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Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ Programa de Pós-graduação em Educação PROPED Linha de Pesquisa - Educação Inclusiva - Ciência e Cultura da Inclusão Escolar Grupo de Pesquisa - Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar Entre Democracia e Excelência: Uma pesquisa sobre dinâmicas de inclusão em um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro Por Inti Maya Soeterik Dissertação apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação da Prof a Dr a Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Julho 2007 1

Entre Democracia e Excelência: Uma pesquisa sobre ... · Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro em torno de dinâmicas de inclusão na instituição. Trata-se de uma escola pública

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJPrograma de Pós-graduação em Educação PROPED

Linha de Pesquisa - Educação Inclusiva - Ciência e Cultura da Inclusão EscolarGrupo de Pesquisa - Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar

Entre Democracia e Excelência: Uma pesquisa sobre dinâmicas de inclusão

em um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro

Por

Inti Maya Soeterik

Dissertação apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação da Profa Dra Carmen Lúcia Guimarães de Mattos

Julho 2007

1

Inti Maya Soeterik

Entre Democracia e Excelência: Uma pesquisa sobre dinâmicas de inclusão

em um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro

Dissertação apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.

Aprovada em Julho de 2007

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________Profª. Drª. Carmen Lúcia Guimarães de Mattos - OrientadoraUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________Prof. Dr. Luis Antonio Gomes SennaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro

__________________________________Profª. Drª. Alicia Maria Catalano de BonaminoPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Profª. Drª. Helena Amaral da Fontoura Universidade Estadual do Rio de Janeiro FFP - Suplente

Profª. Drª. Iduina Mont'Alverne ChavesUniversidade Federal Fluminense - Suplente

2

Agradecimentos

Agradeço essas pessoas que dia a dia se esforçam para melhorar a qualidade de educação para todos e todas. Agradeço todos os participantes desta pesquisa. Agradeço a minha orientadora Profª. Drª. Carmen Lúcia Guimarães de Mattos. Agradeço o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de uma bolsa de estudos.

3

Resumo

Essa pesquisa descreve e analisa as práticas discursivas de profissionais de um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro em torno de dinâmicas de inclusão na instituição. Trata-se de uma escola pública reconhecida por seu ensino de alta qualidade, existe desde os anos oitenta uma discussão em relação à ‘democratização’, a qual resultou no final dos anos noventa na abertura de sorteio público para ingresso. Como dinâmicas de inclusão entendemos todas as dinâmicas, sejam políticas, práticas ou discursivas, em relação à inclusão. Optamos por enfocar especificamente as práticas discursivas dos profissionais da instituição, as entendendo como: as diferentes maneiras em que as pessoas, através de discursos, ativamente produzem realidades psicológicas e sociais. Com inspiração pela abordagem etnográfica para coletar dados foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, conversas informais e observações na sala de aula. A análise de dados foi efetuada através da análise de conteúdo. As principais categorias encontradas nos dados foram poder e o outro. Poder é entendido como a força exercida e distribuída em relação à participação na instituição em discursos, políticas e práticas. O outro entendido como categoria social, socialmente construída com base em informações concretas ou suposições em relação à origem de um indivíduo. Como subcategorias relacionadas à categoria o outro foram identificadas: lugar de moradia, cultura, classe social/ situação financeira, contexto familiar (nível educacional e profissão dos pais; incentivo dos mesmos para estudar) e cor da pele. Foi observada, que existe na instituição a discussão em torno das políticas de democratização de acesso, que ocasionou uma discussão sobre o perfil da instituição e seu público. Concluímos que existem resistências em relação às mudanças que são refletidas na existência de tensões. A maior tensão foi identificada na dinâmica que existe entre o processo de democratização de um lado e o perfil de excelência de outro lado; uma dinâmica que parece resultar na manutenção de práticas de seleção como o jubilamento. Apesar da existência de críticas dos profissionais em relação às políticas e práticas em torno de inclusão na instituição, os discursos, práticas e políticas dominantes não são discutidas em si. Em vez disso, a política de sorteio e a origem de certos alunos é problematizada.

Palavras-chave: Inclusão – Práticas discursivas - Escola pública – Escola democrática

4

Abstract

This research describes and analyzes the discursive practices in relation to the dynamics of professional inclusion within a school in Rio de Janeiro, Brazil. The institution is a public school of primary and secondary education linked to one of the public universities and recognized for the quality of the education offered. Since the eighties exists within the institution a discussion in relation to ‘democratization’. This discussion resulted in the end of the nineties in the opening of public lottery of vacancies. With dynamics of inclusion we mean all dynamics in relation to inclusion, may they be political, practical or discursive. We chose to focus specifically on the discursive practices of the professionals in the institution, understanding discursive practices as the different ways in which persons, by using certain discourses actively produce psychological and social realities. It inspired by ethnographic methodology, for data collection semi-structured interviews, informal conversations and observations in the classroom where realized. Content analysis was used to analyze the data. The principal categories found in the data are power and the other. Power is explained as the force exercised and distributed in relation to participation in the institution in discourses, politics and practices. The other is understood as a social category, socially constructed on the basis of concrete information or assumptions in relation to the origin of an individual. The sub categories identified in relation to the category power are: hierarchy, autonomy and freedom. Sub categories identified in relation to the category the other are: place of living, culture, class/ financial situation, family context (level of education parents, professions parents, incentive of parents to study) and skin color. It was observed how the discussion regarding the politics of access democratization is accompanied by a discussion about the profile of the institution and its public. Resistances in relation to changes in the institution are reflected in the presence of tensions. The major tension was identified in the dinamics that exist between the process of democratization on one hand and the profile of excellence on the other hand; a dinamics that seems to result in the preservation of certain practices of selection. In spite of the critique existent amongst the professionals related to certain politics and practices of inclusion in the institution, the dominant discourses, practices and politics aren’t discussed. Instead, the politics of the lottery of vacancies and the origin of certain pupils is problematized.

Key words: Inclusion – Discursive practices – Public school – Democratic school

5

SUMÁRIO

PARTE I

1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………….........9

1.1 Questões de pesquisa..................................................................................11

1.2 Objetivos.......................................................................................................12

1.3 Justificativa...................................................................................................13

1.4 Organização do trabalho...............................................................................15

2. QUADRO TEÓRICO.......................................................................................16

2.1 Inclusão........................................................................................................16

2.1.1 Igualdade...........................................................................................17

2.1.2 Igualdade de oportunidades..............................................................18

2.1.3 Igualdade de oportunidades no contexto brasileiro...........................24

2.2 Inclusão e conteúdo escolar.........................................................................31

3. ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA................................................36

3.1 As escolhas metodológicas da pesquisa......................................................36

3.1.1 Pesquisa qualitativa...........................................................................36

3.1.2 A abordagem etnográfica..................................................................38

3.1.2.1 O significado do “outro” na pesquisa etnográfica................40

3.1.2.2 Uma visão construtivista da realidade.................................42

3.1.3 Práticas discursivas...........................................................................43

6

3.2 A pesquisa passo a passo............................................................................44

3.3 Análise e interpretação dos dados...............................................................47

3.4 Locus da pesquisa........................................................................................50

3.5 Participantes da pesquisa.............................................................................52

3.6 Limitações da pesquisa................................................................................54

PARTE II

4. ANÁLISE E RESULTADOS..........................................................................56

4.1 Uma escola para todos?...............................................................................59

4.1.1 Políticas de democratização..............................................................59

4.1.2 Discussão, democratização e desespero total..................................61

4.1.3 Poder de fogo....................................................................................65

4.2 O conceito Cap.............................................................................................66

4.2.1 Tradição que faz a diferença.............................................................67

4.2.1.1 Disciplina e organização para autonomia e liberdade.........67

4.2.1.2 Gestão, participação e autonomia.......................................71

4.2.1.3 Excelência pré-definida.......................................................75

4.2.1.4 Um público particular...........................................................81

4.3 Dinâmicas de inclusão..................................................................................83

4.3.1 A inclusão do “outro”.........................................................................83

4.4 Na busca de outras formas: diversidade e a prática pedagógica do

professor.............................................................................................................96

4.4.1 Desafios.............................................................................................96

7

4.4.2 Estratégias.........................................................................................98

4.4.3 Dificuldades......................................................................................102

4.5 CAp no país das maravilhas?......................................................................109

4.6 Jubilamento.................................................................................................116

5. CONCLUSÕES..............................................................................................121

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................130

8

1 INTRODUÇÃO

“O problema da exclusão nos ensina que as relações da escola e da sociedade se transformam e que a escola perdeu sua “inocência”. (...) A exclusão é o resultado “normal” da extensão de uma escola democrática de massa que afirma ao mesmo tempo a igualdade dos indivíduos e a desigualdade de seus desempenhos. Nesse sentido, a escola integra mais e exclui mais que antes, (...).” (DUBET, 2003, p.43-44)

Este trabalho foi realizado ao longo do Curso de Mestrado dentro do grupo de

pesquisa ‘Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar’ da

linha de pesquisa ‘Educação Inclusiva - Ciência e Cultura da Inclusão Escolar’

do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio

de Janeiro (UERJ).

Nesta pesquisa enfocamos a temática de inclusão e educação. Educação é

considerada a instituição que promove inclusão na sociedade. A frase

freqüentemente ouvida em relação aos objetivos de educação “para ser alguém

na vida...” (SENNA, 2005) se tornou realidade, mas para ser “alguém na vida”,

obter um diploma de educação formal, hoje em dia, não é suficiente. Seguir a

educação formal não significa automaticamente sucesso na vida profissional.

O fato de saber em qual instituição educacional o diploma foi obtido, define o

nível e o conteúdo dos conhecimentos e as habilidades aprendidas. Existem

também dentro das escolas processos ligados a inclusão e exclusão que

influenciam o sucesso ou fracasso acadêmico dos alunos.

9

Nesta pesquisa nos referimos às dinâmicas de inclusão. Como dinâmicas de

inclusão entendemos todas as dinâmicas, sejam políticas, práticas ou

discursivas, em relação à inclusão. Nós optamos por enfocar especificamente

nas práticas discursivas, as diferentes maneiras em que as pessoas, através dos

discursos, ativamente produzem realidades psicológicas e sociais (PINHEIRO In

SPINK, 2000).

Com base nessa aproximação consideramos todas as falas estudadas, como

entrevistas, mas também como conversas informais, práticas discursivas, ações

(ou interações) situadas e contextualizadas por meio da qual se produzem

sentidos e se constroem versões da realidade.

Enfocamos, especialmente, nas práticas discursivas dos profissionais em

relação à inclusão. Conforme mencionado anteriormente, partimos da idéia que

os profissionais com suas práticas discursivas constroem realidades. Se existem

certas práticas discursivas em relação à democratização do acesso e inclusão

na instituição, essas práticas discursivas têm conseqüências, elas são ligadas a

verdades e ações dentro da instituição.

Optamos por estudar as dinâmicas de inclusão em Colégio de Aplicação no Rio

de Janeiro, pois consideramos esta instituição especialmente interessante para

a realização da pesquisa pelo fato que os CAps são socialmente reconhecidos

como instituições públicas de ensino de alta qualidade (GLOBO ONLINE,

5/07/2006).

O CAp onde a pesquisa se realizou, é uma escola reconhecida por seu nível de

excelência. Justamente por isso, desde dos anos oitenta existe nessa instituição

10

uma discussão em relação à ‘democratização’. Essa discussão resultou na

adaptação dos procedimentos de acesso de alunos na instituição. Antigamente,

alunos só ingressavam na instituição através da participação de um rigoroso

processo de seleção. A partir do ano de 1998, os alunos entram no ensino

fundamental (na classe de alfabetização e na quinta série) através de sorteio. As

novas formas de acesso necessariamente mudaram o perfil da instituição.

Além de a instituição ser considerada uma escola de excelência, é também

conhecida como uma ‘escola de elite’, então, a pesquisadora se interessou em

estudar a temática de inclusão nessa instituição.

Várias perguntas surgiram, tais como: Será que, por causa da ‘democratização

do acesso’, a escola realmente se caracterizou como uma ‘escola inclusiva’?

Qual é o perfil dos alunos1 incluídos? Qual é a experiência em relação à

‘inclusão’ nessa instituição? Será que a inclusão vai além do acesso? O que

significa a inclusão nas práticas do dia-a-dia da escola?

1.1 Questões de pesquisa

Em relação ao contexto descrito acima, onde enfocamos o estudo das dinâmicas

de inclusão através das práticas discursivas dos profissionais, foram formuladas

as seguintes perguntas:

1 Com objetivo de facilitar a leitura do trabalho e preservar a identidade dos participantes usa-se neste trabalho apenas as palavras ‘aluno’/ ‘alunos’ se referindo tanto aos alunos como as alunas.

11

- Como são descritas as dinâmicas de inclusão nas práticas discursivas

dos profissionais?

- Quais os processos e as dinâmicas em relação aos “novos” alunos são

mencionados?

- O que é, segundo as práticas discursivas dos profissionais, o significado

de “inclusão” neste contexto?

1.2 Objetivos

O objetivo deste trabalho foi de entender, através da descrição e da análise das

práticas discursivas dos profissionais, as experiências em relação às dinâmicas

de inclusão que surgiram depois da democratização do acesso.

Um entendimento melhor de dinâmicas de inclusão poderia colaborar nas

discussões sobre a necessidade de ampliação e melhoramento de políticas de

educação inclusiva além de medidas que promovem o acesso a certas

instituições.

12

1.3 Justificativa

O fim do século e a entrada no novo milênio estão, segundo muitos teóricos,

associados a um profundo processo de transformação social (por exemplo

BECK; GIDDENS; LASH, 1995; BERGER; LUCKMANN, 2004). Um dos

fenômenos mais importantes nas transformações atuais no mundo é o aumento

significativo da desigualdade social (TEDESCO, 2002). Esse aumento da

desigualdade social veio acompanhado por um aumento de políticas que tendem

a combater o fenômeno.

Motivado por políticas de igualdade de oportunidades e educação inclusiva,

muitas instituições educacionais no mundo inteiro abriram as portas

(voluntariamente ou obrigado por leis) durante as últimas décadas para

indivíduos que estruturalmente foram excluídos de educação de qualidade.

Dados do Education For All Global Monitoring Report 20052 mostram como

muitos países fizeram progresso considerável na inclusão de cidadãos em

educação formal. Nessas reportagens o Brasil apresenta juntamente com

países, como, o Chile na América Latina, grandes avanços em direção ao

objetivo de ‘Educação para todos’.

O Brasil está tendo sucesso considerando o aumento na participação da

educação básica e está a caminho de ter uma participação de quase cem por

2 EFA Global Monitoring Report 2005, http://portal.unesco.org/education/en/ev.php-URL_ID=35939&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html

13

cento de crianças com idade de educação básica na escola3. As pesquisas

mostram que esse crescimento se deve sobre tudo graças ao aumento da

participação de crianças de grupos socialmente e economicamente

marginalizados na educação formal.

No entanto, pesquisa em relação às dinâmicas de inclusão em educação

(FREITAS, 2004; SENNA, 2007; SILVA, 2003; SILVÉRIO, 2002; SOETERIK,

2001) mostra como muitas vezes, a inclusão em educação é meramente

entendida em termos de integração no espaço físico das instituições

educacionais. Assim, as conclusões de uma pesquisa de Senna (2007), que

teve como finalidade traçar o perfil das dinâmicas de educação inclusiva no

Brasil conclui que: “a inclusão escolar ainda não conseguiu superar o nível da

mera integração ao espaço institucional da escola”, isso quer dizer que em

muitas práticas de educação inclusiva o acesso – a quantidade de pessoas que

vai para a escola – aumenta, mas a qualidade da educação fica atrás.

Inclusão, muitas vezes, é considerada simplesmente uma questão de acesso a

instituições educacionais. Perguntas em relação ao que exatamente acontece na

prática e quais são exatamente os processos de inclusão, freqüentemente são

deixados de lado.

Em relação às observações feitas acima, com o objetivo de ir além do assunto

de acesso, mas pesquisar o que exatamente significa inclusão no contexto

educacional, é necessário realizar uma pesquisa qualitativa que investiga os

processos dentro das instituições educacionais quanto à inclusão.

3 No Brasil, entre 1990 e 2000 o Índice Nacional de Educação (National Education Rate) subiu de 86,4% para 96,7% (EFA Global Monitoring Report 2005).

14

1.4 Organização do trabalho

O texto foi dividido em cinco capítulos. O capítulo dois apresenta o quadro

teórico desta pesquisa, onde são apresentados os temas e os conceitos que

consideramos ser importantes quando pesquisamos dinâmicas de inclusão. O

terceiro capítulo é discutido a abordagem teórico-metodológica. O quarto

capítulo apresenta a análise e os resultados. No quinto e último capítulo são

apresentadas às conclusões desta pesquisa.

15

2 QUADRO TEÓRICO

Para poder estudar e entender as dinâmicas de inclusão é necessário refletir

sobre o conceito de inclusão. O que é inclusão? A partir de quais teorias pode-

se entender esse conceito?

A discussão em torno do conceito de inclusão que se desenvolve neste capítulo

faz parte do quadro conceitual no qual se encontra o objeto desta pesquisa.

Através da discussão das diferentes definições do conceito, e das inclusões

teóricas de vários trabalhos, constrói-se o quadro conceitual desta pesquisa.

Pretende-se, à medida que o texto se desenvolve, poder apresentar os temas e

os conceitos que também podem ser importantes quando pesquisamos

dinâmicas de inclusão.

2.1 Inclusão

““Incluir” vem do latim: includere e significa “colocar algo ou alguém dentro de outro espaço/ lugar”. Esse verbo latino, por sua vez, é a síntese do prefixo in com verbo cludo, cludere, que significa “fechar, encerrar”. Participa da origem desse verbo um substantivo em Português. Trata-se do termo “claustro”. Claustro é um espaço do qual alguns já “fazem parte” como “espaço delimitado, murado, rodeado”. (...) Incluir será, pois, “entrar no claustro”, adentrar um lugar até então fechado e que, por encerrar determinadas vantagens, não era, até então, compartilhado com outros.” (CURY, 2005, p.14)

Como fica claro na explicação de Cury (2005), o conceito de inclusão implica a

existência de uma dinâmica inclusão – exclusão; um não existe sem o outro. O

conceito exclusão está ligado a idéia de exclusão de alguém ou de alguma coisa

16

de um certo contexto ou de algum acontecimento. A dinâmica que existe entre

inclusão e exclusão está relacionada à idéia de desigualdade em relações de

poder entre ‘incluídos’ e ‘excluídos’. O conceito de desigualdade por sua vez

está ligado ao conceito ‘igualdade’.

2.1.1 Igualdade

Outhwaite e Bottomore (In SILVÉRIO, 2002, p.220) explicam como nos séculos

dezoito e dezenove o ideal de igualdade se manifestou na exigência de direitos

iguais, diante da lei e de participação política. A partir do século vinte, quando

esses tipos de igualdade já eram dados como certos (na teoria, ainda que nem

sempre na prática) em todas as sociedades avançadas, a atenção concentrou-

se em uma nova exigência: a igualdade social.

O conceito de igualdade social, segundo os autores, se baseia na idéia de que

as pessoas devem ser tratadas como iguais em todas as esferas institucionais

que afetam suas oportunidades de vida, como, por exemplo, na educação e no

trabalho. Com base nessa preocupação com a igualdade social, desde então

muita aposta foi feita em educação.

Hoje em dia, a educação é uma das instituições da sociedade que mais

representa a idéia de igualdade social. É através de educação formal que o

individuo consegue crescer, adquirir um emprego e se desenvolver como

cidadão. Através de educação, também essas pessoas que fazem parte de

17

grupos socialmente e economicamente marginalizados conseguiriam subir e sair

da posição marginalizada.

Essa idéia de igualdade social em relação à educação acompanha uma

interpretação de igualdade como oportunidades iguais para todos. Assim, o

conceito oportunidades iguais dominou e ainda domina as políticas públicas,

sobre tudo as educacionais, em muitas sociedades. A seguir, discute-se com

mais profundidade o significado desse conceito.

2.1.2 Igualdade de oportunidades

As políticas baseadas no conceito de oportunidades iguais nem sempre

resultaram em mais igualdade. Assim, vários autores argumentam, que partindo

do conceito de igualdade de oportunidades e o princípio de tratar todo mundo

igual, muitas vezes a realidade social, na qual os processos de educação se

encontraram, foi negada.

No seu trabalho ‘What is a Just Educational System?’4, Van Parijs (2004)

problematiza a maneira na qual a idéia de igualdade social, freqüentemente, é

traduzida em educação interpretando o conceito de igualdade de oportunidades

de diferentes maneiras.

Segundo Van Parijs (2004), nas idéias dominantes sobre igualdade social e

educação domina a idéia que os desempenhos e os resultados pessoas logram, 4 ‘O que é um sistema educacional justo?’ (tradução nossa)

18

legitimamente podem ser diferentes, somente quando são os resultados de

escolhas pessoais – por exemplo, a decisão de se esforçar ou de tomar certos

riscos – mas, que oportunidades iguais precisam ser dadas para chegar a esses

resultados. Porém, segundo Van Parijs (2004), precisamos distinguir três

famílias de interpretações de igualdade de oportunidades:

A primeira interpretação de igualdade de oportunidades, a interpretação formal,

parte da idéia que somente as habilidades e competências atuais de uma

pessoa devem afetar as oportunidades. Apenas as diferenças em oportunidade

provocadas por habilidades e competências atuais podem ser justificadas. Essa

interpretação muitas vezes se traduz na prática em um foco em eliminação de

discriminação em acesso as instituições educacionais. Essa interpretação não

reconhece a possível influência de origem social das pessoas no

desenvolvimento das competências e habilidades e também não considera a

igualdade dentro do próprio sistema educacional.

A segunda interpretação de igualdade de oportunidades, a interpretação restrita,

argumenta que somente os talentos naturais da pessoa devem afetar as

oportunidades. Apenas as diferenças em oportunidade provocadas por talentos

naturais podem ser justificadas. Segundo essa interpretação outros fatores,

como, por exemplo, dinâmicas em relação à ‘raça’/ etnia, gênero, nacionalidade

ou origem social, não devem influenciar as oportunidades. É com base nessa

interpretação que se tenta eliminar, com freqüência, processos dentro do próprio

sistema educacional que atrapalham o uso de talentos naturais.

19

A terceira interpretação de igualdade de oportunidades, a interpretação

abrangente, argumenta que os impactos de todos os determinantes que

influenciam as oportunidades devam ser ‘neutralizadas’. Oportunidades devem

ser iguais para todo mundo, independente não somente de fatores como ‘raça’/

etnia, gênero, origem social etc., mas também independente de talentos e

habilidades inatos. Tanto a influência desses fatores, como a influência de

processos dentro do próprio sistema educacional é que provocam a

desigualdade, elas devem ser eliminadas.

Com base no trabalho de Van Parijs (2004), conclui-se que, para saber o que

significa inclusão em um contexto educacional, é importante entender em que

interpretação de oportunidades iguais os discursos, as políticas e as práticas são

baseados.

Segundo Van Parijs (2004), a interpretação formal de oportunidades iguais é a

mais difundida e aceita nas sociedades de hoje. É essa interpretação que

segundo ele domina também no campo educacional. Junto com outros autores,

como, Apple (2005), e Dubet (2003), Van Parijs (2004) problematiza esse fato.

Como a interpretação formal acompanha a idéia de distribuição com base no

mérito5, esse conceito permite desigualdades infinitas, por exemplo, em níveis

de ensino, com base na idéia que o “mérito” individual é recompensado. Dubet

(2003) escreve sobre a problemática da seguinte forma:

“Por um lado, dentro de seus próprios princípios e acompanhando a massificação, a escola afirma a igualdade de todos. (..) todas as crianças tem a

5 A posição meritocrática defende a idéia de que as oportunidades são conquistadas com base no merecimento. A distribuição das oportunidades é baseada nas habilidades e os talentos mostrados, em vez de posição social ou econômica ou outras características.

20

priori o mesmo valor, mesmo admitindo que as condições sociais podem afetar o reconhecimento de suas qualidades e o seu desenvolvimento. (...) Por outro lado (..) a escola é meritocrática. Ela ordena, hierarquiza, classifica os indivíduos em função de seus méritos, postulando em revanche que esses indivíduos são iguais.” (p.41)

A interpretação formal de igualdade de oportunidades representa uma

problemática porque o que exatamente é “mérito” individual é difícil de definir,

como, vários fatores sociais podem influenciar o desenvolvimento de talentos.

Neste sentido, a mais usada interpretação do conceito igualdade de

oportunidades, uma definição com a qual quase todo mundo concorda é

baseada em uma igualdade hipotética. Segundo Van Parijs (2004), para

realmente chegar à igualdade de oportunidades teria que ir além do conceito

formal de igualdade de oportunidades.

Em relação à essa igualdade hipotética existente dentro do sistema educacional

de hoje, Dubet afirma que, a representação do sujeito que acompanha a

interpretação formal de igualdade de oportunidades, é problemática: “ela supõe

que cada um seja “soberano”, dono de si mesmo, responsável por uma vida que

não pode mais ser totalmente reduzida a um destino.” (2003, p. 41).

Como vários autores apontam, na área de educação a interpretação formal do

princípio de igualdade social gerou políticas universalistas e construiu um tabu

em relação à idéia de ‘diferenciação’.

Assim, pode-se dizer que, com base na interpretação formal do princípio de

igualdade de oportunidades, freqüentemente, os indivíduos dos grupos com

presença dominante na sociedade conseguem aproveitar mais das

21

‘oportunidades’ que indivíduos de grupos menos dominantes na sociedade, uma

realidade que, além de não criar inclusão de verdade, pode até criar mais

exclusão.

Isso mostra que construir políticas e práticas educacionais baseando-se na

interpretação formal do conceito de igualdade de oportunidades implica o perigo

de partir da tese que a origem social, econômica, étnica e cultural não afeta de

nenhuma maneira a forma na qual os indivíduos podem aproveitar as

oportunidades. Além de negar a ‘bagagem’ pessoal dos indivíduos, nesta visão

também a influência de estruturas de poder e exclusão já existentes na

sociedade são negadas, como se educação fosse um ‘contexto neutro’ onde

todo mundo partindo do ‘zero’ tem as mesmas chances de obter sucesso.

Apple (2005), também assinala a tendência que em muitas sociedades de hoje

em dia as discussões sobre democratização da educação são acompanhadas

por uma visão do indivíduo não ligado a papéis e posições sociais. Segundo ele,

predomina a visão do indivíduo, como, ‘consumidor’. Assim, ele escreve: “Em

vez de democracia ser um conceito político, ele é transformado completamente

em um conceito econômico. (...) o individuo no atado – como consumidor – é

desfeito de raça, classe, e é desfeito de gênero” (APPLE, 2005, p.272) 6.

Apple (2005) relaciona a explicação neoliberal do conceito de oportunidades

iguais com a tendência de uma ‘modernização conservadora’ que segundo ele

6 Tradução nossa de: “Rather than democracy being a political concept, it is transformed into a wholly economic concept. (…) the unattached individual – as a consumer – is de-raced, declassed, and de-gendered.”.

22

existe em muitas sociedades. Uma das características dessa ‘modernização’ é a

de-politização do contexto educacional.

Refletindo sobre o significado do conceito inclusão em educação vale à pena

também considerar o trabalho de Forquin (1993, 2000) sobre escola e cultura.

Segundo Forquin (2000), nas sociedades liberais-modernas, a escola se

apresenta como uma instituição de natureza universalista por excelência.

Nessas sociedades a escola considera os alunos como indivíduos iguais em

direitos e deveres. Este princípio, de todo mundo estar submetido às mesmas

regras, Forquin (2000) chama de ‘universalismo formal’.

Esse princípio, segundo ele, não é só encontrado na instituição escolar, mas

também em muitas outras instituições das sociedades modernas. Na escola

esse princípio muitas vezes vem acompanhado por uma ótica meritocrática-

liberal na qual o julgamento escolar deve se concentrar somente nos

desempenhos acadêmicos do aluno, excluindo toda consideração de ordem

pessoal ou relacional.

Observa-se no texto de Forquin (2000) uma ligação entre a teoria de Van Parijs

(2004) sobre a interpretação formal de igualdade de oportunidades, e o conceito

de universalismo formal de Forquin (2000). Foi falado aqui de uma ideologia

sobre uma ‘igualdade social’ que cria políticas universalistas e que provoca, por

exemplo, políticas de oportunidades iguais, que são interpretadas e aplicadas

meramente como uma medida tomada para melhorar o acesso de certos grupos

da sociedade a determinadas instituições.

23

No trabalho de Forquin (2000), ele discute o que é a implicação desse

universalismo, ou do princípio contrário ao relativismo, para conteúdo escolar. É

discutida com mais profundidade as idéias de Forquin (2000) na seção 2.2,

porém, antes, na próxima seção são abordados alguns autores que escrevem

sobre a educação inclusiva no contexto brasileiro.

2.1.3 Igualdade de oportunidades no contexto

brasileiro

No âmbito da discussão sobre o significado do principio de igualdade e para

entender esse conceito melhor na realidade da desigualdade brasileira, discute-

se nesta seção como o conceito de igualdade muitas vezes é usado e explicado

neste país. Com base em pesquisa, Reis (2004) faz a observação de que a elite

Brasileira7, quando discute o tema ‘desigualdade social’, aposta muito em

educação e em relação a isso usa muito o conceito de igualdade de

oportunidades. Através de entrevistas e dados de um questionário “Percepção

de Desigualdades”8, Reis (2004) mostra como a maioridade da elite Brasileira,

que se expressa em termos de ‘Igualdade de oportunidades’, ao mesmo tempo

7 A autora explica como na pesquisa dela os pesquisadores entenderam o conceito ‘elite’ como: “representativos, no plano federal, dos setores empresarial, político, techno-burocrático e sindical. (...) intelectuais e formadores de opinião, religiosos, militares, representantes do Judiciário e de organizações não-governamentais. (...) foi adotada uma definição “institucional” da elite, isto é, em vez de assumir, por exemplo o critério “reputacional” para selecionar indivíduos representativos desse segmento, a opção foi entrevistar ocupantes de posições de liderança em instituições nacionais proeminentes.” (REIS, 2004, p.43). 8 A pesquisa “Percepção de Desigualdades” foi realizado no âmbito do Instituto Virtual “O Estado Social da Nação” criado a partir de convênio entre o IUPERJ e a FAPERJ (SCALON, 2004).

24

rejeita os conceitos ‘igualdade de resultados ’ e ‘igualdade de condições ’ .

Coerente com esta perspectiva há entre os membros da elite Brasileira por ela

entrevistada uma explicita rejeição de políticas de ações afirmativas. Segundo a

autora a elite Brasileira entende a educação sobre tudo como uma estratégia

que não implica redistribuição. A pesquisa de Reis (2004) mostra que a crença

da elite Brasileira no valor instrumental da educação é grande:

“...ela [a educação] é notada predominantemente como ferramenta de capacitação para o mercado, como meio de mobilidade social na ocupação. Diferentemente de outras elites nacionais[9], as nossas não destacam o papel da educação como mecanismo de conscientização política ou de empowerment, que tornaria os excluídos mais aptos para reivindicar sua inclusão no sistema.”. (...) “ela é vista como um recurso de mobilidade individual e de formação de capital humano.”. (...) “todos se beneficiariam da melhoria educacional da sociedade: os pobres receberiam melhores salários e os ricos contariam com mão de obra mais qualificada.”. (p.48)

A pesquisa de Reis (2004) mostra como a elite Brasileira explica a desigualdade

com a ‘pobreza’ que existe no país, pobreza no sentido econômico e no sentido

de ‘falta de (uso) de oportunidade’. Assim Reis (2004) conclui que ao contrário

da pobreza, que tem maior visibilidade e é alvo de ações específicas, no Brasil a

desigualdade nem sempre é percebida e dimensionada como um problema.

Pobreza, então, muitas vezes é considerada uma ‘situação’ que através de

certos esforços e recursos pode ser vencida.

Aqui é preciso assinalar que, embora Reis (2004) indique que a visão da elite

Brasileira é diferente da visão das elites nos outros países que participaram na

pesquisa, concepções a respeito da desigualdade social das elites em muitos

9 Com “outras elites nacionais”, a autora se refere às elites dos paises África do Sul, Bangladesh, Filipinas, Haiti e Índia, os paises que também participaram na pesquisa comparativa “Elite Perceptions of Poverty and Inequality” (REIS, 2004, p.43).

25

outros países, como por exemplo Grã Bretanha e os Paises Baixos, mostram

padrões de pensar a respeito de desigualdade social parecidas10. Esse padrão é

caracterizado por não considerar as desigualdades sociais e o conceito de

igualdade no contexto político e social, e não entendê-la no contexto das

relações de poder nas sociedades caracterizadas por juízo de superioridade e

inferioridade entre grupos, camadas ou classes sociais. Mas, como Silvério

(2002, p.223) menciona: “..toda desigualdade se estrutura a partir de um juízo de

superioridade”.

Essa interpretação das desigualdades sociais pelos grupos dominantes do poder

muitas vezes resulta, na prática, em ações assistencialistas que, normalmente,

não mudam a estrutura social e não tocam nas relações de poder que existem

na base da desigualdade social. Nesse quadro podem ser entendidas muitas

iniciativas nacionais, estrangeiras e internacionais que tentam combater a

‘pobreza’ e a ‘desigualdade’ sem entender, discutir e combater realmente a

razão social e política e as estruturas de poder em base dela. Assim muitas

vezes, as políticas públicas podem favorecer uma orientação de política que

privilegia a superação da pobreza, mas não da desigualdade. Nessa perspectiva

discussões em relação ao papel da educação muitas vezes são incluídas. Assim

Reis (2004) indica que a postura em relação à desigualdade social como

predominante na percepção da elite brasileira, resulta em posturas normativas

em relação à educação. A autora assinala por exemplo que a elite brasileira

10 Assim por exemplo Clay; George (1993); Essed (1991); Siraij-Blatchford (1993a) (1993b); Valk

(1993); Verma (1993).

26

“..sustenta é que, com iguais oportunidades de educação, todos os que se

esforçarem terão possibilidade de progredir.” (p.63). Ou, dito em outras palavras:

todos que não progrediram no sistema educacional e na sociedade, não se

esforçaram, portanto não têm direito a ‘reclamar’. Importante notar aqui, é que

nesta visão, de novo, educação e considerada como uma instituição “neutra”

aonde a todo mundo é oferecida a mesma oportunidade, as mesmas chances,

de se desenvolver. Essas pessoas que não se desenvolvem, que não

participem, eles mesmos têm a responsabilidade para a exclusão deles; essas

pessoas estão sendo excluídas “porque eles não querem participar”.

Essa observação adere à teoria de Tedesco (2002) que explica que, enquanto

no modelo capitalista tradicional a pobreza ou a condição assalariada podiam

ser percebidas como conseqüências de uma ordem social injusta, no novo

capitalismo a desigualdade social tende a ser associada à ‘natureza das coisas’

e a responsabilidade pessoal.

Podemos constatar que essa maneira de pensar sobre ‘desigualdade social’, o

melhor dito; esse não-reconhecimento das desigualdades sociais como questão

de poder, toca no núcleo da questão central deste trabalho: Para poder Incluir,

para realizar Educação Inclusiva de verdade, seria necessário que a sociedade

(e sobre tudo aqueles grupos da sociedade que representam o poder político,

cultural e acadêmico) reconhecesse e entendesse a desigualdade dentro da

estrutura social da sociedade como questão de poder.

Para entender melhor o estado atual da Educação Brasileira em relação à

desigualdade e exclusão social, propõe-se que ela seja entendida dentro de um

27

quadro histórico da formação da sociedade Brasileira. Senna explica (2007)

como somente podemos entender a complexidade do Brasil e os conceitos e

sentimentos sobre o sentido e as práticas de inclusão social se levamos em

conta a interferência dos diversos tempos de integralização da sociedade em

uma perspectiva histórica. O autor mostra como a cultura moderna influenciou a

formação da sociedade brasileira e influenciou, e ainda influencia, a prática da

educação e o pensar em relação a temas de Educação e Inclusão. Este trabalho

oferece um quadro histórico para entender o paradoxo teórico e político no qual

a ‘educação inclusiva’ se encontra hoje em dia no Brasil.

Senna (2007) indica como os conceitos da cultura moderna, o modelo naturalista

do homem e a imagem do sujeito cartesiano moderno impostos pela

modernidade criaram um conceito de educação e cidadania que hoje em dia

ainda estão em vigor:

“Fomentada pela própria natureza singularizante do homem moderno e, ao mesmo tempo, referendada pela fração auto-reconhecida como inferior, a modernidade brasileira traçaria em torno de si os limites da cidadania nacional, deixando ao exílio a maior parte do país. O acesso à escrita – e, mais recentemente, o acesso à escolarização básica – ocuparia no Brasil da Modernidade o lugar da nacionalidade, o lugar do restabelecimento de vínculo entre a óbvia similaridade pública de todo o povo brasileiro e a legitimidade social.” (p.8)

O autor mostra como durante a história, a educação no Brasil virou um instituto

de assimilação e normalização, um instituto que representa o ‘abandono da

natureza’ e o ‘desenvolvimento da razão’. A escola que existe hoje neste pais foi

construída com base em princípios do racionalismo imposto pela modernidade,

princípios e conceitos que formarão uma realidade caracterizada por instituições

28

educacionais que reproduzem a exclusão social. Segundo o autor foram os

princípios da cultura moderna, representados primeiramente pelo colonizador

europeu, mais tarde pelo próprio estado nacionalizado e a elite que representa o

poder na sociedade, que influenciaram a formação da sociedade brasileira, as

práticas educacionais e o pensamento em relação à educação e inclusão.

O autor argumenta que o objetivo das instituições educacionais que surgiram

com a cultura moderna era sobre tudo ‘singularizar’ e ‘normalizar’. O objetivo

desses processos de singularização e normalização era exatamente a exclusão

desses indivíduos que não se assimilaram ao ‘modelo naturalista de homem’.

Segundo o autor foi assim que a educação virou a cura para a debilidade social

ou mental (SENNA, 2007).

A formação da educação no Brasil baseou-se na idéia de uma sociedade ideal

em que alguns sabem (o homem da razão) e outros reproduzem (o homem

biológico) (SENNA, 2005). A pesquisa ‘imagens da desigualdade’ discutida

acima (REIS, 2004), mostra como grande parte da elite brasileira ainda aplica

esse princípio na análise da sociedade atual.

A discussão levantada por Senna (2007) sobre o contexto histórico da educação

no Brasil ensina como a educação, já nos seus fundamentos, não é uma

instituição que se pode considerar ‘neutra’. Os fundamentos filosóficos, sociais e

políticos do sistema educacional formulados durante a história, implicam um

sistema que exclui. Desde seus primórdios o sistema educacional estava ligado

a idéias sobre a formação de uma certa sociedade; uma sociedade de gente que

‘pensa’ e gente que ‘faz’, gente que ‘sabe’ e gente que ‘reproduz’. Foi com base

29

nessa história que a modernidade brasileira traçaria em torno de si os limites da

cidadania nacional, deixando ao exílio a maior parte do país (SENNA, 2007).

Apesar das discussões, políticas e práticas ligadas a inclusão, a sociedade de

hoje em dia ainda não conseguiu transformar completamente os fundamentos

ideológicos da educação. No fundo, as políticas e práticas educacionais ainda

são baseadas nos conceitos da cultura moderna e a imagem do ‘sujeito

cartesiano moderno’. Os princípios racionalistas se expressam hoje em dia por

um lado em idéias em relação à função da educação de providenciar uma

aculturação social e cultural e por outro lado pela função de educação no

processo de ‘diferenciar’ para o mercado de trabalho.

Vários autores, como, por exemplo, (GOMES, 2003; MUNANGA, 2003; SILVA,

2003; SILVÉRIO, 2002; TEDESCO, 2002) indicam, assim, que o conceito de

igualdade no Brasil, em vez de promover uma sociedade mais justa, tem-se

colocado durante a história muitas vezes como obstáculo às mudanças sociais

para uma sociedade menos desigual.

Na seção seguinte reflete-se sobre a pergunta como poderia ir além das

interpretações dos conceitos de inclusão e igualdade de oportunidades como

questões de acesso.

30

2.2 Inclusão e conteúdo escolar

Considerando a idéia que, como argumenta Silva (2003), para ter educação

inclusiva de verdade, também o conhecimento apresentado nas instituições

educacionais deve ser sujeito à discussão, então, propõe-se nesta seção

abordar mais profundamente o significado de educação inclusiva em relação à

cultura e conteúdo escolar.

Reflete-se encima de perguntas, tais como: o que significa inclusão e a

conseqüente pluralização da população da escola para o que é ensinado e

aprendido na escola? O conteúdo escolar precisa adaptar-se conforme as

mudanças na população escolar? O que definiria a direção dessas mudanças?

Será que a educação universal e inclusiva ao mesmo tempo é possível? Ou será

que, para poder incluir ‘de verdade’, é preciso pensar em uma educação que

diversifica?

Silva (2003) que discute o tema da inclusão de afro-descendentes em educação

e educação anti-racista no Brasil, argumenta, que a inclusão deve proporcionar

às ideologias, teorias e metodologias, as quais sustentam e dão andamento à

construção de conhecimento, sejam questionadas e, em decorrência às

atividades educacionais e científicas sejam redimensionadas. Dessa forma,

promover a inclusão de verdade, segundo a autora, poderia ter uma influência

positiva em reformas do sistema educacional.

31

No seu trabalho Forquin (2000) reflete sobre a pergunta como pode-se pensar

sobre o conhecimento em um contexto educacional que se caracteriza por

diversidade. Segundo Forquin (2000), nas sociedades liberais-modernas, a

escola se apresenta como uma instituição de natureza universalista por

excelência, mas atualmente a multiculturalização do ensino provoca uma

necessidade de repensar o conteúdo escolar.

O autor referendado acima discute dois princípios contraditórios que precisam

ser considerados quando se discute cultura e conteúdo escolar em relação à

diversidade: o relativismo e o universalismo. Forquin (2000) escreve que:

“..no contexto do debate sobre a educação que se desenvolve atualmente em muitos países, em que a questão do multiculturalismo ocupa um lugar cada vez maior, a oposição universalismo-relativismo é compreendida como a pergunta sobre o modo pelo qual os sistemas de educação podem levar em conta o pluralismo das culturas” (p.48).

Referindo-se ao contexto educacional de muitos países na Europa, o autor

assinala que, atualmente, por causa da presença maciça no contexto

educacional de populações de origens diversas, cujas atitudes e tradições

culturais são freqüentemente muito diferentes das do país de acolhida, a

questão do multiculturalismo leva a repensar a questão dos conteúdos

curriculares:

“O multiculturalismo que favorece o reencontro, a interação entre indivíduos portadores de identidades culturais distintas de novo estimula a pergunta: segundo quais critérios se efetuarão a escolha e a justificativa dos conteúdos de ensino?” (FORQUIN, 2000, p.62).

32

O relativismo é um termo filosófico que se baseia na relatividade do

conhecimento. A posição relativa repudia qualquer verdade ou valor absoluto.

Nesse sentido, todo ponto de vista e conhecimento são válidos. Assim sendo,

pensando sobre conteúdo escolar no contexto multicultural do ponto de vista

relativista, significaria que o conteúdo escolar se define dependendo do público.

Segundo Forquin (2000), no contexto da atual multiculturalização do ensino em

muitos países, não é em um relativismo forte que se deve buscar um antídoto

para o etnocentrismo. Segundo Forquin (2000), “Não se pode subscrever uma

concepção de educação multicultural segundo a qual todos os valores e todos

os significados adotados pelos grupos culturais sejam aceitáveis, somente por

serem diferentes uns dos outros.” (p.62).

Forquin (2000) argumenta que, na realidade, não existe ensino possível sem o

reconhecimento de uma legitimidade, de uma validade ou de um valor próprio

naquilo que é ensinado. A argumentação dele se aproxima mais a visão

universalista. Ele comenta que “todo ensino se efetiva a partir da pressuposição

de seu próprio valor” (p.50). O princípio universalista, então, representa segundo

Forquin a idéia que “cabe a escola transmitir “saberes públicos”, (..) aos quais

todos possam ter acesso potencial e que apresentam valor independentemente

das circunstâncias e dos interesses particulares” (2000, p.58).

O autor discute a possibilidade de fazer do universalismo e do relativismo não

dois princípios de interpretação de educação e de cultura antagônicos, mas dois

princípios complementares. Ele argumenta que, no contexto das sociedades

multiculturais, a escola não pode mais ignorar aspectos “contextuais” da cultura,

33

mas deve sempre se esforçar para privilegiar o que há de mais fundamental, de

mais constante, de mais incontestável e, por conseguinte, de menos “cultural”,

nas manifestações da cultura humana.

O autor distingue um “universalismo etnocêntrico e dominador” de um

“universalismo aberto e tolerante”. Segundo ele, este último é perfeitamente

compatível com o reconhecimento e a valorização das diferenças, precisamente

na medida em que “só se pode reconhecer e respeitar aquilo que se percebe

como uma outra modalidade ou uma outra expressão possível do humano.”

(FORQUIN, 2000, p.65).

Em relação à questão da cultura escolar, Forquin (2000) propõe um

“universalismo dos saberes elementares”. Segundo o autor, o universalismo dos

saberes elementares não é problemático e se inscreve quase naturalmente no

princípio de uma instrução pública. Segundo ele, no universalismo dos saberes

trata-se de um “ponto de partida”. A instrução baseia-se na idéia de começar dos

elementos para chegar aos conjuntos (p.59). O autor descreve a cultura da

escola (ideal) como:

“uma cultura geral que está baseada em saberes geradores, organizadores e integradores (...). ela é uma cultura aberta, flexível e capaz de se estender infinitamente. (...) Podemos ver então na generalidade o caráter fundamental de cultura escolar, a razão primeira de seu universalismo.” (2000, p.58).

Levantaram-se algumas questões em relação às reflexões de Forquin. Para

começar: como se define quais são os “saberes públicos” e qual é o “ponto de

partida”?; Como e quem define o que é o “mais fundamental”, “o mais

constante”, “o mais incontestável” e “menos cultural”?; Para poder definir o ponto

34

de partida e definir quais são os saberes públicos, o ator já não parte de um

ponto de partida?; Será que isso não significa que sempre serão os grupos mais

dominantes na sociedade, na instituição, que definem quais são os pontos de

partida?; Isso não implica de novo que os indivíduos que estão sendo “incluídos”

nesses contextos precisam se adaptar, assimilar aos “pontos de partida”

definidos pelo grupo dominador?; Será que, para poder definir esses “pontos de

partida” em um processo realmente ‘democrático’, não seria preciso

primeiramente ‘ajustar’ as desigualdades sociais historicamente construídas?

Essas perguntas lembram as palavras de Rancière (2002) sobre igualdade e a

relação educador – educando onde ele escreve “Quem estabelece a igualdade

como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a

posterga ate o infinito. A igualdade jamais vem apos, como resultado a ser

atingido. Ela deve sempre ser colocada antes.” (p.11).

35

3 ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

Neste capítulo discute-se a abordagem teórico-metodológica desta pesquisa.

Primeiramente discute-se as considerações em relação às escolhas

metodológicas para coleta e interpretação de dados, em seguida, o locus e os

participantes da pesquisa, e, finalmente, as limitações da pesquisa são

descritas.

3.1 As escolhas metodológicas da pesquisa

Discutimos nesta seção as escolhas metodológicas usadas na pesquisa para

coleta e interpretação de dados.

3.1.1 Pesquisa qualitativa

Como se pode estudar práticas discursivas e experiências em relação às

dinâmicas de inclusão? A crença que guia a escolha metodológica pode ser

resumida da seguinte forma: os processos na vida do dia-a-dia são difíceis de

captar em estruturas fixas ou números.

36

Assim, a pesquisadora opina que não se pode entender processos de inclusão

com base nos dados coletados através de métodos padrões. Para poder chegar

mais próximo as experiências de indivíduos, os métodos qualitativos são mais

eficientes e um trabalho intensivo junto a esses indivíduos é necessário. Com

base nessas crenças, foram escolhidos usar métodos qualitativos para a coleta

de dados.

Métodos qualitativos são considerados, quase sempre, mais apropriados no

estudo de processos, como, por exemplo, dinâmicas de inclusão, dinâmicas que

constituem muitas vezes de processos implícitos e até inconscientes. Essas

dinâmicas precisam ser pesquisadas deduzido-as de observações, conversas

informais e entrevistas. Essas dinâmicas dificilmente poderiam ser medidas

diretamente, mas geralmente são inferidas do contexto através de diferentes

metodologias qualitativas (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).

Isso não quer dizer que a coleta de dados quantitativos não poderia também

contribuir para entender a realidade estudada; acredita-se que essas

metodologias sempre podem contribuir de forma a trazer dados gerais sobre o

‘contexto macro’ em que a ‘realidade micro’ estudada através das metodologias

qualitativas, pode ser entendida.

Porem, devido ao curto tempo para esta pesquisa, precisávamos nos limitar aos

métodos qualitativos e estudamos uma realidade micro (na seção 3.4 será

especificado de qual realidade micro se trata). Assim, a pesquisa virou uma

pesquisa de escala pequena. Isso conseqüentemente significa que, com base

nos dados coletados, não se pode generalizar as conclusões, aplicá-las em

37

outros contextos e fazer depoimentos sobre ‘dinâmicas de inclusão’ em

instituições educacionais em geral.

Essa pesquisa só permite formular análises que se referem à micro realidade

estudada. Porém espera-se, que essas análises possam oferecer um

entendimento de como os processos e as dinâmicas de inclusão podem

funcionar, também em outros contextos.

Neste trabalho foram usados elementos de uma abordagem etnográfica de

pesquisa. A seguir, são discutidas quais são as características de pesquisa

etnográfica e se especifica os tipos de elementos usados.

3.1.2 A abordagem etnográfica

O que é etnografia? A raiz etimológica da designação "etnografia" reside na

língua grega: "etnos" - povo e "grápho" - descrever. A etnografia pode ser

explicada, então, como “descrever um povo”.

“A etnografia estuda, preponderantemente, os padrões mais previsíveis do pensamento e comportamento humano manifestos em sua rotina diária; estuda, ainda, os fatos e/ou eventos menos previsíveis ou manifestados particularmente em determinado contexto interativo entre pessoas ou grupos. (...) Na etnografia trata-se de observar os modos como os grupos sociais ou pessoas conduzem suas vidas, com o objetivo de revelar o significado cotidiano em que as pessoas agem, para documentá-lo, monitorá-lo e chegar ao significado da ação.” (MATTOS, 2004, p.142)

38

Etnografia pode ser considerada um conjunto de técnicas e instrumentos

qualitativos de coleta de dados que propõem conhecer e dar sentido a universos

sociais e culturais. O método etnográfico é centralizado sobre a noção de

observação (participante), ele inside sobre as técnicas de trabalho de campo, as

práticas de conversação, o diálogo etnográfico como dispositivo, as técnicas de

inquérito em geral (BOUMARD, 1999). Por essas características a etnografia é

uma excelente metodologia para estudar em detalhe uma “realidade micro”

(BARCELLOS, 2007).

No entanto, a decisão de fazer pesquisa etnográfica não pode simplesmente ser

descrita como uma escolha técnica, também se trata de uma postura e atitude

do pesquisador. Assim Boumard escreve: “..a investigação etnográfica dá lugar

pleno ao sujeito em uma atitude de atenção flutuante, nunca neutra, sempre à

espreita de uma eventual produção de sentido.” (1999, p.3).

A postura que leva a abordagem etnográfica também consiste em uma

reflexividade do pesquisador, ele precisa levar em conta as suas próprias

implicações como pesquisador e pessoa na estratégia de investigação. Esse

ponto é considerado de importância para esta pesquisa e uma observação é

discutida na próxima seção.

39

3.1.2.1 O significado do “outro” na pesquisa

etnográfica

A abordagem etnográfica é uma abordagem originalmente criada com intenção

de (re)conhecer, estudar e entender o ‘outro’. Assim, Boumard (1999, p.2)

escreve: “..O etnógrafo é aquele que vai ver os povos estrangeiros viverem, é

aquele que observa o seu estrangeirismo. Não nos esqueçamos que os povos

citados aqui (ethnos) são os povos bárbaros, por oposição ao povo formado

pelos cidadãos atenienses (demos)”.

Mattos (2004) também descreve, como o fazer antropológico surgiu, com a

expansão do mundo através da “descoberta” pelos europeus e de outros povos:

“nos primeiros estudos etnográficos, pessoas hierarquicamente mais afluentes

observavam e comparavam as pessoas de menos afluência, sempre

observando o outro como diferente de si mesmo” (p.144).

Malinowski (In MATTOS, 2004) explica que, hoje em dia, pelo uso da

“observação participante”, seria possível para o pesquisador superar os

pressupostos evolutivos e o etnocentrismo. Mattos afirma que na atualidade a

etnografia não pretende mais “tornar familiar o exótico”, a tendência na pesquisa

etnográfica atual seria mais “tornar exótico o familiar” (DA MATTA In MATTOS,

2004). Como escreve Mattos (2004) “Trata-se de adotar um recurso

metodológico de estranhar, distanciar-se das regras, da visão de mundo e das

atitudes legitimadas pela sociedade e por suas instituições”.

40

Mesmo que atualmente a pesquisa etnográfica não se caracterize mais pelo

estudo das ‘pessoas de menos afluência’, Mattos (2006) afirma que, ainda hoje,

existe uma relação entre as pesquisas etnográficas e a temática do “outro”.

Segundo ela, existe ainda uma atração entre as áreas de estudo de exclusão

social e as pesquisas etnográficas.

Como a pesquisa reflexiva envolve autoconsciência (MATTOS, 2004, 2006),

considera-se de importância discutir brevemente um aspecto do papel da

pesquisadora no campo desta pesquisa. Como a pesquisadora não é brasileira e

reside apenas há três anos no Brasil, o significado do “outro” na sua pesquisa

toma ainda mais uma dimensão. Pesquisando a realidade brasileira, a

pesquisadora está consciente que o limite entre “tornar exótico o familiar” e

“tornar familiar o exótico” para ela nem sempre pode ser definido com clareza.

Mesmo ela se sentindo familiar com grande parte da realidade brasileira, ainda

várias coisas da realidade em torno dela são ‘novas’ e ‘diferentes’ para ela.

Assim, por exemplo, a pesquisadora não tem uma própria experiência no ensino

fundamental neste país, ela só conhece o sistema estudando-o,

conseqüentemente, ela observará outras coisas e considerará outros pontos

interessantes como se fosse uma brasileira crescida e educada aqui.

Em um pesquisa onde existe a intenção de estudar a temática de inclusão, que

implica a suposta existência de um ‘outro’, mesmo que a pesquisadora não se

sinta ‘estrangeira’, ela não escapa ao fato dela ser em muitos aspectos também

um ‘outro’. É um fato que em muitos pontos ela é e é reconhecida facilmente

41

(tanto pela aparência física como no uso da língua portuguesa) 11 como um

‘outro’. Esse fato cria dinâmicas que precisam ser levadas em consideração na

análise das interações dela com o campo.

3.1.2.2 Uma visão construtivista da realidade

A ‘postura’ que a pesquisa etnográfica requer do pesquisador pressupõe, uma

concepção da realidade tal como a apresenta o interacionismo simbólico

(BECKER, 1963; BOUMARD, 1999; MATTOS, 2001; MEAD, 1978).

A idéia básica do interacionismo simbólico é que o real não se encontra pré-

definido, mas se constrói socialmente. Nesta visão são os próprios atores que

definem a situação na qual eles se encontram, por isso, na perspectiva do

interacionismo simbólico, o ator social é considerado um agente ativo. A partir do

processo de definição da situação social, a situação se constrói. Assim os

contextos sociais não são estáticos, “..eles contam sua história, seus valores,

seus riscos e seus limites” (MATTOS, 2004). As pessoas agem a partir do

sentido que elas atribuem as situações às outras pessoas e aos objetos

(MATTOS, 2004).

Segundo Boumard (1999), na pesquisa que aceita uma concepção da realidade

tal como apresenta o interacionismo simbólico:

11Sobretudo na interação com alunos isso às vezes foi feito explícito. A curiosidade natural das crianças para o ‘outro’, o diferente, resultou em muitas conversas informais sobre a origem da pesquisadora e curiosidades do país e da língua materna dela. No entanto, a pesquisadora era mais ‘outra’, ainda porque na época da pesquisa ela estava com uma barriga de seis meses de gravidez, o que chamou à atenção de muitos alunos.

42

“os papéis dos atores que parecem estar prescritos pela sociedade (e isso é particularmente evidente no caso da escola) são de fato construídos em relação ao sentido que eles conferem às diferentes situações para cuja elaboração contribuem” (p.4).

Durante a pesquisa, a pesquisadora ficou mais consciente desse fato.

Primeiramente ela entrou no campo com a idéia de estudar a experiência de

alunos ‘incluídos’ na instituição, mas, já no momento da primeira apresentação

do projeto no campo foi perguntado “mas, quem é o aluno incluído?”. Depois de

refletir sobre esse assunto e depois dos primeiros momentos no campo, a

pesquisadora percebeu que, realmente, partir da própria concepção que ela

tinha de inclusão não seria o mais interessante.

A pergunta primeiramente formulada ‘o que significa essa inclusão para os

alunos?’, já parte da tese que dentro da instituição existem processos que

podem ser chamados ‘inclusivos’. Porem, como foi mencionado acima, entender

e estudar processos exige ‘entrar aberto no campo’, sem definir o foco

anteriormente (quem é ‘o aluno incluído’). Mais interessante seria então

justamente ver o que é, dentro do contexto, considerado ‘inclusão’ e quais são

os considerados ‘incluídos’ no contexto. Esse exemplo mostra a importância da

reflexividade do pesquisador durante a pesquisa de campo.

3.1.3 Práticas discursivas

“A investigação sócio-construcionista preocupa-se, sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em que vivem” (GERGEN In SPINK; FREZZA, 2000, p.26).

43

Partindo do princípio de investigação construtivista, estuda-se nesta pesquisa a

produção de sentidos a partir da análise de práticas discursivas. É usada a

definição que Pinheiro da de práticas discursivas. Ele argumenta que as práticas

discursivas são as diferentes maneiras em que as pessoas, através dos

discursos ativamente produzem realidades psicológicas e sociais (PINHEIRO In

SPINK; FREZZA, 2000, p.186).

As práticas discursivas estudadas nesta pesquisa são entrevistas e conversas.

Entende-se práticas discursivas como ações (ou interações) situadas e

contextualizadas, por meio das quais os sentidos são produzidos e as verdades

são construídas, ou seja, “As descrições e explicações sobre o mundo são

formas de ação social. Desse modo, estão entremeadas com todas as

atividades humanas”. (GERGEN In SPINK; FREZZA, 2000, p.27).

3.2 A pesquisa passo a passo

“..a entrevista permite romper com as certezas de que partilhamos um mundo comum com pontos de vista idênticos sobre uma realidade incontestável. Pelo contrário, o trabalho de campo obriga a levar em consideração e a aprender a cultura do grupo observado. Daí a importância da observação participante, que permite num movimento pendular metodológico entre o ponto de vista do investigador e o dos atores, reconhecer uma multivetorialidade da análise em cujo processo aqueles a priori do investigador são questionados da mesma maneira que os pontos de vista dos atores.”. (BOUMARD, 1999, p.5)

44

A coleta de dados desta pesquisa começou com o estudo de documentos da

instituição que relatavam sobre o perfil da escola, questões de acesso e o

rendimento escolar dos alunos e a política pedagógica da escola. Esses

documentos foram conseguidos através da página da instituição na Internet e da

direção da escola.

Em seguida, partindo da abordagem etnográfica, foram feitas as observações na

instituição durante quinze dias. Tais observações foram realizadas na sala de

aula das duas turmas da quinta série, no recreio - na cantina e nos corredores -

e em duas reuniões do conselho de classe. Durante as observações, em várias

ocasiões a presença física da pesquisadora resultou em conversas informais

com profissionais e alunos.

Na última fase da pesquisa foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas

com os profissionais e alunos.

Nas entrevistas foram utilizados como guia de conversa uma lista de assuntos e

questões. A conversa sempre foi iniciada pela pesquisadora que explicou o

objetivo da pesquisa. Aos professores, ela explicou isso da seguinte forma:

“Estou interessada em entender o significado dos processos de democratização

que acontecem desde alguns anos nesta escola. O que significou ou significa

essa democratização, segundo você, na prática do dia-a-dia da escola?”.

Na conversa com os alunos a pesquisadora dizia: “Gostaria que você me

contasse sobre a sua experiência nesta escola”. O guia funcionou para

estruturar a conversa, no caso de necessidade, mas nas conversas a prioridade

foi dada para os assuntos que o participante trazia. O objetivo das conversas era

45

mediante as práticas discursivas entender a realidade do sujeito neste contexto

da instituição educacional, nos documentos descritos como “democrática”.

Em todas as fases da pesquisa foi dada importância para a utilização de

hipóteses progressivas (HAMMERSLEY In MATTOS, 2001). Segundo Mattos

(2004) na pesquisa os dados ditam o caminho teórico a ser conduzido durante

as análises e os resultados da pesquisa. Assim as hipóteses vão sendo

construídas progressivamente na medida em que os dados respondem ou não

as perguntas que o pesquisador formula em relação ao objeto de pesquisa.

Neste trabalho, o uso de hipóteses progressivas resultou em que as questões da

pesquisa foram se re-formando durante o tempo. Assim, a pesquisa foi iniciada

com a idéia de enfocar em primeiro lugar a experiência do ‘aluno incluído’, mas

depois das primeiras semanas de trabalho de campo, a pesquisadora sentiu que

ela precisava fazer algumas adaptações na formulação de perguntas em relação

ao objeto de estudo. Ela percebeu que na realidade, primeiramente, ela não

podia definir quem eram ‘os incluídos’ e em segundo lugar, antes de pesquisar

‘experiências em relação à inclusão’, ela precisou procurar as definições,

explicações e representações de ‘inclusão’, que (às vezes implícitas) existiam na

instituição.

A pesquisadora percebeu que ela tinha entrado em campo com uma hipótese, a

qual está relacionada a um conceito que ela tinha de inclusão. Ela sentiu que na

prática, dentro do contexto da instituição, esse conceito não era definido tão

claramente: ela precisou se livrar do conceito que ela tinha formado em sua

46

mente e voltar atrás, ou seja, pesquisar exatamente o significado desse conceito

nas práticas do cotidiano dos participantes.

Aqui a pesquisadora vivenciou o cerne da interpretação que o interacionismo

simbólico da realidade representa: O real não se encontra pré-definido. Os

próprios atores definem a situação na qual eles se encontram, e ao definir, a

situação se constrói. Essa construção da situação, dentro do contexto de uma

instituição que se apresenta como “democrática”, entender essa construção era

o que estava no fundo da questão da pesquisadora. Esse aprendizado resultou

no fato de que o enfoque do problema mudou mais do aluno para a instituição e

os profissionais. A pergunta como formulada no início do projeto ‘o que significa

essa inclusão para os alunos?’, mudou para uma pergunta com a qual a

pesquisadora pôde entrar mais ‘aberta’ no campo, isto é, ‘o que é, dentro do

contexto, considerado ‘inclusão’?’ E ‘quem são, dentro desse contexto,

considerados os ‘incluídos’?’. Esse aprendizado refletiu-se nas escolas dos

participantes da pesquisa. Isso será discutido na seção 3.5.

3.3 Análise e interpretação dos dados

O processo de análise e interpretação dos dados se realizou através de análise

indutiva. Na análise indutiva parte-se dos dados particulares para o geral. Mattos

(2006, p.8) escreve:

47

“através de objetivos ou afirmações argumentativas, ampliamos o foco das análises para um universo mais geral formulando premissas universais típicas ou atípicas que podem ser comprovadas e sustentadas através dos dados e das teorias formando assim a base do conhecimento que está sendo construído ou relatado como resultante da análise.”.

Assim, os dados conduzem o caminho teórico a ser levado e as hipóteses são

construídas progressivamente na medida em que os dados respondem ou não

as perguntas que o pesquisador formulou. Contudo, Mattos (2006, p.12) chama

atenção para o seguinte:

“Entendemos que a prática de pesquisa etnográfica, assim como quaisquer pesquisas não são a priori despidas de qualquer fundamentação teórica e/ou metodológica. A própria escolha do objeto de estudo pressupõe estudos anteriores que o levam a entender o campo a partir de um olhar que foi construído ao longo da experiência de vida”

A análise indutiva exige do pesquisador uma micro-análise da descrição densa

das observações feitas no campo, das anotações e das transcrições das

conversas e entrevistas. Através da micro-análise dos dados, o pesquisador

organiza os dados em categorias, como, categorias significantes em relação às

perguntas do problema e as hipóteses da pesquisa.

“A palavra categoria, em grego, significa atribuir uma qualidade a um sujeito (caráter, espécie). Atualmente, este sentido de atribuir uma qualidade surge com a finalidade de “possibilitar” a análise do objeto ou campo de estudo. Porque eu atribuo a sujeitos distintos a mesma qualidade posso assim agrupá-los. (...) Em pesquisa, este agrupamento se dá a partir das semelhanças que encontramos entre as diferentes manifestações do objeto.” (CASTRO, 2006, p.50).

Nesta pesquisa, as categorias foram formadas em três fases de análise. Durante

a primeira fase, na qual foram lidas as transcrições das entrevistas, surgiram

48

várias categorias. Em seguida, a pesquisadora revisou as transcrições e contou

o número de vezes que cada categoria emergiu no material. O importante neste

momento da análise é a ‘triangulação de dados’. O pesquisador precisa: “...

verificar a reincidência (tipicalidade e atipicalidade) das informações, através de

pelo menos três fontes diferentes, antes de transformá-lo em relato, vinheta ou

histórico.” (MATTOS, 2006, p.14). Em um terceiro momento, a pesquisadora

selecionou, das categorias que foram contabilizadas mais vezes, essas que

tinham um maior significado em relação às perguntas-problema da pesquisa.

Assim, junto com a releitura das anotações das observações de campo foram

definidas as categorias mais significantes. Foram encontradas duas categorias

principais e oito sub-categorias:

Categorias principais Sub-categoriasPoder Hierarquia

AutonomiaLiberdade

O Outro Espaço físico (lugar moradia, lugar na sala de aula)

CulturaClasse social/ situação financeira

Contexto familiar (nível educacional dos pais; profissão dos pais;

incentivo dos pais para estudar)Cor da pele

Na seguinte fase da análise a pesquisadora procurou as vinhetas, os exemplos

no texto transcrito que representam as categorias.

49

3.4 Locus da pesquisa

Optou-se por estudar as dinâmicas de inclusão em um Colégio de Aplicação

ligado a uma das universidades públicas no Rio de Janeiro. Achou-se um CAp,

especialmente, interessante para a realização da pesquisa pelo fato que os

CAps se apresentam e são socialmente reconhecidas por ser instituições de

ensino de alta qualidade, conforme já mencionado anteriormente.

Essa imagem por parte se baseia nas avaliações nacionais como o Sistema de

Avaliação de Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio

(ENEM). Foi decidido não deixar explícito de qual CAp do Rio se trata, pois para

o objetivo desta pesquisa e o entendimento dos dados, isso não faz diferença.

A escola que foi contexto de pesquisa foi fundada nos anos quarenta, uma

época na qual também outros CAps, ligados a outras universidades, foram

inaugurados. A premissa central para a criação dessas instituições foi; a de se

constituir um campo de estágio obrigatório para os licenciandos das Faculdades

de Filosofia e o de oportunizar a experimentação de novas praticas

pedagógicas.

Em uma Resolução do Conselho Pedagógico da escola (número 01/06) está

descrita como finalidade do CAp: “..ensino, pesquisa e extensão na área de

educação básica, se constituindo em campo de estagio supervisionado para a

formação de profissionais de educação e áreas afins.” (Resolução do Conselho

Pedagógico, nº 01/06).

50

Segundo descrito em outro documento oficial da instituição (documento 2)12, o

perfil institucional do CAp é alicerçado em três princípios básicos: o

compromisso com a formação de professores, o desenvolvimento de políticas de

apoio à formação continuada, e a consolidação do campo de pesquisa em

Educação Básica.

A instituição, onde a pesquisa foi realizada se apresenta nos documentos oficiais

como “uma instituição com espaço para experimentação pedagógica

renovadora, resultando em aprofundamento das reflexões sobre o ensino-

aprendizagem nas salas de aula” (documento 2 CAp):

“Em seus cinqüenta e seis anos de existência, o colégio de aplicação (xxx) consolidou seu espaço no cenário educacional de nosso estado como uma instituição comprometida com a formação de cidadãos críticos, capazes de assumir um papel na sociedade em que estão inseridos. (...) ..essa escola que construiu sua identidade a partir da defesa dos princípios de autonomia pedagógica e da permanente experimentação de metodologias e estratégias de ensino..” (documento 2 CAp)

Como relatado pelos participantes desta pesquisa, existe desde os anos 80

existe na instituição uma discussão em relação à ‘democratização’. Essa

discussão resultou na adaptação dos procedimentos de acesso de alunos na

instituição. Antigamente, as pessoas só ingressavam na instituição através da

participação de um rigoroso processo de seleção. A partir do ano de 1998

alunos entram no ensino fundamental (na classe de alfabetização e na quinta

série) através de sorteio.

12 Trata-se de um documento da instituição, atualmente usado de caráter informativo, sem titulo, autor e data. Referindo a esse documento no texto, faz-se referencia a ‘documento 2 CAp’.

51

Em 2006, a escola tinha 800 alunos nos níveis fundamental e médio, dividido por

27 turmas, da classe de alfabetização ao ensino médio. A quinta série, a qual a

pesquisa foi realizada, tinha 60 alunos, divididos em duas turmas.

Inicialmente, a intenção foi de estudar dois colégios de aplicação no Rio de

Janeiro. Como outros colégios de aplicação passaram por mudanças parecidas

nos últimos dez anos, achou que poderia ser interessante comparar as

experiências nas diferentes instituições. Lamentavelmente, o limite de tempo

não permitiu realizar isso. A escolha por esta instituição foi baseada no fato que

se recebeu mais rapidamente a autorização para realizar a pesquisa neste CAp.

3.5 Participantes da pesquisa

Como o limite de tempo para o trabalho de campo era impossível pesquisar a

escola inteira, então, a pesquisadora quis enfocar a situação das turmas onde as

políticas de democratização de acesso tiveram presença direta. A escolha ficou

entre as duas turmas onde alunos sorteados entram, a classe de alfabetização

ou a quinta série.

Baseado no fato que os alunos da quinta série tem mais idade do que os alunos

da classe de alfabetização, conseqüentemente, discutir temas com alunos da

quinta série seria mais fácil, a pesquisadora optou por trabalhar com a situação

52

das duas turmas da quinta série da escola. Alguns profissionais da escola

também indicaram a quinta série como interessante para pesquisar.

Para pesquisar o que é, dentro do contexto do CAp, considerado inclusão,

escolheu-se primeiramente incluir os profissionais da escola na pesquisa.

Usando a palavra ‘profissionais’, refere-se tanto aos professores e professoras

da quinta série, como os profissionais da equipe da direção, orientação

pedagógica e os inspetores. No total participaram nas conversas e entrevistas

onze profissionais da instituição, uma da direção, duas do serviço de orientação

educacional e seis professores13.

Como na pesquisa etnográfica importância é dada para a comparação e a

triangulação dos dados, também quatorze alunos14 da quinta série foram

incluídos na pesquisa. Todos os alunos desta série tinham entrado na instituição

por meio de sorteio. Alguns tinham entrado na classe de alfabetização, outros

tinham entrado na quinta série. Considerando a história de vida pessoal,

situação econômica e nível educacional dos pais, cultura e etnia as turmas da

quinta série eram caracterizadas por uma grande diversidade em perfis dos

alunos. Vários desses sujeitos só tiveram a ‘oportunidade’ de entrar na

instituição porque existe a política de acesso através de sorteio. Uma pequena

minoria dos alunos saiam de um contexto no qual poucos indivíduos tiveram a

13 Tendo como objetivo tanto a facilitação da leitura do trabalho, como a preservação da identidade dos participantes, usou-se neste trabalho apenas as palavras ‘professor’ e ‘ele’, se referindo tanto aos professores como as professoras.14 Como foi mencionado no inicio deste trabalho, usou-se apenas as palavras ‘aluno’/ ‘alunos’ se referindo tanto aos alunos como as alunas, tendo como objetivo tanto a facilitação da leitura do trabalho, como a preservação da identidade dos participantes.

53

oportunidade de participar em educação considerada de qualidade15. Uma outra

parte dos alunos pareciam ser filhos de pais com um alto grau de escolarização,

com bons empregos e com uma boa situação financeira em casa – um perfil

parecido à população que antes das mudanças de políticas de acesso já

freqüentava essa escola16.

A maioria dos participantes foi escolhida ad random: a participação deles

dependeu da disponibilidade e presença dos atores nos dias que a pesquisadora

estava presente na instituição. Alguns participantes foram indicados como

“interessantes” para a pesquisa por outros participantes. Ao final, um importante

critério na escolha dos participantes foi a própria vontade dos atores em

participar na pesquisa.

3.6 Limitações da pesquisa

Como toda pesquisa, houve algumas limitações. Em primeiro lugar, o campo de

educação não é um campo de fácil acesso. Experiência do grupo de pesquisa

15 Segundo o Ministério da Justiça, os indivíduos provenientes de segmentos sociais que sistematicamente têm tido acesso restrito ao ensino de qualidade pertencem a um ou mais dos segmentos sociais explicitados, a seguir: raça/ etnia negra ou indígena; região de nascimento Norte, Nordeste ou Centro-Oeste; pessoas provenientes de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas ou educacionais (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1996).16 Dados exatos sobre os perfis dos alunos das turmas e as origens familiares, sociais e econômicas deles não foram coletados. Por profissionais da instituição, participantes na pesquisa, foi informado que, ao lado dos dados da ficha de matricula dos alunos, que contem algumas informações gerais sobre por exemplo local de moradia dos alunos e profissão dos pais, somente o Serviço de Orientação Educacional possua em alguns casos mais informação sobre a origem e a situação familiar, social e econômico dos alunos. Porem, esses dados são considerados confidenciais e não foram passadas pela pesquisadora. A pesquisadora também não consegui acesso aos dados de matricula.

54

‘Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar’, onde esta

pesquisa foi realizada, mostra como pode ser difícil de conseguir permissão para

executar uma pesquisa dentro de um contexto de educação formal. Isso resultou

no fato que sobrou menos tempo ainda para a realização do trabalho.

Como todos os projetos, ele também tem um prazo que precisa ser cumprido.

Assim, o limite de tempo, então, deve ser considerado como um dos limites

desta pesquisa. Foi por esta razão que se fala de uma aproximação à pesquisa

etnográfica; uma verdadeira pesquisa etnográfica exigiria mais tempo de

presença no campo. A etnografia é caracterizada por pesquisa intensiva, de

longa duração. Uma pesquisa etnográfica demanda longos períodos no campo,

longos períodos de observação e tempo para poder refletir sobre os dados com

os participantes (MATTOS, 2006).

Uma terceira limitação, que já foi mencionada na seção 3.1.1, é que, como a

pesquisa é uma pesquisa de escala pequena, não se pode generalizar as

conclusões e aplicá-las em outros contextos. Com base nesta pesquisa não

pode fazer depoimentos sobre ‘dinâmicas de inclusão’ em instituições

educacionais em geral. Esta pesquisa só permite formular análises que se

referem à micro realidade estudada. Espera-se, porém que essas análises

possam oferecer um entendimento de como os processos e as dinâmicas de

inclusão podem funcionar. Esse entendimento poderia ajudar a compreender

questões parecidas também em outros contextos.

55

4 ANÁLISE E RESULTADOS

Depois do cruzamento dos dados e a análise das práticas discursivas dos

profissionais e alunos da instituição, surgiram as categorias que foram

consideradas como principais para entender as dinâmicas de inclusão na

instituição. As duas categorias principais identificadas são: poder e o outro.

Poder é aqui entendido como a força exercida e distribuída em relação à

participação na instituição em discursos, políticas e práticas; é reconhecida uma

relação entre o saber e poder (FOUCAULT, 1987a, 1987b).

O outro é aqui entendido como categoria social, socialmente construída com

base em informações concretas ou suposições em relação à origem de um

indivíduo. O uso dessa categoria muitas vezes acompanha um pensar em

categorias opostas ‘nós’ e ‘eles’. Neste caso o ‘outro’ é o indivíduo que não faz

parte do ‘nós’, o indivíduo que possivelmente é incluído no contexto onde ‘nós’

domina.

Como subcategorias relacionadas à categoria poder foram identificadas:

hierarquia, autonomia e liberdade. Como subcategorias relacionadas à categoria

o outro foram identificados: lugar de moradia, cultura, classe social/ situação

financeira, contexto familiar (nível educacional dos pais; profissão dos pais;

incentivo dos pais para estudar) e cor da pele.

56

Categorias principais Sub-categoriasPoder Hierarquia

AutonomiaLiberdade

O Outro Espaço físico (lugar moradia, lugar na sala de aula)

CulturaClasse social/ situação financeira

Contexto familiar (nível educacional dos pais; profissão dos pais;

incentivo dos pais para estudar)Cor da pele

Para análise das práticas discursivas dos profissionais em torno das

mudanças que a abertura de acesso através de sorteio trouxe, dividiu-se a

discussão em cinco seções.

Na primeira seção ‘Uma escola para todos?’, se discute o processo de

democratização do acesso ao CAp através das falas dos profissionais

participantes. Na segunda seção ‘O conceito CAp’, discute-se as idéias atrás

do CAp como instituição. Na terceira seção ‘Dinâmicas de inclusão’, se

aborda as mudanças que a democratização trouxe para a prática pedagógica

dos profissionais, segundo os profissionais participantes. Na quarta seção ‘Na

busca de outras formas: diversidade e a prática pedagógica do professor’, são

discutidos os desafios, as estratégias e as dificuldades que encontrou-se nas

práticas discursivas dos profissionais. Na quinta seção, ‘CAp no paÍs das

maravilhas?’, são abordados de que maneira os profissionais refletem sobre o

papel da escola em relação à inclusão. Finalmente, na última seção se reflete

57

sobre as tensões em relação a inclusão observadas no CAp enfocando na

política de jubilamento.

Para ilustrar as análises, partes dos textos dos documentos estudados e

fragmentos das transcrições das conversas e entrevistas realizadas são

incluídos no texto na forma de vinhetas. Nas vinhetas são usados os

seguintes símbolos:

(..) corte da fala do participante de parte que não contribui para o entendimento do argumento expressado pelo participante, uma frase com algumas palavras.

(...) corte na fala do participante que não contribui para o entendimento do argumento expressado pelo participante, mais do que uma frase.

(-) corte na parte da conversa, falas do participante e da pesquisadora, da parte que não contribui para entendimento do argumento expressado pelo participante.

[texto em itálico] comentário adicionado pela pesquisadora para esclarecer a fala do participante.

( ) parte de fala não transcrita

Com o objetivo de preservar a identidade dos profissionais, como já mencionado

anteriormente, nas vinhetas referências às matérias ensinadas são tiradas. Os

números citados no final do parágrafo da vinheta servem de identificação para a

pesquisadora do lugar das falas na transcrição e/ ou da data das conversas e

das entrevistas.

58

4.1 Uma escola para todos?

Nesta seção é discutido o processo de democratização do acesso e são

mostrados como os profissionais refletem sobre a (história das) mudanças da

política de acesso.

4.1.1 Políticas de democratização

Na década de oitenta iniciou-se no CAp uma discussão em torno das políticas

de acesso. E a partir dos anos noventa, novas formas de acesso mudaram o

perfil da instituição.

Atualmente existem no CAp oficialmente três momentos de entrada; no primeiro

ano do ensino fundamental, na quinta série do ensino fundamental e no primeiro

ano do ensino médio.

Entre 1948 e 1998, o acesso à escola realizou-se através de exames de

seleção. Os parâmetros para esses processos seletivos definiam limites de

idade, notas mínimas para aprovação e conteúdos programáticos específicos

para os exames. O ingresso na instituição acontecia com base no mérito.

Como vários profissionais participantes da pesquisa confirmarão, isso significou

na prática que, no caso do ingresso no primeiro ano do ensino fundamental,

somente alunos que tinham feito um cursinho antes de fazer a prova

conseguiam entrar na instituição. Na quinta série do ensino fundamental e no

59

primeiro ano do ensino médio quase somente entravam crianças e jovens que

saíam de boas escolas particulares, ou crianças que conseguiam se preparar

para a prova fazendo um curso particular de preparação.

Segundo documentos oficiais da instituição e a fala de vários participantes da

pesquisa, uma das características da escola é a gestão democrática. Assim, as

mudanças nas políticas de acesso foram amplamente debatidas durante vários

anos.

Em 1998 surgiu um debate em uma plenária pedagógica onde o tema sobre a

democratização do acesso para o ensino fundamental foi levantado. Segundo

P1 (conversa, 10/11/2005), essa discussão foi levantada pela nova direção que

entrou naquele ano.

A proposta de abrir o acesso a primeira série do ensino fundamental através de

sorteio ganhou a votação, mas, depois de um ano de experiência, chegou-se à

conclusão que as diferenças dos níveis de alfabetização dos alunos, que

entravam na primeira série era muito grande, foi decidido, então, criar uma

classe de alfabetização. A partir daí, acontece o sorteio público para o ingresso

na classe de alfabetização do CAp.

No mesmo ano, também foi decidido fazer sorteio de vagas para ingresso na

quinta série do ensino fundamental. Na quinta série as turmas são maiores

(aproximadamente 30 alunos cada turma) do que as turmas da quarta série

(aproximadamente 25 alunos cada turma). Assim, a cada ano sobram,

aproximadamente, cinco vagas em cada turma. Desde o ano de 1998, essas

vagas também são sorteadas.

60

No entanto, para ingressar no primeiro ano do ensino médio foi mantida uma

prova de seleção. Até hoje, para ingressar nessa série existe uma forma híbrida

de seleção: uma prova, onde o aluno precisa acertar a metade das questões, e

depois uma seleção através de sorteio.

Essas decisões têm uma história, mediante as práticas discursivas dos

profissionais participantes ela é retratada na próxima seção.

4.1.2 Discussão, democratização e desespero total

Como refletem os profissionais sobre as decisões em torno da política de

acesso? O que, segundo eles, significou a mudança de política de acesso para o

perfil da instituição e seu público?

Conversando com os profissionais da instituição, entendeu-se que na época da

votação dos prós e contras sobre a entrada de alunos através de sorteio, a

maioria dos profissionais votou pró, ou seja, o acesso através de sorteio público

na classe de alfabetização. Porem vale ressaltar, que na época também existia

entre os profissionais certa resistência em relação à (partes da política de)

democratização do acesso.

P1 (P1, conversa, 10/11/2005) opina que na época, quando houve votação pela

nova política, muitos professores achavam que o ingresso do novo público

significaria mais mudança para os professores que davam aulas nos primeiros

quatro anos do ensino fundamental. Nessas séries tinha muito profissional que

61

votou contra a política. Segundo P1, os professores da 5ª a 8ª séries sentiam

menos dificuldades com a nova política, porque esses professores dão aula de

uma só matéria para vários grupos. De acordo com P1, nessas séries o contato

com o aluno é menos importante, segundo ele nessas séries é mais a matéria

que está em foco, e segundo P1 “para eles é mais fácil só dar matemática”.

Na argumentação pró, isto é, o acesso através do sorteio, muitos profissionais

se referem ao caráter democrático da escola e o fato da escola ser uma escola

pública. Assim, em uma entrevista por Silva (2006), a atual diretora do CAp

chama a atenção para uma contradição no processo de seleção como existia

antigamente e o fato da escola ser uma escola pública. Ela diz:

“Ela é uma escola que atende a clientela de classe média, média alta, é uma escola que seleciona por mérito, (...) E isso é uma contradição com o papel da escola pública. (...) A escola pública tem que ser uma escola para todos. De que maneira você pega uma escola de qualidade como o CAP e a transforma em uma escola para todos? Num espaço realmente aberto para todos? Não é fazendo prova. Então, optamos por fazer sorteio, por ser a única forma de se realmente democratizar o acesso à escola.” (SILVA, 2006)

P8 é também um profissional que já trabalha há muitos anos na instituição e

estava presente quando as políticas de acesso foram discutidas na época, ele

explica porque é e era na época a favor de ingresso por sorteio:

“Eu sentia a necessidade de se.. já que é uma escola pública, e de você manter um acesso igual a uma escola particular, ou igual ao vestibular né, e que limita muito essas classes populares entrarem no CAp.” (P8, entrevista, 3382)

Apesar de que todos os participantes afirmam sobre a idéia que, em principio, a

decisão de fazer sorteio público para o acesso a classe de alfabetização foi boa,

62

nem todo mundo votou a favor na época. Assim, alguns profissionais criticam a

forma na qual as mudanças foram introduzidas e outros falam de ‘politicagem’

da diretoria na época.

Falando sobre a decisão de fazer sorteio direto para ingresso na classe de

alfabetização, P1 (conversa, 10/11/2005), que trabalhava na época com as

primeiras séries do ensino fundamental na escola, confirma que a nova política

gerou muita polêmica dentro da instituição. Muitos professores, principalmente,

aqueles que trabalhavam com as primeiras séries do ensino fundamental, não

eram a favor da nova política de ingresso através de sorteio, porque eles

sentiam que não estavam preparados para lidar com o ‘novo público’ que a

política ia trazer.

P1 fala das decisões que tiveram que ser tomadas de pressa por causa da

‘politicagem’ do novo diretor que entrou nesse ano. P1, descreve como ele se

sentiu “jogada num buraco”, sem tempo para se preparar para a nova situação:

“Não tinha tempo para preparar nada. Não tinha tempo para estudar um pouco, quem é esse aluno. (...) Ninguém se entendia, era generalizado o caos.”(P1, conversa, 10/11/2005)

P9, que já trabalhava como professor na escola na época e votou a favor de

ingresso através de sorteio, fala sobre as discussões e sobre o ano em que as

políticas foram postas em prática. Ele descreve a resistência que ele sentia entre

os colegas em relação à democratização:

“Foi horrível! Ninguém queria pegar [a turma dos alunos sorteados]. Todo mundo ficou com as mãos na cabeça porque eram turmas de.. antigamente só passava para primeira série lá quem tinha 99,8 ou 99,7 ( ) só esses alunos

63

assim. (...) Ninguém queria pegar essas turmas, era só substituto [professor substituto]. (-) Então, nesse ano foi o desespero total, (..) essa coisa dos professores falarem que era turma horrorosa porque não era aquela turma que todo mundo tira 99,9, 99,8 então tinha essa loucura toda.” (P9, entrevista, 3955-4027)

Apesar da maioria dos profissionais ter votado pro sorteio direto na classe de

alfabetização, entendeu-se que a maioria dos profissionais na época votou

contra sorteio direto na quinta série. Assim, P6 fala:

“...a gente [P6 aqui se refere aos professores e outros profissionais da escola] pensou em fazer uma avaliação, (..) é não de ser assim, e ... sorteio direto. Assim, como é para o 1º ano do ensino médio. Existia uma maioria que optou por fazer uma prova de português e de matemática. Não aquela prova arrasadora, não. Uma prova assim, para medir o nível básico. (-) ..mas isso, depois assim, e... foi rediscutido em outras instâncias fora daqui e acabou-se optando.. acabou-se optando pelo não... pela não feitura dessas provas.”. (P6, entrevista, 2512-2550)

Neste fragmento, foi observado de novo como existia entre os profissionais na

época resistência em relação a partes da política de democratização do acesso.

Na conversa P6 questiona a decisão (que, segundo ele, a final foi tomada por

“outras instâncias”) de fazer sorteio direto para a quinta série e manter a prova

de nivelamento para acesso no primeiro ano do ensino médio.

Nas conversas foram observadas que ainda existem resistências e dúvidas entre

os profissionais em relação à, especificamente, essa decisão. Vários

profissionais questionam se é bom que os alunos entrem na quinta série sem

medir de nenhuma forma a ‘base educacional’ deles. Essa observação será

discutida mais na frente neste capitulo.

64

4.1.3 Poder de fogo

Nas análises das falas dos profissionais a respeito da democratização de acesso

no CAp percebe-se a existência de uma hierarquia dentro da instituição. Uma

hierarquia que teve influência na maneira como as decisões a respeito das

políticas foram tomadas.

Apesar de que teve “milhões de reuniões” e discussões a respeito da

democratização do acesso para as quais todos os profissionais da instituição

foram convidados, ao final, como diz P6, algumas decisões foram tomadas por

“outras instâncias”. P6 menciona, que a maioria dos profissionais da escola

votou por manter a prova de nivelamento para a quinta série, entretanto a

decisão final do Conselho Pedagógico e Conselho do Centro foi contraria a eles,

e optou-se pelo sorteio direto das vagas:

“..foi assim uma discussão em torno de.., e.. quem tem o poder de fogo? (-) ..a decisão do.. dessa Plenária Pedagógica tem que ser respeitada, ou aqui isso pode ser rediscutido? Ainda tem assim, uma confusão em relação a isso, (..) tem uma confusão que eu digo assim em relação a esse espaço da Plenária Pedagógica e do, Conselho Pedagógico. Que essa decisão foi da Plenária, e a mudança foi no Conselho Pedagógico e depois no Conselho do Centro, né. Do CFCH.”(P6, entrevista, 2638-2648)

Pelo que se entende, existem vários níveis pelos quais as discussões e decisões

passam, alguns níveis com mais “poder de fogo” do que outros. Conclui-se que,

mesmo nessa instituição, que se caracteriza como ‘democrática’, existem

relações de poder que ao final pesam na formação de políticas.

65

Entende-se que ainda existem resistências e críticas em relação à partes da

política de democratização sobre todo o acesso à quinta série através de sorteio.

Nas falas que expressavam resistências encontram-se críticas em relação ao

nível da direção da instituição. Parece que alguns profissionais se sentiram

‘ultrapassados’.

Verificou-se que a decisão política foi tomada supostamente por vias

‘democráticas’, mas que no final os professores tinham que se virar sozinhos na

nova situação na prática do dia-a-dia da sala de aula. Foram vistas como o

debate em torno das políticas de acesso trouxe consigo uma discussão sobre o

perfil da instituição e seu público.

Na próxima seção é vista como, a instituição é representada nos documentos

oficiais e nas falas dos profissionais, e como dentro dessa prática discursiva

referências são feitas as mudanças que a democratização do acesso trouxe.

4.2 O conceito CAp

Nesta seção é discutida como a instituição é representada nos documentos

oficiais e nas falas dos profissionais.

66

4.2.1 Tradição que faz a diferença

O CAp é considerada uma escola pública de reconhecida reputação e também

os documentos oficiais relatam isso, até os dias atuais. O CAp vem se

caracterizando como uma escola singular e diferente. Essa ´singularidade´

existe, segundo a voz oficial da escola e vários profissionais, no trabalho

pedagógico; no caráter democrático; no nível alto e no público da instituição.

Essas quatro características são discutidas, a seguir, fazendo referência às falas

dos profissionais.

4.2.1.1. Disciplina e organização para autonomia e

liberdade

Como descrito em documento oficial (documento 2), o trabalho pedagógico se

encontra alicerçado em três pilares básicos: “a transmissão de cultura geral, com

ênfase na formação humanística; a utilização de metodologia ativa e uma carga

horária semanal ampliada, através da incorporação de novas práticas

educativas”.

A pesar de que são reconhecidos esses três pilares nas falas dos profissionais

em relação ao trabalho pedagógico, observam-se outros temas que pareciam

ser de grande importância para os profissionais. Foi identificado que os

67

conceitos “liberdade” e “autonomia” do aluno tomaram um lugar importante nas

falas sobre o trabalho pedagógico. Esses conceitos, muitas vezes, foram

mencionados em relação ao caráter “democrático” da escola. Esses elementos

poderiam ser associados a uma prática pedagógica de caráter mais moderno.

Por outro lado, percebeu-se nas conversas, também referências à abordagens

pedagógicas mais tradicionais. Assim, os profissionais se referiram muito a

importância que os professores e a direção dão à organização e à disciplina em

relação ao trabalho escolar. Vários alunos confirmaram essa idéia em conversas

com a pesquisadora; alguns deles expressavam que na verdade, eles achavam

que a escola e os profissionais eram ‘rígidos demais’. Ligadas a essas

abordagens mais tradicionais, também, percebeu-se a importância que, tanto os

profissionais como os alunos, dão a nota. Esses elementos mais tradicionais são

associados a uma pedagogia orientada para uma visão cartesiana em relação a

educar e aprender.

Na fala citada, a seguir, onde o profissional P4 relata sobre uma conversa que

teve com um aluno que entrou recentemente na quinta série, ficaram bem claros

os diferentes elementos, tanto os tradicionais como os modernos, do perfil da

escola que ele identifica. Ele fala de elementos ligados aos conceitos de

disciplina e organização como: “horário de estudos”, “hábitos de estudos”,

“atitudes e cuidados com os materiais”, “tarefas”, “prazo”, “deveres” e “os

cadernos”. Ele também fala do caráter moderno caracterizado por “liberdade”

que o aluno tem.

68

“...alunos que entraram aqui na 5ª série, (..) quando chegam aqui eles encontram uma, entre aspas, liberdade né? e aí eu conversando com ele [o aluno] “..eu gostaria de pontuar aonde é que está a sua dificuldade?”. E aí começamos a conversar e eu fui conduzindo a partir de trocas né? ..de.. de.. de.. de fatos né, e comportamentos, a partir da organização, né, do compromisso, da responsabilidade e aí ele viu que, né, ele concluiu que realmente, o que poderia estar acontecendo seria justamente isso.. Essa liberdade, entre aspas, ne.. que ele não está sabendo lidar. E ele, então, está se perdendo, está se perdendo por que? Porque ele não está conseguindo se organizar a partir de horário de estudos, hábitos de estudos, (..) a anotação da solicitação das tarefas, o prazo. (..) os deveres. (..) no caso os cadernos né. (..) O material dele. Inclusive no próprio COC [conselho de classe] foi solicitado que, ahm.., o trabalho de orientação atuasse porque ele estava muito desorganizado.” (P4, entrevista, 89-127)

Quando se analisa a fala de P4 citada acima, pode-se ver como esse

profissional acredita que o caráter da escola, caracterizado por liberdade (“entre

aspas”), pede “responsabilidade” e “compromisso” dos alunos em relação aos

vários atos que ela relaciona quanto à organização e disciplina. Em outras

palavras: segundo P4, a liberdade traz consigo o compromisso e a

responsabilidade de se organizar, ser disciplinado.

De acordo com P4, por isso os alunos precisam aprender a lidar com essa

“liberdade” que a escola oferece. O aluno precisaria “se organizar” para dar

conta. Ele especifica essa organização com várias palavras que se pode

associar a uma visão cartesiana de aprender, como: “horário de estudos”,

“hábitos de estudos”, “anotação das tarefas”, “prazo”, “deveres”, “os cadernos” e

“o material”. A aprendizagem, segundo P4, está no saber lidar com essa

liberdade, ou como ele diz mais tarde “esse limite né, na parte da disciplina e da

organização.”. Resumindo, segundo P4, os alunos precisariam aprender “o limite

da liberdade”.

69

P4 observa que os alunos que entram depois no CAp, como, os alunos que

ingressam somente na quinta série, experimentam mais dificuldades em relação

a essas ‘aprendizagens’, ele diz:

“Eu... assim, eu vejo que.., os alunos que já entraram aqui desde o CA, tem menos dificuldade é.. é.. é.. é.. de lidar com essa liberdade, porque eles já estão acostumados. Não se.., não se encantaram com essa liberdade que eu estou falando.” (P4, entrevista, 147-149)

P5, também menciona a importância que é dada na escola para que o aluno

aprenda “o hábito de estudo” e a “disciplina”. Ele diz:

“..o objetivo além dos conteúdos né, de trabalhar essas questões, a gente tem que e.. criar o hábito de estudo neles, a gente tem que trabalhar a disciplina, né. Principalmente, o hábito de estudo. Então, tem que ter aquela coisa de ficar controlando caderno, controlando se trouxe material. (-) E eu perco muito tempo com essas coisas, está entendendo? E, e.. eu.. além de tudo eu já tenho um horário que já é ingrato...” (P5, entrevista, 1751-1759)

Analisando a fala desse profissional e o uso repetido da expressão “a gente tem

que...”, verifica-se que P4 não participou na definição das metas de

aprendizagem mencionadas acima.

Analisando a fala de P5, parece que a importância de trabalhar a “disciplina” e o

“hábito de estudo”, segundo ele, foram definidos de cima para baixo como um

dos objetivos de aprendizagem para os alunos da quinta série. Aqui se pode

perguntar se os profissionais recebem a tarefa de ensinar essas ´posturas´ aos

alunos, concordando ou não, ou se eles participam na definição desses

objetivos. Parece que P5 não trabalha essas posturas com base na própria

vontade. Ele menciona “elas” em uma seqüência de coisas sobre a qual ele não

70

está contente, inclusive ele expressa como, também, parece que o papel dele

como professor que ´controla´ está definido de cima para baixo.

A análise das falas desses profissionais parece indicar a existência de uma certa

hierarquia dentro da instituição, uma hierarquia que parece influenciar (o refletir

sobre) a prática pedagógica dos profissionais. São vistas como as metas

pedagógicas possivelmente definidas de cima para baixo, se enquadram muito

bem em um perfil de uma escola tradicional onde existe uma visão cartesiana de

aprender, uma visão que em si acompanha uma cultura escolar caracterizada

por hierarquia. Essas observações refletem uma das categorias principais: o

poder.

Interessante é o fato que nas falas dos alunos não foram notadas referências à

categoria liberdade. Pelo contrário, vários alunos se referiram ao caráter mais

tradicional da escola, ao caráter “rígido” e a importância da nota. Voltadas às

abordagens mais tradicionais percebeu-se a importância que tanto os

profissionais como os alunos, dão a nota. Essa observação é discutida na

próxima seção.

4.2.1.2 Gestão, participação e autonomia

Segundo os documentos oficiais e as falas de vários profissionais participantes,

o CAp se caracteriza por ser uma escola ´democrática´.

71

Segundo a atual diretora, esse caráter democrático existe principalmente na

forma de gestão. Assim ela diz em uma entrevista por Silva:

“O diferencial do CAp é basicamente a forma de gestão. É um colégio em que o planejamento é um planejamento coletivo (...) ..eu acho que esse é o diferencial. As discussões interdisciplinares, de integração, são feitas em reuniões abertas, coletivas.” (SILVA, 2006)

Referindo-se ao objetivo atrás do caráter democrático a diretora fala: “mais do

que o respeito às decisões, é perceber que somos um grupo que está lá para

gerir a escola, para apresentar suas propostas.” (SILVA, 2006).

Vários outros profissionais também se referem à importância que é dada na

instituição à participação nas discussões sobre políticas e práticas na escola.

Assim, P9 fala:

“É muito interessante é uma escola bem democrática tudo é resolvido em conjunto, milhões de reuniões... tudo em milhões de reuniões para poder decidir, sabe?” (P9, entrevista, 3927)

Participação nas discussões também é esperada dos alunos, assim a atual

diretora explica na entrevista por Silva:

“O CAP oferece espaço para que os alunos se auto-organizem e isso é uma coisa que queremos reforçar porque para a direção da escola essa participação compromete o aluno com as deliberações, com a escola, com a manutenção, com a existência da escola, com a coisa pública, com o papel da escola.” (SILVA, 2006)

Neste fragmento observou-se como a diretora explica que ela acha a

participação dos alunos em forma de auto-organização positiva. Ela argumenta

que essa auto-organização “compromete” o aluno com a escola. Interessante

72

neste comentário é que, ao mesmo tempo, que a diretora fala de uma

participação democrática, ela não fala dos alunos como iguais: em vez de deixar

isso para os alunos, é ela que define o objetivo da participação dos alunos;

“comprometer” eles com a escola.

Outros profissionais também falam sobre a participação dos alunos. Assim, P5

diz:

“é uma escola.. (..) que tem tradição (..) de ter essa coisa de prezar a autonomia do aluno. O aluno tem voz aqui, ele interfere diretamente no espaço, assim né, decidindo as regras, negociando. Ele faz parte do.., tudo passa, ele não é só, não recebe as coisas prontas né.”

(P5, entrevista, 1563-1565)

P7 menciona que ele acha que às vezes os alunos abusam um pouco o caráter

democrático que a escola tem. Ele coloca a fala dele no contexto do CAp e

também no contexto da época atual:

“Em alguns momentos, eles [os alunos] extrapolam um pouco essa idéia de democratização né, mas.. Mas, eu acho que isso é uma tendência atual e não, não só aqui na, na escola que tem essa política como em todas. Porque é uma evolução. Foi, há tempos atrás, os professores eram mais rígidos, a escola era um lugar de regras né, que jamais poderiam ser quebradas e se você fazia isso eram punições fortes, os alunos temiam. (...) Então, digamos assim, às vezes se, se eu falo “se vocês não terminarem esse exercício agora...” quando eles estão falando muito, “..vocês vão ter que fazer no recreio”, aí vem um, alguém e fala, “[você] não pode deixar a gente sem recreio porque a gente pode chamar um advogado”, então tem essas falas. Então, tem.. tem um momento que eles perdem um pouco a noção do que é democracia para eles né. Então e, eu acho que é perigoso nesse ponto, mas que é bom porque eles pegam maturidade importante cedo né. Ficam mais politizados. Essa.. isso de escrever em jornal eu acho legal, deles terem voz na escola, eu acho bom.”(P7, entrevista, 3081-3105)

Alguns participantes falam de democracia em relação à autonomia e liberdade

que os alunos têm na escola. Vê-se como P4 faz uma ligação entre os

73

elementos mais tradicionais do perfil da escola como mencionados em seção

4.2.1.1. e o caráter democrático que a escola tem segundo ele. É visto como ele

explica o perfil democrático referindo à “autonomia de decisão” dos alunos:

“..é uma escola com um cunho, com um perfil democrático, né?.. Democrático. E passa isso mesmo. Que.. que o aluno tenha essa autonomia de decisão, iniciativa, de crítica, de reivindicações, né? É um espaço que eles aprendem, agora essa.. essa.. essa.. essa construção.. essa construção dessa autonomia, ela é, eeeh, trabalhosa e tem que ser trabalhada né.. tem que ser percebida né, alicerçada. Então, nem sempre o aluno tem essa percepção tão cedo. Né.”(P4, entrevista, 133-145)

Neste fragmento chama atenção primeiramente o fato que P4 fala do perfil da

escola como se fosse uma característica fixa: a escola tem um perfil

democrático, o qual já existe e não um perfil que está sendo formado junto com

os atores dentro da instituição. Existe um perfil, no caso democrático, e para

manter esse perfil os atores precisam ser ´trabalhados´ para terem as posturas

certas, os alunos teriam que aprender a “construir a autonomia”.

Parece que a idéia do que, exatamente, significa o conceito democracia no

contexto do CAp não está muito claro. A instituição é democrática, a instituição

quer ser democrática ou a instituição quer ensinar como praticar a democracia?

Durante as observações na sala de aula notou-se uma participação de alguns

alunos. Claramente não existia uma participação de todos os alunos, e também

não foram observados que os profissionais fizeram esforço para isso. Chamou

atenção que na grande maioria das vezes foram os mesmos alunos que

interferiram – interrompendo ou contribuindo - na fala do professor. Foram

também esses alunos que representavam as turmas no conselho de classe.

74

4.2.1.3 Excelência pré-definida

Vários profissionais e alunos falaram do “nível alto” da instituição. Alguns

falaram do nível alto se referindo aos conteúdos oferecidos na escola, outros

falaram de um nível alto de cobrança, e outros ainda abordaram a respeito dos

níveis altos dos desempenhos acadêmicos dos alunos e outros mais se

referiram ao nível alto que a escola obteve nas comparações das estatísticas

nacionais de ensino.

“o grau de cobrança aqui, a exigência né, deve ser maior mesmo. (-) (..) tem que estudar..., se eles estudam aí eu não sei, mas tem que estudar mais para poder tirar uma nota boa..” (P4, entrevista, 189)

“.. o colégio tem.. ..os conteúdos né, que são realmente assim, sabe, nivelados muito altos porque realmente é um, um colégio de, de, de destaque né. de absoluto reconhecimento né. Pelo que ele oferece.” (P4, entrevista, 467-473)

“o nível aqui do trabalho aqui é muito alto, entendeu. É uma escola que realmente bomba, você vê aí nessas avaliações e tal, o CAp está sempre sendo eleito como uma das melhores né? Então, o nível é muito alto.”(P5, entrevista, 1611-1613)

Mais para frente P5 comparou as escolas públicas municipais e estaduais com a

“escola pública de excelência” que é o CAp e disse:

“Eu acho que assim, talvez alguns não, não saibam o que é essa escola. (...) Mas é que o CAp é uma escola pública e uma escola de excelência. Né. Então, tem uns alunos que não.. não.. sei lá, ou não sabem, ou não estão nem aí, entendeu. Então, acho que os pais às vezes.. mas tem.. tem muitos pais que sofrem por causa disso. Porque sabem que.. que isso aqui.. mas os filhos. Não sei se a questão da idade também.., porque adolescente não entende né, dependendo. Aí depo.., depois, mais para frente, vai se arrepender, falar “nossa que oportunidade que eu joguei no lixo!” Né.”(P5, entrevista, 1974-1986)

75

Neste comentário de P5 observa-se como ele comentou que a escola “é uma

escola pública de excelência”, como se a excelência fosse uma característica

fixa da escola e não um valor que a escola ganhe pelos ´atos´ realizados nela

pelos seus atores. Verifica-se como, neste caso, a escola não é considerada

como uma entidade dinâmica, mas como uma entidade com caráter fixo, já

definido previamente. Essa idéia se confirma com o comentário “tem uns alunos

que (..) ou não sabem, ou não estão nem aí”. Aqui, então, pergunta-se; não são

também os alunos, trabalhando junto com os professores e outros profissionais

da instituição, que produzem trabalho de uma certa qualidade que por ventura

pode ser caracterizado como ´excelente´?

A mesma coisa acontece quando os profissionais falam do alto nível dos

conteúdos que a escola oferece: independente do público a escola já “tem” um

conteúdo pré-definido.

Nas falas dos alunos também se percebe a presença do conceito de excelência.

Os alunos se referem a esse conceito quando eles expressam que eles tiveram

“sorte” de ter conseguido entrar no CAp. Nessas falas eles comparam o CAp

com escolas anteriores ou escolas que são freqüentadas por amigos, amigas ou

irmãos. Vários alunos também falam do “nível alto” da instituição. Quando a

pesquisadora pergunta o que eles acham de ter entrado nessa escola, vários

alunos se referem a “sorte” que eles tiveram de ter entrado nessa escola “boa”:

“eu acho muito bom porque foi um milagre, assim, porque todo mundo da família gostou e eu gostei muito, sabe, daqui. Essa escola, eu acho, que é uma das melhores do Brasil, então isso foi, sei lá.. foi muito bom.”

76

(A9, entrevista, 178)

“Eu acho muito bom porque tanta gente querendo e... (..) eu podendo entrar aqui.” (A5, entrevista, 385)

“..eu acho que a gente tem que aproveitar porque somos muito poucos que conseguimos, então a gente tem que aproveitar o máximo para se esforçar e para aprender porque outras crianças em outros colégios vivem se esforçando, mas não vão conseguir porque não tem um bom ensino, bons professores, então eu acho que a gente aqui, a gente tem a obrigação de se esforçar para conseguir boas notas, passar de ano..”(A11, entrevista, 826)

“Sorte. Porque muita gente que tenta e não consegue. Minha mãe escreveu quatro pessoas. Só eu que entrei. Eu me sinto feliz por ter entrado numa escola boa ( ) É... (-) ..os professores dão... aula, e não são aqueles professores que dá aula e pára. Eles dão aula e explicam uma vez, duas vezes, os outros só dão um e sai; acabam.” (A3, entrevista, 1229-1261)

“Eu acho que assim, é melhor para o meu aprendi.. aprendizado, hã... que assim, que eu tenho mais chances de quando crescer, arranjar um emprego bem melhor.. e outras coisinhas..” (A6, entrevista, 1470)

Verifica-se nas citações acima, como esses alunos são informados que o CAp é

uma escola boa e “melhor” que outras. Os alunos se referem a “sorte” que eles

tiveram de poder estudar nessa escola dizendo que muitas pessoas gostariam

de estudar nela. Alguns expressaram que, por isso, eles tinham mais

responsabilidade de suceder, se esforçar e “tirar notas boas”.

Com base na análise das falas dos alunos conclui-se que muitas das idéias

refletidas acima são influenciadas pela fala dos pais ou outros familiares e

pessoas próximas à família:

“Pesquisadora: E o que que seus pais acham? A6: Bom, porque eu vou ter mais.. oportunidade de ser alguém na vida (ele fala de um jeito como se alguém já falou isso muitas vezes para ele), que certo... que isso é um colégio bom, que eu aprendo mais rápido e barãrã… conforme minha dificuldade.., mas aprende isso e aquilo um monte de coisa e blábláblá... (risos) Pesquisadora: Ahã.. Blábláblá. Que que isso?

77

A6: Ah, umas coisinhas.. umas coisinhas, umas palavrinhas que minha mãe vive falando.. Pesquisadora: O que ela fala por exemplo?A6: Fala que eu tenho que estudar direito porque esse colégio (..) é muito difícil de se.. de se conseguir, quando consegue é de dar graças a Deus, e essas coisinhas assim... ah, sei lá.” (A6, entrevista, 1480-1476)

“Pesquisadora: E o que seus pais acham? A14: É… ah, eles... eles ficaram orgulhosos. To estudando numa escola boa. E.. eles não estudaram também numa escola boa não. Minha... Minha vizinha fala, também. Ela fala, assim: “você está numa escola muito boa, tu tem que estudar!”.(A14, entrevista, 1778-2079)

“Pesquisadora: E o que seus pais acham? A13: Ele acha que essa escola é muito boa e ele fala assim “se você repetir o ano você vai ficar com a consciência mais forte porque não vai gostar de ficar repetindo porque vai todo mundo te sacanear, sua escola é muito boa para você e você tem que aproveitar!” E minha tia fala a mesma coisa.” (A13, entrevista, 2299)

Em relação ao discurso sobre o ´alto nível´ da escola, percebe-se na escola uma

presença forte do conceito de nota. Como foi mencionado na seção anterior,

tanto os profissionais como os alunos se referiram muito a nota. Sem excepção

em todas as aulas observadas a nota foi também mencionada. Algumas vezes a

nota da última prova foi divulgada, às vezes a nota foi mencionada para chamar

a atenção dos alunos como ameaça (“se vocês não prestam atenção, vocês vão

tirar uma nota ruim na prova!”, “se vocês não param agora eu vou dar nota zero

para todos vocês!”). Nas entrevistas a nota apareceu nas falas como maneira

para identificar alunos ‘bons’ e alunos ‘ruins’. Assim, por exemplo, na fala de P4

no seguinte fragmento:

“..o que eu pude perceber (..) foi o seguinte, quando era o concurso que.. que acontecia, passavam os bons. Então chegavam aqui alunos que, para passar, para tirar notas altas.. são alunos que estudam muito. Então, eu acredito, isso (não) é uma conclusão minha, eu acredito que as dificuldades [dos professores] deviam ser diferentes. Não sei quais né.. Porque nem, nem, nem me informei, não pesquisei sobre isso. A partir de um momento que você faz a partir de um sorteio, você vai ter alunos de 5 a 10, ou de 10 a 4. (-) A gente

78

não vai quantificar o aluno. Então, a gente pode falar você vai ter alunos de A a.., a D. Alunos que gostam de estudar, mas alunos que a mãe obrigou, tipo assim, “não,eu vou, eeh.. colocar você no sorteio porque eu quero que você estude num colégio muito bom”. E de repente, aquele aluno veio para cá, mas está tropeçando porque, de repente, ele não é um menino aplicado, ele não é estudioso, ele gosta de repente de, sei lá.. levar na brincadeira, sem muito compromisso né, então quer dizer, agora está mesclado. Está mesclado porque aí ele [o professor] vai ter que.., que ter um, um, uma visão muito mais ampla. Da mesma forma, ele vai ter alunos de 10, 9 e 8, ele também vai ter aluno de 4, 2 e 3. Né, então, o trabalho dele vai ser, uhhh, mais do que dobrado, né.. (-) (..) Quer dizer é.. é.. essa inclusão no caso né. Porque também é muito fácil eu chegar e dar aula só para alunos que tiram 8, 9 e10.” (P4, entrevista, 423-457)

Vários alunos se referem à nota quando a pesquisadora pergunta como eles

estão indo à escola. Muitos deles expressaram também ter medo de receber as

notas. Parece que a nota é uma coisa temida para alguns. Um aluno ou outro

nem quer falar a respeito.

“Eu acho que a gente aqui, a gente tem a obrigação de se esforçar para conseguir boas notas, passar de ano.. eu me esforço bastante eu faço bem os trabalhos, eu adoro trabalho em grupo então eu sempre ajudo quem eu posso nos grupos, mas às vezes eu faço bagunça na aula como qualquer outra criança e eu já perdi muitos pontos por causa disso, não é certo e eu tento me controlar o máximo, mas eu costumo sempre fazer os deveres tirar notas boas eu estudo e sei dividir bastante o tempo entre as atividades assim mais brincadeira e no colégio, porém eu faço muita bagunça.” (A11, entrevista, 826-942)

“Eu fico com muito medo de tirar uma nota muito ruim. Eu nunca tinha tirado nota ruim até o ano passado. Esse ano que mudou muita coisa, é, que as minhas notas, em matemática por exemplo, nossa! Eu tenho que recuperar nota que não sei nem quanto. Estou até nervosa, que está difícil..” (A12, entrevista, 1132)

Essa presença importante e a existência do medo para a nota foram constadas

também durante a observação na sala de aula. Percebeu-se como, na hora da

divulgação de notas, isso criou dinâmicas de exclusão de alguns e inclusão de

outros. Alguns alunos se excluíram, literalmente, se escondendo e esconderam

79

a prova corrigida para os outros colegas. Vários alunos admitiram que existem

dinâmicas de exclusão baseadas em notas; segundo eles existem nas turmas

“grupinhos” de “alunos bons”, “alunos médios” e “alunos ruins”.

Foi presenciada uma discussão que surgiu entre um professor e a turma na sala

de aula porque uma lista de notas, que o professor tinha pregado na parede

tinha desaparecido. Em primeira instância o professor ficou bravo e queria saber

onde estava a lista e quem tinha tirado a lista da parede. Aqui ele usou

ameaças, falando que assim ele tinha que dar nota zero para todo mundo.

Surgiu uma discussão na sala de aula até que um aluno explicou que alguns

alunos não gostavam de ter a lista na parede por causa da rivalidade entre

alunos e exclusão de alunos com nota ruim.

Um dos profissionais faz uma crítica sobre a importância que é dada a nota na

instituição. Ele explica como dar nota “é uma regra” dentro da escola, a qual ele

precisa se adaptar contra a própria vontade:

“..a nota é o tempo todo. Tanto que eles fazem trabalho para ganhar a nota, somente para ganhar a nota. (-) Eu acho que o aluno não é só nota, ele é o todo um conjunto, muito mais que nota. Eu acho né, mas atualmente eu me considero um professor muito antigo porque hoje em dia a pessoa tem esse valor pontual da nota, pronto e acabou! (...) Eu dou porque é uma regra, esse negócio de dar a nota.” (P9, entrevista, 3969-3993)

Foi visto como a idéia do CAp como escola de excelência domina de uma certa

forma a experiência dos alunos na escola. Isso acontece tanto de forma positiva

(eles sabem que estudam em uma escola ‘boa’), como de forma negativa (a

pressão social de sucesso, a responsabilidade que alguns alunos sentem de

80

tirar notas boas). Observou-se como o conceito de excelência também cria

dinâmicas de exclusão na instituição.

4.2.1.4 Um público particular

Alguns profissionais, se referindo ao perfil da escola, falam sobre o público típico

da instituição. Nessas falas, muitas vezes os profissionais se referiam ao público

que tradicionalmente freqüentava o CAp. Muitos se referem ao fato que o CAp

era sempre conhecido pelo seu caráter de escola elite. Era também conhecido

como escola de filhos de pais intelectuais e de orientação política de esquerda.

Assim, P5 diz:

“o CAp sempre foi conhecido como escola de elite. Não é uma escola de elite classe A, AA, né, mas de pessoas de classe média para cima né, assim sempre foi uma escola assim... muito difícil de entrar, então..” (P5, entrevista, 1587-1589)

“..o CAp ele, (..) ele já tem um perfil bem tradicional de ser uma escola de vanguarda né, uma escola assim, onde estudava muito.., quer dizer, antes, quando o ingresso era por prova e tal, estudava muito filho de intelectual, funcionário público, mas muita gente assim de esquerda,..”(P5, entrevista, 1651-1569)

Vários profissionais mencionaram que esse caráter elitista não existe mais

depois da pluralização do público que aconteceu depois da abertura do acesso

através de sorteio. Assim, P9 faz uma distinção entre a escola como ele é

atualmente depois da democratização do acesso, e a escola como ele era antes.

Apesar da mudança no público que freqüenta a escola, P9 ainda opina que o

público da escola é diferente do que em outras escolas públicas. A diferença do

81

CAp de agora comparado com outras escolas é, segundo ele, a postura de seus

alunos:

“..é uma escola que tem um público particular (-) A diferença é a postura do aluno diante da vida. (..) O olhar crítico a... a disponibilidade de vida, a... a visão crítica a... uma postura do aluno. (-) uma coisa ampla. (-) ..parece que tem uma coisa do corpo que fala. Eu fico olhando tanto os alunos na hora do recreio.. eu fico.. nossa! Parece.. pode ser sorteio, pode ser... todo mundo fica com a mesma postura, a mesma postura de presença. De ombro assim presente no mundo. Sabe?! Eu acho isso muito bonito.”(P9, entrevista, 4086-4115)

Mais à frente na conversa ele diz:

“Eu acho que o aluno (...), ele tem uma visão, ele entende o que é o mundo, ele entende tudo, ele entende o mundo inteiro como um todo, entendeu? Muito interessante a visão, a visão que os alunos têm (..) do mundo, do mundo do outro. É uma coisa assim, você vê aqueles alunos a mil. (..) Todo mundo parece que esta se querendo.” (P9, entrevista, 4226-4268)

P9 trabalha há cerca de dez anos no CAp, antes de começar a trabalhar no

colégio, ele tinha trabalhado muitos anos em escolas da rede municipal. No

seguinte fragmento ele explicou como, antes da democratização do acesso,

trabalhar no CAp era mais difícil para ele. Ele falou como ele não conseguiu

desenvolver projetos em torno do ´cotidiano´, que ele chama de projetos de

´multiculturalismo´, os quais ele realizou em escolas da rede municipal. Ele

contrasta o público antigo – segundo ele elitista - com o público plural que entrou

na escola depois da democratização do acesso:

“..no colégio, no aplicação, quando eu entrei (...) para trabalhar.. era muito difícil de fazer esse trabalho [ele se refere ao trabalho com o cotidiano do aluno] lá. O aluno não dava assim um retorno era uma coisa meia, o colégio era todo trancado era uma coisa meia, eu ficava meia assustada com esses alunos todos, eu fiquei assustada (...) na época que eu entrei.”(P9, entrevista, 4333)

82

P9 explica que, em uma escola como o CAp, os alunos exigem mais dele como

profissional, e ele como profissional também exige mais dele mesmo:

“..eu jamais estaria fazendo exame [de mestrado] se tivesse trabalhando no município. Entendeu? Então, é uma outra, uma outra (...) esses alunos, esses alunos todos, que entram e não através de sorteio, eles exigem mais de você, né!? (-) Eu não posso nem te falar, mas eu acho que você [como professor] é exigente com você mesmo, entendeu?”(P9, entrevista, 4308-4314)

Os alunos não fizeram referência à mudança de público que aconteceu na

instituição, isso parece lógico considerando que eles, como alunos da quinta

série, não presenciaram a mudança de política de acesso à instituição. Porem,

foi verificado que abordar sobre as diferenças, era um tema importante nas falas

deles, isso é discutido na seção 4.3.1.

4.3 Dinâmicas de inclusão

Nesta seção são discutidas as mudanças que a democratização trouxe para a

prática pedagógica dos profissionais, segundo os profissionais participantes.

4.3.1 A inclusão do “outro”

Conversando com os profissionais sobre a temática da democratização do

acesso, falas em relação ao “outro” tomaram um lugar importante. O “Outro”,

83

segundo analisado nas falas dos profissionais participantes, é aquele aluno que

entrou depois que o acesso à instituição foi democratizado. Interessante é que

nem todos os alunos que entraram depois dessa mudança são identificados

como “outro”. O “outro” pode, segundo a análise nas falas dos profissionais,

sobretudo ser identificado através (a combinação e interação) dos

‘identificadores’, como, lugar de moradia, cultura, classe social/ situação

financeira, contexto familiar (nível educacional e profissão dos pais e incentivo

dos pais para estudar) e cor da pele.

O fragmento de uma conversa citado abaixo mostra como, em dinâmicas entre

profissionais da escola, o “outro” está sendo construído. Na conversa, na qual os

profissionais relatam sobre os dados pessoais que pais de alunos preencham no

momento da matricula, foram analisadas a presença dos identificadores lugar de

moradia e contexto familiar:

“P2 : (...) ..o que está na inscrição desse ano está mais atual, né.. (-) Que aí é o.. é o perfil da turma. Assim, de quantos alunos os pais tem 2º grau.P4: ..onde moram. (..) Que tem alunos que moram na Zona Sul, mas o pai é porteiro. Não é no caso, né... a residência.P2: Isso também.Pesquisadora: Então, quer dizer que os dados da inscrição não dizem tudo não?P2: Não diz tudo. O fato de morar na Zona Sul não diz tudo. (-) A gente inclusive tem gente que mora na Rocinha. (-) E aí diz que.. dependendo.. porque também tem isso, dependendo para que for, eles respondem um.. um.. assim.. “Gávea”.P4: Éeh. “São Conrado”..P2: Aí dependendo da situação, se for para ganhar, aí diz Rocinha.P4: É. É. É. (-)P2: ..entendeu? Aí tem essas.. essas.. pela.. pela, pela profissão a gente vê.P4: É.P2: Aí você mata logo.P4: É.P2: Mas alguns também não deixam muito claro também uma profissão. Aí você também.. porque realmente, é delicado. Para algumas famílias é delicado falar disso.P4: É. É.

84

P2: E aí você até percebe que se a família também tem uma dificuldade de estar falando é porque também é, é, porque também a família sabe o que significa no..P4: No meio.. P2: ..social aquilo, aquela questão. (-) A gente tem essas questões aqui.P4: É. É.P2: E cada família também lida com seus.. é, com as suas questões, vamos dizer assim de,..P4: Preconceito mesmo né.P2: Preconceito. Né? Aí é que, que mora o perigo.P4: É.” (P4 e P2, conversa, 891-963)

Observa-se, que durante a conversa P2 e P4 relativizam a idéia que se pode

identificar o ‘outro’ sabendo o local de moradia da pessoa, vê-se que, quando

isso é concluído, os dois profissionais discutem a possibilidade de um outro

identificador: a profissão dos pais. Entretanto, pouco depois esse identificador é

também descartado porque, segundo os dois profissionais, a informação que os

pais dão no formulário de matrícula nem sempre é verdadeira.

Analisando o fragmento da conversa entre P2 e P4, parece que na verdade,

existe uma dificuldade de identificar o “outro”. Implicitamente, está entendido nas

falas de P2 e P4, que eles acham que “eles” não querem ser identificados como

o “outro”.

Entende-se que esses profissionais opinam que ser identificado como “outro”

pode ser uma questão sensível. Porem, o que chama a atenção no contexto de

esta conversa, é que aqui nenhum dos dois profissionais faz a pergunta porque

esse “outro” não quer ser identificado como “outro”. Por exemplo, se vê P2 dizer:

“Mas alguns também não deixam muito claro também uma profissão. (..) porque

realmente, é delicado. Para algumas famílias é delicado falar disso”. Verifica-se

como P2, com as palavras “..para algumas famílias é delicado falar disso”, cria a

85

idéia que isso é uma questão pessoal, da família. Ele afirma isso quando ele fala

depois: “..cada família também lida com (..) suas questões, vamos dizer assim

de.. (-) preconceito”.

Com esse comentário esse profissional coloca a questão, que alguns pais não

dariam a informação que corresponde com a realidade, como uma questão

pessoal (da família) e não social (tendo relações com dinâmicas de inclusão na

instituição). Nessa conversa, nem P2, nem P4 menciona a possibilidade que

essa ‘atitude’ que alguns pais têm segundo eles, pode ter uma relação com

dinâmicas dentro da instituição, como, por exemplo, dinâmicas influenciadas por

preconceito.

Nessa fala algumas coisas a mais chamam a atenção. Primeiramente chama

atenção, o uso do pronome “eles” quando os profissionais falam sobre certos

alunos que entram na instituição e seus pais. Van Dijk (1997) indica que um

discurso que inclui um pensar em termos das categorias “eles” e “nós” pode

indicar uma idéia da existência de um contexto social em que “nós” domina. No

contexto do CAp entendeu-se que “eles” são os indivíduos que não fazem parte

do “nós”, os indivíduos que possivelmente são incluídos na instituição.

Em segundo lugar chamou a atenção à frase “se for para ganhar, aí diz

Rocinha”. Em primeiro lugar, essa frase expressa explicitamente uma

desconfiança em relação à “eles”: pode ser que eles não falem a verdade. Em

segundo lugar, essa frase aponta para uma crença que ‘eles’ tentam ‘ganhar’

coisas. O uso da palavra ‘ganhar’ indica uma idéia que “eles” tentam conseguir

coisas, as quais eles a priori não teriam direito.

86

No contexto onde essa fala foi ouvida, um contexto educacional, uma escola

como o CAp que tradicionalmente por muitos já está sendo definida como escola

de elite, essas análises ainda ganham um outro sentido. Em uma discussão em

relação à democratização do acesso à essa instituição educacional, esse tipo de

fala indica a existência de um discurso de ‘favores’ e ‘ajuda’ de “nós” a “eles”,

inclusão na instituição de educação de qualidade como favor ao “outro”.

Isso indica que, pode-se entender essa fala como prática discursiva ligada a um

discurso de favores e não um discurso de direitos. Com base nessa conversa,

analisou-se que alguns dos profissionais parecem não pensar em termos de

‘direito à educação de qualidade para todos’, mas em termos de educação de

qualidade como privilégio de alguns e favor a outros.

Neste mesmo fragmento vê-se como P2 e P4 afirmam a idéia que ‘preconceito’

é um problema de “eles”. P2 diz: “cada família também lida com seus.. é, com as

suas questões, vamos dizer assim de,.. (-) preconceito.”. Entendeu-se que nessa

conversa, P2 e P4 não consideram a idéia que preconceito também poderia ser

um fenômeno presente na instituição. E que, exatamente por isso, com medo

para esse preconceito, algumas pessoas preferem omitir certas informações

pessoais.

Vale à pena mencionar que a pesquisadora percebeu um certo medo para

preconceito também nas conversas que se teve com alguns alunos da

instituição; às vezes parecia que alguns alunos, que moram em comunidade de

baixa renda, ou alunos com pais que tiveram pouca educação formal, sentiam

dificuldades de comunicar isso à pesquisadora. Foi sentido, que algumas vezes

87

no decorrer da conversa os alunos se ‘abriram’ e expressavam mais

informações sobre a situação familiar deles.

Em várias conversas com profissionais, foram identificados comentários em

relação ao contexto familiar dos alunos. Nessas falas, às vezes, existe uma

distinção entre os alunos que recebem apoio em casa para estudar e os que não

recebem nenhum apoio em casa para estudar; alunos com pais com educação

formal e alunos com pais que não tiveram educação formal ou que não

conseguiram nenhum diploma de educação formal; e alunos com pais com

empregos reconhecidos socialmente e alunos com pais com empregos de

baixos salários ou não reconhecidos socialmente.

Nas falas dos profissionais, muitas vezes, implicitamente é feita uma relação

entre esses ´fatos´ da origem do aluno, da postura e o sucesso ou fracasso do

aluno na escola, isso também foi observado nas conversas dos conselhos de

classe.

Aqui, se dá um exemplo da mesma conversa com P4, onde ele fala sobre dois

alunos diferentes. Deseja-se ilustrar com este exemplo, como, nas práticas

discursivas, alguns profissionais lidam com as observações em relação ao

desempenho acadêmico, às idéias sobre a situação familiar dos alunos, idéias

que, às vezes, na verdade parecem ser baseadas em preconceitos:

“..ele, (..) está se perdendo, está se perdendo por que? Porque ele não está conseguindo se organizar a partir de horário de estudos, hábitos de estudos, (..) a anotação da solicitação das tarefas, o prazo. (..) os deveres. (..) no caso os cadernos né. (..) O material dele. Inclusive no próprio COC foi solicitado que, ahm.., o trabalho de orientação atuasse porque ele estava muito desorganizado. Então, eu conversei com ele, um menino muito educado, me parece uma família muito bem estruturada, mas que ele estava sentindo essa dificuldade.” (P4, entrevista, 103-117)

88

“Por turma eu acredito que tenha uns três [alunos] no máximo. (..) sabe assim, que mora longe... nessas comunidades né, ditas carentes. Entendeu? Me surpreendi com uma dessas meninas que, tem aquele aspecto de menina assim. Falei “gente!, como é que essa menina passou para cá!” né? Gente! Eu vou vera nota, sabe é.. assim um.. um rendimento bom sabe? (-) Eu acho, assim pelo que eu conversei com ela.. ela mora no Centro da cidade. (..) que são.., aqueles sobrados antigos, não tem nada ali.. de lazer, só comércio né. E são aqueles sobrados sei lá, perigosos, sei lá né. Deve.. eu vejo assim, a menina deve ficar trancada o dia inteiro, a mãe sai para trabalhar e aí essa menina fica, não temcom quem conversar com quem brincar. Eu acho que ela foi crescendo assim, então uma menina sabe, assim bobinha, sabe? E ela já tem corpinho de mocinha, mas assim tão bobinha. Disse: “Gente!” Retardamento não é porque é uma menina que tem né, prova, rendimento.”(P4, entrevista, 1026-1047)

No primeiro fragmento, verifica-se como P4 descreve a dificuldade que um aluno

está tendo em relação ao desempenho acadêmico. Com a fala no final do

fragmento “ele, um menino muito educado, me pareceu de uma família muito

bem estruturada, mas que ele estava sentindo essa dificuldade”, P4 expressa

com o uso da palavra “mas”, que segundo ele, existe uma contradição entre o

fato desse menino sentir dificuldades e a situação familiar “boa” dele.

No segundo fragmento, P4 expressa várias idéias negativas em relação a uma

aluna, que analisando a fala dele, apenas são baseadas em ‘crenças’ quanto à

situação familiar da aluna. Pela fala de P4 entende-se que essas crenças não

têm base em conhecimento, e como se trata aqui de imagens negativas a

respeito da situação familiar da aluna, pode-se dizer que é preconceito.

No segundo fragmento, observa-se como a combinação de “aspecto visual” e

lugar de moradia criaram em P4 uma série de preconceitos a respeito de uma

aluna e a vida dela. Ele acha a menina diferente de alguma forma, se pergunta

“como é que essa menina passou para cá?”, e tenta identificar o que faz ela

89

diferente. Falando da ‘diferença’, ele afirma que a respectiva aluna em si não

tem dificuldades acadêmicas, a diferença não se encontra no ‘nível’. Conclui-se

que a diferença, neste caso, está construída encima de aparência, informação a

respeito do lugar de moradia e uma série de preconceitos formados com base

nessa informação. Analisando o discurso dele, na verdade, parece que P4 se

surpreende com o fato de que a aluna não tem dificuldades acadêmicas.

Nas falas em relação ao aumento da pluralidade na escola que a política de

entrada através de sorteio trouxe, o conceito de cultura também toma um lugar

importante. Assim, P4 quando fala sobre o caráter plural da quinta série, faz uma

distinção entre dois tipos de alunos e usa para explicar, onde segundo ele,

existe a pluralidade, o conceito de cultura:

“..é plural essa, essa, essas crianças né. (-) É, você vai encontrar crianças que tem em casa biblioteca, que vai ter, sabe, computadores, vai, vão viajar, os pais tem cultura e podem oferecer essa cultura né, formalizada. Tem crianças com um grau de cultura altíssimo, como têm crianças que tem assim o.. o.. o necessário que eles utilizam o que é oferecido no dia-a-dia deles né. (-) ..pessoas simples com pouca cultura né. (-) Os pais trabalham muito. No máximo, né, o que tem de, de multimídia pode ser a televisão, de repente, nem um jornal. Mas, o colégio oferece.. (-) ..né, e os professores pelo que eu vejo assim, nas atividades, oferecem também.”(P4, entrevista, 255)

Vê-se como P4 aqui dá exemplos de o que, segundo ele, é cultura: ter biblioteca

em casa, ter computador, viajar, ter multimídia (televisão). Com esse comentário

ele ‘materializa’ o conceito de cultura: implicitamente ele diz ‘ter cultura’ é ligada

a ter meios financeiros. Não foi surpresa, então, quando se achou,

implicitamente, na fala dele uma hierarquia entre “crianças com um grau de

cultura altíssimo” e “pessoas simples com pouca cultura”.

90

Implicitamente, ele se refere a uma divisão social de classes. Essa

‘materialização’ de cultura e a referência à hierarquia ficam mais aparentes

quando ele define o papel da escola como “oferecer cultura”. Junto ao fato que

com essa fala P4 aborda à orientação em relação à educação caracterizada por

Paulo Freire (1971) como uma concepção bancária de educação, uma

orientação que considera o aluno como um ser “vazio” sem história própria, fica

claro que ele entende a cultura como um fenômeno estático, não-dinâmico.

Cultura, segundo ele, não é uma coisa que é (re)construída em cada contexto

social, mas cultura é uma coisa pronta que se pode “ter” (ou não) e “oferecer”.

P10 também se refere à cultura quando ele fala do aumento da diversidade

dentro da instituição depois da nova política de acesso:

“eles [os alunos que entram através de sorteio na quinta série] não têm nenhuma deficiência. Mas eles vêm de um ambiente cultural precário. (...) a escola contribui, supre,.. contribui para minimizar a defasagem em relação ao grupo de classe média, promovendo eventos de integração na cultura dominante.”. (P10, conversa 18/05/2006)

Aqui, vê-se como P10 faz uma distinção entre dois tipos de alunos, ou seja, os

alunos que entrarão na classe de alfabetização e os alunos que entrarão na

quinta série. Os alunos que entraram na quinta série vêm, segundo ele, “de um

ambiente cultural precário”. Ele não explica claramente, se ele refere-se ao

ambiente familiar, ou ao ambiente da escola, onde esses alunos cursaram até a

quinta série.

Observa-se também que P10 define como um dos objetivos que a educação tem

que “integrar na cultura dominante”. Percebe-se também na fala de P4, a

91

presença de uma visão hierárquica de cultura, em que algumas culturas são

consideradas melhores do que outras. Assim, ele, implicitamente, diz que o

“outro”, que vem de um “ambiente cultural precário”, tem que se integrar a

cultura dominante para poder ter sucesso na escola.

Falando sobre a mudança do público no CAp, muitos profissionais fazem

também referência ao fato que desde a democratização do acesso entravam

alunos com um nível educacional mais baixo. Dessa forma, P4 por exemplo,

claramente faz uma ligação direta entre a democratização do acesso na

instituição e o ingresso de “alunos ruins”.

“..o que eu pude perceber (..) foi o seguinte, quando era o concurso que.. que acontecia, passavam os bons. Então chegavam aqui alunos que, para passar, para tirar notas altas.. são alunos que estudam muito. Então, eu acredito, isso (não) é uma conclusão minha, eu acredito que as dificuldades [dos professores] deviam ser diferentes. Não sei quais né.. Porque nem, nem, nem me informei, não pesquisei sobre isso. A partir de um momento que você faz a partir de um sorteio, você vai ter alunos de 5 a 10, ou de 10 a 4. (-) A gente não vai quantificar o aluno. Então, a gente pode falar você vai ter alunos de A a.., a D. Alunos que gostam de estudar, mas alunos que a mãe obrigou, tipo assim, “não, eu vou, eeh.. colocar você no sorteio porque eu quero que você estude num colégio muito bom”. E de repente, aquele aluno veio para cá, mas está tropeçando porque, de repente, ele não é um menino aplicado, ele não é estudioso, ele gosta de repente de, sei lá.. levar na brincadeira, sem muito compromisso né, então quer dizer, agora esta mesclado. Esta mesclado porque aí ele [o professor] vai ter que.., que ter um, um, uma visão muito mais ampla. Da mesma forma, ele vai ter alunos 10, 9 e 8, ele também vai ter aluno 4, 2 e 3. Né, então, o trabalho dele vai ser, uhhh, mais do que dobrado, ne.. (-) (..) Quer dizer é.. é.. essa inclusão no caso né. Porque também é muito fácil eu chegar e dar aula só para alunos que tiram 8, 9 e10.” (P4, entrevista, 423-457)

No início da fala, P4 usa a terminologia “os bons”, pela fala depois se entende

que ele se refere aos alunos com desempenho acadêmico bom ou acima da

média. P4, assim, faz uma distinção entre os dois tipos de alunos.

92

Primeiramente, ele dá nome para esses alunos como se eles adquirissem a

identidade pela nota que eles tiram (“alunos de 5 a 10”), depois na fala, ele

muda a nota por uma letra (“alunos de A a.., a D”), que representa da mesma

forma uma hierarquia de ‘ruim’, ou ‘na média’ para ‘bom’. P4 atribui uma

identidade fixa, não dinâmica (ele é um aluno tal, e não ele é avaliado de forma

tal) que está ligada a uma hierarquia de avaliação de desempenho acadêmico.

Do mesmo jeito, mais à frente na conversa, ele usa as palavras “alunos que

gostam de estudar” e “ele não é um menino aplicado, ele não é estudioso”.

A fala de P4, implicitamente, expressa que, os alunos que entram através de

sorteio são alunos ‘piores’, alunos que ‘não gostam (tanto) de estudar’, ‘alunos

não são (tão) aplicados’, ‘não são (tão) estudiosos’, que gostam “de levar na

brincadeira”, “sem muito compromisso”. Aqui, ele se refere de novo ao conceito

de “compromisso” que ele, no início da conversa, indicou como importante

juntamente com “organização e disciplina” para poder lidar com a “liberdade”

que o CAp dá para o aluno (veja seção 4.2.1.1).

Este último fragmento mostra como a profissional P4, identifica os alunos,

unicamente, os avaliando pelo desempenho acadêmico. Nessa fala, ele não

considera o desempenho acadêmico como uma coisa que é construída no

contexto da escola, junto com outras habilidades e com outros atores.

A fala de P4 mostra que, segundo ele, o aluno tem dificuldade na escola,

quando ele não tem a atitude certa. Assim, as características fixas de ser ‘bom’

ou ‘ruim’, P4 atribui as ‘dificuldades’ a atitude do aluno. Desse modo, observa-se

93

que ele não considera o papel da escola e outros atores no desenvolvimento

dessas ‘atitudes’.

Vários profissionais se referem ao aumento da diversidade falando das

diferentes classes sociais que agora tem no CAp, uma coisa que antes da

mudança não tinha. Assim, P6 fala:

“..eu acho muito bacana, achei assim que foi.. essa mudança de acesso foi importante sim para o processo de democratização, isso não res.., não resta a menor dúvida é, acho muito gratificante. Agora.. trabalhar com alunos de outras classes que antes a gente tinha classe média, classe média alta né, era um outro público. E agora a gente vê assim alunos de.. classe social né, uma classe social menos favorecida economicamente, é, acompanhando, tendo acesso né, a um.., a um processo de aprendizagem de qualidade e (..) sendo super bem preparados e tendo oportunidade. Que antes e.. essa oportunidade estava.. só era assim para uma, para classe social favorecida, economicamente né,.. de classe média alta.” (P6, entrevista, 2704-2706)

A categoria ‘cor da pele’ foi também usada como identificador do “outro”. Assim

sendo, P5 relaciona o identificador ‘cor da pele’ ao identificador ‘nível social’:

“Essa coisa da democratização do e... do espaço está realmente se refletindo na.. na.. no ingresso de alunos que entram né. (..) quando eu fui licencianda aqui, eu contava nos dedos os alunos negros. Entendeu? Era uma coisa assim, a escola era branca. Totalmente branca. Né. Então agora, nossa! Você vê que esta muito mais diversificado assim né. É, em nível social e tal, (..) eu acho que eu percebo a mudança.. né, assim, das turmas que eu observei no, quando eu fui licencianda.”(P5, entrevista, 1561-1617)

Como discutido acima, encontra-se nas falas dos profissionais referências ao

“outro” referindo-se ao lugar de moradia, cultura, nível acadêmico, classe social/

situação financeira, contexto familiar e cor da pele dos alunos.

Sem referendar diretamente sobre às mudanças nas políticas de aceso, os

alunos fizeram referência à diversidade. Eles falavam da diversidade,

94

primeiramente, se referindo aos diferentes locais de moradia dos alunos. Eles

também fizeram referência aos diferentes níveis dos alunos como aspecto da

diversidade. A temática de classe social e os meios financeiros também

apareceram nas falas. A seguir, um exemplo da fala de A11:

“A gente está num colégio.. assim.. tem pessoas que a gente.. convive com pessoas quem, se a gente for para um colégio pago.. colégio pago alto, de altonível, se a gente tivesse num colégio pago alto, de alto nível.. ia viver só com pessoas do mesmo nível. Aqui a gente convive com pessoas diferentes, de modos de vida diferente, de classe social diferente.”(A11, entrevista, 898)

Alguns dos alunos também falavam de processos de exclusão. Vários alunos

falam da existência de certos “grupinhos” na turma da quinta série. Um fator que

parece definir esses grupos é a aparência física e também o nível ou o

desempenho acadêmico dos alunos. Assim, por exemplo, A9 e A10 falam:

“A10: agora tem, gente muito preconceituoso na sala que fica chamando os outros de feia e se achando bonita. (-)A9: Preconceituoso é aquele que não gosta de pessoa negra, não gosta de pessoa branca, não gosta de pessoa parda tem esse preconceito também, mas sendo que tem um preconceito que às vezes.. o colega, isso.. Sem sair da sala, a [aluna z], a [aluna z] ela assim desde o CA ela tem dificuldade, dificuldade de saber as matérias de pegar, mas também...A10: ela é muito chata!A9: é.. ela tem dificuldade. Ai na minha turma de CA até a 4ª série ficaram assim discriminando, excluindo, sabe?, do grupo porque ela ficava assim meio sozinha, quer dizer ela era sozinha quem ficava mesmo com ela era a [aluna y], ela era que ficava com a [aluna z] só ela, então para [aluna z] ela era a única chance assim dela “pô eu tenho amiga” já da 5ª série em diante a [aluna z] continua a mesma sabe? Ai tem aqueles colegas que ficam com preconceito com alunos que tem dificuldade e alguns alunos que são mais inteligentes ficam falando assim: “ah! o grupo está ótimo, só tem CDF” (-)A10: mais às vezes tem até preconceito assim de um ficar chamando o outro de feio, falando que o outro é mais feio xingando, é horrível isso!” (A9 e A10, entrevista, 2488-2508)

95

4.4 Na busca de outras formas: diversidade e a prática

pedagógica do professor

Para entender as dinâmicas de inclusão, foi também analisada como os

profissionais falaram sobre o que as mudanças significaram no dia-a-dia da sala

de aula; a prática pedagógica e o conteúdo do que é ensinado. Observa-se

como os profissionais falam sobre desafios, estratégias e dificuldades.

4.4.1 Desafios

Durante as entrevistas, vários profissionais relataram sobre a maneira de como

eles consideram a diversidade como uma contribuição positiva para o trabalho

deles na sala de aula. Alguns deles afirmam, explicitamente, como o trabalho

ficou mais ‘rico’.

Assim, P1 que já trabalhou na escola na época da mudança e naquela ocasião

não era a favor da democratização, fala que o trabalho ficou “mais rico” para ele.

Quando a pesquisadora perguntou o que de fato mudou, P1 falou:

“[antes] era a lógica da razão, agora vale um monte de coisas, vale o sujeito, vale a construção com o sujeito.” (P1, conversa, 10/11/2005)

96

Muitos profissionais mencionaram o desafio que a democratização do acesso

trouxe para eles profissionalmente. O fato é que eles precisavam trabalhar de

outra maneira, o que significou para muitos participantes um desafio profissional.

“De volta e meia a gente se debruça sobre isso assim, nos Conselhos de Classe, nos Conselhos né, de plenárias pedagógicas né. Assim, como atender esse novo público? né. A gente está assim o tempo todo repensando né, e..., as mudanças foram, foram grandes, né, com essa mudança de acesso. Né, então a gente ainda está assim aprendendo né, a gente está engatinhando né. A gente não tem assim né.., não existe uma receita né, então a gente também está aprendendo. A gente está em constante processo de aprendizagem também né, nos professores. Por conta dessas mudanças.”(P6, entrevista, 2755-2761)

Alguns profissionais também mencionaram como eles aprenderam trocando

experiências com outros colegas. Assim, quando P7 fala sobre os problemas

que ele encontra, às vezes, em relação à diversidade, ele diz:

“nosso desafio é o tempo todo achar desafios para que esses problemas não se agravem, para que a gente consiga identificar onde estão os problemas porque muitas vezes, você não consegue identificar, percebe que está havendo algo.. ..mas não sabe onde, e, e isso é difícil. Então, é um desafio constante.” (P7, entrevista, 3235-3239)

Em uma conversa, uma das alunas (A11) comenta, que ele acha que a

diversidade fez os alunos aprenderem certas coisas que eles não aprenderiam

se a escola não tivesse democratizado o acesso:

“Aqui [no CAp] a gente convive com pessoas diferentes, de modos de vida diferente, de classe social diferente. E isso é muito bom porque a gente aprende que o mundo não é só um circulo fechado e existem muitas coisas além do que a gente pode ver. Então, a gente pode aprender muitas coisas com essas pessoas do mesmo jeito que essas pessoas podem aprender com a gente. (..) A gente vê que tem pessoas pobres, médias e ricas aqui e a gente vê.. as pessoas falam sobre as necessidades.. a gente vê o jeito que a gente pode ajudar aqui e fora do colégio. A gente vê aqui pessoas que tem mais coisas que a gente, ou às vezes muito mais. E a gente não.. as pessoas não deveriam, por exemplo, ficar se esnobando porque isso as pessoas que têm muito menos pode se sentir muito mal.. (..) Por exemplo, a gente está numa

97

campanha de ajudar dando comida, dando agasalho, ou as pessoas que têm mais podem dar uma coisapara gente de vez em quando, ou a gente pode ajudar com uma coisa que a pessoa não sabe, a gente pode ajudar alguém que trabalha na sua casa vamos supor a faxineira, a gente pode ajudar ela porque nem sempre ela tem estudo então, pode pegar um livro emprestar.. dar para o filho, várias coisas assim.” (A11, entrevista, 898-904)

Vários profissionais referem-se ao fato que o trabalho ficou mais interessante.

P9 explica como, segundo ele, com a democratização do acesso e a

pluralização do público, o trabalho dos professores ficou mais difícil, mas

também muito mais ‘rico’ e desafiante.

“E é muito mais rico [o publico atual do CAp] do que ter aluno que tem o pai que é intelectual. É muito mais fácil de trabalhar, mas tem menos diversidade né. É uma coisa mais.. assim linear, né. Eu falava da Europa, todo mundo já tinha ido a Europa.. entendeu? Agora está um colégio mesmo, é um colégio.. público sabe? um colégio público, democrático né..(-) o que mudou foi o.. o retorno. (-) Aqui tem de tudo agora, mistura tudo, e eu acho isso rico. (-) uma riqueza de.., de.. contatos né! ..de visão de vida.. você vê a vida de múltiplos.., múltiplos.. você vê a vida com uma multiplicidade não de olhar.. ( ) mas você vê as diversas maneiras de existir, né, milhões de maneiras que as pessoas podem viver, não tem uma só maneira, não tem uma certa, não tem uma errada, são (coisas tão vivas). Eu acho isso importante.” (P9, entrevista, 3893- 3903)

4.4.2 Estratégias

Como muitos profissionais afirmam que a diversidade traz contribuições

positivas para o trabalho, alguns deles explicaram como eles criaram as

estratégias para lidar com a diversidade na sala de aula. Assim, perguntado o

que a democratização do acesso significa para a prática pedagógica dele, P9

explica que ele trabalha com o “cotidiano do aluno”, um trabalho que, segundo

98

ele é muito mais interessante em um contexto “multicultural”. No seguinte

fragmento ele explica a sua abordagem:

“eu acho que tem que partir do real, do dia-a-dia, né, sempre assim. (..) e desse real que você vai para a fantasia, né.. Você vai para a fantasia de cada um. Você vai ver através do.. das experiências.. Então, você tem que sensibilizar o aluno para poder.. ele ser um ser sensível.. ele ver com muito cuidado.. ver por onde ele passa, entendeu? ..ele observar bem tudo. (..) Então, tudo isso é muito interessante, tudo isso é exercício. Então eu lido com o cotidiano. (...) eu vou estar sempre relacionando com o cotidiano, entendeu?, com o real deles, sabe?”. (P9, entrevista, 3895-3897)

Segundo P9, essa maneira de “trabalhar com o cotidiano” ficou mais rico com a

democratização do acesso e o aumento da diversidade no público. Para dar um

exemplo de como ele gosta da diversidade na sala de aula que a

democratização do acesso trouxe, P9 fala de uma experiência com uma aluna,

que contou na sala de aula para os outros alunos sobre a experiência dela com

o Candomblé:

“..eu pedi ( ) para ela explicar para a gente o que é isso. Olha! Ela deu duas tempos de explicação. (..) todos os alunos foram prestando atenção em ela, sabe, muita atenção. (..) Foi assim, uma coisa tão maravilhosa, para auto estima dela, para tudo. Propriedade, né, uma propriedade enorme, né, de saber.. Porque ninguém sabia, só ela.. (-) Eu acho que isso é trabalho de inclusão. Essa hora de contato, que eu acho muito importante.. que e.. e o multiculturalismo ne? Que você vê.. o que acontece em cada família, nos diferentes bairros como que eles passam o final de semana, como eles programam né, qualquer coisa com os filhos, quando eles programam. Né, então um ouve ou outro falar então tem uma troca muito grande nesse. (-) eu acho que faz parte do trabalho essa conversa. (-) ..eu estava acostumada, quando eu trabalhava no CAp, antes, era assim aluno elite, eram aqueles caras.. e não tinha ninguém que iria falar ( ), não existia isso. Eu acho que enriquece, o aluno, essa troca até geograficamente, cada um tem uma característica do bairro né! um é da Maré, outro é da Penha, tinha gente de Realengo agora isso, né.”(P9, entrevista, 3863-3875)

99

P9 chama atenção para a importância da “sensibilização” do aluno e opina que

em todas as matérias se pode trabalhar com o cotidiano do aluno.

P8 comenta que os profissionais tiveram que criar e buscar outras estratégias e

formas de levar o conteúdo para os alunos, nesse instante a postura dos

professores mudou.

“..o professor mudou de postura. Nós não ficamos com aquela coisa, da mesma forma que a gente trabalhava o conteúdo.” (P8, entrevista, 3686)

Em relação à mudança de postura P8 fala da estratégia de “contextualizar” o

conteúdo e de uma abordagem “multicultural”:

“A gente na [matéria], a gente.. principalmente na 5ª série, a gente tem uma perspectiva multicultural, né. De dife.. de trabalhar com a diversidade cultural mesmo. Então, é, com localização e orientação eu dou um banho. Que é perto?O que é longe? do quê? Referências. Eu descentralizo eles de uma forma que eles ficam assim, “mas morar em Santa Cruz é longe do CAp!”, “aí mora mal!”. “Mora mal? Vamos ver!”. Que, o que é central aqui na cidade do Rio de Janeiro? O centro é muito relativo. Não o Centro político, administrativo, mas eu estou falando o, é, o simbólico mesmo, né. Se você está em Santa Cruz, estuda lá, mora lá, o, é perto, né, tudo é muito perto, né. Então, eu começo a trabalhar isso com eles. (-) acho que isso até dá uma certa conta.”(P8, entrevista, 3578-3592)

P8 explica como o trabalho de campo faz parte dessa estratégia de

contextualizar o aprendizado e da abordagem “multicultural”. No próximo

fragmento, onde P8 dá um exemplo de um trabalho de campo, fica claro como

essa estratégia de “contextualizar”, segundo ele, funciona, especialmente, bem

em um contexto com uma população diversificada:

“ .. a gente faz o primeiro campo que é.. dar um.. dar uma volta pela cidade do Rio de Janeiro pegando os subúrbios até Santa Cruz e depois pegando a orla até o CAp e vendo as diferenças de paisagens, buscando relações. Então,

100

essa é uma forma de também esse aluno estar interagindo né, com novos espaços, conhecendo novos lugares. É, conhecendo até o aluno, o colega também. Porque eles passam assim o dia, um dia no ambiente novo né. (...) ..aos poucos a gente está criando estratégias, buscando dinâmicas diferentes. Agora não é fácil.” (P8, entrevista, 3408-3412)

P8 explica como a diversidade na sala de aula faz esse trabalho de

contextualização mais rico, e como ao mesmo tempo esse trabalho promove a

inclusão. Ele fala como a experiência de um aluno contribui na sala de aula:

“..tento sempre construir, buscar a vivência dele, sempre a vivência dele. É ele, ele tem uma visão muito mais interessante, muito mais, aí.. eu estou comparando, muito mais interessante da cidade do Rio de Janeiro, né. Porque ele, ele mo.., ele mora longe daqui, está morando na Penha eu acho. Então, ele anda de ônibus, ele conhece outros bairros, aí a gente pega essas experiências dele e começa a utilizar na sala de aula, né. E ele se sente mais valorizado.” (P8, entrevista, 3424-3428)

“..sempre eu estou, a gente está buscando um pouco a realidade né desses alunos. É pensar um pouco qual é a vivência que eles têm, o que eles falam a gente aproveita e certamente na outra aula a gente pode estar trabalhando umpouco o que foi comentado na aula passada né.” (P8, entrevista, 3526)

P6 afirma que “a maneira de trabalhar os conteúdos” mudou. Ele diz:

“..houve mudanças né na, na maneira de.. de assim.. no primeiro momento né. O público mudou significativamente, então assim a maneira de, de trabalhar os conteúdos também na as.., mudou né. Como eu falei assim. (-) As técnicas didáticas né, então, a gente teve que seguir.. repensar muita coisa né. Então, objetivamente, é, a meu ver assim.. ficou, até assim.. trabalhar com um público mais é, diferenciado né, mais distinto né, um público.. não homogêneo. Né? De diferenças diversas, assim tanto enriquecedor para mim quanto para os alunos também né. (-) a gente viu assim que era preciso, era preciso assim para alguns né, mostrar o que que é, o que que é (a língua estrangeira que P6 ensina), o que isso representa né. Assim (..) a importância de aprender uma língua estrangeira. Então, a gente precisava assim traduzir isso de uma outra maneira para eles.” (P6, entrevista, 2739-2749)

Como foi visto nesta seção, muitos profissionais afirmam que, com a mudança

da política de acesso e a conseqüente diversificação da população da escola,

101

eles tiveram que buscar outras maneiras e criar estratégias para levar o

conteúdo para os alunos. O que chamou a atenção é que o conteúdo em si não

foi discutido. Unanimemente os profissionais entrevistados afirmam que o

conteúdo não mudou, e opinam que isso é positivo. Alguns profissionais fazem

referência ao fato que por isso o CAp ainda é avaliado como uma das melhores

escolas.

No seguinte fragmento, P4 responde a pergunta se os conteúdos do que é

ensinado mudaram com a democratização do acesso. Ele fala:

“Eu não vejo nenhum comentário [sobre mudança do conteúdo do aprendizagem], mesmo porque isso seria falho né? De maneira alguma. Sabe que acontece? (..) o colégio tem.. ..os conteúdos né, que são realmente assim, sabe, nivelados muito altos porque realmente é um, um colégio de, de, de destaque né. de absoluto reconhecimento né. ..pelo que ele oferece.” (P4, entrevista, 463-473)

P8, também explica que o conteúdo do que é ensinado não mudou com a

pluralização do público. Ele comenta:

“O conteúdo permaneceu. Tanto permaneceu que a gente esta aí no primeiro lugar no SAEB né, o que é conteúdista demais. O conteúdo permaneceu, mas a forma de trabalhar e lidar com esse conteúdo, eu vou falar para você, não foi só em [matéria], mas em todas as séries, principalmente do, da CA a 4ª série. Eles mudaram sim. Muito. Então, isso ocorreu que já é um ponto positivo, né.” (P8, entrevista, 3686-3715)

4.4.3 Dificuldades

A maioria dos profissionais se refere à democratização do acesso em si como

uma coisa boa, porem não se pode negar a presença forte das articulações de

criticas e dificuldades em relação ao ensinar em um contexto caracterizado por

102

diversidade. Todos os profissionais mencionam que o trabalho na sala de aula

ficou mais difícil com a diversificação do público da instituição.

Aqui muitos profissionais fazem referência específica ao trabalho com a quinta

série. Na expressão dessas dificuldades percebe-se nas falas de alguns

profissionais uma resistência em relação à política de entrada através de sorteio

para a quinta série.

P9 observa que, na época da democratização, muitos profissionais tinham

dificuldade com a diversidade:

“Eu acho que o meu maior choque, vou falar isso, ( ) o meu maior choque na minha expectativa não é o aluno, é o professor que não estava acostumado a encontrar essa diversidade de alunos e de repente a escola muda toda, entendeu? Então, eu acho que o aluno chega assim, né, chega aberto né, mas o professor que está lá dando aula.. Tem gente que nunca pegou aluno que não fosse classe média, então eu acho que isso ai é o mais difícil. E como adaptar esse aluno? Assim, porque esse aluno não é mais brilhante, você tem quetrabalhar esse alunos, né, para ele acompanhar a turma, ne”.(P9, entrevista, 3911-3913)

P9 também explica que ele acha especificamente o trabalho com a quinta série

difícil. Ele diz:

“..o que eu particularmente acho, o que tem trabalho é a quinta série. Eu acho que, desde que eles podem também entrar pelo sorteio, eu acho que tem alunos que estão muito lá em baixo para pegar aluno que já está sendo trabalhado desde o CA. Então, tem que fazer um trabalho paralelo na quinta série muito forte.” (P9, entrevista, 4043)

Em seguida, P9 especifica e explica que ele entende as aulas de apoio como

“trabalho paralelo” que a escola oferece.

103

P5 fala sobre o significado da democratização para o trabalho dele como

professor na quinta série e também se refere ao fato que o trabalho ficou mais

difícil:

“Eu acho que (..) as turmas estão mais.. estão mais complexas. Assim, estão mais heterogêneas né (...) eu acho que, eu percebo assim, que hoje em dia eu tenho muito mais trabalho com essa questão, com essa diversidade, do que os professores que trabalharam antes né.” (P5, entrevista, 1561-1617)

Verifica-se como neste fragmento, P5 faz uma ligação entre complexidade das

turmas e o fato das turmas serem mais heterogêneas. Mais à frente na

conversa, P5 especifica do que consiste, segundo ele, essa heterogeneidade:

ele se refere aos diferentes ‘níveis’ acadêmicos dos alunos.

Percebe-se nesses fragmentos, como P5 fala das dificuldades que a diversidade

traz, sobretudo, fazendo referência aos diferentes níveis dos alunos. Essa

referência encontra-se também em outras falas de profissionais (veja, por

exemplo, P4, p.83). Essas diferenças em nível que surgiram com a

democratização do acesso (que trouxe “alunos com problema de base”, e

“meninos que estão com muita dificuldade”) e as dinâmicas que surgem na sala

de aula fazem, segundo P5, o trabalho dos professores, atualmente, mais difícil.

P6 também menciona que o trabalho ficou mais difícil por causa dos diferentes

níveis. Ele fala sobre “lacunas” de alunos que entram no CAp na quinta série.

Ele diz:

“O que eu tenho observado assim com, com vários alunos.. ..que estão entrando direto [sem fazer prova], eeh.. a gente percebe assim muitas lacunas. Às vezes lacunas intransponíveis, né. Porque, o seguinte.. faltam conhecimentos básicos ( ) ele tem direito de entrar por sorteio e ele não consegue ultrapassar várias dificuldades né. Ele não tem formação de base,

104

que é de 1ª a 4ª série, né. E isso é muito doloroso. (-) acabam sofrendo, porque.. (..) depois são postos para fora né, de certa maneira. ( ) isso acaba acontecendo. Então, eu acho assim.. muito cruel. (-) a lacuna está na, na formação desse aluno né, de, do CA a 4ª série.”(P6, entrevista, 2526-2558)

P6 menciona que alguns alunos que entram na quinta série têm falta de

‘conhecimentos básicos’, que eles não conseguem recuperar, isso resulta em

repetência e se repetir dois anos resulta em jubilamento.

No próximo fragmento, P6 comenta como ele, como profissional de uma das

línguas modernas, faz um esforço para ajudar esses alunos, mas, mesmo assim,

muitos alunos estão sendo jubilados porque não conseguem acompanhar o

ensino:

“É eu vejo assim, até mesmo em relação ao [matéria]. Assim, a língua estrangeira para ele é algo totalmente estranho mesmo, né. E olha que a gente começa assim o [uma língua moderna], (..) do básico. A gente parte do

pressuposto que ninguém nunca estudou [a língua moderna], né. Mas, assim a língua estrangeira assim, eeh.., faz parte de um outro universo né. Então, para alguns alunos.. eles não conseguem entender o que é aquilo,.. ..por mais que você faça um esforço, tal. Então assim, isso me causa uma certa aflição, acho meio cruel. Assim para algumas, para algumas crianças é muito sofrido, né, o processo. Que ele fica aqui e depois ele vai embora né. Porque continua tendo o jubilamento.” (P6, entrevista, 2512-2574)

Algumas outras dificuldades são mencionadas pelos profissionais. P8 fala da

dificuldade do papel do professor em relação à diversidade na sala de aula. P8

comenta sobre a busca de uma “outra forma de falar”:

“..a gente está com.. cheio de dificuldades porque a gente pega um aluno é, como, (..) como B (..) na quinta série: ele não consegue entender.. ele lê e ele não consegue captar o que a gente está querendo que ele desenvolva né. Então, você tem que pensar em ou.., em outra forma de falar com ele, para ele poder entender. Ele entende, não estou falando que ele não entende. Para mim é muito mais difícil né, porque se.. como era antes, era.. eu.. eu tinha uma forma eficaz de trabalhar e agora se um não entendeu, eu tenho que parar e

105

tenho que ver né, buscar uma outra forma, não vou passar por cima né. Então é difícil, é muito difícil. (-) é difícil para mim é. Porque eeh.. muda.., é uma mudança drástica. Assim, você vê que nem ler, ele não lê direito. Eu caramba! Ele é letrado? Claro que ele é, sim, claro. Mas é uma dificuldade para mim no sentido que eu não estava acostumada né, no CAp. Não estava acostumada a trabalhar isso.” (P8, entrevista, 3418 -3434)

Comparando a fala de P8 com a fala de P6 acima se nota uma diferença

essencial em postura dos dois profissionais. Tanto P6 como P8 falam sobre o

mesmo assunto: a experiência e a dificuldade de ensinar em um contexto

caracterizado por diversidade em preparação educacional e experiência de vida

dos alunos. No entanto, quando P6 expressa um limite no poder dele, em

relação a essa realidade e diz: “por mais que você faça um esforço..”; P8 com a

fala “não vou passar por cima né” articula que essa diversidade, apesar de não

ser fácil para ele, cria um desafio profissional para ele mesmo. Com a fala: “você

tem que pensar em ou.., em outra forma de falar com ele, para ele poder

entender”, é expresso que ele como profissional se sente responsável pela

inclusão desse aluno.

Falando sobre as dificuldades, vários profissionais também se referem a fatores

que tem a ver com a organização dentro da escola, como certas práticas e

regras, falta de tempo e a (falta de) infra-estrutura.

P5 explica como é difícil oferecer atenção individual a esses alunos que

“precisam de mais atenção” dentro do tempo que ele tem disponível nas aulas

de apoio e na recuperação:

“Pesquisadora: .. na semana que vem, vai ter recuperação, então vão ficar especificamente esses alunos,.. que, segundo você, precisam de mais atenção? P5: É. Porque e.. eles estão no apoio né, no apoio.

106

Pesquisadora: E aí você, o que você vai fazer para conseguir....? P5: Chamar né? Pesquisadora: É. P5: Então, nes.., são 17 né, uma turma grande. Não diminuiu tanto, se fossem uns 10, já seria bem melhor. Primeiro eu vou.. aí vai ser sabe.. vai ter que sentar individualmente.(-) ..vou tentar dar um atendimento mais individualizado assim né, vou.. a minha idéia é trazer um, um ro.., tipo um, uma apostila mais, um roteiro de estudos com algumas questões da.. de provas do primeiro e segundo bimestres, com alguns, algumas questões de roteiros deles. Quer dizer, com a matéria que é trabalhada... e as questões que foram trabalhadas. Pesquisadora: Tipo um resumo do que vocês fizeram? P5: É. Exatamente. E, fazer isso como se fosse uma, uma lista de exercícios, assim uma coisa de exer..., né, de tra.., de trabalho. (-) ..não vou apresentar nada novo assim, vou trabalhar com as mesmas coisas. Agora não sei como que eu vou fazer isso, sabe? Na verdade eu vou pensar esse final de semana. Pesquisadora: Aham. Por que aí você vai pensar outra metodologia para colocar o mesmo conteúdo de outra forma? P5: Pois é. É complicado em duas aulas, (Risos), eu acho.. (-) O que eu vou propor é assim trazer esse.. esse.. esse.. essa apostila.. roteiro.. de estudos de repente a gente vai fazer isso em sala né. E.. dar uma orientada, eu vou trazer um.. um roteiro também, é, assim, com tudo que vai cair na prova. Mas, por exemplo, o texto um.. fazer.., é, destacar uns pontos chaves de cada texto, entendeu? Porque são muitos textos. Mas são textos curtos, não tem problema. Então determinando.. sei lá, o texto oito que fala do, ahm, do processo de sedentarização, colocar os pontos que são importantes. Então o que é sedenta..., é.., o que é sedentarização? como aconteceu? ..a importância da agricultura e da pecuária, quer dizer, as coisas para eles,.. Pesquisadora: ..para eles anotarem, e como tipo um guia para eles estudarem? P5: Isso. Para eles estudarem, quando forem ler o texto.. entendeu? Isso é uma coisa que, eu estou pensando em fazer para daqui para diante.. ..também. Eu não estou fazendo por falta de tempo porque eu não estou, sinceramente, eu estou (risos) primeiro eu faço o que é essencial..” (P5, entrevista, 1270-1357)

P8 também comenta como, nas aulas de recuperação, dá para fazer pouca

coisa com esses alunos que precisam de mais ajuda. Ele fala, igual a P5, que

ele fez uma ‘roteiro de estudos’:

“..na verdade não dá para você dar aula trabalhando todos os conteúdos, né. Eu, eu optei por fazer, dar um roteiro de estudos para eles, eles ganharam um roteiro e depois eu fiz duas folhas de exercícios para que eles levassem para casa, fizessem e hoje eu corrigi, tirei as dúvidas. Então, infelizmente, não tem como você dar.., fazer mais né, mais de exercício porque só é uma semana.”(P8, entrevista, 3306-3308)

107

Esses fragmentos mostram como é a organização de algumas coisas dentro da

escola, como, as aulas de ‘recuperação’, que criam situações em que apenas os

alunos muito disciplinados ou com ajuda e apoio em casa conseguem ter

sucesso. Entende-se, que nas aulas de recuperação, por exemplo, devia ter

mais tempo, principalmente, para os alunos que não conseguiram realizar as

tarefas. No entanto, as aulas se reduzem a duas horas (cem minutos), em que o

professor não pode fazer (muito) mais do que re-estruturar a informação já

passada, para que o aluno volte para casa e se prepare para a próxima prova.

Analisando as conversas, vê-se como isso incentiva elementos que caracterizam

uma abordagem cartesiana de aprender e ensinar (“apostila de estudos”; “roteiro

de estudos com algumas questões (..) de provas”; “lista de exercícios”; “pontos

chaves”), uma abordagem tradicional que não responde ao perfil do CAp como

escola de “experimentação de novas metodologias”.

Observa-se que, falando da prática pedagógica em relação à democratização do

acesso, os profissionais se referem sem exceção ao fato que o trabalho ficou

mais difícil. A dificuldade, segundo eles, principalmente, tem a ver com a

diferença em níveis e experiências de vida entre alunos na sala de aula, e

também com a falta de tempo que a escola oferece para fazer trabalho mais

individualizado com alunos que precisam disso. Verifica-se que essa dificuldade,

leva em muitos casos a uma abordagem cartesiana de ensinar e aprender.

108

4.5 CAp no país das maravilhas?

Na última seção discutiu-se a prática pedagógica dos profissionais em relação à

democratização. Nesta seção se quer discutir como os profissionais refletem

sobre o papel da instituição em relação à inclusão. Fala-se de democratização,

fala-se de inclusão, mas junto ao papel dos profissionais dentro das salas de

aula, quais são, segundo os profissionais, as políticas e práticas formuladas e

realizadas pela instituição que promovem a inclusão dos alunos que entram

através de sorteio?

Como foi descrita na seção 4.1, a maioria dos profissionais votou por manter

uma prova de nivelamento para entrada na quinta série, mas na plenária

pedagógica, no final, foi decidido não fazer prova, nem na classe de

alfabetização nem na quinta série, mas somente no primeiro ano do ensino

médio.

Uma pergunta levantada pela pesquisadora nas entrevistas foi o que foi feito, no

nível institucional, para coordenar as mudanças na prática do dia-a-dia dos

profissionais da escola depois que essa decisão foi tomada. As dificuldades que

os profissionais levantaram (como também levantaram nas entrevistas) foram

consideradas? O que foi feito com elas? A respeito disso P6 fala:

“Pesquisadora: Junto com essa decisão [de não fazer prova para ingresso na quinta serie, mas abrir a entrada através de sorteio], foram sugeridas algumas reformas na 5ª série? Foram dados sugestões como os professores poderiam lidar com essa.. essa realidade (..) de diferença de nível entre os alunos etc?P6: Sim. Sim. Sim. Sim. Tanto que agora, antes não havia aula de apoio né, agora existe aula de apoio né, de todas as matérias (...) (-) Interessante né, isso é muito interessante, importante. Mas alguns alunos não dão conta, não

109

dão conta assim de algumas lacunas. Não é.. Porque alguns alunos já saíram, alguns alunos que ingressaram né, assim, nesse novo sistema saíram também. (...) E aí.. eu acho muito cruel.”(P6, entrevista, 2687-2698)

No seguinte fragmento, vê-se como P8 explica, como segundo ele, as aulas de

apoio ajudaram a diminuir a expulsão de alunos:

“P8:..nos primeiros anos a gente estava expulsando muito mais alunos do que a gente expulsa hoje. No sentido do.., que ele não pode ficar mais de dois anos senão ele é jubilado né? Então é, no início, a jubilação estava bem forte. Hoje eujá acho que a gente segura mais o aluno, a gente já está atendendo mais o aluno e ele permanece né. Pesquisadora: E como que vocês conseguiram isso? P8: É, as aulas de apoio. A gente começou a criar estratégias para tentar é, segurar esse aluno aqui né, na escola. Então, as aulas de apoio foi uma coisa, outra coisa eles é, ganharam essa bolsa. É uma cota que eles têm para ajuda de custo, que não é todo ano, porque todo ano você tem que pedir né, e não.. e não.. isso não é garantia de ter, (...) então isso de uma certa forma ajuda o aluno.”(P8, entrevista, 3386-3398)

As aulas de apoio podem ser consideradas o resultado de um compromisso; os

profissionais avisaram que eles não iam poder dar conta das divergências em

níveis na sala de aula, então foi criado um espaço extra onde o profissional

poderia trabalhar mais individualmente com os alunos. Entretanto, em várias

conversas percebeu-se que os profissionais não estão contentes com o que eles

conseguem fazer nesse espaço de aula de apoio. Alguns alunos expressam

também precisar mais de apoio em algumas matérias, mas que a aula de apoio

às vezes fica muito cheio e não tem tempo para tirar todas as dúvidas dos

alunos. Assim, A12 fala:

“Eu já tentei entrar até no [na aula de apoio] de matemática, mas eu acho que tem muita gente, e tem muita gente com a nota menor que eu, 0.5, 0.4, então, eu não.. às vezes eu não consigo entrar que tem gente pior do que eu.. (A12, entrevista, 1182)

110

Alguns profissionais mencionaram que eles têm muito pouco tempo para poder

dar uma atenção mais individualizada aos alunos. As mesmas críticas tanto dos

profissionais como dos alunos foram ouvidas em relação às aulas de

recuperação.

Quando se voltou a analisar a fala de P4 que se discutiu anteriormente (veja

página 103), viu-se como ele expressa indiretamente a idéia que as aulas de

apoio também foram criadas para que a escola não precisasse baixar o nível

dos conteúdos ensinados. Quando a pesquisadora pergunta se os conteúdos

ensinados mudaram com a mudança do publico da escola, P4 diz:

“Eu não vejo nenhum comentário [sobre mudança do conteúdo da aprendizagem], mesmo porque isso seria falho né? De maneira alguma. Sabe que acontece? (..) o colégio tem.. ..os conteúdos né, que são realmente assim, sabe, nivelados muito altos porque realmente é um, um colégio de, de, de destaque né. de absoluto reconhecimento né. ..pelo que ele oferece. Então, que acontece, ele oferece aulas de apoio. (..) Então, quer dizer, a partir do momento que eu do um ensino, com conteúdos de excelência.... ..tem suporte para esses alunos que não possam acompanhar. (-) Apoio. (-) Quer dizer, então o colégio oferece mesmo.”(P4, entrevista, 463-493)

P4 argumenta que, em vez de mudar os conteúdos em resposta a mudança da

população da escola, a escola “oferece aulas de apoio”, “tem suporte para esses

alunos que não possam acompanhar”. Vê-se aqui na fala de P4, de novo, como

o perfil de “excelência” da instituição é colocada como uma coisa fixa no caráter

da escola: “a escola é de excelência, então não mudou se o conteúdo”.

Pode-se concluir que o papel da instituição em relação à inclusão dos alunos

que entram através de sorteio, sobretudo, é um papel em termos de “ajuda” e

111

“apoio”. É chamada a atenção para que esses termos encaixem-se em um

discurso assistencialista, um discurso que contrapõe um discurso de direitos.

Mais adiante P4 fortalece essa idéia, quando ele fala:

“Os professores, interessante que eles têm grande interesse em ajudar esses alunos.” (P4, entrevista, 495)

Nos comentários de P4 e nos comentários de P6 percebe-se um discurso na

qual implicitamente o objetivo principal é proteger o perfil de excelência da

escola. Parece que incluir todos os alunos no processo de aprendizagem não é

considerado o principal objetivo. No caso, se têm alunos que não conseguem

acompanhar, têm aulas extras para eles. Chama atenção que nesse discurso o

perfil da escola em si e o que ele oferece não está sendo discutido.

Junto com o papel da escola, como, “oferecer apoio e ajuda”, percebe-se que

vários dos profissionais entrevistados mencionam “oferecer cultura” como uma

coisa importante que a escola faz. Nas falas a escola foi descrita como tendo e

oferecendo um ‘alto nível de cultura’, uma coisa que, segundo vários

profissionais, contrasta com o ‘baixo nível de cultura’ de vários alunos, que

entram na escola através de sorteio.

Assim, já foi visto na página 92, como P10 (conversa 18/05/2006) fala para os

alunos que “vem de um ambiente cultural precário”, a escola promove “eventos

de integração na cultura dominante”. Em outras partes da conversa fica claro o

que P10 entende como “integração na cultura dominante”, quando ele explica

112

como a escola “tenta dar conta da permanência” através da oferta de atividades

como “aulas de apoio” e “clube de leitura de ciências”.

Outros profissionais também expressam uma visão do papel da escola, como,

‘fornecedor de cultura’. Assim, P4 diz:

“..o colégio tem essa.. essa preocupação com a cultura. Quer dizer, ele oferece. (-) Tipo, nós temos biblioteca. (-) nós temos computadores, nós temos é, passeios,.. (-) ..eventos culturais, né? (-) em abril teve um grupo de teatro aqui.”(P4, entrevista, 267-287)

Mais à frente na conversa, P4 faz uma ligação entre a escola como fornecedor

(de cultura) e o caráter democrático que a escola, segundo ele, tem:

“..o colégio oferece muito mesmo para eles. (-) Quer dizer, eu acho importante isso. Já que é um colégio né, com esse perfil, com a filosofia democrática né.. (-) ..então, tem que oferecer né?” (P4, entrevista, 409)

Analisando a fala de P4 entende-se que ser uma escola democrática significa

oferecer acesso à cultura dominante. Uma idéia que também se percebe nos

comentários de P10 mencionados acima.

Vários profissionais mencionam a importância da escola de poder oferecer

também apoio no sentido material ou financeiro para alunos que vêm de uma

família de um poder aquisitivo mais baixo. No entanto, a maioria desses

profissionais menciona que a escola ainda não pode oferecer tudo o que esses

alunos precisariam. Aqui são mencionados vários problemas em relação à falta

de infra-estrutura na escola.

Assim, P8 diz:

113

“Eu sei muito bem que o CAp não está preparado para esse, para esse aluno, para esse novo aluno né. Até mesmo porque, em infra-estrutura a gente não tem quase nada para oferecer a um aluno é, carente e, em grana entendeu e, carente em cultu.., em atividades culturais. Por quê? Porque é, nós deveríamos ter um bandeijão para ele ficar, permanecer na escola mais tempo, a gente teria que ter uma verba para esse aluno, para ele é, ter, comprar o material didático, nós teríamos que ter é, ingressos para estar dando a esse aluno, né, para ele ir ao teatro, ao cinema. E isso infelizmente a gente não tem.”(P8, entrevista, 3386-3388)

P10 (conversa P10, 18/05/2006) também explica como a infra-estrutura da

escola limita o que a escola pode oferecer aos alunos com menos recursos

financeiros. Ele opina que, para poder melhorar o caráter democrático, o melhor

seria poder ser uma escola de tempo integral, e de poder oferecer mais

atividades culturais e científicas. Por falta de recursos isso não pode ser

realizado. O profissional explica que isso “cria uma barreira para a

permanência”.

P1 também sinaliza uma falta de infra-estrutura na escola para poder atender

esses alunos com menos apoio educacional e recursos financeiros em casa. Ele

fala de “barreiras materiais” para a participação dos “mais carentes” como

transporte, material escolar, lanche e almoço. Ele explica que atualmente,

quando os profissionais percebem que a falta de recursos cria um problema para

a participação de alunos em alguma atividade, às vezes sai algum recurso da

caixa escolar ou da biblioteca ou do próprio bolso do professor. Muitas vezes o

resolver dessas questões depende da própria vontade do profissional. P1

também menciona que, freqüentemente, essa realidade resulta no fato de que o

próprio aluno, quando percebe que está usando verbas da escola que na

114

verdade são destinadas para outras coisas, “ele mesmo se exclui”. P1 opina que

de fato aqui falta política da escola:

“Isso são problemas e não tem órgão na escola que resolva essas coisas (...) Não tem nada em papel”. (P1, conversa, 10/11/2005)

Alguns profissionais expressam algumas críticas em relação ao papel da escola

nos processos de inclusão. Assim, P8 diz:

“Eu acho que a.. a própria escola ela é, ela teria que valorizar mais é, esse, esse, no caso esse aluno que você falou, essa, essas diferenças em, em atividades mesmo mais coletivas né. (...) Porque eu, eu senti que no início, quando começou, quando teve a mudança, ah os alunos foram contra, não aceitaram bem isso, entendeu. Falaram que o ensino ia cair, que ia, ia ficar ruim o ensino no CAp.Pesquisadora: Aham. E que foi feito naquela época com essa...?P8: Olha, a gente começou, bancamos isso, e a gente começou a trabalhar né diferenciados.. (-)Pesquisadora: Mas da Instituição mesmo? Eles fizeram alguma coisa?P8: Não, não, não. Não, não aconteceu. E que poderia até acontecer né. Você até está dando uma idéia de fazer uma avaliação com os alunos. Porque isso a gente não tem. É... Entendeu. Uma avaliação seria uma coisa muito interessante porque a gente só fez com os professores. Entendeu. Uma avaliação também com os funcionários, porque que eles estão vendo isso? Isso aí a escola não fez. Mas seria uma boa idéia.” (P8, entrevista, 3608-3642)

Alguns dos profissionais entrevistados relativizam o papel que a escola pode

cumprir, colocando a discussão no contexto da sociedade. P5 relativiza as

mudanças no CAp entendendo-as no contexto da sociedade:

“..aí na verdade, eu acho assim que não é muita,.. porque a mudança no CAp é.., quer dizer o perfil social é determinante. Mas, considerando todas as mudanças na.., eu acho que todas as escolas estão passando pelo mesmo dilema né: O que fazer diante da.., da velocidade das coisas, das, das mudanças, né, desse mundo que está aí, que não tem referência para nada. Né? E que a gente fica na escola nadando contra a corrente né.. Assim, fica educando, educando. (-) É uma questão assim do nosso tempo sabe. O.. e como a escola.. é na escola que se formam as pessoas né. Assim, educação está aonde? Na escola e na família. Mas, as famílias tão doentes né, assim.. Você vê no Conselho de Classe, que muitas vezes a, a, a família que está com problema, não é o aluno entendeu? O aluno é, é uma personalidade

115

sendo formada, onze, doze anos com uma família completamente desestruturada..”(P5, entrevista, 2038-2062)

P6 também relativiza a problemática, colocando-a junto com os desafios que a

democratização do acesso trouxe, em um contexto da sociedade:

“..com as novas tecnologias, enfim, com, com tanto acesso, um acesso tão grande a informações né, agora a gente tem que estar o tempo todo questionando né, sobre,.. quer dizer assim, eu acho assim, o público mudou né, as crianças estão mais, querem tudo assim muito mais rápido né. Então, isso exige do professor um constante.., constante repensar né, sobre a prática pedagógica.”(P6, entrevista, 2763-2765)

P8 expressa bem a sua opinião sobre o que ele acha quanto ao papel da escola,

que é limitado e diz:

“..a gente não é Alice de ficar achando, Alice no País das Maravilhas. De ficar achando que nós vamos resolver, porque isso é um problema social né. É um problema social. A, a.. A [aluna] da 5ª série, aquela gordinha que é meio.. Ela mora é, na favela da Maré a, domingo a mãe vai para o baile funk com a avó vender salgadinhos na porta e ela tem que ir, segunda-feira ela tem que acordar às 05:30 da manhã para estar aqui às 07:00. Consegue? Não consegue. A gente vai falar não, é, é, é, “você tem que chegar..”, é muito complicado sabe. É um problema social, nós estamos inseridos e estamos reproduzindo isto? Estamos claro! Mas não dá para ficar achando que a escola vai resolver tudo né. Não tem como.”(P8, entrevista, 3749-3763)

4.6 Jubilamento

Um fato que, segundo os pesquisadores, reflete a tensão presente na prática da

instituição em relação a inclusão é a regra de jubilamento. Existe no CAp uma

regra que o aluno pode repetir só uma vez em cada nível de ensino; uma vez no

primeiro nível do ensino fundamental (da 1ª a 4ª série), uma vez no segundo

116

nível do ensino fundamental (da 5ª a 8ª série) e uma vez no ensino médio. Como

está escrito no artigo 22º das ´Normas de avaliação de aproveitamento da série

inicial, ensino fundamental e ensino médio´:

“O aluno poderá repetir apenas e tão somente uma vez, uma única série, em cada um dos níveis de ensino abaixo:- da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental- da 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental- da 1ª a 3ª série do Ensino MédioO aluno que repetir mais de uma vez a série ou repetir uma segunda série dentro dos níveis relacionados acima será jubilado, não podendo renovar sua matricula para o ano seguinte.”.

Tem profissionais que defendem a existência dessa regra e têm outros que a

contestam. P6, por exemplo, acredita que a regra de jubilamento é uma forma

de “valorizar a vaga”:

“..se entende né [a existência da regra de jubilamento], tipo assim, é uma maneira de se valorizar né, essa vaga, assim, porque nem todas as escolas são como o colégio de aplicação, nem todas as escolas públicas que se mantém assim tão bem estruturadas né. Então, se, eu entendo essa política né.. no fundamento é dessa forma.. uma maneira dos alunos valorizar,.. os pais...”(P6, entrevista, 2598-2602)

Neste comentário, ao lado de observar de novo como o perfil da escola é

descrita como fixa, já definida previamente (ele “é” uma escola “bem

estruturada”), P6 também, implicitamente está afirmando a idéia que os alunos

que estão sendo jubilados não “valorizam” a vaga. Com essa afirmação P6

coloca a responsabilidade para o sucesso escolar no aluno. Com base nessa

afirmação P6 justifica a existência da regra de jubilamento.

Analisando essa argumentação, surgiu a pergunta: não é exatamente essa regra

de jubilamento, uma forma de manter a escola “bem estruturada” e de “alto

117

nível”? Porque a prática de jubilamento significa não somente a expulsão de

aqueles alunos que não “valorizam” a vaga, como diz P6, mas também desses

alunos que por várias razões estão tendo mais dificuldades com a escola,

dificuldades com a qual a escola não consegue ou não quer trabalhar. Citando

Kaiuca que pesquisou as representações de professores de dois CAps sobre a

escola pública democrática (2004, p.1033-1035):

“..a dicotomia de favorecer a alguns o acesso e o aprofundamento do saber e a outros a estagnação e o esvaziamento denuncia que a jubilação é um dos mecanismos que está a serviço de uma pedagogia que traduz a divisão social dentro da escola. O uso da jubilação denuncia os colégios como escolas dualistas, corporificando o discurso liberal de seleção dos mais aptos, dos mais capazes e contrárias aos princípios democratizantes, inscrevendo, definitivamente, a prática como materialização do pensamento liberal.”.

Alguns profissionais também comentam a contradição que existe na existência

da regra de jubilamento em uma escola que se apresenta como “democrática”.

P8 define o caráter democrático da escola, ao dizer que:

“a gente tem que relativizar um pouco esse democrático né, porque é, nem sempre a gente acerta né, nessa, se, se fala é, vamos para um acesso mais democrático sendo por sorteio. Mas, se você for pensar bem né, é, nem todos osalunos que entram eles permanecem na escola né, eles são jubilados, essa coisa toda. Agora, o CAp o que eu estou sentindo é, o CAp ele está muito incomodado com isso, ele não quer que ninguém saia. Eles querem.., a gente.. que.. que o aluno permaneça na escola. Né, permaneça. E aí, isso é uma preocupação essa coisa..” (P8, entrevista, 3560-3564)

P9 também critica a política de jubilamento. Ele fala:

“..é uma sacanagem porque se você deixa entrar, tem que conservar o aluno, entendeu?” (P9, entrevista, 3923)

118

Foi visto nesta seção, como o conceito do CAp como escola democrática, de

ensino de qualidade e de excelência fica comprometida em decorrência da

política e prática de jubilamento. Como o jubilamento reproduz a exclusão e

resulta em afastamento de certos alunos.

Acredita-se que o discurso do profissional P6, como discutido na página 118,

mostra bem a força do discurso em relação ao perfil do CAp caracterizado por

tensões e a influência desse discurso no pensar em relação as dinâmicas de

inclusão.

Na conversa com P6 ficou claro que ele acha o fato de que alguns alunos são

jubilados da escola “cruel”. Ele opina que, para evitar essa crueldade, o melhor

seria realizar uma certa seleção na entrada. Não fazer mais sorteio direto para a

5ª série, como é feito na classe de alfabetização, mas fazer uma prova de

nivelamento e depois um sorteio entre esses candidatos que passaram pela

prova, como é feito atualmente na primeira série do ensino médio. Segundo o

mesmo profissional não existe a opção do CAp se desfazer da regra de

jubilamento.

Analisando as falas de P6 citadas na página 118, verifica-se como esse

profissional acha a prática do jubilamento cruel, mas ao mesmo tempo ele não

coloca em questão a regra de jubilamento em si; ele opina que essa regra é

necessária para manter o perfil de excelência da escola. Em vez de criticar essa

prática, ele critica a entrada de certos alunos na instituição. Para resolver os

problemas e as dificuldades por vários profissionais vividos, seria melhor ter

seleção na entrada.

119

No fragmento citado na página 118 se vê que P6 defende a política de

jubilamento do CAp. Primeiramente, segundo P6, isso seria uma maneira dos

alunos e os pais “valorizarem a vaga”. Com a idéia de precisar “valorizar a vaga”

P6, implicitamente, está defendendo a idéia de que é bom que exista uma

escola pública de qualidade somente para alguns, e não para todos.

Aqui, entende-se que “valorizar a vaga” implica automaticamente também

“valorizar a escola”. Porque se essa política de jubilamento não existisse, os

alunos poderiam repetir várias vezes, igual a como muitos alunos em escolas

públicas “normais” fazem, a escola automaticamente cairia muito em nível,

inclusive nas estatísticas nacionais de “melhor escola pública”.

P6 diz: “no fundamento é dessa forma.. uma maneira dos alunos valorizar,.. os

pais”, mas talvez fosse melhor dizer que, no contexto onde faltam políticas e

praticas a nível institucional voltados para a inclusão desses alunos que

experimentam dificuldades na escola, a política de jubilamento é talvez a única

forma de manter o valor da escola alto nas estatísticas nacionais.

Perguntado qual, então, seria a solução para oferecer oportunidades e ensino de

qualidade para esses alunos ‘sem base’, P6 em tom de ironia diz:

“Qual seria a solução? Eu acho que a solução, a solução para mim seria ter mais CAps né! (risos). (...) teria que ter mais CAps assim, aumentar mesmo né, essa escola podia ser triplicada, quintuplicada. Para poder... atender essa demanda né, que assim.. eu acho tão.. é, tão importante né. Ter mais CAps né, mais escolas como o CAp né, acho que o ideal seria se as escolas públicas fossem assim né, acho que é um modelo né, que deu super certo, que está dando e continua dando certo, e então, eu acho que ele tinha que se multiplicar”.(P6, entrevista, 2728- 2733)

120

5 CONCLUSÕES

“Não nos basta incluir novos sujeitos nas classes escolares, tal como já pioneiramente se faz no Brasil. Hoje é preciso ir além: é preciso tornar os incluídos verdadeiros sujeitos sociais, legitimamente reconhecidos como tal, sob pena de se dar à escolarização um caráter meramente assistencialista.” (SENNA, 2007)

O objetivo deste trabalho foi entender as dinâmicas de inclusão em um Colégio

de Aplicação no Rio de Janeiro através da análise das práticas discursivas dos

profissionais da instituição. A análise de dados apresentada no último capítulo

permitiu visualizar vários aspectos que fazem parte das dinâmicas de inclusão

de um contexto educacional que se auto define como democrática.

As práticas discursivas demonstravam algumas categorias temáticas em relação

às dinâmicas de inclusão na instituição. Foram identificadas como categorias

principais poder e o outro. Como subcategorias relacionadas à categoria poder

foram identificadas: hierarquia, autonomia e liberdade. Como subcategorias

relacionadas à categoria o outro foram identificadas: lugar de moradia, cultura,

classe social/ situação financeira, contexto familiar e cor da pele. Poder

entendíamos como a força exercida e distribuída em relação à participação na

instituição em discursos, políticas e práticas. Enquanto, o outro, entendíamos

como categoria social, socialmente construída com base em informações

concretas ou suposições em relação à origem de um indivíduo.

Vimos como nas práticas discursivas dos participantes as argumentações

envolvendo as categorias mencionadas acima muitas vezes se entrelaçavam e

formavam juntas um discurso em relação às dinâmicas de inclusão. Observamos

121

como a discussão em torno das políticas de democratização de acesso levou

consigo uma discussão sobre o perfil da instituição e seu público.

Analisando as práticas discursivas e considerando-as no contexto do CAp, uma

instituição que desde o final dos anos noventa democratizou o acesso e desde

então se encontra em um processo de mudança, percebemos um discurso

implícito na qual uma ´perda de tradição´ foi problematizada. Apesar de que as

decisões a respeito da democratização do acesso foram tomadas supostamente

por vias ‘democráticas’, esse discurso em relação à perda de tradição em alguns

casos se referia a uma resistência quanto às mudanças que a democratização

do acesso trouxe. Essa resistência parece ser mais forte em relação à política

de ingresso para a quinta série da instituição. Concluímos que essa resistência

está sendo refletida na existência de algumas tensões na instituição.

A primeira tensão observada se refere às práticas discursivas dos profissionais

participantes em relação à abordagem pedagógica na instituição. A instituição é

apresentada como tendo uma abordagem pedagógica moderna caracterizada

por conceitos como liberdade, autonomia, participação e democracia. Ao mesmo

tempo parece que a maneira como a escola lida com a diversidade que a

democratização do acesso trouxe, reforça elementos associados a uma

pedagogia mais tradicional cartesiana. Essa abordagem foi representada por

conceitos como organização e disciplina, a presença da nota, competitividade

entre alunos e hierarquia na escola.

Foi também observada uma tensão no fato em que a escola se apresenta como

uma instituição democrática, enquanto percebemos em outras instâncias uma

122

assimetria de poder dentro da instituição. Percebemos essa assimetria entre

representantes da direção e outros profissionais, entre professores e alunos e

entre os alunos na formulação de políticas e práticas.

A tensão mais relevante em relação às questões de esta pesquisa foi

identificada na dinâmica que existe entre o processo de democratização de um

lado e o perfil de excelência de outro lado. Sem querer afirmar aqui que uma

escola democrática não poderia ser de excelência, ou que uma escola ‘para

todos’ deveria ser “nivelada por baixo” (SENNA, 2007b), concluímos que, apesar

do caráter democrático implicar a afirmação de não querer ser ´exclusiva´,

observamos nas práticas discursivas dos profissionais a dominação da idéia de

que o caráter de excelência somente pode ser mantido pondo em prática uma

certa seleção de público. Observamos a personificação de essa forma de

exclusão na política (e prática) de jubilamento.

Apesar de que alguns profissionais assinalam a tensão na dinâmica que existe

entre democratização e excelência e alguns profissionais apontam para o fato

que alguns alunos são jubilados como “cruel”, a maioria dos profissionais não

problematiza a existência da política de jubilamento em si. Observamos a

existência da idéia de que a jubilação é uma forma de “valorizar a vaga” na

instituição, uma idéia que implica, implicitamente, a existência de uma escola

pública de qualidade somente para alguns, e não para todos.

Apesar dos profissionais criticarem ao nível institucional vários assuntos em

relação à mudança, a instituição e seus discursos, práticas e políticas não são

discutidas em si. Ao contrário, foi percebido que, a política de ingresso através

123

de sorteio para a quinta série está sendo problematizada e a responsabilidade

dos problemas do trabalho escolar do dia-a-dia são colocados na origem e na

situação familiar dos alunos.

A problematização da origem de certos alunos que entram na quinta série

através de sorteio faz parte das práticas discursivas da maioria dos profissionais.

É feita referência a uma “falta de base”, uma base educacional dos alunos que

entram na quinta série através de sorteio, porém, nem em todos os casos essa

“falta de base” é mencionada. As práticas discursivas mostram que são idéias

em relação à classe social e situação financeira, e contexto familiar (nível

educacional dos pais; profissão dos pais; incentivo dos pais para estudar) do

aluno, que fazem a diferença na análise da problemática e o sucesso ou

fracasso do aluno. Dessa forma, a ‘inclusão do outro’ cria tensões em relação ao

perfil da escola: é na tensão entre o perfil de democrático e o perfil de excelência

que o “outro” está sendo construído.

Observamos como nas práticas discursivas o uso da categoria “outro” muitas

vezes acompanhou um pensar em categorias opostas ‘nós’ e ‘eles’.

Constatamos que no CAp a existência da categoria “outro” aponta para uma

divisão desigual de poder no contexto: um contexto em que “nós” domina sobre

“eles”. Neste caso, o ‘outro’ é o indivíduo que possivelmente é incluído no

contexto do ‘nós’.

Foi observado que a identificação do “outro” parecia ao mesmo tempo ser uma

questão e um tabu na escola, e como, somente alguns profissionais discutem a

124

possível existência de dinâmicas de exclusão na instituição, como, por exemplo,

os processos de discriminação ou a presença de preconceito.

Com base no estudo de documentos oficiais e com base nas observações,

concluímos que ao nível institucional da escola não parecem existir muitas

dinâmicas em relação à inclusão, isso é afirmada nas práticas discursivas dos

profissionais. Analisando nessas práticas discursivas as falas em relação ao

perfil da escola, observamos como alguns profissionais se referem ao perfil da

escola como se fosse uma coisa fixa, já definida previamente; “a escola tem um

perfil democrático” e “ela tem um nível alto”, “ela é uma escola de excelência”

foram frases freqüentemente ouvidas. Como se o caráter democrático, o nível

alto e a excelência fossem características fixas da escola e não valores que a

escola ganha pelos ´atos´ realizados nela pelos seus atores.

Junto ao discurso que inclui as categorias “eles” e “nós”, o papel da escola foi

definida em termos de “apoio a eles”. O conceito de apoio toma forma

primeiramente nas “aulas de apoio” que com a democratização do acesso, a

instituição optou criar. As aulas de apoio foram criadas como estratégia para

poder oferecer uma estrutura de ‘reforço escolar’ para esses alunos que

experimentam problemas em relação ao trabalho escolar. Porem, concluímos

que, como única estratégia providenciada pela instituição a estrutura de aulas de

apoio parece não dar conta de realmente melhorar a situação acadêmica desses

alunos que por varias razoes não podem contar com “apoio” em casa.

Em relação a papel da escola, também foi encontrada a presença de um

discurso sobre aculturação de “eles”. Vários profissionais entrevistados

125

mencionaram “oferecer cultura” como um papel importante da escola. Nas falas

a escola foi descrita como tendo e oferecendo um ‘alto nível de cultura’, uma

coisa que, segundo esses profissionais, contrasta com o ‘baixo nível de cultura’

de muitos alunos que entram na escola através de sorteio. Nas práticas

discursivas de alguns profissionais encontramos a idéia de ser uma escola

democrática significa oferecer acesso à “cultura dominante”. Aqui, observamos a

idéia em relação à função da educação de providenciar uma aculturação social e

cultural como descrita por Senna (2007).

Ligado ao discurso de apoio, existe um discurso de “favores”. Esse discurso se

contrapõe a um discurso em termos de direito à educação. No contexto do CAp,

uma escola pública, durante a sua historia por muita gente considerada uma

escola de elite, uma discussão em relação à democratização do acesso à

instituição, caracterizado por um discurso de favores e apoio de “nós” a “eles”

indica a existência de uma idéia de inclusão na instituição de educação de

qualidade como favor da “elite” a “não elite”.

Concluímos que existe no CAp uma necessidade de refletir abertamente sobre a

relação entre democratização e excelência: a questão de como pode-se incluir

todos e todas e ao mesmo tempo oferecer uma educação de alta qualidade.

Concluímos que atualmente, no contexto da democratização do acesso decidido

no âmbito da direção do colégio, e pela conseqüente ausência de ação a nível

institucional, os professores tinham que se virar sozinhos com a nova situação

na prática do dia-a-dia da sala de aula. Isso resultou no fato que muitos deles

foram procurando estratégias para lidar com a diversidade e providenciar da

126

melhor forma um ensino de qualidade que atendesse a todos os alunos.

Observamos como vários profissionais se esforçam para buscar outras formas e

estratégias para poder incluir todos os alunos no processo de aprendizagem. Em

alguns casos parece que os profissionais conseguiram realmente incluir todos os

alunos no processo de construção de conhecimento, e em outros, apesar das

boas intenções deles, parecia que os professores na verdade através de suas

práticas criavam mais conflitos e dinâmicas de exclusão na sala de aula.

Com base no trabalho de Van Parijs (2004), concluímos que, para entender o

que significa inclusão em um contexto educacional, é importante entender em

que espécie de interpretação de oportunidades iguais, o discurso, as políticas e

as práticas estão baseadas. Concluímos que no CAp estudado, em relação à

inclusão na instituição, domina a interpretação formal do conceito de igualdade

de oportunidades como descrita por Van Parijs (2004). Com a democratização

do acesso, a instituição optou por eliminar a discriminação no acesso à

instituição, mas não são consideradas as dinâmicas de exclusão dentro da

instituição. Concordando com Van Parijs (2004) concluímos que a interpretação

formal de igualdade de oportunidades é problemática porque, o que exatamente

é “mérito” individual é difícil de definir, como vários fatores sociais podem

influenciar o desenvolvimento de talentos. Assim, esse conceito permite

desigualdades.

Nesse sentido a realidade pesquisada é um exemplo de uma “nova forma de

exclusão” como descrito por Tedesco (2002), uma exclusão resultado do

paradoxo que segundo Apple (2005) e Dubet (2003) caracteriza os sistemas

127

educacionais de hoje em dia. Esses sistemas se caracterizem por uma “de-

politização” do contexto educacional (APPLE, 2005) e uma “igualdade hipotética”

(DUBET, 2003). Dentro dessa nova forma de exclusão o individuo não é

entendido como ligado a papeis e posições sociais. É suposto que “cada um

seja “soberano”, dono de si mesmo, responsável por uma vida que não pode

mais ser totalmente reduzida a um destino.” (DUBET, 2003, p. 41), enquanto a

escola e os processos educacionais são consideradas neutros. Com base nessa

igualdade hipotética e a de-politização do contexto educacional, domina dentro

do CAp um princípio universalista em relação ao conteúdo escolar que parece

resultar em idéias a respeito da “aculturação social” dos alunos na escola

(SENNA, 2005). Neste sentido, o CAp representa a ideologia de um

universalismo formal discutido por Forquin (2000): a escola considera os alunos

iguais em direitos e deveres e o julgamento escolar no final se concentra apenas

nos desempenhos acadêmicos do aluno.

Nesta pesquisa entendemos as práticas discursivas como as diferentes

maneiras em que as pessoas, através dos discursos, ativamente produzem

realidades psicológicas e sociais (PINHEIRO In SPINK, 2000, p.186). No

entanto, não podemos esquecer os esforços e a motivação dos profissionais na

procura de novas estratégias e posturas, o conjunto de práticas discursivas

estudado aponta para a construção de uma realidade onde a assimilação e

aculturação de “eles” é considerada mais importante que a verdadeira inclusão.

Porém salientamos que, as práticas discursivas estudadas não podem ser

128

entendidas separadas do contexto na qual elas são construídas: uma instituição

em que a inclusão não se estenda muito além de políticas de acesso e apoio.

Por sua vez a instituição também não pode ser entendida como uma ‘entidade

independente’. Como falou um dos profissionais durante a entrevista,

lamentavelmente a instituição não é “Alice no país das maravilhas”. É necessário

entender a realidade pesquisada no contexto social da sociedade brasileira onde

a desigualdade está presente em todas as partes, como em nós mesmos. Neste

contexto concluímos que, como muitas instituições educacionais, também essa

escola “integra mais e exclui mais que antes” (DUBET, 2003, p. 44).

Para uma verdadeira inclusão, a educação de hoje em dia teria que passar por

um processo de profundas reformas. Seria preciso uma reconsideração de

nossas idéias sobre igualdade, inclusão e os objetivos que temos com

educação. Precisaríamos deixar para traz os conceitos impostos pela

modernidade e considerar inclusão como uma política que incorpora o processo

educacional e o contexto das instituições educacionais como um todo. Para

realmente incluir esses grupos que até então foram excluídos precisaríamos re-

pensar, re-formular e re-formar processos educacionais. “Trata-se de uma

transformação de caráter político, cultural e pedagógico” (GOMES, 2003, p.222)

para a qual precisaríamos sair do lugar de suposta neutralidade na aplicação

das políticas sociais. Somente dessa forma poderíamos começar a determinar

os parâmetros da inclusão social e Educação Inclusiva.

129

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