffIn the Studio, 1881Museum, Dnipropetroust

ENTRE CONVENÇÕES E DIS-CRETAS OUSADIAS: GEORGI-NA DE ALBUQUERQUE E APINTURA HISTÓRICA FEMINI-NA NO BRASIL

Ana Paula Cavalcanti Simioni

Palavras-chavePintura histórica; Mulher; Acade-mia; Arte.

A partir da tela Sessão do Conselhode Estado, de Georgina de Albu-querque, pretendo discutir a relaçãoentre as artistas mulheres e a Acade-mia de Belas Artes no Brasil, recu-perando o modo com que foramexcluídas, ao longo do século XIX,das possibilidades de acessarem omais alto grau de consagração den-tro do sistema: a realização da pin-tura histórica. A primeira obra nogênero executada por uma artistanativa data justamente do ano sím-bolo do declínio da instituição:1922. Segundo uma perspectiva queleva em consideração as prerrogati-vas do gênero, a artista realizouuma obra ousada. Porém, se os cri-térios utilizados são de ordem esti-lística, sua obra tende a ser vistacomo conservadora. Por isso podeser percebida como uma “ousadiadiscreta”, se interpretada à luz debalizas estéticas, institucionais, edu-cacionais e, também, sexuais.

BETWEEN CONVENTIONSAND DISCREET DARING:GEORGINA DEALBUQUERQUE AND THEHISTORICAL FEMININEPAINTING IN BRAZIL

Ana Paula Cavalcanti Simioni

KeywordsHistorical Painting; Woman;Academy; Art

Based on Georgina de Albuquerque’spainting “Session of the Council ofState,” I intend to discuss the relation-ship between women painters and theBrazilian Academy of Fine Arts,analysing how, during the 19th centu-ry, these women were excluded fromthe possibility of accessing the highestdegrees of recognition within the aca-demic system: historic painting.Coincidentally, the first historic paint-ing by a Brazilian woman dates exact-ly from the year that marks the declineof the Academy: 1922. If it is analysedbased on the genre’s prerogatives,Georgina de Albuquerque’s work canbe considered daring. It is a historicpainting and at the same time it is con-servative, if its analysis is based on sty-listic criteria. Therefore, this work maybe interpreted as “discreetly daring” ifconsidered from an aesthetic, institu-tional, educational or even sexualperspective.

ENTRE CONVENTIONS ETDISCRÈTES AUDACES :GEORGINA DEALBUQUERQUE ET LA PEIN-TURE HISTÓRIQUE FÉMININEAU BRÉSIL

Ana Paula Cavalcanti Simioni

Mots-clésPeinture historique; Femme;Académie; Art.

À partir du tableau “Séance duConseil d’État”, de Georgina deAlbuquerque, je me propose de dis-cuter le rapport entre les femmespeintres et l’Académie des Beaux-Arts du Brésil, en retraçant leur par-cours et la façon dont elles ont étéempêchées, tout au long du XIXe

siècle, d’accéder au plus haut degréde consécration dans le système : laréalisation de la peinture historique.La première œuvre de ce genre,peinte par une artiste native, datejustement de l’année qui symbolisele déclin de l’académisme : 1922.Dans une perspective prenant encompte les prérogatives du genre,cette artiste a réalisé une œuvreosée. Néanmoins, si les critères sontde nature stylistique, son œuvresera plutôt considérée conservatrice.Ainsi, si l’on examine son art à lalumière des repères esthétiques,institutionnels, éducationnel, voiresexuels, il peut être perçu commeune “audace discrète”.

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 185