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Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJPrograma de Pós-graduação em Educação PROPED
Linha de Pesquisa - Educação Inclusiva - Ciência e Cultura da Inclusão EscolarGrupo de Pesquisa - Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar
Entre Democracia e Excelência: Uma pesquisa sobre dinâmicas de inclusão
em um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro
Por
Inti Maya Soeterik
Dissertação apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação, sob a orientação da Profa Dra Carmen Lúcia Guimarães de Mattos
Julho 2007
1
Inti Maya Soeterik
Entre Democracia e Excelência: Uma pesquisa sobre dinâmicas de inclusão
em um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro
Dissertação apresentada à Banca examinadora do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como exigência parcial para obtenção do grau de Mestre em Educação.
Aprovada em Julho de 2007
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________Profª. Drª. Carmen Lúcia Guimarães de Mattos - OrientadoraUniversidade do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________Prof. Dr. Luis Antonio Gomes SennaUniversidade do Estado do Rio de Janeiro
__________________________________Profª. Drª. Alicia Maria Catalano de BonaminoPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
Profª. Drª. Helena Amaral da Fontoura Universidade Estadual do Rio de Janeiro FFP - Suplente
Profª. Drª. Iduina Mont'Alverne ChavesUniversidade Federal Fluminense - Suplente
2
Agradecimentos
Agradeço essas pessoas que dia a dia se esforçam para melhorar a qualidade de educação para todos e todas. Agradeço todos os participantes desta pesquisa. Agradeço a minha orientadora Profª. Drª. Carmen Lúcia Guimarães de Mattos. Agradeço o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela concessão de uma bolsa de estudos.
3
Resumo
Essa pesquisa descreve e analisa as práticas discursivas de profissionais de um Colégio de Aplicação no Rio de Janeiro em torno de dinâmicas de inclusão na instituição. Trata-se de uma escola pública reconhecida por seu ensino de alta qualidade, existe desde os anos oitenta uma discussão em relação à ‘democratização’, a qual resultou no final dos anos noventa na abertura de sorteio público para ingresso. Como dinâmicas de inclusão entendemos todas as dinâmicas, sejam políticas, práticas ou discursivas, em relação à inclusão. Optamos por enfocar especificamente as práticas discursivas dos profissionais da instituição, as entendendo como: as diferentes maneiras em que as pessoas, através de discursos, ativamente produzem realidades psicológicas e sociais. Com inspiração pela abordagem etnográfica para coletar dados foram realizadas entrevistas semi-estruturadas, conversas informais e observações na sala de aula. A análise de dados foi efetuada através da análise de conteúdo. As principais categorias encontradas nos dados foram poder e o outro. Poder é entendido como a força exercida e distribuída em relação à participação na instituição em discursos, políticas e práticas. O outro entendido como categoria social, socialmente construída com base em informações concretas ou suposições em relação à origem de um indivíduo. Como subcategorias relacionadas à categoria o outro foram identificadas: lugar de moradia, cultura, classe social/ situação financeira, contexto familiar (nível educacional e profissão dos pais; incentivo dos mesmos para estudar) e cor da pele. Foi observada, que existe na instituição a discussão em torno das políticas de democratização de acesso, que ocasionou uma discussão sobre o perfil da instituição e seu público. Concluímos que existem resistências em relação às mudanças que são refletidas na existência de tensões. A maior tensão foi identificada na dinâmica que existe entre o processo de democratização de um lado e o perfil de excelência de outro lado; uma dinâmica que parece resultar na manutenção de práticas de seleção como o jubilamento. Apesar da existência de críticas dos profissionais em relação às políticas e práticas em torno de inclusão na instituição, os discursos, práticas e políticas dominantes não são discutidas em si. Em vez disso, a política de sorteio e a origem de certos alunos é problematizada.
Palavras-chave: Inclusão – Práticas discursivas - Escola pública – Escola democrática
4
Abstract
This research describes and analyzes the discursive practices in relation to the dynamics of professional inclusion within a school in Rio de Janeiro, Brazil. The institution is a public school of primary and secondary education linked to one of the public universities and recognized for the quality of the education offered. Since the eighties exists within the institution a discussion in relation to ‘democratization’. This discussion resulted in the end of the nineties in the opening of public lottery of vacancies. With dynamics of inclusion we mean all dynamics in relation to inclusion, may they be political, practical or discursive. We chose to focus specifically on the discursive practices of the professionals in the institution, understanding discursive practices as the different ways in which persons, by using certain discourses actively produce psychological and social realities. It inspired by ethnographic methodology, for data collection semi-structured interviews, informal conversations and observations in the classroom where realized. Content analysis was used to analyze the data. The principal categories found in the data are power and the other. Power is explained as the force exercised and distributed in relation to participation in the institution in discourses, politics and practices. The other is understood as a social category, socially constructed on the basis of concrete information or assumptions in relation to the origin of an individual. The sub categories identified in relation to the category power are: hierarchy, autonomy and freedom. Sub categories identified in relation to the category the other are: place of living, culture, class/ financial situation, family context (level of education parents, professions parents, incentive of parents to study) and skin color. It was observed how the discussion regarding the politics of access democratization is accompanied by a discussion about the profile of the institution and its public. Resistances in relation to changes in the institution are reflected in the presence of tensions. The major tension was identified in the dinamics that exist between the process of democratization on one hand and the profile of excellence on the other hand; a dinamics that seems to result in the preservation of certain practices of selection. In spite of the critique existent amongst the professionals related to certain politics and practices of inclusion in the institution, the dominant discourses, practices and politics aren’t discussed. Instead, the politics of the lottery of vacancies and the origin of certain pupils is problematized.
Key words: Inclusion – Discursive practices – Public school – Democratic school
5
SUMÁRIO
PARTE I
1. INTRODUÇÃO……………………………………………………………….........9
1.1 Questões de pesquisa..................................................................................11
1.2 Objetivos.......................................................................................................12
1.3 Justificativa...................................................................................................13
1.4 Organização do trabalho...............................................................................15
2. QUADRO TEÓRICO.......................................................................................16
2.1 Inclusão........................................................................................................16
2.1.1 Igualdade...........................................................................................17
2.1.2 Igualdade de oportunidades..............................................................18
2.1.3 Igualdade de oportunidades no contexto brasileiro...........................24
2.2 Inclusão e conteúdo escolar.........................................................................31
3. ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA................................................36
3.1 As escolhas metodológicas da pesquisa......................................................36
3.1.1 Pesquisa qualitativa...........................................................................36
3.1.2 A abordagem etnográfica..................................................................38
3.1.2.1 O significado do “outro” na pesquisa etnográfica................40
3.1.2.2 Uma visão construtivista da realidade.................................42
3.1.3 Práticas discursivas...........................................................................43
6
3.2 A pesquisa passo a passo............................................................................44
3.3 Análise e interpretação dos dados...............................................................47
3.4 Locus da pesquisa........................................................................................50
3.5 Participantes da pesquisa.............................................................................52
3.6 Limitações da pesquisa................................................................................54
PARTE II
4. ANÁLISE E RESULTADOS..........................................................................56
4.1 Uma escola para todos?...............................................................................59
4.1.1 Políticas de democratização..............................................................59
4.1.2 Discussão, democratização e desespero total..................................61
4.1.3 Poder de fogo....................................................................................65
4.2 O conceito Cap.............................................................................................66
4.2.1 Tradição que faz a diferença.............................................................67
4.2.1.1 Disciplina e organização para autonomia e liberdade.........67
4.2.1.2 Gestão, participação e autonomia.......................................71
4.2.1.3 Excelência pré-definida.......................................................75
4.2.1.4 Um público particular...........................................................81
4.3 Dinâmicas de inclusão..................................................................................83
4.3.1 A inclusão do “outro”.........................................................................83
4.4 Na busca de outras formas: diversidade e a prática pedagógica do
professor.............................................................................................................96
4.4.1 Desafios.............................................................................................96
7
4.4.2 Estratégias.........................................................................................98
4.4.3 Dificuldades......................................................................................102
4.5 CAp no país das maravilhas?......................................................................109
4.6 Jubilamento.................................................................................................116
5. CONCLUSÕES..............................................................................................121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................130
8
1 INTRODUÇÃO
“O problema da exclusão nos ensina que as relações da escola e da sociedade se transformam e que a escola perdeu sua “inocência”. (...) A exclusão é o resultado “normal” da extensão de uma escola democrática de massa que afirma ao mesmo tempo a igualdade dos indivíduos e a desigualdade de seus desempenhos. Nesse sentido, a escola integra mais e exclui mais que antes, (...).” (DUBET, 2003, p.43-44)
Este trabalho foi realizado ao longo do Curso de Mestrado dentro do grupo de
pesquisa ‘Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar’ da
linha de pesquisa ‘Educação Inclusiva - Ciência e Cultura da Inclusão Escolar’
do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Rio
de Janeiro (UERJ).
Nesta pesquisa enfocamos a temática de inclusão e educação. Educação é
considerada a instituição que promove inclusão na sociedade. A frase
freqüentemente ouvida em relação aos objetivos de educação “para ser alguém
na vida...” (SENNA, 2005) se tornou realidade, mas para ser “alguém na vida”,
obter um diploma de educação formal, hoje em dia, não é suficiente. Seguir a
educação formal não significa automaticamente sucesso na vida profissional.
O fato de saber em qual instituição educacional o diploma foi obtido, define o
nível e o conteúdo dos conhecimentos e as habilidades aprendidas. Existem
também dentro das escolas processos ligados a inclusão e exclusão que
influenciam o sucesso ou fracasso acadêmico dos alunos.
9
Nesta pesquisa nos referimos às dinâmicas de inclusão. Como dinâmicas de
inclusão entendemos todas as dinâmicas, sejam políticas, práticas ou
discursivas, em relação à inclusão. Nós optamos por enfocar especificamente
nas práticas discursivas, as diferentes maneiras em que as pessoas, através dos
discursos, ativamente produzem realidades psicológicas e sociais (PINHEIRO In
SPINK, 2000).
Com base nessa aproximação consideramos todas as falas estudadas, como
entrevistas, mas também como conversas informais, práticas discursivas, ações
(ou interações) situadas e contextualizadas por meio da qual se produzem
sentidos e se constroem versões da realidade.
Enfocamos, especialmente, nas práticas discursivas dos profissionais em
relação à inclusão. Conforme mencionado anteriormente, partimos da idéia que
os profissionais com suas práticas discursivas constroem realidades. Se existem
certas práticas discursivas em relação à democratização do acesso e inclusão
na instituição, essas práticas discursivas têm conseqüências, elas são ligadas a
verdades e ações dentro da instituição.
Optamos por estudar as dinâmicas de inclusão em Colégio de Aplicação no Rio
de Janeiro, pois consideramos esta instituição especialmente interessante para
a realização da pesquisa pelo fato que os CAps são socialmente reconhecidos
como instituições públicas de ensino de alta qualidade (GLOBO ONLINE,
5/07/2006).
O CAp onde a pesquisa se realizou, é uma escola reconhecida por seu nível de
excelência. Justamente por isso, desde dos anos oitenta existe nessa instituição
10
uma discussão em relação à ‘democratização’. Essa discussão resultou na
adaptação dos procedimentos de acesso de alunos na instituição. Antigamente,
alunos só ingressavam na instituição através da participação de um rigoroso
processo de seleção. A partir do ano de 1998, os alunos entram no ensino
fundamental (na classe de alfabetização e na quinta série) através de sorteio. As
novas formas de acesso necessariamente mudaram o perfil da instituição.
Além de a instituição ser considerada uma escola de excelência, é também
conhecida como uma ‘escola de elite’, então, a pesquisadora se interessou em
estudar a temática de inclusão nessa instituição.
Várias perguntas surgiram, tais como: Será que, por causa da ‘democratização
do acesso’, a escola realmente se caracterizou como uma ‘escola inclusiva’?
Qual é o perfil dos alunos1 incluídos? Qual é a experiência em relação à
‘inclusão’ nessa instituição? Será que a inclusão vai além do acesso? O que
significa a inclusão nas práticas do dia-a-dia da escola?
1.1 Questões de pesquisa
Em relação ao contexto descrito acima, onde enfocamos o estudo das dinâmicas
de inclusão através das práticas discursivas dos profissionais, foram formuladas
as seguintes perguntas:
1 Com objetivo de facilitar a leitura do trabalho e preservar a identidade dos participantes usa-se neste trabalho apenas as palavras ‘aluno’/ ‘alunos’ se referindo tanto aos alunos como as alunas.
11
- Como são descritas as dinâmicas de inclusão nas práticas discursivas
dos profissionais?
- Quais os processos e as dinâmicas em relação aos “novos” alunos são
mencionados?
- O que é, segundo as práticas discursivas dos profissionais, o significado
de “inclusão” neste contexto?
1.2 Objetivos
O objetivo deste trabalho foi de entender, através da descrição e da análise das
práticas discursivas dos profissionais, as experiências em relação às dinâmicas
de inclusão que surgiram depois da democratização do acesso.
Um entendimento melhor de dinâmicas de inclusão poderia colaborar nas
discussões sobre a necessidade de ampliação e melhoramento de políticas de
educação inclusiva além de medidas que promovem o acesso a certas
instituições.
12
1.3 Justificativa
O fim do século e a entrada no novo milênio estão, segundo muitos teóricos,
associados a um profundo processo de transformação social (por exemplo
BECK; GIDDENS; LASH, 1995; BERGER; LUCKMANN, 2004). Um dos
fenômenos mais importantes nas transformações atuais no mundo é o aumento
significativo da desigualdade social (TEDESCO, 2002). Esse aumento da
desigualdade social veio acompanhado por um aumento de políticas que tendem
a combater o fenômeno.
Motivado por políticas de igualdade de oportunidades e educação inclusiva,
muitas instituições educacionais no mundo inteiro abriram as portas
(voluntariamente ou obrigado por leis) durante as últimas décadas para
indivíduos que estruturalmente foram excluídos de educação de qualidade.
Dados do Education For All Global Monitoring Report 20052 mostram como
muitos países fizeram progresso considerável na inclusão de cidadãos em
educação formal. Nessas reportagens o Brasil apresenta juntamente com
países, como, o Chile na América Latina, grandes avanços em direção ao
objetivo de ‘Educação para todos’.
O Brasil está tendo sucesso considerando o aumento na participação da
educação básica e está a caminho de ter uma participação de quase cem por
2 EFA Global Monitoring Report 2005, http://portal.unesco.org/education/en/ev.php-URL_ID=35939&URL_DO=DO_TOPIC&URL_SECTION=201.html
13
cento de crianças com idade de educação básica na escola3. As pesquisas
mostram que esse crescimento se deve sobre tudo graças ao aumento da
participação de crianças de grupos socialmente e economicamente
marginalizados na educação formal.
No entanto, pesquisa em relação às dinâmicas de inclusão em educação
(FREITAS, 2004; SENNA, 2007; SILVA, 2003; SILVÉRIO, 2002; SOETERIK,
2001) mostra como muitas vezes, a inclusão em educação é meramente
entendida em termos de integração no espaço físico das instituições
educacionais. Assim, as conclusões de uma pesquisa de Senna (2007), que
teve como finalidade traçar o perfil das dinâmicas de educação inclusiva no
Brasil conclui que: “a inclusão escolar ainda não conseguiu superar o nível da
mera integração ao espaço institucional da escola”, isso quer dizer que em
muitas práticas de educação inclusiva o acesso – a quantidade de pessoas que
vai para a escola – aumenta, mas a qualidade da educação fica atrás.
Inclusão, muitas vezes, é considerada simplesmente uma questão de acesso a
instituições educacionais. Perguntas em relação ao que exatamente acontece na
prática e quais são exatamente os processos de inclusão, freqüentemente são
deixados de lado.
Em relação às observações feitas acima, com o objetivo de ir além do assunto
de acesso, mas pesquisar o que exatamente significa inclusão no contexto
educacional, é necessário realizar uma pesquisa qualitativa que investiga os
processos dentro das instituições educacionais quanto à inclusão.
3 No Brasil, entre 1990 e 2000 o Índice Nacional de Educação (National Education Rate) subiu de 86,4% para 96,7% (EFA Global Monitoring Report 2005).
14
1.4 Organização do trabalho
O texto foi dividido em cinco capítulos. O capítulo dois apresenta o quadro
teórico desta pesquisa, onde são apresentados os temas e os conceitos que
consideramos ser importantes quando pesquisamos dinâmicas de inclusão. O
terceiro capítulo é discutido a abordagem teórico-metodológica. O quarto
capítulo apresenta a análise e os resultados. No quinto e último capítulo são
apresentadas às conclusões desta pesquisa.
15
2 QUADRO TEÓRICO
Para poder estudar e entender as dinâmicas de inclusão é necessário refletir
sobre o conceito de inclusão. O que é inclusão? A partir de quais teorias pode-
se entender esse conceito?
A discussão em torno do conceito de inclusão que se desenvolve neste capítulo
faz parte do quadro conceitual no qual se encontra o objeto desta pesquisa.
Através da discussão das diferentes definições do conceito, e das inclusões
teóricas de vários trabalhos, constrói-se o quadro conceitual desta pesquisa.
Pretende-se, à medida que o texto se desenvolve, poder apresentar os temas e
os conceitos que também podem ser importantes quando pesquisamos
dinâmicas de inclusão.
2.1 Inclusão
““Incluir” vem do latim: includere e significa “colocar algo ou alguém dentro de outro espaço/ lugar”. Esse verbo latino, por sua vez, é a síntese do prefixo in com verbo cludo, cludere, que significa “fechar, encerrar”. Participa da origem desse verbo um substantivo em Português. Trata-se do termo “claustro”. Claustro é um espaço do qual alguns já “fazem parte” como “espaço delimitado, murado, rodeado”. (...) Incluir será, pois, “entrar no claustro”, adentrar um lugar até então fechado e que, por encerrar determinadas vantagens, não era, até então, compartilhado com outros.” (CURY, 2005, p.14)
Como fica claro na explicação de Cury (2005), o conceito de inclusão implica a
existência de uma dinâmica inclusão – exclusão; um não existe sem o outro. O
conceito exclusão está ligado a idéia de exclusão de alguém ou de alguma coisa
16
de um certo contexto ou de algum acontecimento. A dinâmica que existe entre
inclusão e exclusão está relacionada à idéia de desigualdade em relações de
poder entre ‘incluídos’ e ‘excluídos’. O conceito de desigualdade por sua vez
está ligado ao conceito ‘igualdade’.
2.1.1 Igualdade
Outhwaite e Bottomore (In SILVÉRIO, 2002, p.220) explicam como nos séculos
dezoito e dezenove o ideal de igualdade se manifestou na exigência de direitos
iguais, diante da lei e de participação política. A partir do século vinte, quando
esses tipos de igualdade já eram dados como certos (na teoria, ainda que nem
sempre na prática) em todas as sociedades avançadas, a atenção concentrou-
se em uma nova exigência: a igualdade social.
O conceito de igualdade social, segundo os autores, se baseia na idéia de que
as pessoas devem ser tratadas como iguais em todas as esferas institucionais
que afetam suas oportunidades de vida, como, por exemplo, na educação e no
trabalho. Com base nessa preocupação com a igualdade social, desde então
muita aposta foi feita em educação.
Hoje em dia, a educação é uma das instituições da sociedade que mais
representa a idéia de igualdade social. É através de educação formal que o
individuo consegue crescer, adquirir um emprego e se desenvolver como
cidadão. Através de educação, também essas pessoas que fazem parte de
17
grupos socialmente e economicamente marginalizados conseguiriam subir e sair
da posição marginalizada.
Essa idéia de igualdade social em relação à educação acompanha uma
interpretação de igualdade como oportunidades iguais para todos. Assim, o
conceito oportunidades iguais dominou e ainda domina as políticas públicas,
sobre tudo as educacionais, em muitas sociedades. A seguir, discute-se com
mais profundidade o significado desse conceito.
2.1.2 Igualdade de oportunidades
As políticas baseadas no conceito de oportunidades iguais nem sempre
resultaram em mais igualdade. Assim, vários autores argumentam, que partindo
do conceito de igualdade de oportunidades e o princípio de tratar todo mundo
igual, muitas vezes a realidade social, na qual os processos de educação se
encontraram, foi negada.
No seu trabalho ‘What is a Just Educational System?’4, Van Parijs (2004)
problematiza a maneira na qual a idéia de igualdade social, freqüentemente, é
traduzida em educação interpretando o conceito de igualdade de oportunidades
de diferentes maneiras.
Segundo Van Parijs (2004), nas idéias dominantes sobre igualdade social e
educação domina a idéia que os desempenhos e os resultados pessoas logram, 4 ‘O que é um sistema educacional justo?’ (tradução nossa)
18
legitimamente podem ser diferentes, somente quando são os resultados de
escolhas pessoais – por exemplo, a decisão de se esforçar ou de tomar certos
riscos – mas, que oportunidades iguais precisam ser dadas para chegar a esses
resultados. Porém, segundo Van Parijs (2004), precisamos distinguir três
famílias de interpretações de igualdade de oportunidades:
A primeira interpretação de igualdade de oportunidades, a interpretação formal,
parte da idéia que somente as habilidades e competências atuais de uma
pessoa devem afetar as oportunidades. Apenas as diferenças em oportunidade
provocadas por habilidades e competências atuais podem ser justificadas. Essa
interpretação muitas vezes se traduz na prática em um foco em eliminação de
discriminação em acesso as instituições educacionais. Essa interpretação não
reconhece a possível influência de origem social das pessoas no
desenvolvimento das competências e habilidades e também não considera a
igualdade dentro do próprio sistema educacional.
A segunda interpretação de igualdade de oportunidades, a interpretação restrita,
argumenta que somente os talentos naturais da pessoa devem afetar as
oportunidades. Apenas as diferenças em oportunidade provocadas por talentos
naturais podem ser justificadas. Segundo essa interpretação outros fatores,
como, por exemplo, dinâmicas em relação à ‘raça’/ etnia, gênero, nacionalidade
ou origem social, não devem influenciar as oportunidades. É com base nessa
interpretação que se tenta eliminar, com freqüência, processos dentro do próprio
sistema educacional que atrapalham o uso de talentos naturais.
19
A terceira interpretação de igualdade de oportunidades, a interpretação
abrangente, argumenta que os impactos de todos os determinantes que
influenciam as oportunidades devam ser ‘neutralizadas’. Oportunidades devem
ser iguais para todo mundo, independente não somente de fatores como ‘raça’/
etnia, gênero, origem social etc., mas também independente de talentos e
habilidades inatos. Tanto a influência desses fatores, como a influência de
processos dentro do próprio sistema educacional é que provocam a
desigualdade, elas devem ser eliminadas.
Com base no trabalho de Van Parijs (2004), conclui-se que, para saber o que
significa inclusão em um contexto educacional, é importante entender em que
interpretação de oportunidades iguais os discursos, as políticas e as práticas são
baseados.
Segundo Van Parijs (2004), a interpretação formal de oportunidades iguais é a
mais difundida e aceita nas sociedades de hoje. É essa interpretação que
segundo ele domina também no campo educacional. Junto com outros autores,
como, Apple (2005), e Dubet (2003), Van Parijs (2004) problematiza esse fato.
Como a interpretação formal acompanha a idéia de distribuição com base no
mérito5, esse conceito permite desigualdades infinitas, por exemplo, em níveis
de ensino, com base na idéia que o “mérito” individual é recompensado. Dubet
(2003) escreve sobre a problemática da seguinte forma:
“Por um lado, dentro de seus próprios princípios e acompanhando a massificação, a escola afirma a igualdade de todos. (..) todas as crianças tem a
5 A posição meritocrática defende a idéia de que as oportunidades são conquistadas com base no merecimento. A distribuição das oportunidades é baseada nas habilidades e os talentos mostrados, em vez de posição social ou econômica ou outras características.
20
priori o mesmo valor, mesmo admitindo que as condições sociais podem afetar o reconhecimento de suas qualidades e o seu desenvolvimento. (...) Por outro lado (..) a escola é meritocrática. Ela ordena, hierarquiza, classifica os indivíduos em função de seus méritos, postulando em revanche que esses indivíduos são iguais.” (p.41)
A interpretação formal de igualdade de oportunidades representa uma
problemática porque o que exatamente é “mérito” individual é difícil de definir,
como, vários fatores sociais podem influenciar o desenvolvimento de talentos.
Neste sentido, a mais usada interpretação do conceito igualdade de
oportunidades, uma definição com a qual quase todo mundo concorda é
baseada em uma igualdade hipotética. Segundo Van Parijs (2004), para
realmente chegar à igualdade de oportunidades teria que ir além do conceito
formal de igualdade de oportunidades.
Em relação à essa igualdade hipotética existente dentro do sistema educacional
de hoje, Dubet afirma que, a representação do sujeito que acompanha a
interpretação formal de igualdade de oportunidades, é problemática: “ela supõe
que cada um seja “soberano”, dono de si mesmo, responsável por uma vida que
não pode mais ser totalmente reduzida a um destino.” (2003, p. 41).
Como vários autores apontam, na área de educação a interpretação formal do
princípio de igualdade social gerou políticas universalistas e construiu um tabu
em relação à idéia de ‘diferenciação’.
Assim, pode-se dizer que, com base na interpretação formal do princípio de
igualdade de oportunidades, freqüentemente, os indivíduos dos grupos com
presença dominante na sociedade conseguem aproveitar mais das
21
‘oportunidades’ que indivíduos de grupos menos dominantes na sociedade, uma
realidade que, além de não criar inclusão de verdade, pode até criar mais
exclusão.
Isso mostra que construir políticas e práticas educacionais baseando-se na
interpretação formal do conceito de igualdade de oportunidades implica o perigo
de partir da tese que a origem social, econômica, étnica e cultural não afeta de
nenhuma maneira a forma na qual os indivíduos podem aproveitar as
oportunidades. Além de negar a ‘bagagem’ pessoal dos indivíduos, nesta visão
também a influência de estruturas de poder e exclusão já existentes na
sociedade são negadas, como se educação fosse um ‘contexto neutro’ onde
todo mundo partindo do ‘zero’ tem as mesmas chances de obter sucesso.
Apple (2005), também assinala a tendência que em muitas sociedades de hoje
em dia as discussões sobre democratização da educação são acompanhadas
por uma visão do indivíduo não ligado a papéis e posições sociais. Segundo ele,
predomina a visão do indivíduo, como, ‘consumidor’. Assim, ele escreve: “Em
vez de democracia ser um conceito político, ele é transformado completamente
em um conceito econômico. (...) o individuo no atado – como consumidor – é
desfeito de raça, classe, e é desfeito de gênero” (APPLE, 2005, p.272) 6.
Apple (2005) relaciona a explicação neoliberal do conceito de oportunidades
iguais com a tendência de uma ‘modernização conservadora’ que segundo ele
6 Tradução nossa de: “Rather than democracy being a political concept, it is transformed into a wholly economic concept. (…) the unattached individual – as a consumer – is de-raced, declassed, and de-gendered.”.
22
existe em muitas sociedades. Uma das características dessa ‘modernização’ é a
de-politização do contexto educacional.
Refletindo sobre o significado do conceito inclusão em educação vale à pena
também considerar o trabalho de Forquin (1993, 2000) sobre escola e cultura.
Segundo Forquin (2000), nas sociedades liberais-modernas, a escola se
apresenta como uma instituição de natureza universalista por excelência.
Nessas sociedades a escola considera os alunos como indivíduos iguais em
direitos e deveres. Este princípio, de todo mundo estar submetido às mesmas
regras, Forquin (2000) chama de ‘universalismo formal’.
Esse princípio, segundo ele, não é só encontrado na instituição escolar, mas
também em muitas outras instituições das sociedades modernas. Na escola
esse princípio muitas vezes vem acompanhado por uma ótica meritocrática-
liberal na qual o julgamento escolar deve se concentrar somente nos
desempenhos acadêmicos do aluno, excluindo toda consideração de ordem
pessoal ou relacional.
Observa-se no texto de Forquin (2000) uma ligação entre a teoria de Van Parijs
(2004) sobre a interpretação formal de igualdade de oportunidades, e o conceito
de universalismo formal de Forquin (2000). Foi falado aqui de uma ideologia
sobre uma ‘igualdade social’ que cria políticas universalistas e que provoca, por
exemplo, políticas de oportunidades iguais, que são interpretadas e aplicadas
meramente como uma medida tomada para melhorar o acesso de certos grupos
da sociedade a determinadas instituições.
23
No trabalho de Forquin (2000), ele discute o que é a implicação desse
universalismo, ou do princípio contrário ao relativismo, para conteúdo escolar. É
discutida com mais profundidade as idéias de Forquin (2000) na seção 2.2,
porém, antes, na próxima seção são abordados alguns autores que escrevem
sobre a educação inclusiva no contexto brasileiro.
2.1.3 Igualdade de oportunidades no contexto
brasileiro
No âmbito da discussão sobre o significado do principio de igualdade e para
entender esse conceito melhor na realidade da desigualdade brasileira, discute-
se nesta seção como o conceito de igualdade muitas vezes é usado e explicado
neste país. Com base em pesquisa, Reis (2004) faz a observação de que a elite
Brasileira7, quando discute o tema ‘desigualdade social’, aposta muito em
educação e em relação a isso usa muito o conceito de igualdade de
oportunidades. Através de entrevistas e dados de um questionário “Percepção
de Desigualdades”8, Reis (2004) mostra como a maioridade da elite Brasileira,
que se expressa em termos de ‘Igualdade de oportunidades’, ao mesmo tempo
7 A autora explica como na pesquisa dela os pesquisadores entenderam o conceito ‘elite’ como: “representativos, no plano federal, dos setores empresarial, político, techno-burocrático e sindical. (...) intelectuais e formadores de opinião, religiosos, militares, representantes do Judiciário e de organizações não-governamentais. (...) foi adotada uma definição “institucional” da elite, isto é, em vez de assumir, por exemplo o critério “reputacional” para selecionar indivíduos representativos desse segmento, a opção foi entrevistar ocupantes de posições de liderança em instituições nacionais proeminentes.” (REIS, 2004, p.43). 8 A pesquisa “Percepção de Desigualdades” foi realizado no âmbito do Instituto Virtual “O Estado Social da Nação” criado a partir de convênio entre o IUPERJ e a FAPERJ (SCALON, 2004).
24
rejeita os conceitos ‘igualdade de resultados ’ e ‘igualdade de condições ’ .
Coerente com esta perspectiva há entre os membros da elite Brasileira por ela
entrevistada uma explicita rejeição de políticas de ações afirmativas. Segundo a
autora a elite Brasileira entende a educação sobre tudo como uma estratégia
que não implica redistribuição. A pesquisa de Reis (2004) mostra que a crença
da elite Brasileira no valor instrumental da educação é grande:
“...ela [a educação] é notada predominantemente como ferramenta de capacitação para o mercado, como meio de mobilidade social na ocupação. Diferentemente de outras elites nacionais[9], as nossas não destacam o papel da educação como mecanismo de conscientização política ou de empowerment, que tornaria os excluídos mais aptos para reivindicar sua inclusão no sistema.”. (...) “ela é vista como um recurso de mobilidade individual e de formação de capital humano.”. (...) “todos se beneficiariam da melhoria educacional da sociedade: os pobres receberiam melhores salários e os ricos contariam com mão de obra mais qualificada.”. (p.48)
A pesquisa de Reis (2004) mostra como a elite Brasileira explica a desigualdade
com a ‘pobreza’ que existe no país, pobreza no sentido econômico e no sentido
de ‘falta de (uso) de oportunidade’. Assim Reis (2004) conclui que ao contrário
da pobreza, que tem maior visibilidade e é alvo de ações específicas, no Brasil a
desigualdade nem sempre é percebida e dimensionada como um problema.
Pobreza, então, muitas vezes é considerada uma ‘situação’ que através de
certos esforços e recursos pode ser vencida.
Aqui é preciso assinalar que, embora Reis (2004) indique que a visão da elite
Brasileira é diferente da visão das elites nos outros países que participaram na
pesquisa, concepções a respeito da desigualdade social das elites em muitos
9 Com “outras elites nacionais”, a autora se refere às elites dos paises África do Sul, Bangladesh, Filipinas, Haiti e Índia, os paises que também participaram na pesquisa comparativa “Elite Perceptions of Poverty and Inequality” (REIS, 2004, p.43).
25
outros países, como por exemplo Grã Bretanha e os Paises Baixos, mostram
padrões de pensar a respeito de desigualdade social parecidas10. Esse padrão é
caracterizado por não considerar as desigualdades sociais e o conceito de
igualdade no contexto político e social, e não entendê-la no contexto das
relações de poder nas sociedades caracterizadas por juízo de superioridade e
inferioridade entre grupos, camadas ou classes sociais. Mas, como Silvério
(2002, p.223) menciona: “..toda desigualdade se estrutura a partir de um juízo de
superioridade”.
Essa interpretação das desigualdades sociais pelos grupos dominantes do poder
muitas vezes resulta, na prática, em ações assistencialistas que, normalmente,
não mudam a estrutura social e não tocam nas relações de poder que existem
na base da desigualdade social. Nesse quadro podem ser entendidas muitas
iniciativas nacionais, estrangeiras e internacionais que tentam combater a
‘pobreza’ e a ‘desigualdade’ sem entender, discutir e combater realmente a
razão social e política e as estruturas de poder em base dela. Assim muitas
vezes, as políticas públicas podem favorecer uma orientação de política que
privilegia a superação da pobreza, mas não da desigualdade. Nessa perspectiva
discussões em relação ao papel da educação muitas vezes são incluídas. Assim
Reis (2004) indica que a postura em relação à desigualdade social como
predominante na percepção da elite brasileira, resulta em posturas normativas
em relação à educação. A autora assinala por exemplo que a elite brasileira
10 Assim por exemplo Clay; George (1993); Essed (1991); Siraij-Blatchford (1993a) (1993b); Valk
(1993); Verma (1993).
26
“..sustenta é que, com iguais oportunidades de educação, todos os que se
esforçarem terão possibilidade de progredir.” (p.63). Ou, dito em outras palavras:
todos que não progrediram no sistema educacional e na sociedade, não se
esforçaram, portanto não têm direito a ‘reclamar’. Importante notar aqui, é que
nesta visão, de novo, educação e considerada como uma instituição “neutra”
aonde a todo mundo é oferecida a mesma oportunidade, as mesmas chances,
de se desenvolver. Essas pessoas que não se desenvolvem, que não
participem, eles mesmos têm a responsabilidade para a exclusão deles; essas
pessoas estão sendo excluídas “porque eles não querem participar”.
Essa observação adere à teoria de Tedesco (2002) que explica que, enquanto
no modelo capitalista tradicional a pobreza ou a condição assalariada podiam
ser percebidas como conseqüências de uma ordem social injusta, no novo
capitalismo a desigualdade social tende a ser associada à ‘natureza das coisas’
e a responsabilidade pessoal.
Podemos constatar que essa maneira de pensar sobre ‘desigualdade social’, o
melhor dito; esse não-reconhecimento das desigualdades sociais como questão
de poder, toca no núcleo da questão central deste trabalho: Para poder Incluir,
para realizar Educação Inclusiva de verdade, seria necessário que a sociedade
(e sobre tudo aqueles grupos da sociedade que representam o poder político,
cultural e acadêmico) reconhecesse e entendesse a desigualdade dentro da
estrutura social da sociedade como questão de poder.
Para entender melhor o estado atual da Educação Brasileira em relação à
desigualdade e exclusão social, propõe-se que ela seja entendida dentro de um
27
quadro histórico da formação da sociedade Brasileira. Senna explica (2007)
como somente podemos entender a complexidade do Brasil e os conceitos e
sentimentos sobre o sentido e as práticas de inclusão social se levamos em
conta a interferência dos diversos tempos de integralização da sociedade em
uma perspectiva histórica. O autor mostra como a cultura moderna influenciou a
formação da sociedade brasileira e influenciou, e ainda influencia, a prática da
educação e o pensar em relação a temas de Educação e Inclusão. Este trabalho
oferece um quadro histórico para entender o paradoxo teórico e político no qual
a ‘educação inclusiva’ se encontra hoje em dia no Brasil.
Senna (2007) indica como os conceitos da cultura moderna, o modelo naturalista
do homem e a imagem do sujeito cartesiano moderno impostos pela
modernidade criaram um conceito de educação e cidadania que hoje em dia
ainda estão em vigor:
“Fomentada pela própria natureza singularizante do homem moderno e, ao mesmo tempo, referendada pela fração auto-reconhecida como inferior, a modernidade brasileira traçaria em torno de si os limites da cidadania nacional, deixando ao exílio a maior parte do país. O acesso à escrita – e, mais recentemente, o acesso à escolarização básica – ocuparia no Brasil da Modernidade o lugar da nacionalidade, o lugar do restabelecimento de vínculo entre a óbvia similaridade pública de todo o povo brasileiro e a legitimidade social.” (p.8)
O autor mostra como durante a história, a educação no Brasil virou um instituto
de assimilação e normalização, um instituto que representa o ‘abandono da
natureza’ e o ‘desenvolvimento da razão’. A escola que existe hoje neste pais foi
construída com base em princípios do racionalismo imposto pela modernidade,
princípios e conceitos que formarão uma realidade caracterizada por instituições
28
educacionais que reproduzem a exclusão social. Segundo o autor foram os
princípios da cultura moderna, representados primeiramente pelo colonizador
europeu, mais tarde pelo próprio estado nacionalizado e a elite que representa o
poder na sociedade, que influenciaram a formação da sociedade brasileira, as
práticas educacionais e o pensamento em relação à educação e inclusão.
O autor argumenta que o objetivo das instituições educacionais que surgiram
com a cultura moderna era sobre tudo ‘singularizar’ e ‘normalizar’. O objetivo
desses processos de singularização e normalização era exatamente a exclusão
desses indivíduos que não se assimilaram ao ‘modelo naturalista de homem’.
Segundo o autor foi assim que a educação virou a cura para a debilidade social
ou mental (SENNA, 2007).
A formação da educação no Brasil baseou-se na idéia de uma sociedade ideal
em que alguns sabem (o homem da razão) e outros reproduzem (o homem
biológico) (SENNA, 2005). A pesquisa ‘imagens da desigualdade’ discutida
acima (REIS, 2004), mostra como grande parte da elite brasileira ainda aplica
esse princípio na análise da sociedade atual.
A discussão levantada por Senna (2007) sobre o contexto histórico da educação
no Brasil ensina como a educação, já nos seus fundamentos, não é uma
instituição que se pode considerar ‘neutra’. Os fundamentos filosóficos, sociais e
políticos do sistema educacional formulados durante a história, implicam um
sistema que exclui. Desde seus primórdios o sistema educacional estava ligado
a idéias sobre a formação de uma certa sociedade; uma sociedade de gente que
‘pensa’ e gente que ‘faz’, gente que ‘sabe’ e gente que ‘reproduz’. Foi com base
29
nessa história que a modernidade brasileira traçaria em torno de si os limites da
cidadania nacional, deixando ao exílio a maior parte do país (SENNA, 2007).
Apesar das discussões, políticas e práticas ligadas a inclusão, a sociedade de
hoje em dia ainda não conseguiu transformar completamente os fundamentos
ideológicos da educação. No fundo, as políticas e práticas educacionais ainda
são baseadas nos conceitos da cultura moderna e a imagem do ‘sujeito
cartesiano moderno’. Os princípios racionalistas se expressam hoje em dia por
um lado em idéias em relação à função da educação de providenciar uma
aculturação social e cultural e por outro lado pela função de educação no
processo de ‘diferenciar’ para o mercado de trabalho.
Vários autores, como, por exemplo, (GOMES, 2003; MUNANGA, 2003; SILVA,
2003; SILVÉRIO, 2002; TEDESCO, 2002) indicam, assim, que o conceito de
igualdade no Brasil, em vez de promover uma sociedade mais justa, tem-se
colocado durante a história muitas vezes como obstáculo às mudanças sociais
para uma sociedade menos desigual.
Na seção seguinte reflete-se sobre a pergunta como poderia ir além das
interpretações dos conceitos de inclusão e igualdade de oportunidades como
questões de acesso.
30
2.2 Inclusão e conteúdo escolar
Considerando a idéia que, como argumenta Silva (2003), para ter educação
inclusiva de verdade, também o conhecimento apresentado nas instituições
educacionais deve ser sujeito à discussão, então, propõe-se nesta seção
abordar mais profundamente o significado de educação inclusiva em relação à
cultura e conteúdo escolar.
Reflete-se encima de perguntas, tais como: o que significa inclusão e a
conseqüente pluralização da população da escola para o que é ensinado e
aprendido na escola? O conteúdo escolar precisa adaptar-se conforme as
mudanças na população escolar? O que definiria a direção dessas mudanças?
Será que a educação universal e inclusiva ao mesmo tempo é possível? Ou será
que, para poder incluir ‘de verdade’, é preciso pensar em uma educação que
diversifica?
Silva (2003) que discute o tema da inclusão de afro-descendentes em educação
e educação anti-racista no Brasil, argumenta, que a inclusão deve proporcionar
às ideologias, teorias e metodologias, as quais sustentam e dão andamento à
construção de conhecimento, sejam questionadas e, em decorrência às
atividades educacionais e científicas sejam redimensionadas. Dessa forma,
promover a inclusão de verdade, segundo a autora, poderia ter uma influência
positiva em reformas do sistema educacional.
31
No seu trabalho Forquin (2000) reflete sobre a pergunta como pode-se pensar
sobre o conhecimento em um contexto educacional que se caracteriza por
diversidade. Segundo Forquin (2000), nas sociedades liberais-modernas, a
escola se apresenta como uma instituição de natureza universalista por
excelência, mas atualmente a multiculturalização do ensino provoca uma
necessidade de repensar o conteúdo escolar.
O autor referendado acima discute dois princípios contraditórios que precisam
ser considerados quando se discute cultura e conteúdo escolar em relação à
diversidade: o relativismo e o universalismo. Forquin (2000) escreve que:
“..no contexto do debate sobre a educação que se desenvolve atualmente em muitos países, em que a questão do multiculturalismo ocupa um lugar cada vez maior, a oposição universalismo-relativismo é compreendida como a pergunta sobre o modo pelo qual os sistemas de educação podem levar em conta o pluralismo das culturas” (p.48).
Referindo-se ao contexto educacional de muitos países na Europa, o autor
assinala que, atualmente, por causa da presença maciça no contexto
educacional de populações de origens diversas, cujas atitudes e tradições
culturais são freqüentemente muito diferentes das do país de acolhida, a
questão do multiculturalismo leva a repensar a questão dos conteúdos
curriculares:
“O multiculturalismo que favorece o reencontro, a interação entre indivíduos portadores de identidades culturais distintas de novo estimula a pergunta: segundo quais critérios se efetuarão a escolha e a justificativa dos conteúdos de ensino?” (FORQUIN, 2000, p.62).
32
O relativismo é um termo filosófico que se baseia na relatividade do
conhecimento. A posição relativa repudia qualquer verdade ou valor absoluto.
Nesse sentido, todo ponto de vista e conhecimento são válidos. Assim sendo,
pensando sobre conteúdo escolar no contexto multicultural do ponto de vista
relativista, significaria que o conteúdo escolar se define dependendo do público.
Segundo Forquin (2000), no contexto da atual multiculturalização do ensino em
muitos países, não é em um relativismo forte que se deve buscar um antídoto
para o etnocentrismo. Segundo Forquin (2000), “Não se pode subscrever uma
concepção de educação multicultural segundo a qual todos os valores e todos
os significados adotados pelos grupos culturais sejam aceitáveis, somente por
serem diferentes uns dos outros.” (p.62).
Forquin (2000) argumenta que, na realidade, não existe ensino possível sem o
reconhecimento de uma legitimidade, de uma validade ou de um valor próprio
naquilo que é ensinado. A argumentação dele se aproxima mais a visão
universalista. Ele comenta que “todo ensino se efetiva a partir da pressuposição
de seu próprio valor” (p.50). O princípio universalista, então, representa segundo
Forquin a idéia que “cabe a escola transmitir “saberes públicos”, (..) aos quais
todos possam ter acesso potencial e que apresentam valor independentemente
das circunstâncias e dos interesses particulares” (2000, p.58).
O autor discute a possibilidade de fazer do universalismo e do relativismo não
dois princípios de interpretação de educação e de cultura antagônicos, mas dois
princípios complementares. Ele argumenta que, no contexto das sociedades
multiculturais, a escola não pode mais ignorar aspectos “contextuais” da cultura,
33
mas deve sempre se esforçar para privilegiar o que há de mais fundamental, de
mais constante, de mais incontestável e, por conseguinte, de menos “cultural”,
nas manifestações da cultura humana.
O autor distingue um “universalismo etnocêntrico e dominador” de um
“universalismo aberto e tolerante”. Segundo ele, este último é perfeitamente
compatível com o reconhecimento e a valorização das diferenças, precisamente
na medida em que “só se pode reconhecer e respeitar aquilo que se percebe
como uma outra modalidade ou uma outra expressão possível do humano.”
(FORQUIN, 2000, p.65).
Em relação à questão da cultura escolar, Forquin (2000) propõe um
“universalismo dos saberes elementares”. Segundo o autor, o universalismo dos
saberes elementares não é problemático e se inscreve quase naturalmente no
princípio de uma instrução pública. Segundo ele, no universalismo dos saberes
trata-se de um “ponto de partida”. A instrução baseia-se na idéia de começar dos
elementos para chegar aos conjuntos (p.59). O autor descreve a cultura da
escola (ideal) como:
“uma cultura geral que está baseada em saberes geradores, organizadores e integradores (...). ela é uma cultura aberta, flexível e capaz de se estender infinitamente. (...) Podemos ver então na generalidade o caráter fundamental de cultura escolar, a razão primeira de seu universalismo.” (2000, p.58).
Levantaram-se algumas questões em relação às reflexões de Forquin. Para
começar: como se define quais são os “saberes públicos” e qual é o “ponto de
partida”?; Como e quem define o que é o “mais fundamental”, “o mais
constante”, “o mais incontestável” e “menos cultural”?; Para poder definir o ponto
34
de partida e definir quais são os saberes públicos, o ator já não parte de um
ponto de partida?; Será que isso não significa que sempre serão os grupos mais
dominantes na sociedade, na instituição, que definem quais são os pontos de
partida?; Isso não implica de novo que os indivíduos que estão sendo “incluídos”
nesses contextos precisam se adaptar, assimilar aos “pontos de partida”
definidos pelo grupo dominador?; Será que, para poder definir esses “pontos de
partida” em um processo realmente ‘democrático’, não seria preciso
primeiramente ‘ajustar’ as desigualdades sociais historicamente construídas?
Essas perguntas lembram as palavras de Rancière (2002) sobre igualdade e a
relação educador – educando onde ele escreve “Quem estabelece a igualdade
como objetivo a ser atingido, a partir da situação de desigualdade, de fato a
posterga ate o infinito. A igualdade jamais vem apos, como resultado a ser
atingido. Ela deve sempre ser colocada antes.” (p.11).
35
3 ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA
Neste capítulo discute-se a abordagem teórico-metodológica desta pesquisa.
Primeiramente discute-se as considerações em relação às escolhas
metodológicas para coleta e interpretação de dados, em seguida, o locus e os
participantes da pesquisa, e, finalmente, as limitações da pesquisa são
descritas.
3.1 As escolhas metodológicas da pesquisa
Discutimos nesta seção as escolhas metodológicas usadas na pesquisa para
coleta e interpretação de dados.
3.1.1 Pesquisa qualitativa
Como se pode estudar práticas discursivas e experiências em relação às
dinâmicas de inclusão? A crença que guia a escolha metodológica pode ser
resumida da seguinte forma: os processos na vida do dia-a-dia são difíceis de
captar em estruturas fixas ou números.
36
Assim, a pesquisadora opina que não se pode entender processos de inclusão
com base nos dados coletados através de métodos padrões. Para poder chegar
mais próximo as experiências de indivíduos, os métodos qualitativos são mais
eficientes e um trabalho intensivo junto a esses indivíduos é necessário. Com
base nessas crenças, foram escolhidos usar métodos qualitativos para a coleta
de dados.
Métodos qualitativos são considerados, quase sempre, mais apropriados no
estudo de processos, como, por exemplo, dinâmicas de inclusão, dinâmicas que
constituem muitas vezes de processos implícitos e até inconscientes. Essas
dinâmicas precisam ser pesquisadas deduzido-as de observações, conversas
informais e entrevistas. Essas dinâmicas dificilmente poderiam ser medidas
diretamente, mas geralmente são inferidas do contexto através de diferentes
metodologias qualitativas (LÜDKE; ANDRÉ, 1986).
Isso não quer dizer que a coleta de dados quantitativos não poderia também
contribuir para entender a realidade estudada; acredita-se que essas
metodologias sempre podem contribuir de forma a trazer dados gerais sobre o
‘contexto macro’ em que a ‘realidade micro’ estudada através das metodologias
qualitativas, pode ser entendida.
Porem, devido ao curto tempo para esta pesquisa, precisávamos nos limitar aos
métodos qualitativos e estudamos uma realidade micro (na seção 3.4 será
especificado de qual realidade micro se trata). Assim, a pesquisa virou uma
pesquisa de escala pequena. Isso conseqüentemente significa que, com base
nos dados coletados, não se pode generalizar as conclusões, aplicá-las em
37
outros contextos e fazer depoimentos sobre ‘dinâmicas de inclusão’ em
instituições educacionais em geral.
Essa pesquisa só permite formular análises que se referem à micro realidade
estudada. Porém espera-se, que essas análises possam oferecer um
entendimento de como os processos e as dinâmicas de inclusão podem
funcionar, também em outros contextos.
Neste trabalho foram usados elementos de uma abordagem etnográfica de
pesquisa. A seguir, são discutidas quais são as características de pesquisa
etnográfica e se especifica os tipos de elementos usados.
3.1.2 A abordagem etnográfica
O que é etnografia? A raiz etimológica da designação "etnografia" reside na
língua grega: "etnos" - povo e "grápho" - descrever. A etnografia pode ser
explicada, então, como “descrever um povo”.
“A etnografia estuda, preponderantemente, os padrões mais previsíveis do pensamento e comportamento humano manifestos em sua rotina diária; estuda, ainda, os fatos e/ou eventos menos previsíveis ou manifestados particularmente em determinado contexto interativo entre pessoas ou grupos. (...) Na etnografia trata-se de observar os modos como os grupos sociais ou pessoas conduzem suas vidas, com o objetivo de revelar o significado cotidiano em que as pessoas agem, para documentá-lo, monitorá-lo e chegar ao significado da ação.” (MATTOS, 2004, p.142)
38
Etnografia pode ser considerada um conjunto de técnicas e instrumentos
qualitativos de coleta de dados que propõem conhecer e dar sentido a universos
sociais e culturais. O método etnográfico é centralizado sobre a noção de
observação (participante), ele inside sobre as técnicas de trabalho de campo, as
práticas de conversação, o diálogo etnográfico como dispositivo, as técnicas de
inquérito em geral (BOUMARD, 1999). Por essas características a etnografia é
uma excelente metodologia para estudar em detalhe uma “realidade micro”
(BARCELLOS, 2007).
No entanto, a decisão de fazer pesquisa etnográfica não pode simplesmente ser
descrita como uma escolha técnica, também se trata de uma postura e atitude
do pesquisador. Assim Boumard escreve: “..a investigação etnográfica dá lugar
pleno ao sujeito em uma atitude de atenção flutuante, nunca neutra, sempre à
espreita de uma eventual produção de sentido.” (1999, p.3).
A postura que leva a abordagem etnográfica também consiste em uma
reflexividade do pesquisador, ele precisa levar em conta as suas próprias
implicações como pesquisador e pessoa na estratégia de investigação. Esse
ponto é considerado de importância para esta pesquisa e uma observação é
discutida na próxima seção.
39
3.1.2.1 O significado do “outro” na pesquisa
etnográfica
A abordagem etnográfica é uma abordagem originalmente criada com intenção
de (re)conhecer, estudar e entender o ‘outro’. Assim, Boumard (1999, p.2)
escreve: “..O etnógrafo é aquele que vai ver os povos estrangeiros viverem, é
aquele que observa o seu estrangeirismo. Não nos esqueçamos que os povos
citados aqui (ethnos) são os povos bárbaros, por oposição ao povo formado
pelos cidadãos atenienses (demos)”.
Mattos (2004) também descreve, como o fazer antropológico surgiu, com a
expansão do mundo através da “descoberta” pelos europeus e de outros povos:
“nos primeiros estudos etnográficos, pessoas hierarquicamente mais afluentes
observavam e comparavam as pessoas de menos afluência, sempre
observando o outro como diferente de si mesmo” (p.144).
Malinowski (In MATTOS, 2004) explica que, hoje em dia, pelo uso da
“observação participante”, seria possível para o pesquisador superar os
pressupostos evolutivos e o etnocentrismo. Mattos afirma que na atualidade a
etnografia não pretende mais “tornar familiar o exótico”, a tendência na pesquisa
etnográfica atual seria mais “tornar exótico o familiar” (DA MATTA In MATTOS,
2004). Como escreve Mattos (2004) “Trata-se de adotar um recurso
metodológico de estranhar, distanciar-se das regras, da visão de mundo e das
atitudes legitimadas pela sociedade e por suas instituições”.
40
Mesmo que atualmente a pesquisa etnográfica não se caracterize mais pelo
estudo das ‘pessoas de menos afluência’, Mattos (2006) afirma que, ainda hoje,
existe uma relação entre as pesquisas etnográficas e a temática do “outro”.
Segundo ela, existe ainda uma atração entre as áreas de estudo de exclusão
social e as pesquisas etnográficas.
Como a pesquisa reflexiva envolve autoconsciência (MATTOS, 2004, 2006),
considera-se de importância discutir brevemente um aspecto do papel da
pesquisadora no campo desta pesquisa. Como a pesquisadora não é brasileira e
reside apenas há três anos no Brasil, o significado do “outro” na sua pesquisa
toma ainda mais uma dimensão. Pesquisando a realidade brasileira, a
pesquisadora está consciente que o limite entre “tornar exótico o familiar” e
“tornar familiar o exótico” para ela nem sempre pode ser definido com clareza.
Mesmo ela se sentindo familiar com grande parte da realidade brasileira, ainda
várias coisas da realidade em torno dela são ‘novas’ e ‘diferentes’ para ela.
Assim, por exemplo, a pesquisadora não tem uma própria experiência no ensino
fundamental neste país, ela só conhece o sistema estudando-o,
conseqüentemente, ela observará outras coisas e considerará outros pontos
interessantes como se fosse uma brasileira crescida e educada aqui.
Em um pesquisa onde existe a intenção de estudar a temática de inclusão, que
implica a suposta existência de um ‘outro’, mesmo que a pesquisadora não se
sinta ‘estrangeira’, ela não escapa ao fato dela ser em muitos aspectos também
um ‘outro’. É um fato que em muitos pontos ela é e é reconhecida facilmente
41
(tanto pela aparência física como no uso da língua portuguesa) 11 como um
‘outro’. Esse fato cria dinâmicas que precisam ser levadas em consideração na
análise das interações dela com o campo.
3.1.2.2 Uma visão construtivista da realidade
A ‘postura’ que a pesquisa etnográfica requer do pesquisador pressupõe, uma
concepção da realidade tal como a apresenta o interacionismo simbólico
(BECKER, 1963; BOUMARD, 1999; MATTOS, 2001; MEAD, 1978).
A idéia básica do interacionismo simbólico é que o real não se encontra pré-
definido, mas se constrói socialmente. Nesta visão são os próprios atores que
definem a situação na qual eles se encontram, por isso, na perspectiva do
interacionismo simbólico, o ator social é considerado um agente ativo. A partir do
processo de definição da situação social, a situação se constrói. Assim os
contextos sociais não são estáticos, “..eles contam sua história, seus valores,
seus riscos e seus limites” (MATTOS, 2004). As pessoas agem a partir do
sentido que elas atribuem as situações às outras pessoas e aos objetos
(MATTOS, 2004).
Segundo Boumard (1999), na pesquisa que aceita uma concepção da realidade
tal como apresenta o interacionismo simbólico:
11Sobretudo na interação com alunos isso às vezes foi feito explícito. A curiosidade natural das crianças para o ‘outro’, o diferente, resultou em muitas conversas informais sobre a origem da pesquisadora e curiosidades do país e da língua materna dela. No entanto, a pesquisadora era mais ‘outra’, ainda porque na época da pesquisa ela estava com uma barriga de seis meses de gravidez, o que chamou à atenção de muitos alunos.
42
“os papéis dos atores que parecem estar prescritos pela sociedade (e isso é particularmente evidente no caso da escola) são de fato construídos em relação ao sentido que eles conferem às diferentes situações para cuja elaboração contribuem” (p.4).
Durante a pesquisa, a pesquisadora ficou mais consciente desse fato.
Primeiramente ela entrou no campo com a idéia de estudar a experiência de
alunos ‘incluídos’ na instituição, mas, já no momento da primeira apresentação
do projeto no campo foi perguntado “mas, quem é o aluno incluído?”. Depois de
refletir sobre esse assunto e depois dos primeiros momentos no campo, a
pesquisadora percebeu que, realmente, partir da própria concepção que ela
tinha de inclusão não seria o mais interessante.
A pergunta primeiramente formulada ‘o que significa essa inclusão para os
alunos?’, já parte da tese que dentro da instituição existem processos que
podem ser chamados ‘inclusivos’. Porem, como foi mencionado acima, entender
e estudar processos exige ‘entrar aberto no campo’, sem definir o foco
anteriormente (quem é ‘o aluno incluído’). Mais interessante seria então
justamente ver o que é, dentro do contexto, considerado ‘inclusão’ e quais são
os considerados ‘incluídos’ no contexto. Esse exemplo mostra a importância da
reflexividade do pesquisador durante a pesquisa de campo.
3.1.3 Práticas discursivas
“A investigação sócio-construcionista preocupa-se, sobretudo com a explicação dos processos por meio dos quais as pessoas descrevem, explicam ou dão conta do mundo (incluindo a si mesmos) em que vivem” (GERGEN In SPINK; FREZZA, 2000, p.26).
43
Partindo do princípio de investigação construtivista, estuda-se nesta pesquisa a
produção de sentidos a partir da análise de práticas discursivas. É usada a
definição que Pinheiro da de práticas discursivas. Ele argumenta que as práticas
discursivas são as diferentes maneiras em que as pessoas, através dos
discursos ativamente produzem realidades psicológicas e sociais (PINHEIRO In
SPINK; FREZZA, 2000, p.186).
As práticas discursivas estudadas nesta pesquisa são entrevistas e conversas.
Entende-se práticas discursivas como ações (ou interações) situadas e
contextualizadas, por meio das quais os sentidos são produzidos e as verdades
são construídas, ou seja, “As descrições e explicações sobre o mundo são
formas de ação social. Desse modo, estão entremeadas com todas as
atividades humanas”. (GERGEN In SPINK; FREZZA, 2000, p.27).
3.2 A pesquisa passo a passo
“..a entrevista permite romper com as certezas de que partilhamos um mundo comum com pontos de vista idênticos sobre uma realidade incontestável. Pelo contrário, o trabalho de campo obriga a levar em consideração e a aprender a cultura do grupo observado. Daí a importância da observação participante, que permite num movimento pendular metodológico entre o ponto de vista do investigador e o dos atores, reconhecer uma multivetorialidade da análise em cujo processo aqueles a priori do investigador são questionados da mesma maneira que os pontos de vista dos atores.”. (BOUMARD, 1999, p.5)
44
A coleta de dados desta pesquisa começou com o estudo de documentos da
instituição que relatavam sobre o perfil da escola, questões de acesso e o
rendimento escolar dos alunos e a política pedagógica da escola. Esses
documentos foram conseguidos através da página da instituição na Internet e da
direção da escola.
Em seguida, partindo da abordagem etnográfica, foram feitas as observações na
instituição durante quinze dias. Tais observações foram realizadas na sala de
aula das duas turmas da quinta série, no recreio - na cantina e nos corredores -
e em duas reuniões do conselho de classe. Durante as observações, em várias
ocasiões a presença física da pesquisadora resultou em conversas informais
com profissionais e alunos.
Na última fase da pesquisa foram realizadas as entrevistas semi-estruturadas
com os profissionais e alunos.
Nas entrevistas foram utilizados como guia de conversa uma lista de assuntos e
questões. A conversa sempre foi iniciada pela pesquisadora que explicou o
objetivo da pesquisa. Aos professores, ela explicou isso da seguinte forma:
“Estou interessada em entender o significado dos processos de democratização
que acontecem desde alguns anos nesta escola. O que significou ou significa
essa democratização, segundo você, na prática do dia-a-dia da escola?”.
Na conversa com os alunos a pesquisadora dizia: “Gostaria que você me
contasse sobre a sua experiência nesta escola”. O guia funcionou para
estruturar a conversa, no caso de necessidade, mas nas conversas a prioridade
foi dada para os assuntos que o participante trazia. O objetivo das conversas era
45
mediante as práticas discursivas entender a realidade do sujeito neste contexto
da instituição educacional, nos documentos descritos como “democrática”.
Em todas as fases da pesquisa foi dada importância para a utilização de
hipóteses progressivas (HAMMERSLEY In MATTOS, 2001). Segundo Mattos
(2004) na pesquisa os dados ditam o caminho teórico a ser conduzido durante
as análises e os resultados da pesquisa. Assim as hipóteses vão sendo
construídas progressivamente na medida em que os dados respondem ou não
as perguntas que o pesquisador formula em relação ao objeto de pesquisa.
Neste trabalho, o uso de hipóteses progressivas resultou em que as questões da
pesquisa foram se re-formando durante o tempo. Assim, a pesquisa foi iniciada
com a idéia de enfocar em primeiro lugar a experiência do ‘aluno incluído’, mas
depois das primeiras semanas de trabalho de campo, a pesquisadora sentiu que
ela precisava fazer algumas adaptações na formulação de perguntas em relação
ao objeto de estudo. Ela percebeu que na realidade, primeiramente, ela não
podia definir quem eram ‘os incluídos’ e em segundo lugar, antes de pesquisar
‘experiências em relação à inclusão’, ela precisou procurar as definições,
explicações e representações de ‘inclusão’, que (às vezes implícitas) existiam na
instituição.
A pesquisadora percebeu que ela tinha entrado em campo com uma hipótese, a
qual está relacionada a um conceito que ela tinha de inclusão. Ela sentiu que na
prática, dentro do contexto da instituição, esse conceito não era definido tão
claramente: ela precisou se livrar do conceito que ela tinha formado em sua
46
mente e voltar atrás, ou seja, pesquisar exatamente o significado desse conceito
nas práticas do cotidiano dos participantes.
Aqui a pesquisadora vivenciou o cerne da interpretação que o interacionismo
simbólico da realidade representa: O real não se encontra pré-definido. Os
próprios atores definem a situação na qual eles se encontram, e ao definir, a
situação se constrói. Essa construção da situação, dentro do contexto de uma
instituição que se apresenta como “democrática”, entender essa construção era
o que estava no fundo da questão da pesquisadora. Esse aprendizado resultou
no fato de que o enfoque do problema mudou mais do aluno para a instituição e
os profissionais. A pergunta como formulada no início do projeto ‘o que significa
essa inclusão para os alunos?’, mudou para uma pergunta com a qual a
pesquisadora pôde entrar mais ‘aberta’ no campo, isto é, ‘o que é, dentro do
contexto, considerado ‘inclusão’?’ E ‘quem são, dentro desse contexto,
considerados os ‘incluídos’?’. Esse aprendizado refletiu-se nas escolas dos
participantes da pesquisa. Isso será discutido na seção 3.5.
3.3 Análise e interpretação dos dados
O processo de análise e interpretação dos dados se realizou através de análise
indutiva. Na análise indutiva parte-se dos dados particulares para o geral. Mattos
(2006, p.8) escreve:
47
“através de objetivos ou afirmações argumentativas, ampliamos o foco das análises para um universo mais geral formulando premissas universais típicas ou atípicas que podem ser comprovadas e sustentadas através dos dados e das teorias formando assim a base do conhecimento que está sendo construído ou relatado como resultante da análise.”.
Assim, os dados conduzem o caminho teórico a ser levado e as hipóteses são
construídas progressivamente na medida em que os dados respondem ou não
as perguntas que o pesquisador formulou. Contudo, Mattos (2006, p.12) chama
atenção para o seguinte:
“Entendemos que a prática de pesquisa etnográfica, assim como quaisquer pesquisas não são a priori despidas de qualquer fundamentação teórica e/ou metodológica. A própria escolha do objeto de estudo pressupõe estudos anteriores que o levam a entender o campo a partir de um olhar que foi construído ao longo da experiência de vida”
A análise indutiva exige do pesquisador uma micro-análise da descrição densa
das observações feitas no campo, das anotações e das transcrições das
conversas e entrevistas. Através da micro-análise dos dados, o pesquisador
organiza os dados em categorias, como, categorias significantes em relação às
perguntas do problema e as hipóteses da pesquisa.
“A palavra categoria, em grego, significa atribuir uma qualidade a um sujeito (caráter, espécie). Atualmente, este sentido de atribuir uma qualidade surge com a finalidade de “possibilitar” a análise do objeto ou campo de estudo. Porque eu atribuo a sujeitos distintos a mesma qualidade posso assim agrupá-los. (...) Em pesquisa, este agrupamento se dá a partir das semelhanças que encontramos entre as diferentes manifestações do objeto.” (CASTRO, 2006, p.50).
Nesta pesquisa, as categorias foram formadas em três fases de análise. Durante
a primeira fase, na qual foram lidas as transcrições das entrevistas, surgiram
48
várias categorias. Em seguida, a pesquisadora revisou as transcrições e contou
o número de vezes que cada categoria emergiu no material. O importante neste
momento da análise é a ‘triangulação de dados’. O pesquisador precisa: “...
verificar a reincidência (tipicalidade e atipicalidade) das informações, através de
pelo menos três fontes diferentes, antes de transformá-lo em relato, vinheta ou
histórico.” (MATTOS, 2006, p.14). Em um terceiro momento, a pesquisadora
selecionou, das categorias que foram contabilizadas mais vezes, essas que
tinham um maior significado em relação às perguntas-problema da pesquisa.
Assim, junto com a releitura das anotações das observações de campo foram
definidas as categorias mais significantes. Foram encontradas duas categorias
principais e oito sub-categorias:
Categorias principais Sub-categoriasPoder Hierarquia
AutonomiaLiberdade
O Outro Espaço físico (lugar moradia, lugar na sala de aula)
CulturaClasse social/ situação financeira
Contexto familiar (nível educacional dos pais; profissão dos pais;
incentivo dos pais para estudar)Cor da pele
Na seguinte fase da análise a pesquisadora procurou as vinhetas, os exemplos
no texto transcrito que representam as categorias.
49
3.4 Locus da pesquisa
Optou-se por estudar as dinâmicas de inclusão em um Colégio de Aplicação
ligado a uma das universidades públicas no Rio de Janeiro. Achou-se um CAp,
especialmente, interessante para a realização da pesquisa pelo fato que os
CAps se apresentam e são socialmente reconhecidas por ser instituições de
ensino de alta qualidade, conforme já mencionado anteriormente.
Essa imagem por parte se baseia nas avaliações nacionais como o Sistema de
Avaliação de Educação Básica (SAEB) e o Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM). Foi decidido não deixar explícito de qual CAp do Rio se trata, pois para
o objetivo desta pesquisa e o entendimento dos dados, isso não faz diferença.
A escola que foi contexto de pesquisa foi fundada nos anos quarenta, uma
época na qual também outros CAps, ligados a outras universidades, foram
inaugurados. A premissa central para a criação dessas instituições foi; a de se
constituir um campo de estágio obrigatório para os licenciandos das Faculdades
de Filosofia e o de oportunizar a experimentação de novas praticas
pedagógicas.
Em uma Resolução do Conselho Pedagógico da escola (número 01/06) está
descrita como finalidade do CAp: “..ensino, pesquisa e extensão na área de
educação básica, se constituindo em campo de estagio supervisionado para a
formação de profissionais de educação e áreas afins.” (Resolução do Conselho
Pedagógico, nº 01/06).
50
Segundo descrito em outro documento oficial da instituição (documento 2)12, o
perfil institucional do CAp é alicerçado em três princípios básicos: o
compromisso com a formação de professores, o desenvolvimento de políticas de
apoio à formação continuada, e a consolidação do campo de pesquisa em
Educação Básica.
A instituição, onde a pesquisa foi realizada se apresenta nos documentos oficiais
como “uma instituição com espaço para experimentação pedagógica
renovadora, resultando em aprofundamento das reflexões sobre o ensino-
aprendizagem nas salas de aula” (documento 2 CAp):
“Em seus cinqüenta e seis anos de existência, o colégio de aplicação (xxx) consolidou seu espaço no cenário educacional de nosso estado como uma instituição comprometida com a formação de cidadãos críticos, capazes de assumir um papel na sociedade em que estão inseridos. (...) ..essa escola que construiu sua identidade a partir da defesa dos princípios de autonomia pedagógica e da permanente experimentação de metodologias e estratégias de ensino..” (documento 2 CAp)
Como relatado pelos participantes desta pesquisa, existe desde os anos 80
existe na instituição uma discussão em relação à ‘democratização’. Essa
discussão resultou na adaptação dos procedimentos de acesso de alunos na
instituição. Antigamente, as pessoas só ingressavam na instituição através da
participação de um rigoroso processo de seleção. A partir do ano de 1998
alunos entram no ensino fundamental (na classe de alfabetização e na quinta
série) através de sorteio.
12 Trata-se de um documento da instituição, atualmente usado de caráter informativo, sem titulo, autor e data. Referindo a esse documento no texto, faz-se referencia a ‘documento 2 CAp’.
51
Em 2006, a escola tinha 800 alunos nos níveis fundamental e médio, dividido por
27 turmas, da classe de alfabetização ao ensino médio. A quinta série, a qual a
pesquisa foi realizada, tinha 60 alunos, divididos em duas turmas.
Inicialmente, a intenção foi de estudar dois colégios de aplicação no Rio de
Janeiro. Como outros colégios de aplicação passaram por mudanças parecidas
nos últimos dez anos, achou que poderia ser interessante comparar as
experiências nas diferentes instituições. Lamentavelmente, o limite de tempo
não permitiu realizar isso. A escolha por esta instituição foi baseada no fato que
se recebeu mais rapidamente a autorização para realizar a pesquisa neste CAp.
3.5 Participantes da pesquisa
Como o limite de tempo para o trabalho de campo era impossível pesquisar a
escola inteira, então, a pesquisadora quis enfocar a situação das turmas onde as
políticas de democratização de acesso tiveram presença direta. A escolha ficou
entre as duas turmas onde alunos sorteados entram, a classe de alfabetização
ou a quinta série.
Baseado no fato que os alunos da quinta série tem mais idade do que os alunos
da classe de alfabetização, conseqüentemente, discutir temas com alunos da
quinta série seria mais fácil, a pesquisadora optou por trabalhar com a situação
52
das duas turmas da quinta série da escola. Alguns profissionais da escola
também indicaram a quinta série como interessante para pesquisar.
Para pesquisar o que é, dentro do contexto do CAp, considerado inclusão,
escolheu-se primeiramente incluir os profissionais da escola na pesquisa.
Usando a palavra ‘profissionais’, refere-se tanto aos professores e professoras
da quinta série, como os profissionais da equipe da direção, orientação
pedagógica e os inspetores. No total participaram nas conversas e entrevistas
onze profissionais da instituição, uma da direção, duas do serviço de orientação
educacional e seis professores13.
Como na pesquisa etnográfica importância é dada para a comparação e a
triangulação dos dados, também quatorze alunos14 da quinta série foram
incluídos na pesquisa. Todos os alunos desta série tinham entrado na instituição
por meio de sorteio. Alguns tinham entrado na classe de alfabetização, outros
tinham entrado na quinta série. Considerando a história de vida pessoal,
situação econômica e nível educacional dos pais, cultura e etnia as turmas da
quinta série eram caracterizadas por uma grande diversidade em perfis dos
alunos. Vários desses sujeitos só tiveram a ‘oportunidade’ de entrar na
instituição porque existe a política de acesso através de sorteio. Uma pequena
minoria dos alunos saiam de um contexto no qual poucos indivíduos tiveram a
13 Tendo como objetivo tanto a facilitação da leitura do trabalho, como a preservação da identidade dos participantes, usou-se neste trabalho apenas as palavras ‘professor’ e ‘ele’, se referindo tanto aos professores como as professoras.14 Como foi mencionado no inicio deste trabalho, usou-se apenas as palavras ‘aluno’/ ‘alunos’ se referindo tanto aos alunos como as alunas, tendo como objetivo tanto a facilitação da leitura do trabalho, como a preservação da identidade dos participantes.
53
oportunidade de participar em educação considerada de qualidade15. Uma outra
parte dos alunos pareciam ser filhos de pais com um alto grau de escolarização,
com bons empregos e com uma boa situação financeira em casa – um perfil
parecido à população que antes das mudanças de políticas de acesso já
freqüentava essa escola16.
A maioria dos participantes foi escolhida ad random: a participação deles
dependeu da disponibilidade e presença dos atores nos dias que a pesquisadora
estava presente na instituição. Alguns participantes foram indicados como
“interessantes” para a pesquisa por outros participantes. Ao final, um importante
critério na escolha dos participantes foi a própria vontade dos atores em
participar na pesquisa.
3.6 Limitações da pesquisa
Como toda pesquisa, houve algumas limitações. Em primeiro lugar, o campo de
educação não é um campo de fácil acesso. Experiência do grupo de pesquisa
15 Segundo o Ministério da Justiça, os indivíduos provenientes de segmentos sociais que sistematicamente têm tido acesso restrito ao ensino de qualidade pertencem a um ou mais dos segmentos sociais explicitados, a seguir: raça/ etnia negra ou indígena; região de nascimento Norte, Nordeste ou Centro-Oeste; pessoas provenientes de famílias que tiveram poucas oportunidades econômicas ou educacionais (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 1996).16 Dados exatos sobre os perfis dos alunos das turmas e as origens familiares, sociais e econômicas deles não foram coletados. Por profissionais da instituição, participantes na pesquisa, foi informado que, ao lado dos dados da ficha de matricula dos alunos, que contem algumas informações gerais sobre por exemplo local de moradia dos alunos e profissão dos pais, somente o Serviço de Orientação Educacional possua em alguns casos mais informação sobre a origem e a situação familiar, social e econômico dos alunos. Porem, esses dados são considerados confidenciais e não foram passadas pela pesquisadora. A pesquisadora também não consegui acesso aos dados de matricula.
54
‘Etnografia e Exclusão: Aspectos Psicossociais da Inclusão Escolar’, onde esta
pesquisa foi realizada, mostra como pode ser difícil de conseguir permissão para
executar uma pesquisa dentro de um contexto de educação formal. Isso resultou
no fato que sobrou menos tempo ainda para a realização do trabalho.
Como todos os projetos, ele também tem um prazo que precisa ser cumprido.
Assim, o limite de tempo, então, deve ser considerado como um dos limites
desta pesquisa. Foi por esta razão que se fala de uma aproximação à pesquisa
etnográfica; uma verdadeira pesquisa etnográfica exigiria mais tempo de
presença no campo. A etnografia é caracterizada por pesquisa intensiva, de
longa duração. Uma pesquisa etnográfica demanda longos períodos no campo,
longos períodos de observação e tempo para poder refletir sobre os dados com
os participantes (MATTOS, 2006).
Uma terceira limitação, que já foi mencionada na seção 3.1.1, é que, como a
pesquisa é uma pesquisa de escala pequena, não se pode generalizar as
conclusões e aplicá-las em outros contextos. Com base nesta pesquisa não
pode fazer depoimentos sobre ‘dinâmicas de inclusão’ em instituições
educacionais em geral. Esta pesquisa só permite formular análises que se
referem à micro realidade estudada. Espera-se, porém que essas análises
possam oferecer um entendimento de como os processos e as dinâmicas de
inclusão podem funcionar. Esse entendimento poderia ajudar a compreender
questões parecidas também em outros contextos.
55
4 ANÁLISE E RESULTADOS
Depois do cruzamento dos dados e a análise das práticas discursivas dos
profissionais e alunos da instituição, surgiram as categorias que foram
consideradas como principais para entender as dinâmicas de inclusão na
instituição. As duas categorias principais identificadas são: poder e o outro.
Poder é aqui entendido como a força exercida e distribuída em relação à
participação na instituição em discursos, políticas e práticas; é reconhecida uma
relação entre o saber e poder (FOUCAULT, 1987a, 1987b).
O outro é aqui entendido como categoria social, socialmente construída com
base em informações concretas ou suposições em relação à origem de um
indivíduo. O uso dessa categoria muitas vezes acompanha um pensar em
categorias opostas ‘nós’ e ‘eles’. Neste caso o ‘outro’ é o indivíduo que não faz
parte do ‘nós’, o indivíduo que possivelmente é incluído no contexto onde ‘nós’
domina.
Como subcategorias relacionadas à categoria poder foram identificadas:
hierarquia, autonomia e liberdade. Como subcategorias relacionadas à categoria
o outro foram identificados: lugar de moradia, cultura, classe social/ situação
financeira, contexto familiar (nível educacional dos pais; profissão dos pais;
incentivo dos pais para estudar) e cor da pele.
56
Categorias principais Sub-categoriasPoder Hierarquia
AutonomiaLiberdade
O Outro Espaço físico (lugar moradia, lugar na sala de aula)
CulturaClasse social/ situação financeira
Contexto familiar (nível educacional dos pais; profissão dos pais;
incentivo dos pais para estudar)Cor da pele
Para análise das práticas discursivas dos profissionais em torno das
mudanças que a abertura de acesso através de sorteio trouxe, dividiu-se a
discussão em cinco seções.
Na primeira seção ‘Uma escola para todos?’, se discute o processo de
democratização do acesso ao CAp através das falas dos profissionais
participantes. Na segunda seção ‘O conceito CAp’, discute-se as idéias atrás
do CAp como instituição. Na terceira seção ‘Dinâmicas de inclusão’, se
aborda as mudanças que a democratização trouxe para a prática pedagógica
dos profissionais, segundo os profissionais participantes. Na quarta seção ‘Na
busca de outras formas: diversidade e a prática pedagógica do professor’, são
discutidos os desafios, as estratégias e as dificuldades que encontrou-se nas
práticas discursivas dos profissionais. Na quinta seção, ‘CAp no paÍs das
maravilhas?’, são abordados de que maneira os profissionais refletem sobre o
papel da escola em relação à inclusão. Finalmente, na última seção se reflete
57
sobre as tensões em relação a inclusão observadas no CAp enfocando na
política de jubilamento.
Para ilustrar as análises, partes dos textos dos documentos estudados e
fragmentos das transcrições das conversas e entrevistas realizadas são
incluídos no texto na forma de vinhetas. Nas vinhetas são usados os
seguintes símbolos:
(..) corte da fala do participante de parte que não contribui para o entendimento do argumento expressado pelo participante, uma frase com algumas palavras.
(...) corte na fala do participante que não contribui para o entendimento do argumento expressado pelo participante, mais do que uma frase.
(-) corte na parte da conversa, falas do participante e da pesquisadora, da parte que não contribui para entendimento do argumento expressado pelo participante.
[texto em itálico] comentário adicionado pela pesquisadora para esclarecer a fala do participante.
( ) parte de fala não transcrita
Com o objetivo de preservar a identidade dos profissionais, como já mencionado
anteriormente, nas vinhetas referências às matérias ensinadas são tiradas. Os
números citados no final do parágrafo da vinheta servem de identificação para a
pesquisadora do lugar das falas na transcrição e/ ou da data das conversas e
das entrevistas.
58
4.1 Uma escola para todos?
Nesta seção é discutido o processo de democratização do acesso e são
mostrados como os profissionais refletem sobre a (história das) mudanças da
política de acesso.
4.1.1 Políticas de democratização
Na década de oitenta iniciou-se no CAp uma discussão em torno das políticas
de acesso. E a partir dos anos noventa, novas formas de acesso mudaram o
perfil da instituição.
Atualmente existem no CAp oficialmente três momentos de entrada; no primeiro
ano do ensino fundamental, na quinta série do ensino fundamental e no primeiro
ano do ensino médio.
Entre 1948 e 1998, o acesso à escola realizou-se através de exames de
seleção. Os parâmetros para esses processos seletivos definiam limites de
idade, notas mínimas para aprovação e conteúdos programáticos específicos
para os exames. O ingresso na instituição acontecia com base no mérito.
Como vários profissionais participantes da pesquisa confirmarão, isso significou
na prática que, no caso do ingresso no primeiro ano do ensino fundamental,
somente alunos que tinham feito um cursinho antes de fazer a prova
conseguiam entrar na instituição. Na quinta série do ensino fundamental e no
59
primeiro ano do ensino médio quase somente entravam crianças e jovens que
saíam de boas escolas particulares, ou crianças que conseguiam se preparar
para a prova fazendo um curso particular de preparação.
Segundo documentos oficiais da instituição e a fala de vários participantes da
pesquisa, uma das características da escola é a gestão democrática. Assim, as
mudanças nas políticas de acesso foram amplamente debatidas durante vários
anos.
Em 1998 surgiu um debate em uma plenária pedagógica onde o tema sobre a
democratização do acesso para o ensino fundamental foi levantado. Segundo
P1 (conversa, 10/11/2005), essa discussão foi levantada pela nova direção que
entrou naquele ano.
A proposta de abrir o acesso a primeira série do ensino fundamental através de
sorteio ganhou a votação, mas, depois de um ano de experiência, chegou-se à
conclusão que as diferenças dos níveis de alfabetização dos alunos, que
entravam na primeira série era muito grande, foi decidido, então, criar uma
classe de alfabetização. A partir daí, acontece o sorteio público para o ingresso
na classe de alfabetização do CAp.
No mesmo ano, também foi decidido fazer sorteio de vagas para ingresso na
quinta série do ensino fundamental. Na quinta série as turmas são maiores
(aproximadamente 30 alunos cada turma) do que as turmas da quarta série
(aproximadamente 25 alunos cada turma). Assim, a cada ano sobram,
aproximadamente, cinco vagas em cada turma. Desde o ano de 1998, essas
vagas também são sorteadas.
60
No entanto, para ingressar no primeiro ano do ensino médio foi mantida uma
prova de seleção. Até hoje, para ingressar nessa série existe uma forma híbrida
de seleção: uma prova, onde o aluno precisa acertar a metade das questões, e
depois uma seleção através de sorteio.
Essas decisões têm uma história, mediante as práticas discursivas dos
profissionais participantes ela é retratada na próxima seção.
4.1.2 Discussão, democratização e desespero total
Como refletem os profissionais sobre as decisões em torno da política de
acesso? O que, segundo eles, significou a mudança de política de acesso para o
perfil da instituição e seu público?
Conversando com os profissionais da instituição, entendeu-se que na época da
votação dos prós e contras sobre a entrada de alunos através de sorteio, a
maioria dos profissionais votou pró, ou seja, o acesso através de sorteio público
na classe de alfabetização. Porem vale ressaltar, que na época também existia
entre os profissionais certa resistência em relação à (partes da política de)
democratização do acesso.
P1 (P1, conversa, 10/11/2005) opina que na época, quando houve votação pela
nova política, muitos professores achavam que o ingresso do novo público
significaria mais mudança para os professores que davam aulas nos primeiros
quatro anos do ensino fundamental. Nessas séries tinha muito profissional que
61
votou contra a política. Segundo P1, os professores da 5ª a 8ª séries sentiam
menos dificuldades com a nova política, porque esses professores dão aula de
uma só matéria para vários grupos. De acordo com P1, nessas séries o contato
com o aluno é menos importante, segundo ele nessas séries é mais a matéria
que está em foco, e segundo P1 “para eles é mais fácil só dar matemática”.
Na argumentação pró, isto é, o acesso através do sorteio, muitos profissionais
se referem ao caráter democrático da escola e o fato da escola ser uma escola
pública. Assim, em uma entrevista por Silva (2006), a atual diretora do CAp
chama a atenção para uma contradição no processo de seleção como existia
antigamente e o fato da escola ser uma escola pública. Ela diz:
“Ela é uma escola que atende a clientela de classe média, média alta, é uma escola que seleciona por mérito, (...) E isso é uma contradição com o papel da escola pública. (...) A escola pública tem que ser uma escola para todos. De que maneira você pega uma escola de qualidade como o CAP e a transforma em uma escola para todos? Num espaço realmente aberto para todos? Não é fazendo prova. Então, optamos por fazer sorteio, por ser a única forma de se realmente democratizar o acesso à escola.” (SILVA, 2006)
P8 é também um profissional que já trabalha há muitos anos na instituição e
estava presente quando as políticas de acesso foram discutidas na época, ele
explica porque é e era na época a favor de ingresso por sorteio:
“Eu sentia a necessidade de se.. já que é uma escola pública, e de você manter um acesso igual a uma escola particular, ou igual ao vestibular né, e que limita muito essas classes populares entrarem no CAp.” (P8, entrevista, 3382)
Apesar de que todos os participantes afirmam sobre a idéia que, em principio, a
decisão de fazer sorteio público para o acesso a classe de alfabetização foi boa,
62
nem todo mundo votou a favor na época. Assim, alguns profissionais criticam a
forma na qual as mudanças foram introduzidas e outros falam de ‘politicagem’
da diretoria na época.
Falando sobre a decisão de fazer sorteio direto para ingresso na classe de
alfabetização, P1 (conversa, 10/11/2005), que trabalhava na época com as
primeiras séries do ensino fundamental na escola, confirma que a nova política
gerou muita polêmica dentro da instituição. Muitos professores, principalmente,
aqueles que trabalhavam com as primeiras séries do ensino fundamental, não
eram a favor da nova política de ingresso através de sorteio, porque eles
sentiam que não estavam preparados para lidar com o ‘novo público’ que a
política ia trazer.
P1 fala das decisões que tiveram que ser tomadas de pressa por causa da
‘politicagem’ do novo diretor que entrou nesse ano. P1, descreve como ele se
sentiu “jogada num buraco”, sem tempo para se preparar para a nova situação:
“Não tinha tempo para preparar nada. Não tinha tempo para estudar um pouco, quem é esse aluno. (...) Ninguém se entendia, era generalizado o caos.”(P1, conversa, 10/11/2005)
P9, que já trabalhava como professor na escola na época e votou a favor de
ingresso através de sorteio, fala sobre as discussões e sobre o ano em que as
políticas foram postas em prática. Ele descreve a resistência que ele sentia entre
os colegas em relação à democratização:
“Foi horrível! Ninguém queria pegar [a turma dos alunos sorteados]. Todo mundo ficou com as mãos na cabeça porque eram turmas de.. antigamente só passava para primeira série lá quem tinha 99,8 ou 99,7 ( ) só esses alunos
63
assim. (...) Ninguém queria pegar essas turmas, era só substituto [professor substituto]. (-) Então, nesse ano foi o desespero total, (..) essa coisa dos professores falarem que era turma horrorosa porque não era aquela turma que todo mundo tira 99,9, 99,8 então tinha essa loucura toda.” (P9, entrevista, 3955-4027)
Apesar da maioria dos profissionais ter votado pro sorteio direto na classe de
alfabetização, entendeu-se que a maioria dos profissionais na época votou
contra sorteio direto na quinta série. Assim, P6 fala:
“...a gente [P6 aqui se refere aos professores e outros profissionais da escola] pensou em fazer uma avaliação, (..) é não de ser assim, e ... sorteio direto. Assim, como é para o 1º ano do ensino médio. Existia uma maioria que optou por fazer uma prova de português e de matemática. Não aquela prova arrasadora, não. Uma prova assim, para medir o nível básico. (-) ..mas isso, depois assim, e... foi rediscutido em outras instâncias fora daqui e acabou-se optando.. acabou-se optando pelo não... pela não feitura dessas provas.”. (P6, entrevista, 2512-2550)
Neste fragmento, foi observado de novo como existia entre os profissionais na
época resistência em relação a partes da política de democratização do acesso.
Na conversa P6 questiona a decisão (que, segundo ele, a final foi tomada por
“outras instâncias”) de fazer sorteio direto para a quinta série e manter a prova
de nivelamento para acesso no primeiro ano do ensino médio.
Nas conversas foram observadas que ainda existem resistências e dúvidas entre
os profissionais em relação à, especificamente, essa decisão. Vários
profissionais questionam se é bom que os alunos entrem na quinta série sem
medir de nenhuma forma a ‘base educacional’ deles. Essa observação será
discutida mais na frente neste capitulo.
64
4.1.3 Poder de fogo
Nas análises das falas dos profissionais a respeito da democratização de acesso
no CAp percebe-se a existência de uma hierarquia dentro da instituição. Uma
hierarquia que teve influência na maneira como as decisões a respeito das
políticas foram tomadas.
Apesar de que teve “milhões de reuniões” e discussões a respeito da
democratização do acesso para as quais todos os profissionais da instituição
foram convidados, ao final, como diz P6, algumas decisões foram tomadas por
“outras instâncias”. P6 menciona, que a maioria dos profissionais da escola
votou por manter a prova de nivelamento para a quinta série, entretanto a
decisão final do Conselho Pedagógico e Conselho do Centro foi contraria a eles,
e optou-se pelo sorteio direto das vagas:
“..foi assim uma discussão em torno de.., e.. quem tem o poder de fogo? (-) ..a decisão do.. dessa Plenária Pedagógica tem que ser respeitada, ou aqui isso pode ser rediscutido? Ainda tem assim, uma confusão em relação a isso, (..) tem uma confusão que eu digo assim em relação a esse espaço da Plenária Pedagógica e do, Conselho Pedagógico. Que essa decisão foi da Plenária, e a mudança foi no Conselho Pedagógico e depois no Conselho do Centro, né. Do CFCH.”(P6, entrevista, 2638-2648)
Pelo que se entende, existem vários níveis pelos quais as discussões e decisões
passam, alguns níveis com mais “poder de fogo” do que outros. Conclui-se que,
mesmo nessa instituição, que se caracteriza como ‘democrática’, existem
relações de poder que ao final pesam na formação de políticas.
65
Entende-se que ainda existem resistências e críticas em relação à partes da
política de democratização sobre todo o acesso à quinta série através de sorteio.
Nas falas que expressavam resistências encontram-se críticas em relação ao
nível da direção da instituição. Parece que alguns profissionais se sentiram
‘ultrapassados’.
Verificou-se que a decisão política foi tomada supostamente por vias
‘democráticas’, mas que no final os professores tinham que se virar sozinhos na
nova situação na prática do dia-a-dia da sala de aula. Foram vistas como o
debate em torno das políticas de acesso trouxe consigo uma discussão sobre o
perfil da instituição e seu público.
Na próxima seção é vista como, a instituição é representada nos documentos
oficiais e nas falas dos profissionais, e como dentro dessa prática discursiva
referências são feitas as mudanças que a democratização do acesso trouxe.
4.2 O conceito CAp
Nesta seção é discutida como a instituição é representada nos documentos
oficiais e nas falas dos profissionais.
66
4.2.1 Tradição que faz a diferença
O CAp é considerada uma escola pública de reconhecida reputação e também
os documentos oficiais relatam isso, até os dias atuais. O CAp vem se
caracterizando como uma escola singular e diferente. Essa ´singularidade´
existe, segundo a voz oficial da escola e vários profissionais, no trabalho
pedagógico; no caráter democrático; no nível alto e no público da instituição.
Essas quatro características são discutidas, a seguir, fazendo referência às falas
dos profissionais.
4.2.1.1. Disciplina e organização para autonomia e
liberdade
Como descrito em documento oficial (documento 2), o trabalho pedagógico se
encontra alicerçado em três pilares básicos: “a transmissão de cultura geral, com
ênfase na formação humanística; a utilização de metodologia ativa e uma carga
horária semanal ampliada, através da incorporação de novas práticas
educativas”.
A pesar de que são reconhecidos esses três pilares nas falas dos profissionais
em relação ao trabalho pedagógico, observam-se outros temas que pareciam
ser de grande importância para os profissionais. Foi identificado que os
67
conceitos “liberdade” e “autonomia” do aluno tomaram um lugar importante nas
falas sobre o trabalho pedagógico. Esses conceitos, muitas vezes, foram
mencionados em relação ao caráter “democrático” da escola. Esses elementos
poderiam ser associados a uma prática pedagógica de caráter mais moderno.
Por outro lado, percebeu-se nas conversas, também referências à abordagens
pedagógicas mais tradicionais. Assim, os profissionais se referiram muito a
importância que os professores e a direção dão à organização e à disciplina em
relação ao trabalho escolar. Vários alunos confirmaram essa idéia em conversas
com a pesquisadora; alguns deles expressavam que na verdade, eles achavam
que a escola e os profissionais eram ‘rígidos demais’. Ligadas a essas
abordagens mais tradicionais, também, percebeu-se a importância que, tanto os
profissionais como os alunos, dão a nota. Esses elementos mais tradicionais são
associados a uma pedagogia orientada para uma visão cartesiana em relação a
educar e aprender.
Na fala citada, a seguir, onde o profissional P4 relata sobre uma conversa que
teve com um aluno que entrou recentemente na quinta série, ficaram bem claros
os diferentes elementos, tanto os tradicionais como os modernos, do perfil da
escola que ele identifica. Ele fala de elementos ligados aos conceitos de
disciplina e organização como: “horário de estudos”, “hábitos de estudos”,
“atitudes e cuidados com os materiais”, “tarefas”, “prazo”, “deveres” e “os
cadernos”. Ele também fala do caráter moderno caracterizado por “liberdade”
que o aluno tem.
68
“...alunos que entraram aqui na 5ª série, (..) quando chegam aqui eles encontram uma, entre aspas, liberdade né? e aí eu conversando com ele [o aluno] “..eu gostaria de pontuar aonde é que está a sua dificuldade?”. E aí começamos a conversar e eu fui conduzindo a partir de trocas né? ..de.. de.. de.. de fatos né, e comportamentos, a partir da organização, né, do compromisso, da responsabilidade e aí ele viu que, né, ele concluiu que realmente, o que poderia estar acontecendo seria justamente isso.. Essa liberdade, entre aspas, ne.. que ele não está sabendo lidar. E ele, então, está se perdendo, está se perdendo por que? Porque ele não está conseguindo se organizar a partir de horário de estudos, hábitos de estudos, (..) a anotação da solicitação das tarefas, o prazo. (..) os deveres. (..) no caso os cadernos né. (..) O material dele. Inclusive no próprio COC [conselho de classe] foi solicitado que, ahm.., o trabalho de orientação atuasse porque ele estava muito desorganizado.” (P4, entrevista, 89-127)
Quando se analisa a fala de P4 citada acima, pode-se ver como esse
profissional acredita que o caráter da escola, caracterizado por liberdade (“entre
aspas”), pede “responsabilidade” e “compromisso” dos alunos em relação aos
vários atos que ela relaciona quanto à organização e disciplina. Em outras
palavras: segundo P4, a liberdade traz consigo o compromisso e a
responsabilidade de se organizar, ser disciplinado.
De acordo com P4, por isso os alunos precisam aprender a lidar com essa
“liberdade” que a escola oferece. O aluno precisaria “se organizar” para dar
conta. Ele especifica essa organização com várias palavras que se pode
associar a uma visão cartesiana de aprender, como: “horário de estudos”,
“hábitos de estudos”, “anotação das tarefas”, “prazo”, “deveres”, “os cadernos” e
“o material”. A aprendizagem, segundo P4, está no saber lidar com essa
liberdade, ou como ele diz mais tarde “esse limite né, na parte da disciplina e da
organização.”. Resumindo, segundo P4, os alunos precisariam aprender “o limite
da liberdade”.
69
P4 observa que os alunos que entram depois no CAp, como, os alunos que
ingressam somente na quinta série, experimentam mais dificuldades em relação
a essas ‘aprendizagens’, ele diz:
“Eu... assim, eu vejo que.., os alunos que já entraram aqui desde o CA, tem menos dificuldade é.. é.. é.. é.. de lidar com essa liberdade, porque eles já estão acostumados. Não se.., não se encantaram com essa liberdade que eu estou falando.” (P4, entrevista, 147-149)
P5, também menciona a importância que é dada na escola para que o aluno
aprenda “o hábito de estudo” e a “disciplina”. Ele diz:
“..o objetivo além dos conteúdos né, de trabalhar essas questões, a gente tem que e.. criar o hábito de estudo neles, a gente tem que trabalhar a disciplina, né. Principalmente, o hábito de estudo. Então, tem que ter aquela coisa de ficar controlando caderno, controlando se trouxe material. (-) E eu perco muito tempo com essas coisas, está entendendo? E, e.. eu.. além de tudo eu já tenho um horário que já é ingrato...” (P5, entrevista, 1751-1759)
Analisando a fala desse profissional e o uso repetido da expressão “a gente tem
que...”, verifica-se que P4 não participou na definição das metas de
aprendizagem mencionadas acima.
Analisando a fala de P5, parece que a importância de trabalhar a “disciplina” e o
“hábito de estudo”, segundo ele, foram definidos de cima para baixo como um
dos objetivos de aprendizagem para os alunos da quinta série. Aqui se pode
perguntar se os profissionais recebem a tarefa de ensinar essas ´posturas´ aos
alunos, concordando ou não, ou se eles participam na definição desses
objetivos. Parece que P5 não trabalha essas posturas com base na própria
vontade. Ele menciona “elas” em uma seqüência de coisas sobre a qual ele não
70
está contente, inclusive ele expressa como, também, parece que o papel dele
como professor que ´controla´ está definido de cima para baixo.
A análise das falas desses profissionais parece indicar a existência de uma certa
hierarquia dentro da instituição, uma hierarquia que parece influenciar (o refletir
sobre) a prática pedagógica dos profissionais. São vistas como as metas
pedagógicas possivelmente definidas de cima para baixo, se enquadram muito
bem em um perfil de uma escola tradicional onde existe uma visão cartesiana de
aprender, uma visão que em si acompanha uma cultura escolar caracterizada
por hierarquia. Essas observações refletem uma das categorias principais: o
poder.
Interessante é o fato que nas falas dos alunos não foram notadas referências à
categoria liberdade. Pelo contrário, vários alunos se referiram ao caráter mais
tradicional da escola, ao caráter “rígido” e a importância da nota. Voltadas às
abordagens mais tradicionais percebeu-se a importância que tanto os
profissionais como os alunos, dão a nota. Essa observação é discutida na
próxima seção.
4.2.1.2 Gestão, participação e autonomia
Segundo os documentos oficiais e as falas de vários profissionais participantes,
o CAp se caracteriza por ser uma escola ´democrática´.
71
Segundo a atual diretora, esse caráter democrático existe principalmente na
forma de gestão. Assim ela diz em uma entrevista por Silva:
“O diferencial do CAp é basicamente a forma de gestão. É um colégio em que o planejamento é um planejamento coletivo (...) ..eu acho que esse é o diferencial. As discussões interdisciplinares, de integração, são feitas em reuniões abertas, coletivas.” (SILVA, 2006)
Referindo-se ao objetivo atrás do caráter democrático a diretora fala: “mais do
que o respeito às decisões, é perceber que somos um grupo que está lá para
gerir a escola, para apresentar suas propostas.” (SILVA, 2006).
Vários outros profissionais também se referem à importância que é dada na
instituição à participação nas discussões sobre políticas e práticas na escola.
Assim, P9 fala:
“É muito interessante é uma escola bem democrática tudo é resolvido em conjunto, milhões de reuniões... tudo em milhões de reuniões para poder decidir, sabe?” (P9, entrevista, 3927)
Participação nas discussões também é esperada dos alunos, assim a atual
diretora explica na entrevista por Silva:
“O CAP oferece espaço para que os alunos se auto-organizem e isso é uma coisa que queremos reforçar porque para a direção da escola essa participação compromete o aluno com as deliberações, com a escola, com a manutenção, com a existência da escola, com a coisa pública, com o papel da escola.” (SILVA, 2006)
Neste fragmento observou-se como a diretora explica que ela acha a
participação dos alunos em forma de auto-organização positiva. Ela argumenta
que essa auto-organização “compromete” o aluno com a escola. Interessante
72
neste comentário é que, ao mesmo tempo, que a diretora fala de uma
participação democrática, ela não fala dos alunos como iguais: em vez de deixar
isso para os alunos, é ela que define o objetivo da participação dos alunos;
“comprometer” eles com a escola.
Outros profissionais também falam sobre a participação dos alunos. Assim, P5
diz:
“é uma escola.. (..) que tem tradição (..) de ter essa coisa de prezar a autonomia do aluno. O aluno tem voz aqui, ele interfere diretamente no espaço, assim né, decidindo as regras, negociando. Ele faz parte do.., tudo passa, ele não é só, não recebe as coisas prontas né.”
(P5, entrevista, 1563-1565)
P7 menciona que ele acha que às vezes os alunos abusam um pouco o caráter
democrático que a escola tem. Ele coloca a fala dele no contexto do CAp e
também no contexto da época atual:
“Em alguns momentos, eles [os alunos] extrapolam um pouco essa idéia de democratização né, mas.. Mas, eu acho que isso é uma tendência atual e não, não só aqui na, na escola que tem essa política como em todas. Porque é uma evolução. Foi, há tempos atrás, os professores eram mais rígidos, a escola era um lugar de regras né, que jamais poderiam ser quebradas e se você fazia isso eram punições fortes, os alunos temiam. (...) Então, digamos assim, às vezes se, se eu falo “se vocês não terminarem esse exercício agora...” quando eles estão falando muito, “..vocês vão ter que fazer no recreio”, aí vem um, alguém e fala, “[você] não pode deixar a gente sem recreio porque a gente pode chamar um advogado”, então tem essas falas. Então, tem.. tem um momento que eles perdem um pouco a noção do que é democracia para eles né. Então e, eu acho que é perigoso nesse ponto, mas que é bom porque eles pegam maturidade importante cedo né. Ficam mais politizados. Essa.. isso de escrever em jornal eu acho legal, deles terem voz na escola, eu acho bom.”(P7, entrevista, 3081-3105)
Alguns participantes falam de democracia em relação à autonomia e liberdade
que os alunos têm na escola. Vê-se como P4 faz uma ligação entre os
73
elementos mais tradicionais do perfil da escola como mencionados em seção
4.2.1.1. e o caráter democrático que a escola tem segundo ele. É visto como ele
explica o perfil democrático referindo à “autonomia de decisão” dos alunos:
“..é uma escola com um cunho, com um perfil democrático, né?.. Democrático. E passa isso mesmo. Que.. que o aluno tenha essa autonomia de decisão, iniciativa, de crítica, de reivindicações, né? É um espaço que eles aprendem, agora essa.. essa.. essa.. essa construção.. essa construção dessa autonomia, ela é, eeeh, trabalhosa e tem que ser trabalhada né.. tem que ser percebida né, alicerçada. Então, nem sempre o aluno tem essa percepção tão cedo. Né.”(P4, entrevista, 133-145)
Neste fragmento chama atenção primeiramente o fato que P4 fala do perfil da
escola como se fosse uma característica fixa: a escola tem um perfil
democrático, o qual já existe e não um perfil que está sendo formado junto com
os atores dentro da instituição. Existe um perfil, no caso democrático, e para
manter esse perfil os atores precisam ser ´trabalhados´ para terem as posturas
certas, os alunos teriam que aprender a “construir a autonomia”.
Parece que a idéia do que, exatamente, significa o conceito democracia no
contexto do CAp não está muito claro. A instituição é democrática, a instituição
quer ser democrática ou a instituição quer ensinar como praticar a democracia?
Durante as observações na sala de aula notou-se uma participação de alguns
alunos. Claramente não existia uma participação de todos os alunos, e também
não foram observados que os profissionais fizeram esforço para isso. Chamou
atenção que na grande maioria das vezes foram os mesmos alunos que
interferiram – interrompendo ou contribuindo - na fala do professor. Foram
também esses alunos que representavam as turmas no conselho de classe.
74
4.2.1.3 Excelência pré-definida
Vários profissionais e alunos falaram do “nível alto” da instituição. Alguns
falaram do nível alto se referindo aos conteúdos oferecidos na escola, outros
falaram de um nível alto de cobrança, e outros ainda abordaram a respeito dos
níveis altos dos desempenhos acadêmicos dos alunos e outros mais se
referiram ao nível alto que a escola obteve nas comparações das estatísticas
nacionais de ensino.
“o grau de cobrança aqui, a exigência né, deve ser maior mesmo. (-) (..) tem que estudar..., se eles estudam aí eu não sei, mas tem que estudar mais para poder tirar uma nota boa..” (P4, entrevista, 189)
“.. o colégio tem.. ..os conteúdos né, que são realmente assim, sabe, nivelados muito altos porque realmente é um, um colégio de, de, de destaque né. de absoluto reconhecimento né. Pelo que ele oferece.” (P4, entrevista, 467-473)
“o nível aqui do trabalho aqui é muito alto, entendeu. É uma escola que realmente bomba, você vê aí nessas avaliações e tal, o CAp está sempre sendo eleito como uma das melhores né? Então, o nível é muito alto.”(P5, entrevista, 1611-1613)
Mais para frente P5 comparou as escolas públicas municipais e estaduais com a
“escola pública de excelência” que é o CAp e disse:
“Eu acho que assim, talvez alguns não, não saibam o que é essa escola. (...) Mas é que o CAp é uma escola pública e uma escola de excelência. Né. Então, tem uns alunos que não.. não.. sei lá, ou não sabem, ou não estão nem aí, entendeu. Então, acho que os pais às vezes.. mas tem.. tem muitos pais que sofrem por causa disso. Porque sabem que.. que isso aqui.. mas os filhos. Não sei se a questão da idade também.., porque adolescente não entende né, dependendo. Aí depo.., depois, mais para frente, vai se arrepender, falar “nossa que oportunidade que eu joguei no lixo!” Né.”(P5, entrevista, 1974-1986)
75
Neste comentário de P5 observa-se como ele comentou que a escola “é uma
escola pública de excelência”, como se a excelência fosse uma característica
fixa da escola e não um valor que a escola ganhe pelos ´atos´ realizados nela
pelos seus atores. Verifica-se como, neste caso, a escola não é considerada
como uma entidade dinâmica, mas como uma entidade com caráter fixo, já
definido previamente. Essa idéia se confirma com o comentário “tem uns alunos
que (..) ou não sabem, ou não estão nem aí”. Aqui, então, pergunta-se; não são
também os alunos, trabalhando junto com os professores e outros profissionais
da instituição, que produzem trabalho de uma certa qualidade que por ventura
pode ser caracterizado como ´excelente´?
A mesma coisa acontece quando os profissionais falam do alto nível dos
conteúdos que a escola oferece: independente do público a escola já “tem” um
conteúdo pré-definido.
Nas falas dos alunos também se percebe a presença do conceito de excelência.
Os alunos se referem a esse conceito quando eles expressam que eles tiveram
“sorte” de ter conseguido entrar no CAp. Nessas falas eles comparam o CAp
com escolas anteriores ou escolas que são freqüentadas por amigos, amigas ou
irmãos. Vários alunos também falam do “nível alto” da instituição. Quando a
pesquisadora pergunta o que eles acham de ter entrado nessa escola, vários
alunos se referem a “sorte” que eles tiveram de ter entrado nessa escola “boa”:
“eu acho muito bom porque foi um milagre, assim, porque todo mundo da família gostou e eu gostei muito, sabe, daqui. Essa escola, eu acho, que é uma das melhores do Brasil, então isso foi, sei lá.. foi muito bom.”
76
(A9, entrevista, 178)
“Eu acho muito bom porque tanta gente querendo e... (..) eu podendo entrar aqui.” (A5, entrevista, 385)
“..eu acho que a gente tem que aproveitar porque somos muito poucos que conseguimos, então a gente tem que aproveitar o máximo para se esforçar e para aprender porque outras crianças em outros colégios vivem se esforçando, mas não vão conseguir porque não tem um bom ensino, bons professores, então eu acho que a gente aqui, a gente tem a obrigação de se esforçar para conseguir boas notas, passar de ano..”(A11, entrevista, 826)
“Sorte. Porque muita gente que tenta e não consegue. Minha mãe escreveu quatro pessoas. Só eu que entrei. Eu me sinto feliz por ter entrado numa escola boa ( ) É... (-) ..os professores dão... aula, e não são aqueles professores que dá aula e pára. Eles dão aula e explicam uma vez, duas vezes, os outros só dão um e sai; acabam.” (A3, entrevista, 1229-1261)
“Eu acho que assim, é melhor para o meu aprendi.. aprendizado, hã... que assim, que eu tenho mais chances de quando crescer, arranjar um emprego bem melhor.. e outras coisinhas..” (A6, entrevista, 1470)
Verifica-se nas citações acima, como esses alunos são informados que o CAp é
uma escola boa e “melhor” que outras. Os alunos se referem a “sorte” que eles
tiveram de poder estudar nessa escola dizendo que muitas pessoas gostariam
de estudar nela. Alguns expressaram que, por isso, eles tinham mais
responsabilidade de suceder, se esforçar e “tirar notas boas”.
Com base na análise das falas dos alunos conclui-se que muitas das idéias
refletidas acima são influenciadas pela fala dos pais ou outros familiares e
pessoas próximas à família:
“Pesquisadora: E o que que seus pais acham? A6: Bom, porque eu vou ter mais.. oportunidade de ser alguém na vida (ele fala de um jeito como se alguém já falou isso muitas vezes para ele), que certo... que isso é um colégio bom, que eu aprendo mais rápido e barãrã… conforme minha dificuldade.., mas aprende isso e aquilo um monte de coisa e blábláblá... (risos) Pesquisadora: Ahã.. Blábláblá. Que que isso?
77
A6: Ah, umas coisinhas.. umas coisinhas, umas palavrinhas que minha mãe vive falando.. Pesquisadora: O que ela fala por exemplo?A6: Fala que eu tenho que estudar direito porque esse colégio (..) é muito difícil de se.. de se conseguir, quando consegue é de dar graças a Deus, e essas coisinhas assim... ah, sei lá.” (A6, entrevista, 1480-1476)
“Pesquisadora: E o que seus pais acham? A14: É… ah, eles... eles ficaram orgulhosos. To estudando numa escola boa. E.. eles não estudaram também numa escola boa não. Minha... Minha vizinha fala, também. Ela fala, assim: “você está numa escola muito boa, tu tem que estudar!”.(A14, entrevista, 1778-2079)
“Pesquisadora: E o que seus pais acham? A13: Ele acha que essa escola é muito boa e ele fala assim “se você repetir o ano você vai ficar com a consciência mais forte porque não vai gostar de ficar repetindo porque vai todo mundo te sacanear, sua escola é muito boa para você e você tem que aproveitar!” E minha tia fala a mesma coisa.” (A13, entrevista, 2299)
Em relação ao discurso sobre o ´alto nível´ da escola, percebe-se na escola uma
presença forte do conceito de nota. Como foi mencionado na seção anterior,
tanto os profissionais como os alunos se referiram muito a nota. Sem excepção
em todas as aulas observadas a nota foi também mencionada. Algumas vezes a
nota da última prova foi divulgada, às vezes a nota foi mencionada para chamar
a atenção dos alunos como ameaça (“se vocês não prestam atenção, vocês vão
tirar uma nota ruim na prova!”, “se vocês não param agora eu vou dar nota zero
para todos vocês!”). Nas entrevistas a nota apareceu nas falas como maneira
para identificar alunos ‘bons’ e alunos ‘ruins’. Assim, por exemplo, na fala de P4
no seguinte fragmento:
“..o que eu pude perceber (..) foi o seguinte, quando era o concurso que.. que acontecia, passavam os bons. Então chegavam aqui alunos que, para passar, para tirar notas altas.. são alunos que estudam muito. Então, eu acredito, isso (não) é uma conclusão minha, eu acredito que as dificuldades [dos professores] deviam ser diferentes. Não sei quais né.. Porque nem, nem, nem me informei, não pesquisei sobre isso. A partir de um momento que você faz a partir de um sorteio, você vai ter alunos de 5 a 10, ou de 10 a 4. (-) A gente
78
não vai quantificar o aluno. Então, a gente pode falar você vai ter alunos de A a.., a D. Alunos que gostam de estudar, mas alunos que a mãe obrigou, tipo assim, “não,eu vou, eeh.. colocar você no sorteio porque eu quero que você estude num colégio muito bom”. E de repente, aquele aluno veio para cá, mas está tropeçando porque, de repente, ele não é um menino aplicado, ele não é estudioso, ele gosta de repente de, sei lá.. levar na brincadeira, sem muito compromisso né, então quer dizer, agora está mesclado. Está mesclado porque aí ele [o professor] vai ter que.., que ter um, um, uma visão muito mais ampla. Da mesma forma, ele vai ter alunos de 10, 9 e 8, ele também vai ter aluno de 4, 2 e 3. Né, então, o trabalho dele vai ser, uhhh, mais do que dobrado, né.. (-) (..) Quer dizer é.. é.. essa inclusão no caso né. Porque também é muito fácil eu chegar e dar aula só para alunos que tiram 8, 9 e10.” (P4, entrevista, 423-457)
Vários alunos se referem à nota quando a pesquisadora pergunta como eles
estão indo à escola. Muitos deles expressaram também ter medo de receber as
notas. Parece que a nota é uma coisa temida para alguns. Um aluno ou outro
nem quer falar a respeito.
“Eu acho que a gente aqui, a gente tem a obrigação de se esforçar para conseguir boas notas, passar de ano.. eu me esforço bastante eu faço bem os trabalhos, eu adoro trabalho em grupo então eu sempre ajudo quem eu posso nos grupos, mas às vezes eu faço bagunça na aula como qualquer outra criança e eu já perdi muitos pontos por causa disso, não é certo e eu tento me controlar o máximo, mas eu costumo sempre fazer os deveres tirar notas boas eu estudo e sei dividir bastante o tempo entre as atividades assim mais brincadeira e no colégio, porém eu faço muita bagunça.” (A11, entrevista, 826-942)
“Eu fico com muito medo de tirar uma nota muito ruim. Eu nunca tinha tirado nota ruim até o ano passado. Esse ano que mudou muita coisa, é, que as minhas notas, em matemática por exemplo, nossa! Eu tenho que recuperar nota que não sei nem quanto. Estou até nervosa, que está difícil..” (A12, entrevista, 1132)
Essa presença importante e a existência do medo para a nota foram constadas
também durante a observação na sala de aula. Percebeu-se como, na hora da
divulgação de notas, isso criou dinâmicas de exclusão de alguns e inclusão de
outros. Alguns alunos se excluíram, literalmente, se escondendo e esconderam
79
a prova corrigida para os outros colegas. Vários alunos admitiram que existem
dinâmicas de exclusão baseadas em notas; segundo eles existem nas turmas
“grupinhos” de “alunos bons”, “alunos médios” e “alunos ruins”.
Foi presenciada uma discussão que surgiu entre um professor e a turma na sala
de aula porque uma lista de notas, que o professor tinha pregado na parede
tinha desaparecido. Em primeira instância o professor ficou bravo e queria saber
onde estava a lista e quem tinha tirado a lista da parede. Aqui ele usou
ameaças, falando que assim ele tinha que dar nota zero para todo mundo.
Surgiu uma discussão na sala de aula até que um aluno explicou que alguns
alunos não gostavam de ter a lista na parede por causa da rivalidade entre
alunos e exclusão de alunos com nota ruim.
Um dos profissionais faz uma crítica sobre a importância que é dada a nota na
instituição. Ele explica como dar nota “é uma regra” dentro da escola, a qual ele
precisa se adaptar contra a própria vontade:
“..a nota é o tempo todo. Tanto que eles fazem trabalho para ganhar a nota, somente para ganhar a nota. (-) Eu acho que o aluno não é só nota, ele é o todo um conjunto, muito mais que nota. Eu acho né, mas atualmente eu me considero um professor muito antigo porque hoje em dia a pessoa tem esse valor pontual da nota, pronto e acabou! (...) Eu dou porque é uma regra, esse negócio de dar a nota.” (P9, entrevista, 3969-3993)
Foi visto como a idéia do CAp como escola de excelência domina de uma certa
forma a experiência dos alunos na escola. Isso acontece tanto de forma positiva
(eles sabem que estudam em uma escola ‘boa’), como de forma negativa (a
pressão social de sucesso, a responsabilidade que alguns alunos sentem de
80
tirar notas boas). Observou-se como o conceito de excelência também cria
dinâmicas de exclusão na instituição.
4.2.1.4 Um público particular
Alguns profissionais, se referindo ao perfil da escola, falam sobre o público típico
da instituição. Nessas falas, muitas vezes os profissionais se referiam ao público
que tradicionalmente freqüentava o CAp. Muitos se referem ao fato que o CAp
era sempre conhecido pelo seu caráter de escola elite. Era também conhecido
como escola de filhos de pais intelectuais e de orientação política de esquerda.
Assim, P5 diz:
“o CAp sempre foi conhecido como escola de elite. Não é uma escola de elite classe A, AA, né, mas de pessoas de classe média para cima né, assim sempre foi uma escola assim... muito difícil de entrar, então..” (P5, entrevista, 1587-1589)
“..o CAp ele, (..) ele já tem um perfil bem tradicional de ser uma escola de vanguarda né, uma escola assim, onde estudava muito.., quer dizer, antes, quando o ingresso era por prova e tal, estudava muito filho de intelectual, funcionário público, mas muita gente assim de esquerda,..”(P5, entrevista, 1651-1569)
Vários profissionais mencionaram que esse caráter elitista não existe mais
depois da pluralização do público que aconteceu depois da abertura do acesso
através de sorteio. Assim, P9 faz uma distinção entre a escola como ele é
atualmente depois da democratização do acesso, e a escola como ele era antes.
Apesar da mudança no público que freqüenta a escola, P9 ainda opina que o
público da escola é diferente do que em outras escolas públicas. A diferença do
81
CAp de agora comparado com outras escolas é, segundo ele, a postura de seus
alunos:
“..é uma escola que tem um público particular (-) A diferença é a postura do aluno diante da vida. (..) O olhar crítico a... a disponibilidade de vida, a... a visão crítica a... uma postura do aluno. (-) uma coisa ampla. (-) ..parece que tem uma coisa do corpo que fala. Eu fico olhando tanto os alunos na hora do recreio.. eu fico.. nossa! Parece.. pode ser sorteio, pode ser... todo mundo fica com a mesma postura, a mesma postura de presença. De ombro assim presente no mundo. Sabe?! Eu acho isso muito bonito.”(P9, entrevista, 4086-4115)
Mais à frente na conversa ele diz:
“Eu acho que o aluno (...), ele tem uma visão, ele entende o que é o mundo, ele entende tudo, ele entende o mundo inteiro como um todo, entendeu? Muito interessante a visão, a visão que os alunos têm (..) do mundo, do mundo do outro. É uma coisa assim, você vê aqueles alunos a mil. (..) Todo mundo parece que esta se querendo.” (P9, entrevista, 4226-4268)
P9 trabalha há cerca de dez anos no CAp, antes de começar a trabalhar no
colégio, ele tinha trabalhado muitos anos em escolas da rede municipal. No
seguinte fragmento ele explicou como, antes da democratização do acesso,
trabalhar no CAp era mais difícil para ele. Ele falou como ele não conseguiu
desenvolver projetos em torno do ´cotidiano´, que ele chama de projetos de
´multiculturalismo´, os quais ele realizou em escolas da rede municipal. Ele
contrasta o público antigo – segundo ele elitista - com o público plural que entrou
na escola depois da democratização do acesso:
“..no colégio, no aplicação, quando eu entrei (...) para trabalhar.. era muito difícil de fazer esse trabalho [ele se refere ao trabalho com o cotidiano do aluno] lá. O aluno não dava assim um retorno era uma coisa meia, o colégio era todo trancado era uma coisa meia, eu ficava meia assustada com esses alunos todos, eu fiquei assustada (...) na época que eu entrei.”(P9, entrevista, 4333)
82
P9 explica que, em uma escola como o CAp, os alunos exigem mais dele como
profissional, e ele como profissional também exige mais dele mesmo:
“..eu jamais estaria fazendo exame [de mestrado] se tivesse trabalhando no município. Entendeu? Então, é uma outra, uma outra (...) esses alunos, esses alunos todos, que entram e não através de sorteio, eles exigem mais de você, né!? (-) Eu não posso nem te falar, mas eu acho que você [como professor] é exigente com você mesmo, entendeu?”(P9, entrevista, 4308-4314)
Os alunos não fizeram referência à mudança de público que aconteceu na
instituição, isso parece lógico considerando que eles, como alunos da quinta
série, não presenciaram a mudança de política de acesso à instituição. Porem,
foi verificado que abordar sobre as diferenças, era um tema importante nas falas
deles, isso é discutido na seção 4.3.1.
4.3 Dinâmicas de inclusão
Nesta seção são discutidas as mudanças que a democratização trouxe para a
prática pedagógica dos profissionais, segundo os profissionais participantes.
4.3.1 A inclusão do “outro”
Conversando com os profissionais sobre a temática da democratização do
acesso, falas em relação ao “outro” tomaram um lugar importante. O “Outro”,
83
segundo analisado nas falas dos profissionais participantes, é aquele aluno que
entrou depois que o acesso à instituição foi democratizado. Interessante é que
nem todos os alunos que entraram depois dessa mudança são identificados
como “outro”. O “outro” pode, segundo a análise nas falas dos profissionais,
sobretudo ser identificado através (a combinação e interação) dos
‘identificadores’, como, lugar de moradia, cultura, classe social/ situação
financeira, contexto familiar (nível educacional e profissão dos pais e incentivo
dos pais para estudar) e cor da pele.
O fragmento de uma conversa citado abaixo mostra como, em dinâmicas entre
profissionais da escola, o “outro” está sendo construído. Na conversa, na qual os
profissionais relatam sobre os dados pessoais que pais de alunos preencham no
momento da matricula, foram analisadas a presença dos identificadores lugar de
moradia e contexto familiar:
“P2 : (...) ..o que está na inscrição desse ano está mais atual, né.. (-) Que aí é o.. é o perfil da turma. Assim, de quantos alunos os pais tem 2º grau.P4: ..onde moram. (..) Que tem alunos que moram na Zona Sul, mas o pai é porteiro. Não é no caso, né... a residência.P2: Isso também.Pesquisadora: Então, quer dizer que os dados da inscrição não dizem tudo não?P2: Não diz tudo. O fato de morar na Zona Sul não diz tudo. (-) A gente inclusive tem gente que mora na Rocinha. (-) E aí diz que.. dependendo.. porque também tem isso, dependendo para que for, eles respondem um.. um.. assim.. “Gávea”.P4: Éeh. “São Conrado”..P2: Aí dependendo da situação, se for para ganhar, aí diz Rocinha.P4: É. É. É. (-)P2: ..entendeu? Aí tem essas.. essas.. pela.. pela, pela profissão a gente vê.P4: É.P2: Aí você mata logo.P4: É.P2: Mas alguns também não deixam muito claro também uma profissão. Aí você também.. porque realmente, é delicado. Para algumas famílias é delicado falar disso.P4: É. É.
84
P2: E aí você até percebe que se a família também tem uma dificuldade de estar falando é porque também é, é, porque também a família sabe o que significa no..P4: No meio.. P2: ..social aquilo, aquela questão. (-) A gente tem essas questões aqui.P4: É. É.P2: E cada família também lida com seus.. é, com as suas questões, vamos dizer assim de,..P4: Preconceito mesmo né.P2: Preconceito. Né? Aí é que, que mora o perigo.P4: É.” (P4 e P2, conversa, 891-963)
Observa-se, que durante a conversa P2 e P4 relativizam a idéia que se pode
identificar o ‘outro’ sabendo o local de moradia da pessoa, vê-se que, quando
isso é concluído, os dois profissionais discutem a possibilidade de um outro
identificador: a profissão dos pais. Entretanto, pouco depois esse identificador é
também descartado porque, segundo os dois profissionais, a informação que os
pais dão no formulário de matrícula nem sempre é verdadeira.
Analisando o fragmento da conversa entre P2 e P4, parece que na verdade,
existe uma dificuldade de identificar o “outro”. Implicitamente, está entendido nas
falas de P2 e P4, que eles acham que “eles” não querem ser identificados como
o “outro”.
Entende-se que esses profissionais opinam que ser identificado como “outro”
pode ser uma questão sensível. Porem, o que chama a atenção no contexto de
esta conversa, é que aqui nenhum dos dois profissionais faz a pergunta porque
esse “outro” não quer ser identificado como “outro”. Por exemplo, se vê P2 dizer:
“Mas alguns também não deixam muito claro também uma profissão. (..) porque
realmente, é delicado. Para algumas famílias é delicado falar disso”. Verifica-se
como P2, com as palavras “..para algumas famílias é delicado falar disso”, cria a
85
idéia que isso é uma questão pessoal, da família. Ele afirma isso quando ele fala
depois: “..cada família também lida com (..) suas questões, vamos dizer assim
de.. (-) preconceito”.
Com esse comentário esse profissional coloca a questão, que alguns pais não
dariam a informação que corresponde com a realidade, como uma questão
pessoal (da família) e não social (tendo relações com dinâmicas de inclusão na
instituição). Nessa conversa, nem P2, nem P4 menciona a possibilidade que
essa ‘atitude’ que alguns pais têm segundo eles, pode ter uma relação com
dinâmicas dentro da instituição, como, por exemplo, dinâmicas influenciadas por
preconceito.
Nessa fala algumas coisas a mais chamam a atenção. Primeiramente chama
atenção, o uso do pronome “eles” quando os profissionais falam sobre certos
alunos que entram na instituição e seus pais. Van Dijk (1997) indica que um
discurso que inclui um pensar em termos das categorias “eles” e “nós” pode
indicar uma idéia da existência de um contexto social em que “nós” domina. No
contexto do CAp entendeu-se que “eles” são os indivíduos que não fazem parte
do “nós”, os indivíduos que possivelmente são incluídos na instituição.
Em segundo lugar chamou a atenção à frase “se for para ganhar, aí diz
Rocinha”. Em primeiro lugar, essa frase expressa explicitamente uma
desconfiança em relação à “eles”: pode ser que eles não falem a verdade. Em
segundo lugar, essa frase aponta para uma crença que ‘eles’ tentam ‘ganhar’
coisas. O uso da palavra ‘ganhar’ indica uma idéia que “eles” tentam conseguir
coisas, as quais eles a priori não teriam direito.
86
No contexto onde essa fala foi ouvida, um contexto educacional, uma escola
como o CAp que tradicionalmente por muitos já está sendo definida como escola
de elite, essas análises ainda ganham um outro sentido. Em uma discussão em
relação à democratização do acesso à essa instituição educacional, esse tipo de
fala indica a existência de um discurso de ‘favores’ e ‘ajuda’ de “nós” a “eles”,
inclusão na instituição de educação de qualidade como favor ao “outro”.
Isso indica que, pode-se entender essa fala como prática discursiva ligada a um
discurso de favores e não um discurso de direitos. Com base nessa conversa,
analisou-se que alguns dos profissionais parecem não pensar em termos de
‘direito à educação de qualidade para todos’, mas em termos de educação de
qualidade como privilégio de alguns e favor a outros.
Neste mesmo fragmento vê-se como P2 e P4 afirmam a idéia que ‘preconceito’
é um problema de “eles”. P2 diz: “cada família também lida com seus.. é, com as
suas questões, vamos dizer assim de,.. (-) preconceito.”. Entendeu-se que nessa
conversa, P2 e P4 não consideram a idéia que preconceito também poderia ser
um fenômeno presente na instituição. E que, exatamente por isso, com medo
para esse preconceito, algumas pessoas preferem omitir certas informações
pessoais.
Vale à pena mencionar que a pesquisadora percebeu um certo medo para
preconceito também nas conversas que se teve com alguns alunos da
instituição; às vezes parecia que alguns alunos, que moram em comunidade de
baixa renda, ou alunos com pais que tiveram pouca educação formal, sentiam
dificuldades de comunicar isso à pesquisadora. Foi sentido, que algumas vezes
87
no decorrer da conversa os alunos se ‘abriram’ e expressavam mais
informações sobre a situação familiar deles.
Em várias conversas com profissionais, foram identificados comentários em
relação ao contexto familiar dos alunos. Nessas falas, às vezes, existe uma
distinção entre os alunos que recebem apoio em casa para estudar e os que não
recebem nenhum apoio em casa para estudar; alunos com pais com educação
formal e alunos com pais que não tiveram educação formal ou que não
conseguiram nenhum diploma de educação formal; e alunos com pais com
empregos reconhecidos socialmente e alunos com pais com empregos de
baixos salários ou não reconhecidos socialmente.
Nas falas dos profissionais, muitas vezes, implicitamente é feita uma relação
entre esses ´fatos´ da origem do aluno, da postura e o sucesso ou fracasso do
aluno na escola, isso também foi observado nas conversas dos conselhos de
classe.
Aqui, se dá um exemplo da mesma conversa com P4, onde ele fala sobre dois
alunos diferentes. Deseja-se ilustrar com este exemplo, como, nas práticas
discursivas, alguns profissionais lidam com as observações em relação ao
desempenho acadêmico, às idéias sobre a situação familiar dos alunos, idéias
que, às vezes, na verdade parecem ser baseadas em preconceitos:
“..ele, (..) está se perdendo, está se perdendo por que? Porque ele não está conseguindo se organizar a partir de horário de estudos, hábitos de estudos, (..) a anotação da solicitação das tarefas, o prazo. (..) os deveres. (..) no caso os cadernos né. (..) O material dele. Inclusive no próprio COC foi solicitado que, ahm.., o trabalho de orientação atuasse porque ele estava muito desorganizado. Então, eu conversei com ele, um menino muito educado, me parece uma família muito bem estruturada, mas que ele estava sentindo essa dificuldade.” (P4, entrevista, 103-117)
88
“Por turma eu acredito que tenha uns três [alunos] no máximo. (..) sabe assim, que mora longe... nessas comunidades né, ditas carentes. Entendeu? Me surpreendi com uma dessas meninas que, tem aquele aspecto de menina assim. Falei “gente!, como é que essa menina passou para cá!” né? Gente! Eu vou vera nota, sabe é.. assim um.. um rendimento bom sabe? (-) Eu acho, assim pelo que eu conversei com ela.. ela mora no Centro da cidade. (..) que são.., aqueles sobrados antigos, não tem nada ali.. de lazer, só comércio né. E são aqueles sobrados sei lá, perigosos, sei lá né. Deve.. eu vejo assim, a menina deve ficar trancada o dia inteiro, a mãe sai para trabalhar e aí essa menina fica, não temcom quem conversar com quem brincar. Eu acho que ela foi crescendo assim, então uma menina sabe, assim bobinha, sabe? E ela já tem corpinho de mocinha, mas assim tão bobinha. Disse: “Gente!” Retardamento não é porque é uma menina que tem né, prova, rendimento.”(P4, entrevista, 1026-1047)
No primeiro fragmento, verifica-se como P4 descreve a dificuldade que um aluno
está tendo em relação ao desempenho acadêmico. Com a fala no final do
fragmento “ele, um menino muito educado, me pareceu de uma família muito
bem estruturada, mas que ele estava sentindo essa dificuldade”, P4 expressa
com o uso da palavra “mas”, que segundo ele, existe uma contradição entre o
fato desse menino sentir dificuldades e a situação familiar “boa” dele.
No segundo fragmento, P4 expressa várias idéias negativas em relação a uma
aluna, que analisando a fala dele, apenas são baseadas em ‘crenças’ quanto à
situação familiar da aluna. Pela fala de P4 entende-se que essas crenças não
têm base em conhecimento, e como se trata aqui de imagens negativas a
respeito da situação familiar da aluna, pode-se dizer que é preconceito.
No segundo fragmento, observa-se como a combinação de “aspecto visual” e
lugar de moradia criaram em P4 uma série de preconceitos a respeito de uma
aluna e a vida dela. Ele acha a menina diferente de alguma forma, se pergunta
“como é que essa menina passou para cá?”, e tenta identificar o que faz ela
89
diferente. Falando da ‘diferença’, ele afirma que a respectiva aluna em si não
tem dificuldades acadêmicas, a diferença não se encontra no ‘nível’. Conclui-se
que a diferença, neste caso, está construída encima de aparência, informação a
respeito do lugar de moradia e uma série de preconceitos formados com base
nessa informação. Analisando o discurso dele, na verdade, parece que P4 se
surpreende com o fato de que a aluna não tem dificuldades acadêmicas.
Nas falas em relação ao aumento da pluralidade na escola que a política de
entrada através de sorteio trouxe, o conceito de cultura também toma um lugar
importante. Assim, P4 quando fala sobre o caráter plural da quinta série, faz uma
distinção entre dois tipos de alunos e usa para explicar, onde segundo ele,
existe a pluralidade, o conceito de cultura:
“..é plural essa, essa, essas crianças né. (-) É, você vai encontrar crianças que tem em casa biblioteca, que vai ter, sabe, computadores, vai, vão viajar, os pais tem cultura e podem oferecer essa cultura né, formalizada. Tem crianças com um grau de cultura altíssimo, como têm crianças que tem assim o.. o.. o necessário que eles utilizam o que é oferecido no dia-a-dia deles né. (-) ..pessoas simples com pouca cultura né. (-) Os pais trabalham muito. No máximo, né, o que tem de, de multimídia pode ser a televisão, de repente, nem um jornal. Mas, o colégio oferece.. (-) ..né, e os professores pelo que eu vejo assim, nas atividades, oferecem também.”(P4, entrevista, 255)
Vê-se como P4 aqui dá exemplos de o que, segundo ele, é cultura: ter biblioteca
em casa, ter computador, viajar, ter multimídia (televisão). Com esse comentário
ele ‘materializa’ o conceito de cultura: implicitamente ele diz ‘ter cultura’ é ligada
a ter meios financeiros. Não foi surpresa, então, quando se achou,
implicitamente, na fala dele uma hierarquia entre “crianças com um grau de
cultura altíssimo” e “pessoas simples com pouca cultura”.
90
Implicitamente, ele se refere a uma divisão social de classes. Essa
‘materialização’ de cultura e a referência à hierarquia ficam mais aparentes
quando ele define o papel da escola como “oferecer cultura”. Junto ao fato que
com essa fala P4 aborda à orientação em relação à educação caracterizada por
Paulo Freire (1971) como uma concepção bancária de educação, uma
orientação que considera o aluno como um ser “vazio” sem história própria, fica
claro que ele entende a cultura como um fenômeno estático, não-dinâmico.
Cultura, segundo ele, não é uma coisa que é (re)construída em cada contexto
social, mas cultura é uma coisa pronta que se pode “ter” (ou não) e “oferecer”.
P10 também se refere à cultura quando ele fala do aumento da diversidade
dentro da instituição depois da nova política de acesso:
“eles [os alunos que entram através de sorteio na quinta série] não têm nenhuma deficiência. Mas eles vêm de um ambiente cultural precário. (...) a escola contribui, supre,.. contribui para minimizar a defasagem em relação ao grupo de classe média, promovendo eventos de integração na cultura dominante.”. (P10, conversa 18/05/2006)
Aqui, vê-se como P10 faz uma distinção entre dois tipos de alunos, ou seja, os
alunos que entrarão na classe de alfabetização e os alunos que entrarão na
quinta série. Os alunos que entraram na quinta série vêm, segundo ele, “de um
ambiente cultural precário”. Ele não explica claramente, se ele refere-se ao
ambiente familiar, ou ao ambiente da escola, onde esses alunos cursaram até a
quinta série.
Observa-se também que P10 define como um dos objetivos que a educação tem
que “integrar na cultura dominante”. Percebe-se também na fala de P4, a
91
presença de uma visão hierárquica de cultura, em que algumas culturas são
consideradas melhores do que outras. Assim, ele, implicitamente, diz que o
“outro”, que vem de um “ambiente cultural precário”, tem que se integrar a
cultura dominante para poder ter sucesso na escola.
Falando sobre a mudança do público no CAp, muitos profissionais fazem
também referência ao fato que desde a democratização do acesso entravam
alunos com um nível educacional mais baixo. Dessa forma, P4 por exemplo,
claramente faz uma ligação direta entre a democratização do acesso na
instituição e o ingresso de “alunos ruins”.
“..o que eu pude perceber (..) foi o seguinte, quando era o concurso que.. que acontecia, passavam os bons. Então chegavam aqui alunos que, para passar, para tirar notas altas.. são alunos que estudam muito. Então, eu acredito, isso (não) é uma conclusão minha, eu acredito que as dificuldades [dos professores] deviam ser diferentes. Não sei quais né.. Porque nem, nem, nem me informei, não pesquisei sobre isso. A partir de um momento que você faz a partir de um sorteio, você vai ter alunos de 5 a 10, ou de 10 a 4. (-) A gente não vai quantificar o aluno. Então, a gente pode falar você vai ter alunos de A a.., a D. Alunos que gostam de estudar, mas alunos que a mãe obrigou, tipo assim, “não, eu vou, eeh.. colocar você no sorteio porque eu quero que você estude num colégio muito bom”. E de repente, aquele aluno veio para cá, mas está tropeçando porque, de repente, ele não é um menino aplicado, ele não é estudioso, ele gosta de repente de, sei lá.. levar na brincadeira, sem muito compromisso né, então quer dizer, agora esta mesclado. Esta mesclado porque aí ele [o professor] vai ter que.., que ter um, um, uma visão muito mais ampla. Da mesma forma, ele vai ter alunos 10, 9 e 8, ele também vai ter aluno 4, 2 e 3. Né, então, o trabalho dele vai ser, uhhh, mais do que dobrado, ne.. (-) (..) Quer dizer é.. é.. essa inclusão no caso né. Porque também é muito fácil eu chegar e dar aula só para alunos que tiram 8, 9 e10.” (P4, entrevista, 423-457)
No início da fala, P4 usa a terminologia “os bons”, pela fala depois se entende
que ele se refere aos alunos com desempenho acadêmico bom ou acima da
média. P4, assim, faz uma distinção entre os dois tipos de alunos.
92
Primeiramente, ele dá nome para esses alunos como se eles adquirissem a
identidade pela nota que eles tiram (“alunos de 5 a 10”), depois na fala, ele
muda a nota por uma letra (“alunos de A a.., a D”), que representa da mesma
forma uma hierarquia de ‘ruim’, ou ‘na média’ para ‘bom’. P4 atribui uma
identidade fixa, não dinâmica (ele é um aluno tal, e não ele é avaliado de forma
tal) que está ligada a uma hierarquia de avaliação de desempenho acadêmico.
Do mesmo jeito, mais à frente na conversa, ele usa as palavras “alunos que
gostam de estudar” e “ele não é um menino aplicado, ele não é estudioso”.
A fala de P4, implicitamente, expressa que, os alunos que entram através de
sorteio são alunos ‘piores’, alunos que ‘não gostam (tanto) de estudar’, ‘alunos
não são (tão) aplicados’, ‘não são (tão) estudiosos’, que gostam “de levar na
brincadeira”, “sem muito compromisso”. Aqui, ele se refere de novo ao conceito
de “compromisso” que ele, no início da conversa, indicou como importante
juntamente com “organização e disciplina” para poder lidar com a “liberdade”
que o CAp dá para o aluno (veja seção 4.2.1.1).
Este último fragmento mostra como a profissional P4, identifica os alunos,
unicamente, os avaliando pelo desempenho acadêmico. Nessa fala, ele não
considera o desempenho acadêmico como uma coisa que é construída no
contexto da escola, junto com outras habilidades e com outros atores.
A fala de P4 mostra que, segundo ele, o aluno tem dificuldade na escola,
quando ele não tem a atitude certa. Assim, as características fixas de ser ‘bom’
ou ‘ruim’, P4 atribui as ‘dificuldades’ a atitude do aluno. Desse modo, observa-se
93
que ele não considera o papel da escola e outros atores no desenvolvimento
dessas ‘atitudes’.
Vários profissionais se referem ao aumento da diversidade falando das
diferentes classes sociais que agora tem no CAp, uma coisa que antes da
mudança não tinha. Assim, P6 fala:
“..eu acho muito bacana, achei assim que foi.. essa mudança de acesso foi importante sim para o processo de democratização, isso não res.., não resta a menor dúvida é, acho muito gratificante. Agora.. trabalhar com alunos de outras classes que antes a gente tinha classe média, classe média alta né, era um outro público. E agora a gente vê assim alunos de.. classe social né, uma classe social menos favorecida economicamente, é, acompanhando, tendo acesso né, a um.., a um processo de aprendizagem de qualidade e (..) sendo super bem preparados e tendo oportunidade. Que antes e.. essa oportunidade estava.. só era assim para uma, para classe social favorecida, economicamente né,.. de classe média alta.” (P6, entrevista, 2704-2706)
A categoria ‘cor da pele’ foi também usada como identificador do “outro”. Assim
sendo, P5 relaciona o identificador ‘cor da pele’ ao identificador ‘nível social’:
“Essa coisa da democratização do e... do espaço está realmente se refletindo na.. na.. no ingresso de alunos que entram né. (..) quando eu fui licencianda aqui, eu contava nos dedos os alunos negros. Entendeu? Era uma coisa assim, a escola era branca. Totalmente branca. Né. Então agora, nossa! Você vê que esta muito mais diversificado assim né. É, em nível social e tal, (..) eu acho que eu percebo a mudança.. né, assim, das turmas que eu observei no, quando eu fui licencianda.”(P5, entrevista, 1561-1617)
Como discutido acima, encontra-se nas falas dos profissionais referências ao
“outro” referindo-se ao lugar de moradia, cultura, nível acadêmico, classe social/
situação financeira, contexto familiar e cor da pele dos alunos.
Sem referendar diretamente sobre às mudanças nas políticas de aceso, os
alunos fizeram referência à diversidade. Eles falavam da diversidade,
94
primeiramente, se referindo aos diferentes locais de moradia dos alunos. Eles
também fizeram referência aos diferentes níveis dos alunos como aspecto da
diversidade. A temática de classe social e os meios financeiros também
apareceram nas falas. A seguir, um exemplo da fala de A11:
“A gente está num colégio.. assim.. tem pessoas que a gente.. convive com pessoas quem, se a gente for para um colégio pago.. colégio pago alto, de altonível, se a gente tivesse num colégio pago alto, de alto nível.. ia viver só com pessoas do mesmo nível. Aqui a gente convive com pessoas diferentes, de modos de vida diferente, de classe social diferente.”(A11, entrevista, 898)
Alguns dos alunos também falavam de processos de exclusão. Vários alunos
falam da existência de certos “grupinhos” na turma da quinta série. Um fator que
parece definir esses grupos é a aparência física e também o nível ou o
desempenho acadêmico dos alunos. Assim, por exemplo, A9 e A10 falam:
“A10: agora tem, gente muito preconceituoso na sala que fica chamando os outros de feia e se achando bonita. (-)A9: Preconceituoso é aquele que não gosta de pessoa negra, não gosta de pessoa branca, não gosta de pessoa parda tem esse preconceito também, mas sendo que tem um preconceito que às vezes.. o colega, isso.. Sem sair da sala, a [aluna z], a [aluna z] ela assim desde o CA ela tem dificuldade, dificuldade de saber as matérias de pegar, mas também...A10: ela é muito chata!A9: é.. ela tem dificuldade. Ai na minha turma de CA até a 4ª série ficaram assim discriminando, excluindo, sabe?, do grupo porque ela ficava assim meio sozinha, quer dizer ela era sozinha quem ficava mesmo com ela era a [aluna y], ela era que ficava com a [aluna z] só ela, então para [aluna z] ela era a única chance assim dela “pô eu tenho amiga” já da 5ª série em diante a [aluna z] continua a mesma sabe? Ai tem aqueles colegas que ficam com preconceito com alunos que tem dificuldade e alguns alunos que são mais inteligentes ficam falando assim: “ah! o grupo está ótimo, só tem CDF” (-)A10: mais às vezes tem até preconceito assim de um ficar chamando o outro de feio, falando que o outro é mais feio xingando, é horrível isso!” (A9 e A10, entrevista, 2488-2508)
95
4.4 Na busca de outras formas: diversidade e a prática
pedagógica do professor
Para entender as dinâmicas de inclusão, foi também analisada como os
profissionais falaram sobre o que as mudanças significaram no dia-a-dia da sala
de aula; a prática pedagógica e o conteúdo do que é ensinado. Observa-se
como os profissionais falam sobre desafios, estratégias e dificuldades.
4.4.1 Desafios
Durante as entrevistas, vários profissionais relataram sobre a maneira de como
eles consideram a diversidade como uma contribuição positiva para o trabalho
deles na sala de aula. Alguns deles afirmam, explicitamente, como o trabalho
ficou mais ‘rico’.
Assim, P1 que já trabalhou na escola na época da mudança e naquela ocasião
não era a favor da democratização, fala que o trabalho ficou “mais rico” para ele.
Quando a pesquisadora perguntou o que de fato mudou, P1 falou:
“[antes] era a lógica da razão, agora vale um monte de coisas, vale o sujeito, vale a construção com o sujeito.” (P1, conversa, 10/11/2005)
96
Muitos profissionais mencionaram o desafio que a democratização do acesso
trouxe para eles profissionalmente. O fato é que eles precisavam trabalhar de
outra maneira, o que significou para muitos participantes um desafio profissional.
“De volta e meia a gente se debruça sobre isso assim, nos Conselhos de Classe, nos Conselhos né, de plenárias pedagógicas né. Assim, como atender esse novo público? né. A gente está assim o tempo todo repensando né, e..., as mudanças foram, foram grandes, né, com essa mudança de acesso. Né, então a gente ainda está assim aprendendo né, a gente está engatinhando né. A gente não tem assim né.., não existe uma receita né, então a gente também está aprendendo. A gente está em constante processo de aprendizagem também né, nos professores. Por conta dessas mudanças.”(P6, entrevista, 2755-2761)
Alguns profissionais também mencionaram como eles aprenderam trocando
experiências com outros colegas. Assim, quando P7 fala sobre os problemas
que ele encontra, às vezes, em relação à diversidade, ele diz:
“nosso desafio é o tempo todo achar desafios para que esses problemas não se agravem, para que a gente consiga identificar onde estão os problemas porque muitas vezes, você não consegue identificar, percebe que está havendo algo.. ..mas não sabe onde, e, e isso é difícil. Então, é um desafio constante.” (P7, entrevista, 3235-3239)
Em uma conversa, uma das alunas (A11) comenta, que ele acha que a
diversidade fez os alunos aprenderem certas coisas que eles não aprenderiam
se a escola não tivesse democratizado o acesso:
“Aqui [no CAp] a gente convive com pessoas diferentes, de modos de vida diferente, de classe social diferente. E isso é muito bom porque a gente aprende que o mundo não é só um circulo fechado e existem muitas coisas além do que a gente pode ver. Então, a gente pode aprender muitas coisas com essas pessoas do mesmo jeito que essas pessoas podem aprender com a gente. (..) A gente vê que tem pessoas pobres, médias e ricas aqui e a gente vê.. as pessoas falam sobre as necessidades.. a gente vê o jeito que a gente pode ajudar aqui e fora do colégio. A gente vê aqui pessoas que tem mais coisas que a gente, ou às vezes muito mais. E a gente não.. as pessoas não deveriam, por exemplo, ficar se esnobando porque isso as pessoas que têm muito menos pode se sentir muito mal.. (..) Por exemplo, a gente está numa
97
campanha de ajudar dando comida, dando agasalho, ou as pessoas que têm mais podem dar uma coisapara gente de vez em quando, ou a gente pode ajudar com uma coisa que a pessoa não sabe, a gente pode ajudar alguém que trabalha na sua casa vamos supor a faxineira, a gente pode ajudar ela porque nem sempre ela tem estudo então, pode pegar um livro emprestar.. dar para o filho, várias coisas assim.” (A11, entrevista, 898-904)
Vários profissionais referem-se ao fato que o trabalho ficou mais interessante.
P9 explica como, segundo ele, com a democratização do acesso e a
pluralização do público, o trabalho dos professores ficou mais difícil, mas
também muito mais ‘rico’ e desafiante.
“E é muito mais rico [o publico atual do CAp] do que ter aluno que tem o pai que é intelectual. É muito mais fácil de trabalhar, mas tem menos diversidade né. É uma coisa mais.. assim linear, né. Eu falava da Europa, todo mundo já tinha ido a Europa.. entendeu? Agora está um colégio mesmo, é um colégio.. público sabe? um colégio público, democrático né..(-) o que mudou foi o.. o retorno. (-) Aqui tem de tudo agora, mistura tudo, e eu acho isso rico. (-) uma riqueza de.., de.. contatos né! ..de visão de vida.. você vê a vida de múltiplos.., múltiplos.. você vê a vida com uma multiplicidade não de olhar.. ( ) mas você vê as diversas maneiras de existir, né, milhões de maneiras que as pessoas podem viver, não tem uma só maneira, não tem uma certa, não tem uma errada, são (coisas tão vivas). Eu acho isso importante.” (P9, entrevista, 3893- 3903)
4.4.2 Estratégias
Como muitos profissionais afirmam que a diversidade traz contribuições
positivas para o trabalho, alguns deles explicaram como eles criaram as
estratégias para lidar com a diversidade na sala de aula. Assim, perguntado o
que a democratização do acesso significa para a prática pedagógica dele, P9
explica que ele trabalha com o “cotidiano do aluno”, um trabalho que, segundo
98
ele é muito mais interessante em um contexto “multicultural”. No seguinte
fragmento ele explica a sua abordagem:
“eu acho que tem que partir do real, do dia-a-dia, né, sempre assim. (..) e desse real que você vai para a fantasia, né.. Você vai para a fantasia de cada um. Você vai ver através do.. das experiências.. Então, você tem que sensibilizar o aluno para poder.. ele ser um ser sensível.. ele ver com muito cuidado.. ver por onde ele passa, entendeu? ..ele observar bem tudo. (..) Então, tudo isso é muito interessante, tudo isso é exercício. Então eu lido com o cotidiano. (...) eu vou estar sempre relacionando com o cotidiano, entendeu?, com o real deles, sabe?”. (P9, entrevista, 3895-3897)
Segundo P9, essa maneira de “trabalhar com o cotidiano” ficou mais rico com a
democratização do acesso e o aumento da diversidade no público. Para dar um
exemplo de como ele gosta da diversidade na sala de aula que a
democratização do acesso trouxe, P9 fala de uma experiência com uma aluna,
que contou na sala de aula para os outros alunos sobre a experiência dela com
o Candomblé:
“..eu pedi ( ) para ela explicar para a gente o que é isso. Olha! Ela deu duas tempos de explicação. (..) todos os alunos foram prestando atenção em ela, sabe, muita atenção. (..) Foi assim, uma coisa tão maravilhosa, para auto estima dela, para tudo. Propriedade, né, uma propriedade enorme, né, de saber.. Porque ninguém sabia, só ela.. (-) Eu acho que isso é trabalho de inclusão. Essa hora de contato, que eu acho muito importante.. que e.. e o multiculturalismo ne? Que você vê.. o que acontece em cada família, nos diferentes bairros como que eles passam o final de semana, como eles programam né, qualquer coisa com os filhos, quando eles programam. Né, então um ouve ou outro falar então tem uma troca muito grande nesse. (-) eu acho que faz parte do trabalho essa conversa. (-) ..eu estava acostumada, quando eu trabalhava no CAp, antes, era assim aluno elite, eram aqueles caras.. e não tinha ninguém que iria falar ( ), não existia isso. Eu acho que enriquece, o aluno, essa troca até geograficamente, cada um tem uma característica do bairro né! um é da Maré, outro é da Penha, tinha gente de Realengo agora isso, né.”(P9, entrevista, 3863-3875)
99
P9 chama atenção para a importância da “sensibilização” do aluno e opina que
em todas as matérias se pode trabalhar com o cotidiano do aluno.
P8 comenta que os profissionais tiveram que criar e buscar outras estratégias e
formas de levar o conteúdo para os alunos, nesse instante a postura dos
professores mudou.
“..o professor mudou de postura. Nós não ficamos com aquela coisa, da mesma forma que a gente trabalhava o conteúdo.” (P8, entrevista, 3686)
Em relação à mudança de postura P8 fala da estratégia de “contextualizar” o
conteúdo e de uma abordagem “multicultural”:
“A gente na [matéria], a gente.. principalmente na 5ª série, a gente tem uma perspectiva multicultural, né. De dife.. de trabalhar com a diversidade cultural mesmo. Então, é, com localização e orientação eu dou um banho. Que é perto?O que é longe? do quê? Referências. Eu descentralizo eles de uma forma que eles ficam assim, “mas morar em Santa Cruz é longe do CAp!”, “aí mora mal!”. “Mora mal? Vamos ver!”. Que, o que é central aqui na cidade do Rio de Janeiro? O centro é muito relativo. Não o Centro político, administrativo, mas eu estou falando o, é, o simbólico mesmo, né. Se você está em Santa Cruz, estuda lá, mora lá, o, é perto, né, tudo é muito perto, né. Então, eu começo a trabalhar isso com eles. (-) acho que isso até dá uma certa conta.”(P8, entrevista, 3578-3592)
P8 explica como o trabalho de campo faz parte dessa estratégia de
contextualizar o aprendizado e da abordagem “multicultural”. No próximo
fragmento, onde P8 dá um exemplo de um trabalho de campo, fica claro como
essa estratégia de “contextualizar”, segundo ele, funciona, especialmente, bem
em um contexto com uma população diversificada:
“ .. a gente faz o primeiro campo que é.. dar um.. dar uma volta pela cidade do Rio de Janeiro pegando os subúrbios até Santa Cruz e depois pegando a orla até o CAp e vendo as diferenças de paisagens, buscando relações. Então,
100
essa é uma forma de também esse aluno estar interagindo né, com novos espaços, conhecendo novos lugares. É, conhecendo até o aluno, o colega também. Porque eles passam assim o dia, um dia no ambiente novo né. (...) ..aos poucos a gente está criando estratégias, buscando dinâmicas diferentes. Agora não é fácil.” (P8, entrevista, 3408-3412)
P8 explica como a diversidade na sala de aula faz esse trabalho de
contextualização mais rico, e como ao mesmo tempo esse trabalho promove a
inclusão. Ele fala como a experiência de um aluno contribui na sala de aula:
“..tento sempre construir, buscar a vivência dele, sempre a vivência dele. É ele, ele tem uma visão muito mais interessante, muito mais, aí.. eu estou comparando, muito mais interessante da cidade do Rio de Janeiro, né. Porque ele, ele mo.., ele mora longe daqui, está morando na Penha eu acho. Então, ele anda de ônibus, ele conhece outros bairros, aí a gente pega essas experiências dele e começa a utilizar na sala de aula, né. E ele se sente mais valorizado.” (P8, entrevista, 3424-3428)
“..sempre eu estou, a gente está buscando um pouco a realidade né desses alunos. É pensar um pouco qual é a vivência que eles têm, o que eles falam a gente aproveita e certamente na outra aula a gente pode estar trabalhando umpouco o que foi comentado na aula passada né.” (P8, entrevista, 3526)
P6 afirma que “a maneira de trabalhar os conteúdos” mudou. Ele diz:
“..houve mudanças né na, na maneira de.. de assim.. no primeiro momento né. O público mudou significativamente, então assim a maneira de, de trabalhar os conteúdos também na as.., mudou né. Como eu falei assim. (-) As técnicas didáticas né, então, a gente teve que seguir.. repensar muita coisa né. Então, objetivamente, é, a meu ver assim.. ficou, até assim.. trabalhar com um público mais é, diferenciado né, mais distinto né, um público.. não homogêneo. Né? De diferenças diversas, assim tanto enriquecedor para mim quanto para os alunos também né. (-) a gente viu assim que era preciso, era preciso assim para alguns né, mostrar o que que é, o que que é (a língua estrangeira que P6 ensina), o que isso representa né. Assim (..) a importância de aprender uma língua estrangeira. Então, a gente precisava assim traduzir isso de uma outra maneira para eles.” (P6, entrevista, 2739-2749)
Como foi visto nesta seção, muitos profissionais afirmam que, com a mudança
da política de acesso e a conseqüente diversificação da população da escola,
101
eles tiveram que buscar outras maneiras e criar estratégias para levar o
conteúdo para os alunos. O que chamou a atenção é que o conteúdo em si não
foi discutido. Unanimemente os profissionais entrevistados afirmam que o
conteúdo não mudou, e opinam que isso é positivo. Alguns profissionais fazem
referência ao fato que por isso o CAp ainda é avaliado como uma das melhores
escolas.
No seguinte fragmento, P4 responde a pergunta se os conteúdos do que é
ensinado mudaram com a democratização do acesso. Ele fala:
“Eu não vejo nenhum comentário [sobre mudança do conteúdo do aprendizagem], mesmo porque isso seria falho né? De maneira alguma. Sabe que acontece? (..) o colégio tem.. ..os conteúdos né, que são realmente assim, sabe, nivelados muito altos porque realmente é um, um colégio de, de, de destaque né. de absoluto reconhecimento né. ..pelo que ele oferece.” (P4, entrevista, 463-473)
P8, também explica que o conteúdo do que é ensinado não mudou com a
pluralização do público. Ele comenta:
“O conteúdo permaneceu. Tanto permaneceu que a gente esta aí no primeiro lugar no SAEB né, o que é conteúdista demais. O conteúdo permaneceu, mas a forma de trabalhar e lidar com esse conteúdo, eu vou falar para você, não foi só em [matéria], mas em todas as séries, principalmente do, da CA a 4ª série. Eles mudaram sim. Muito. Então, isso ocorreu que já é um ponto positivo, né.” (P8, entrevista, 3686-3715)
4.4.3 Dificuldades
A maioria dos profissionais se refere à democratização do acesso em si como
uma coisa boa, porem não se pode negar a presença forte das articulações de
criticas e dificuldades em relação ao ensinar em um contexto caracterizado por
102
diversidade. Todos os profissionais mencionam que o trabalho na sala de aula
ficou mais difícil com a diversificação do público da instituição.
Aqui muitos profissionais fazem referência específica ao trabalho com a quinta
série. Na expressão dessas dificuldades percebe-se nas falas de alguns
profissionais uma resistência em relação à política de entrada através de sorteio
para a quinta série.
P9 observa que, na época da democratização, muitos profissionais tinham
dificuldade com a diversidade:
“Eu acho que o meu maior choque, vou falar isso, ( ) o meu maior choque na minha expectativa não é o aluno, é o professor que não estava acostumado a encontrar essa diversidade de alunos e de repente a escola muda toda, entendeu? Então, eu acho que o aluno chega assim, né, chega aberto né, mas o professor que está lá dando aula.. Tem gente que nunca pegou aluno que não fosse classe média, então eu acho que isso ai é o mais difícil. E como adaptar esse aluno? Assim, porque esse aluno não é mais brilhante, você tem quetrabalhar esse alunos, né, para ele acompanhar a turma, ne”.(P9, entrevista, 3911-3913)
P9 também explica que ele acha especificamente o trabalho com a quinta série
difícil. Ele diz:
“..o que eu particularmente acho, o que tem trabalho é a quinta série. Eu acho que, desde que eles podem também entrar pelo sorteio, eu acho que tem alunos que estão muito lá em baixo para pegar aluno que já está sendo trabalhado desde o CA. Então, tem que fazer um trabalho paralelo na quinta série muito forte.” (P9, entrevista, 4043)
Em seguida, P9 especifica e explica que ele entende as aulas de apoio como
“trabalho paralelo” que a escola oferece.
103
P5 fala sobre o significado da democratização para o trabalho dele como
professor na quinta série e também se refere ao fato que o trabalho ficou mais
difícil:
“Eu acho que (..) as turmas estão mais.. estão mais complexas. Assim, estão mais heterogêneas né (...) eu acho que, eu percebo assim, que hoje em dia eu tenho muito mais trabalho com essa questão, com essa diversidade, do que os professores que trabalharam antes né.” (P5, entrevista, 1561-1617)
Verifica-se como neste fragmento, P5 faz uma ligação entre complexidade das
turmas e o fato das turmas serem mais heterogêneas. Mais à frente na
conversa, P5 especifica do que consiste, segundo ele, essa heterogeneidade:
ele se refere aos diferentes ‘níveis’ acadêmicos dos alunos.
Percebe-se nesses fragmentos, como P5 fala das dificuldades que a diversidade
traz, sobretudo, fazendo referência aos diferentes níveis dos alunos. Essa
referência encontra-se também em outras falas de profissionais (veja, por
exemplo, P4, p.83). Essas diferenças em nível que surgiram com a
democratização do acesso (que trouxe “alunos com problema de base”, e
“meninos que estão com muita dificuldade”) e as dinâmicas que surgem na sala
de aula fazem, segundo P5, o trabalho dos professores, atualmente, mais difícil.
P6 também menciona que o trabalho ficou mais difícil por causa dos diferentes
níveis. Ele fala sobre “lacunas” de alunos que entram no CAp na quinta série.
Ele diz:
“O que eu tenho observado assim com, com vários alunos.. ..que estão entrando direto [sem fazer prova], eeh.. a gente percebe assim muitas lacunas. Às vezes lacunas intransponíveis, né. Porque, o seguinte.. faltam conhecimentos básicos ( ) ele tem direito de entrar por sorteio e ele não consegue ultrapassar várias dificuldades né. Ele não tem formação de base,
104
que é de 1ª a 4ª série, né. E isso é muito doloroso. (-) acabam sofrendo, porque.. (..) depois são postos para fora né, de certa maneira. ( ) isso acaba acontecendo. Então, eu acho assim.. muito cruel. (-) a lacuna está na, na formação desse aluno né, de, do CA a 4ª série.”(P6, entrevista, 2526-2558)
P6 menciona que alguns alunos que entram na quinta série têm falta de
‘conhecimentos básicos’, que eles não conseguem recuperar, isso resulta em
repetência e se repetir dois anos resulta em jubilamento.
No próximo fragmento, P6 comenta como ele, como profissional de uma das
línguas modernas, faz um esforço para ajudar esses alunos, mas, mesmo assim,
muitos alunos estão sendo jubilados porque não conseguem acompanhar o
ensino:
“É eu vejo assim, até mesmo em relação ao [matéria]. Assim, a língua estrangeira para ele é algo totalmente estranho mesmo, né. E olha que a gente começa assim o [uma língua moderna], (..) do básico. A gente parte do
pressuposto que ninguém nunca estudou [a língua moderna], né. Mas, assim a língua estrangeira assim, eeh.., faz parte de um outro universo né. Então, para alguns alunos.. eles não conseguem entender o que é aquilo,.. ..por mais que você faça um esforço, tal. Então assim, isso me causa uma certa aflição, acho meio cruel. Assim para algumas, para algumas crianças é muito sofrido, né, o processo. Que ele fica aqui e depois ele vai embora né. Porque continua tendo o jubilamento.” (P6, entrevista, 2512-2574)
Algumas outras dificuldades são mencionadas pelos profissionais. P8 fala da
dificuldade do papel do professor em relação à diversidade na sala de aula. P8
comenta sobre a busca de uma “outra forma de falar”:
“..a gente está com.. cheio de dificuldades porque a gente pega um aluno é, como, (..) como B (..) na quinta série: ele não consegue entender.. ele lê e ele não consegue captar o que a gente está querendo que ele desenvolva né. Então, você tem que pensar em ou.., em outra forma de falar com ele, para ele poder entender. Ele entende, não estou falando que ele não entende. Para mim é muito mais difícil né, porque se.. como era antes, era.. eu.. eu tinha uma forma eficaz de trabalhar e agora se um não entendeu, eu tenho que parar e
105
tenho que ver né, buscar uma outra forma, não vou passar por cima né. Então é difícil, é muito difícil. (-) é difícil para mim é. Porque eeh.. muda.., é uma mudança drástica. Assim, você vê que nem ler, ele não lê direito. Eu caramba! Ele é letrado? Claro que ele é, sim, claro. Mas é uma dificuldade para mim no sentido que eu não estava acostumada né, no CAp. Não estava acostumada a trabalhar isso.” (P8, entrevista, 3418 -3434)
Comparando a fala de P8 com a fala de P6 acima se nota uma diferença
essencial em postura dos dois profissionais. Tanto P6 como P8 falam sobre o
mesmo assunto: a experiência e a dificuldade de ensinar em um contexto
caracterizado por diversidade em preparação educacional e experiência de vida
dos alunos. No entanto, quando P6 expressa um limite no poder dele, em
relação a essa realidade e diz: “por mais que você faça um esforço..”; P8 com a
fala “não vou passar por cima né” articula que essa diversidade, apesar de não
ser fácil para ele, cria um desafio profissional para ele mesmo. Com a fala: “você
tem que pensar em ou.., em outra forma de falar com ele, para ele poder
entender”, é expresso que ele como profissional se sente responsável pela
inclusão desse aluno.
Falando sobre as dificuldades, vários profissionais também se referem a fatores
que tem a ver com a organização dentro da escola, como certas práticas e
regras, falta de tempo e a (falta de) infra-estrutura.
P5 explica como é difícil oferecer atenção individual a esses alunos que
“precisam de mais atenção” dentro do tempo que ele tem disponível nas aulas
de apoio e na recuperação:
“Pesquisadora: .. na semana que vem, vai ter recuperação, então vão ficar especificamente esses alunos,.. que, segundo você, precisam de mais atenção? P5: É. Porque e.. eles estão no apoio né, no apoio.
106
Pesquisadora: E aí você, o que você vai fazer para conseguir....? P5: Chamar né? Pesquisadora: É. P5: Então, nes.., são 17 né, uma turma grande. Não diminuiu tanto, se fossem uns 10, já seria bem melhor. Primeiro eu vou.. aí vai ser sabe.. vai ter que sentar individualmente.(-) ..vou tentar dar um atendimento mais individualizado assim né, vou.. a minha idéia é trazer um, um ro.., tipo um, uma apostila mais, um roteiro de estudos com algumas questões da.. de provas do primeiro e segundo bimestres, com alguns, algumas questões de roteiros deles. Quer dizer, com a matéria que é trabalhada... e as questões que foram trabalhadas. Pesquisadora: Tipo um resumo do que vocês fizeram? P5: É. Exatamente. E, fazer isso como se fosse uma, uma lista de exercícios, assim uma coisa de exer..., né, de tra.., de trabalho. (-) ..não vou apresentar nada novo assim, vou trabalhar com as mesmas coisas. Agora não sei como que eu vou fazer isso, sabe? Na verdade eu vou pensar esse final de semana. Pesquisadora: Aham. Por que aí você vai pensar outra metodologia para colocar o mesmo conteúdo de outra forma? P5: Pois é. É complicado em duas aulas, (Risos), eu acho.. (-) O que eu vou propor é assim trazer esse.. esse.. esse.. essa apostila.. roteiro.. de estudos de repente a gente vai fazer isso em sala né. E.. dar uma orientada, eu vou trazer um.. um roteiro também, é, assim, com tudo que vai cair na prova. Mas, por exemplo, o texto um.. fazer.., é, destacar uns pontos chaves de cada texto, entendeu? Porque são muitos textos. Mas são textos curtos, não tem problema. Então determinando.. sei lá, o texto oito que fala do, ahm, do processo de sedentarização, colocar os pontos que são importantes. Então o que é sedenta..., é.., o que é sedentarização? como aconteceu? ..a importância da agricultura e da pecuária, quer dizer, as coisas para eles,.. Pesquisadora: ..para eles anotarem, e como tipo um guia para eles estudarem? P5: Isso. Para eles estudarem, quando forem ler o texto.. entendeu? Isso é uma coisa que, eu estou pensando em fazer para daqui para diante.. ..também. Eu não estou fazendo por falta de tempo porque eu não estou, sinceramente, eu estou (risos) primeiro eu faço o que é essencial..” (P5, entrevista, 1270-1357)
P8 também comenta como, nas aulas de recuperação, dá para fazer pouca
coisa com esses alunos que precisam de mais ajuda. Ele fala, igual a P5, que
ele fez uma ‘roteiro de estudos’:
“..na verdade não dá para você dar aula trabalhando todos os conteúdos, né. Eu, eu optei por fazer, dar um roteiro de estudos para eles, eles ganharam um roteiro e depois eu fiz duas folhas de exercícios para que eles levassem para casa, fizessem e hoje eu corrigi, tirei as dúvidas. Então, infelizmente, não tem como você dar.., fazer mais né, mais de exercício porque só é uma semana.”(P8, entrevista, 3306-3308)
107
Esses fragmentos mostram como é a organização de algumas coisas dentro da
escola, como, as aulas de ‘recuperação’, que criam situações em que apenas os
alunos muito disciplinados ou com ajuda e apoio em casa conseguem ter
sucesso. Entende-se, que nas aulas de recuperação, por exemplo, devia ter
mais tempo, principalmente, para os alunos que não conseguiram realizar as
tarefas. No entanto, as aulas se reduzem a duas horas (cem minutos), em que o
professor não pode fazer (muito) mais do que re-estruturar a informação já
passada, para que o aluno volte para casa e se prepare para a próxima prova.
Analisando as conversas, vê-se como isso incentiva elementos que caracterizam
uma abordagem cartesiana de aprender e ensinar (“apostila de estudos”; “roteiro
de estudos com algumas questões (..) de provas”; “lista de exercícios”; “pontos
chaves”), uma abordagem tradicional que não responde ao perfil do CAp como
escola de “experimentação de novas metodologias”.
Observa-se que, falando da prática pedagógica em relação à democratização do
acesso, os profissionais se referem sem exceção ao fato que o trabalho ficou
mais difícil. A dificuldade, segundo eles, principalmente, tem a ver com a
diferença em níveis e experiências de vida entre alunos na sala de aula, e
também com a falta de tempo que a escola oferece para fazer trabalho mais
individualizado com alunos que precisam disso. Verifica-se que essa dificuldade,
leva em muitos casos a uma abordagem cartesiana de ensinar e aprender.
108
4.5 CAp no país das maravilhas?
Na última seção discutiu-se a prática pedagógica dos profissionais em relação à
democratização. Nesta seção se quer discutir como os profissionais refletem
sobre o papel da instituição em relação à inclusão. Fala-se de democratização,
fala-se de inclusão, mas junto ao papel dos profissionais dentro das salas de
aula, quais são, segundo os profissionais, as políticas e práticas formuladas e
realizadas pela instituição que promovem a inclusão dos alunos que entram
através de sorteio?
Como foi descrita na seção 4.1, a maioria dos profissionais votou por manter
uma prova de nivelamento para entrada na quinta série, mas na plenária
pedagógica, no final, foi decidido não fazer prova, nem na classe de
alfabetização nem na quinta série, mas somente no primeiro ano do ensino
médio.
Uma pergunta levantada pela pesquisadora nas entrevistas foi o que foi feito, no
nível institucional, para coordenar as mudanças na prática do dia-a-dia dos
profissionais da escola depois que essa decisão foi tomada. As dificuldades que
os profissionais levantaram (como também levantaram nas entrevistas) foram
consideradas? O que foi feito com elas? A respeito disso P6 fala:
“Pesquisadora: Junto com essa decisão [de não fazer prova para ingresso na quinta serie, mas abrir a entrada através de sorteio], foram sugeridas algumas reformas na 5ª série? Foram dados sugestões como os professores poderiam lidar com essa.. essa realidade (..) de diferença de nível entre os alunos etc?P6: Sim. Sim. Sim. Sim. Tanto que agora, antes não havia aula de apoio né, agora existe aula de apoio né, de todas as matérias (...) (-) Interessante né, isso é muito interessante, importante. Mas alguns alunos não dão conta, não
109
dão conta assim de algumas lacunas. Não é.. Porque alguns alunos já saíram, alguns alunos que ingressaram né, assim, nesse novo sistema saíram também. (...) E aí.. eu acho muito cruel.”(P6, entrevista, 2687-2698)
No seguinte fragmento, vê-se como P8 explica, como segundo ele, as aulas de
apoio ajudaram a diminuir a expulsão de alunos:
“P8:..nos primeiros anos a gente estava expulsando muito mais alunos do que a gente expulsa hoje. No sentido do.., que ele não pode ficar mais de dois anos senão ele é jubilado né? Então é, no início, a jubilação estava bem forte. Hoje eujá acho que a gente segura mais o aluno, a gente já está atendendo mais o aluno e ele permanece né. Pesquisadora: E como que vocês conseguiram isso? P8: É, as aulas de apoio. A gente começou a criar estratégias para tentar é, segurar esse aluno aqui né, na escola. Então, as aulas de apoio foi uma coisa, outra coisa eles é, ganharam essa bolsa. É uma cota que eles têm para ajuda de custo, que não é todo ano, porque todo ano você tem que pedir né, e não.. e não.. isso não é garantia de ter, (...) então isso de uma certa forma ajuda o aluno.”(P8, entrevista, 3386-3398)
As aulas de apoio podem ser consideradas o resultado de um compromisso; os
profissionais avisaram que eles não iam poder dar conta das divergências em
níveis na sala de aula, então foi criado um espaço extra onde o profissional
poderia trabalhar mais individualmente com os alunos. Entretanto, em várias
conversas percebeu-se que os profissionais não estão contentes com o que eles
conseguem fazer nesse espaço de aula de apoio. Alguns alunos expressam
também precisar mais de apoio em algumas matérias, mas que a aula de apoio
às vezes fica muito cheio e não tem tempo para tirar todas as dúvidas dos
alunos. Assim, A12 fala:
“Eu já tentei entrar até no [na aula de apoio] de matemática, mas eu acho que tem muita gente, e tem muita gente com a nota menor que eu, 0.5, 0.4, então, eu não.. às vezes eu não consigo entrar que tem gente pior do que eu.. (A12, entrevista, 1182)
110
Alguns profissionais mencionaram que eles têm muito pouco tempo para poder
dar uma atenção mais individualizada aos alunos. As mesmas críticas tanto dos
profissionais como dos alunos foram ouvidas em relação às aulas de
recuperação.
Quando se voltou a analisar a fala de P4 que se discutiu anteriormente (veja
página 103), viu-se como ele expressa indiretamente a idéia que as aulas de
apoio também foram criadas para que a escola não precisasse baixar o nível
dos conteúdos ensinados. Quando a pesquisadora pergunta se os conteúdos
ensinados mudaram com a mudança do publico da escola, P4 diz:
“Eu não vejo nenhum comentário [sobre mudança do conteúdo da aprendizagem], mesmo porque isso seria falho né? De maneira alguma. Sabe que acontece? (..) o colégio tem.. ..os conteúdos né, que são realmente assim, sabe, nivelados muito altos porque realmente é um, um colégio de, de, de destaque né. de absoluto reconhecimento né. ..pelo que ele oferece. Então, que acontece, ele oferece aulas de apoio. (..) Então, quer dizer, a partir do momento que eu do um ensino, com conteúdos de excelência.... ..tem suporte para esses alunos que não possam acompanhar. (-) Apoio. (-) Quer dizer, então o colégio oferece mesmo.”(P4, entrevista, 463-493)
P4 argumenta que, em vez de mudar os conteúdos em resposta a mudança da
população da escola, a escola “oferece aulas de apoio”, “tem suporte para esses
alunos que não possam acompanhar”. Vê-se aqui na fala de P4, de novo, como
o perfil de “excelência” da instituição é colocada como uma coisa fixa no caráter
da escola: “a escola é de excelência, então não mudou se o conteúdo”.
Pode-se concluir que o papel da instituição em relação à inclusão dos alunos
que entram através de sorteio, sobretudo, é um papel em termos de “ajuda” e
111
“apoio”. É chamada a atenção para que esses termos encaixem-se em um
discurso assistencialista, um discurso que contrapõe um discurso de direitos.
Mais adiante P4 fortalece essa idéia, quando ele fala:
“Os professores, interessante que eles têm grande interesse em ajudar esses alunos.” (P4, entrevista, 495)
Nos comentários de P4 e nos comentários de P6 percebe-se um discurso na
qual implicitamente o objetivo principal é proteger o perfil de excelência da
escola. Parece que incluir todos os alunos no processo de aprendizagem não é
considerado o principal objetivo. No caso, se têm alunos que não conseguem
acompanhar, têm aulas extras para eles. Chama atenção que nesse discurso o
perfil da escola em si e o que ele oferece não está sendo discutido.
Junto com o papel da escola, como, “oferecer apoio e ajuda”, percebe-se que
vários dos profissionais entrevistados mencionam “oferecer cultura” como uma
coisa importante que a escola faz. Nas falas a escola foi descrita como tendo e
oferecendo um ‘alto nível de cultura’, uma coisa que, segundo vários
profissionais, contrasta com o ‘baixo nível de cultura’ de vários alunos, que
entram na escola através de sorteio.
Assim, já foi visto na página 92, como P10 (conversa 18/05/2006) fala para os
alunos que “vem de um ambiente cultural precário”, a escola promove “eventos
de integração na cultura dominante”. Em outras partes da conversa fica claro o
que P10 entende como “integração na cultura dominante”, quando ele explica
112
como a escola “tenta dar conta da permanência” através da oferta de atividades
como “aulas de apoio” e “clube de leitura de ciências”.
Outros profissionais também expressam uma visão do papel da escola, como,
‘fornecedor de cultura’. Assim, P4 diz:
“..o colégio tem essa.. essa preocupação com a cultura. Quer dizer, ele oferece. (-) Tipo, nós temos biblioteca. (-) nós temos computadores, nós temos é, passeios,.. (-) ..eventos culturais, né? (-) em abril teve um grupo de teatro aqui.”(P4, entrevista, 267-287)
Mais à frente na conversa, P4 faz uma ligação entre a escola como fornecedor
(de cultura) e o caráter democrático que a escola, segundo ele, tem:
“..o colégio oferece muito mesmo para eles. (-) Quer dizer, eu acho importante isso. Já que é um colégio né, com esse perfil, com a filosofia democrática né.. (-) ..então, tem que oferecer né?” (P4, entrevista, 409)
Analisando a fala de P4 entende-se que ser uma escola democrática significa
oferecer acesso à cultura dominante. Uma idéia que também se percebe nos
comentários de P10 mencionados acima.
Vários profissionais mencionam a importância da escola de poder oferecer
também apoio no sentido material ou financeiro para alunos que vêm de uma
família de um poder aquisitivo mais baixo. No entanto, a maioria desses
profissionais menciona que a escola ainda não pode oferecer tudo o que esses
alunos precisariam. Aqui são mencionados vários problemas em relação à falta
de infra-estrutura na escola.
Assim, P8 diz:
113
“Eu sei muito bem que o CAp não está preparado para esse, para esse aluno, para esse novo aluno né. Até mesmo porque, em infra-estrutura a gente não tem quase nada para oferecer a um aluno é, carente e, em grana entendeu e, carente em cultu.., em atividades culturais. Por quê? Porque é, nós deveríamos ter um bandeijão para ele ficar, permanecer na escola mais tempo, a gente teria que ter uma verba para esse aluno, para ele é, ter, comprar o material didático, nós teríamos que ter é, ingressos para estar dando a esse aluno, né, para ele ir ao teatro, ao cinema. E isso infelizmente a gente não tem.”(P8, entrevista, 3386-3388)
P10 (conversa P10, 18/05/2006) também explica como a infra-estrutura da
escola limita o que a escola pode oferecer aos alunos com menos recursos
financeiros. Ele opina que, para poder melhorar o caráter democrático, o melhor
seria poder ser uma escola de tempo integral, e de poder oferecer mais
atividades culturais e científicas. Por falta de recursos isso não pode ser
realizado. O profissional explica que isso “cria uma barreira para a
permanência”.
P1 também sinaliza uma falta de infra-estrutura na escola para poder atender
esses alunos com menos apoio educacional e recursos financeiros em casa. Ele
fala de “barreiras materiais” para a participação dos “mais carentes” como
transporte, material escolar, lanche e almoço. Ele explica que atualmente,
quando os profissionais percebem que a falta de recursos cria um problema para
a participação de alunos em alguma atividade, às vezes sai algum recurso da
caixa escolar ou da biblioteca ou do próprio bolso do professor. Muitas vezes o
resolver dessas questões depende da própria vontade do profissional. P1
também menciona que, freqüentemente, essa realidade resulta no fato de que o
próprio aluno, quando percebe que está usando verbas da escola que na
114
verdade são destinadas para outras coisas, “ele mesmo se exclui”. P1 opina que
de fato aqui falta política da escola:
“Isso são problemas e não tem órgão na escola que resolva essas coisas (...) Não tem nada em papel”. (P1, conversa, 10/11/2005)
Alguns profissionais expressam algumas críticas em relação ao papel da escola
nos processos de inclusão. Assim, P8 diz:
“Eu acho que a.. a própria escola ela é, ela teria que valorizar mais é, esse, esse, no caso esse aluno que você falou, essa, essas diferenças em, em atividades mesmo mais coletivas né. (...) Porque eu, eu senti que no início, quando começou, quando teve a mudança, ah os alunos foram contra, não aceitaram bem isso, entendeu. Falaram que o ensino ia cair, que ia, ia ficar ruim o ensino no CAp.Pesquisadora: Aham. E que foi feito naquela época com essa...?P8: Olha, a gente começou, bancamos isso, e a gente começou a trabalhar né diferenciados.. (-)Pesquisadora: Mas da Instituição mesmo? Eles fizeram alguma coisa?P8: Não, não, não. Não, não aconteceu. E que poderia até acontecer né. Você até está dando uma idéia de fazer uma avaliação com os alunos. Porque isso a gente não tem. É... Entendeu. Uma avaliação seria uma coisa muito interessante porque a gente só fez com os professores. Entendeu. Uma avaliação também com os funcionários, porque que eles estão vendo isso? Isso aí a escola não fez. Mas seria uma boa idéia.” (P8, entrevista, 3608-3642)
Alguns dos profissionais entrevistados relativizam o papel que a escola pode
cumprir, colocando a discussão no contexto da sociedade. P5 relativiza as
mudanças no CAp entendendo-as no contexto da sociedade:
“..aí na verdade, eu acho assim que não é muita,.. porque a mudança no CAp é.., quer dizer o perfil social é determinante. Mas, considerando todas as mudanças na.., eu acho que todas as escolas estão passando pelo mesmo dilema né: O que fazer diante da.., da velocidade das coisas, das, das mudanças, né, desse mundo que está aí, que não tem referência para nada. Né? E que a gente fica na escola nadando contra a corrente né.. Assim, fica educando, educando. (-) É uma questão assim do nosso tempo sabe. O.. e como a escola.. é na escola que se formam as pessoas né. Assim, educação está aonde? Na escola e na família. Mas, as famílias tão doentes né, assim.. Você vê no Conselho de Classe, que muitas vezes a, a, a família que está com problema, não é o aluno entendeu? O aluno é, é uma personalidade
115
sendo formada, onze, doze anos com uma família completamente desestruturada..”(P5, entrevista, 2038-2062)
P6 também relativiza a problemática, colocando-a junto com os desafios que a
democratização do acesso trouxe, em um contexto da sociedade:
“..com as novas tecnologias, enfim, com, com tanto acesso, um acesso tão grande a informações né, agora a gente tem que estar o tempo todo questionando né, sobre,.. quer dizer assim, eu acho assim, o público mudou né, as crianças estão mais, querem tudo assim muito mais rápido né. Então, isso exige do professor um constante.., constante repensar né, sobre a prática pedagógica.”(P6, entrevista, 2763-2765)
P8 expressa bem a sua opinião sobre o que ele acha quanto ao papel da escola,
que é limitado e diz:
“..a gente não é Alice de ficar achando, Alice no País das Maravilhas. De ficar achando que nós vamos resolver, porque isso é um problema social né. É um problema social. A, a.. A [aluna] da 5ª série, aquela gordinha que é meio.. Ela mora é, na favela da Maré a, domingo a mãe vai para o baile funk com a avó vender salgadinhos na porta e ela tem que ir, segunda-feira ela tem que acordar às 05:30 da manhã para estar aqui às 07:00. Consegue? Não consegue. A gente vai falar não, é, é, é, “você tem que chegar..”, é muito complicado sabe. É um problema social, nós estamos inseridos e estamos reproduzindo isto? Estamos claro! Mas não dá para ficar achando que a escola vai resolver tudo né. Não tem como.”(P8, entrevista, 3749-3763)
4.6 Jubilamento
Um fato que, segundo os pesquisadores, reflete a tensão presente na prática da
instituição em relação a inclusão é a regra de jubilamento. Existe no CAp uma
regra que o aluno pode repetir só uma vez em cada nível de ensino; uma vez no
primeiro nível do ensino fundamental (da 1ª a 4ª série), uma vez no segundo
116
nível do ensino fundamental (da 5ª a 8ª série) e uma vez no ensino médio. Como
está escrito no artigo 22º das ´Normas de avaliação de aproveitamento da série
inicial, ensino fundamental e ensino médio´:
“O aluno poderá repetir apenas e tão somente uma vez, uma única série, em cada um dos níveis de ensino abaixo:- da 1ª a 4ª série do Ensino Fundamental- da 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental- da 1ª a 3ª série do Ensino MédioO aluno que repetir mais de uma vez a série ou repetir uma segunda série dentro dos níveis relacionados acima será jubilado, não podendo renovar sua matricula para o ano seguinte.”.
Tem profissionais que defendem a existência dessa regra e têm outros que a
contestam. P6, por exemplo, acredita que a regra de jubilamento é uma forma
de “valorizar a vaga”:
“..se entende né [a existência da regra de jubilamento], tipo assim, é uma maneira de se valorizar né, essa vaga, assim, porque nem todas as escolas são como o colégio de aplicação, nem todas as escolas públicas que se mantém assim tão bem estruturadas né. Então, se, eu entendo essa política né.. no fundamento é dessa forma.. uma maneira dos alunos valorizar,.. os pais...”(P6, entrevista, 2598-2602)
Neste comentário, ao lado de observar de novo como o perfil da escola é
descrita como fixa, já definida previamente (ele “é” uma escola “bem
estruturada”), P6 também, implicitamente está afirmando a idéia que os alunos
que estão sendo jubilados não “valorizam” a vaga. Com essa afirmação P6
coloca a responsabilidade para o sucesso escolar no aluno. Com base nessa
afirmação P6 justifica a existência da regra de jubilamento.
Analisando essa argumentação, surgiu a pergunta: não é exatamente essa regra
de jubilamento, uma forma de manter a escola “bem estruturada” e de “alto
117
nível”? Porque a prática de jubilamento significa não somente a expulsão de
aqueles alunos que não “valorizam” a vaga, como diz P6, mas também desses
alunos que por várias razões estão tendo mais dificuldades com a escola,
dificuldades com a qual a escola não consegue ou não quer trabalhar. Citando
Kaiuca que pesquisou as representações de professores de dois CAps sobre a
escola pública democrática (2004, p.1033-1035):
“..a dicotomia de favorecer a alguns o acesso e o aprofundamento do saber e a outros a estagnação e o esvaziamento denuncia que a jubilação é um dos mecanismos que está a serviço de uma pedagogia que traduz a divisão social dentro da escola. O uso da jubilação denuncia os colégios como escolas dualistas, corporificando o discurso liberal de seleção dos mais aptos, dos mais capazes e contrárias aos princípios democratizantes, inscrevendo, definitivamente, a prática como materialização do pensamento liberal.”.
Alguns profissionais também comentam a contradição que existe na existência
da regra de jubilamento em uma escola que se apresenta como “democrática”.
P8 define o caráter democrático da escola, ao dizer que:
“a gente tem que relativizar um pouco esse democrático né, porque é, nem sempre a gente acerta né, nessa, se, se fala é, vamos para um acesso mais democrático sendo por sorteio. Mas, se você for pensar bem né, é, nem todos osalunos que entram eles permanecem na escola né, eles são jubilados, essa coisa toda. Agora, o CAp o que eu estou sentindo é, o CAp ele está muito incomodado com isso, ele não quer que ninguém saia. Eles querem.., a gente.. que.. que o aluno permaneça na escola. Né, permaneça. E aí, isso é uma preocupação essa coisa..” (P8, entrevista, 3560-3564)
P9 também critica a política de jubilamento. Ele fala:
“..é uma sacanagem porque se você deixa entrar, tem que conservar o aluno, entendeu?” (P9, entrevista, 3923)
118
Foi visto nesta seção, como o conceito do CAp como escola democrática, de
ensino de qualidade e de excelência fica comprometida em decorrência da
política e prática de jubilamento. Como o jubilamento reproduz a exclusão e
resulta em afastamento de certos alunos.
Acredita-se que o discurso do profissional P6, como discutido na página 118,
mostra bem a força do discurso em relação ao perfil do CAp caracterizado por
tensões e a influência desse discurso no pensar em relação as dinâmicas de
inclusão.
Na conversa com P6 ficou claro que ele acha o fato de que alguns alunos são
jubilados da escola “cruel”. Ele opina que, para evitar essa crueldade, o melhor
seria realizar uma certa seleção na entrada. Não fazer mais sorteio direto para a
5ª série, como é feito na classe de alfabetização, mas fazer uma prova de
nivelamento e depois um sorteio entre esses candidatos que passaram pela
prova, como é feito atualmente na primeira série do ensino médio. Segundo o
mesmo profissional não existe a opção do CAp se desfazer da regra de
jubilamento.
Analisando as falas de P6 citadas na página 118, verifica-se como esse
profissional acha a prática do jubilamento cruel, mas ao mesmo tempo ele não
coloca em questão a regra de jubilamento em si; ele opina que essa regra é
necessária para manter o perfil de excelência da escola. Em vez de criticar essa
prática, ele critica a entrada de certos alunos na instituição. Para resolver os
problemas e as dificuldades por vários profissionais vividos, seria melhor ter
seleção na entrada.
119
No fragmento citado na página 118 se vê que P6 defende a política de
jubilamento do CAp. Primeiramente, segundo P6, isso seria uma maneira dos
alunos e os pais “valorizarem a vaga”. Com a idéia de precisar “valorizar a vaga”
P6, implicitamente, está defendendo a idéia de que é bom que exista uma
escola pública de qualidade somente para alguns, e não para todos.
Aqui, entende-se que “valorizar a vaga” implica automaticamente também
“valorizar a escola”. Porque se essa política de jubilamento não existisse, os
alunos poderiam repetir várias vezes, igual a como muitos alunos em escolas
públicas “normais” fazem, a escola automaticamente cairia muito em nível,
inclusive nas estatísticas nacionais de “melhor escola pública”.
P6 diz: “no fundamento é dessa forma.. uma maneira dos alunos valorizar,.. os
pais”, mas talvez fosse melhor dizer que, no contexto onde faltam políticas e
praticas a nível institucional voltados para a inclusão desses alunos que
experimentam dificuldades na escola, a política de jubilamento é talvez a única
forma de manter o valor da escola alto nas estatísticas nacionais.
Perguntado qual, então, seria a solução para oferecer oportunidades e ensino de
qualidade para esses alunos ‘sem base’, P6 em tom de ironia diz:
“Qual seria a solução? Eu acho que a solução, a solução para mim seria ter mais CAps né! (risos). (...) teria que ter mais CAps assim, aumentar mesmo né, essa escola podia ser triplicada, quintuplicada. Para poder... atender essa demanda né, que assim.. eu acho tão.. é, tão importante né. Ter mais CAps né, mais escolas como o CAp né, acho que o ideal seria se as escolas públicas fossem assim né, acho que é um modelo né, que deu super certo, que está dando e continua dando certo, e então, eu acho que ele tinha que se multiplicar”.(P6, entrevista, 2728- 2733)
120
5 CONCLUSÕES
“Não nos basta incluir novos sujeitos nas classes escolares, tal como já pioneiramente se faz no Brasil. Hoje é preciso ir além: é preciso tornar os incluídos verdadeiros sujeitos sociais, legitimamente reconhecidos como tal, sob pena de se dar à escolarização um caráter meramente assistencialista.” (SENNA, 2007)
O objetivo deste trabalho foi entender as dinâmicas de inclusão em um Colégio
de Aplicação no Rio de Janeiro através da análise das práticas discursivas dos
profissionais da instituição. A análise de dados apresentada no último capítulo
permitiu visualizar vários aspectos que fazem parte das dinâmicas de inclusão
de um contexto educacional que se auto define como democrática.
As práticas discursivas demonstravam algumas categorias temáticas em relação
às dinâmicas de inclusão na instituição. Foram identificadas como categorias
principais poder e o outro. Como subcategorias relacionadas à categoria poder
foram identificadas: hierarquia, autonomia e liberdade. Como subcategorias
relacionadas à categoria o outro foram identificadas: lugar de moradia, cultura,
classe social/ situação financeira, contexto familiar e cor da pele. Poder
entendíamos como a força exercida e distribuída em relação à participação na
instituição em discursos, políticas e práticas. Enquanto, o outro, entendíamos
como categoria social, socialmente construída com base em informações
concretas ou suposições em relação à origem de um indivíduo.
Vimos como nas práticas discursivas dos participantes as argumentações
envolvendo as categorias mencionadas acima muitas vezes se entrelaçavam e
formavam juntas um discurso em relação às dinâmicas de inclusão. Observamos
121
como a discussão em torno das políticas de democratização de acesso levou
consigo uma discussão sobre o perfil da instituição e seu público.
Analisando as práticas discursivas e considerando-as no contexto do CAp, uma
instituição que desde o final dos anos noventa democratizou o acesso e desde
então se encontra em um processo de mudança, percebemos um discurso
implícito na qual uma ´perda de tradição´ foi problematizada. Apesar de que as
decisões a respeito da democratização do acesso foram tomadas supostamente
por vias ‘democráticas’, esse discurso em relação à perda de tradição em alguns
casos se referia a uma resistência quanto às mudanças que a democratização
do acesso trouxe. Essa resistência parece ser mais forte em relação à política
de ingresso para a quinta série da instituição. Concluímos que essa resistência
está sendo refletida na existência de algumas tensões na instituição.
A primeira tensão observada se refere às práticas discursivas dos profissionais
participantes em relação à abordagem pedagógica na instituição. A instituição é
apresentada como tendo uma abordagem pedagógica moderna caracterizada
por conceitos como liberdade, autonomia, participação e democracia. Ao mesmo
tempo parece que a maneira como a escola lida com a diversidade que a
democratização do acesso trouxe, reforça elementos associados a uma
pedagogia mais tradicional cartesiana. Essa abordagem foi representada por
conceitos como organização e disciplina, a presença da nota, competitividade
entre alunos e hierarquia na escola.
Foi também observada uma tensão no fato em que a escola se apresenta como
uma instituição democrática, enquanto percebemos em outras instâncias uma
122
assimetria de poder dentro da instituição. Percebemos essa assimetria entre
representantes da direção e outros profissionais, entre professores e alunos e
entre os alunos na formulação de políticas e práticas.
A tensão mais relevante em relação às questões de esta pesquisa foi
identificada na dinâmica que existe entre o processo de democratização de um
lado e o perfil de excelência de outro lado. Sem querer afirmar aqui que uma
escola democrática não poderia ser de excelência, ou que uma escola ‘para
todos’ deveria ser “nivelada por baixo” (SENNA, 2007b), concluímos que, apesar
do caráter democrático implicar a afirmação de não querer ser ´exclusiva´,
observamos nas práticas discursivas dos profissionais a dominação da idéia de
que o caráter de excelência somente pode ser mantido pondo em prática uma
certa seleção de público. Observamos a personificação de essa forma de
exclusão na política (e prática) de jubilamento.
Apesar de que alguns profissionais assinalam a tensão na dinâmica que existe
entre democratização e excelência e alguns profissionais apontam para o fato
que alguns alunos são jubilados como “cruel”, a maioria dos profissionais não
problematiza a existência da política de jubilamento em si. Observamos a
existência da idéia de que a jubilação é uma forma de “valorizar a vaga” na
instituição, uma idéia que implica, implicitamente, a existência de uma escola
pública de qualidade somente para alguns, e não para todos.
Apesar dos profissionais criticarem ao nível institucional vários assuntos em
relação à mudança, a instituição e seus discursos, práticas e políticas não são
discutidas em si. Ao contrário, foi percebido que, a política de ingresso através
123
de sorteio para a quinta série está sendo problematizada e a responsabilidade
dos problemas do trabalho escolar do dia-a-dia são colocados na origem e na
situação familiar dos alunos.
A problematização da origem de certos alunos que entram na quinta série
através de sorteio faz parte das práticas discursivas da maioria dos profissionais.
É feita referência a uma “falta de base”, uma base educacional dos alunos que
entram na quinta série através de sorteio, porém, nem em todos os casos essa
“falta de base” é mencionada. As práticas discursivas mostram que são idéias
em relação à classe social e situação financeira, e contexto familiar (nível
educacional dos pais; profissão dos pais; incentivo dos pais para estudar) do
aluno, que fazem a diferença na análise da problemática e o sucesso ou
fracasso do aluno. Dessa forma, a ‘inclusão do outro’ cria tensões em relação ao
perfil da escola: é na tensão entre o perfil de democrático e o perfil de excelência
que o “outro” está sendo construído.
Observamos como nas práticas discursivas o uso da categoria “outro” muitas
vezes acompanhou um pensar em categorias opostas ‘nós’ e ‘eles’.
Constatamos que no CAp a existência da categoria “outro” aponta para uma
divisão desigual de poder no contexto: um contexto em que “nós” domina sobre
“eles”. Neste caso, o ‘outro’ é o indivíduo que possivelmente é incluído no
contexto do ‘nós’.
Foi observado que a identificação do “outro” parecia ao mesmo tempo ser uma
questão e um tabu na escola, e como, somente alguns profissionais discutem a
124
possível existência de dinâmicas de exclusão na instituição, como, por exemplo,
os processos de discriminação ou a presença de preconceito.
Com base no estudo de documentos oficiais e com base nas observações,
concluímos que ao nível institucional da escola não parecem existir muitas
dinâmicas em relação à inclusão, isso é afirmada nas práticas discursivas dos
profissionais. Analisando nessas práticas discursivas as falas em relação ao
perfil da escola, observamos como alguns profissionais se referem ao perfil da
escola como se fosse uma coisa fixa, já definida previamente; “a escola tem um
perfil democrático” e “ela tem um nível alto”, “ela é uma escola de excelência”
foram frases freqüentemente ouvidas. Como se o caráter democrático, o nível
alto e a excelência fossem características fixas da escola e não valores que a
escola ganha pelos ´atos´ realizados nela pelos seus atores.
Junto ao discurso que inclui as categorias “eles” e “nós”, o papel da escola foi
definida em termos de “apoio a eles”. O conceito de apoio toma forma
primeiramente nas “aulas de apoio” que com a democratização do acesso, a
instituição optou criar. As aulas de apoio foram criadas como estratégia para
poder oferecer uma estrutura de ‘reforço escolar’ para esses alunos que
experimentam problemas em relação ao trabalho escolar. Porem, concluímos
que, como única estratégia providenciada pela instituição a estrutura de aulas de
apoio parece não dar conta de realmente melhorar a situação acadêmica desses
alunos que por varias razoes não podem contar com “apoio” em casa.
Em relação a papel da escola, também foi encontrada a presença de um
discurso sobre aculturação de “eles”. Vários profissionais entrevistados
125
mencionaram “oferecer cultura” como um papel importante da escola. Nas falas
a escola foi descrita como tendo e oferecendo um ‘alto nível de cultura’, uma
coisa que, segundo esses profissionais, contrasta com o ‘baixo nível de cultura’
de muitos alunos que entram na escola através de sorteio. Nas práticas
discursivas de alguns profissionais encontramos a idéia de ser uma escola
democrática significa oferecer acesso à “cultura dominante”. Aqui, observamos a
idéia em relação à função da educação de providenciar uma aculturação social e
cultural como descrita por Senna (2007).
Ligado ao discurso de apoio, existe um discurso de “favores”. Esse discurso se
contrapõe a um discurso em termos de direito à educação. No contexto do CAp,
uma escola pública, durante a sua historia por muita gente considerada uma
escola de elite, uma discussão em relação à democratização do acesso à
instituição, caracterizado por um discurso de favores e apoio de “nós” a “eles”
indica a existência de uma idéia de inclusão na instituição de educação de
qualidade como favor da “elite” a “não elite”.
Concluímos que existe no CAp uma necessidade de refletir abertamente sobre a
relação entre democratização e excelência: a questão de como pode-se incluir
todos e todas e ao mesmo tempo oferecer uma educação de alta qualidade.
Concluímos que atualmente, no contexto da democratização do acesso decidido
no âmbito da direção do colégio, e pela conseqüente ausência de ação a nível
institucional, os professores tinham que se virar sozinhos com a nova situação
na prática do dia-a-dia da sala de aula. Isso resultou no fato que muitos deles
foram procurando estratégias para lidar com a diversidade e providenciar da
126
melhor forma um ensino de qualidade que atendesse a todos os alunos.
Observamos como vários profissionais se esforçam para buscar outras formas e
estratégias para poder incluir todos os alunos no processo de aprendizagem. Em
alguns casos parece que os profissionais conseguiram realmente incluir todos os
alunos no processo de construção de conhecimento, e em outros, apesar das
boas intenções deles, parecia que os professores na verdade através de suas
práticas criavam mais conflitos e dinâmicas de exclusão na sala de aula.
Com base no trabalho de Van Parijs (2004), concluímos que, para entender o
que significa inclusão em um contexto educacional, é importante entender em
que espécie de interpretação de oportunidades iguais, o discurso, as políticas e
as práticas estão baseadas. Concluímos que no CAp estudado, em relação à
inclusão na instituição, domina a interpretação formal do conceito de igualdade
de oportunidades como descrita por Van Parijs (2004). Com a democratização
do acesso, a instituição optou por eliminar a discriminação no acesso à
instituição, mas não são consideradas as dinâmicas de exclusão dentro da
instituição. Concordando com Van Parijs (2004) concluímos que a interpretação
formal de igualdade de oportunidades é problemática porque, o que exatamente
é “mérito” individual é difícil de definir, como vários fatores sociais podem
influenciar o desenvolvimento de talentos. Assim, esse conceito permite
desigualdades.
Nesse sentido a realidade pesquisada é um exemplo de uma “nova forma de
exclusão” como descrito por Tedesco (2002), uma exclusão resultado do
paradoxo que segundo Apple (2005) e Dubet (2003) caracteriza os sistemas
127
educacionais de hoje em dia. Esses sistemas se caracterizem por uma “de-
politização” do contexto educacional (APPLE, 2005) e uma “igualdade hipotética”
(DUBET, 2003). Dentro dessa nova forma de exclusão o individuo não é
entendido como ligado a papeis e posições sociais. É suposto que “cada um
seja “soberano”, dono de si mesmo, responsável por uma vida que não pode
mais ser totalmente reduzida a um destino.” (DUBET, 2003, p. 41), enquanto a
escola e os processos educacionais são consideradas neutros. Com base nessa
igualdade hipotética e a de-politização do contexto educacional, domina dentro
do CAp um princípio universalista em relação ao conteúdo escolar que parece
resultar em idéias a respeito da “aculturação social” dos alunos na escola
(SENNA, 2005). Neste sentido, o CAp representa a ideologia de um
universalismo formal discutido por Forquin (2000): a escola considera os alunos
iguais em direitos e deveres e o julgamento escolar no final se concentra apenas
nos desempenhos acadêmicos do aluno.
Nesta pesquisa entendemos as práticas discursivas como as diferentes
maneiras em que as pessoas, através dos discursos, ativamente produzem
realidades psicológicas e sociais (PINHEIRO In SPINK, 2000, p.186). No
entanto, não podemos esquecer os esforços e a motivação dos profissionais na
procura de novas estratégias e posturas, o conjunto de práticas discursivas
estudado aponta para a construção de uma realidade onde a assimilação e
aculturação de “eles” é considerada mais importante que a verdadeira inclusão.
Porém salientamos que, as práticas discursivas estudadas não podem ser
128
entendidas separadas do contexto na qual elas são construídas: uma instituição
em que a inclusão não se estenda muito além de políticas de acesso e apoio.
Por sua vez a instituição também não pode ser entendida como uma ‘entidade
independente’. Como falou um dos profissionais durante a entrevista,
lamentavelmente a instituição não é “Alice no país das maravilhas”. É necessário
entender a realidade pesquisada no contexto social da sociedade brasileira onde
a desigualdade está presente em todas as partes, como em nós mesmos. Neste
contexto concluímos que, como muitas instituições educacionais, também essa
escola “integra mais e exclui mais que antes” (DUBET, 2003, p. 44).
Para uma verdadeira inclusão, a educação de hoje em dia teria que passar por
um processo de profundas reformas. Seria preciso uma reconsideração de
nossas idéias sobre igualdade, inclusão e os objetivos que temos com
educação. Precisaríamos deixar para traz os conceitos impostos pela
modernidade e considerar inclusão como uma política que incorpora o processo
educacional e o contexto das instituições educacionais como um todo. Para
realmente incluir esses grupos que até então foram excluídos precisaríamos re-
pensar, re-formular e re-formar processos educacionais. “Trata-se de uma
transformação de caráter político, cultural e pedagógico” (GOMES, 2003, p.222)
para a qual precisaríamos sair do lugar de suposta neutralidade na aplicação
das políticas sociais. Somente dessa forma poderíamos começar a determinar
os parâmetros da inclusão social e Educação Inclusiva.
129
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