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Traulito • nº 2 • Julho de 2010 • 3 TRAULITO Sua aldeia se chama Tenonde Porã. O que isso quer dizer ? JERÁ GISELDA Tenonde significa algo que está na frente, futuro. E porã é algo bom, boni- to. “O futuro que traz esperança de ser bom, bonito”. No estado de São Paulo temos 24 aldeias. Qua- tro na capital, como a minha. Todas elas Guarani Mbya. Cada uma tem suas particularidades e a mesma questão: a dificuldade em demarcar a área pela Funai. Das 24 aldeias, a Tenonde é a mais numerosa. Tem quase mil pes- soas numa área de 26 hectares, que é muito pequena. Para se ter uma idéia: o ideal de um espaço para viver, plantar, caçar é aque- le em que para você visitar outro núcleo familiar deve andar uma ou duas horas a pé. Na minha aldeia eu caminho dois minutos e já chego à outra casa. Quando eu era criança tinha 20 famílias. Hoje tem mais de 100 vivendo apertadas. Mesmo assim a gente conhece todo mundo, desde o pequenininho ao velhinho. Mas agora, faz algumas semanas, es- tou vendo pessoas estranhas. Eu vivo muito nos dois mundos – no meu mundo Guarani e no da cul- tura de vocês. E sei que onde tem muita gente, como numa cidade, é impossível todo mundo conhe- cer o outro. TRAULITO - Essa aldeia é muito antiga? JERÁ – Tem mais de 60 anos. O meu falecido avô parecia um pouco com um japonês. Baixinho, troncudinho, per - nas grossas, meio branco, olho rasgado, meio carequinha, acho que não é muita característica de Guarani, mas ele era assim. Ele veio do Rio Grande do Sul, com a minha mãe, que tinha dois anos, e minha tia. Tinha uma época, nas dé- cadas de 1920 e 1930, em que muitos guaranis se concentravam no centro de São Paulo, vendendo artesanato. Nessa época, na região onde é a aldeia hoje, morava uma família de japoneses que vi - nha para o centro também. Eles conhe- ceram o meu avô e o convidaram para ir morar na área, com mais duas famílias de japoneses. Ele gostou muito do meu avô porque achou que ele era um paren- te perdido. ( risos ) Cultivavam algumas plantações, se deram super bem e fica- ram com eles até minha mãe completar 12 anos. Minha mãe é uma “super gua- ranizona”, baixinha, cabelo comprido, preto, olho bem rasgadinho. Uma cor bem Guarani. E aí às vezes ela acorda na aldeia e começa a falar japonês, o que é muito hilário. Ela conta umas partes da história da aldeia que eu não consigo de- talhar. Diz que um japonês contava que era o mundo da guerra, que fazia parte de um mundo em que matava para não morrer. E que ele estava em um navio muito grande, e não sei em que águas ele falou ao irmão dele: eu vou pular, por - que não quero matar e não quero mor - rer. Ele era um coronel e o irmão falou assim: pula você, eu não vou pular. Ele pulou, e de repente estava lá. Quando passavam aviões na aldeia, ele tinha fei - to buracos na terra. Aí cobria com folha de palmito esses buracos. Quando ouvia som de avião ele se enfiava no buraco, ficava três, quatro dias e não saía. Acho que tem algo a ver com a Segunda Guer - ra. Ele estava traumatizado. Minha mãe não sabia direito falar a língua deles ain- da, mas ia e pegava água para eles. TRAULITO – E a sua mãe aprendeu a falar japonês? JERÁ – Aprendeu. Fala bas- tante japonês, mas ela nunca quis nos ensinar. Ela dizia: “o que você vai fazer com esta língua? Tem que falar Guarani!” TRAULITO E foi na terra dos japoneses que começou a aldeia? JERÁ – Eu não sei exatamen- te o que aconteceu, mas a família de japoneses resolveu ir embora. E já existiam outras famílias gua- ranis por ali. E ele então resolveu doar a terra para essas famílias. E deixou o meu avô como cacique. Mas meu avô ficou meio surta- do com a idéia e não quis. Falou para os outros guaranis que esta- vam lá: “fiquem aqui que eu vou dar uma passeada e já volto.” Aí com minha mãe e minha tia foi para uma aldeia no Rio Branco, que é próxima também, fica con- centrada na Mata Atlântica, entre Mongaguá, Peruíbe e Itanhaém. Ficaram muitos anos no Rio Branco, depois foram para o Sul. Os Guarani têm muito isto de não ficar parados em uma aldeia só. Só depois retornaram para a Tenonde Porã. TRAULITO – O seu avô nun- ca foi cacique? JERÁ – Não, ele não aceitou. Quando ele voltou para a aldeia, ENTRE DOIS MUNDOS Entrevista com Jerá Giselda, líder Guarani e professora Luiz Gustavo Cruz “Para falar de cultura, o ponto primordial é a questão da terra.”

ENTRE DOIS MUNDOS - companhiadolatao.com.br · vive nos dois mundos, surgiu um pouco de atrito com essa situação, no caso em que ele não sabe escre - ver, não sabe ler, não tem

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Traulito • nº 2 • Julho de 2010 • 3

TRAULITO – Sua aldeia se chama Tenonde Porã. O que isso quer dizer ?

JERÁ GISELDA – Tenonde significa algo que está na frente, futuro. E porã é algo bom, boni-to. “O futuro que traz esperança de ser bom, bonito”. No estado de São Paulo temos 24 aldeias. Qua-tro na capital, como a minha. Todas elas Guarani Mbya. Cada uma tem suas particularidades e a mesma questão: a dificuldade em demarcar a área pela Funai. Das 24 aldeias, a Tenonde é a mais numerosa. Tem quase mil pes-soas numa área de 26 hectares, que é muito pequena. Para se ter uma idéia: o ideal de um espaço para viver, plantar, caçar é aque-le em que para você visitar outro núcleo familiar deve andar uma ou duas horas a pé. Na minha aldeia eu caminho dois minutos e já chego à outra casa. Quando eu era criança tinha 20 famílias. Hoje tem mais de 100 vivendo apertadas. Mesmo assim a gente conhece todo mundo, desde o pequenininho ao velhinho. Mas agora, faz algumas semanas, es-tou vendo pessoas estranhas. Eu vivo muito nos dois mundos – no meu mundo Guarani e no da cul-tura de vocês. E sei que onde tem muita gente, como numa cidade, é impossível todo mundo conhe-cer o outro.

TRAULITO - Essa aldeia é muito antiga?

JERÁ – Tem mais de 60 anos. O meu falecido avô parecia um pouco com um japonês. Baixinho, troncudinho, per-nas grossas, meio branco, olho rasgado, meio carequinha, acho que não é muita característica de Guarani, mas ele era assim. Ele veio do Rio Grande do Sul, com a minha mãe, que tinha dois anos, e minha tia. Tinha uma época, nas dé-cadas de 1920 e 1930, em que muitos guaranis se concentravam no centro de

São Paulo, vendendo artesanato. Nessa época, na região onde é a aldeia hoje, morava uma família de japoneses que vi-nha para o centro também. Eles conhe-ceram o meu avô e o convidaram para ir morar na área, com mais duas famílias de japoneses. Ele gostou muito do meu avô porque achou que ele era um paren-te perdido. (risos) Cultivavam algumas plantações, se deram super bem e fica-ram com eles até minha mãe completar 12 anos. Minha mãe é uma “super gua-

ranizona”, baixinha, cabelo comprido, preto, olho bem rasgadinho. Uma cor bem Guarani. E aí às vezes ela acorda na aldeia e começa a falar japonês, o que é muito hilário. Ela conta umas partes da história da aldeia que eu não consigo de-talhar. Diz que um japonês contava que era o mundo da guerra, que fazia parte de um mundo em que matava para não morrer. E que ele estava em um navio muito grande, e não sei em que águas ele falou ao irmão dele: eu vou pular, por-que não quero matar e não quero mor-

rer. Ele era um coronel e o irmão falou assim: pula você, eu não vou pular. Ele pulou, e de repente estava lá. Quando passavam aviões na aldeia, ele tinha fei-to buracos na terra. Aí cobria com folha de palmito esses buracos. Quando ouvia som de avião ele se enfiava no buraco, ficava três, quatro dias e não saía. Acho que tem algo a ver com a Segunda Guer-ra. Ele estava traumatizado. Minha mãe não sabia direito falar a língua deles ain-da, mas ia e pegava água para eles.

TRAULITO – E a sua mãe aprendeu a falar japonês?

JERÁ – Aprendeu. Fala bas-tante japonês, mas ela nunca quis nos ensinar. Ela dizia: “o que você vai fazer com esta língua? Tem que falar Guarani!”

TRAULITO – E foi na terra dos japoneses que começou a aldeia?

JERÁ – Eu não sei exatamen-te o que aconteceu, mas a família de japoneses resolveu ir embora. E já existiam outras famílias gua-ranis por ali. E ele então resolveu doar a terra para essas famílias. E deixou o meu avô como cacique. Mas meu avô ficou meio surta-do com a idéia e não quis. Falou para os outros guaranis que esta-vam lá: “fiquem aqui que eu vou dar uma passeada e já volto.” Aí com minha mãe e minha tia foi para uma aldeia no Rio Branco, que é próxima também, fica con-centrada na Mata Atlântica, entre Mongaguá, Peruíbe e Itanhaém. Ficaram muitos anos no Rio Branco, depois foram para o Sul. Os Guarani têm muito isto de não ficar parados em uma aldeia só. Só depois retornaram para a Tenonde Porã.

TRAULITO – O seu avô nun-ca foi cacique?

JERÁ – Não, ele não aceitou. Quando ele voltou para a aldeia,

ENTRE DOIS MUNDOS

Entrev ista com Jerá Giselda, líder Guarani e professora

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“Para falar de cultura, o ponto primordial é a questão da terra.”

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já tinha outro guarani, o Eduar-do, que era o cacique.

TRAULITO – Como se deci-de quem é o cacique?

JERÁ – Por exemplo, num gru-po como o de vocês aqui do teatro, tem sempre alguém para liderar. Isso acontece com naturalidade na aldeia. Na Constituição de 1988 foi garantido que o indígena tives-se uma educação diferenciada. E um dos pontos para que isso acon-tecesse era ter uma formação para o professor índio ligada a sua et-nia. Tornam-se professores aqueles que sabem falar um pouco melhor o português, os que conseguem ler, escrever documentos, fazer a ponte de fora para dentro. Então, é comum que essas pessoas sejam convidadas a serem lideranças. Só que não dá! Nem todos os profes-sores têm capacidade para dialogar com o mundo de fora, para se co-locarem a frente de projetos, lutar e reivindicar. Então, eu diria que tem pessoas que já nascem com o perfil de liderar, de ser cacique, ou de ser um xeramoi, que é o que vo-cês conhecem como pajé. O Edu-ardo já tinha esse perfil, então ra-pidamente as pessoas reconhecem e falam: “você é o cacique.”

TRAULITO – O xeramoi que você fala é o pajé, com a função mais de liderar o ritual? Como é que se sabe quem é ele?

JERÁ – No xeramoi mais ain-da porque ele sempre se destaca da maioria. Na nossa religião tem um lugar na aldeia aonde a maioria das pessoas vai para rezar, cantar, dan-çar, agradecer mais um dia de vida. A criança, quando tem 8 ou 9 anos e já tem um comportamento dife-rente, vai para a casa de reza com mais frequência. É mais centrada, se interessa por aprender outras coi-sas. E aos poucos se torna o pajé, como vocês falam, que tem o perfil de liderar a comunidade interna-mente. Só que hoje, como a gente vive nos dois mundos, surgiu um pouco de atrito com essa situação, no caso em que ele não sabe escre-ver, não sabe ler, não tem muito acesso ao mundo de fora. Porque a comunidade, sabendo que hoje o cacique tem que viver nos dois

mundos, fala: “ele não deve ser liderança porque não tem essa parte!” Tradicional-mente, quem liderava a aldeia era o xe-ramoi, o líder espiritual. Cacique é uma palavra que não vem da nossa cultura. Uns trinta anos atrás, tinha essa coisa de cacique, vice-cacique e cabo. Mas isso não é da tradição. Então eu falei para os líderes da aldeia: como a gente vive nos dois mundos, então precisamos de dois caciques. Um cacique só para lidar com as coisas internas e outro só para lidar com os lá de fora. Eu ainda não achei ninguém para dividir no meio.

TRAULITO – São sempre homens?JERÁ – A maioria. Aqui no esta-

do de São Paulo nenhuma aldeia tem uma liderança feminina. Líder espiri-tual tem. Mas liderança que envolve um trabalho com os de lá fora não tem, eu sou a única.

TRAULITO – Mas para ter lide-rança espiritual também tem que ter dom de visões e sonhos?

JERÁ – Sim, geralmente começa assim. Tem um perfil de sentar em um

grupo e falar dos sonhos. Outras pesso-as começam a falar dos sonhos e o líder interpreta. Quando eu era criança, tinha um amiguinho guarani com quem eu gostava de brincar porque era muito di-vertido. Depois de algum tempo ele co-meçou a se afastar de mim sempre que estávamos na casa de reza ou em reunião na aldeia. Eu queria sempre brincar mais com ele e ele foi se fechando, queria ficar sentado. Hoje ele é um xeramoi. Quem é xeramoi tem que deixar de fazer algu-mas coisas para se concentrar e assim ver outras coisas que estão acontecendo.

TRAULITO – Quais são as maio-res dificuldades quando vocês pensam na sua cultura no meio de dois mun-dos? É forte a influência da televisão, dos valores do consumo?

JERÁ – Para falar de cultura, o ponto primordial é a questão da terra. Os Gua-rani tradicionalmente precisam de um espaço maior. Quando não têm esse es-paço, muitas ações voltadas à cultura, aos valores do povo, vão deixando de existir. Por exemplo, um pai acorda e não tem a oportunidade de levar seus filhos homens

para a mata. É só ali que pode falar dos princípios do equilíbrio do ser guarani com os seres da mata, com a natureza. A gente tem dois tempos divididos, o Tem-po Novo e o Tempo Velho. No Tempo Velho, não pode matar certos animais. Há limites. Por exemplo: durante um ano um guarani não pode matar mais de um animal de grande porte, como uma anta. Por quê? Nhanderu, quando fez a terra para os Guarani, colocou esses princípios. Sem a terra, muitas aldeias Guarani per-dem essa situação. É quando isso ocorre, com a perda desse Tempo, que a televisão acaba tomando espaço. Os mais velhos ficam tentando falar nos princípios, nos valores. Mas o que o Guarani tinha antes era tudo na prática. Agora é tudo mui-to oral. O povo Guarani tem mesmo o hábito de transmitir os saberes através da oralidade, o que é uma coisa muito for-te também. Mas isso fica muito voltado para a questão espiritual: você vai para casa de reza, escuta o xeramoi falar, faz as danças, os cantos, as rezas. Mas é dife-rente quando você tem uma relação com a natureza. Na prática do plantio tem uma série de coisas com que você tem que aprender a lidar. Em todas as ações como Guarani você tem que respeitar os princípios. Quando você perde isso, os Guarani ficam muito vulneráveis. Aí então você precisa ficar na escola falando o tempo todo: “não precisa se arrumar, não precisa vir de salto alto para escola, a escola é em uma aldeia, gente!” Porque alguns adolescentes já começam a falar: “não vou para a escola porque o senhor não comprou sapato novo para mim.” E isso surge porque aqueles que são filhos de assalariados na aldeia têm calçados novos, uma roupa nova, e quando vão para a escola chamam a atenção de todo o grupo.

TRAULITO – Você já falou que

é da tradição Guarani mudar muito, se mover muito. Isso está nas histórias antigas? Tem alguma história mito que tem a ver com isso?

JERÁ – Pelo que eu estudo do meu povo, essa situação de ficar mudando sempre fez parte do mundo Guarani, muito voltado para o equilíbrio do ser guarani com a natureza. Quando era tudo mato, um núcleo se localizava em um espaço e ali plantavam, colhiam, pescavam. Aí, depois, mudavam desse espaço para outro, para o primeiro se recuperar. Depois de um tempo, volta-vam. Todos aqueles lugares em que você

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passa vão ficando como um território seu. Um lugar em que você já esteve, onde um parente seu morreu e foi enter-rado. Um lugar que você conhece.

TRAULITO – Fale mais sobre o Tempo Novo e o Tempo Velho.

JERÁ – Para o Guarani tem estes dois tempos, só. Ara pyau, que é o Tem-po Novo e Ara yma que é o Tempo Ve-lho. Ara pyau é o tempo de calor, época em que o Guarani pode plantar, colher, caçar. Antigamente, o Guarani planta-va em grande escala e depois guardava para consumir no tempo do inverno, que é frio. E no Tempo Velho não se caça porque não é bom para entrar na mata. E como a procriação começa no final do Tempo Novo, no Tempo Velho estão crescendo os filhotinhos: então você não pode caçar. O Tempo Novo é também aquele em que acontecem os principais rituais para o Guarani. Pri-meiro, é o mbojape nhemongarai, bati-zado do milho: a gente rala o milho e assa o milho ralado, coberto com umas folhas, embaixo da brasa, e aí faz um mel. E aí leva para a casa de reza onde acontece a consagração por esse alimen-to, que já começa na reza para plantio, colheita e nova colheita. É nessa con-sagração que os xeramoi concedem os nomes Guarani para as crianças com mais de um ano. Aí se faz uma reza e o xeramoi se comunica com os espíritos das crianças. E o espírito fala com qual nome ele tem que ser chamado.

TRAULITO – Depois de um ano de idade ?

JERÁ – Isso. Para os Guarani, até perto de um ano, o espírito ainda está um pouco distante do corpo físico. Se der o nome Guarani à criança antes de um ano, ele pode errar, a comunicação não está tão boa. (risos). Muitas crian-ças que recebem o nome antes de um ano tem que trocar, porque às vezes se tornam crianças tristes. Neste caso é desvendado que a criança está com o nome errado.

TRAULITO – Você falou em nome Guarani. Há um nome não Guarani também?

JERÁ – Isso, nesse mundo em que a gente vive, desde que a criança nasce tem que receber um nome português. Porque para tomar vacina e uma série de coisas tem que ter documento, e para isso tem que ter um nome em português.

TRAULITO – Quais os outros ri-tuais?

JERÁ – Este é um dos principais. Nos últimos anos ele foi substituído pelo nhe-mongarai, que é um batizado só para dar um nome à criança. A gente tem um xe-ramoi lá no litoral, Jejoko, que teve muito contato com os de lá – com os católicos. Ele se autoclassifica como Tupi-Guarani ou, como nós dizemos, xiripa. Ele fi-cou muito forte e passou tudo o que ele aprendeu para as aldeias Guarani. Nesse ritual, o nhemongarai, tem uma casa de reza com um altar, amba, que tem uma

cruz. A cruz é como um barquinho, e no batizado você coloca algumas folhas de uma árvore específica, faz o líquido, e aí faz um contorno de pó em volta des-te amba, onde vai grudando as velinhas que são feitas de ceras de abelha e que são acesas. Depois de toda uma reza, o xeramoi pega a água e molha a cabeça de todas as pessoas que estão ali para serem purificadas novamente e para aqueles que vão receber o nome. Só que já tem muitas aldeias percebendo essa história. Neste ano de 2010, uma lá em Angra

voltou ao mbojape nhemongarai, batizado do milho. O xeramoi lá em Angra falou para mim: “eu nunca vi esse negócio de ficar molhando a cabeça das pessoas, não precisa fazer isso para dar nome a elas.” E de fato na aldeia dele não tem esse amba e a cruz. É só a parede com alguns instru-mentos: mbaraka miri, hy’akua, mba’epu. Mas a maioria das aldeias tem o amba, que é uma coisa muito forte.

TRAULITO – E na sua aldeia, existe a cruz?

JERÁ – Em uma viagem em que eu

fui conhecer uma aldeia na Argentina, o cacique da minha aldeia estava junto. E teve um depoimento de uma guarani do lado da Argentina que foi muito forte. Ela tinha muita segurança e clareza das coisas. Disse coisas que eu sempre quis falar para as pessoas mais velhas, mas nunca consegui. Contou toda a história dos jesuítas, das missões, falou das enga-nações, dos assassinatos de líderes e ex-plicou que nós sofremos muita influên-cia da cultura jesuíta. Aí o meu cacique falou assim: “vamos voltar para a aldeia

e jogar o amba para fora!” Mas logo ele disse: “vão pedir para colocar a gente em um hospício.” Eu falei que tudo bem, é uma influência. A gente está cheio de influências dos de lá. Mas a cultura é viva, então ela também vai se transformando, vai mudando, devido a contatos. Mas enfim, o amba já faz parte da situação religiosa do Guarani e não tem como jogar fora. A gente pode contar toda a história, conversar com os guaranis mais jovens, mas não pode ser radical assim.

TRAULITO – Como você aprendeu a falar tão bem o por-tuguês?

JERÁ – Eu tinha 10 anos e não falava nada, não entendia. Aí mi-nha mãe conseguiu me matricular na primeira série com quase 11 anos e minha irmã com 13. Não sei o que ela fez, talvez a diretora fosse japonesa. (gargalhadas!) Foi meu primeiro contato com este mundo de vocês. Eu me lembro que era muito cruel: um monte de crianças como eu, mas que falavam uma língua estranha. Tinha uma pro-fessora que era a Inês Maria Ma-chado. Tinha vezes que eu chorava e não queria ir para a escola. Então ela aparecia, me pegava pela mão, fazia carinho na minha cabeça e me levava de volta para a escola. Mas em agosto eu já estava alfabe-tizada e tentava ensinar as crianças da minha aldeia. Já queria ser igual à Inês Maria Machado. (risos)

TRAULITO – Você teve con-tato com ela recentemente?

JERÁ – Eu tentei várias vezes, mas não consegui. Da última vez soube que ela morava em um apar-tamento em Interlagos, eu fui até lá, mas ninguém sabia, não era ela. Foi ela que me ajudou no contato com este outro mundo. Foi a pri-meira que me tirou da aldeia e me levou para Parelheiros, um bairro mais próximo. Eu ficava parada na rua e via as motos, os carros. E um monte de pessoas passando: pare-ciam meio iguais. Aí quando eu atravessava a rua, nossa, eu suava.

TRAULITO – Você tinha quantos anos?

JERÁ – Tinha 11. E na minha

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família ninguém falava portu-guês. Eu não comia nada de fora. Minha mãe fazia pão de milho, o mbojape, a farinha. Meu pai pescava, caçava, então tudo era ali dentro. Não tinha televisão, não tinha luz, nada. Eu gostava muito de estudar. Fazer frases, então era uma coisa muito es-pecial para mim. Eu gostava de ficar pensando em tudo que eu tinha feito. E só de pensar na professora, fazia gestos como ela. E de vez em quando eu me encontrava com meus amigos e ficava me comportando como ela, ensinando. E eles olhavam estranho pra mim.

TRAULITO – E quando che-gou a luz?

JERÁ – Eu tinha 14 ou 15 anos. Mas foi de uma forma boa. Não tinha mais cheiro de querosene, que fazia as pessoas passarem mal. Quando chegou a luz, tudo se ilu-minava à noite. Eu podia estudar o alfabeto, as vogais. Então a luz era uma coisa muito boa. Mas com o passar do tempo, alguns de lá leva-ram uma televisão e colocaram na casa de reza. Então todo mundo fi-cava junto. Eu me lembro de coisas bem cruéis, de conflito. Passavam filmes de bangue-bangue e me lembro que os indígenas se apro-ximavam do branco para matá-lo com arco e flecha. Mas muitos ín-dios meio que torciam para o bran-co. E os mais velhos falavam: “olha o índio, olha o índio.” Depois veio tudo o que a gente tem hoje para todos: televisão para todo mundo, rádio, vídeo-game, máquina de la-var roupa, fogão.

TRAULITO – Vocês têm al-guma relação com o MST? Parece existir muita afinidade entre a sua reflexão sobre a terra e a deles.

JERÁ – Quando tem alguma manifestação em Brasília ou algu-ma reivindicação de terra e gente se encontra. Mas até onde eu sei o pessoal do Mato Grosso é que tem mais contato. Sempre ouvi falar da questão da linha pedagógica deles para ensinar as crianças. Eu tinha uma amiga que tinha um trabalho com eles. E quando ela falava, o olho dela brilhava. Ela contava

que as crianças de 8, 9 anos são alta-mente politizadas. Eu queria conhecer um pouco mais. Ver aulas, participar de algumas coisas, mas ainda não tive essa oportunidade.

TRAULITO – Imagino que deve haver muita gente da universidade atrás de você, que domina os idiomas e conhece bem o trânsito entre os “dois mundos”. Como é a sua relação com os pesquisadores?

JERÁ – As aldeias Guarani talvez não sejam tão assediadas quanto as aldeias lá do meio da Amazônia. Mas teve uma época da minha vida que eu não estava fazendo mais nada, só dan-do atenção aos estudantes. Eles que-riam fazer tese sobre a língua, comida, religião guarani. E ocorre que às vezes a gente não vai com a cara da pessoa e então enrola até ela desistir. Porque o importante é que haja uma situação de troca, independente do que faz e do que não faz. Se eu faço uma pesquisa e escrevo um livro e vendo, com cer-

teza isso não deve ficar só para mim. O que eu posso compartilhar com as pessoas da aldeia? Posso dar um curso? Ensinar alguma coisa? Eu acho que in-dependentemente de ser guarani tem que ter isso. Como eu recebo muitas ligações, às vezes vejo quem eu gosto, por telefone mesmo. E aí atendo, pro-curo ter uma conversa. Às vezes eu me engano, mas geralmente eu tenho uma capacidade para sentir as pessoas.

TRAULITO – Alguns desses pes-quisadores devem ficar fascinados com o contato com vocês…

JERÁ – Ficam mais do que deviam ficar, porque se identificam, só saem quando são expulsos. (risos) Por outro lado, tenho um amigo que consegue fazer uma comunicação diretamente com a língua indígena. É o George. Ele é muito bom com línguas. Um ameri-cano que fala japonês, espanhol, portu-guês. Em um ano ele aprendeu guara-ni fluente e ensina muito bem. Ele foi muito aceito na aldeia. Fica três vezes

por semana com a gente. Ele é guaxu, como nós chamamos a homossexuali-dade. Em nenhum momento ele quis esconder isso. E foi acolhido mesmo entre os homens. Ele gosta muito de um mito Guarani: guando Nhanderu criou o mundo, fez os homens primei-ro. E aí um dia disso para os filhos: “vai lá na terra ver como o povo está.” E aí o filho de Nhanderu veio e viu que os homens estavam namorando. E tinha um homem grávido. Aí ele volta para o pai e relata o que está acontecendo. E aí o pai diz: “volta lá e cria um parceiro para esses homens, uma mulher lá na terra.” E aí ele veio e gerou a mulher. E o homem grávido falou assim: “e eu? E agora?” “Não. Você não vai ter o seu filho aqui Nhanderu fez uma morada sagrada para você ficar lá.” E aí ele acei-tou. E até hoje ele está lá, em uma mo-rada sagrada. E aí eu digo brincando para o gringo: “está vendo! Gay tam-bém existe no mundo dos Guaranis desde que o mundo é mundo! Tem um até grávido!”

TRAULITO – Esse teu jeito bem-humorado é característica dos Guara-ni ou de muitos índios?

JERÁ – Os Guarani vivem rindo, fazendo piada de quase tudo o que acontece no seu dia-a-dia. Mesmo em encontros com outras etnias, quando chegam os Guarani é um transtorno. Todo mundo brincando. É um dos princípios. Nhanderu diz que, se você vai viver mais um dia de vida, então tem que viver com alegria. Não pode ficar jururu. Se tem algum problema, tem que resolver sem perder a alegria de viver. A vida é uma coisa muito es-sencial. Nhanderu te trouxe lá de outra esfera aqui, para você viver. Você tem que viver bem, é um dos princípios.

TRAULITO – Como você vê a si-tuação dos Guarani no Brasil, de um modo geral?

JERÁ – Falando de um modo ge-ral, eu não vou mentir: quase perco a esperança. Mas não perco. Apesar de nossas terras estarem muito diminuí-

das, tem novos caminhos vindos dos dois mundos. Por exemplo, entre os de lá, temos amigos mui-to queridos. Gente que vem de família muito culta, rica, mas que chega na aldeia, tira o sapato, vai para o matinho, se identifica com o lugar, como as coisas são. Eles reclamam do seu mundo, dizem que as pessoas não parecem pes-soas. E alguns deles nos ajudam a abrir caminhos, sabe? Para reivin-dicações da comunidade indíge-na. Muitos jovens na cidade têm um coração mais aberto, mais consciente. Isso vai determinando outros caminhos. Desde os meus 11 anos de idade eu conheci várias pessoas, com diferentes formas de ver a vida. A grande maioria teve muita importância para este meu desenvolvimento nos dois mun-dos. Aprendi a lidar com pessoas diferentes e aprendi a lidar com as contradições. O número de pessoas ignorantes é grande, mas o número de pessoas conscientes também é grande. Por outro lado, na aldeia as pessoas também estão estudando a sua cultura. Apren-dem as coisas aqui de fora e vão deixando de ser ingênuas. Tenho muitos amigos que me ajudam a entender esse mundo de vocês que é muito complexo para mim. Para mim é sempre muito impor-tante fazer contato com o outro mundo, com idéias diferentes. É sempre enriquecedor para mim como guarani. Não tem como viver só no meu mundo. E aí, então, vamos lutar juntos pela de-marcação de terras, lutar por uma causa mais justa, não só indígena, mas com outras realidades. Con-tribuir para que mais gente tenha uma realidade melhor.

TRAULITO – Obrigado pela entrevista maravilhosa.

JERÁ – Eu gostei de estar aqui com vocês.

Entrevista realizada por Adriana Mendonça, Ana Petta, Carlos Escher, Gabriela Villen, Luiz Gustavo Cruz,

Martin Eikmeier, Maurício Braz, Ney Piacentini, Renan Rovida,

Roberta Carbone, Rogério Bandeira e Sérgio de Carvalho. Edição de Sérgio

de Carvalho.

“Passavam filmes de bangue-bangue e muitos índios meio que torciam para o branco”.