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Universidade Federal da Paraíba Roberto Mesquita Ribeiro S.I. ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA O PROCESSO MIMÉTICO DA FARSA DA BOA PREGUIÇA João Pessoa 2007

Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

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Page 1: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

Universidade Federal da Paraíba

Roberto Mesquita Ribeiro S.I.

ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA

O PROCESSO MIMÉTICO DA FARSA DA BOA PREGUIÇA

João Pessoa

2007

Page 2: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

1

Roberto Mesquita Ribeiro S.I.

ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA

O PROCESSO MIMÉTICO DA FARSA DA BOA PREGUIÇA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba para a obtenção do título de Mestre em Letras Área de concentração: Literatura e Cultura Linha de pesquisa: Leituras do texto literário Orientador: Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo

João Pessoa

2007

Page 3: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

2

Universidade Federal da Paraíba

Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes

Pós-Graduação em Letras

Dissertação intitulada “Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça”, de autoria

do mestrando Roberto Mesquita Ribeiro S.I., aprovada pela banca examinadora constituída pelos

seguintes professores:

__________________________________________________ Prof. Dr. Arturo Gouveia de Araújo – Orientador

CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

__________________________________________________ Profa. Dra. Sandra Luna

CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

__________________________________________________ Prof. Dr. Abrahão Costa Andrade

CCHLA – Universidade Federal do Rio Grande do Norte

__________________________________________________ Profa. Dra. ELISALVA DE FÁTIMA MADRUGA DANTAS

Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras CCHLA - Universidade Federal da Paraíba

João Pessoa, 06 de fevereiro de 2007.

Campus Universitário – João Pessoa/PB – 58059-970 – Brasil – tel: (0xx83) 3216-7289 – fax: (0xx83) 3216-7335

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3

AGRADECIMENTOS

A realização desta pesquisa é fruto de muitas conivências. Aproveito a ocasião para

agradecer a muitos cúmplices nesse empreendimento, começando pelo saudoso amigo Pe.

Waldyr Santos, companheiro jesuíta que me ofereceu a maior parte das obras de Suassuna que li e

que ofereceu não só sua vida, mas sua morte à África, sendo assassinado este ano na missão

jesuíta de Moçambique.

Por ele vai meu agradecimento à Companhia de Jesus, “mínima Companhia” como

gostava de dizer Santo Inácio, à qual pertenço e que incentiva a nós, jesuítas, a mergulhar na

matéria do mundo com olhos contemplativos, pois sabe que Deus está em toda parte, em todas

as pessoas.

De modo particular, agradeço à Professora Elisalva Madruga, coordenadora desta

Pós-Graduação, pelo incentivo e pela amizade. Meu agradecimento se estende também aos

professores Arturo Gouveia, meu orientador atento e paciente, e aos professores Diógenes

Maciel e Sandra Luna, com quem tanto aprendi.

Enfim, foi de minha família que herdei o amor pelas letras e a capacidade de sonhar

que me leva, hoje, ás portas da China. Jamais poderei retribuir tanto amor e tanto bem recebido,

um bem que vem do alto. Afinal, Deus é generoso!

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4

RESUMO: Este trabalho aborda a Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna, a partir da relação

entre a estética do texto e seus elementos temáticos éticos. A apresentação da intriga da peça e a

explicitação dos procedimentos usados em sua construção, bem como suas fontes, abrem a

análise, retomando-se outros trabalhos acadêmicos sobre a dramaturgia de Suassuna. Para

fundamentar a abordagem escolhida para esta pesquisa, apresentamos os principais elementos da

teoria de Paul Ricœur em literatura, em particular as noções de mimesis I (pré-figuração), II

(configuração) e III (re-figuração). Essa teoria da mimesis como processo permite que sejam

destacadas diferentes facetas da relação dialética entre os recursos estéticos do texto e suas

implicações éticas a partir do tratamento temático, segundo os três momentos do processo. A

análise do texto, retomada após a explicitação do material teórico, apresenta os elementos da

construção da peça segundo a tríplice mimesis e avança na direção do exame dos vestígios

narrativos da Farsa. A análise da mimesis II, centrada sobre o texto, é privilegiada em função da

opção de se renunciar ao exame de elementos extratextuais, como a encenação. Assim sendo, a

pesquisa prossegue em direção à estrutura profunda do texto da Farsa, identificada através do

modelo actancial. A pesquisa é concluida com a abordagem do tema da identidade narrativa,

sempre segundo Ricœur, analisando a construção dos personagens Manuel Carpinteiro e Joaquim

Simão em sua relação mútua, relação que assume a figura do julgamento. Esse último ponto do

trabalho revela melhor a relação livre, não condicionante, entre ética e estética, que permite

considerar a literatura e o mundo do texto que lhe é próprio como espaço estético propedêutico à

ética.

Palavras-chave: Ariano Suassuna, Farsa da boa preguiça, Paul Ricœur , mimesis, ética, estética.

Page 6: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

5

ABSTRACT: This work studies the Ariano Suassuna’s play entitled “A Farsa da Boa Preguiça”, analyzing

the relationship of the text’s esthetics and its thematic-ethical elements. The presentation of the story’s plot and the

explanation of the procedures employed in its elaboration, as well as its sources, open the analysis of the play,

taking into consideration previous academic work published about Suassuna’s dramaturgy. To support the elected

approach for this research, it is presented the foremost elements of Paul Ricoeur’s theory applied in literature,

particularly, the notions of mimesis I (pre-figuration), II (configuration) and III (refiguration). This theory of

mimesis allows that different facets of dialectical relationship between the esthetic resources of the text and its

ethical implications from the thematic elements become highlighted, according to the three moments of the process.

The analysis of the text, retaken after the explanation of the theoretical material, presents the elements of the

elaboration of the play, in accordance with the triple mimesis, and this analysis advances towards the direction of

the narrative vestiges of the play. The study of mimesis II, focused on the text, turns out to be privileged in

function of the option to renounce the examination of extra-text elements such as the acting aspect. Thus, the

research continues in direction of the play’s profound structure, identified through the actancial model. The research

is concluded with the approach of the theme of the narrative identity, always taking Paul Ricouer’s theory as

paradigm, analyzing the developing process of the characters of Manuel Carpinteiro and Joaquim Simão in its

mutual relationship, which assumes the figure of the judgment within the play. This final point of this study shows

better the free relationship between ethics and esthetics, with any kind of conditions, which allows to evoke literature

and the text universe, which is proper to the first, as the esthetic space introductory to ethics.

Keywords: Ariano Suassuna, Farsa da boa preguiça, Paul Ricœur , mimesis, ethics, esthetics.

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6

SUMÁRIO

Agradecimentos ......................................................................................................................... 3

Resumo ....................................................................................................................................... 4

Abstract ...................................................................................................................................... 5

Sumário ...................................................................................................................................... 6

Introdução ................................................................................................................................ 10

Capítulo primeiro - A Farsa da boa preguiça: uma apresentação ....................................... 14

1. Origens e traços fundamentais da Farsa da boa preguiça ............................................... 16

1.1. Das fontes primárias aos entremezes, dos entremezes à Farsa .............................................. 18

1.1.1. “O peru do cão coxo”: 1o ato .............................................................................. 18

1.1.2. “A cabra do cão caolho”: 2o ato .......................................................................... 22

1.1.3. “O rico avarento”: 3o ato ..................................................................................... 25

1.2. Outras raízes: as fontes literárias brasileira e ibérica .............................................................. 29

2. Erudito e popular na obra de Ariano Suassuna ............................................................... 37

3. Observações sobre a relação entre ética e estética no texto da Farsa ............................ 39

Capítulo segundo - Paul Ricœur e a teoria da mimesis como processo: ferramentas para

uma análise da Farsa com ênfase na relação ético-estética ............................................ 41

1. Panorama do pensamento de Paul Ricœur ....................................................................... 42

2. Fundamentos aristotélicos da teoria da tríplice mimesis ................................................. 44

2.1. Poiesis .................................................................................................................................... 45

2.2. Praxis ..................................................................................................................................... 47

2.3. Muthos .................................................................................................................................... 48

2.3.1 Um modelo de concordância ................................................................................ 49

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7

2.3.2 Um aparte ético .................................................................................................... 50

2.3.3 Concordância discordante .................................................................................... 53

2.4. Mimesis ................................................................................................................................... 54

3. A tríplice mimesis ................................................................................................................ 58

3.1. Mimesis I – pré-figuração ....................................................................................................... 61

3.2. Mimesis II - configuração ....................................................................................................... 63

3.3. Mimesis III - refiguração ........................................................................................................ 65

3.3.1 Progressão entre mimesis I, II e III ...................................................................... 65

3.3.2 O ato de leitura e a configuração.......................................................................... 67

3.3.3 O problema da referência ..................................................................................... 68

3.3.4 Uma fenomenologia do tempo ............................................................................. 70

3.3.5 O mundo do texto................................................................................................. 70

4. Dois temas complementares ............................................................................................... 72

Capítulo terceiro - Análise dos elementos narrativos da Farsa: preparar-conduzir-julgar . 75

1. Retomando o trilho: a tríplice mimesis e a construção da peça ...................................... 76

1.1. Mimesis I – Prefiguração ........................................................................................................ 76

1.2. Mimesis II – Configuração ..................................................................................................... 78

1.3. Mimesis III – Re-figuração ..................................................................................................... 79

2. Vestígios narrativos presentes na Farsa da boa preguiça ................................................ 80

2.1. As rubricas .............................................................................................................................. 82

2.2. Narrações feitas pelos personagens ........................................................................................ 84

2.3. O personagem-narrador .......................................................................................................... 86

2.4. Duas polêmicas ....................................................................................................................... 93

2.4.1. Boal e Suassuna: um falso paralelo ..................................................................... 93

2.4.2. Estatuto épico do teatro de Ariano Suassuna ...................................................... 96

3. Relevância ético-estética da figura do narrador na Farsa da boa preguiça ................... 97

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8

Capítulo quarto - Nas profundezas do texto: estrutura e mimesis II da Farsa da boa

preguiça ........................................................................................................................... 102

1. Primeira abordagem das oposições fundamentais da peça ........................................... 105

2. Análise actancial da Farsa da boa preguiça .................................................................... 107

2.1. Estruturas elementares de significado na Farsa ................................................................... 111

2.2. O núcleo “sujeito”-“objeto” na Farsa .................................................................................. 113

2.3. Os triângulos actanciais ........................................................................................................ 116

2.3.1. O triângulo ativo: “sujeito”-objeto”-“oponente” ............................................... 117

2.3.2. O triângulo psicológico: “destinador”-“sujeito”-“objeto” ................................ 118

2.3.3. O triângulo ideológico “sujeito”-“objeto”-“destinatário” ................................. 121

2.4. Estrutura complexa do esquema actancial da Farsa .............................................................. 126

3. Progressão do nível profundo ao nível superficial ......................................................... 131

3.1. Actantes, atores, papéis, personagem ................................................................................... 133

3.1.1. Atores e personagens da Farsa .......................................................................... 134

3.1.2. Entre actantes e personagens: os papéis ............................................................ 139

3.1.3. Personagem: noção necessária e em crise ......................................................... 140

Capítulo quinto - Entre ética e estética: Joaquim Simão no banco dos réus ...................... 145

1. A identidade narrativa ..................................................................................................... 147

1.1. A dialética entre a construção da intriga e a construção do personagem .............................. 152

1.2. A dialética idem-ipse em funcionamento no laboratório literário ......................................... 154

1.3. Função-chave da identidade narrativa e suas implicações éticas .......................................... 156

2. Manuel e Simão em processo: a construção das identidades na Farsa ........................ 159

2.1. Como se faz um poeta preguiçoso ........................................................................................ 159

2.1.1. Simão, o anti-herói? .......................................................................................... 163

2.1.2. Simão, herói neo-picaresco ............................................................................... 167

2.2. Deus demasiado humano: o processo de construção de Manuel Carpinteiro ....................... 175

2.2.1. Um Cristo diferente ........................................................................................... 176

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9

2.2.2. De carne e de fogo: um juiz apocalíptico .......................................................... 179

3. O juízo derradeiro de Joaquim Simão ou um julgamento sem pena ........................... 186

3.1. Um julgamento sem condenação .......................................................................................... 188

3.1.1. O julgamento divino na doutrina cristã ............................................................. 189

3.1.2. Misericórdia e riso ............................................................................................ 191

3.2. Do julgamento derradeiro ao julgamento literário ................................................................ 194

A modo de conclusão: do mundo do texto ao universo de Suassuna .................................. 199

Referências bibliográficas ..................................................................................................... 207

1. Bibliografia específica de e sobre Ariano Suassuna ....................................................... 207

1.1. Livros ................................................................................................................................... 207

1.2. Artigos e entrevistas ............................................................................................................. 210

2. Bibliografia geral .............................................................................................................. 215

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INTRODUÇÃO

Apesar de sua aparente simplicidade, a Farsa da boa preguiça é um texto complexo.

Trata-se de um texto longo, com fortes acentos épicos; um texto farsesco, mas portador de

rupturas com a tradição da farsa; cômico, mas temperado por situações um tanto sérias; seus três

atos são relativamente autônomos, mas a peça goza de uma grande unidade de conjunto; o estilo

é popular, mas as raízes eruditas não se escondem por completo. Numa palavra, a marca da peça

é um certo equilíbrio, tanto formal quanto temático.

Um elemento em especial se destaca no meio do panorama complexo desta peça. Ele

é evidenciado pela polêmica de que dá testemunho o comentário explicativo aposto em forma de

prólogo à publicação, texto do próprio autor: “A Farsa e a preguiça brasileira”. 1 Tal elemento

polêmico é a “moralidade” do texto, ponto difícil por situar a discussão aparentemente fora do

domínio da literatura ou, quando muito, conduzida diretamente à temática e saltando por cima da

estrutura. De fato, a intervenção do autor no prólogo pouco se refere ao texto de sua peça.

Esta “moralidade”, no entanto, está profundamente ligada à forma da peça, herdeira

da tradição medieval do paso, dos autos, das moralidades e das farsas ibéricas. Seu caráter

polêmico, moldado em torno a um vício ou virtude (boa ou má preguiça), demonstra apenas que

tal elemento se oferece como um caminho fértil para a análise. Sem nos deixarmos levar pelo

tema para uma análise construída “sobre” o texto (sem tocá-lo), nossa análise buscará sempre

estar ligada ao texto.

Em se tratando de uma análise literária, ainda que seja a análise de um texto

1 SUASSUNA, Ariano. A Farsa e a preguiça brasileira. In: ______. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. ix a xx.

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11

dramático, optamos por não incluir elementos teatrais que se situem fora do texto escrito. Isso

não significa que as indicações cênicas contidas no texto – na medida em que são escritas, como

as rubricas ou as indicações de figurino – não sejam incluídas na análise. Também essas

indicações serão analisadas. Mas não buscaremos elementos de encenações da peça, por exemplo.

E o guia da análise será a relação entre o conteúdo (especialmente os elementos éticos) e a forma

(estética) do texto.

Tendo optado por este ponto focal – a discussão em torno da moralidade da

preguiça e a forma farsesca escolhida por Suassuna para esta peça –, queremos verificar como o

elemento moral ou ético se configura na forma da peça ou, no sentido inverso, como a estética

do texto reflete certas opções éticas. Arriscaremos, também, um olhar para a implicação ética

dessas opções no espaço que se situa diante do texto, mas sempre buscando os condutores do ato

de leitura presentes no texto.

Ao optar por esse caminho pouco convencional, corremos o risco de contemplar

paisagens um tanto inusitadas no terreno da crítica literária. E a escolha do filósofo francês Paul

Ricœur como teórico de referência tende a complexificar o panorama, aumentando o risco de

transgredir as fronteiras entre literatura e filosofia. Para não nos perdermos, a atenção ao texto

como norma da análise é a nossa regra de segurança, evitando toda consideração que não se apóie

na tessitura da Farsa, em seus elementos estruturais, semânticos, estilísticos, ou seja, sem jamais

deixar o campo textual. Numa imagem, é como se explorássemos uma montanha, ora

contemplando um vale, ora outro, mas sem jamais deixar o cume. Exploraremos o texto (o

cume), mas estendendo o olhar à realidade que precede o texto e à realidade que se descortina

diante dele.

Na teoria de Ricœur, tais momentos correspondem ao que ele denomina mimesis I,

mimesis II e mimesis III. Em sua proposição da mímesis como processo, ele distingue esses três

momentos que correspondem a três conjuntos: os elementos da realidade imitada que são

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manipulados na construção de uma obra em particular (mimesis I); a construção da intriga

propriamente dita (mimesis II); e o tipo de realidade que essa construção singular propõe para a

interpretação no ato de leitura (mimesis III). Exporemos sua teoria mais detalhadamente logo

adiante, após uma primeira apresentação da peça e antes de sua aplicação à nossa análise em

particular. O único argumento que antecipamos para evitar a sensação de estarmos fugindo do

campo literário é que o centro de nossa análise é o coração do processo, ou seja, a mimesis II.

Como o próprio filósofo observa em sua teoria hermenêutica que concilia os momentos da

compreensão e da explicação, os outros momentos do processo mimético só terão sentido se

ligados a este mergulho no texto.

A esta altura já é possível notar o quanto a compreensão do processo mimético por

Ricœur é devedora de sua concepção da relação entre linguagem e mundo. Particularmente, esse

modelo depende de sua noção de texto. Talvez seja inclusive mais acertado dizer o contrário, que

sua noção de texto é devedora da teoria da mimesis como processo. Para Ricœur, o texto é capaz

de descrever o mundo de forma estável. As palavras são criadoras de uma realidade outra que a

realidade do mundo, mas sempre acessível ao espírito humano. É o mundo “presentificado pela

escritura” 2, produto de um imaginário literário.

Nossa análise procederá em cinco tempos, partindo de uma visão mais geral a outra

mais detalhada. Abriremos nosso percurso com uma apresentação da peça, que nos permitirá

apresentar os procedimentos usados em sua construção e suas fontes próximas e remotas. Essa

etapa nos autoriza uma primeira abordagem da relação entre ética e estética, através da dialética

entre as formas literárias empregadas e a temática desenvolvida. O capítulo seguinte será

dedicado a uma exposição mais detalhada da teoria mimética de Ricœur, fundamento teórico de

nossa análise. A seguir, o terceiro capítulo identificará os vestígios das três etapas da mímesis na

Farsa, retomando as conclusões do capítulo primeiro, para avançar na análise através da

2 RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. em 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 158. (Poche, 377).

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13

consideração de um dos elementos mais relevantes da peça, qual seja, a presença de vestígios

narrativos ou épicos. Essa primeira etapa nos colocará na pista do elemento central da relação

entre ética e estética na peça: a relação entre dois eixos principais, constituídos pelas polaridades

“rico x pobre” e “vício x virtude”. Para verificar a justeza dessa afirmação, aprofundaremos a

análise da mimesis II através do modelo actancial. Será o nosso capítulo quarto. E os resultados

dessa etapa solicitarão uma volta à superfície do texto para analisar os dois personagens

protagônicos e a relação entre eles, que se dá através da figura do julgamento. Veremos que este

julgamento pode ter uma dupla abordagem, uma mais interna ao texto, outra partindo do texto

em direção ao mundo do leitor. Em conclusão a este capítulo quinto, apontaremos a relevância

ética dessa interpretação e sua concordância com a análise estética que elaboramos. Ao

analisarmos a figura do julgamento3 e sua natureza, somos já introduzidos ao ponto central da

mimesis III, o encontro dos horizontes da obra e do leitor. Concluiremos nossa análise, portanto,

voltando à noção de mundo do texto.

É com essa perspectiva que ingressamos na Farsa de Suassuna, buscando nesse

aparato teórico as chaves para saborear a complexidade da peça. Como dissemos na imagem

evocada acima, caminharemos pelo cume da montanha do texto, ora considerando uma face, ora

outra, todas convergindo para as alturas do texto escrito que abordamos agora.

3 O termo “figura” não possui, aqui, outra função senão a de indicar a forma da relação específica que se estabelece entre os personagens Manuel Carpinteiro e Joaquim Simão.

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14

I

A FARSA DA BOA PREGUIÇA: UMA APRESENTAÇÃO

No começo de nosso trajeto, convém dedicar este capítulo à apresentação da peça

que faz o objeto de nossa análise. Mas definamos também desde já nossa hipótese interpretativa,

ponto de partida para a análise da Farsa da boa preguiça. Coerente com sua forma farsesca, ainda

que híbrida ou mestiça, a peça arquiteta-se em torno à controvérsia acerca de uma virtude ou

vício: boa ou má preguiça. No que tange à hibridez da forma, concordamos com Lígia Vassalo

quando afirma que o princípio que norteia a elaboração da Farsa da boa preguiça “amalgama

elementos díspares, tomados ao folheto, ao mamulengo, ao bumba-meu-boi e ao romanceiro,

unidos por uma intenção moralizadora muito mais ambígua do que nas outras peças de

Suassuna”4. Considerando a relação entre a forma e essa “intenção moralizadora”, podemos

afirmar que tanto a estrutura é condicionada pelo tema, quanto o tema é moldado pela estrutura.

Nisso não estamos distantes das observações metodológicas de Antonio Candido, quando diz

que “os valores e ideologias contribuem principalmente para o conteúdo, enquanto as modalidades

de comunicação influem mais na forma”5. Sem compreender forma e conteúdo como coisas

separadas, apesar de serem logicamente distinguíveis, estaremos sempre atentos a perceber a

relação dialética que existe entre uma e outra realidade, matriz de diversas oposições em tensão

no texto e que lhe dá seu dinamismo e força. O próprio autor confirma esta perspectiva quando,

perguntado se acreditava que o tema determina a forma, respondeu:

4 VASSALO, Lígia Maria Ponde. Permanência do medieval no teatro de Ariano Suassuna. 1988. 338 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. p. 237. 5 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T.A. Queiroz Ed., 2002. p. 30.

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15

Acredito. Eu acho que aquilo que uma pessoa tem a dizer é que determina a forma de dizê-lo. Dom Quixote, por exemplo, só poderia ter sido escrito daquele modo. Quanto a Euclides, as pessoas reclamam do estilo dele, mas aquela era a única maneira de erguer o áspero e estranho universo dos sertões. Guimarães Rosa, a mesma coisa – era a linguagem pela qual se poderia expressar o universo dele.6

Antes de ingressarmos na análise formal da peça, entretanto, cabe uma primeira

apresentação da intriga. A Farsa da boa preguiça chama à existência Joaquim Simão, poeta popular

que detesta trabalhar em outra coisa que não sejam seus poemas. Ao seu lado está Nevinha,

esposa fiel. Simão tem por vizinho Seu Aderaldo, ricaço que vive para o trabalho e que insiste em

assediar Nevinha. Simão também será assediado, justamente pela esposa de Aderaldo, Dona

Clarabela, falsa intelectual interessada num “popular” idealizado e distorcido. Ao correr da

história, Aderaldo irá perder duas vezes sua riqueza, voltando sempre a ficar rico à custa de muito

trabalho, ao passo que Simão chega a ficar rico apenas com uma aposta ganha a Aderaldo, mas

termina pobre novamente. Toda a trama7 é acompanhada de personagens aparentemente

secundários, posto que a ação pode ser quase inteiramente contada sem mencioná-los. São os três

personagens infernais e os três celestes. Mas seu caráter secundário é logo desmentido quando

notamos que a condução de toda a história é atribuída a uma espécie de narrador da peça que

sempre abre e fecha os atos. Esse personagem é Manuel Carpinteiro, figuração de Jesus Cristo em

forma de camelô de feira. Ajudado por Simão Pedro e por Miguel Arcanjo, é ele quem tirará a

moral da história na conclusão final: há uma preguiça de Deus, outra do diabo.

Iniciemos nossa análise detalhando as tradições a que se filia a peça, o que nos dará a

oportunidade de apresentar a história de sua composição. Interessados numa teoria da mimesis

como processo, tal observação nos ajudará a compreender mais tarde, no terceiro capítulo,

6 CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Instituto Moreira Salles, novembro de 2000, n. 10. Semestral. ISSN 1413-652X. p. 42. 7 Utilizamos, ao longo de todo este trabalho, a distinção entre fábula (intriga – a história que é contada) e trama (o como é contada a história) tirada de Tomachevski. Optamos, porém, por falar em intriga em lugar de fábula a fim de privilegiar a coerência com a terminologia de Paul Ricœur. Cf. TOMACHEVSKI, B. Temática. In: TOLEDO, Dionísio (org.) Teoria da literatura. Formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. p. 169-204.

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16

particularmente o que Paul Ricœur denomina mimesis I na medida em que veremos como o autor

lida com o material que tem disponível para a construção de sua intriga. Mas essa investigação da

tradição à qual se liga a peça permitirá, também, uma primeira consideração analítica que explique

a interação entre o caráter farsesco e a moralidade da Farsa da boa preguiça, estudo que já nos

aproxima da análise da mimesis II, que Ricœur situa como cerne do processo. É por esse ponto,

ainda, que seremos conduzidos a dar um segundo passo na análise (capítulo terceiro), verificando

como a forma da peça exige a inclusão de certos elementos épicos – sobretudo o personagem-

narrador – e como estes estão ligados à temática ética. Esse momento de aprofundamento da

análise exigirá, no entanto, o capítulo expositivo dedicado ao material teórico de Paul Ricœur que

nos servirá de base (cap. segundo).

1. Origens e traços fundamentais da Farsa da boa preguiça

Toda a obra de Ariano Suassuna é marcada pela influência da tradição ibérico-

medieval. Essa influência, porém, não lhe chega através de uma cepa única, e sim de três formas

diferentes: pelos vestígios dessa tradição conservados na cultura popular nordestina, pela tradição

de certos textos cômicos brasileiros, como a comédia de Martins Pena – ele também herdeiro do

teatro ibérico – e, finalmente, pelo contato direto com os textos da tradição ibérica.8

O processo de composição próprio de Suassuna é a reescritura, na qual muitas vezes

o entremez funciona como etapa intermediária da elaboração de suas comédias longas, situando-

8 A este conjunto se poderia acrescentar a influência da Commedia dell’Arte, como observa Sábato Magaldi a propósito de A pena e a lei: “Aparentemente, trata-se de uma reunião de peças em um ato, nas quais reaparecem sempre as mesmas personagens, “máscaras” reminiscentes da Commedia dell’Arte italiana”. (MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 70). O mesmo poderia ser aplicado à Farsa da boa preguiça, com a ressalva de uma maior continuidade entre os autos.

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17

se entre as fontes primárias9 e o texto final de maior extensão. Como em todas as suas peças

cômicas, a Farsa da boa preguiça segue o mesmo princípio de criação onde as raízes – sobretudo as

fontes populares do folheto de cordel, do mamulengo e do bumba-meu-boi – são elaboradas

primeiro numa forma curta (o entremez), depois amalgamadas e expandidas na forma final da

peça (auto ou farsa)10. A peça, penúltima escrita pelo dramaturgo antes do Romance da Pedra do

Reino e última a ser publicada,11 reflete o amadurecimento desse processo complexo de

composição. Nela, Ariano Suassuna retoma dois entremezes anteriores, além de incorporar

diretamente outras fontes sem etapa intermediária de reescritura. Conforme observa Idelette

Santos, o resultado do processo que culminou na Farsa é de tal qualidade que uma identificação

imediata das fontes, separando-as e distinguindo-as, é impossível12. Somente uma análise linear e

cuidadosa da peça pode revelar as linhas principais de sua tessitura.

Iniciamos nossa análise destacando primeiramente as fontes primárias presentes na

peça final, para depois buscar as raízes mais remotas. Esse percurso de frente para trás permite

que uma abordagem imediata da trama nos guie em nossa prospecção. De posse de uma visão do

conjunto da peça, buscaremos identificar a herança da tradição formal do entremez e da farsa,

sobretudo, no texto de Suassuna, religando-o à história dessas formas cômicas na península

ibérica e no Brasil.

9 Por fonte primária, aqui, compreendem-se os textos ou formas da tradição popular já fixados pela publicação ou pelo costume e difundidos na região nordestina. Ariano Suassuna parte muitas vezes desses materiais para compor seus personagens (como João Grilo, do Auto da Compadecida, e Benedito, de A pena e a lei) ou parte mesmo das histórias (caso da Farsa da boa preguiça). 10 Cf. SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. p. 236. Ela observa que, desde 1949, quando da escritura do Auto de São João da Cruz, Ariano Suassuna recorre ao processo de construção textual que retoma o folheto no entremez (um ou mais folhetos) e, enfim, passa do entremez ao auto ou à farsa (podendo recorrer a um ou mais entremezes). 11 Após a Farsa, Suassuna escreveu ainda A Caseira e a Catarina, em 1962. A primeira edição da Farsa, no entanto, data somente de 1974. A última peça escrita por Ariano Suassuna, retomando trechos de seu romance maior, é As conchambanças de Quaderna (1987). 12 Cf. SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos, op. cit., p. 266.

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18

1.1. Das fontes primárias aos entremezes, dos entremezes à Farsa

A Farsa da boa preguiça retoma dois entremezes do mesmo autor: O rico avarento13 e O

homem da vaca e o poder da fortuna14. Estes, por sua vez, retomam peças de mamulengo de dois

autores diferentes: Ginu (As bravatas do professor Tiridá e As aventuras de uma viúva alucinada) para O

rico avarento; e Benedito (O preguiçoso) para O homem da vaca e o poder da fortuna.15 Mas, além do

mamulengo, o texto de Suassuna nutre-se também de elementos do folheto de cordel, do

romance e do bumba-meu-boi.16 A fim de termos uma visão mais detalhada do conjunto

complexo dessas fontes, passemos a uma análise da Farsa ato por ato.

1.1.1. “O peru do cão coxo”: 1o ato

O primeiro ato da Farsa apresenta, desde o início, o problema que constitui o fio de

13 SUASSUNA, Ariano. O rico avarento. In: ______. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1974. p. 5-16. 14 Idem, O homem da vaca e o poder da fortuna. In: Ibidem, p. 37-58. 15 Sobre a importância do mamulengo para a escritura cômica de Suassuna, veja-se o que ele próprio relata quando, recebendo sua futura esposa e outros familiares seus, escreve sua primeira peça cômica: “Escrevi uma peça chamada Torturas de um coração. E essa peça foi muito importante para mim porque foi com ela que eu dei a guinada, porque até então eu só tinha escrito tragédia e essa foi a primeira peça cômica que eu escrevi, para mamulengo. Eu mesmo me apresentei, eu e alguns primos. Eu escrevi a peça e eu representei o Benedito e coloquei até um terno de pífano. Tinha um homem chamado “seu” Manoel Campina, lá de Taperoá, e eu coloquei o terno de pífano para separar com números musicais. Você veja bem, foi a primeira peça com a qual eu abri o caminho para escrever o Auto da Compadecida. Era uma peça montada para mamulengo e eu acho que me marcou muito, tanto a poesia dos cantadores quanto a peça de mamulengo”. In: CONTINENTE MULTICULTURAL. Recife: CEPE, 2002, n 20. ISSN 1518-5095. p. 10 (Disponível em: http://www.continentemulticultural.com.br/revista020/materia.asp?m=Especial&s=1. Acesso em: 16 nov. 2006). 16 Essa posição é confirmada pelo próprio autor: “As duas peças de mamulengo que serviram de fonte à minha foram ultimamente divulgadas, no Nordeste, pelos mamulengueiros conhecidos como “Professor Tira-e-Dá” e “Benedito”. Por sua vez, o “folheto” popular também teve sua versão recente através do folheto denominado “O Homem da Vaca e o Poder da Fortuna”, de autoria de Francisco Sales Areda”. In: SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. xxii.

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19

Ariadne da peça inteira: saber qual a verdadeira natureza da atitude de Simão, boa ou má

preguiça. Os personagens divinos, logo na abertura, dividem-se e se opõem quanto a esse ponto,

sendo o Arcanjo Miguel contrário ao poeta, São Pedro a favor. De um lado o ser angelical, do

outro um ser humano santo. Manuel Carpinteiro, representação de Jesus Cristo, é o fiel da

balança entre o anjo e o santo.

Note-se que a rubrica de abertura salienta e faz referência direta a aspectos dos

espetáculos de feira e de circo. De fato, Manuel Carpinteiro fala “em tom de camelô”17 e Miguel

Arcanjo se veste como “os ‘homens-da-cobra’, os camelôs da propaganda popular dos pátios e

das feiras do Nordeste.”18 A referência ao circo, tão presente no imaginário de Suassuna, é menos

direta (era mais notável no entremez O Rico Avarento19) e se dá pela descrição do cenário – ou

melhor, pela ressalva que quase desdiz o que fora dito sobre o cenário: “Mas a peça pode ser

montada sem cenário, como, aliás, acontece nos espetáculos populares do Nordeste, em cujo espírito ela se

baseia.”20 Certamente o circo não é a única forma de espetáculo popular destituída de cenário, mas

é uma espécie de um gênero e sua influência sobre o autor é extremamente forte21, marcando de

forma explícita algumas de suas obras.22

No plano terrestre, a intriga é simples: o rico Aderaldo tenta seduzir Nevinha, a

mulher do poeta, por intermédio de uma diaba (Andreza). Clarabela, mulher de Aderaldo e

17 Ibidem, p. 5. 18 Ibidem, p. 4. 19 No final desse entremez, por exemplo, o personagem Tirateima expulsa os diabos a cacetadas, num procedimento que remete aos dos palhaços de circo. De modo mais geral, essa presença é notada por Mário Guidarini, quando observa que “o esconde-esconde dos personagens, o vai-e-vem dos mesmos e o jogo cênico circense alimentam o interesse dos espectadores, apear de certo cansaço das formas que se repetem”. In: GUIDARINI, Mário. Os pícaros e os trapaceiros de Ariano Suassuna. São Paulo: Ateniense, 1992. p. 66. 20 SUASSUNA, Ariano, op. cit, p. 4 (grifos nossos). 21 “Eram circos sem números sofisticados e sem bichos. Em compensação, o universo festivo era infinitamente maior, mais espontâneo, garantido pelas apresentações de espetáculos populares e pelas improvisações dos palhaços. Deve-se ressaltar, ainda, que as peças de teatro quase sempre faziam parte dos espetáculos, encenadas em palcos improvisados no meio do picadeiro. Foi num circo, portanto, que o futuro dramaturgo assistiu pela primeira vez a uma peça de teatro”. In: NEWTON JR, Carlos. O circo da onça malhada. Recife: Artelivro, 2000. p. 28 (grifos nossos). 22 É o caso, por exemplo, do Auto da Compadecida que, entre outros elementos, tem a dupla João Grilo-Chicó inspirada nos palhaços. Cf. RABETTI, Beti. Circo e teatro: duetos cômicos na tradição popular e no espetáculo. In: ______ (org.). Teatro e comicidades: estudos sobre Ariano Suassuna e outros ensaios. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p. 47 – 62.

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pretensa intelectual, tenta seduzir o poeta Simão. Ao mesmo tempo, Aderaldo planeja fazer

negócio com seu gado, vendendo toda a sua propriedade, mas é enganado pelos diabos e perde

tudo.

A cena da sedução de Nevinha por intermédio de Andreza recorre a um personagem

típico do mamulengo23: a alcoviteira. Nessa cena, Andreza oferece um presente para cada parte

do corpo de Nevinha que ela toca passando dos pés à perna, desta ao cinto e do cinto, enfim, ao

pescoço.

Logo a seguir, Nevinha discute com Simão sobre poesia popular, sendo a conversa

entrecortada por piadas e tiradas cômicas, como: “Eita, vida velha desmantelada”. Nisso Ariano

segue também o mamulengo. Mas ele incorpora um procedimento do folheto O homem da vaca e o

poder da fortuna, de Francisco Sales Areda, ao fazer Nevinha propor uma série de trabalhos ao

poeta, que inicialmente aceita para logo depois recusar. Como observa Idelette Santos, não se

trata de reescritura do folheto, “mas de uma escritura ‘a modo de’, de um pastiche genérico”24.

Nesse episódio há, ainda, um cruzamento de forma e de tema: pouco antes dessa passagem “a

modo de folheto”, os personagens estão falando de poesia popular; depois, falam dos folhetos

que Simão deseja escrever.

O rico tenta novamente seduzir Nevinha, desta vez diretamente, mas ela resiste.

Guardando certa simetria, será logo depois a vez de Clarabela tentar seduzir Simão. Nessa cena

manifesta-se o hiato evidente entre a pretensa intelectual interessada no “popular” (um “popular”

mítico) e a realidade do poeta. No final das contas, a atitude de Simão com relação à curiosidade

de Clarabela é radical, afastando tudo o que é culto com o bordão: “Não entendi, não quero

23 Além de presente no mamulengo, certos personagens típicos como a alcoviteira referem-se à Commedia dell’Arte. Nisso a obra de Suassuna manifesta novamente e de modo concomitante sua dupla filiação: popular e erudita. No entanto, prevalece em seu estilo nesse caso específico da Farsa, pelo tratamento final da peça, a influência popular nordestina. 24 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. p. 267.

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21

entender e tenho raiva de quem entende”25.

Fechando o ato, vem a cena do engano de Clarabela pelo diabo disfarçado de frade.

Com certa ironia, Ariano faz Clarabela exultar por encontrar o verdadeiro sertão que tanto

procurava justamente quando é enganada. Esse tipo de intelectual é apresentado como aquele que

é “incapaz de ver e compreender o que não entra em seus esquemas preestabelecidos”26.

Este ato é o único dos três que não se baseia num texto anterior, embora retome

parte de O homem da vaca e o poder da fortuna. Isso se explica por ser justamente o primeiro,

procedendo à apresentação dos personagens e do problema. Considerando a preexistência dos

textos que originaram os outros dois atos, podemos dizer que, de um certo modo, a peça nasceu

de trás para frente. Não é surpresa, portanto, que as mesmas fontes que marcaram os atos dois e

três impregnem também este ato. Na verdade, é a própria coerência do conjunto que impõe

procedimentos semelhantes nos três atos – como a já duas vezes mencionada escritura “a modo

de” cordel no ato um, quando Nevinha conversa com Simão sobre trabalho e o episódio

semelhante (na forma e no tema) encontrado no segundo ato, sem falar nos episódios de

sedução, que se repetem nos atos um e dois, sendo lembrados no ato três (entre os atos dois e

três ocorre um lapso de tempo maior).

Mas além dessa influência das fontes primárias dos outros dois atos (tanto no que se

refere aos procedimentos formais quanto no que toca aos temas), é talvez essa escritura de trás

para frente que induz a inserção de certos elementos da intriga de modo repetitivo. É o caso, por

exemplo, da sedução de Simão por Clarabela, acentuada pelos ciúmes de Nevinha27. A repetição

do termo “catucar” no primeiro e no segundo atos, assim como a atitude frouxa de Simão em se

defender das investidas de Clarabela desde o primeiro ato, podem ser entendidas como reforço

25 SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 40. 26 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos, op. cit., p. 268. 27 Por exemplo, quando Clarabela oferece-se a Simão, este se mostra muito tentado (diferentemente de Nevinha), e Nevinha reclama perguntando se ela “catucou” Simão. (SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 49). A mesma expressão será empregada por ela em meio a outra cena de ciúmes, no segundo ato. In: Ibidem, p. 70.

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22

do que acontecerá entre o segundo e o terceiro atos. Com efeito, no começo do último ato da

peça somos informados de que o poeta cedera aos apelos da mulher de Aderaldo.

Outro elemento repetitivo é o empobrecimento de Aderaldo. No final do primeiro

ato, ele perde tudo através do engodo do diabo Fedegoso disfarçado de frade. A esse

acontecimento corresponde outro parecido, no final do segundo ato. Embora Aderaldo não

perca todo seu patrimônio como acontece no final do primeiro, perde uma grande quantidade de

dinheiro numa aposta com Simão sobre a fidelidade de Nevinha. Esse elemento, que por si

poderia não ter conseqüências para a intriga, acaba se revelando um evento central. De fato, um

dos pontos mais importantes da história de Simão consiste na passagem da pobreza para a

riqueza e dessa novamente à pobreza, passagem esta que acontece justamente através da aposta

ganha do ricaço. O que justifica pensar o acontecimento do primeiro ato como reforço do

segundo é justamente a gratuidade do primeiro e a necessidade do segundo para a intriga. O

empobrecimento de Aderaldo no primeiro ato não tem grandes conseqüências para o resto da

história, ao passo que o segundo tem. A recorrência do evento, portanto, intensifica o seu efeito.

1.1.2. “A cabra do cão caolho”: 2o ato

No segundo ato, Ariano Suassuna retoma o entremez O homem da vaca e o poder da

fortuna28. Neste, dois cantadores intercalam-se apresentando a história do cantador preguiçoso

28 Sobre as fontes primárias desse segundo ato, veja-se o que diz o próprio autor: “O segundo [ato fundamenta-se] na história, também tradicional, de um macaco que perde o que ganhara após várias trocas – história que é a origem do “romance”, também de autor anônimo, sobre o homem que perde a cabra e que também me serviu de fonte.” (SUASSUNA, Ariano. A Farsa e a preguiça brasileira. In: ______ Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. xxii). Em 1997, Suassuna conta que, na década de 70, o entremez quase foi transformado em ópera, sob a coordenação de Antonio José Madureira. Cf. SUASSUNA, Ariano. “Arte não é mercado, mas vocação e

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23

muito pobre, casado com uma mulher generosa. Logo no início, a mulher questiona o poeta

Simão, único personagem com nome no entremez, sobre o trabalho. Ele desconversa e propõe a

encenação do Romance de Clara Menina, na qual ele assume o papel de narrador, estando sua esposa

no papel de Clara Menina e os dois cantadores nos papéis de caçador e de Dom Carlos.

Terminada a representação, a mulher volta a insistir no trabalho. Simão nega todas as propostas

da mulher, que chora sua miséria, e vai dormir. Ao vê-la chorando, um dos cantadores,

apresentando-se como vaqueiro, dá-lhe uma vaca de leite. Ao acordar, Simão inicia uma série de

trocas com a vaca. Os dois cantadores alternam-se interagindo com Simão, que acaba apenas com

um pão e dez mil-réis. Intervém nesta hora o rico, que aposta com o poeta (cem mil-réis contra

os dez mil) que a mulher irá reclamar do fiasco das trocas feitas pelo poeta. Ela não reclama, o

rico perde a aposta e sai praguejando contra o poeta. Os cantadores concluem o entremez

contando que Simão comprou a “Fazenda Homem da Vaca”, onde viveu do trabalho. Tiram, por

fim, a moral da história:

Riqueza tem sua treva, pobreza tem sua luz! Já a miséria é desgraça Pois à desgraça conduz.29

É nesse entremez que o personagem central da Farsa, o poeta Joaquim Simão,

aparece pela primeira vez. Ele é o único que tem nome já antes da composição da Farsa. Teremos

ocasião de notar muitas outras aproximações entre este entremez e o segundo ato da Farsa,

seguindo a intriga desta parte.

Depois da abertura do segundo ato pelos personagens divinos, Simão parece ceder às

tentações de Clarabela, que lhe “catuca”. Em contraponto, a fidelidade de Nevinha é posta à

prova e se evidencia em dois episódios. Primeiro, Nevinha desconfia da massagem feita por

festa” (sic.). Entrevista concedida a Luiz Zazin Oricchio. O Estado de São Paulo, São Paulo, 12 jul. 1997. Caderno 2, D-3. 29 SUASSUNA, Ariano. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1974. p. 57-58.

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24

Clarabela, mas acaba voltando às boas com Simão e o inclui no rol dos grandes poetas populares

que ela cita (incluindo Francisco Sales Areda, o autor do folheto que serviu como uma das fontes

do entremez). Segue-se outra cena de proposição de trabalho, dessa vez retomada diretamente do

entremez e muito mais próxima do folheto de cordel de Areda. Simão, como no primeiro ato,

aceita com ânimo as sugestões de Nevinha, depois as vai refutando com igual entusiasmo,

retomando procedimento já presente no entremez.

A outra situação, mais grave, que coloca em cheque a fidelidade de Nevinha, é a das

trocas, também tirada do entremez. Simão, por intermédio dos personagens sobrenaturais

disfarçados, é enganado a cada novo negócio. Nevinha entrega-lhe a cabra que recebera em

doação. Simão começa a fazer trocas e acaba somente com um pedaço de pão. No entremez, a

situação era mais próxima do bumba-meu-boi. O animal, precisamente, é mudado: a vaca dá

lugar a um animal mais “diabólico”, a cabra30. Embora as trocas não sejam as mesmas no

entremez e na farsa, ambas seguem ordem decrescente. Simão faz um péssimo negócio, dando

ensejo à aposta entre o poeta pobre e o rico fazendeiro. No entremez, a aposta era feita com

dinheiro contra dinheiro, sendo o objeto a reclamação ou não da mulher. Na Farsa, entretanto,

Joaquim aposta a própria Nevinha (aceitando se retirar, deixando o campo livre para o ricaço)

contra o dinheiro de Aderaldo. Há, portanto, um aumento de dramaticidade na situação, que se

resolve favoravelmente para Simão. Mas, novamente, a peça acrescenta lá onde o entremez havia

calado: Nevinha tem plena consciência do que se passa. Agiu por esperteza, não por estupidez.

Esse recurso permite dar um valor positivo à sua atitude, contrastada à insensatez do marido.

Mais ainda, a constante intervenção dos personagens sobrenaturais disfarçados – recurso ausente

do entremez – dá continuidade ao julgamento da atitude de Simão. Percebe-se com isso que a

figura dos cantadores tinha muito menor profundidade do que os personagens divinos e

30 A troca da vaca pela cabra reforça a coerência da peça. Aqui, a cabra é na verdade a diaba Andreza disfarçada. Mais tarde, no terceiro ato, serão Fedegoso e Quebrapedra disfarçados de bodes. Todos os diabos, em algum momento da peça, agem como caprinos, apesar de se apresentarem com os nomes de “cão coxo”, “cão caolho” e “cancachorra”.

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infernais, sendo esses últimos não apenas mais relevantes, mas mais numerosos (seis, em lugar de

dois). O julgamento da atitude de Simão passa-se no plano divino e prepara o desfecho no

terceiro ato, quando os pobres são salvos e os ricos também. Mas esses últimos por pouco (nos

dois últimos minutos do prazo dado pelos diabos) e através da intervenção dos pobres (recurso

também ausente no entremez, onde o rico avarento é condenado sem recurso).

O ato, com a solução da aposta pelo bem de Simão e de Nevinha, acaba bem para os

pobres. Tendo ganhado do ricaço o dinheiro da aposta, Simão tem agora a mulher, o dinheiro... e

a preguiça que lhe é cara.

No processo de reescritura do entremez para a peça, desaparece o uso de um elenco

pequeno que encena vários papéis. Embora a Farsa não exija um grande número de atores, no

entremez apenas cinco atores fazem todos os personagens, incluindo a representação do Romance

de Clara Menina31 (que desaparece na Farsa), exemplo de teatro dentro do teatro32. Embora vários

vestígios épicos e narrativos presentes no entremez ainda sejam encontrados na peça, essa

representação metalingüística tão explícita desaparece. Inegavelmente, há na peça uma adesão

maior do personagem ao ator, que sempre representa um só papel, ainda quando se disfarça33.

1.1.3. “O rico avarento”: 3o ato

Novamente, este ato baseia-se em entremez escrito pelo autor e que tem o mesmo

31 SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 39-43. 32 Segundo Anatol Rosenfeld, este tipo de construção é “símbolo de um mundo enganador e fugaz”. (ROSENFELD, A. O teatro épico. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 59). Tomando a sério essa afirmação, o desaparecimento desse episódio na Farsa pode ser considerado indício de uma visão de mundo mais otimista. 33 É o caso, por exemplo, dos diabos que se disfarçam para as trocas de que se falará no segundo ato. Se o público não soubesse que se trata precisamente de disfarce usado pelos diabos, a cena perderia todo o seu efeito. No entremez, os cantadores assumem completamente outros papéis, para depois voltarem a ser quem são.

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título do ato. O entremez, inspirado na peça anônima do mamulengo, abre-se com a auto-

apresentação de Tirateima, que bate na porta do Rico avarento (personagem anônimo) para pedir

emprego. É logo contratado como “mestre-sala” do ricaço, numa alusão ao bumba-meu-boi.

Iniciam-se uma série de visitas de pessoas muito pobres pedindo esmola, sempre recebidas por

Tirateima e enxotadas pelo ricaço. Após a terceira visita, o ricaço sente-se mau e Tirateima chama

seu Fuxico, o motorista, para levá-lo ao hospital. Negando qualquer outra despesa, o rico afasta

também a proposição do chá feita pelo mestre-sala. Este, num gesto típico de palhaço de circo,

perde a paciência e dá uma cacetada na cabeça do patrão, que acaba melhorando e revela que

todo o mal-estar deveu-se à perda de um botão. Tirateima reclama, é despedido. Aparece então o

Canito, bode-diabo chefe do inferno, revelando que era ele, na figura de todos os pedintes. Ele

anuncia que vem buscar o ricaço, se ele não achar quem reze um Pai-Nosso e uma Ave-Maria por

ele em sete dias. Logo em seguida, anunciando a passagem do tempo, aparecem também o Cão

Coxo e o Cão Ciúme. O rico é levado e os diabos voltam-se para Tirateima. Reagindo, este

expulsa os bodes a chapuletadas, gabando-se, no final, de sua valentia.

Muitos elementos do entremez são guardados na Farsa. No entanto, a construção do

contexto efetuada pelos atos anteriores modifica todo o sentido da intriga. Já no início do terceiro

ato, somos informados de que um lapso de tempo indeterminado, mas significativo34, marca uma

reviravolta: Aderaldo virou um velho avarento depois de perder a aposta para Simão. Clarabela

deixou o gosto pela cultura popular e concentrou seu interesse no “sexo rústico”. Nevinha e

Simão perderam tudo novamente e chegam como retirantes à porta de Aderaldo para pedir

emprego. Se o entremez fosse uma fotografia, seu contraste teria sido aumentado: o rico é mais

34 “O prólogo do terceiro ato denuncia uma passagem de tempo. Não é dito pelos personagens quanto tempo se passa, mas mostra-se ser suficiente para que Joaquim Simão enriqueça, traia sua mulher e empobreça novamente. A fala de Simão (“Estou velho, e Dona Clarabela também”. In: SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. 2 ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 119) sugere igualmente uma passagem de tempo” (SANTOS, Fábio Cordeiro dos; CARDOSO, Inês; SANTINI, Alexandre, A peça teatral como fonte primária de pesquisa: a Farsa da boa preguiça, de Ariano Suassuna. In: RABETTI, Beti (org.). Teatro e comicidades: estudos sobre Ariano Suassuna e outros ensaios. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. p. 136).

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avarento, sua mulher é mais incoerente, os pobres são mais pobres.35

Aderaldo contrata Joaquim Simão, que veste a roupa de mordomo, mantendo a

alusão ao bumba-meu-boi. Mas, se no entremez essa menção do bumba-meu-boi é direta, aqui ela

é apenas alusiva: Simão é que nota estar vestido “até de mestre-sala de bumba-meu-boi”36, não

sendo jamais chamado assim por Aderaldo.

A série de visitas também acontece, sendo os visitantes personagens celestes

disfarçados (os diabos já são parte do convívio ordinário dos ricaços, dois deles são amantes de

Clarabela). A situação é apresentada como uma última tentativa de salvar Aderaldo, vindo o poeta

a intervir junto ao ricaço para que ele atenue sua avareza e favoreça os pedintes. O ricaço julga a

si mesmo ao permanecer obstinadamente avarento. Mas o equilíbrio aparente entre as forças

sobrenaturais (três personagens de cada lado) se desfará em favor do bem. A solução, no entanto,

que depende da intercessão dos pobres em favor dos ricos dentro de um certo prazo de tempo,

permite uma outra inserção dramática com duplo efeito: retardar a ação, marcando melhor que

no entremez o prazo dado pelos diabos, e salientar a humanidade de Simão Pedro junto com a

compreensão de Manoel Carpinteiro. Trata-se do episódio “São Pedro e o queijo”37, pequeno

interlúdio dentro do ato enquanto se passam as sete horas dadas aos ricos para que alguém

interceda por eles. Os personagens celestes decidem disputar um queijo indo dormir e apostando

quem teria o sonho mais bonito e que levaria o prêmio. São Pedro revela-se o mais esperto dos

três seres divinos e o mais humano, quando engana Miguel e o próprio Manuel Carpinteiro ao

comer o queijo dizendo-se sonâmbulo. Ao fim do pequeno acontecimento a história é retomada,

sendo finalizada em favor de todos e deixando Simão novamente na trilha da boa preguiça, o

35 A este procedimento Ricœur chamará de “aumento icônico” (Cf. RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 246. (Poche, 377)). Embora se refira a uma função própria de toda a construção ficcional, alguns procedimentos ou alguns momentos específicos da narrativa são mais reveladores desse aspecto, como nesse exemplo da Farsa. Cf. capítulo V, item 3.2, p. 194 et seq.. 36 SUASSUNA, Ariano Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 139. 37 “O terceiro ato baseia-se num conto popular, o de ‘São Pedro e o Queijo’, e também noutra peça tradicional de mamulengo, chamada ‘O Rico Avarento’”. (Ibidem, p. xxii). Outra referência poderia ser encontrada, ainda, nas “Estórias de Jesus e São Pedro quando andavam pelo mundo”.

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ócio criativo. A moralidade é tirada pelos personagens sobrenaturais, conduzidos por Manuel

Carpinteiro.

A integração dos elementos populares, como já se disse, é muito bem realizada,

estando o resultado final organizado num todo coerente. Os entremezes, por exemplo, que não

tinham personagens em comum (embora sempre reproduzissem a oposição rico-pobre), são

organizados em torno das figuras dos dois casais: Simão e Nevinha, Aderaldo e Clarabela38. A

estes acrescentam-se outro par oposto, os personagens celestes e infernais, que acompanham

toda a intriga. A maior definição dos personagens, de fato, é o maior ganho na passagem dos

entremezes à Farsa. Dotados de nomes e agindo durante uma seqüência muito mais larga de

episódios, todos eles têm mais profundidade na peça maior. Aos casais e diabos já existentes nas

peças curtas, ainda, Suassuna acrescenta o trio celeste, que tem papel central na condução da

ação.

Certamente a etapa intermediária da escritura dos entremezes contribuiu para um

maior distanciamento e melhor apropriação das fontes populares primárias na construção da

intriga e da trama da Farsa. A continuidade entre os entremezes que deram origem aos segundo e

terceiro atos e o texto final da peça é temperada por modificações muito significativas39. O

resultado final é uma peça cuja arquitetura é notável. Como observa Idelette Santos, “a

preocupação com o equilíbrio geral aparece em cada cena: precisa sempre compensar a seriedade

38 Na transformação do entremez O rico avarento em ato da Farsa, Tirateima vira Simão, o rico avarento vira Aderaldo. Para O homem da vaca e o poder da fortuna, Simão continua sendo ele mesmo e sua mulher, sem nome no entremez, ganha relevo (e nome). O rico que faz uma aparição discreta no final do entremez é identificado com Aderaldo. Os cantadores desse entremez podem ser vistos como um esboço dos personagens divinos, personagens que, por assim dizer, pairam sobre a trama. 39 Apenas para retomar alguns exemplos: O rico avarento é escrito em prosa, a Farsa em verso; o ricaço é condenado no entremez, salvo na peça; no entremez, são os diabos que se disfarçam, na Farsa são os santos; o entremez não possui personagens femininas, na peça elas são três mulheres. Quanto a O homem da vaca e o poder da fortuna, a figura dos cantadores desaparece e, junto com eles, o Romance de Clara Menina; os personagens trocam de papel, ao passo que na Farsa há maior adesão do personagem ao ator. Em ambos os entremezes, não há figuras celestes (embora haja figuras infernais em O rico avarento). Também não existem situações de sedução nos entremezes.

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29

pelo riso, relativizar a lição de moral com uma anedota maliciosa, etc.”.40

1.2. Outras raízes: as fontes literárias brasileira e ibérica

Se a influência popular é mais primária e sensível, seja pela retomada de obras já

existentes de outros autores, seja pela linguagem colocada na boca dos personagens41, a influência

do teatro ibérico – diretamente ou através de uma certa tradição do teatro cômico brasileiro – é

muito visível, em especial do ponto de vista formal. O recurso ao entremez evoca, por exemplo, a

obra de Martins Pena, inaugurador da comédia brasileira, ele também influenciado pelo entremez

de Portugal. Além disso, a Farsa, como as demais peças cômicas longas de Suassuna, retoma

formas típicas do teatro medieval ibérico, como a farsa popular, a moralidade e o teatro religioso.

Não nos deteremos numa análise detalhada dessas influências, que faria objeto de outra pesquisa

e nos levaria fora do eixo de nosso estudo42, mas veremos os principais vestígios desses outros

40 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. p. 272. Ela dirá, ainda mais precisamente: “A história d’O homem da vaca será retomada ainda por Ariano Suassuna na Farsa da boa preguiça, mas, nesse grau de complexidade, não se pode falar mais de reescritura, e sim de um verdadeiro diálogo entre os fragmentos do entremez e outros textos e vozes, numa nova estrutura teatral”. In: Ibidem, p. 249. 41 Suassuna costuma se filiar à tradição de Molière, Shakespeare e outros, enquanto prefere partir do popular para construir suas obras literárias: “Existem poetas de gênio, como Shakespeare, que criam suas obras a partir dos romances, baladas e contos populares (...). Mas existem outros, igualmente geniais, como Proust, que têm posição muito diferente. A escolha de um caminho ou de outro depende do gosto e da decisão de cada um de nós. De modo que, quando afirmo minha preferência por Cervantes, Molière, Manuel de Falla ou Garcia Lorca, que partem do popular, não estou dizendo que somente esta linhagem é legítima, estou apenas afirmando que também ela é legítima.” (SUASSUNA, Ariano. Arte erudita e arte popular. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 fev. 1999, Caderno 1, Opinião, p. 2). No entanto, essa ligação não pode ser buscada no uso da linguagem, ao menos não no seu teatro. Trata-se, sobretudo, de uma afinidade de procedimento e de princípio. Do ponto de vista da forma, porém, há grande ligação entre as obras populares e o trabalho do dramaturgo. 42 Para uma pesquisa mais aprofundada das fontes do teatro de Suassuna, recomendamos especialmente os estudos de Ângela Maria Bezerra de Castro [______. Gil Vicente e Ariano Suassuna: "acima das profissões e dos vãos disfarces dos homens". 120 f. Dissertação (Mestrado em Literatura Portuguesa) – Departamento de Letras e Artes, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1976], Lígia Maria Ponde Vassalo [______. Permanência do medieval no teatro de Ariano Suassuna. 1988. 338 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988], Maria Ignez Moura Novais [______. Nas trilhas da

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influxos na peça de Suassuna a fim de mergulhar ainda mais no mundo de onde surge a Farsa e

melhor situar o mundo criado por ela.43

Com a tradição inaugurada por Martins Pena, Ariano Suassuna partilha a escolha de

formas do teatro medieval e barroco ibérico, como o entremez, o auto e a farsa. Ao recusar um

modelo realista de teatro44, Suassuna segue o rastro de Pena que, sem deixar de retratar os

costumes, renuncia a uma comédia “alta”45 para dar vazão ao riso solto e a uma construção

menos sofisticada. Por isso mesmo, seu teatro exigirá um grau insuspeitado de convencionalismo,

como nota o próprio autor ao comentar um episódio do Auto da Compadecida:

Porque não tem cangaceiro que caia numa cilada tão idiota como aquela da bexiga de cachorro escondida numa camisa. Aquilo é uma coisa que, para gostar do meu teatro, é preciso que o público faça um acordo com o autor: nós vamos acreditar juntamente com você, para que a gente possa pensar que isso pode acontecer durante duas horas.46

Em Suassuna, ainda, a influência da cultura ibérica é mais ampla, não se limitando

cultura popular: o teatro de Ariano Suassuna. 1976. 242 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária e Literatura Comparada) – FFLCH, USP, São Paulo, 1976] e de Paulo Roberto Guapiassú [______. A marmita e a porca: a presença plautiniana na comédia nordestina. 1980. 216 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1980]. 43 Preferimos falar em fontes literárias e não eruditas. Parece-nos mais acertada essa formulação, embora imperfeita. De fato, dentre as fontes medievais, algumas são de natureza popular. No entanto, fonte “literária” parece não contemplar outros aspectos da tradição do teatro, muito mais ampla do que o texto apenas. Como limitamos nossa análise ao texto da peça, porém, fixamos esse termo. Sobre a polêmica em torno à relação erudito-popular na obra de Suassuna, veja-se a seguir o item dois desse capítulo. 44 Questionado sobre a relação entre arte e realidade, Suassuna dirá: “Eu acho que, de certa maneira, a arte é, sim, um acerto de contas com a realidade. É por isso que sou contra o naturalismo, o neonaturalismo. Eu acho que a arte, por natureza, não é uma imitação do real, é uma recriação. É uma realidade magnificada. Não é a realidade do dia-a-dia. Se fosse para imitar a realidade do dia-a-dia, melhor seria ficar com a própria realidade”. In: CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Instituto Moreira Salles, novembro de 2000, n. 10. Semestral. ISSN 1413-652X. p. 43. 45 Em Martins Pena essa opção não foi completamente consolidada, pois, talvez movido pela crítica, ele procurará explorar outras formas tidas por mais elevadas. De modo também distinto, Suassuna não pode ser dito, no mesmo grau, um comediógrafo de costumes como foi o caso de Pena. (Cf. VERÍSSIMO, José. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998. p. 359-360 e ROMERO, Sílvio. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio; Brasília: INL, 1980. v. 4, p. 1396 – 1397). A importância de Martins Pena será posta em evidência, no entanto, com os trabalhos de Vilma Arêas (Cf. ARÊAS, Vilma. Na tapera de Santa Cruz. São Paulo: Martins Fontes, 1987) e de Iná Camargo Costa (Cf. COSTA, Iná Camargo, A comédia desclassificada de Martins Pena. In: ______. Sinta o drama. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 125-155). 46 In: CONTINENTE MULTICULTURAL. Recife: CEPE, 2002, n 20. ISSN 1518-5095. p. 13. Disponível em: <www.continentemulticultural.com.br/revista020/materia.asp?m=Especial&s=1>. Acesso em: 16 nov. 2006.

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apenas ao teatro. Ela permeia sua poesia (com destaque para as iluminogravuras47), sua prosa, seu

romance e seu teatro, marcando os traços estéticos do Movimento Armorial que ajudou a fundar.

No caso particular do teatro, essa influência se faz sentir tanto no plano formal quanto no

temático.

Do ponto de vista temático, nota-se especialmente a intenção moralizadora, que a

forma farsesca parece ameaçar na medida em que apresenta um herói bastante ambíguo, como

veremos no capítulo quinto. Silviano Santiago percebe este elemento temático, ao comentar O rico

avarento:

[Trata-se de] um entremez em que o choque entre personagens se desenvolve de maneira a conduzir o espectador a uma moralidade, ou seja, que a representação teatral tem o fim de alertar o público contra os perigos da avareza, por exemplo. Nesse sentido, o teatro de Ariano Suassuna nos lembra o teatro medieval, bem como os autos escritos pelos jesuítas no Brasil, com a finalidade de catequizar os índios.48

Coisa muito semelhante poderia ser dita de O homem da vaca e o poder da fortuna,

acrescentando-se que a moralidade desse último é mais ambígua que a do outro entremez,

característica que se repetirá na Farsa da boa preguiça49. De fato, a ambigüidade do tema é forte o

suficiente para levar o autor a se pronunciar sobre a polêmica despertada pela peça no prólogo da

edição impressa. Outra vez nos defrontamos com esse aspecto temático que, ao nosso parecer, dá

força à obra na medida em que está em tensão com a forma farsesca.

Do ponto de vista da forma, note-se, Suassuna não emprega um gênero puro. Ao

contrário, recorre às forma da farsa e ao entremez, mesclando-as com traços do teatro religioso

47 “Inspirado nas iluminuras medievais e seus textos apocalípticos produzidos nos mosteiros da Idade Média, ele cria nos anos 80 o termo iluminogravura – ‘Eu criei o nome iluminogravura para batizar estes textos que são não apostos a uma ilustração, mas que se fundem com ela numa obra de arte só’”. In: CONTINENTE MULTICULTURAL. Recife: CEPE, maio 2005, n 53. ISSN 1518-5095. p. 19. 48 SANTIAGO, Silviano. In: SUASSUNA, Ariano. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1974. p. 17. 49 Quanto à moralidade do teatro de Suassuna, o autor, interrogado sobre a tendência moralizante do Auto da Compadecida, responderá: “Nesse caso, eu reconheço a tendência e espero que não tenha sido pesada demais. De fato, a peça tem alguma coisa da moralidade, algo dos mistérios marianos que eram um tipo de dramaturgia do qual gostava muito. Tenho muita admiração por Gil Vicente e sua influência, acredito, é perfeitamente visível no Auto da Compadecida e em outras peças minhas. E, por ele ter sido um católico com uma visão bastante libertária, espero ter me mantido na mesma linha”. In: O Policarpo Quaresma do sertão no novo século. O Estado de São Paulo, São Paulo, 24 abr. 2005. Caderno 2, Cultura, p. D8-D9.

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medieval e das moralidades.

As moralidades surgem da inspiração religiosa cristã própria à Idade Média ocidental,

consolidando-se como forma dramática por volta do século XV50. Nesses curtos dramas, a intriga

tem menos importância que a temática e, por conseqüência, os personagens ganham certo

aspecto típico como representantes do vício ou da virtude51. Por sua extensão e pelo

desenvolvimento de sua intriga, a Farsa extrapola essa forma. Mas conserva dela, talvez pelo

intermédio dos entremezes, o aspecto típico dos personagens que se opõem entre vício e virtude.

Até certo ponto, de fato, os personagens ricos identificam-se com o vício, os pobres com a

virtude. No entanto, um dos interesses da intriga consiste no jogo que faz com essa separação. O

trabalho do rico, por exemplo, não é apresentado como vicioso. É sua intenção e sua avareza que

são condenadas. Já a preguiça do poeta, embora defendida como “ócio criativo”, é

problematizada com o episódio da perda da riqueza adquirida no final do segundo ato. Este

panorama aproxima a farsa, assim, do teatro religioso52.

O teatro religioso, originalmente integrado na liturgia e representado dentro da

Igreja, passará progressivamente a ser encenado fora da liturgia e fora da Igreja com seu

desenvolvimento. Nas múltiplas formas dramáticas que foram surgindo, o diabo ou os vícios são

freqüentemente encarregados da parte cômica, razão talvez de sua exclusão do recinto sagrado53.

Mesclando tragédia e comédia, esses dramas refletiam a ambigüidade cristã: o drama da vida e a

50 Cf. Moralidade. In: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 250. 51 Nesse aspecto, as moralidades são herdeiras da Psychomachia, de Prudêncio (por volta do ano 400), como nos informa Margot Berthold: “Seu tema – a batalha das virtudes e vícios pela alma do homem – viria a ser o favorito dos autos de moralidade, mil anos depois”. In: BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 261. 52 Nesta peça, no entanto, Suassuna não recorrerá à forma do auto, este mais marcadamente religioso. (Cf. Auto Sacramental. In: PAVIS, Patrice, idem, p. 31. Cf também: Auto. In: GUINGSBURG, J, FARIA, João R. e LIMA, M. A. de (orgs). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva/SESC-SP, 2006. p. 47-48). Ao optar pela farsa, mesclando-a com elementos religiosos, o autor desloca a atenção do problema religioso. 53 Foram provavelmente certos excessos, certas “diabruras”, que levaram o drama a ser expulso da Igreja. Como observa Vilma Arêas, “certamente numerosos clérigos provocaram grande escândalo ao interpretarem nos mistérios o papel do Diabo, pois um excesso de motivação os levava a fazer verdadeiras diabruras: perseguir crianças, assustar velhas, beliscar moças e levantar-lhes a saia – tudo isso foram mais do que razões para proibições e para os autos saírem dos templos”. In: ARÊAS, Vilma, op. cit., p. 44.

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alegria da salvação. Mas essa mistura de sério e cômico é típica da Idade Média, como nos lembra

Ernst Curtius:

Os testemunhos até aqui discutidos nos autorizam a supor que a mescla de gracejo e seriedade pertencia às normas de estilo familiares e conhecidas do poeta medieval, mesmo quando talvez não as encontrasse expressamente formuladas em parte alguma. Donde poderíamos interpretar o fenômeno como nova confirmação da tese de que a Idade Média gostava do cruzamento e mistura dos gêneros de estilo de qualquer forma. Com efeito, encontramos ludicra em setores e gêneros que, para o nosso sentimento moderno, educado na estética classicista, excluem totalmente essa mistura.54

Tanto a temática religiosa, quanto a presença dos diabos e a mistura de sério e

cômico estão presentes de forma visceral na Farsa da boa preguiça. Sobre a temática religiosa, um

olhar sobre os títulos das peças de Suassuna já seria suficiente para sugeri-lo fortemente55. Os

diabos, por sua vez, estão em todas as peças cômicas de Suassuna. Mas aqui temos três,

contrapostos aos três personagens celestes (seis personagens sobrenaturais, contra quatro

personagens humanos). No que se refere à mistura sério-cômico, esse elemento encontra-se de

forma mais intensa nessa peça de Suassuna. A esse propósito, o autor observará:

No comportamento humano, você tem dois grandes campos que interessam à literatura: o do doloroso e o do risível. No doloroso, as duas categorias principais são o trágico e o dramático; no risível, são o cômico e o humorístico. E o humorístico se caracteriza exatamente por ser essa tentativa de fusão da melancolia mais delicada com o riso mais violento. Então, é uma fusão do trágico e do cômico o humorístico.56

É o que percebemos acontecer na Farsa. Sem comprometer o riso, há sempre uma

preocupação em equilibrar os parâmetros, divertindo sem desviar a atenção do público do ponto

focal da peça: o comportamento de Simão e o seu “julgamento”.

É necessário dizer, portanto, que apesar de adotarmos a expressão “forma farsesca”,

54 CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p. 445. 55 Veja-se, por exemplo, Uma mulher vestida de sol (título tirado do Livro do Apocalipse), sua peça de estréia, mas também Cantam as harpas de Sião, Os homens de barro (ambas referências bíblicas, também, especificamente ao Êxodo e ao Gênesis), Auto de São João da Cruz, Auto da Compadecida e O Santo e a porca (todas as três com a menção de santos: João da Cruz, santo espanhol; Maria mãe de Jesus, a Compadecida; um santo, que se mostrará na peça como Santo Antônio). 56 CONTINENTE MULTICULTURAL. Recife: CEPE, 2002, n 20. ISSN 1518-5095. p. 12. Disponível em: <www.continentemulticultural.com.br/revista020/materia.asp?m=Especial&s=1>. Acesso em: 16 nov. 2006.

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acompanhamos Lígia Vassalo, quando diz que a Farsa da boa preguiça “não chega a ser uma farsa

propriamente dita: é longa, não é especialmente cômica, como Torturas de um coração, O santo e a

porca, O casamento suspeitoso, porque tem um caráter religioso muito pronunciado, ficando mais

próxima da moralidade”57.

Já tivemos ocasião de verificar que a identificação da forma da Farsa com a das

moralidades seria insuficiente. Já tendo considerado os vestígios da moralidade e do teatro

religioso, resta-nos olhar diretamente para a influência da forma farsesca. Devemos notar, no

entanto, que é difícil precisar com rigidez os traços específicos dessa forma dramática, que às

vezes se confunde com a forma do entremez58. Sendo um gênero do teatro popular medieval, em

certos contextos pode se referir mais a uma técnica que a uma estrutura. Décio de Almeida Prado

corrobora esse julgamento, definindo melhor a forma do entremez português:

O entremez de Portugal, gênero pouco estudado por ficar à margem do circuito literário, tinha uma presença sobretudo de palco, como expressão mais da graça pessoal e das improvisações do ator que das invenções do texto. Tudo começando e acabando em não mais do que meia hora, não havia lugar para digressões ou elaborações. A ação usava e abusava das convenções da farsa popular: quanto aos personagens, tipos caricaturais, burlescos, não raro repetitivos; quanto a enredo, disfarces, qüiproquós, pancadaria em cena.59

57 VASSALO, Lígia Maria Ponde. Permanência do medieval no teatro de Ariano Suassuna. 1988. 338 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. p. 186. 58 “No teatro colonial brasileiro, os entremezes, vindos diretamente da Espanha ou de Portugal, eram presença constante, mas nem sempre se distinguiam claramente das comédias e farsas.” O verbete completa ainda dizendo que, na primeira metade do século XX, o entremez “era uma peça curta, de caráter e procedimentos popularescos (pancadarias, esconderijos, disfarces), visando aproveitar os dotes cômicos e a capacidade de improvisação de atores já experientes no gênero”. (Entremez. In: GUINGSBURG, J, FARIA, João R.; LIMA, M. A. de (orgs), op. cit., p. 131). Na península ibérica, Vilma Arêas observa que “esses breves entreatos cômicos chegavam às vezes a tocar temas ousados, como Los maricones, sobre dois jovens efeminados, cortejados pelas próprias namoradas, que agiam como homens.” (In: ARÊAS, Vilma. Iniciação à comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 50). É interessante perceber, também, a proximidade entre a farsa e a sotie, reforçando o argumento que sustenta certa indeterminação dessa forma: “Farsa e sotie divertiam o público e atores de forma tão igual que é quase impossível determinar uma diferença precisa entre elas.” (In: BERTHOLD, Margot, op. cit., p. 256). As soties chegaram a ser proibidas no século XVI devido ao seu acento fortemente satírico (cf. Sotie. In: VV.AA. Dictionary of Theatre. Londres: Penguin Books, 2004. p. 567). 59 PRADO, Décio de Almeida. História concisa do teatro brasileiro. São Paulo: EDUSP, 2003. p. 56. O verbete “entremez” do Dicionário de teatro brasileiro acrescentará que “no teatro colonial brasileiro, os entremezes, vindos diretamente da Espanha ou de Portugal, eram presença constante, mas nem sempre se distinguiam claramente das comédias e das farsas.” E conclui: “N’O juiz de paz da roça, comédia de Martins Pena, representada em 1838, a cena do julgamento final, com a festa subseqüente, tem a estrutura típica de um entremez” (Entremez. In: GUINGSBURG, J, FARIA, João R.; LIMA, M. A. de (orgs), op. cit., p. 131).

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Em sua origem, a farsa remete a um corpus específico, cerca de duzentas peças curtas

francesas da segunda metade do século XV60. Nessas peças, o traço característico é a

representação da vida cotidiana das pequenas cidades, “sempre em pares de versos octossilábicos

com aproximadamente quatrocentas linhas. Não havia rubricas nos textos e as apresentações

eram simples, com poucos recursos cênicos e muita movimentação dos atores”61. Suassuna

retomará algumas dessas características, como a representação da vida no campo, o uso dos

versos e a movimentação dos atores. Mas, embora seja simples, a Farsa da boa preguiça faz uso de

recursos cômicos muito diversos e não é uma peça curta.

Além desses traços, Lígia Vassalo reconhece, ainda, outros elementos da farsa

fortemente presentes na obra de Suassuna:

Tudo leva a crer que para o dramaturgo paraibano a farsa é muito mais operante e ativa do que a comédia italiana, seja pelo vigor daquela através dos tempos, seja pela influência literária culta advinda de Gil Vicente (de que se reclama o autor), muito marcante não só nos títulos das obras como nos procedimentos. Dado ao primitivismo dos personagens suassunianos, a maioria de suas peças atende ao item do cômico de farsa, vulgar, grosseiro, popular e sem maiores pretensões intelectuais ou morais.62

Concordamos com a pesquisadora, especialmente ao privilegiar a influência farsesca

em detrimento da italiana, destacando em particular seu papel na constituição dos personagens do

universo de Suassuna63. A influência de Gil Vicente, autor de doze farsas dentre as quarenta e três

peças que lhe são atribuídas, também não é um dado menor salientado por Lígia Vassalo.

Atuando num período que precede imediatamente a instalação da inquisição em terras lusitanas, o

60 A mais conhecida delas é a farsa de Maistre Pierre Pathelin, que apresenta um trapaceiro trapaceado. Segundo Margot Berthold, a peça “escrita por um autor desconhecido, foi representada pela primeira vez por volta de 1465. Sua primeira edição, não datada, aponta para Ruão como local de origem. O diálogo mordaz, as frases polidas a desembocar em brincadeiras grosseiras traem o conhecimento do meio profissional contemporâneo dos advogados. Autores posteriores, de Rabelais a Grimmelshausen, da Henno de Reuchlin às Kleinstädter (Os pequenos citadinos) de Kotzebue, apropriaram-se do tipo estúpido e confiante dessa farsa”. In: BERTHOLD, Margot, op. cit. p. 255. 61 Farsa. In: GUINGSBURG, J, FARIA, João R.; LIMA, M. A. de (orgs), op. cit., p. 144. 62 Lígia Maria Ponde Vassalo [______. Permanência do medieval no teatro de Ariano Suassuna. 1988. 338 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. p. 196. 63 Já nos referimos brevemente a essa tradição e voltaremos a tratar de sua influência no capitulo quarto (item 3.1.2, p. 136 et seq.), especialmente sobre a construção dos personagens. Mas não identificamos nessa tradição uma influência maior. Mesmo a presença dos tipos na Farsa não se deve exclusivamente a ela.

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teatro de Gil Vicente goza de grande liberdade. De fato, ele explora a ironia, com a qual denuncia

certas situações da sociedade portuguesa de seu tempo, opondo-se inclusive à política de

expansão marítima do século XVI, principalmente por causa do ônus que esta representava para

o meio rural lusitano. É o caso, por exemplo, da Farsa de Inês Pereira, onde um camponês termina

montado por uma jovem citadina.

Este elemento de crítica social é um dos outros traços da farsa destacados por

Margot Berthold, em sua História Mundial do Teatro. Além deste conflito (pobreza x riqueza,

embora a crítica social não seja o foco principal da peça), outros elementos farsescos destacados

por Berthold estão presentes na peça de Suassuna, como o recurso às cenas de julgamento

(condenação dos ricos, julgamento da boa e da má preguiça), à ironia e à zombaria sem

escrúpulos (contra a figura do falso intelectual, na peça de Suassuna) e, característica da primavera

da forma farsesca, a simplicidade de meios para a encenação64.

O traço distintivo da forma utilizada por Suassuna é, assim, a mistura de elementos

da farsa (em especial seu aspecto zombeteiro, informal, não-realístico e popular) com

características do teatro religioso (não só a temática da salvação, mas também a apresentação de

personagens oscilando entre vício e virtude) e com aspectos da moralidade. Desta forma, a peça

concilia elementos religiosos e morais com elementos cômicos e de sátira social65. Ao incluir o

elemento religioso, porém, Suassuna coloca em tensão dois eixos: não apenas o agir entre

homens (eixo horizontal virtude x vício), mas a ação humana julgada por Deus (eixo vertical

salvação x condenação).

A palavra “tensão”, aqui, deve guardar todo o seu significado. Em terminando-se a

peça com um desfecho relativamente aberto que permite uma conclusão moralizante (não temos

64 Cf. BERTHOLD, Margot, op. cit., p. 255 – 257. 65 Patrice Pavis reforça tal intuição, ao dizer que “graças à farsa, o espectador vai à forra contra as opressões da realidade e da prudente razão; as pulsões e o riso libertador triunfam sobre a inibição e a angústia trágica, sob a máscara da bufonaria e a ‘licença poética’.” (Farsa. In: PAVIS, Patrice, op. cit., p. 164.).

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acesso à situação final do poeta e de sua família, apenas apresentada como o propósito de

emendar-se), o elemento farsesco parece predominar sobre a “moral” tirada no final da peça. Na

medida em que Joaquim Simão não se apresenta como um personagem propriamente virtuoso, a

apologia do ócio criativo feita às suas custas parece apenas parcialmente lograda. Com o recurso a

essa ambigüidade permanente, a “moral da história”, apesar de aparentemente conclusiva,

permanece em aberto, instigando a discussão para além da peça como veremos no final de nosso

trabalho. Em termos menos narrativos, é como se o autor confrontasse o plano dos ideais e dos

valores com o plano dos condicionamentos reais da vida: há uma preguiça de Deus e outra do

diabo, mas no dia-a-dia da vida os dados misturam-se e nem sempre é fácil escolher qual a atitude

mais justa. Quanto a esse aspecto, podemos concluir que a ambigüidade do tema encontra seu

correlato na mescla de formas.

2. Erudito e popular na obra de Ariano Suassuna

A apresentação das fontes da Farsa da boa preguiça levanta inevitavelmente o tema da

relação entre o mundo popular e o mundo erudito66 na obra desse autor. A fidelidade ao tema de

nosso estudo impede-nos, no entanto, de entrar nos detalhes dessa polêmica. Convém lembrar,

apenas, que no procedimento de retomada das obras populares nordestinas, Suassuna é o

66 Esta polêmica suscita questões como a de saber se a erudição de um autor seria suficiente para qualificar uma obra sua como erudita. Não parece ser o caso da Farsa, porém. Seria também insuficiente a retomada de formas medievais para qualificá-la de erudita, na medida em que estas formas, ainda que antigas, pertencem ao universo popular. Mas pode-se dizer que a Farsa possui traços de erudição enquanto dialoga com o universo das letras, seja através de citações eruditas (como as colocadas na boca de Clarabela), seja através de certos paralelos que podemos traçar entre a Farsa e obras clássicas como o Fausto. Sem levar adiante um estudo comprado, essa sugestão proposta pela professora Sandra Luna parece bastante sugestiva. Ambas se situam em planos terrestre e celeste. Em ambas, Deus, anjos e demônios intervêm. As duas se concluem por situações de julgamento. Mas uma análise mais apurada exigiria um estudo à parte.

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exemplo mais completo da opção estética do Movimento Armorial, do qual é um dos fundadores

e o principal teórico. No texto-marco que escreve para o movimento, lemos a seguinte definição:

“O Movimento Armorial pretende realizar uma Arte brasileira erudita a partir das raízes

populares da nossa Cultura”67. Boa parte da controvérsia que envolve esta opção estética parece-

nos consistir em dois pontos: a acusação de plágio e a relação “eruditizadora” com o popular.

Como observa Maria Ignez Ayala, “Ariano Suassuna é um exemplo de autor que

partiu de modo consciente para o popular (...). Selecionando temas e várias modalidades de

composição da literatura popular em verso, executa seu trabalho de recriação”68. Tal filiação ao

popular sempre foi assumida e, mais ainda, proclamada pelo dramaturgo. Contra a acusação de

plágio, por exemplo, reage com a “confissão” de plágio, mas num nível muito mais complexo que

o da mera cópia69. “Recriação” ou “reescritura” são palavras que descrevem melhor o processo já

examinado no início de nosso percurso, no caso particular da Farsa da boa preguiça. Se a opção

estética de Suassuna parte do popular, ela não se limita a ele. Está aí toda a riqueza da obra desse

autor que faz uma síntese de alta qualidade, respeitando as fontes populares na medida em que as

identifica e fazendo jus ao status de grande obra pelo resultado de sua construção e pela amplitude

de sua produção, que passeia pelos três gêneros fundamentais com grande sucesso. Sua postura é

respeitosa, ainda, na medida em que não reduz as obras da literatura popular a um estágio inferior

da cultura70.

O ponto que nos parece mais controverso, no entanto, é o projeto de criação de uma

“Arte brasileira erudita a partir das raízes populares”. É verdade que a tensão criativa entre

erudito e popular é constitutiva da criação artística nas sociedades desenvolvidas. De um lado e

67 SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Editora Universitária - UFPE, 1974. p. 9. 68 AYALA, Maria Ignez Novais, Trilhas e percursos da cultura popular na dramaturgia de Ariano Suassuna. In: MACIEL, Diógenes; ANDRADE, Valéria (orgs.). Por uma militância teatral. Campina Grande: Bagagem; João Pessoa: Idéia, 2005. p. 39. 69 Veja-se a resposta de Ariano na íntegra, reportada por Maria Ignez Ayala (Ibidem, p. 48-49). 70 “[Ariano Suassuna] ressente-se diante dos que tratam a literatura popular e a erudita em termos de cultura inferior e superior, quando a questão é de diferença entre manifestações culturais.” (Ibidem, p. 50).

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39

do outro, inúmeros exemplos confirmam que ambas as tradições se enriquecem mutuamente,

numa relação ora admirativa, ora contestatária. Mas na afirmação de Suassuna pode efetivamente

haver o risco de uma leitura implicitamente demeritória da cultura popular quando se pretende

que esta necessite de “eruditização”. Nada impede que isto se dê, mas sem o prejuízo nem o

preconceito das obras populares originais.

Situação mais grave do que a apontada pela crítica, no entanto, é a da apropriação de

elementos populares pela indústria cultural que, esta sim, desfigura na medida de seus interesses a

obra original, sem qualquer consideração pela obra nem pelo artista popular. Mas prosseguir

nesse argumento nos levaria ainda mais distante de nosso tema do que já nos permitimos fazê-lo.

Quanto à Farsa, pode-se dizer que deixa de ser um texto popular na medida em que

seu autor está em constante diálogo com uma rica tradição erudita que, embora presente na obra

popular, não o é de maneira consciente. Mas na medida em que conserva uma linguagem e uma

trama recheada de elementos corriqueiros da ruralidade brasileira, a farsa é, nesse sentido,

popular. Esta riqueza, que permite uma diversidade de leituras em níveis muito diversos, é

característica de toda obra bem construída.

3. Observações sobre a relação entre ética e estética no texto da Farsa

Antes de concluir, no entanto, é necessário acrescentar uma palavra breve sobre a

relação entre ética e estética no texto, em termos mais precisos sobre a relação entre narrativa e

ética, tese interpretativa que avançamos no início deste capítulo.

A primeira ressalva a ser feita consiste em preservar o domínio da liberdade criativa.

Embora não se possa imaginar literatura desprovida de elementos éticos, nem ética desprovida de

Page 41: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

40

narratividade, no domínio da ficção a natureza dessa relação é livre, não condicionante. O campo

literário, com efeito, é o espaço da experimentação, da liberdade de sonhar e de inventar mundos

até onde as variações imaginativas nos puderem levar. Nesse sentido, a literatura serve de prólogo

à ética – o que não desmerece a literatura, pelo contrário, enaltece sua importância para a vida

humana.

O vestígio mais profundo dessa relação intrínseca verifica-se, assim, não apenas no

plano da composição da obra, mas também no diálogo que se instaura com a obra durante o ato

de leitura. É neste, com efeito, que um julgamento se estabelece, inevitavelmente, tendo como

objeto a ação representada na obra. Diferentemente do campo ético, porém, na literatura o

próprio julgamento é submetido às variações imaginativas que instauram o reino da

ficcionalidade, permitindo não só representar a ação “como se”, mas também julgar “como se”.

Como parte do processo, porém, esta etapa participa da obra na medida em que respeita, em seu

procedimento interpretativo, as tensões e oposições contidas na obra específica que se lê. A

pertinência da abordagem de Ricœur advém em parte dessa capacidade de religar a obra com sua

interpretação, incluindo assim o elemento do julgamento que, embora ético, não deixa de ser

literário.

Page 42: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

41

II

PAUL RICŒUR E A TEORIA DA MIMESIS COMO PROCESSO:

FERRAMENTAS PARA UMA ANÁLISE DA FARSA COM ÊNFASE NA RELAÇÃO ÉTICO-ESTÉTICA

A abordagem da relação entre a estética do texto71 e seu conteúdo ético72 exige um

cuidado especial. A necessidade de um capítulo específico detalhando o material teórico que

servirá de base para a continuação da análise deve-se à delicadeza do assunto, especialmente

focando-se a relação entre os elementos estéticos e suas relações com elementos de natureza

ética. De um lado, há o risco de uma leitura condicionada por um elemento à primeira vista

externo ao texto. Do outro lado, está o perigo de uma leitura do texto incapaz de trazer à tona

sua riqueza. Mas, ao aceitar o risco de uma leitura inabitual, não se pode renunciar ao rigor

categórico da análise. Ao contrário, indo do mais superficial ao mais profundo, pretende-se que o

caminho metodológico escolhido nos leve, como propõe Ricœur, a compreender mais,

explicando mais.73 A razão principal da escolha dessa perspectiva para a análise, porém, não é a

71 Quando nos referimos à estética do texto, visamos aos elementos de sua composição, especialmente os elementos estruturais e temáticos. Essa dialética forma-conteúdo, distinção meramente analítica de elementos formais e elementos temáticos, é mais um argumento em favor da abordagem que propomos, na medida em que leva ambos em consideração em sua relação dinâmica. 72 Note-se que Paul Ricœur faz uma distinção entre a ética e a moral. Para ele, a ética seria o domínio da “intenção de uma vida realizada sob o signo das ações estimadas boas”, e a moral seria “o lado obrigatório, marcado por normas, obrigações, interdições caracterizadas ao mesmo tempo por uma exigência de universalidade e por um efeito de constrição”. (In: RICŒUR, Paul. Leituras I: em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995. p. 161). Nossa análise privilegiará o aspecto ético, na medida em que Joaquim Simão e os demais personagens, como veremos, aspiram a uma vida boa. Mas elementos da moral (sobretudo na discussão das regras de conduta pelos personagens celestes) também aparecerão ocasionalmente. A análise incluirá, ainda, um outro elemento crucial destacado por Ricœur: a sabedoria prática que é “ligada ao juízo moral em situação e para a qual a convicção é mais decisiva do que a própria regra. Essa convicção, contudo, não é arbitrária, na medida emq eu recorre às fontes do sentido ético mais originário que não passaram para a norma”. (In: Ibidem, p. 170). Assinalaremos oportunamente essas distinções ao longo do texto. 73 Trata-se, aqui, da oposição entre explicação (ciências exatas) e compreensão (ciências humanas), que Ricœur resolve como relação dialética entre compreender-explicar-compreender. Segundo esta lógica, “explicar mais, é

Page 43: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

42

simples busca de inovação, mas sim a compreensão da própria constituição da peça que faz

objeto de nossa análise.

O apoio teórico para esta pesquisa encontra-se, sobretudo, na filosofia de Paul

Ricœur. Em particular, na sua teoria da tríplice mimesis, ou da mimesis como processo, chave-

mestra que usaremos para “abrir” o texto. Através dela seremos levados a explorar outros pontos

da relação entre a estética do texto e seu conteúdo ético, como a noção de identidade narrativa,

para concluir com a análise da figura do julgamento.

A compreensão da categoria de mimesis segundo Ricœur e sua preocupação ético-

literária de modo mais explícito encontram-se especialmente em três obras principais. Em

primeiro lugar – e principalmente – em Tempo e narrativa,74 mas também nas obras Do texto à ação75

(especialmente na Parte II da obra) e Si mesmo como um outro76 (em particular os estudos 5 e 6).

Esses textos são nossas referências maiores.77

1. Panorama do pensamento de Paul Ricœur

Ao longo de toda a sua trajetória intelectual, o filósofo francês Paul Ricœur se

interessou pelo tema da ação humana (práxis). Suas primeiras investigações relevantes portam, de

fato, sobre a possibilidade da vontade deliberadamente má, problema que estudará durante toda a

compreender mais” [RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 11. 3 volumes. (Poche, 227)]. Cf. também RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 223-236. (Poche, 377). 74 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. 3 volumes. 3 volumes. (Poche, 227). Optamos por seguir o texto francês. Assumimos a responsabilidade pelas traduções dos textos. 75 RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. (Poche, 377). 76 RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre (1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. (Poche, 330). 77 Deixamos de lado outra obra fundamental de Ricœur no campo literário, A metáfora viva [RICŒUR, Paul. La métaphore vive. [1. ed. 1975]. Paris: Seuil, 2002. (Poche, 347)]. Nesta obra, Ricœur se concentra sobre o problema da metáfora e o tipo de referencialidade próprio a este uso da linguagem. No entanto, sua investigação se limita à unidade da frase, não incluindo a narrativa.

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43

vida78. É também pela via da reflexão sobre a vontade mal intencionada que Ricœur se aproxima

do domínio simbólico79.

Sem essa perspectiva, seu interesse pela lingüística e pela literatura poderia parecer

um adendo ou um desvio. De fato, um certo desvio – geográfico – ajudou-o a aproximar-se do

campo da linguagem e da comunicação humana. De 1970 a 1985, Ricœur foi convidado a

lecionar nos Estados Unidos, na Universidade de Chicago80, onde pôde ter contato mais intenso

com a tradição da filosofia analítica e hermenêutica de raiz anglo-saxônica.

Há, portanto, mais continuidade que ruptura nessa sua aproximação do domínio das

letras. E seu itinerário investigativo – seja ele centrado sobre a metáfora ou sobre o tempo – é

sempre marcado pela preocupação ética, sendo este elemento ético o fio de Ariadne para

compreender a obra do filósofo.

Não é de se estranhar, portanto, que uma nota introdutória ao comentário da Poética

de Aristóteles, no capítulo 2o de Tempo e narrativa, alerte para a atenção dada a “todas as notações

do texto de Aristóteles que sugerem uma relação de referência entre o texto ‘poético’ e o mundo

real ‘ético’”81. Desta forma, o tema da referência – inclusive do texto de ficção –, além de

introduzir o problema da relação entre texto e contexto (comentado na seção reservada à mimesis

III deste capítulo), deixa transparecer a atenção dada pelo filósofo ao problema da ação humana.

A noção de práxis, de fato, atravessará toda sua investigação sobre o tempo e se revelará sempre

articulada com a noção de texto, paradigma literário explorado de modo ainda mais direto na

coletânea de artigos publicada sob o título Do texto à ação. De outro modo, a relação entre

78 Veja-se, por exemplo, o testemunho dado pelos títulos de sua primeira e sua última grande obra: desde Phénoménologie de la volonté I. Le volontaire et l’involontaire (Paris: Aubier, 1950) até o Parcours de la reconnaissance (Paris: Stock, 2004), a preocupação ética ou moral é predominante. 79 Surge, neste momento, a continuação de sua obra de estréia: Philosophie de la volonté. Finitude et culpabilité (Paris: Aubier, 1960), cuja segunda parte se intitula La symbolique du mal. 80 Cf. L’éclipse: le détour américain, 1970-1985. In: DOSSE, François. Paul Ricœur: Les sens d’une vie. Paris: La Découverte, 2001. p. 517 a 589. 81 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. 3 volumes. 3 volumes. (Poche, 227). p. 66, nota 2.

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44

literatura e ética é abordada em Si mesmo como um outro, onde o estudo do acesso do sujeito à sua

identidade faz aparecer o problema da atribuição da ação ao agente e o caminho de solução

através da noção de identidade narrativa.

Este brevíssimo recorte da trajetória intelectual de Ricœur ajuda a perceber que a sua

interpretação da mimesis é provocada pela sua articulação com o conceito de práxis e deve a ela

todo o seu interesse82. Tendo como base e ponto de partida a filosofia aristotélica, a mimesis é

considerada como processo e não como estrutura fixa. Como para o filósofo estagirita, a mimesis é

imitação da ação humana motivada (práxis). E, embora o estudo de Aristóteles se concentre sobre

a mimesis trágica, Ricœur percebe que essa noção permite generalização e aprofundamento. É o

que fará, reinterpretando a categoria de mimesis e subdividindo-a em três momentos, à luz de sua

relação com a dimensão do agir humano da qual é representação. De uma parte do dinamismo

mimético, encontra-se a mimesis em sua nascente (em relação à ação que é imitada); de outra parte

encontra-se a foz (a recepção de quem se defronta com a mimesis proposta por um determinado

autor). No centro, a mímesis-mediação, que é o coração da mimesis propriamente dita, considerada

como um processo que se inicia na realidade e que termina na realidade re-significada.

2. Fundamentos aristotélicos da teoria da tríplice mimesis

Embora a preocupação de Ricœur em Tempo e narrativa porte, como diz o título,

sobre a problemática do tempo, sua solução exige a passagem pela teoria da narrativa. É

construindo uma relação original entre as intuições de Sto. Agostinho (nas Confissões) e de

82 Mesmo em sua investigação sobre o tempo, onde fará dialogar Aristóteles e Agostinho, sua reflexão portará sobre a ação propriamente humana (práxis), da qual a mimesis é mediação necessária e, em se realizando, faz aparecer o tempo humano.

Page 46: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

45

Aristóteles (na Poética) que Ricœur proporá uma fenomenologia hermenêutica do tempo capaz de

oferecer uma abordagem eficaz das aporias do tempo identificadas por Agostinho. A solução

encontrada passa justamente pela abordagem do tempo humano como tempo da ação humana. Sem

avançar sobre sua resposta ao problema do tempo, note-se que Ricœur aborda o problema

partindo da noção de construção da intriga, baseando-se numa leitura original de Aristóteles que

servirá de fundamento para sua teoria da mimesis como processo.

2.1. Poiesis

Em sua leitura do capítulo VI da Poética de Aristóteles, Ricœur distingue desde o

início muthos e mimesis. A essa dupla conceitual, o filósofo francês dará o apelativo de “célula

melódica”83. Ele se apoiará sobre uma afirmação aristotélica que põe os dois conceitos em

equivalência. Com efeito, Aristóteles define um pelo outro, ao dizer que “a intriga é a imitação da

ação”84.

Mas uma consideração fundamental terá conseqüências para toda a reflexão de

Ricœur. Tanto a intriga quanto a imitação se compreendem sob o signo da poiesis, do fabricar, do

construir humano. Esse termo impõe a marca do dinamismo sobre toda a análise que seguirá.

Ambos os termos não devem ser compreendidos como estruturas fixas, mas como operações,

como sínteses dinâmicas. Embora se possa encontrar uma estrutura na imitação – cujos

83 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 68. 84 Na tradução de Jaime Bruna (ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 25), lê-se: “Está na fábula a imitação da intriga”. Apoiamo-nos em tradução direta, seguindo os comentários de Ricœur. De fato, o verbo grego (estín) pode significar “ser” e “estar”. Nas outras citações da poética, seguiremos a tradução de Jaime Bruna.

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elementos o próprio Aristóteles começará a identificar – não se pode corretamente entender a

mimesis literária sem considerá-la em seu aspecto dinâmico, poético.

Desta forma, Ricœur preferirá traduzir mimesis por representação da ação, não por

imitação – evitando também, assim, a confusão com o modelo platônico que considera a mimesis

como cópia, e cópia em terceiro grau85. De modo ainda mais revelador, muthos será traduzido pelo

filósofo francês como construção da intriga, ou como articulação dos fatos. A poética, enfim, é

definida como a arte de compor intrigas86, definição que toca também o poeta: “construtor de

intrigas/imitador da ação: eis o poeta”87.

Esse aspecto dinâmico repercute diretamente sobre as noções-chave que estamos

analisando. Por exemplo, quando Ricœur insiste em dizer que o termo mimesis, qualquer que seja a

tradução que lhe façamos, visa “à atividade mimética, o processo ativo de imitar ou de

representar”88. Inspirado por essa compreensão, Ricœur notará que a definição das seis partes da

tragédia, no capítulo VI da Poética, são um indício não de uma estrutura fixa do poema trágico,

mas de seis partes da arte de compor tragédias.

Tal insistência sobre o sentido dinâmico da poética não é irrelevante. Ricœur constata

que a atividade produtora de intrigas é uma forma de inteligibilidade narrativa que organiza o agir

humano, tornando-o passível de cognição. É através dessa atividade da imaginação produtiva que

tanto o tempo quanto o agir humano começam a ganhar sentido.

Essa observação levanta outro problema, tratado ulteriormente pelo filósofo: o da

distinção entre saber ético e saber narrativo e, dentro do domínio narrativo, a distinção entre

narrativa ficcional e narrativa histórica. Limitemo-nos a dizer, sobre este ponto, que se há uma

85 O essencial do pensamento platônico sobre a mimesis encontra-se nos livros III e X de A República. 86 O termo intriga corresponde, aqui, ao termo fábula, como o fez Jaime Bruna em sua tradução da Poética, seguindo a tradição de Tomachevski (Cf. TOMACHEVSKI, B. Temática. In: TOLEDO, Dionísio (org.) Teoria da literatura. Formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. p. 169-204). Preferimos seguir a terminologia proposta por Ricœur, que por seu turno acompanha a tradução de Dupont-Roc e Lallot. (Cf. RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 69, nota 1). 3 volumes. (Poche, 227). 87 Ibidem, p. 88. 88 Ibidem, p. 69.

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47

aproximação de procedimentos, há diferença de pretensões nas relações entre cada um dos dois

campos e a realidade. No entanto, Ricœur apressa-se em garantir para o campo da ficção uma

forma própria de referência à realidade do agir humano. Voltaremos a esse tema no momento

oportuno, ao tratar do final do processo mimético. É por ele que distinguiremos pretensão ética e

pretensão poética, salientando as articulações que existem entre ambas e que situam a literatura na

fronteira da ética pela sua capacidade de propor variações imaginativas do nosso agir no mundo.

2.2. Práxis

Outro conceito cuja importância repercute diretamente sobre as duas categorias da

“célula melódica” e que ilumina todo o resto da reflexão de Ricœur é o termo práxis89. Como

destaca o filósofo francês, “a ação é o ‘construído’ da construção em que consiste a atividade

mimética”90. Desta forma, Ricœur identifica o correlato noemático da atividade produtiva que

caracteriza a mimesis. O que a mimesis representa não é a intriga, a articulação dos fatos (muthos),

mas a ação humana eticamente motivada que é a práxis. No entanto, trata-se de uma

representação por meio de intriga. Noutros termos, não há equivalência estrita entre os dois

conceitos definidores da arte poética. Sem essa observação, seríamos levados a um fechamento

asfixiante (às vezes ainda sustentado) da obra sobre ela mesma. Considerando mais adiante o

prazer suscitado pela obra, Ricœur será levado a polemizar com a vertente estruturalista radical,

89 Sobre o conceito aristotélico de praxis, assim como suas relações com a poiesis e com o ethos, cf. LIMA VAZ, Henrique Cláudio. Escritos de filosofia II. São Paulo: Loyola, 1993. p. 80 et. seq.. 90 Ibidem, p. 73.

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abrindo o interior do livro às suas relações estruturais com o exterior91. Nessa dialética interno-

externo, o critério da estrutura não é descartado, mas considerado em seu dinamismo: é a

estruturação que importa. É na medida em que certos elementos externos deixam seus vestígios na

estrutura fixada da obra que eles ganham relevância para a análise.

Por ora basta destacar, ainda, o argumento de reforço que Ricœur encontra para

salientar a relação da mimesis com a realidade, estando o muthos em função de intermediário, de

medium. Trata-se da distinção, na Poética, entre comédia e tragédia segundo os tipos de

personagem: na comédia piores, na tragédia melhores. Mas, nota, melhores ou piores não em

absoluto, mas sim em relação aos homens “atuais”, diz o texto. Não se trata, pois, somente do

“como”, mas sim da relação entre representação da realidade e realidade representada. Correndo

o risco da redundância, note-se outra vez que isso significa que a relação entre representação e

construção da intriga não esgota o sentido de mimesis.

2.3. Muthos

Para chegar ao sentido completo que Ricœur dá ao termo mimesis, portanto, é

necessário verificar sua compreensão de muthos. Ao propor a tradução de muthos como articulação

de fatos ele destaca, em primeiro lugar, um modelo de concordância. Como mostrará mais

adiante, a estrutura narrativa se situa entre uma concordância de base e uma discordância que lhe

91 Não estamos distantes, aqui, das observações de Antonio Candido, atento de modo justo às relações entre o interior e o exterior do texto. Ao se referir às posições de Auerbach e de Carpaux, por exemplo, ele diz que “tal método [sintético], cujo aperfeiçoamento será de certo uma das tarefas dessa segunda metade do século, no campo dos estudos literários, permitirá levar o ponto de vista sintético à intimidade da interpretação, desfazendo a dicotomia tradicional entre fatores externos e internos, que ainda serve atualmente para suprir a carência de critérios adequados”. In: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T.A. Queiroz editor, 2002. p. 14-15.

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49

ameaça sempre, garantindo tanto a sua dinamicidade quanto a presença da emoção num sistema

dotado de inteligibilidade complexa92. A concordância aparece de modo mais claro nas três

características ou exigências da intriga trágica: completude, totalidade e extensão apropriada93.

Sem comentar a completude (ação que chega até o seu final), a noção de “todo”

(holos) é a dominante. Segundo Aristóteles, “inteiro [todo] é o que tem um começo, um meio e

um fim”94. Como nota Ricœur, somente no contexto de uma composição poética um dado

acontecimento pode funcionar como começo, meio ou fim. Ou seja, os acontecimentos não são

uma mera sucessão de eventos. Além do “um-depois-do-outro”, exige-se que sejam “um-por-

causa-do-outro”. Ricœur observa que “se a sucessão pode ser assim subordinada a uma conexão

lógica, é porque as idéias de começo, de meio e de fim não são tiradas da experiência, não são

traços da ação efetiva, mas efeitos da organização do poema”95.

O mesmo vale para a duração: só a construção poética pode delimitar um contorno,

um tempo fechado. A extensão é definida pelo tempo necessário ao acontecimento relevante para

a intriga, como afirma Aristóteles no final do capítulo VII da Poética: “a duração [extensão] deve

permitir aos fatos suceder-se, dentro da verossimilhança ou da necessidade, passando do

infortúnio à ventura, ou da ventura ao infortúnio: esse é o limite de extensão conveniente”96.

2.3.1 Um modelo de concordância

92 Embora não se costume pensar a ficção como uma forma de inteligência, a construção da narrativa possui um grau insuspeitado de inteligibilidade. Não só em sua construção (reunindo fatores tão diversos como causa, autor, agente, finalidade, circunstâncias, etc), mas em sua propositura de um modelo de realidade alternativo, que Ricœur chamará de “mundo do texto”. 93 Ricœur se refere ao capítulo VII da Poética, quando define: “a tragédia é a imitação duma ação acabada e inteira, de alguma extensão” (ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. 12. ed. [Tradução de Jaime Bruna]. São Paulo: Cultrix, 2005. p. 26). 94 Ibidem, p. 26, capítulo VII. 95 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 81. 3 volumes. (Poche, 227). 96 ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO, idem, p. 27.

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50

Há uma espécie de laço lógico, de inteligibilidade, que assegura a tessitura da intriga.

Sua constituição, embora feita no tempo (sucessão de eventos ordenados no tempo), não se

sustenta somente por causa do tempo. Ricœur pergunta-se, portanto, qual o tipo de lógica

atuante na narrativa, concluindo que “trata-se de uma inteligibilidade apropriada ao campo da

práxis, e não da theoria, vizinha, portanto, da phronesis, que é a inteligência da ação, comumente

traduzida por sabedoria prática. A poesia, com efeito, é um ‘fazer’, e um ‘fazer’ sobre um ‘fazer’”. E

acrescenta: “Contudo, não é um fazer efetivo, ético, mas precisamente inventado, poético” 97.

Ricœur volta com isso à preocupação com a forma de inteligibilidade própria da

narrativa, preocupando-se em demonstrar que se trata efetivamente de conhecimento, de

intelecção. Segundo ele, o prazer da imitação está precisamente no prazer de aprender:

contemplando a representação eu aprendo a reconhecer certas formas da ação que eu não

conheceria de outro modo. A essas estruturas, Ricœur dará o nome de universais “poéticos”,

distintos dos universais “dos filósofos” e acessíveis ao homem comum pela via do gosto, do

prazer. Esta capacidade está ligada à faculdade da imaginação produtiva, que nos permite

justamente compor variações para o agir, numa espécie de laboratório da ação humana.98

2.3.2 Um aparte ético

97 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 82 – 83. 98 É este reino da ficcionalidade que permite ao leitor a análise do agir em forma quase-ética, ou seja, a consideração de uma ação humana representada, não real, que se elogia ou se condena num juízo valorativo que se aproxima do campo ético, sem ser exatamente de natureza ética. Este aspecto nos ajudará a compreender mais tarde o funcionamento da mimesis III, quando o horizonte do leitor e o horizonte do texto se encontram.

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51

Sem enveredar pelos meandros da demonstração de Ricœur, que nos levaria para

fora do nosso eixo de pesquisa, é importante determo-nos um instante sobre a relação entre

poética e ética nesse modelo proposto pelo filósofo. Sem abandonar a consideração da literatura

pela sua literalidade, por sua carga ficcional, a consideração da construção mítica (no sentido

aristotélico) como produtora de universais poéticos parece nos fornecer uma saída oportuna para

o interdito que fecha as portas do texto à realidade. É a partir dele que Ricœur poderá fundar sua

teoria do “mundo” que se abre diante do texto, a volta da literatura ao mundo re-significado. Isso

não implica, como não o faz Ricœur, o abandono da pesquisa estrutural. A análise estrutural do

texto nos permite compreender, mais profundamente que Aristóteles pôde fazê-lo, o “como” da

representação. Mas se é importante o estudo da estrutura interna ao texto, perder a perspectiva

universal do conhecimento implicado pela literatura seria um erro igualmente grosseiro.

Como já se disse acima, porém, não se trata dos universais “dos filósofos”, ou seja,

dos universais abstratos, ao modo das idéias platônicas. São universais próximos da sabedoria

prática (phronesis), aos quais pertencem a ética e a política. Próximos, não idênticos. A distinção é

essencial, pois é precisamente com a exigência de funcionamento da literatura segundo certas

normas éticas ou políticas que se vacinaram muitos estudiosos contra uma abordagem que

incluísse o parâmetro ético na análise literária. Se de um lado há parentesco entre os domínios

ético e poético, há por isso mesmo semelhança e diferença. À semelhança da ação humana ética, a

ação representada é motivada, situada no tempo e no espaço, relevante e, em algum grau,

responsável. A ação construída pela intriga possui, como na ação ética, seu grau de

universalização em função do liame interno à ação, não em função dos acidentes exteriores (que

podem interferir, às vezes de modo determinante). Algumas diferenças, porém, são

extremamente relevantes. Por exemplo, na Poética Aristóteles subordina os personagens à ação,

eles são definidos pelo que fazem e não o contrário. Na vida real, é a busca dos valores que

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52

formará o caráter de uma pessoa, caráter este que se manifestará no seu agir. Ou seja, o

personagem não é livre, embora seja descrito como sendo.

De todo modo, somos levados a julgar, seja na vida ou na ficção. Mas nesta última se

trata de um julgamento sui generis, que é correlato de uma das funções primordiais da literatura e

que só tem a perder com a defesa de uma pretensa neutralidade ética ou política da literatura. Ao

abrir um campo essencial para a experimentação da ação, a literatura oferece o espaço para o jogo

da identidade que pode nos levar aos limites do agir humano – para o melhor e para o pior – sem

as conseqüências reais que certas atitudes acarretariam. Permitimo-nos excessos, portanto, mas

reconhecendo justamente, de modo mais ou menos consciente, os pontos de equilíbrio,

aceitação, exagero de certas atitudes. Em todos os casos, porém, nós julgamos os personagens e

suas histórias “como companheiros de humanidade igualmente falíveis, não como ministros da

lei”99. Em outros termos, reduzir o julgamento literário à metáfora do julgamento jurídico seria

reduzir o alcance da narratividade.100

Uma nota do texto de Ricœur assinala esse laço entre ética e poética e o sustenta de

modo ainda mais explícito e enfático. Nessa nota, Ricœur comenta a posição de Redfield em sua

obra sobre a Ilíada:

J. Redfield insiste com força sobre este liame entre ética e poética; este laço é assegurado de modo visível pelos termos, comuns às duas disciplinas, de práxis, “ação”, e de ethos, “caráter”. Ele diz respeito, mais profundamente, à realização da felicidade. A ética, com efeito, não trata da felicidade senão de forma potencial: ela considera suas condições, a saber, as virtudes; mas a relação entre as virtudes e as circunstâncias da felicidade permanece aleatória. Construindo suas intrigas, o poeta dá uma inteligibilidade a esta relação contingente. Donde o paradoxo aparente: “Fiction is about unreal happiness and unhappiness, but these in their actuality” (Nature and Culture in the Iliad. The tragedy of Hector. The University of Chicago Press, 1975. P. 63). É a este preço que narrar “ensina” sobre a felicidade e a vida, nomeada na definição da tragédia: ‘representação não de homens, mas de ação, de vida e de felicidade (a infelicidade está também na

99 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 92, nota 1. 100 Ricœur toca esse problema ao estudar o problema da ascripção da ação, que ele distingue da imputação de uma ação a um autor justamente para não reduzir o problema ao paralelo jurídico da condenação ou da absolvição. (Cf. RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre. 1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. p. 122- 124(Poche, 330).). Ele observará, ainda, que nem todo agir humano é eticamente motivado. No plano literário, isto significa que o agir representado não implica sempre um julgamento de valor da ação, mas sempre um julgamento do valor da representação da ação no qual a discussão da qualidade da ação aparece como um elemento, muitas vezes o principal.

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53

ação).101

Considerando a Farsa da boa preguiça, podemos dizer que além da relação que existe

entre a forma da peça e seu conteúdo de natureza ética, há outra relação mais profunda entre a

literalidade da obra e sua construção de uma representação do agir humano. Nessa relação se

evidencia a liberdade da literatura em inventar um agir para o homem, oferecendo esta ação

representada à contemplação do leitor. No entanto, esta relação que consideramos mais profunda

por tocar o princípio mesmo da literatura, está diretamente relacionada com a dialética forma-

conteúdo, uma vez que não se pode aceder ao interior da representação sem considerar a forma.

E não se pode escapar tampouco ao processo mimético, pois a atualização desta qualidade da

literatura em propor um mundo reside precisamente na terceira e última etapa da mimesis

considerada como processo.

2.3.3 Concordância discordante

Voltando à teoria da construção narrativa, Ricœur observa em seu comentário a

Aristóteles que o modelo trágico não é feito apenas de concordância. Se, por um lado, é sobre a

concordância que a narrativa sustenta um conjunto de episódios articulados de alguma forma, por

outro lado essa articulação não teria dinamismo sem algum grau de discordância. A ação trágica

completa, de fato, consiste numa passagem (entre felicidade e infelicidade), manifestação do vazio

entre os episódios que levam a ação ao seu termo. A intriga é uma articulação bem ou mal

101 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 95, nota 1. 3 volumes. (Poche, 227). Sendo o estudo de Ricœur centrado sobre o problema do tempo, é natural que esse e outros comentários preciosos sobre a ação estejam em nota. Sua relevância para este estudo justifica a inversão: tem seu lugar assegurado no texto principal, aqui.

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sucedida de episódios selecionados, sem, contudo, evitar que a surpresa (o que é “contra toda

expectativa”) se instaure. Com efeito, nada mais discordante do que a ação transformadora

(metábole), que chega a levar ao extremo a ameaça que a discordância pode representar para a

intriga. São os casos típicos da reviravolta (peripetéia) e do reconhecimento (anagnôrisis), aos quais

se liga o pathos.

Nota ainda Ricœur que é através da relação dialética entre concordância e

discordância que a narratividade abre espaço para a articulação entre intelecção e emoção: “É

incluindo o discordante no concordante que a intriga inclui o emotivo no inteligível”102.

Não nos atardaremos mais sobre a interpretação da noção de muthos proposta pelo

filósofo francês. O que já foi dito, especialmente sobre a sua compreensão como poiesis e sua

estrutura dialética dinâmica, basta para avançarmos em direção ao outro conceito ao qual a

construção da intriga (muthos) está essencialmente ligada: a noção de mimesis.

2.4. Mimesis

A originalidade da leitura que Ricœur faz da Poética não está em ruptura com muito

do que a tradição aristotélica estabeleceu a respeito do conceito de imitação ou representação em

literatura – e na tragédia em particular. Ele inova ao propor uma visão mais ampla e abrangente

da noção de mimesis, distinguindo – já que se trata de processo, não de algo estático – uma etapa

anterior e outra posterior àquilo que convencionamos ver como a mimesis propriamente dita. Para

tanto, Ricœur buscará os fundamentos na Poética que permitam uma tal leitura.

102 Ibidem, p. 90.

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55

Em sua proposição, Ricœur deixa claro que a noção de mimesis a que se refere

Aristóteles é bem aquela que ele situa no coração do processo – e que ele chamará de mimesis II, a

“mímesis-criação”, representação da ação propriamente dita. Ele não a destitui de seu caráter

essencial para a teoria poética. Ao contrário, valorizará seu aspecto central de mediação. Este passa

a ser um termo-chave, uma vez que esta etapa do processo mimético se situa entre uma primeira

forma de mimesis contida na própria ação a ser representada (mimesis I) e uma outra forma de

mimesis que é produzida no e pelo leitor/espectador (mimesis III).

Baseado nessa sua visão mais ampla da representação ou imitação como processo,

Ricœur insistirá em que a relação muthos e mimesis não satura a compreensão desse último termo.

Recorde-se o que já foi dito sobre o correlato noemático da representação: a mimesis é, antes de

mais nada, representação da ação humana (práxis) – por meio da intriga.

Ricœur destaca os perigos da tradução para uma boa compreensão do termo. É por

esta razão que propõe “imitação criadora”, se a opção da tradução for pelo termo “imitação”. Se

a preferência recair sobre o termo “representação”, Ricœur lembra que não se trata de uma

duplicação do real, mas sim da “ruptura que abre o espaço da ficção”. O artesão das palavras,

como diz o filósofo, “inventa um ‘como se’ ”103.

Fundando sua compreensão de mimesis I, Ricœur buscará os traços de uma pré-

compreensão da ação (e das paixões) presentes na Poética. Nota ele que, embora não haja um

tratamento direto do tema das virtudes ou das paixões, como na Retórica, vários elementos (que a

Ética articula) deixam-se perceber. É o caso, por exemplo, da configuração da ação trágica que

supõe o infortúnio de um homem de valor, contra toda expectativa. Nesse sentido, a ação trágica

“é um contraponto à ética, que ensina como a ação, pelo exercício das virtudes, conduz à

felicidade”104.

103 Ibidem, p. 93 104 Ibidem, p. 94.

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56

Outro vestígio ético próprio à arte dramática em geral é que os personagens são, por

definição do gênero, agentes. Ricœur lembrará, ainda, que esses agentes são, essencialmente, de

tipo nobre ou baixo. Mas nota que o texto aristotélico define a nobreza ou a baixeza do

personagem em referência a “nós”105. Esta referência coletiva é outra marca importante da mimesis

I na Poética: a referência é o homem real, cuja ação se rege segundo os parâmetros da ética. À

diferença desta, porém, a poética tem a virtude de torná-los melhores ou piores pela ação

dramática, mas sempre respeitando a regra da verossimilhança que vincula a tessitura da intriga às

regras desse tipo de “pré-saber” intrínseco ao agir humano.

Em seu comentário à Poética, Ricœur não se concentra no comentário da mimesis II.

Ele enfatiza somente sua função de mediação, de liame, que garante o “deslocamento mimético”,

a “transposição quase metafórica da ética à poética”106. E explicando novamente o estatuto e a

função mediadora da mimesis, Ricœur dirá que

a pertença do termo práxis simultaneamente ao domínio real, pelo qual responde a ética, e ao domínio imaginário, assumido pela poética, sugere que a mimesis não tem somente uma função de ruptura [entre real e imaginário], mas de ligação, que estabelece precisamente o estatuto de transposição ‘metafórica’ do campo prático pelo muthos.107

Seu comentário segue, então, em direção à parte mais polêmica de seu modelo: a

mimesis III. Certamente é esta última a forma mais discutível de mimesis, ao menos nas

circunstâncias atuais dos estudos literários (e mais ainda à época da publicação do seu livro, na

década de 80). Por isso, Ricœur se demorará em seu estudo na busca de alguns elementos

característicos dessa etapa presentes na Poética.

Desde o início de sua reflexão, ele recorda o princípio dinâmico que norteia sua

compreensão: “a mimesis, que é [...] uma atividade, a atividade mimética, não encontra o termo

105 “Como aqueles que imitam, imitam pessoas em ação, estas são necessariamente boas ou más [...], isto é, ou melhores do que somos, ou piores”. In: ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO, op. cit., p. 20 (grifos nossos). 106 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 96. 107 Ibidem, p. 93.

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visado pelo seu dinamismo somente no texto poético, mas também no espectador ou no leitor.

Existe, assim, um depois da composição poética que eu chamo mimesis III”108.

Ricœur encontrará mais traços dessa última etapa da mimesis explorando ainda mais a

fundo a relação entre ética e poética. As noções que ele destaca em primeiro lugar são, assim, as

de verossimilhança e de persuasão. A ligação dos dois conceitos é interessante. Ricœur baseia-se

na passagem da Poética sobre a escolha pelo poeta trágico de nomes de pessoas cuja existência

histórica é atestada (cap. IX). Este recurso à tradição, segundo ele, se justifica porque “o

verossimilhante – traço objetivo – deve ser, ademais, persuasivo (pithanon) – traço subjetivo”109. Por

esta ponte, a tessitura da intriga se liga ao seu destinatário.

Mas é sobre outra noção que Ricœur articulará sua demonstração: a noção de prazer,

indicador da completude do processo mimético inaugurado pela obra e “que Aristóteles chama

de seu ergon, seu ‘efeito próprio’ ”110. Por essa via, impõe-se uma articulação essencial, já

mencionada acima, entre “a finalidade interna da composição e a finalidade externa da

recepção”111.

Esta mesma dialética entre interno e externo aparece relacionada à função catártica e

à emoção provocada pelo texto. Como já mencionamos, esta função é devedora de outra forma

de dialética, esta interna ao texto, entre continuidade (relação de necessidade entre os episódios

que compõem a intriga) e descontinuidade (as surpresas e reviravoltas que levam ao limite a

verossimilhança e o desfecho). Mas ela aponta para fora do texto, sendo preparada por ele. É

108 Ibidem, p. 94. 109 Ibidem, p. 97. 110 Ibidem, p. 98. 111 Ibidem, p. 99. Notamos aqui outro paralelo entre os pensamentos de Ricœur e de Antonio Candido, na medida em que este, ao comentar a relação autor-obra-público, afirma que “se a obra é mediadora entre o autor e o público, este é mediador entre o autor e a obra, na medida em que o autor só adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através da reação de terceiros”. (In: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T.A. Queiroz editor, 2002. p. 75-76). Embora Candido não argumente com base no prazer suscitado pela obra, reflete sobre o mesmo tema da relação entre a realidade da obra em si que só se realiza plenamente quando restituída ao termo do seu processo, a recepção. Sob outro prisma, o mesmo problema é abordado por Candido ao distinguir as três funções (total, social e ideológica) da literatura oral e escrita, chegando a afirmar que “só a consideração simultânea das três funções permite compreender de maneira equilibrada a obra literária, seja a dos povos civilizados, seja sobretudo, a dos povos iletrados”. In: Ibidem, p. 47.

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com base nisso que Ricœur sugere a expressão “espectador implicado”112, parafraseando

Wolfgang Iser e sua noção de “leitor implicado”. Mas a catharsis, embora tendo sua sede no

receptor113, é parte do processo de metaforização da própria obra que articula cognição,

imaginação e sentimento. É com a catharsis, portanto, que a dialética interno-externo atinge seu

ponto culminante.

O desenvolvimento pleno da noção de mimesis III, no entanto, só acontecerá

plenamente ultrapassando as alusões ao prazer (de aprender e de experimentar a catharsis), passo

que Aristóteles não dará por se ater a uma teoria da composição poética, não da mimesis em seu

todo. Ricœur o fará mais adiante, como o veremos, na medida em que considera o “mundo” que

a obra descortina diante do leitor. A última etapa do processo mimético, desta forma, colocará o

problema em termos da relação entre poesia e cultura.

3. A tríplice mimesis

Após propor essa releitura de Aristóteles, Ricœur apresenta sua própria compreensão

do problema da representação da ação humana. Antes de desenvolver sua teoria da mimesis, que,

considerada como processo, comporta três momentos, Ricœur tem a prudência de retomar certos

pontos fundamentais sobre a fase que ele denomina “configuração” – ou mimesis II – e que

constitui o centro do percurso mimético:

Eu considero como adquirido que a mimesis II constitui o pivô da análise. Por sua função de ruptura, ela abre o mundo da composição poética e instaura, como já tive ocasião de sugerir, a literalidade da obra literária. Mas minha tese é que o sentido mesmo da operação de configuração constitutiva da construção da intriga resulta de sua posição intermediária entre as duas operações que eu chamo mimesis I e mimesis III e que

112Ibidem, p. 101. 113 Ibidem, p. 101-102.

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constituem o antes e o depois da mimesis II. Assim fazendo, eu me proponho a mostrar que a mimesis II tira sua inteligibilidade de sua faculdade de mediação, que é de conduzir do antes ao depois do texto, de transfigurar o antes no depois pelo seu poder de configuração.114

Essa ressalva nos alerta para o fato de que na exposição que segue, embora partindo

do primeiro momento do processo (ou “pré-figuração”), o centro de inteligência do processo

permanece no interior da obra, no pólo da mimesis II. Vale lembrar, porém, que se a unidade do

processo mimético está entranhada na obra, deixando nela suas marcas, é o leitor quem é o

operador da unidade desse percurso, pelo seu “fazer”, a parte de poiesis que lhe cabe: o ato de ler.

Outro parêntesis importante consiste num esclarecimento. Este diz respeito a um

pressuposto central da argumentação de Ricœur. No pensamento do filósofo sobre a literatura, a

noção de texto é ponto de partida. Para ele, texto é “todo discurso fixado pela escritura”.115 A

conseqüência que o filósofo tira dessa afirmação mínima é que a distinção entre discurso e

escritura, sem contestar a precedência psicológica e sociológica da palavra dita em relação à

palavra escrita, garante um estatuto novo para o texto, paralelo à palavra oral. O texto não é mais

uma palavra escrita provocada por uma palavra dita, mas um ato diferente daquele do diálogo.

Uma analogia entre o ato da leitura e o diálogo, portanto, seria errônea. Mais claramente ainda, o

ato de escrever e o ato de ler não se comunicam diretamente, pois o leitor está relativamente

ausente à composição e o escritor relativamente116 ausente à leitura, ao passo que a palavra dita

supõe a presença. O texto é, enfim, como que emancipado em relação à fala, não sendo ele um

certo modo de substitutivo à presença dialogal, mas sim criador de novas regras para a

comunicação.

O texto, no entanto, assim como o diálogo, tem uma função referencial. No diálogo,

114 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 106. 3 volumes. (Poche, 227). 115 RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 154. (Poche, 377). 116 A ponderação que este termo indica refere-se à dialética entre leitor e autor presumido, que comentaremos na conclusão do nosso trabalho. (Cf. p. 201).

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“dirigindo a palavra a outro locutor, o sujeito do discurso diz algo sobre alguma coisa”117. De

forma semelhante, o texto comunica ao leitor um mundo que é “guardado” pela escritura. Mas,

se no diálogo a referência é imediatamente percebida pelos falantes, somente a leitura poderá

atualizar a referência latente no texto. Descrevendo o mundo de forma estável, capaz de

transmissão independente do seu autor, o texto altera a relação entre linguagem e mundo. As

palavras não se apagam mais diante das coisas, não são transparentes à realidade, mas criam umas

“quase-coisas”, uma realidade alternativa à realidade sensível, porém acessível ao espírito

humano. “Este mundo – explica Ricœur–, nós podemos chamá-lo de imaginário, no sentido de

que ele é presentificado pela escritura, no lugar mesmo em que o mundo era apresentado pela palavra;

mas este imaginário é ele mesmo uma criação da literatura, é um imaginário literário”118.

Podemos perceber, desde já, como a compreensão do processo mimético proposta

por Ricœur será dependente de sua concepção da relação entre linguagem e mundo. Em

conseqüência, as relações complexas que o texto estabelece com a realidade ou as realidades

“literárias” que o texto cria devem também ser levadas em consideração no estudo de um texto.

Ou seja, o processo interpretativo (compreensão-explicação-compreensão), segundo ele, é mais

abrangente que o momento relativamente neutro da explicação estrutural, embora a inclua

necessariamente como uma etapa de aprofundamento da análise119.

Mas essas ressalvas e esclarecimentos só terão pleno sentido numa visão das três

etapas do processo mimético. É o que faremos a seguir, antes de identificar estas etapas na Farsa

da boa preguiça no capítulo seguinte.

117 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 156. 118 Ibidem, p. 158. 119 A este momento da análise, Ricœur reserva um capítulo da terceira parte de Tempo e narrativa, ao lado dos momentos de alargamento (da noção de construção da intriga para todo campo narrativo), do enriquecimento (das noções de construção da intriga e de tempo narrativo, ao analisar as propriedades particulares da enunciação da ação, no domínio narrativo) e de abertura sobre o “fora” do texto (na fronteira com a mimesis III). Cf. RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 2. 1. ed. 1984. Paris: Seuil, 1991. p. 59-114. 3 volumes. (Poche, 228).

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3.1. Mimesis I – pré-figuração

A tese fundamental de Ricœur, nessa primeira etapa da mimesis, consiste em que “a

composição da intriga está enraizada numa pré-compreensão do mundo da ação: de suas

estruturas inteligíveis, de suas reservas simbólicas e de seu caráter temporal”120. Deixando na

sombra o elemento temporal, central na obra do filósofo e secundário para nossa pesquisa, ater-

nos-emos aos dois primeiros elementos constitutivos dessa pré-compreensão que caracteriza a

primeira etapa do processo mimético.

A construção da intriga, observa Ricœur no início de sua argumentação, exige do

autor uma competência específica para manejar a rede conceitual própria do domínio da ação que

inclui conceitos como os de finalidade, motivo, agente, circunstância, interação e possibilidade121.

Uma certa maestria do nível conceitual da ação é ativada no processo de representação da ação,

ao que o filósofo denomina de compreensão prática122, e esta entretém com a compreensão narrativa

uma relação de pressuposição. Em outros termos, não há composição (nem análise estrutural da

narrativa) que não recorra a uma certa fenomenologia da ação. Mas, por outro lado, a

compreensão prática e a compreensão narrativa estabelecem simultaneamente uma relação de

transformação: a narrativa acrescenta traços discursivos à descrição da ação que a diferencia das

simples frases de ação. Ou seja, além do pré-conhecimento da ação, o início do processo

mimético requer familiaridade com as regras da composição.

120 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 108. 3 volumes. (Poche, 227). 121 Podemos ressalvar que, no domínio do teatro, essa competência é ainda mais solicitada. Com efeito, à parte outros elementos estilísticos que enriquecem cada vez mais o teatro em seu desenvolvimento moderno, o que caracteriza o gênero dramático é exatamente que a ação é imitada diretamente, sem recurso ao narrador. As falhas na verossimilhança (compreendida como coerência interna das convenções da representação), por exemplo, são sentidas muito mais cruamente neste campo do que em outros gêneros literários. 122 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 110.

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O segundo ponto da apresentação dessa etapa da mimesis se refere ao segundo traço

de inteligibilidade próprio à construção da intriga e consiste no emprego de recursos simbólicos

do campo prático para a operação poética. É essa forma de inteligibilidade que determinará quais

aspectos do fazer, do poder fazer, do saber fazer, são adequados à transposição poética. Mas o

pressuposto essencial dessa constatação é que a ação humana é sempre simbolicamente

mediatizada; e que a articulação signicante (simbolização) da ação é pública e não interior ao

espírito. Sendo esta mediação estruturada e disponível ao domínio comum como um sistema

simbólico, ela oferece um contexto de descrição das ações que garante a comunicação entre o

autor e o público123.

De fato, a mediação simbólica da cultura tem um aspecto normativo na medida em que

não há comportamento que escape ao código de uma determinada sociedade, código este que

garante o sentido e o entendimento de determinadas atitudes. Aprende-se inevitavelmente a agir

de modo humano num certo tempo histórico e num certo lugar geográfico onde uma sociedade

específica estabeleceu a sua cultura. Isso justifica a atribuição de valores às ações de modo

inevitável, e de modo diverso segundo o tempo e o lugar124. Tal circunstância se manifesta

também na obra literária, herdeira de uma cultura específica. Inevitavelmente somos levados a

conversar com os personagens que se movimentam diante de nós, julgando suas ações. O fundo

simbólico da cultura é a fonte na qual bebemos, em geral buscando parâmetros comparativos

para que um tal juízo avaliativo possa ter lugar. Note-se, porém, que a qualidade de uma obra é

avaliada não pela qualidade moral ou pelos valores de seus personagens, mas, sobretudo, pela

123 É a um problema análogo que se refere Antonio Candido, ao tratar da relação entre escritor e público. Falando da criação literária, ele alerta para a tendência a considerar a obra unicamente como fruto de fatores internos. Ao contrário, observa ele, alguns elementos externos influenciam na criação, ainda que seja de modo secundário. Candido chega a afirmar que “nas sociedades civilizadas a criação é eminentemente relação entre grupos criadores e grupos receptores de vários tipos.” (In: CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 8. ed. São Paulo: T.A. Queiroz editor, 2002. p. 73-74). Esta relação é justamente esse sistema simbólico partilhado, de forma mais ou menos ampla, entre o autor e os múltiplos públicos receptores possíveis. 124 Deixamos de lado, aqui, o tema dos valores sem tocar no problema sempre atual e difícil dos valores universais. Numa abordagem pelo viés da cultura, porém, seria necessário considerar a articulação dialética do universal e do particular que explica a diversidade das culturas específicas e a universalidade de certos valores comuns.

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qualidade e pelo grau de complexidade da mimesis que ela constrói e oferece ao nosso

julgamento125.

Em síntese, para Ricœur, “imitar ou representar a ação é, antes de mais nada, pré-

compreender aquilo que constitui o agir humano: sua semântica, sua simbólica, sua

temporalidade”126.

3.2. Mimesis II - configuração

Com a mimesis II, Ricœur ingressa propriamente no reino do “como se”, ou da

“ficção”, que ele define como a configuração da narrativa da qual a construção da intriga é o

paradigma.127 A palavra “construção” denota mais uma vez o aspecto dinâmico da representação,

mas note-se agora que se trata de uma dinâmica de integração. A função de mediação da mimesis

II deriva do caráter dinâmico da operação de configuração própria dessa etapa do processo. É

esta posição de mediação o traço mais específico desse momento do processo, centro do mesmo.

Como observa o filósofo, “mimesis II só possui uma posição intermediária porque ela tem uma

função de mediação”128.

De fato, a intriga é mediadora pelo menos em três sentidos: 1) ela faz a mediação

entre os acontecimentos isolados da narrativa e a história como um todo; 2) ela articula um

conjunto a partir de fatores diversos (agentes, finalidades, circunstâncias, resultados inesperados,

125 O tema do julgamento, que abordaremos em diversas outras ocasiões, em particular no capítulo V, parece-nos de fundamental importância. No entanto, mais importante do que julgar ou condenar uma obra – o que produz efeitos práticos inúteis ou, no mais das vezes, nefastos –, é julgar com a obra que interessa. Ou seja, conversar, discutir, brigar, elogiar ou repreender as ações e os personagens que determinada obra inventa em seu mundo. 126 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 125. 127 Cf. Ibidem, p. 126. 128 Ibidem, p. 127. Note-se, porém, que essa função mediadora não é de importância secundária. Ao contrário, sua posição central justifica-se também por seu poder criador: é a mimesis II que cria a nova realidade do mundo do texto.

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etc.); 3) a mímesis II organiza as três hipóstases do tempo129, fazendo uma síntese do

heterogêneo.

Do ponto de vista da organização do tempo, existem duas dimensões presentes na

construção da mimesis II: uma episódica (história feita de acontecimentos) e outra configurante (as

ações são “tomadas em conjunto” e formam uma história). Por esta razão, compreender uma

história é compreender como e porque os episódios sucessivos conduziram a esta conclusão.

Esta articulação do episódico e do configurante ultrapassa, porém, o problema

temporal, pois é uma solução dialética do paradoxo distensão-intenção, ou seja, da oposição entre

a atenção ao presente e a atenção ao fluir dos acontecimentos. Solução poética, claro, como

observa o filósofo, mas próxima do ato de julgar (no sentido kantiano) na medida em que a

operação de construção da intriga é fruto de uma inteligibilidade constituída pela imaginação

produtora e organizadora do aparente caos da realidade.130 Pode-se falar, portanto, de um

esquematismo, função narrativa.

Mas a história da manifestação desse esquematismo em ação na literatura mundial

revela outra característica do ato configurante que constitui a mimesis II: a tradicionalidade. Ou seja,

falar de esquematismo não significa enrijecer a teoria da composição literária. Ao contrário, a

tradicionalidade é a transmissão viva de uma inovação suscetível de ser reativada.

Ricœur nota que a tradição se situa entre inovação e sedimentação.131 Mas, uma vez

que a intriga é uma construção que busca a concordância no meio da discordância, a

sedimentação é o paradigma desse processo. Essa sedimentação se manifesta em três aspectos

129 Essa noção é devida a Santo Agostinho, retomada no início da argumentação de Ricœur. Para o teólogo, o tempo é formado de três formas de presente hipostasiadas: um presente do passado, um presente do presente e um presente do futuro. Sua concepção está contida no capítulo XI das Confissões. 130 “Numa veia ainda kantiana, não deveríamos hesitar em aproximarmos a produção do ato configurante do trabalho da imaginação produtora. Por imaginação produtora deve-se entender uma faculdade não psicologizante, mas transcendental. A imaginação produtora não somente não é sem regras, como constitui a matriz geral das regras”. In: Ibidem, p. 132. 131 Tais noções encontram outro paralelo no pensamento de Antonio Candido, quando este fala em arte de agregação (que insiste mais na continuidade de um sistema simbólico de certa época em certa sociedade) e arte de segregação (apontando mais para a ruptura e para a inovação. Cf. CANDIDO, Antonio, op. cit., p. 23).

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literários: a) forma (grau de concordância discordante); b) gênero literário (trágico, épico, etc); c)

obras singulares (tipo). A inovação é sempre possível e são as obras singulares que a produzem. É

esse o lugar do imprevisível, sendo a inovação responsável pelo movimento da tradição. Mas o

trabalho não exclui jamais as regras, e o processo de construção da mimesis II se situa

inevitavelmente entre inovação e sedimentação, numa imensa diversidade de referências à

tradição, da aplicação servil ao desvio calculado 132.

3.3. Mimesis III - refiguração

Por sua própria função mediadora, como já se repetiu aqui tantas vezes, a mimesis II

pede um complemento. Ricœur, finalmente, sustenta que a narrativa só atinge sua completude de

sentido quando é restituída ao tempo do agir e do sofrer humanos. É a mimesis III, que marca a

interseção entre o mundo configurado pelo poema (mundo do texto) e o mundo no qual a ação

se desenvolve (mundo da ação). A demonstração de Ricœur segue quatro etapas: a) A progressão

entre mimesis I, II e III; b) O ato de leitura e a configuração; c) O problema da referência; d) Uma

fenomenologia do tempo.

3.3.1 Progressão entre mimesis I, II e III

132 Ricœur observa que a inovação pode se referir a todos os níveis: forma, gênero e tipo. Caso seguíssemos a linha dessas inovações, teríamos uma história da tradição narrativa, com suas constantes e rupturas. Mas tal distinção é uma preciosa indicação de método para a consideração da permanência e da ruptura de certas tradições numa obra singular. Transpondo a lei de Lavoisier, pode-se dizer que nada se perde na selva da literatura, tudo se transforma. Pode-se buscar, então, aquilo que permanece por mais que haja transformação. Ou, inversamente, buscar o que há de inovação por mais que se esteja apegado a uma tradição.

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66

O processo de representação da ação, para Ricœur, constitui certamente um círculo

que vai da ação humana e volta a ela, passando por uma forma literária de representação da

mesma. Mas esta forma circular não é viciosa, fechada. É uma forma espiral, dinâmica, que

escapa à violência e à redundância – duas grandes acusações feitas à teoria da tríplice mimesis.

A acusação de violência consiste em dizer que esse modelo de configuração da intriga

impõe a consonância à dissonância, alimentando a ilusão de sentido do agir. De certo modo, esta

violência feita à multiplicidade do real revela o caráter de concordância-discordante da relação

narrativa-tempo. Mas a dialética posta em movimento não é simples discordância e não é um

“triunfo da ordem”. É o círculo inevitável (não vicioso) da concordância.

Já a acusação de redundância diz que a mimesis I é um simples efeito de sentido da

mimesis III. O argumento é que, se toda ação humana é já simbolicamente mediatizada, seria

redundante para a compreensão da ação o recurso à narratividade. Mas esta busca da

narratividade não é uma projeção. Ela é o fruto de uma estrutura pré-narrativa da experiência que

demanda explicitação. A ação humana pede, precisa ser contada para ganhar sentido.

Ricœur se defende recorrendo à situação da ação “ainda não narrada”,133 apontando

duas situações exemplares: a psicanálise e a investigação policial. O importante em ambas as

situações é que a história da ação possa “emergir” e ser contada. E, junto com a história, emerge

o sujeito, pois o homem, como diz belamente o filósofo, é um “ser incrustado nas histórias”.134

133 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 142. 3 volumes. (Poche, 227). 134 Ibidem, p. 143. Este assunto toca novamente o tema da identidade narrativa, explicitamente o problema da ascrição da ação a que já aludimos. Ao contar a ação, três questões se articulam inevitavelmente: “Nós nos encontramos muitas vezes face à exigência de realizar esta união [da ação e do agente]; ela resulta em última instância da necessidade mesma de conjugar o quem? ao quê? e ao por quê? da ação, necessidade oriunda ela mesma da estrutura de intersignificação da rede conceitual da ação”. [RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre. 1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. p. 133(Poche, 330)]. O termo “ascrição”, novo no vernáculo, é de origem inglesa (to ascribe, quer dizer atribuir ou creditar algo a alguém. Nos domínios da ética e da bioética tem sido usado para designar "atribuição de certa dignidade pessoal, outorgada criteriosamente, a seres que julgamos merecedores dela, pela proximidade que intuímos desfrutar conosco, apesar do fato de eles não satisfazerem os critérios da definição clássica da pessoa, sujeito racional, livre, autônomo e responsável" (LEPARGNEUR H. Bioética: novo conceito. São Paulo: Loyola, 1996 apud

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67

Temos necessidade de contar a vida humana e ganhamos com o conhecimento das intrigas que

portam tantas vidas às quais não teríamos acesso senão por elas.

3.3.2 O ato de leitura e a configuração

Outro momento da argumentação de Ricœur é a relação entre a configuração

operada pela construção da intriga e a refiguração realizada pelo ato de leitura. É de fato para

serem lidas, assistidas, em todo caso conhecidas que as histórias foram criadas.135 Quem opera a

transição entre as mimesis II e III, portanto, não é outro senão o ato da leitura que dá vida à obra.

E se a configuração (mimesis II) é uma forma aparentada ao julgamento na medida em que associa

e seleciona elementos diversos numa unidade coerente e explicativa, o mesmo vale para a leitura,

momento da refiguração (mimesis III) onde o processo mimético é levado a cabo.

Um exemplo da interseção entre o “dentro” e o “fora” da intriga pode ser observado

nesses dois traços da intriga destacados por Ricœur: a esquematização e a tradicionalidade, “categorias

da interação entre a operatividade da escritura e a da leitura”136. Presentes na construção da

intriga, ambas impõem ao leitor também suas regras.

Quanto à primeira categoria, o modo de organização da obra num gênero ou tipo

particular predispõe o leitor a um tipo de expectativa – que sempre pode ser frustrada, o que não

revoga, mas confirma a regra. Por outro lado, a tradicionalidade diz respeito à capacidade da

XAVIER, Elias Dias, A bioética e o conceito de pessoa. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/revista/bio2v8/simpo2.pdf>. Acesso em: 31 out. 2006). 135 Reforce-se que tudo o que é escrito, é escrito para ser lido. Podemos nos perguntar, mesmo, se as narrativas aparentemente privadas como os diários, não são escritas com a pretensão implícita de torná-las públicas. Mas ainda que elas sejam rigorosamente privadas, sendo seu suporte material destruído para que outros não possam conhecê-las, as histórias que alguém escreveu em segredo foram fixadas para que pudessem ser acessadas novamente, pelo próprio sujeito, depois de certa dilação temporal. 136 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 1. 1. ed. 1983. Paris: Seuil, 1991. p. 145. 3 volumes. (Poche, 227).

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68

história em se deixar seguir, atualizar pela leitura. Nesse aspecto, não faltam exemplos na

literatura contemporânea para um alto grau de solicitação do leitor em vista da construção da

síntese proposta pela obra. Como lembra Ricœur, citando Roman Ingarden e Wolfgang Iser, “a

obra escrita é um esboço para a leitura; o texto, com efeito, contém buracos, lacunas, zonas de

indeterminação, por exemplo, como o Ulisses de Joyce, que desafia a capacidade do leitor de

configurar ele mesmo a obra que o autor parece ter um perverso prazer em desfigurar.” É nesse

sentido que a leitura é “o último vetor da refiguração do mundo da ação sob o signo da

intriga”137.

3.3.3 O problema da referência

Mais um argumento em favor de uma terceira etapa da mimesis apontando para o

“fora” da obra – sempre como parte do processo, porém – é o problema da referência na obra

literária. É nesse momento que intervém a noção de mundo do texto, que já encontramos no início

desta seção. Recorde-se, portanto, que Ricœur argumenta que a escritura está para a leitura assim

como a comunicação está para a referência. E enquanto ato de comunicação precisamente, a

escritura está implicada no problema da referência, ainda quando esta não é direta. Vejamos seu

raciocínio.

Sendo discurso, a linguagem é orientada para além dela mesma. Ela faz referência a

algo fora de seu sistema mesmo quando não visa a algo do mundo real. Por exemplo, em seu uso

da linguagem, fases do tipo: “isto é uma cadeira” não visam uma cadeira real como na linguagem

ordinária. Mas suas descrições, ainda quando se apóiam sobre uma referência real, criam um

137Ibidem, p. 145-146.

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69

mundo de natureza imaginária, mas sempre acessível ao espírito humano (como a Vila de

Taperoá do Romance da pedra do reino, de Ariano Suassuna, ou a Macondo de Cem anos de solidão, de

García Márquez). Nesse sentido ela é um evento, enquanto transmite uma experiência humana. Esta

experiência tem um mundo por horizonte (simultaneamente interno ao texto e externo a ele).

Tal afirmação tem uma primeira pressuposição, ontológica: a linguagem não é um

mundo fechado em si mesmo. É o nosso ser-no-mundo que nos leva à linguagem. Outro

pressuposto é que toda obra de arte, como ato de linguagem, faz referência a uma experiência. Os

textos literários têm também uma referência (experiência trazida à linguagem). Isso rompe com

uma certa forma de positivismo que fecha a interpretação sobre o texto e coloca em valor o

caráter subversivo, inovador da literatura. De fato, a dialética da inovação e da sedimentação

pode possuir um caráter subversivo na fusão dos horizontes interno (obra) e externo (a recepção

que ela provoca).

Convém esclarecer, a essa altura, a noção de “mundo” implicada por essa fusão de

horizontes, em que o mundo do texto se choca com o mundo da ação. Para Ricœur, este mundo

do texto é “o conjunto de referências abertas por todas as formas de textos descritivos ou

poéticos que eu li, interpretei e amei”138.

Contra qualquer forma de neoplatonismo, tal concepção destaca que a escritura não

dá uma imagem esmaecida da realidade. Ao contrário, ela a aumenta. Isso constitui um último

postulado da afirmação de uma certa referencialidade da obra literária: é o postulado

hermenêutico que renuncia à reconstituição da intenção do autor e se preocupa em explicitar o

mundo descortinado diante do texto pela ação das estruturas contidas no próprio texto. É esta a

capacidade referencial das obras narrativas, o aumento icônico139 da lisibilidade prévia da ação. Uma

sobre-significação só é possível porque uma pré-significação já existia.

138 Ibidem, p. 151 139 Ibidem, p. 153.

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70

Um problema se coloca, nesse momento: a pretensão à verdade associada à referência.

Esse problema inaugurará a distinção entre dois tipos de discurso narrativo que se entrecruzam

dentro desse modelo teórico da construção da intriga: ficção e história140.

3.3.4 Uma fenomenologia do tempo

Finalmente, justificando a sua visão do processo, Ricœur volta ao tema da

temporalidade. Para ele, é o tempo da ação, sobretudo, que é refigurado pela narrativa. No tempo

narrado, os traços temporais são aqueles de um mundo que foi refigurado pelo ato da

configuração. A obra narrativa consiste em ver nossa práxis “como se”, para o que é

indispensável o recurso a uma fenomenologia do tempo. Dentro de sua investigação sobre a

temporalidade, Ricœur desenvolverá uma demonstração da forma dialética dessa fenomenologia

em que se relacionam a narrativa e o tempo. Afinal, depois de Santo Agostinho, uma

fenomenologia pura do tempo não é mais possível. Será necessário articular historiografia, crítica

literária e fenomenologia.

3.3.5 O mundo do texto

Dentro da apresentação dessa terceira etapa da mimesis, parece-nos necessário incluir

um parêntesis relativamente extenso sobre esta noção complexa desenvolvida por Ricœur para

140 Ricœur desenvolverá esse problema na continuidade da sua obra, especialmente na segunda parte do primeiro Vol. e no terceiro Vol. de Tempo e narrativa.

Page 72: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

71

explicar o evento da mimesis III. E para compreendermos ainda melhor o que Ricœur pretende

com a noção de mundo do texto, é necessário ressalvar que “não há curto-circuito brutal entre a

análise puramente objetiva das estruturas da narrativa e a apropriação de sentido pelos sujeitos.”

É justamente entre esses dois pólos objetivos que se desenvolve o mundo do texto. E Ricœur

completa: “se o sujeito é chamado a se compreender diante do texto, é na medida em que este

não se fecha sobre si mesmo, mas é aberto sobre o mundo que ele redescreve e refaz”141.

O mundo do texto, portanto, apesar de estar ligado ao tema da referência do

discurso, não visa a uma referencialidade demonstrativa como no caso do diálogo. A literatura

rompe com o mundo para criar um novo mundo. Segundo Ricœur,

a abolição de uma referência de primeiro escalão, abolição operada pela ficção e pela poesia, é a condição de possibilidade para que seja liberada uma referência de segundo nível, que atinge o mundo não mais apenas ao nível dos objetos manipuláveis, mas ao nível que Husserl designava pela expressão Lebenswelt [mundo da vida] e Heidegger pela de ser-no-mundo.142

O cerne dessa noção de mundo do texto, assim, não é tanto algo fixado por uma

interpretação canônica, por mais que ela esteja autorizada pela explicação estruturalista. O mundo

do texto é uma proposição, a proposição de um mundo oferecida por um texto e cada vez

reconstituída pelo ato de leitura. É ao mundo criado pela obra, cheio de possibilidades que

escapam à rigidez do real, que a noção do filósofo se refere. Este mundo, no entanto, é bem

aquele do texto, ou seja, preparado, induzido por ele e contido, de alguma forma, nas arestas de sua

estrutura.

É sempre necessário, de fato, distinguir aquilo que diz o texto daquilo que o texto faz

dizer. Isso corresponde justamente à distinção entre as etapas do processo interpretativo

(compreensão-explicação-compreensão), cabendo à análise estrutural fazer emergir a estrutura

significativa do texto sobre a qual pode se apoiar uma exploração mais profunda e mais ampla

141 RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 187. (Poche, 377). 142 Ibidem, p. 127.

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72

dos caminhos abertos pela obra. Uma parte da interpretação será sempre dependente de um alto

grau de objetividade.

No entanto, parece inevitável a equação que estipula que quanto mais rica a obra

literária, mais diversas suas interpretações. Boa parte do interesse de uma obra literária, aliás, não

está apenas no que ela diz, mas no que ela provoca em quem se defronta com ela, no que ela faz

dizer. Porém, qualquer que seja a análise proposta, esta será dependente de uma etapa explicativa

rigorosa se quiser ser levada a sério. Ou seja, podem-se dizer coisas muito diversas sobre uma boa

obra, mas não se pode atribuir a ela tudo e qualquer coisa que desejaríamos que ela dissesse.

Um dos interesses da teoria da mimesis como processo está justamente nessa

ampliação de horizontes que ela proporciona. No entanto, como insiste Ricœur, o centro de uma

análise literária deverá sempre se articular com um momento no qual a etapa explicativa tem

grande relevo (mimesis II). E esse momento é necessária e rigorosamente focado no texto, em suas

tensões internas, sua estrutura, etc.

4. Dois temas complementares

Depois de apresentarmos brevemente a teoria da tríplice mimesis, ou da mimesis como

processo, retomaremos nossa análise do ponto em que a deixamos, procedendo à identificação

desses três momentos na peça de Ariano Suassuna aqui analisada a partir do material considerado

no capítulo precedente. No entanto, optando por nos concentrarmos no texto, mergulharemos

cada vez mais na compreensão da mimesis II. Por isso, nosso percurso no capítulo seguinte seguirá

o fio de um dos aspectos mais relevantes da peça, os elementos narrativos presentes na Farsa. E o

prosseguimento da análise pedirá a volta sobre dois temas do pensamento de Ricœur que

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73

apresentaremos no início dos capítulos IV e V. Primeiro, ao abordarmos a estrutura da

representação da ação na peça com a ajuda do modelo actancial, efetuaremos o momento de

aprofundamento, que o filósofo prevê no segundo tomo de Tempo e narrativa. Depois será a vez de

passarmos da ação ao agente, analisando o personagem e o julgamento de sua ação que é

representado na peça. Para esta etapa, percorreremos novamente o conjunto do percurso

mimético a partir da noção central de identidade narrativa, comentando suas implicações éticas143.

A pertinência da análise estrutural como momento da compreensão do processo

mimético já foi apresentada aqui. Mas o problema da identidade narrativa, que já aparece em

Tempo e narrativa,144 é desenvolvido especialmente em Si mesmo como um outro. Nessa obra, Ricœur

recorre à teoria narrativa para responder ao paradoxo da identidade pessoal através da tríade

descrever-narrar-prescrever.145 Seu interesse vai do pragmático ao ético, passando pelo campo

literário. Considerando sua perspectiva em negativo, porém, sua argumentação nos deixa ver

como a estrutura da narratividade pode funcionar como mediação entre descrever e prescrever, pois,

como nota o filósofo, “a teoria narrativa não faz verdadeiramente a mediação entre a descrição e

a prescrição a não ser que o alargamento do campo prático e a antecipação de considerações

éticas estejam implicadas na estrutura mesma do ato de narrar”146. Esta afirmação, entretanto,

corre o risco de nos induzir ao erro de analisar eticamente a literatura, o que seria confundir a

especificidade dos domínios ético e poético. Ora, toda a argumentação de Ricœur se orienta na

inter-relação – não na confusão – que existe entre esses dois campos do saber. À afirmação de

143 Sobre a implicação ética da literatura, podemos antecipar desde já uma citação na qual o filósofo aborda o tema diretamente. Para ele, de fato, “não há narrativa eticamente neutra. A literatura é um vasto laboratório onde são ensaiadas estimativas, avaliações, julgamentos de aprovação e de condenação pelos quais a narratividade serve de propedêutica à ética” (RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre. 1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. p. 139. (Poche, 330). Grifos nossos). Voltaremos a este assunto delicado com mais detalhe no capítulo V. (Cf. p.156 et seq.). 144 “A noção de identidade narrativa, introduzida em Tempo e narrativa III, respondia a uma outra problemática: ao termo de uma longa viagem através da narrativa histórica e da narrativa de ficção, eu me perguntei se existia uma estrutura da experiência capaz de integrar as duas grandes classes de narrativa. Eu formulei então a hipótese segundo a qual a identidade narrativa, seja de uma pessoa, seja de uma comunidade, seria o lugar procurado desse quiasma entre história e ficção”. In: Ibidem, p. 138, nota 1. 145 “Uma tríade se impôs a mim: descrever, narrar, prescrever – cada momento da tríade implicando uma relação específica entre constituição da ação e constituição do si mesmo”. In: Ibidem, p. 139. 146 Ibidem, p. 139.

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74

que há elementos éticos em funcionamento na narratividade corresponde a consideração poética

do agir humano que não se compreende sem a narratividade.

Voltaremos a esse debate oportunamente com mais vagar. Antes, no entanto, cabe-

nos olhar de perto a Farsa com a ajuda das categorias de mimesis I, II e III, centrando-nos na

mimesis II e deixando-nos guiar, agora, pelos vestígios narrativos presentes no texto.

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75

III

ANÁLISE DOS ELEMENTOS NARRATIVOS DA FARSA:

PREPARAR-CONDUZIR-JULGAR

Após detalharmos nosso marco teórico, convém retomar a análise no ponto em que

a deixamos no capítulo primeiro. Procederemos a essa retomada segundo as categorias da tríplice

mimesis, organizando o conteúdo de acordo com as três etapas do processo mimético identificadas

por Ricœur. A seguir, retomaremos nossa análise, especialmente centrada na mimesis II, mas sem

deixar de indicar os elementos que apontam para a etapa preliminar e posterior da configuração

operada pelo muthos, ou seja, pela construção da intriga. A retomada será feita seguindo um dos

elementos mais destacados da superfície do texto, já apontado pela análise das fontes: os

elementos épicos presentes no texto dramático. Dentre eles, é a figura de um personagem-

narrador que nos interessará acompanhar, na medida em que ele parece preparar, conduzir e

julgar a ação.

Como se pode notar, ainda, essa tríade de verbos (preparar-conduzir-julgar) evoca a

mediação da narratividade à obra na identidade narrativa, que se faz através do percurso descrever-

narrar-prescrever. Embora ela se refira, em primeiro lugar, ao funcionamento interior à intriga

(muthos) como parte do funcionamento da narração na construção da identidade narrativa dos

personagens, a tríade designa, também, os momentos que, dentro do texto, aproximam-se mais

do antes (preparar // mimesis I) e do depois do texto (julgar //mimesis III), etapas ligadas uma à outra

pelo momento da mimesis II, ou do momento da condução da ação. É nesse segundo sentido,

sobretudo, que utilizaremos a tríade verbal que indicamos, aplicada de modo mais preciso ao

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76

funcionamento do personagem-narrador.

1. Retomando o trilho: a tríplice mimesis e a construção da peça

Como vimos, Paul Ricœur considera a mimesis, representação da ação humana, em

seu processo dinâmico que começa com o domínio dos recursos simbólicos e das categorias para

a representação do agir (mimesis I), passa pela construção efetiva da intriga (muthos) através da qual

se representa a ação (mimesis II) e se completa na construção de um mundo do texto a partir da

obra (mimesis III). Retomemos as aquisições do capítulo introdutório sob a luz dessas três etapas

do processo.

1.1. Mimesis I – Prefiguração

Na esfera da primeira etapa da construção da intriga, o processo de escritura e as

fontes da Farsa que descrevemos revelam um grande domínio na manipulação dos recursos

simbólicos presentes na cultura popular nordestina, sem se fechar a uma perspectiva mais

universalizante. Na medida em que recorre ao imaginário popular e rural do nordeste brasileiro,

estabelece um canal de contato privilegiado com o público dessa região. Escolhendo o uso de

uma linguagem simples, abre-se a um leque ainda maior de pessoas. Se considerarmos que a

Farsa, enquanto literatura dramática, é escrita em vista da representação, o público amplia-se

ainda mais e inclui os iletrados. Por outro lado, ao retomar temas como o embate entre virtude e

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77

vício, a condição conflituosa do homem no mundo e o dilema da salvação, Suassuna inscreve-se

numa dimensão universal e estabelece as condições necessárias para um diálogo com todos.

A opção pelo não-ilusionismo147, ao exigir uma grande dose de convencionalismo do

leitor (e, sobretudo, do espectador), manifesta outra habilidade do autor em envolver o receptor

da peça. Algumas cenas de disfarce, por exemplo, só funcionam porque a criação do universo

poético popular da peça é eficaz. Mesmo algumas incongruências, como o fato de não se saber

como os diabos poderiam antecipar a sucessão de compras com a intervenção de São Pedro (2o

ato), passam despercebidas. Ainda, a precariedade na descrição do cenário corresponde a uma

solicitação maior da imaginação do leitor (ou do espectador), que é compensada pela riqueza da

ação.

Esta complexidade da ação, que se desenrola em diversos planos, com inúmeros

episódios entretecidos, disfarces, disputas, é o elemento talvez mais relevante desta etapa inicial

da construção mimética. A habilidade de Suassuna em concatenar as ações das fontes primárias é

um exemplo disso. A combinação do plano da ação terrestre com um outro plano – celeste –,

que intervém como comentador da ação, completa o conjunto no qual a qualidade do material

que será organizado na história contada pela Farsa se destaca148.

147 O termo “ilusionismo” é entendido aqui no sentido amplo de uma representação teatral que pretenda duplicar a realidade, construindo a ilusão da verdade no espectador. Com esta opção, seguimos Patrice Pavis, quando observa: “No teatro, o realismo nem sempre se distingue com clareza da ilusão ou do naturalismo. Esses rótulos têm em comum a vontade de duplicar a realidade através da cena, imitá-la da maneira mais fiel possível. O meio cênico é reconstituído de modo a enganar sobre sua realidade. Os diálogos se inspiram nos discursos de determinada época ou classe socioprofissional. O jogo do ator torna o texto natural ao máximo, reduzindo os efeitos literários e retóricos pela ênfase na espontaneidade e na psicologia. Assim, paradoxalmente, para fazer o verdadeiro e o real, é necessário saber manipular o artifício”. (Realista [Representação]. In: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 327). Se tanto nesse tipo de representação quanto no modelo escolhido por Suassuna o grau de convencionalismo para a construção da verdade da peça é elevado, a diferença entre os modelos pode ser encontrada no fato de que a representação ilusionista de certo modo substitui-se ao espectador, oferecendo um modelo já construído à sua contemplação, enquanto o modelo operante na Farsa deixa ao espectador a tarefa de cobrir as lacunas da representação. 148 É necessário observar que a etapa da mimesis I refere-se, propriamente, ao estágio pré-narrativo da ação real que é representada pela construção da mimesis II. Ao falarmos na habilidade do autor implícito em manipular esse material, situando essa observação na primeira etapa do processo mimético, já nos situamos na passagem de uma etapa a outra, quando o real começa a se tornar fictício. Nesse sentido, a mimesis I pode ser entendida como uma antecipação da narração e a mimesis II como uma projeção do agir real.

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78

1.2. Mimesis II – Configuração

A etapa da mimesis II corresponde ao momento de construção da intriga

propriamente dita, com a articulação dos episódios, a configuração do tempo e a organização das

ações, motivações, circunstâncias, finalidades e conseqüências do agir. Na Farsa da boa preguiça,

vimos que a ação se dá em dois planos que se completam, formando dois eixos. No plano

terrestre, a ação acontece principalmente através da oposição rico-pobre. No plano celeste,

porém, a ação articula-se num eixo vertical salvação-danação que só será plenamente revelado no

terceiro ato, com o episódio da intercessão dos pobres em favor dos ricos, que irão para o

purgatório149. Em torno a esse eixo, dá-se constantemente o julgamento de uma atitude: a boa ou

a má preguiça.

Quem arbitra a disputa é Manuel Carpinteiro. Junto com os demais personagens

celestes, porém, ele inclui o leitor (e o público) na discussão promovida pela peça ao se dirigir

diretamente a ele, mais de uma vez.

A aparente simplicidade da Farsa esconde, portanto, uma grande complexidade de

estrutura. Grande parte dessa complexidade advém da dialética entre a aparente independência

das ações representadas nos atos e a força do conjunto da peça, reflexo da tensão concordância-

discordância de que fala Ricœur. Do ponto de vista da ação dos personagens terrestres, seríamos

conduzidos a reforçar a descontinuidade. O plano celeste, porém, coordena as três partes da

peça, garantindo a coerência e a unidade do todo. Dessa tensão, que solicita a forma híbrida

adotada por Suassuna, resulta uma peça com fortes elementos épicos, como veremos a seguir.

149 O plano infernal também é presente na peça, mas não como lugar de ação.

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79

1.3. Mimesis III – Re-figuração

O terceiro momento do processo mimético, para Ricœur, consiste na consideração

do mundo criado pela obra, situado diante dela e ativado pela participação de um terceiro, que

completa o triângulo autor-obra-leitor. No caso do gênero dramático, essa terceira instância se

desdobra, sendo a obra recebida de dois modos: pela leitura e pelo espetáculo. Em nossa opção

de situar a análise apenas no plano do texto, deixamos de lado o segundo modo de recepção150.

Convém observar, também, que a recepção a que nos referimos aqui consiste na análise dos

indícios presentes na obra para a condução da leitura. Em outras palavras, não nos colocamos do

lado dos leitores efetivos, com suas reações díspares e dificilmente mensuráveis. Buscamos uma

identificação dos vestígios (não mais que isso) de um efeito esperado pelo autor, ao escolher

determinadas opções estéticas.

A peça de Suassuna contém um elemento particularmente importante na abertura

dessa etapa final da construção da intriga. Trata-se da figura do julgamento da boa preguiça, ao

qual o leitor é convocado. Após ter acesso ao conteúdo da intriga, a pergunta pela justeza da

atitude do protagonista não parece ser resolvida. Nesse recurso que contrapõe o elemento de

moralidade (apologia da boa preguiça) com o elemento farsesco (comportamento do herói), o

valor do ócio criativo é desmentido ou mal defendido pela atitude do poeta. Sua situação final, de

150 Deveríamos dizer que, no teatro, à dupla recepção corresponde também uma dupla emissão: ao escritor, corresponde o encenador; ao leitor, corresponde o espectador. Visto dessa forma, teríamos uma sucessão de processos miméticos sobre uma mesma obra, na forma autor-texto-leitor encenador-texto declamado-espectador. Não exploraremos esse tema, uma vez que decidimos trabalhar sobre a peça escrita apenas. Mas vemos aí uma particularidade do teatro que mereceria um estudo mais aprofundado com essas mesmas categorias de Ricœur.

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fato, parece irresoluta ou precariamente resolvida: anúncio da realização de três folhetos, com os

quais sobreviverá. Nada em sua atitude durante a peça confirma que tal iniciativa possa ter êxito.

Esta figura do julgamento é preparada pela organização da trama, que faz a peça

começar com uma proclamação de abertura por parte de Manuel Carpinteiro e o faz intervir na

abertura e no fechamento de todos os atos, dirigindo-se ao público. Ao despertar o interesse do

leitor para o tema, com maior ou menor intensidade, a Farsa completa o percurso mimético,

oferecendo um mundo criado pela obra à imaginação do leitor. Examinaremos esse tema no final

do nosso último capítulo.

Esta síntese elaborada por Suassuna, resultado da mistura de elementos nordestinos e

medievais, é conseqüência do estilo e da estética próprios a este autor. Aqui novamente

reencontramos a influência das fontes. Mas, diferentemente do que verificamos na mimesis I, o

que conta, agora, é o que as fontes se tornaram na peça, o mundo que elas permitiram ao autor

construir.

2. Vestígios narrativos presentes na Farsa da boa preguiça

A retomada que acabamos de realizar já nos permite uma visão do conjunto do

processo da Farsa. A prospecção dos principais elementos influentes em sua composição

permitiu-nos não só uma explicitação da origem da intriga, mas também a identificação de seus

traços mais característicos. Dentre eles, a presença de vestígios narrativos151 é um dos mais

relevantes, razão pela qual retomamos nossa análise a partir dele. Considerando que nossa análise

tem como hipótese interpretativa a relação entre forma (ao modo da farsa) e matéria (conteúdo

151 Por “vestígios narrativos”, entendemos os elementos característicos da mimesis II enquanto construção narrativa.

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moral), a atenção dada aos elementos épicos presentes na Farsa da boa preguiça é mais que

justificada. De fato, é neles que essa interação dialética se deixa perceber de modo mais explícito.

De modo especial, veremos a figura do personagem-narrador ao mesmo tempo necessária para a

coerência do todo e indispensável para a exegese do conteúdo moral da peça. Ao analisarmos o

funcionamento interno do texto, vale lembrar, concentramo-nos na etapa da mimesis II.

Assinalaremos, porém, as indicações referentes às outras etapas do processo quando oportuno.

Em termos clássicos, o narrador é, por definição, ausente do gênero dramático. É o

que nos recorda Anatol Rosenfeld, ao descrever os traços estilísticos fundamentais desse gênero:

“[o mundo] se apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (não relativizado a um sujeito),

emancipado do narrador e da interferência de qualquer sujeito, quer épico, quer lírico”152. No

entanto, alguns vestígios do narrador emergem freqüentemente aqui e ali no texto dramático, o

que justifica o sentido adjetivo dos termos dramático, épico e lírico proposto pelo mesmo Anatol

Rosenfeld.153

Vejamos quais são esses elementos narrativos presentes na Farsa, ligando-os com as

raízes dramáticas da peça que acabamos de identificar. Isso nos permitirá polemizar com a opção

de alguns estudiosos em tratar o teatro de Ariano Suassuna como teatro épico. Concluiremos o

capítulo sobre a figura de Manuel Carpinteiro. Já o dissemos há pouco, esse personagem polariza

a articulação entre a forma e o conteúdo da peça, numa outra manifestação da relação entre a

estética do texto e o conteúdo ético que ele porta.

152 ROSENFELD, A. O teatro épico. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 27. 153 “Costuma haver, sem dúvida, aproximação entre gênero e traço estilístico: o drama tenderá, em geral, ao dramático, o poema lírico ao lírico e a épica (epopéia, novela, romance) ao épico. No fundo, porém, toda obra literária de certo gênero conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão, também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros”. (Ibidem, p. 18).

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2.1. As rubricas

As rubricas (didascálias ou indicações cênicas) têm importância variável ao longo da

história do teatro. Inicialmente ausentes, elas ganharão pouco a pouco importância – o que,

curiosamente, acontece aproximadamente na mesma época em que o texto de teatro torna-se

mais acessível ao público leitor, o que advém especialmente com o desenvolvimento da imprensa

no ocidente. Mas, como nos lembra Patrice Pavis, é sobretudo a tradição do realismo no teatro

que torna essas particularizações uma exigência:

A partir do momento que a personagem não é mais um simples papel, que assume traços individuais e se ‘naturaliza’, torna-se importante revelar seus dados num texto-guia. É o que se passa historicamente nos séculos XVII e XIX: a busca do indivíduo socialmente marcado (drama burguês) e a conscientização da necessidade de uma encenação provocam um aumento das didascálias. É como se o texto quisesse anotar sua própria futura encenação. As indicações cênicas dizem então respeito não só às coordenadas espaço-temporais, como sobretudo à interioridade da personagem e à ambiência da cena. Estas informações são tão precisas e sutis que pedem uma voz narrativa. O teatro se aproxima então do romance, e é curioso constatar que é no mesmo momento em que se propõe a ser verossimilhante, objetivo, ‘dramático’ e naturalista que ele passa para a descrição psicológica e recorre ao gênero descritivo e narrativo.154

Quando aparecem as rubricas, portanto, elas carregam consigo normalmente fortes

elementos narrativos, mais ou menos velados, aportando ao gênero dramático um traço estilístico

(em sentido adjetivo) épico. De fato, é geralmente nas rubricas que estão contidas as indicações

sobre o modo da ação e sobre seu enquadramento, já que o texto dramático é quase sempre

desprovido de outros elementos descritivos. Assim sendo, elas são em geral o lugar onde se

manifesta a compreensão prática do autor ao manipular a construção da intriga, momento ligado à

mimesis I. Numa imagem, é como se as rubricas fossem a parte da escritura que lança os diálogos

no vôo, a parte do texto a ficar para trás quando o texto ganhar vida na cena.

154 Indicações cênicas. In: PAVIS, Patrice, op. cit. p. 207.

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A Farsa da boa preguiça não foge à regra. A peça inaugura-se com um texto descritivo

de três parágrafos. O primeiro descreve o cenário, terminando com a afirmação desconcertante,

já citada anteriormente: “a peça pode ser montada sem cenário”155. O parágrafo seguinte, que

descreve os personagens e sua aparência nos mínimos detalhes, não apresenta a mesma liberdade.

Ao contrário, adiciona uma generalização: “no meu teatro, a roupa nunca é somente um

acessório apenas decorativo: tem sempre uma função teatral a desempenhar”156. Tal ressalva se

justifica se lembrarmos a simplicidade do cenário. Sem este, a caracterização dos personagens

pela roupa torna-se ainda mais necessária. Apesar de sua importância, porém, o figurino é

descrito com relativa sobriedade, deixando o autor grande espaço aos responsáveis pela

montagem. O último parágrafo dá a indicação da luz gradativa que marca o início da peça.

Depois dessas observações mais detalhadas, no entanto, o texto contém apenas

rubricas breves, a maior parte delas não ultrapassando uma linha e indicando movimentos e

ações. Apenas dezenove outras (sobre 170 rubricas, ao todo) tratarão das roupas ou da

apresentação dos personagens, em especial dos disfarces dos seres divinos no segundo ato (seis

indicações). Apenas uma rubrica propõe que se cante o bordão repetitivo: “Ô mulher, traz meu

lençol,/ que eu estou no banco deitado!”157. Há raras indicações diretas dos sentimentos dos

personagens158 (apenas doze rubricas). O cenário repete-se nos três atos, isso é lembrado numa

brevíssima indicação na abertura de cada um deles.

Em síntese, se há inegavelmente elementos narrativos – eminentemente descritivos –

contidos nas rubricas do texto, eles são de menor importância se comparados a outros que

destacaremos a seguir. Mas, para retomar o primeiro termo da tríade empregada no título deste

capítulo, devemos dizer que as rubricas participam da preparação da representação da ação (mimesis)

155 SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 4. 156 Ibidem, p. 4. 157 Ibidem, p. 21. 158 Com apenas uma exceção, essas rubricas são postas junto ao nome do personagem que fala – por exemplo: “ANDREZA, com raiva [segue a fala]”. In: Ibidem, p. 18.

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como momento da construção da intriga (muthos). Ressaltemos apenas que a função descritiva

reduzida dessas indicações condiz com o estilo simples buscado pelo autor, inspirado nos

espetáculos populares. Sua importância maior para a estrutura dramática consiste em indicar os

movimentos de entrada e saída, os gestos, caretas e disfarces que dão agilidade à peça e fazem a

fábula funcionar.

2.2. Narrações feitas pelos personagens

Como já tivemos ocasião de observar, os personagens da Farsa da boa preguiça podem

ser divididos em duas categorias: naturais e sobrenaturais (estes se dividindo em dois grupos de

três personagens cada: os divinos e os infernais). Como já vimos, o andamento da ação parece

descartar os personagens sobrenaturais. No entanto, a trama da peça não poderia se sustentar

sem eles. A maior parte das peripécias constroem-se com a intervenção deles, sendo motivos

associados dinâmicos159. Quase todas as cenas de sedução, por exemplo, passam-se com a

presença dos diabos: Andreza, alcoviteira, traz recados de Aderaldo para Nevinha (primeiro ato) e

de Clarabela para Simão (segundo ato); Fedegoso e Quebrapedra são amantes de Clarabela no

terceiro ato. No final do primeiro ato, Quebrapedra e Fedegoso irão enganar Clarabela para

roubar-lhe o cheque com toda a riqueza de Aderaldo. São os três diabos que ameaçarão

“carregar” os personagens para o inferno, no final da peça, caso não haja quem reze um Pai-

nosso e uma Ave-Maria por eles dentro de sete horas – tempo cujo decurso será marcado pela

159 Os conceitos de motivo livre e motivo associado (o primeiro gratuito, o segundo necessário ao funcionamento da trama) também são propostas por Tomachevski, assim como os de fábula (intriga) e trama. Cf. TOMACHEVSKI, B. Temática. In: TOLEDO, Dionísio (org.) Teoria da literatura. Formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. p. 169-204.

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presença dos três personagens divinos que se contrapõem aos diabos. Há, ainda, a troca que

engana o pobre Simão no segundo ato e na qual intervêm Fedegoso e Quebrapedra, mas sua

estrutura é muito mais complexa do que a do engodo do rico Aderaldo no primeiro ato. Se

naquela entram em cena apenas os diabos, nesta Fedegoso e Quebrapedra apenas dão o ponto de

partida ao oferecer uma cabra ao santo Simão Pedro. É o santo que, no intuito de ajudar o poeta,

aceita a cabra e a oferece a Nevinha. Para completar o jogo, o arcanjo Miguel resolve desfazer a

ajuda do santo, enganando Joaquim Simão através de uma série de trocas que o deixam apenas

com um pedaço de pão, no final. É essa série de trocas que se prestará à aposta entre Simão e

Aderaldo no final do segundo ato.160

Os personagens divinos – um santo, Simão Pedro, um arcanjo, Miguel e Manuel,

“representante” de Jesus Cristo161 – intervêm também na intriga. Mas, diferentemente dos diabos,

cuja posição é menos problemática, entre eles não existe uma única opinião sobre os

personagens. Simão Pedro defende o poeta, que é acusado de preguiçoso por Miguel. Manuel

mantém-se aparentemente neutro até o final da peça. No plano da intriga, o papel reservado aos

personagens divinos é semelhante ao dos personagens terrestres: agir, agir e agir.

De fato, a peça é repleta de ameaças, seduções, trocas, enganos, roubos. Tal

organização diegética deixa pouco espaço para narrações feitas diretamente pelos personagens

terrestres. As únicas exceções notáveis são as duas cantigas apresentadas pelo poeta Simão a

160 Aqui percebemos uma aparente lacuna na peça. Parece difícil explicar por que os diabos oferecem a cabra ao santo, ainda que soubessem que este desejava favorecer Simão. A menos que atribuamos a eles a qualidade de onisciência com a qual pudessem prever que o santo seria enganado pelo arcanjo, tal ação não se explica. Afinal, se fossem oniscientes, seria difícil explicar por que não saberiam que seriam derrotados pela esperteza de Nevinha. Ainda assim, se eles possuem tal virtude, parece estranho que o santo não a tenha. Uma hipótese que resta, ainda, é que tal gesto seria combinado entre Miguel Arcanjo e os diabos, afinal é ele quem levará adiante o que poderia ter sido a ruína completa de Simão – e que só foi evitada pela sabedoria da esposa do poeta. Em favor dessa alternativa teríamos o fato de que tanto Miguel quanto os demônios são seres sobrenaturais (sendo Pedro humano). Pode-se considerar, enfim, que toda a trama é manipulada por Manuel Carpinteiro, cujo poder de conduzir a ação é progressivamente manifesto ao longo da peça. 161 Tal recurso distanciador ou desvinculador é precisado pela própria fala do personagem: “Como eu não sou o Cristo, como apenas o represento...” (SUASSUNA, Ariano, op.cit., p. 176). Mas parece-nos que a distância se estabelece não entre o ator e o personagem, como costuma ocorrer em situações dramáticas semelhantes, mas entre o personagem e o seu referente divino. Continuamos vendo Manuel Carpinteiro atuando, mas com a consciência de que ele é apenas personagem com consciência de personagem, sem a pretensão de “encarnar” o Cristo.

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Clarabela, que se mostra interessada na arte popular. A primeira, mais curta, é a “Cantiga do

Canário”.162 A segunda é a “Cantiga dos Macacos”163.

Embora tais canções sejam entoadas pelo protagonista e constituam uma história

dentro da história, têm mais relevância para a caracterização do personagem do que para a fábula,

podendo ser consideradas como motivos livres. Do ponto de vista dramático, as histórias têm

por função principal ilustrar o trabalho de poeta desempenhado pelo protagonista da ação. No

mais, quando muito a segunda história reforça o tema da preguiça com a dupla inatividade: a dos

macacos (preguiça destrutiva) contraposta à do cavalo (inativo, mas útil). Todos esse elementos

também funcionam, como no caso das rubricas, como preparação da ação, mas não é seguindo o

rastro desses elementos que iremos encontrar os vestígios épicos mais importantes na Farsa da boa

preguiça.

2.3. O personagem-narrador

É com os personagens divinos que teremos o exemplo mais próximo da figura do

narrador na Farsa da boa preguiça, sobretudo com Manuel Carpinteiro, camelô “representante” do

Cristo. Sua caracterização justifica o seu papel: como vendedor de feira ele tem que “anunciar”

ao público o seu “produto”, que é a moralidade da história que ele, junto com o santo e o

arcanjo, tirarão no final.

162 Ibidem, p. 36 163 Ibidem, p. 38-40. No entremez que precedeu a escritura definitiva da peça (O homem da vaca e o poder da fortuna), é uma outra cantiga, o Romance de clara Menina, que está presente. Ela estará ausente da Farsa. Poder-se-ia acrescentar, ainda, à lista o folheto “Romance da Gata que Pariu um Cachorro”, cujo enredo é enunciado no início do primeiro ato por Simão (Ibidem, p. 23) e o excerto do folheto “As Perguntas do Rei e as Respostas de Camões”, que o poeta atribui a Cirilo e recita novamente para D. Clarabela, dessa vez no terceiro ato (Ibidem, p. 127).

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É curioso notar a escolha do nome desse personagem, evocação de um dos nomes

hebraicos do messias, “Emmanuel”, que significa “Deus conosco”. De fato, o papel de

coagulador e articulador da história corresponde bem a esse nome. O texto se abre com uma fala

sua, apresentando os personagens. Os personagens atravessam o palco em desfile rápido,

enquanto a fala é pronunciada. Todos os atos, aliás, abrem-se com uma fala sua e fecham-se com

uma espécie de coro dos personagens divinos por ele comandado, cumprindo uma função

nitidamente épico-narativa e exegética que nos permite situá-lo francamente, com essa fala de

abertura (semelhante na abertura de todos os atos), dentro do momento de preparação, de certo

modo mais próximo da mimesis I. Em certos momentos, porém, como no início do terceiro ato,

evidencia-se a atuação do narrador como condutor da ação.

Retornando à fala inicial da peça dita por Manuel Carpinteiro, ela é carregada de

matizes líricos e convoca o olhar do espectador a entrar num ambiente estranho para uma peça

cômica. O vocabulário utilizado remete inevitavelmente a certas passagens do grande romance de

Suassuna, A pedra do reino164. Nessa fala manifesta-se logo a cosmologia de matriz cristã a que já

164 Os indícios são vários: o uso da maiúscula para certos vocábulos, algumas imagens do mundo animal normalmente associadas a cores fortes (em especial o vermelho e o castanho), etc. Compare-se, por exemplo, o texto da abertura com o belo texto da “revelação” que Quaderna tem da “Moça Caetana”, a morte, que lhe diz: “A Sentença já foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. Só lhe pertence o que por você for decifrado. Beba o Fogo na taça de pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o pelo avermelhado da Suçuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o Pássaro com sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das macambiras cor de sangue. Salve o que vai perecer: O Efêmero sagrado, as energias desperdiçadas, a luta sem grandeza, o Heróico assassinado em segredo, O que foi marcado de estrelas – tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, será para sempre e exclusivamente seu. Celebre a raça de Reis escusos, com a Coroa pingando sangue; o Cavaleiro em sua Busca errante, a Dama com as mãos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com seu Gavião de ouro. Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, você caminha no Inconcebível. Por isso, mesmo sem decifrá-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha região onde o sangue se queima aos olhos de fogo da Onça-Malhada do Divino. Faça isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde já, que é inútil. Quebre as cordas de prata da Viola: a Prisão já foi decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia. Ergueram o Patíbulo com madeira nova e afiaram o gume do Machado. O Estigma permanece. O silêncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensangüentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vão reedificar seus Dias, para sempre destroçados.” (SUASSUNA, Ariano. A pedra do reino. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972, p. 241-242). Analisaremos mais em detalhe o texto da Farsa no nosso último capítulo. (Cf. item 2.2.2, p. 179 et seq.).

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aludimos, que concebe a estrutura do mundo em camadas que se superpõem sem se separarem165:

do baixo ao alto, do mal ao bem, das trevas à luz. Coerente com seu matiz lírico, mais do que

descrever, essa fala intriga, atiça, desperta a curiosidade:

O cavalheiro pode ver aqui – inteligente e culto como é – O Fogo escuro, o enigma deste Mundo e o rebanho dos Homens em seu Centro! Que Palco! Quantos planos! Que combates! Embaixo, o turvo, as Cobras e o Morcego. No meio, o que esta Terra tem de cego e esquisito. Em cima, a Luz Angélica – esta Luz mensageira Com seu vento de Fogo puro e limpo! Embaixo, três Demônios que aqui passam.166

A continuação do discurso revela o foco narrativo característico desse personagem

que é, ele sim, personagem-narrador a título pleno:

De cima, entramos nós, dirigindo o espetáculo! Um dos santos: São Pedro, o Pescador! Um Arcanjo: Miguel, guerreiro Fogo! E eu, o lume de Deus, o Galileu! [...] Agora, me pergunta o cavaleiro: “Que tem esse idiota para mostrar?” É simples: duas Cobras venenosas, um Jacaré terrível, e a luta que esses três irão travar contra um Pássaro alado e benfazejo!167

Desde o prólogo, portanto, o leitor é informado da onisciência desse personagem,

elemento de seu papel na condução da ação. Se ele não antecipa a fábula de modo claro, dá o seu

tom: assistiremos a uma luta do bem contra o mal. Esse tema é reforçado pouco depois, quando

Manuel anuncia o início da ação dramática propriamente dita, que se passará no plano terrestre:

Vamos, então, começar! As Cobras contra o Pássaro de Fogo,

165 Entre céu, terra e inferno, de fato, as interferências são múltiplas e constantes, como o demonstra toda a história das ajudas divinas e provações diversas. Nesse sentido, no plano terrestre representado pelo palco, estão presentes em tensão e interação os mesmos três planos. 166 SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 5. 167 Ibidem, p. 5-6. (Grifos nossos).

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o Escuro contra a Luz, o Ócio contra o mito do Trabalho, o Espírito contra as forças cegas do Mundo! Os homens nesse meio, sepultados e ligados às Cobras pelo Mundo, pela desordem do Pecado, e ligados ao Lume, ao claro, ao solar, por um Santo de carne, um Anjo de fogo e por aquele que é carne e fogo e que se chamou Jesus! Vai começar! Comecem! Luz!168

A própria identificação do narrador com o Cristo reforça a posição de onisciência.

Esta impressão será ainda mais salientada quando Manuel voltar à cena no final do primeiro ato

acompanhado dos outros dois personagens celestes para interpretar o acontecido. Já havíamos

sido advertidos pelo próprio título e pelas falas dos personagens divinos na abertura que a peça é

construída em torno da discussão sobre a boa e a má preguiça. Depois de uma interpretação

apressada de Simão Pedro da má sorte do ricaço Aderaldo, ele que perdera sua fortuna com o

engodo dos diabos no final do primeiro ato, Manuel Carpinteiro intervirá propondo, em

conclusão, uma posição mais equilibrada em estilo sapiencial. Assim se posicionando, denota

conhecimento mais profundo, como se soubesse o que estaria por vir e pudesse já antecipar a

conclusão de toda a história169:

Simão Pedro: Temos, então, a lição de que a preguiça compensa! Manuel Carpinteiro: A lição não foi essa, Simão, mas, sim, de que é preciso temperar sabiamente o trabalho com a contemplação e o descanso. Existe um ócio corruptor, mas existe também o ócio criador.170

No início do segundo ato, Manuel retoma o ato precedente e apenas alude à ação

168 Ibidem, p. 11-12. 169 Palavras semelhantes, de fato, repetem-se no final da peça, desta feita na boca de Simão Pedro: “Há um ócio criador,/ há outro ócio danado,/ há uma preguiça com asas,/ outra com chifres e rabo!”. In: Ibidem, p. 181. 170 Ibidem, p. 54-55.

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futura quando adverte a Simão Pedro: “Você está pensando em enriquecer seu protegido!”171. Sua

onisciência manifestar-se-á um pouco depois, de modo explícito e jocoso, quando, estando o

santo e o arcanjo escondidos para interferir na história e contrariando a orientação dada por ele,

Manuel indica onde eles estão:

[...]Querem ver eu dizer onde eles estão? Está São Pedro aqui e São Miguel ali, é ou não é? Modéstia à parte, é onisciência muita! Mas vou deixar os dois no doce engano! Assim eles, sem saber, servem melhor a meu plano! Eles que fiquem. Cada qual que trabalhe para um partido: no fim, sai tudo como quero e hei de aclarar o sentido!172

Não somos informados do andamento da peça por antecipação. Mas somos,

entretanto, informados da onisciência do narrador. Ele, que sabe o que vai acontecer, e que as

coisas se darão conforme ele deseja, anuncia que nos irá revelar o sentido oculto dos fatos. Tal

recurso já deixa o leitor (e o espectador) alerta para as suas próximas aparições no final do

segundo ato, no início e no final do terceiro ato. De fato, acontece uma transformação na história

da qual somente temos conhecimento pela informação que nos oferece o narrador. Diz Manuel,

no final do segundo ato e em tom de suspeita:

Só tem, agora, um perigo: Simão vai mudar de vida! Venceu a miséria, o que é bom, e é sonho da pobreza. Se ficar nisso, vai bem e há de ganhar a partida! Mas se deixar-se vencer pelo espírito da riqueza, está com ela perdida!173

As suspeitas não tardam a se confirmar. O terceiro ato abre-se com a seguinte

171 Ibidem, p. 59. Desde o início, de fato, Simão Pedro toma o partido do poeta Joaquim Simão. Miguel, no entanto, tenta equilibrar a balança em favor de Aderaldo, exaltando seu lado trabalhador. 172 Ibidem, p. 62 (grifos nossos). 173 Ibidem, p. 110 (grifos nossos).

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narração que conta um episódio não encenado, mas determinante para a continuação da peça:

E, agora, devo dizer que, contrariando um pouco, o plano aqui de Simão, eu tratei de empobrecer de novo a Joaquim Simão.174

De modo surpreendente, o personagem-narrador não apenas se apresenta como

aquele que conhece a intriga e que a transmite ao público, mas também como aquele que produziu

os acontecimentos. Como personagem divino, tem prerrogativas que ultrapassam a onisciência e

manifestam seu papel na condução da ação. Isso se confirma, ainda, na conclusão da peça quando

Manuel nos informa a situação de Clarabela e de Aderaldo para além deste mundo:

[...] vamos supor que os dois em vez de entrarem no Inferno, em cuja porta já se encontravam, caíram no Purgatório onde já se instalaram. Vão levar trezentos anos de tapa e mais cinqüenta de beliscão, queimaduras e puxavantes de cabelo, mas escaparam.175

Somente no final da peça Manuel interage com os personagens terrestres. Mas é

importante notar que sua ação, mesmo nesse momento, quase nunca interfere na intriga.

Enquanto os outros dois personagens divinos e os três diabos disfarçam-se mais de uma vez para

desempenhar outros papéis na peça, interagindo com os quatro personagens do plano terrestre,

somente no final Manuel Carpinteiro disfarça-se para pedir esmola a Aderaldo. É a última

tentativa, como se ele fosse a última instância oferecida ao ricaço para se salvar (ocasião também

desperdiçada). Além dessa, a outra intervenção comandada por Manuel com alguma relevância

para a intriga, também no final, serve à marcação do tempo. É a história da “competição de

174 Ibidem, p. 116 (grifos nossos). 175 Ibidem, p. 176. Vale observar que, embora a fala comece com um “vamos supor”, acaba com verbos no indicativo, o que denota certeza e não hipótese.

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sonhos” entre Simão Pedro, Miguel e Manuel. Como ele mesmo antecipa, essa história, de efeito

retardador da ação, destina-se a “enrolar o público enquanto as sete horas passam”176. No

encontro final entre Manuel Carpinteiro (acompanhado dos dois outros personagens divinos),

Nevinha e o poeta Simão, temos a deixa que permite ao poeta contar como vai viver daí por

diante, gancho para a moralidade da peça a ser tirada pelos personagens divinos.

Nesse ponto final da história temos, reunidos numa mesma cena, os dois

protagonistas (do plano terrestre e do plano celeste). Porém, mesmo nesse encontro, há o

cuidado de resguardar o plano limitado da consciência dos personagens terrestres. Espantado

com a naturalidade do poeta e da mulher ao encontrar Manuel, Simão ouvirá deste último:

Eu passei uma nuvem nos olhos dele e também nos da mulher, para que os dois se esquecessem de todas as coisas escondidas e sagradas, divinas e diabólicas que viram hoje, aqui!177

Do começo ao fim da peça, portanto, Manuel Carpinteiro apresenta-se como um

personagem onisciente, cujo poder de ação inclui o de conduzir os acontecimentos e de alterar o

nível de consciência dos personagens178. Mas o tipo de informação que ele transmite ao público

diz respeito apenas a eventos aos quais não se tem acesso pela ação dramática. Em momento

algum somos informados por ele da interioridade dos personagens. Durante toda a peça, com as

duas exceções finais já mencionadas, este personagem-narrador está rigorosamente separado do

plano terrestre onde se passa quase toda a história.

176 Ibidem, p. 165. 177 Ibidem, p. 178. 178 Os outros personagens divinos não têm acesso à mesma onisciência que Manuel. Simão Pedro deixa-se enganar pelos diabos, por exemplo, quando aceita a cabra que oferece a Nevinha, no segundo ato. Miguel e Simão Pedro tentam enganar Manuel, interferindo na história do segundo ato.

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2.4. Duas polêmicas

A esta altura de nosso percurso, temos elementos suficientes para comentar e

esclarecer outras duas polêmicas criadas em torno ao teatro de Suassuna, incluindo naturalmente

a Farsa da boa preguiça. A primeira, mais sugerida do que defendida, consiste em aproximar Boal e

Suassuna em torno do “sistema curinga” criado pelo primeiro. A segunda parece mais complexa,

qualificando o teatro de Suassuna de “épico”. Sem negar seus traços épicos, que demonstramos à

saciedade aqui, discutiremos a abrangência de tal apelação.

2.4.1. Boal e Suassuna: um falso paralelo

A figura de Manuel Carpinteiro, bem como a dos outros personagens sobrenaturais,

tem um certo ar de família para alguém acostumado à história do teatro brasileiro. Ela parece se

aproximar muito do Curinga, elemento do sistema criado por Augusto Boal para o Teatro de

Arena. É o que sugere Silviano Santiago, no seu comentário ao entremez O homem da vaca e o poder

da fortuna:

Neste entremez estamos bem próximos da teoria a ser exposta posteriormente por Augusto Boal nos espetáculos do Teatro de Arena, de São Paulo, quando propôs e botou em prática a concepção do ator como um curinga. No pôquer, como sabemos, esta carta muda de valor segundo a combinação que o jogador tem nas mãos. Aqui, os atores vão mudando de personagem de acordo com o drama que toma conta da cena.179

179 Cf. SUASSUNA, Ariano. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1974. p. 59. É importante notar que a peça e o entremez não têm a mesma estrutura nem os mesmos personagens. Parece-nos que Santiago tem razão ao propor o paralelo entre Boal e Suassuna neste entremez, em que cinco atores fazem todos os personagens. Na peça, entretanto, a estrutura muda consideravelmente.

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94

Idelette F. dos Santos concorda inicialmente com essa posição, mas já estabelecendo

certa distância: “sem falar de preeminência ou de influência, pode-se constatar aqui um

paralelismo das pesquisas e das soluções encontradas para problemas idênticos”180. Há, de fato,

certa proximidade entre as opções estéticas de Boal e as de Suassuna. De perto, porém, revelam-

se mais disparidades do que concordâncias.

O personagem-narrador de Ariano Suassuna, presente em várias de suas peças, é,

como o Curinga, um personagem múltiplo, onisciente e criador de um ambiente mágico.

Polivalente, no teatro de Boal ele pode desempenhar qualquer papel. Temos, já aqui, uma

diferença, posto que o teatro de Ariano Suassuna não comporta a mesma elasticidade. Se no

entremez O homem da vaca e o poder da fortuna apenas cinco atores davam conta de todos os papéis,

na Farsa da boa preguiça – assim como na maior parte das peças do dramaturgo paraibano – há

quase coincidência entre o número de atores e o número de papéis (exceção feita aos “disfarces”,

que não chegam a constituir rigorosamente outro personagem). Se para ambos dramaturgos o

personagem-narrador é onisciente, em Ariano Suassuna ele não partilha essa onisciência com

outros personagens, sendo esta faculdade restrita a um ou poucos papéis. Embora tenha em

ambos dramaturgos a função teatralista, criadora da realidade mágica em que se inserem,

Suassuna não apresenta “seu” Curinga como criador do personagem que ele assume,

característica do teatro de Boal, como destaca Anatol Rosenfeld:

O Curinga não é o historiador que conhece as personalidades históricas só de fora; representa o autor de uma obra fictícia (embora baseada em dados históricos) e como tal transforma as pessoas históricas reais em personagens de quem conhece os segredos mais íntimos, já que são suas criações.181

Em suma, se há algum paralelismo entre os dois, ele consiste no tipo de solução que

ambos encontram para problemas parecidos, problemas que irão da questão econômica – Idelette

180 SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos. Em demanda da poética popular: Ariano Suassuna e o Movimento Armorial. Campinas: Ed. da Unicamp, 1999. p. 276. 181 ROSENFELD, Anatol. O mito e o herói no moderno teatro brasileiro. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 18.

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95

F. dos Santos falará com justeza de um “teatro do pobre”182 – à incorporação de elementos

próprios à cultura brasileira.

Diferentemente de Boal, Suassuna não constrói um sistema, não escreve uma teoria

do teatro, embora sua concepção estética seja explicitada num movimento, o Armorial183.

Coerente com ele, o retorno às raízes medievais é essencial para a estética teatral de Suassuna,

aportando-lhe muitos traços épicos que, no teatro medieval, se justificam pela inclinação a

misturar estilos. Paralelamente, as manifestações populares nordestinas – caras ao armorial – que

estão na base da Farsa da boa preguiça (em especial o cordel, o mamulengo e o bumba-meu-boi),

são também elas emprenhadas da tradição medieval, reforçando assim os elementos épico-

narrativos do teatro armorial de Suassuna. Tanto por sua matriz erudita quanto por sua matriz

popular, enfim, o teatro de Ariano Suassuna sofre a influência da estrutura épico-narrativa

própria da Idade Média. De modo mais específico, na peça de Suassuna a estrutura épica está

diretamente relacionada ao seu caráter moralizador, no que ele se vincula de modo mais sensível

às moralidades, às farsas e às sátiras do que aos mistérios e autos. É daí que seu teatro se nutre,

num desenvolvimento paralelo ao do sistema de Boal.

182 “As pesquisas de Hermilo Borba Filho e Ariano Suassuna, no âmbito do Teatro do Estudante de Pernambuco (TEP) e, posteriormente, do Teatro Popular do Nordeste (TPN), traduzem fundamentalmente a mesma exigência – trata-se de criar peças possíveis de serem montadas, nas condições econômicas e culturais difíceis de um país em via de desenvolvimento e, em particular, na região Nordeste. Tais restrições, tais limitações impostas não devem acarretar uma visão empobrecida do teatro e da encenação, mas, ao contrário, levar à busca de um conceito novo, de uma dinâmica própria a um “teatro do pobre”, implicando uma pesquisa comum, uma economia de meios conduzindo a uma maior participação e integração do autor, dos atores, do diretor e do público. Assim, antes de Boal, e depois, paralelamente, Hermilo Borba Filho e Suassuna conduzem uma reflexão que se manifesta principalmente na construção do espetáculo e no modo de representação das personagens”. (SANTOS, Idelette Muzart Fonseca dos, op. cit., p. 274). 183 O nome “armorial”, originalmente substantivo designativo da heráldica aplicada sobre as armas de cavalaria, adquire com Suassuna um significado adjetivo. Ele mesmo o explica, no texto do manifesto que inaugura o movimento: “Em nosso idioma, ‘armorial’ é somente substantivo. Passei a empregá-lo também como adjetivo. Primeiro, porque é um belo nome. Depois, porque é ligado aos esmaltes da Heráldica, limpos, nítidos, pintados sobre metal ou, por outro lado, esculpidos em pedra, com animais fabulosos, cercados por folhagens, sóis, luas e estrelas. Foi aí que, meio sério, meio brincando, comecei a dizer que tal poema ou tal estandarte de Cavalhada era ‘armorial’, isto é, brilhava em esmaltes puros, festivos, nítidos, metálicos e coloridos, como uma bandeira, um brasão ou um toque de clarim”. (In: SUASSUNA, Ariano. O Movimento Armorial. Recife: Editora Universitária - UFPE, 1974. p. 9).

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96

2.4.2. Estatuto épico do teatro de Ariano Suassuna

A forte presença desses elementos épico-narrativos na obra de Ariano Suassuna

levou estudiosos a caracterizar sua obra dramática de teatro épico. É precisamente esta a tese

defendida por Theotonio Botelho em sua dissertação de mestrado184. Embora concordemos com

a afirmação de que temos, em Suassuna, “um teatro de fortes motivos épicos”185, não

consentimos em dizer que o drama (em sentido substantivo) épico (em sentido adjetivo) de

Suassuna se configure, de modo preciso, com o teatro épico tal como desenvolvido por Wilder,

Brecht e Claudel186, nos Estados Unidos e na Europa, e por Augusto Boal187, no Brasil.

De fato, como acabamos de ver, encontramos na obra de Suassuna – e de modo

especial na Farsa da boa preguiça188 – elementos épicos evidentes. Além das rubricas e do

personagem-narrador, há também a interação ator-público. Uma análise atenta precisaria, porém,

que esta relação refere-se muito a uma relação personagem- público, isto é, sem que os atores se

distanciem dos tipos que encarnam (o que acontece com freqüência no teatro épico em sentido

próprio). Outra característica épica pode ser vista na relativa fragmentação da Farsa. Porém,

como já foi mostrado acima, uma certa unidade da ação, além da unidade temática construída em

184 “Acreditamos trazer uma nova abordagem da sua concepção teatral, ao procurarmos aprofundar o estudo sobre a construção do teatro épico de Ariano Suassuna, naquilo que esse teatro estabelece como um movimento dialético, a par a incorporação das diversas formas dramáticas, no desenvolvimento de uma narrativa apoiada, não num confronto, mas na criação de um diálogo constante entre o popular e o erudito”. In: BOTELHO, Theotonio de Paiva. O teatro épico de Ariano Suassuna: a construção de uma narrativa erudita e popular. 2002. 343 f. Dissertação (Mestrado em Teoria Literária) – Pós-Graduação da Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. p. 15. 185Ibidem, p. 292. 186 Segundo Anatol Rosenfel, “somente estes três autores fizeram teatro épico, na plena acepção da palavra, e não se limitaram a somente escrever peças mais ou menos ‘epicizantes’.” In: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 124. 187 Cf. BOAL, Augusto. Teatro do oprimido [7 ed.]. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005; e ______. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. 188 Peça que, aliás, foi curiosamente esquecida por Theotonio Botelho na constituição do seu corpus – para a qual, aliás, falta uma justificativa convincente.

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97

torno da moralidade, é alcançada na alternância pobreza-riqueza-pobreza do poeta Simão –

contraposta à riqueza-pobreza-riqueza de Aderaldo, apenas para citar um exemplo.

Parece-nos, enfim, mais acertado dizer que a raiz medieval-erudita (via teatro ibérico)

e medieval-popular (via cultura popular nordestina) marca fortemente a dramática de Suassuna,

do que recorrer à categoria de teatro épico para caracterizá-lo. Apoiamo-nos, mais uma vez, em

Anatol Rosenfeld, quando afirma:

Na época que vai dos fins da Idade Média ao Barroco multiplicam-se as formas dramáticas e teatrais caracterizadas por forte influxo épico em conseqüência do uso amplo de prólogos, epílogos e alocuções intermediários ao público, com fito didático, de interpretação e comentário, à semelhança de técnicas usadas no nosso século por Claudel, Wilder e Brecht.189

Se há confusão, é porque há proximidade. Mas proximidade apenas, entre o modelo

dramático de Suassuna e o que se pode chamar a justo título de teatro épico.

3. Relevância ético-estética da figura do narrador na Farsa da boa preguiça

Os vestígios narrativos presentes na Farsa da boa preguiça, dentre os quais se destaca a

figura do personagem-narrador, permitem-nos agora tecer algumas considerações conclusivas em

torno à relevância estética e ética dessa figura fundamental para a peça.

Sendo uma peça longa, há inevitavelmente uma certa tendência à fragmentação. A

relativa autonomia dos atos (cada ato tem seu título próprio) é o maior exemplo dessa tendência à

discordância, para usar o termo de Ricœur. E, se considerarmos que o segundo e o terceiro atos

foram fabricados a partir de outras peças autônomas, tal conclusão é inevitável: há uma certa

189 ROSENFELD, Anatol, op. cit., p. 55.

Page 99: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

98

tendência à dispersão no conjunto da peça. O argumento final nesse lado da balança é que as

histórias contadas em cada ato são praticamente independentes. No entanto, no meio de todos os

elementos que tendem a fragmentar a fábula, alguns dispositivos muito bem empregados

asseguram uma coerência e uma coesão da tensão dialética concordância-discordância da Farsa

que garante sua integridade: uma peça só e não três peças em uma.

Já mencionamos um certo cruzamento nos percursos do protagonista e do

antagonista, circulando entre pobreza e riqueza190. A coerência dos personagens, aliás, é um dado

essencial da unidade. Como vimos no início do capítulo, tais personagens são resultado de uma

criação nova, posto que suas identidades estavam apenas esboçadas nos entremezes ou sequer

existiam nesse estágio. Nevinha aparece, mas não tem nome em O homem da vaca. Os três

personagens divinos não existiam anteriormente. Havia apenas dois diabos, em O rico avarento. Ao

compor a Farsa, as histórias, embora um tanto distintas, passam a ser vividas pelos mesmos

personagens que mantêm sempre ao longo da peça uma grande coerência prática, construindo

uma identidade narrativa constante e uma ação verossímil.

Mas, no meio de todos esses elementos, é sobretudo o narrador enquanto intérprete

da ação que assegura a unidade ao conjunto191. O que sustenta o interesse até o final da peça não

é a curiosidade de saber o final da história de Simão que, aliás, permanece aberto uma vez que ele

termina anunciando uma ação futura (a composição de três folhetos, com os nomes dos atos da

peça192), que não vemos se realizar. A atenção do público é conduzida de modo mais eficaz pela

intervenção dos personagens divinos liderados por Manuel, cujas falas consistem particularmente

em interpretar a ação para delas tirar a “moral da história”. O recurso formal estético escolhido

190 O poeta começa a peça pobre (1o ato), fica rico (2o ato) e volta a ser pobre (3o ato). O ricaço começa rico e perde toda a sua fortuna (1o ato), volta a ficar rico e perde uma grande soma para Simão (2o ato), volta a ficar rico, mas vivendo pobremente por avareza (3o ato). 191 Este recurso não é inédito na obra de Suassuna. Função semelhante pode talvez ser atribuída ao palhaço do Auto da Compadecida e a Cheiroso e Cheirosa, de A pena e a lei. 192 Essa passagem constitui uma metalinguagem sutil, pois o espectador não tem acesso direto ao texto escrito onde constam os nomes dos atos. Pode-se supor, no entanto, que uma montagem bem feita disponibilize um folheto onde constem, além da ficha técnica, os nomes das partes.

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99

(um personagem-narrador) corresponde, assim, a uma opção de conteúdo (articular o assunto –

ético – que é julgado com a representação da ação que é preparada e conduzida). A relação é dialética,

não cabendo, portanto, saber se a forma pede o conteúdo ou vice-versa. Interessa, no entanto,

saber que a articulação entre os dois funciona de modo eficaz no nível do texto e, pode-se supor,

no nível do espetáculo. Sendo dialética, a temática ética em torno dos dois tipos de preguiça

alimenta a opção formal através de um grupo de personagens que discute o paradoxo de uma

ação ociosa (criativa, artística) do protagonista da intriga. Uma parte dos personagens irá pôr à

prova, contestar, tentar mudar ou, finalmente, aceitar essa atitude. E é essa construção orgânica

que alimentará a retomada freqüente da discussão até a conclusão da peça, na qual efetivamente

se pronuncia um juízo final sobre o assunto.

Vendo sob outro ponto de vista a relação forma-conteúdo, podemos dizer que a

ambigüidade moral do tema abordado encontra forte respaldo no uso de elementos grotescos,

paródicos, ligados ao baixo corporal tal como definido por Bakhtin193, conforme pondera Lígia

Vassalo no estudo já citado194. Tal escolha provocou reações à época da encenação da peça,

levando o autor a se defender no prólogo explicativo já mais de uma vez mencionado: “Na

verdade, o elogio que eu queria fazer na peça era, em primeiro lugar, o do ócio criador”195. E o

faz. No entanto, o “elogio” não poupa o anti-herói que o ilustra. Afinal, o poeta Joaquim Simão

está longe de ser perfeito. Se alguém sai justificado da peça é, talvez, Nevinha, personagem-tipo

de uma pureza um tanto idealizada, cujo único “fraco” é gostar de Simão. O poeta, por seu turno,

é apresentado como artista – o que respalda o elogio do ócio criador -, mas também preguiçoso

para o trabalho. Mesmo para o trabalho como artista, pois não consegue sequer alimento para a

193 BAKHTIN, Mikhail A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Editora Hucitec, 1987. p. 16 et. seq. 194 “O baixo corporal prepondera em Farsa da boa preguiça por causa do seu gênero mesmo” (VASSALO, Lígia. Permanência do medieval no teatro de Ariano Suassuna. 1988. 338 f. Tese (Doutorado em Letras) – Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1988. p. 187). 195 SUASSUNA, Ariano. A Farsa e a preguiça brasileira. In: ______. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. x.

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100

família com sua atividade, embora prometa maravilhas.

O caráter problemático de Joaquim Simão aparece de modo mais evidente no início

do terceiro ato, quando o narrador não só anuncia sua derrocada, mas também revela que ele

mesmo a conduziu para afastá-lo do vício. Seus defeitos são acentuados tanto por Manuel

Carpinteiro (“a primeira coisa que ele inventou de praticar [...] foi enganar a mulher”) como por

Miguel (“O pior é que Simão foi-se deixando possuir pelo espírito da riqueza. Foi ficando

parecido com Aderaldo Catacão”196). Não há, pois, herói no sentido clássico presente na Farsa,

como veremos no último capítulo ao examinarmos a identidade narrativa do poeta197. Mas, como

já dissemos, o equilíbrio parece ser a marca dessa peça, inclusive nesse ponto. E adiante-se que o

comportamento do protagonista chega a se aproximar, num certo momento, ao do seu

antagonista. A moralidade ambígua de Joaquim Simão confunde o sentimento de empatia, sendo

este um outro elemento que contribui para a fragmentação da peça. No final, espera-se saber

mais quem é verdadeiramente Simão, que tem ele a revelar do que saber o resultado de suas

desventuras. Isto permite caracterizar a intriga da Farsa mais como de revelação do que de resolução.

E é Manuel Carpinteiro, o deus da peça representando Deus de verdade, quem conduz a exegese

assegurando a unidade (sob este aspecto especialmente temática) da peça:

Manuel Carpinteiro: E então, a moral é essa, que mostramos à porfia! Simão Pedro: Viva a preguiça de Deus que criou a harmonia, que criou o mundo e a vida, que criou tudo o que cria! Manuel Carpinteiro: Viva o ócio dos Poetas que tece beleza e fia! 198

O narrador é, destarte, essencial. Do ponto de vista ético, como acabamos de ver, tal

personagem tem papel central. Assim como ele serve à estrutura, garantindo sua unidade pela

196 Ibidem, p. 115 (ambas as citações). 197 Cf. capítulo quinto, item 2.1.1 , p. 163 et seq. 198 Ibidem, p.181

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101

articulação dos atos, serve igualmente ao tema, garantindo a retomada constante do assunto

posto em discussão ao longo da peça.

Ao falarmos em discussão, aproximamo-nos da palavra julgamento. Mas se a peça

conduz a leitura a se comportar como um julgamento, por conta de seus artifícios literários, esse

julgamento é de outra natureza que o julgamento moral, embora se aproxime muito dele. Na

análise dos personagens que se fará no capítulo quinto, ver-se-á mais em detalhe como essa

situação configura-se na obra, para o que voltaremos a definir algumas ferramentas teóricas com

a ajuda de Paul Ricœur, tais como as noções de identidade narrativa e de julgamento ético-

literário.

Mas a investigação da identidade dos principais personagens da Farsa e do tipo de

julgamento contido no texto e proposto por ele supõe uma análise mais profunda da estrutura da

peça. Retomando nosso marco teórico, somente com a análise da mimesis II poderemos

compreender as aberturas do processo em direção ao que Ricœur denomina mimesis III. Passemos

a ela.

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102

IV

NAS PROFUNDEZAS DO TEXTO:

ESTRUTURA E MIMESIS II DA FARSA DA BOA PREGUIÇA

A opção de concentrar nossa análise no texto, deixando em segundo plano os níveis

mais ligados à composição (mimesis I)199 e à recepção (mimesis III), impõe-nos a tarefa de investigar

os princípios que organizam a construção narrativa da peça que analisamos (mimesis II). Não

estando a linguagem, salvo exceção200, dentre os aspectos mais relevantes da peça, o estudo da

representação da ação que ela contém tem um valor ainda maior para sua compreensão. Essa é

uma das razões que nos impelem ao aprofundamento da nossa inteligência do texto, ou seja, à

“busca das estruturas profundas das quais as configurações narrativas concretas seriam a

manifestação na superfície da narrativa”, como diria Ricœur201.

Tendo como foco a relação entre a estética do texto e os elementos éticos que sua

composição contém, este compromisso com a análise do texto torna-se ainda mais exigente. Caso

a relação seja apenas extrínseca, construída somente após o texto e desvinculada de sua estrutura

(como um discurso sobre o texto e não a partir dele), nossa hipótese interpretativa cairia no vazio.

Já tivemos ocasião de perceber que os indícios apontam para outra direção, porém. O capítulo

199 Novamente importa, aqui, fazer a ressalva de que a mimesis I refere-se ao estágio pré-narrativo da ação real. Quando aproximamos a composição (que seria mais própria da mimesis II) dessa primeira etapa, estamos nos referindo à habilidade do autor em manipular elementos do real que serão selecionados e organizados pela construção da intriga na etapa seguinte. De modo mais preciso, este enfoque nos situa na passagem da mimesis I à mimesis II. (Cf. notas 72 e 146). 200 Assinalamos, aqui, a importância do discurso de abertura da peça, na boca do personagem-narrador, que analisaremos no próximo capítulo. Se deixamos de lado o estudo da linguagem em si, não entendemos que a linguagem seja secundária. De fato, não haveria obra sem linguagem. No entanto, dentre os recursos utilizados pelo autor, a linguagem não é o que conhece maior elaboração não exigindo, em geral, uma análise mais detalhada. 201 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 2. 1. ed. 1984. Paris: Seuil, 1991. p. 58. 3 volumes. (Poche, 228).

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103

precedente permitiu-nos ver, guiados pelos vestígios narrativos da peça, como a Farsa combina

dialeticamente forma e conteúdo sob o signo da discussão em torno da qualidade de um

comportamento, vicioso ou virtuoso. Convém, agora, verificar como o uso desses elementos

narrativos de superfície relaciona-se com o nível profundo das oposições fundamentais da peça.

Na perspectiva da tríplice mimesis, o próprio Ricœur destaca o papel da estrutura e da

análise estrutural do texto, correlativo à etapa da mimesis II. Como já foi dito no capítulo segundo,

é esta etapa da mimesis que constitui o pivô do processo de composição mimética, sendo também

o eixo do processo interpretativo na medida em que é ela que constitui a obra enquanto tal.

Noutros termos, não há interpretação correta que não a inclua ou que esteja em desacordo com o

estudo da constituição estrutural do texto e de suas tensões significativas, exercendo neste

momento uma função de controle da interpretação. Como observa Anne Ubersfeld, “sem dúvida

é suficiente que a determinação da estrutura actancial nos permita evitar análises tão confusas

quanto à análise ‘psicológica’ das personagens, e tão aleatórias quanto a também clássica

‘dramaturgia’ do texto de teatro”202. Poderíamos listar outras formas de desajuste, além deste

exemplo dado pela pesquisadora.

Do lado oposto, porém, há um outro extremo a ser evitado: o do enrijecimento do

modelo estrutural. Boa parte da análise feita no segundo capítulo do tomo II de Tempo e narrativa é

dedicada a mostrar a dificuldade desse modelo explicativo em lidar com a realidade do tempo.

Ricœur identifica uma certa contradição nas teorias de Propp, Bremond, Todorov e Greimas,

todos eles tentando, em maior ou menor grau, conjugar um modelo taxeonômico com um

modelo orgânico para dar conta da dinamicidade da narrativa203. Sendo esse aspecto dinâmico um

202 UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 31. 203 Ricœur dirá, por exemplo, do modelo de Propp, que sua morfologia “se reclama abertamente de Lineu, quer dizer, de uma concepção taxeonômica da estrutura, mas também discretamente de Goethe, quer dizer, de uma concepção orgânica da estrutura” (RICŒUR, Paul, op. cit., p. 68). Dirá ainda, a propósito de Greimas: “o modelo de Greimas me parece submisso a uma dupla limitação: lógica, de um lado, práxico-pática do outro. Mas ele não satisfaz à primeira, adiando sempre a inscrição sobre o quadrado semiótico dos componentes da narratividade introduzida a

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104

de seus vetores centrais, a narrativa não pode ser considerada sob a ótica exclusiva da fixidez da

estrutura.

Para entender melhor a posição de Ricœur, é preciso lembrar novamente sua

refutação à crítica feita à tradição hermenêutica que opõe o modelo da compreensão (próprio das

ciências humanas) e o modelo da explicação (próprio às ciências exatas). Superando essa

separação aqui apresentada de modo simplista, ele articulará as duas formas de conhecimento

como etapas de um processo complexo que inclui um momento de aprofundamento. No campo

da literatura, a configuração própria da mimesis II exigiria também uma abordagem explicativa do

texto, recorrendo à análise de sua estrutura. Podemos isolar o texto do mundo e estudá-lo

abundantemente de maneira separada. Mas este conhecimento deve ser re-situado num horizonte

mais amplo, o da totalidade do processo mimético. Como diz Ricœur,

[se] nós temos a análise estrutural como uma etapa – e uma etapa necessária – entre uma interpretação inocente e uma interpretação crítica, entre uma interpretação superficial e uma interpretação profunda, agora parece possível recolocar explicação e interpretação sob um único arco hermenêutico e integrar as atitudes opostas da explicação e da compreensão em uma concepção global da leitura como retomada do sentido.204

Avançando nessa direção e esclarecendo sua noção de interpretação, Ricœur dirá

ainda que “explicar, é extrair a estrutura, quer dizer, as relações internas de dependência que

constituem a estática do texto; interpretar é tomar o caminho de pensamento aberto pelo texto,

pôr-se a caminho em direção ao oriente do texto.”205

Situados por essa introdução, passemos a uma análise mais concentrada na estrutura

da peça. Em primeiro lugar, buscaremos identificar os princípios e oposições mais facilmente

perceptíveis a partir da consideração da intriga e da trama com os elementos já apresentados nos

cada novo degrau, que por mais paralela que seja a inteligência que nós temos da narrativa e da intriga suscita adjunções apropriadas de ordem francamente sintagmática, sem as quais o modelo taxeonômico permaneceria inerte e estéril.” Mas se apressa em acrescentar: “Reconhecer o caráter misto do modelo de Greimas não é absolutamente refutá-lo: ao contrário, é trazer à luz do dia as condições de sua inteligibilidade”. In: Ibidem, p. 114. 204 Ibidem, p. 174. 205 Ibidem, p. 175.

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105

capítulos precedentes. Em seguida, identificaremos a estrutura profunda da peça com o suporte

do modelo actancial, tal como adaptado ao teatro por Jean-Pierre Ryngaert206 e, sobretudo, pela já

citada Anne Ubersfeld207.

1. Primeira abordagem das oposições fundamentais da peça

Como vimos no capítulo precedente, uma das conseqüências formais mais relevantes

da opção estética de Ariano Suassuna, ao conciliar elementos do teatro ibérico com elementos

populares nordestinos, é a inserção de certos traços épicos na sua obra. Mas sua escolha implica,

também, a valorização da temática religiosa e moral, coerente com a mistura de formas descrita

no capítulo primeiro. É em torno dessa temática que se articula a unidade da peça. A cena de

abertura enuncia imediatamente o problema na forma de uma dupla oposição: uma no plano

vertical (bem x mal), outra no horizontal (rico x pobre). Tal esquematização explica melhor o tom

sério-cômico da peça. É como se o conflito pobre-rico, tão acessível à comédia, fosse temperado

pelo tema grave da luta do bem contra o mal, da virtude contra o vício. Seria errôneo, porém,

fazer coincidir as duas oposições, simplificando-as demasiadamente como se o bem coincidisse

com a pobreza e o mal com a riqueza. As tensões são distintas e articuladas entre si.

Tal luta atravessa toda a intriga, dando-se em planos muito distintos. No nível mais

evidente, estão os personagens celestes opostos aos três demônios. Mas há divisão mesmo no

interior do âmbito celeste, não propriamente opondo o bem ao mal, mas dividindo os

personagens divinos em torno ao julgamento da bondade ou da maldade da atitude (preguiçosa)

206 RYNGAERT, Jean-Pierre. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. 207 UBERSFELD, Anne, op. cit.

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106

de Joaquim Simão. Num outro plano, mais decisivo ainda para a intriga e para nossa análise, a

oposição mal x bem é posta diante dos personagens, que têm várias vezes que decidir entre um

ou outro, entre vício e virtude. Embora seja apresentada de forma cômica, a seriedade do tema se

impõe: é a perda da vida que está em jogo. E não só da vida eterna, mas da vida terrestre mesmo,

posto que os diabos vêm “levar” imediatamente os ricos e tentar levar também os pobres no

final.

Portanto, a oposição mais profunda da peça parece não estar no eixo horizontal

pobre-rico e sim no eixo vertical mal-bem. Os dois eixos articulam-se, entretanto, e são

enquadrados numa cosmologia de tipo cristã que se divide em três planos, correspondentes aos

três tipos de personagem: plano celeste, plano terrestre e plano infernal. Note-se que a situação

era bem diversa nos entremezes que originaram o segundo e o terceiro atos. Em O homem da vaca e

o poder da fortuna, temos apenas a oposição pobreza x riqueza, apresentada na situação do

personagem Simão que, sendo preguiçoso, não ganha bem a vida. A aparição do rico no final do

entremez reforça a oposição, da qual sai o pobre vitorioso ao ganhar a aposta. Em O rico avarento,

temos outra vez a oposição riqueza x pobreza, sendo que neste entremez não vemos nenhuma

tentativa do pobre em melhorar de vida, hipótese que não se realiza. Mas nesse entremez aparece,

no final, o vestígio que será desenvolvido na Farsa, ao vermos o rico levado pelos diabos. A

intriga não se conclui bem para nenhum dos personagens, nesse entremez, já que o pobre fica

pobre e o rico é danado. Na Farsa, a temática da salvação final e da qualidade da vida na terra são

discutidas com mais profundidade, sendo a oposição pobreza x riqueza posta a serviço dela.

De forma gráfica, tal estrutura poderia ser assim desenhada:

Page 108: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

107

Com esta estrutura complexa, a Farsa resiste a uma aparente fragmentação dos

episódios que a compõem justamente pela força da dupla oposição. No plano terrestre, palco da

oposição pobre x rico, dá-se a unidade da intriga contada em cada ato. Mas o todo é englobado

na cosmologia céu-terra-inferno208 e o conjunto da peça é alinhado em torno da oposição bem x

mal.

Estes elementos já nos situam na pista da compreensão da estrutura profunda da

peça, mas carecem de uma consideração mais detalhada da ação na peça. Recorrendo ao suporte

do modelo actancial, verifiquemos até que ponto essas tensões correspondem à construção da

mimesis da ação na Farsa, lançando luz sobre o seu funcionamento.

2. Análise actancial da Farsa da boa preguiça

O modelo actancial desenvolveu-se sobretudo a partir dos anos 70, retomando no

plano do discurso narrativo o que fora começado no plano da língua por Saussure, na primeira

208 Entre o céu e a terra, existe ainda o “purgatório”, mas apenas como etapa provisória e ligada ao céu como estágio preparatório e, como diz o nome, purificador.

PLANO CELESTE

PLANO TERRESTRE

PLANO INFERNAL

POBRE RICO

BEM

MAL

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108

metade do século XX. Herdeiro da tradição dos formalistas russos e integrando a vertente

estruturalista, o que motiva o tipo de investigação próprio no modelo actancial é a busca de

estruturas lógicas permanentes no plano da narrativa, que permitam superar a diversidade

vertiginosa das formas narrativas209. Esse tipo de abordagem sincrônica parte da homologia entre

língua e narrativa, buscando as estruturas mínimas que garantiriam uma explicação estrutural da

macroestrutura, sendo que esta precede sempre logicamente as partes dentro da lógica dedutiva

que caracteriza esse método. Nessa visão orgânica, as unidades mínimas do todo só teriam

significado em função de suas relações mútuas na totalidade da narrativa. É assim que se dará a

busca dos elementos mínimos da narrativa que, articulados segundo um número mensurável de

relações, constituem o sentido de qualquer história.

Claude Lévi-Strauss pode ser considerado o pioneiro desta tradição, com sua

investigação sobre as estruturas universais dos mitos ou “mitemas”, organizados segundo ele

conforme certas relações significativas que são inerentes à mente humana. Mas normalmente

aponta-se o trabalho de Vladimir Propp, Morfologia do conto maravilhoso 210, como o ponto de partida

da investigação actancial em literatura, ao distinguir o plano das funções do plano dos

personagens. Analisando os contos russos, ele identificará sete esferas de ação (herói, ajudante,

vilão, pessoa procurada, etc.) e trinta e um elementos fixos ou funções. O desenvolvimento deste

modelo – que passará por autores essenciais como Tzvetan Todorov211, Claude Bremond212,

Étienne Souriau213 dentre outros – encontrará um momento decisivo em sua trajetória com o

semanticista lituano Algirdas Julius Greimas214, que dará nome ao modelo ao propor o conceito

209 Como diria Ricœur, o que move esse tipo de investigação “é essencialmente a ambição de fundar a perenidade da função narrativa sobre regras de jogo subtraídas à história”. In: RICŒUR, Paul, op. cit., p. 59. 210 PROPP, Vladimir Iakovlevich. Morfologia do conto maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1984. 211 TODOROV, Tzvetan. Poética da prosa. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 212 BREMOND, Claude. Logique du récit. Paris: Éd. du Seuil, 1973. 213 SOURIAU, Étienne. As 200 mil situações dramáticas. São Paulo: Ática, 1993. 214 O pensamento de Greimas conhece um desenvolvimento complexo, que se inicia com sua obra Semântica estrutural (de 1966) e continuará com Du sens (de 1970) e Maupassant (1976). Concentrar-nos-emos, sobretudo, no esquema de base proposto pelo modelo actancial. Optamos, ainda, por seguir a interpretação do modelo proposta por Anne

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109

de actante, “que não é nem a narrativa específica, nem um personagem, mas uma unidade

estrutural” 215.

Greimas construirá seu modelo em níveis diferentes de abstração, partindo do mais

geral ao mais específico. No nível I, temos o que ele denomina “quadrado semiótico”, definido

pelas relações de contradição (branco x não-branco), de contrariedade (branco x preto) e de

pressuposição (não-branco x preto).

O nível II, dependente deste e preparado por ele, é o do esquema de base em que se

articulam seis actantes: Sujeito e Objeto, Destinador (ou Emissor) e Destinatário (ou Receptor),

Adjuvante e Adversário (ou opositor)216, normalmente apresentadas da seguinte forma:

Como observa Ricœur, este esquema organiza-se em torno a três eixos de oposições

binárias: o eixo do desejo, que relaciona sujeito a objeto; o eixo comunicativo, relacionando

destinador e destinatário; finalmente o eixo pragmático, no qual se opõem adjuvante e adversário e

Ubersfeld, que o adapta ao campo do teatro. Patrice Pavis irá criticar esta autora pela modificação imposta ao modelo de Greimas. (Cf: Actancial (Modelo), in: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 8-9). Segundo Pavis, ao dar prioridade ao sujeito na relação com o destinador e o destinatário, ela tende a supervalorizar a natureza do sujeito, vinculado a uma relação de natureza ideológica com o eixo comunicativo. No modelo original, tal perigo seria evitado pela construção progressiva do sujeito em relação ao objeto. No entanto, parece-nos que a prioridade deve ser dada não a um ou outro ponto de vista, mas à constituição do núcleo da ação (que Ricœur denomina “eixo do desejo”) e que Ubersfeld propõe como ponto de partida da análise. 215 EAGLETON, Terry. Teoria da Literatura. Uma Introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 143. 216 Como nota Anne Ubersfeld, Greimas corrige o modelo de Souriau ao eliminar a função do árbitro, ou de “ponto de vista”, irredutível a uma função sintática e assimilável a outras das seis funções (cf. UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 35).

Sujeito

Objeto

Destinador (ou Emissor)

Destinatário (ou Receptor)

Adjuvante Adversário (ou oponente)

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110

que pode interferir seja no eixo do desejo, seja no eixo da comunicação217. Vale lembrar

novamente que os actantes não correspondem aos personagens, podendo esta categoria referir-se

a mais de um personagem ou o mesmo personagem ocupar simultaneamente duas casas no

esquema.

A análise com base neste modelo consiste, enfim, na identificação dos actantes de

uma narrativa e, sobretudo, de suas relações mútuas de conjunção e de disjunção. Mas a relação

deste nível com a superfície do texto é preparada ainda por outra etapa, o nível III, onde se

encontram os atores (conceito diverso da noção de ator físico, ser humano) e os papéis, entidades

mais definidas que os actantes, mas ainda não identificáveis com os personagens. Ao contrário, os

personagens serão construídos com base num complexo de actantes e na possível relação com

papéis, como veremos no final da análise.

Esta explicação do jogo complexo de tensões permite lançar luz sobre a estrutura da

intriga. Porém a pretensão de uma consideração meramente sincrônica da narrativa sofre um

revés, como se vê pela importância dada à noção de prova, como salienta Paul Ricœur:

Em um modelo puramente actancial, esta estratégia [de buscar as relações de disjunção e conjunção dos três eixos] não atinge seu objetivo. Ela contribui, ao contrário, para destacar o papel irredutível do desenvolvimento temporal na narrativa, na medida em que ela mesma coloca em relevo a noção de prova. Esta constitui o momento crítico da narrativa, caracterizado no plano diacrônico como busca.218

A crítica pertinente de Ricœur não invalida, porém, o modelo, que continua

guardando toda sua relevância na identificação das oposições fundamentais que estruturam a

história, ainda que seja necessária uma correção para incluir o tempo na narrativa. Não é por

217 “O modelo combina três relações: de desejo, de comunicação e de ação, referindo-se cada uma a uma oposição binária”. In: RICŒUR, Paul. Idem. p. 90. 218 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 2. 1. ed. 1984. Paris: Seuil, 1991. p. 91. 3 volumes. (Poche, 228).

Page 112: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

111

acaso que o filósofo inclui este modelo interpretativo no momento de aprofundamento da mimesis II

em sua própria teoria219.

Mas veremos melhor o significado e a pertinência dessas categorias na análise

concreta da Farsa. Seguiremos a progressão dos níveis I, II e III para chegarmos à superfície do

texto, indo dos actantes aos personagens.

2.1. Estruturas elementares de significado na Farsa

Antes de nos dedicarmos à análise do esquema de base, é necessário identificar quais

são os principais elementos de significado da peça (lexemas) para a construção da intriga. É com

base nestes, em suas relações de contrariedade, contradição e pressuposição que as relações serão

estabelecidas nos três eixos do modelo actancial.

Tomando como ponto de partida as oposições que identificamos na introdução deste

capítulo, o seguinte conjunto de relações aparece como o conjunto principal de significado da

peça. Ele pode ser assim representado:

Pobre x não-pobre Rico x não-rico Vício x não-vício Virtude x não-virtude

Pobre x rico Rico x pobre Vício x virtude Virtude x vício

219 Mais do que modificar o modelo, a observação do filósofo afirma a precedência da inteligência narrativa em relação à explicação lógico-sintática: “a mediação operada pela narrativa é essencialmente prática, seja que, como o próprio Greimas sugere, ela vise restaurar uma ordem anterior que é ameaçada, ou que ela vise projetar uma nova ordem que seria a promessa de uma salvação. Que a história contada explique a ordem existente ou projete uma outra ordem, ela coloca, enquanto história, um limite a todas as reformulações puramente lógicas da estrutura narrativa. É nesse sentido que a inteligência narrativa e a compreensão da intriga precedem a reconstrução da narrativa sobre a base de uma lógica sintática” (RICŒUR, Paul, idem, p. 92-93). Mais adiante, no mesmo capítulo, Ricœur voltará a esta posição: “minha dúvida inicial [...] é que, desde seu primeiro estágio, a saber a construção do quadrado semiótico, a análise é teleologicamente guiada pela antecipação do estágio final, a saber o da narração enquanto processo criador de valores (Du sens, p. 178) onde eu vejo a equivalêndia, no plano da racionalidade semiótica, do que nossa cultura narrativa nos faz compreender como intriga. Entendamos bem: esta dúvida não desqualifica em nada o empreendimento. Ela coloca em questão a autonomia presumida das iniciativas semióticas”. In: Ibidem, p. 107.

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112

Não-pobre x rico Não-rico x pobre Não-vício x virtude Não-virtude x vício

Infernal x não-infernal Celeste x não-celeste Infernal x celeste Celeste x infernal

Não-infernal x celeste Não-celeste x infernal

Já o elemento terrestre parece-nos dever ser descrito de forma um pouco mais

complexa, tendo como relação não apenas um termo, mas simultaneamente dois, na medida em

que seu significado é sempre relacionado a céu e inferno, neste caso:

Terrestre x não-terrestre Terrestre x infernal Terrestre x celeste

Não-terrestre x infernal Não-terrestre x celeste

Este quadro deve, ainda, ser completado por outro conjunto significativo correlato a

ele, mais explicitamente ligado à representação de pessoas:

Homem x não-homem

Homem x diabo Homem x Deus Não-homem x diabo Não-homem x Deus

Essas unidades parecem conter o essencial do que se desenvolverá no esquema de

base. Outras unidades, porém, irão interferir na construção da ação, interagindo com estes outros

elementos. Em particular, destacamos estes outros:

Preguiça x não-preguiça Trabalho x não-trabalho Fidelidade x não-fidelidade Traição x não-traição

Preguiça x trabalho Trabalho x preguiça Fidelidade x traição Traição x fidelidade Não-preguiça x trabalho Não-trabalho x preguiça Não-fidelidade x traição Não-traição x fidelidade

O número de combinações entre os termos poderia ser multiplicado muito mais,

como no caso dos elementos infernal, terrestre e celeste (que apresentamos em conjunto para

respeitar a cosmologia implícita nos elementos). A dinâmica da peça irá relacionar, por exemplo,

os elementos pobreza x riqueza com preguiça x trabalho, assim como pobreza x riqueza e

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113

fidelidade x traição (não somente das esposas, mas também dos diabos – interferindo este

elemento na fidúcia atribuída aos personagens). Enfim, é sobre essas estruturas de base que todo

o desenvolvimento da Farsa será construído. Eles compõem, de fato, um complexo de oposições

que responde pelo conjunto de interações e reviravoltas da peça, compondo também um certo

número de paradigmas de ação que integrarão a definição dos atores e, por conseqüência, dos

personagens no nível da superfície do texto. Vejamos como elas se configuram no nível II da

análise, através do esquema de base.

2.2. O núcleo “sujeito”-“objeto” na Farsa

O núcleo central do modelo actancial é a relação Sujeito-Objeto (S-O), unidos os

termos por uma flecha que indica o sentido da busca, do querer, e que desencadeia toda a ação. É

a esse par que Ricœur denomina justamente eixo do desejo.

Embora os actantes não coincidam necessariamente com os personagens, é comum

que o sujeito coincida com o herói. É necessário, no entanto, que essa relação esteja fundada

textualmente e se faça gradualmente. Mas a coincidência explica-se pela exigência de consistência

do núcleo (uma pessoa ou uma comunidade, mas sempre seres animados220), capaz de sustentar a

verossimilhança de um movimento claramente definido em direção a um objeto desejado221.

220 “O sujeito pode ser coletivo; pode ser um grupo que deseja sua própria salvação ou sua liberdade (ameaçadas ou perdidas), ou a conquista de um bem; isso não pode ser uma abstração. O destinador e mesmo o destinatário, a rigor, o adjuvante ou o oponente, podem ser abstratos, o sujeito é sempre animado, apresentado como vivo e atuante”. In: UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 43. 221 Ricœur apresenta a tipologia do desejo proposta por Greimas no Du sens com a ressalva de que este procedimento, situado no segundo nível, das estruturas superficiais, acrescenta ao nível da estrutura profunda (quadrado semiótico) com o recurso à filosofia analítica e à fenomenologia: “A tipologia do desejar fazer, do desejar ser, do desejar ter, do desejar saber e do poder desejar é excelente. Mas ela depende, do ponto de vista lingüístico, de uma gramática bastante específica que a filosofia analítica elaborou com o maior refinamento possível sob o nome de

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114

Como observa Anne Ubersfeld, “a determinação do sujeito só pode dar-se em relação à ação, em

sua correlação com o objeto”222.

Em termos práticos, a determinação do sujeito na análise é simultânea à

determinação do objeto e da relação que existe entre ambos. É insuficiente, por exemplo,

identificar o sujeito pelo seu protagonismo na peça, ainda que este se respalde na contagem do

número de falas e de aparições do personagem. Sem o “quê” e o “porquê” da ação, seria

impossível determinar o sujeito – ainda que a relação de desejo que une sujeito e objeto não

tenha exatamente o mesmo significado que a motivação. De fato, a flecha do desejo não se limita

às razões da ação. Trata-se do impulso que impele o personagem a agir223.

No caso da Farsa, encontramos uma primeira dificuldade em identificar este

movimento se tomamos como hipótese inicial a identificação do ator “poeta”224 (“pobre”/“não-

trabalho”), com o actante “sujeito”. O tipo de relação que este par estabelece como objeto, de

fato, consiste justamente na defesa da sua inação, ou seja, a permanência na boa preguiça –

aparentemente boa, pois inclui as desavenças da falta de dinheiro – que resultará na miséria. Uma

consideração mais atenta da qualidade do objeto, porém, ou de sua modificação ao longo da

intriga parece resolver o impasse. A atitude do ator “poeta” no início da peça é certamente

orientada no sentido do “não-trabalho”, mas nada nos permite associá-la a “virtuoso”. Somente

no final da peça, vemos o poeta, com o apoio dos personagens celestes, aproximar-se da atitude

“preguiça”/“virtuoso” que poderíamos chamar, finalmente, de boa preguiça. A inércia também

lógica intencional. E se uma gramática original é requerida para colocar em forma lógica a relação entre os enunciados modais em “desejar que...” e os enunciados descritivos do fazer, é a fenomenologia implícita à semântica da ação que dá sentido à declaração de Greimas que ‘os enunciados modais tendo o desejo como função instauram o sujeito como uma virtualidade do fazer, enquanto dois outros enunciados modais, caracterizados pelas modalidades do saber e do poder determinam este fazer eventual de duas maneiras diferentes: como um fazer provindo do saber ou se fundando unicamente sobre o poder’ (Maupassant, p. 169)”. In: RICŒUR, Paul, op. cit., p. 110. 222 UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 42. 223 “A flecha determina ao mesmo tempo um querer (‘classema antropomorfo [...] que instaura o actante como sujeito, isto é, como operador eventual do fazer’, segundo Greimas, Du sens, t. I, p. 168) e um fazer decisivo, já que determina o fazer dramático”, in: UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 45. 224 A análise detalhada dos atores será realizada a seguir. Nesta etapa, basta-nos ter acesso à relação do ator com os elementos fundamentais dos termos do quadrado semiótico que o compõe, lembrando novamente que o ator não coincide com o personagem. Um personagem pode incluir vários atores.

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115

desapareceria, se considerarmos as provas que o ator “poeta” sofre na passagem dos atos dois e

três.

Tomando esta hipótese, teríamos o seguinte núcleo:

Apesar do que acabamos de dizer, haverá sempre algo de desconcertante nessa

tensão entre ação e inação no mesmo actante, a cujo significado voltaremos no próximo capítulo.

Uma interpretação diferente é possível, porém, tomando como ponto de partida a definição de

outro sujeito e de outro objeto. Esta hipótese privilegia a inversão acontecida no terceiro ato,

quando o poeta (“pobre”/“preguiça”) torna-se rico e o rico (“rico”/“trabalho”) deixa de

trabalhar.

O que esta inversão sugere é que o tipo de desejo do poeta é partilhado também por

outros, podendo o ator “rico” participar da esfera “sujeito” da peça, com sua carga significativa

determinada pelos elementos “não-trabalho”/“rico”, aos quais se pode acrescentar “avarento”,

espécie do gênero “vicioso”. Neste caso, teríamos a relação:

Esta hipótese tem a seu favor a definição bastante clara de um núcleo volitivo

(“sujeito”), relacionado a um objeto determinado, com os quais estabelecerá relações diversas

(aquisição e conservação, por exemplo), mas todas de posse. Um inconveniente, porém, estaria

em que esta relação não inclui toda a intriga da peça, visto que o ator “rico” desaparece antes do

último evento no plano terrestre, do qual participa.

Mas poderíamos ampliar ainda mais o espectro do campo “sujeito” para incluir nessa

categoria não só os personagens terrestres masculinos, mas todos os personagens terrestres (aqui

Poeta (S) Boa preguiça (O) deseja ter

Rico (S) riqueza (O) deseja ter

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116

designados pelo ator “ser humano”). Este alargamento da categoria “sujeito”, porém, implica

também um alargamento da categoria “objeto”, que não mais seria o ócio criativo, mas sim uma

vida boa (no sentido de vida virtuosa, equilibrada, incluindo o bem estar físico e a salvação

espiritual). Nessa hipótese, o esquema seria:

Esta hipótese interpretativa é plausível, encontrando respaldo no texto. A

caracterização dos personagens no conjunto da peça e a fala dos seres divinos que abrem e

fecham os atos, no entanto, parecem contradizê-la. Na medida em que a oposição pobre x rico é

muito marcada, inclusive pela divisão do espaço na cena (casa do pobre casa do rico), essa

descrição contrastada impediria uma interpretação que incluísse os dois na mesma casa “sujeito”.

Mas embora seja constante em toda a peça, o momento de hesitação na passagem do segundo

para o terceiro ato atenua as oposições “rico” x “pobre” e “preguiça” x “trabalho”, não deixando

que o ator “poeta” assuma um perfil completamente positivo e o ator “rico” outro

completamente negativo. Ainda não temos elementos suficientes, porém, para contestar a

primeira hipótese, que coloca na casa “sujeito” o ator “poeta”. Tomemos esta hipótese como

ponto de partida, guardando a alternativa que acabamos de apresentar para um novo exame após

identificarmos os outros termos do esquema de base.

2.3. Os triângulos actanciais

O modo de abordagem do modelo actancial proposto por Anne Ubersfeld difere um

pouco da identificação dos eixos, proposta por Ricœur. Em lugar destes, ela prevê a identificação

Ser humano (S) vida boa (O) deseja ter

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117

de certas relações entre os termos do esquema de base que a pesquisadora denomina “triângulos

actanciais”, em número de três: o triângulo ativo (relacionando “sujeito”, “objeto” e “oponente”),

o triângulo “psicológico” (ligando “destinador”, “sujeito” e “objeto”) e o triângulo ideológico

(reunindo “sujeito”, “destinatário” e “objeto”). Vejamos cada um desses triângulos, examinando

as partes antes de chegar ao esquema actancial completo da peça.

2.3.1. O triângulo ativo: “sujeito”-objeto”-“oponente”

O nome de triângulo ativo ou conflituoso explica-se porque ele constitui a ação.

Segundo Anne Ubersfeld, “todos os outros actantes podem a rigor estar ausentes ou pouco

claramente indicados, mas nenhum desses três poderia faltar”225. Tudo organiza-se a partir do

núcleo S-O (“sujeito”-“objeto”), ligado pelo sentido que a flecha do desejo determina. O campo

“oponente” será posto em relação com o “objeto” ou com o “sujeito”.

Na Farsa da boa preguiça, o desacordo é concentrado nos atores “pobre”

(“pobre”/“não-trabalho”) e “rico” (definido pelos elementos “rico” e “trabalho”), no plano

terrestre, e nos atores “anjo” (“celeste”/ “não-humano”) e “santo” (“celeste”/ “não-divino”), no

plano celeste. A estes, soma-se o ator “diabo” (“infernal”/ “não-divino”), facilmente

reconhecível como componente dos personagens dos três diabos: a hostilidade de Andreza é

manifestada desde o início da peça226, Fedegoso e Quebrapedra armam a cilada das trocas no

225 UBERSFELD, Anne, op. cit., p.47. 226 No primeiro encontro entre Andreza e Simão, vemos o seguinte diálogo: “ Simão: Ai, ai, ai! Eu, hein?/ Andreza, com raiva: Lá vem!” (SUASSUNA, Ariano Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 18). Nesta ocasião, Andreza ajudava seu Aderaldo a seduzir a mulher do poeta. Convém destacar mais uma vez que a menção de passagens concretas da Farsa, que se situam no nível de superfície, não significa a identificação do actante com o personagem, sendo essa última categoria mais determinada (singular) do que a de actante (universal), que a inclui. A passagem de um nível a outro será explicitada a seguir.

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118

segundo ato para indispor o poeta com sua esposa, favorecendo Aderaldo. Os diabos também

tentarão levar Simão e Nevinha para o inferno, no final do terceiro ato.

O triângulo pode ser desenhado assim:

No plano terrestre, onde se desenrola a intriga, esta oposição é formalizada na

divisão do espaço nos atos um e dois, quando a descrição do cenário coloca a casa do rico de um

lado, do outro a casa do pobre. Esta divisão do espaço será nuançada, porém, no terceiro ato, que

se passa inteiramente na casa do rico, mas com a contradição de apresentá-la num ambiente de

pobreza (escassez provocada pela avareza). Tal mudança parece-nos significativa. Mas devemos

admitir que, a este ponto da intriga, a rivalidade rico x pobre – sobretudo partindo do rico – já foi

estabelecida pelos eventos anteriores da intriga.

A relação de adversidade, sendo centrada no “sujeito” e não no “objeto”, é muito

mais radical. Ao menos em um momento, o ator “rico” deseja que o ator “poeta” desapareça

(quando Aderaldo Catacão aposta com Simão, no segundo ato, que Nevinha iria reclamar, caso

em que o poeta deveria abandonar o lar). Outro exemplo desta oposição radical é a tentativa dos

diabos em condenar Joaquim Simão. Em todos os casos, a relação é de rivalidade intensa, não

centrada no “objeto”.

2.3.2. O triângulo psicológico: “destinador”-“sujeito”-“objeto”

Poeta (S)

Boa preguiça (O)

Rico Anjo Diabo (Adv)

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119

Neste triângulo, a relação S-O permite relacionar as determinações psicológicas do

desejo que leva a agir com a caracterização ideológica. Como nota Anne Ubersfeld, “é este

triângulo que poderemos interrogar, para a determinação psico-ideológica do objeto: a escolha do

objeto não pode ser compreendida como se faz tradicionalmente apenas em função das

determinações psicológicas do sujeito S, mas em função da relação D1[“destinador”]-S”227.

Aplicando esta observação à casa “sujeito”, tal como definida até aqui, não bastaria a

relação narcísea “pobre”/“preguiça” para orientar a ação ao “objeto”. Esta é forte o suficiente

para justificar a associação “preguiça”/“não-virtuoso”228. Mas sua motivação precisa estar

vinculada a uma esfera maior, a do destinatário. Na peça, podemos identificar o elemento “Deus”

para esta casa. Vejamos o triângulo:

Esta relação de destinação, que inclui o desejo do “sujeito” numa perspectiva mais

ampla (social e, no caso da Farsa, sobrenatural) não deixa de ser problematizada, porém. De fato,

o próprio Manuel Carpinteiro, único personagem na peça que pode ser relacionado com o ator

“Deus” (mas não somente com este ator), dirá no começo da peça que “preguiçar demais é

ruim”229, o que parece ser às vezes a atitude do personagem-poeta relacionado certamente com o

perfil de “sujeito” proposto.

227 UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 48. 228 Nas duas intervenções de Nevinha incentivando Simão a trabalhar, ela menciona exatamente a situação dos filhos do casal: “[...] Mas acontece que a bolacha dos meninos, hoje, /ainda não está garantida!/ Vá ver se dá um jeito!” (SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 23). O poeta, por sua vez, parece fazer pouco caso, sugerindo soluções que apenas disfarçam os problemas, como nesta fala, na discussão com Nevinha no segundo ato: “Simão: [...]Não tem batata de imbú?/ Nevinha: Tem!/ Simão: Pois pise e passe no ralo:/ junte água com pimenta/ e faça aquele pirão/ o tal ‘cabeça de galo’./ A filho de pobre não falta fome!/ Garanto que todos eles comem/ e inda acham que é regalo!”. In: Ibidem, p. 79. 229 Ibidem, p. 9.

Deus (Destinador) Poeta (S)

Boa preguiça (O)

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120

Os defeitos de Simão ficarão ainda mais evidenciados novamente na transição crucial

dos atos dois e três, quando ele enriquece e se corrompe. Neste momento, não se aplicaria mais

ao poeta o perfil de “sujeito” como “pobre”/“não-trabalho”. Mas é curioso que tudo isso se

passe fora da cena, no intervalo do atos. Porque, exatamente na crise cujo desfecho presenciamos

ao abrir-se o terceiro ato, a esfera “destinador” mais claramente pode ser relacionada a Manuel

Carpinteiro, na medida em que ele orienta o poeta na direção da boa preguiça (a de uma riqueza

corrupta não o seria), fazendo-o ficar pobre de novo:

E, agora, devo dizer que, contrariando um pouco, o plano aqui de Simão, eu tratei de empobrecer de novo a Joaquim Simão.230

Simão parece ter aprendido a lição, pois no último ato, além da enunciação de uma

mudança de vida231, vai buscar trabalho e, escapando ao assédio dos diabos, promete escrever os

três folhetos. A esta proposta corresponde uma fala exortativa, com conotação de bênção:

Muito bem! Siga em paz o Poeta com sua Amada! Sirvam Deus e à Igreja, Guardem amor, fidelidade, Se querendo sempre muito bem, Gozando gerações e gerações de paz Entre seus amigos e descendentes, Coisa que desejo a todos os que prestem Agora e para todo sempre!232

Como esta aparente mudança do poeta não inclui uma mudança de atitude em

relação ao trabalho (ele já compunha poesias para vender na feira desde o início da peça),

podemos nos perguntar o alcance da “conversão”. Mas esse aspecto será objeto de nossa análise

no capítulo seguinte. Por ora, basta-nos assinalar o problema.

230 Ibidem, p. 115 231 “Deixou a amante de lado,/ a mulher o perdoou,/ ele voltou à Igreja,/ à segurança da Casa/ que o Cristo – que eu represento – /fundou para todos nós!”. In: Ibidem, p. 116. 232 Ibidem, p. 177.

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121

2.3.3. O triângulo ideológico “sujeito”-“objeto”-“destinatário”

O conjunto de relações deste triângulo “serve para descobrir como a ação, tal como

se apresente no decorrer do drama, acontece em favor de um beneficiário, individual ou

social”233. Neste sentido, este triângulo completa o precedente, ampliando a abordagem

ideológica234. Observe-se, ainda, que a inclusão do destinatário da ação inclui um elemento de

diacronia na estrutura ao indicar o desenlace da história – o que reforça a crítica de Ricœur, que

percebe este paradoxo numa explicação que busca fugir à diacronia, como vimos anteriormente.

O que nos interessa com essa observação, no entanto, é que a distinção entre um antes e um depois

induz à pergunta: a quem serviu a ação motivada pelo desejo?

Na Farsa, a resposta a esta pergunta aponta novamente o “sujeito”, mas ampliado

pelo uso do termo “pobre”. De fato, a qualificação do objeto “preguiça”/ “virtude” implica

provavelmente uma alteração na atitude do “sujeito” ao longo da intriga. Se pensamos no poeta,

por exemplo, teríamos que incluir também a Igreja – que o recebe como membro afinado com

233 UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 49. 234 Convém esclarecer, aqui, qual o conceito de ideologia a ser utilizado. Para o jovem Marx, especialmente nos Manuscritos econômico-filosóficos de 1843-44 e n’A ideologia alemã, o conceito de ideologia é construído a partir da metáfora da imagem invertida na câmera obscura, utilizada por Feuerbach em sua crítica ao cristianismo. Feuerbach, de fato, irá dizer que os atributos do sujeito humano seriam projetados num sujeito divino imaginário de modo que as qualidades divinas do homem seriam vistas como atributos humanos do sujeito divino. Esta inversão servirá de paradigma para a extensão que Marx fará do conceito para todo o campo do agir humano: existe o campo real da praxis e sua projeção imaginária, a ideologia, que falsifica o domínio real. Mas um outro entendimento do conceito de ideologia é visado aqui. Embora não seja elaborado por Marx, este toca o problema ao notar que as idéias da classe dominante só passam por dominantes na medida em que se fazem crer idéias universais. É este procedimento de dominação e de legitimação que o conceito, aqui, designa. Como nota Paul Ricœur, “todo sistema de autoridade implica uma busca de legitimidade que excede aquilo que seus membros podem oferecer em termos de crença” [RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 423(Poche, 377)]. Como observa, ainda, o filósofo, a construção do simbolismo social faz-se com o recurso a uma retórica da persuasão que recorre ao “uso constante de figuras e de tropos, tais como a metáfora, a ironia, a ambigüidade, o paradoxo, a hipérbole”. (Ibidem. p. 422). Voltaremos mais em detalhe sobre o tema da ideologia assim considerado no próximo capítulo e, sobretudo, na conclusão de nosso trabalho.

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122

seu “produto”, para usar o termo de Manuel Carpinteiro – e sua família, admitindo que ele tenha

êxito na venda dos três folhetos que anuncia compor no final da peça e que, tendo o mesmo

nome dos três atos, já remete ao sucesso alcançado pela própria peça. O triângulo seria

representado assim:

O aspecto ideológico mais relevante é denotado pela oposição “pobre” x “rico”,

privilegiando o primeiro elemento. Olhando a superfície do texto, notamos, por exemplo, que é

verdade que Aderaldo e Clarabela também escapam de um final infeliz, sendo provavelmente

salvos do inferno235. Mas, além de passarem pelo castigo no purgatório, são salvos mediante a

intervenção da oração dos pobres, que continuam em posse da vida – os ricos, lembre-se, vão

para outra vida e saem de cena antes do fim da peça.

O mais importante, no entanto, é o valor atribuído a estes elementos. Esta indicação

valorativa, na forma de generalizações que revelam o aspecto propriamente ideológico em

funcionamento neste triângulo actancial, encontra-se especialmente em algumas rubricas e nas

falas dos personagens celestes, especialmente Manuel Carpinteiro.

Na primeira rubrica da peça, antes da ação, lê-se a propósito do vestuário:

Para as roupas usadas na Farsa (como em todas as minhas peças, aliás), duas coisas devem ser levadas em conta: primeiro, que o povo nordestino em geral e em particular os atores dos espetáculos populares conseguem, com imaginação maravilhosa, criar a beleza, a grandeza e o festivo partindo da maior pobreza.236

235 Manuel Carpinteiro dirá: “Olhem, provavelmente/ o caso de Aderaldo e Clarabela/ era de inferno mesmo. /[...Mas] vamos supor que os dois/ em vez de entrarem no Inferno,/ em cuja porta já se encontravam,/ caíram no Purgatório/ onde já se instalaram” (SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 176). É necessário observar, no entanto, que a suposição é temperada com o uso dos verbos no indicativo, e no passado. 236 Ibidem, p. 4 (grifos nossos).

Igreja Pobre (Destinatário)

Poeta (S)

Boa preguiça (O)

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123

Pouco depois, outra generalização encontra-se na rubrica que apresenta Joaquim

Simão na peça, ao dizer que ele “veste com a elegância dos miseráveis, isto é, de modo pobre mas

imaginoso e decorativo”, contraposto ao rico que se veste “de maneira rica, pretensiosa e feia”237.

Há, portanto, uma certa idealização do pobre ao se associar a pobreza à elegância de

modo genérico, ou o povo nordestino “em geral” à capacidade de criar beleza, embora isso possa

ser verdade em inúmeros casos. Ou seja, o que aparece como propriamente ideológico, aqui, é a

generalização de uma verdade particular.

O acesso aos demais conteúdos da ideologia que legitima a relação “sujeito”(pobres

antes da provação que precede o terceiro ato)-“destinatário”(pobres depois da prova) nos é dado

pelas falas de Manuel Carpinteiro, ele mesmo associado à pobreza238. E reaparece, aqui, a

importância do qualificativo do objeto: boa preguiça. Esta preguiça virtuosa aparece associada a

outros aspectos da ideologia cristã, formando o “produto” que o camelô-Cristo oferece:

Os distintos cavalheiros e senhoras tiveram moralidade, religião, teatro, diversão, aqui e ali um pouco de pavor, aqui e ali um pouco de alegria! Este é o produto que venho tentando passar Em benefício de nossa distinta freguesia!239

De modo mais claro, a ideologia é expressa na voz dos três personagens celestes, no

final do segundo ato:

Miguel: Que a gente nunca blasfeme e tente fazer o bem. Queira só o necessário, Dê, quem tem, a quem não tem, Que a luz do Deus de nós todos Abraça a todos, também! Manuel Carpinteiro: Quando aqui se fala em bens Não é somente em dinheiro.

237 Ibidem, p. 5 (grifos nossos). 238 “Manuel Carpinteiro: E o Cristo sempre foi pobre!”. In: Ibidem, p. 10. 239 Ibidem, p. 180.

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124

Eu penso é nos dons de Deus, Fortes, puros, verdadeiros. Sobre o sangrento do mundo, Todo o cantar da alegria, Tendo o Sol como roteiro! Simão Pedro: O pobre tem o direito De lutar pra melhorar! Dinheiro é bom! Não demais! Sobretudo não se pode Somente nisso pensar! Quem encontre a Sorte faça Por onde ser dono dela, Sem a ela se curvar! Nosso Povo não se esquece: ‘A quem muito se agacha, o fiofó lhe aparece.’240

Esta associação entre a renúncia à busca da riqueza pela riqueza e os ideais cristãos

(“não-rico”/ “virtuoso”) justificará, no caso de Simão, sua provação (chegar à riqueza e voltar à

pobreza). De fato, somos prevenidos por Manuel Carpinteiro, no final do segundo ato, de que:

Só tem agora um perigo: Simão vai mudar de vida! Venceu a miséria, o que é bom, e é o sonho da pobreza. Se ficar nisso, vai bem e há de ganhar a partida! Mas se deixar-se vencer pelo espírito da riqueza, está com ela perdida!241

Esta ameaça revela-se verdadeira, mas o empobrecimento produz o efeito esperado.

Segundo Manuel Carpinteiro, Simão muda de vida:

Isso [o empobrecimento] lhe foi salutar: deixou a amante de lado, a mulher o perdoou, ele voltou à Igreja.242

240 Ibidem, p. 111 (grifos nossos). 241 Ibidem, p. 110 (grifos nossos). 242 Ibidem, p. 116.

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125

A provação prepara o poeta, assim, para entrar em possessão do bem que deseja:

uma preguiça de Deus, não a do diabo; um ócio criativo, ou seja, produtivo, e associado à prática

cristã. Nisso se revela a continuidade ideológica entre “destinador” e “destinatário”, concordante

com a natureza da esfera “objeto”.

Reunindo os resultados da análise dos três triângulos actanciais, chegamos finalmente

ao esquema de base da Farsa, que tem, em princípio, a seguinte configuração:

Nada havíamos visto, no entanto, sobre a esfera “adjuvante”, onde situamos os

atores “esposa fiel” e “santo”, relacionados a Nevinha e Simão Pedro de forma mais ou menos

evidente, na medida em que o discurso de ambos revela posições claras sempre favoráveis ao ator

do “poeta”. Nevinha, apesar de todos os defeitos do marido, dirá que “minha sina é Simão

mesmo”243. Simão Pedro, desde a abertura da peça, defende Joaquim Simão que, “sendo pobre,

vive contente,/ sem a sede e a doença da ambição”244.

É curioso notar, porém, que o par “adjuvante”-“oponente” separa os personagens

celestes, colocando “anjo” ao lado de “diabo”. Isso se explica pelo fato de que as relações de

oposição e de ajuda não se dão no mesmo plano para todos os personagens. A rivalidade do ator

243 Ibidem, p. 17. 244 Ibidem, p. 11.

Deus (Destinador)

Santo Esposa fiel (Adj)

Poeta (S)

Boa preguiça (O)

Igreja Pobre (Destinatário)

Rico Anjo Diabo (Adv)

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126

“anjo” não visa, como nos outros casos, ao “sujeito”, e sim ao “objeto”. Do outro lado, no

campo “adjuvante”, a postura é mais ampla, expressando simultaneamente apoio à busca do ócio

criativo e ao actante “sujeito”245.

2.4. Estrutura complexa do esquema actancial da Farsa

Tudo o que vimos até aqui encontra fundamentos sólidos no texto e permite uma

melhor compreensão da estrutura da peça. Nada nos impede, no entanto, de apresentar o

esquema actancial construído sobre outro ponto de vista, o do ator “rico”246, como propusemos

acima. Se o tomássemos como sujeito, teríamos o seguinte resultado:

245 Essas relações estão representadas no esquema acima pelas setas vermelhas. 246 Anne Ubersfeld acena com esta possibilidade, quando nota que “outra inversão possível, também ela virtualmente inscrita nos textos, é a que faz, em alguns casos, não em todos, do oponente o sujeito do desejo”. In: UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 51.

Rico (S)

Riqueza (O)

O sistema político-econômico rural (Destinador)

Rico O sistema político-econômico rural (Destinatário)

Esposa infiel Diabo (Adj)

Pobre Celeste Diabo (Adv)

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127

Esta forma de compreender a peça parece tão legítima quanto a primeira247. Temos,

de fato, uma relação “sujeito”-“objeto” tão constante e sólida quanto no caso do esquema

anterior. Neste caso o elemento “pobre” representa “adversário” na medida em que significa o

oposto do programa do actante “sujeito”. Diferentemente do primeiro esquema, porém, a

rivalidade não se dá quanto à pessoa do “sujeito”, e sim quanto à sua atitude. A posição do

elemento “celestes” é semelhante, oposta somente ao “objeto”. A radicalização da relação de

adversidade se dá apenas com “diabo” (flecha vermelha).

Curioso é notar que “diabo” participa também da esfera “adjuvante”. Este indicativo

reforça a relação “rico”/“trabalho”/“vicioso” no actante “sujeito”, que implicará no final em

quase-danação. Isso explica, também, a presença da esposa infiel ao lado do diabo, ligada a ele

pelo elemento “vicioso”.

A esfera “destinador” pode ser atribuída ao elemento abstrato “sistema político-

econômico rural”, ao qual se faz referência no texto de modo alusivo, por exemplo, no caso da

venda do gado para exportação mencionada no final do primeiro ato, por ordem do “gringo” que

faz aliança com Aderaldo e que, naturalmente, tem interesse na manutenção da relação de

dominação exercida pelo ricaço em sua região.

Finalmente, a casa “destinatário” corresponde ao próprio “sujeito”, mas também ao

mesmo sistema político-econômico que funciona como “destinador”, aparecendo nesse eixo o

perfil ideológico das relações representadas. Neste caso, trata-se da ideologia própria à

manutenção das elites rurais no nordeste.

247 A multiplicidade de modelos actancias no teatro pode ser uma de suas características próprias, como observa Anne Ubersfeld. Para ela, “a presença de dois modelos actanciais em torno de dois eixos sujeito-objeto pode ter como conseqüências no nível, não somente da leitura, mas da prática, isto é, da representação, não uma escolha, mas uma oscilação, que apresenta ao espectador exatamente o problema dramático do texto”. A teórica acrescenta, ainda, a hipótese de “uma leitura dupla, dialógica, que impõe ao espectador de teatro esse movimento, esse vaivém constitutivo do trabalho teatral” (Ibidem, p. 54-55). Deixamos de lado, em nossa pesquisa, a análise dos elementos propriamente teatrais para nos concentrarmos no texto. Porém, mesmo no plano textual, verificamos esta oscilação de paradigmas que, no entanto, parece decorrer da própria complexidade da construção mimética, não sendo uma especificidade da literatura dramática nem do teatro. Não é por acaso, portanto, que a teórica recorre à noção de dialogismo, citando Bakhtin, que não a forja para o teatro.

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128

Este esquema, como podemos notar, tem sua solidez e legitimidade. Um de seus

grandes defeitos, porém, é o de não dar conta de toda a peça, já que os personagens que poderiam

inscrever-se na esfera “sujeito” desaparecem antes do fim da intriga. O depois (compreendido

como termo) da história, de fato, não é explicado pelo esquema. Mas este defeito não retira

totalmente sua validez. Antes, solicita a construção de um modelo mais complexo para

compreender a estrutura da Farsa.

Não é raro, de fato, que a análise actancial permita encontrar mais de um esquema

possível, articulados entre si. Como nota Anne Ubersfeld, “se a determinação de um sujeito da

frase actancial é, às vezes, difícil, é porque há outras frases possíveis, com outros sujeitos ou

transformações da mesma frase, que fazem do oponente ou do objeto possíveis sujeitos”248 Ela

falará, por exemplo, nos “deslizamentos” do modelo, sugerindo que o esquema pode se deslocar

ao longo da peça. É o que poderíamos detectar, no caso da Farsa, no funcionamento do terceiro

ato, ou pelo menos no episódio da quase danação dos ricos, em que poderíamos passar do nosso

primeiro esquema (“pobre” como “sujeito”) para o seguinte:

Mas esse deslizamento seria logo revertido ao esquema primeiro, de natureza mais

geral em relação à peça e que permite melhor compreender o desfecho da Farsa. É como se o

esquema mais geral incluísse este, mais ligado a um episódio.

248 Ibidem, p. 50.

Salvação (O)

Deus (Destinador)

Pobre Celeste (Adj) Diabo (Adv)

Rico (S)Rico (Destinatário)

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129

Não é difícil perceber o interesse em considerar os esquemas complementares ou

alternativos. No caso da hipótese que põe “rico” como “sujeito” em busca do “objeto”

“riqueza”, ganhamos em clareza com relação a um plano ideológico que, justamente, é

contestado pelo plano ideológico da primeira hipótese (“pobre”=“sujeito” “objeto”=“Boa

preguiça”). De fato, na peça estão em debate dois modos de se relacionar com o trabalho e com a

riqueza. Ambos têm suas virtudes e vícios: o pobre não é exaltado somente por sua pobreza, o

rico não é condenado somente por sua riqueza.

Ganhamos em inteligência da estrutura da peça, também, se considerarmos a

continuidade da esfera “destinador” no primeiro esquema e no esquema relativo ao episódio da

ameaça de danação dos ricos, apesar da inversão operada. “Deus”, entidade “representada” no

texto por Manuel Carpinteiro, pode ser incluído na esfera “destinador” por excelência do

“objeto” vida boa. Nesse sentido, somos levados a reconsiderar a hipótese que havíamos

levantado no começo da análise, e que via a relação “sujeito”-“objeto” em termos mais amplos,

que configuraria o esquema abaixo:

Como havíamos dito no início de nossa aplicação do modelo actancial, este esquema

é plausível, apesar de contestado pela oposição marcada entre “rico” e “pobre” no interior do

elemento “seres humanos”. No entanto, a apresentação de mais de um esquema não invalida o

Seres humanos (S)

Vida boa (O)

Deus (Destinador) Seres humanos

(Destinatário)

Celeste (Adj)

Infernal (Adv)

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130

conjunto, na medida em que cada um se respalda no texto, seja no texto por inteiro ou em parte

dele. Mais ainda, nos três modelos que apresentamos, vemos uma progressão de níveis que vai do

mais parcial ao mais abrangente. A apresentação de “rico” como “sujeito”, já o notamos, não

explica o desfecho. Já a colocação de “poeta” na casa “sujeito” não valoriza a inversão ocorrida

no terceiro ato. Este último esquema, porém, embora não destaque elementos importantes da

intriga da Farsa (como a oposição rico x pobre, ou a disputa “anjo” x “santo”), resolve em nível

mais profundo a ação no conjunto da peça, colocando em relevo a relação forma-conteúdo que já

encontramos nos capítulos primeiro (a propósito da forma híbrida da peça) e terceiro (analisando

a figura do personagem-narrador).

Nesse nível mais profundo – nível II do modelo de Greimas –, também aparece a

confirmação das oposições constitutivas da Farsa que havíamos levantado como hipótese na

abertura deste capítulo. Os triângulos psicológico e ideológico, por exemplo, reúnem os planos

terrestre e celeste, opostos ao plano infernal. No desejo de um bem ao mesmo tempo terrestre e

celeste (a vida boa, virtuosa, e a salvação), os personagens terrestres são destinados por Deus à

busca de algo para seu próprio bem, que se realiza na terra (boa preguiça, afastamento da miséria)

e no plano celeste (escapar do inferno).

Este esquema mais geral, enfim, ratifica essa nossa primeira abordagem, que situava

todos os personagens terrestres submissos à tensão cruzada virtude-vício e pobreza-riqueza. De

fato, como revela o esquema acima, nas esferas “adjuvante” e “adversário” encontram-se apenas

elementos celestes ou infernais que tendem a corrigir o vício ou estimulá-lo. A esse esquema

todos os quatro personagens terrestres são submetidos: Simão é tentado pela preguiça, depois

corrigido pelo empobrecimento; Aderaldo é tentado pela luxúria, pela inveja e pela avareza;

Clarabela, caracterizada por uma vida sem limites, vê esses traços serem acentuados pela

influência dos dois diabos, dos quais chega a ser amante; Nevinha, enfim, personagem mais

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131

virtuoso (embora revele astúcia ao ludibriar o ricaço no segundo ato), começa a peça sendo

assediada por Aderaldo através de Andreza.

Esta consideração dos personagens concretos, no entanto, ainda que a título de

exemplo como fizemos aqui mais de uma vez, não é própria deste nível da análise. As esferas dos

actantes referem-se a um grau de abstração que permite tanto a inclusão de mais de um

personagem em uma só casa, quanto a duplicação do mesmo personagem em mais de uma esfera.

Além do mais, este nível sozinho é insuficiente para caracterizarmos os personagens. A

progressão do mais profundo ao mais superficial exige a consideração do nível III da análise,

onde se encontram os atores e os papéis.

3. Progressão do nível profundo ao nível superficial

Após o mergulho na estrutura actancial da Farsa da boa preguiça, resta-nos completar a

volta à superfície do texto. A sutileza de certos conceitos exige que avancemos com prudência e

precisão. A designação dos atores ou de termos abstratos para as casas actanciais procurava evitar

esta dificuldade. O recurso a exemplos em personagens concretos, que dissemos estarem

relacionados, não identificados com determinadas esferas actanciais, pode no entanto ter sugerido

certa confusão entre níveis diversos de generalidade como os actantes, os atores e os

personagens. Mas um esclarecimento mais efetivo só pode advir agora, quando nos aproximamos

novamente da superfície do texto através da análise do processo de construção dos personagens.

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132

A passagem do nível profundo ao nível superficial só pode ser compreendida de

modo progressivo ou, como diz Ricœur, como “percurso”249. Do mais geral ao mais específico,

teríamos os níveis do actante, do ator (completamente distinto de “ator” físico), do papel e,

finalmente, do personagem.

Antes de prosseguir, no entanto, convém lembrar a observação feita por Ricœur

segundo a qual, na medida em que a intriga construída propõe uma configuração ordenada do

agir, “a inteligência narrativa e a compreensão da intriga precedem a reconstrução da narrativa

sobre a base de uma lógica sintática”250. De modo mais explícito, Ricœur dirá que sua hipótese

consiste em que “desde seu primeiríssimo estágio, [...] a análise é teleologicamente guiada pela

antecipação do estágio final”251. O que não invalida a análise, aliás, mas apenas revela que seu

percurso, aparentemente iniciado no nível profundo, exige ao menos uma antecipação do

resultado final e de certo modo depende do nível superficial da totalidade da obra concluída.

Em termos mais concretos ainda, a relação entre estrutura profunda e estrutura de

superfície é dialética, na medida em que a realidade de uma se explica com o recurso à outra. Isto

explica nossa tendência a buscar exemplos da estrutura profunda na superfície do texto. Mas esta

relação não constitui um círculo vicioso e fechado sobre o interior da obra. Ao contrário, trata-se

da espiral intelectiva consagrada na fórmula de Ricœur “compreensão-explicação-compreensão”.

A passagem do plano profundo ao plano superficial não corresponde somente à

passagem da estrutura ao discurso. Nessa passagem, o que nos parece mais relevante,

especialmente no gênero dramático, é a passagem de estruturas da ação – onde se identificam

esferas de ação, paradigmas, todas entidades genéricas – ao plano das individualidades, dos

249 “Em suma, a semiótica, ao termo de seu próprio percurso indo do plano mais imanente ao plano de superfície, faz aparecer a própria narrativa como percurso. Mas, este percurso, ela o tem como estritamente homólogo das operações implicadas pela estrutura elementar de significação no plano da gramática fundamental”. In: RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol. 2. 1. ed. 1984. Paris: Seuil, 1991. p. 100. 3 volumes. (Poche, 228). 250 Ibidem, p. 93. 251 Ibidem, p. 107.

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133

personagens. Nisso confirma-se e compreende-se melhor a afirmação aristotélica da precedência

da ação sobre os personagens no gênero dramático.

Vejamos como se desenha essa transição do nível profundo ao superficial na Farsa,

identificando os atores e os papéis, materiais que servem à construção complexa dos

personagens. Concluiremos com uma discussão sobre a pertinência do conceito de personagem,

que nos preparará para o capítulo seguinte, no qual o conceito de identidade narrativa irá nos

permitir melhor compreender a figura do julgamento do herói, ponto maior e terminal de nossa

investigação.

3.1. Actantes, atores, papéis, personagem

Os actantes, como já tivemos ocasião de dizer, são unidades estruturais abstratas que

reconstituem a teia da ação num conjunto de relações que explica o movimento geral da intriga.

As imagens locativas que empregamos para falar dessa categoria (“esfera”, “campo”, “casa”)

sugerem que, neste espaço, incluem-se outras categorias, menos genéricas. Nas esferas actanciais,

de fato, estão inscritos um ou mais atores, que podem corresponder a um ou mais personagens.

Em outros termos, os actantes (nível II da análise) são os núcleos de ação mais abstratos depois

do nível I de significação da narrativa (quadrado semiótico). O número de actantes sempre é igual

ou inferior a seis (algumas das esferas actanciais podem não ser explicitadas na narrativa).

Embora o ator seja mais particular que o actante, não se pode dizer que ele seja a

particularização de um actante apenas. Assim como a esfera actancial pode ser ocupada por mais

de um ator, os traços característicos de um mesmo ator podem ser compostos pela presença em

diversas casas actanciais. É justamente esta maior complexidade da categoria, aliada ao seu maior

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134

grau de determinação, que a situa um nível acima ao dos actantes e mais próximo do nível dos

personagens.

Mas é importante distinguir desde logo estes últimos dois níveis. Se tanto o ator

quanto o personagem são dotados de individualidade (o que não era o caso do nível actancial,

mais abstrato e genérico), a categoria “ator” ainda é abstrata, dotada de determinação, mas não de

“personalidade”252. É por esta distinção sutil, mas importante, que poderemos verificar a presença

de um mesmo ator em vários personagens. Na Farsa, este é o caso dos três diabos, por exemplo,

como veremos adiante.

3.1.1. Atores e personagens da Farsa

Neste ponto da análise, o da identificação dos atores, já nos situamos no nível III,

próximo à superfície do texto, podendo nomear estas entidades que se definem por um certo

número de processos (nome + ação) e traços característicos (de funcionamento binário). Na

Farsa da boa preguiça, identificamos treze atores principais:

Poeta Cria folhetos e é preguiçoso

Esposa fiel cuida dos filhos e do marido Marido infiel Trai a esposa

Marido fiel Não trai a esposa Rico trabalha e acumula riqueza

Esposa infiel Trai o marido Falso intelectual julga saber

Ser humano busca uma vida boa Deus destina o homem à salvação

Diabo faz o mal (trapaça) a todos Santo ajuda os homens

252 As aspas remetem à discussão que fecha esta seção, em torno ao antropomorfismo e à pertinência da categoria de personagem.

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135

Anjo combate o mal Representante de Deus julga os homens

A partir desta lista, não é difícil identificar certos personagens nos quais agem certos

atores, como “poeta” e Simão, “esposa fiel” e Nevinha. Mas verificamos também que esses

personagens incorporam mais de um ator, pois Simão inclui também, inicialmente, “marido fiel”,

passa a “marido infiel” na inversão do intervalo entre os atos dois e três e volta a ser “fiel” no

terceiro ato. Este exemplo revela melhor o funcionamento binário de uma mesma característica,

atribuída ao mesmo personagem (“fiel” x “não-fiel”). Esta oscilação pode servir tanto para acirrar

as oposições (estando aplicada a personagens diferentes, como “rico” x “pobre”) ou para dar

dinamicidade à narrativa (referindo-se ao mesmo personagem, como no caso de Simão).

Aderaldo reúne também mais de um ator, sendo simultaneamente “rico” e “marido

infiel”. O significado de sua riqueza, marcada em relação à não-riqueza de Simão, liga os dois

personagens ao menos neste plano de tensão. Mas ambos participam do ator “ser humano”,

sendo semelhantes neste aspecto, embora em Aderaldo esta busca esteja ligada ao vício (sedução

de Nevinha, acúmulo de riqueza, desejo do desaparecimento de Simão e, enfim, avareza).

Clarabela assume o paradigma253 “esposa infiel”, estando nesse ponto (além dos elementos

“riqueza” e “não- trabalho”) associada a Aderaldo. Ela inclui também um ator menos importante

para a intriga (não para a trama), que é “falso intelectual”. Seu aspecto de falsidade (contrastada à

naturalidade do ser poeta em Simão, que não é problematizado) reforça sua vinculação ao

elemento vicioso.

O ator “diabo”, ao qual já nos referimos a título de exemplo, é comum a todos os

três personagens infernais da Farsa. São eles os personagens menos particularizados da peça,

embora recebam o influxo de outros atores, através dos disfarces. Mas no aspecto de

generalidade que eles possuem, todos recebem a influência de uma outra categoria do nível III,

253 Por “paradigma” entendemos padrões constantes de ação dos personagens.

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136

situada entre os actantes e os personagens e pouco mais abstrata que o ator: o papel. Antes de

detalharmos esta função, porém, convém completar a identificação dos atores, em sua relação

com os personagens.

Se os diabos são menos particularizados, o mesmo não se pode dizer dos

personagens celestes. Todos os três são muito diferenciados por suas ações e características.

Simão Pedro, por exemplo, além de ser “santo” (esfera celeste) é “ser humano” (esfera terrestre),

procurando assim ajudar seus “protegidos”, como dirá Manuel Carpinteiro na peça254. Ao menos

em um momento, em disputa com Miguel Arcanjo, ele remeterá ao seu passado humano, pelo

qual participa do ator “ser humano busca vida boa”. Miguel Arcanjo, relacionado com o ator

“anjo”, será definido em relação às realidades celeste e infernal, caracterizado por suas “pisas” no

diabo, sendo defensor do bem. Nesse sentido ele estará sempre oposto ao que se inclina para o

mal (vício) e defende o que lhe parece buscar o bem (virtude). Isso explica porque sua atitude

inicial é mais favorável ao “rico” (trabalho) do que ao “poeta’ (preguiça). Seu posicionamento irá

transformando-se pouco a pouco na medida em que Aderaldo vai mostrando-se cada vez mais

vicioso e Simão, após a prova da passagem da pobreza à riqueza e de volta à pobreza, cada vez

mais virtuoso. No final, Miguel intercederá em favor de Simão, expulsando os diabos que querem

carregá-lo para o inferno.

Manuel Carpinteiro, enfim, o personagem mais importante da peça ao lado de

Joaquim Simão, tem um perfil complexo na medida em que reúne os atores “Deus” e “ser

humano”. De fato, é como ser humano que ele se apresenta. Esse paradoxo, no entanto, é

metáfora da própria realidade do Cristo, mediador por excelência, segundo a doutrina cristã.

Vemos a fala explícita do personagem na abertura da peça:

Dirá o cavalheiro: ‘É impossível! O Cristo, um camelô?’

254 SUASSUNA, Ariano Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 59.

Page 138: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

137

Mas não será verdade que o Cristo é o camelô de Deus, seu Pai?255

Esse personagem buscará descolar-se do seu referente, quando afirma que apenas

representa o Cristo256. Mas isto não impedirá que exerça a função de mediação e julgamento que

só a reunião desses dois atores (sobretudo a inclusão na divindade) pode dar. É deste ponto de

vista que ele assume o protagonismo da condução da ação (enquanto determina acontecimentos,

como a provação de Simão) e do julgamento da atitude da preguiça, tirando a lição no final.

Voltaremos em detalhe à força desse personagem no capítulo seguinte.

Enfim, esta lista de atores pede um complemento. Existem ações menores, de fato,

exercidas apenas em parte da intriga através de situações como emprego e disfarce. Elas são em

número de oito:

Alcoviteira ajuda a seduzir

Calunga de caminhão engana o rico Frade engana o rico

Vaqueiro dá cabra Negociante faz trocas

Amante mantém relação ilícita Mordomo atende às pessoas

Pedinte pede ajuda

Todos eles servem para caracterizar melhor alguns personagens, explicando algumas

inclusões de personagens em esferas actanciais distintas. É enquanto alcoviteira que Andreza

participa da esfera “adjuvante” em relação a Aderaldo, por exemplo. Fedegoso e Quebrapedra se

distinguem apenas, como personagens, pelo nome e pela diferença de disfarces. No mais, ambos

executarão a mesma ação, que é enganar, ser amante e, de modo mais geral, fazer o mal.

255 Ibidem, p. 5. 256 “Como eu não sou o Cristo,/ como apenas o represento...”. In: Ibidem, p. 176.

Page 139: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

138

Eles assumirão, a partir do segundo ato, o ator “vaqueiro”, antes de se revelarem

somente como diabos no final da peça257. Esse ator “vaqueiro” será assumido como disfarce

também por Simão Pedro, para dar a cabra a Simão, cabra que fora dada pelo ator “vaqueiro”-

“diabo”. Uma vez a cabra entregue, é a vez de Miguel Arcanjo que, assumindo disfarces

diferentes, incorpora sempre o mesmo ator “negociante”, ator partilhado com Simão.

O ator “mordomo”, enfim, aparece no começo do terceiro ato, sendo assumido pelo

personagem Simão. Ele será o intermediário da avareza do ricaço, ao receber os “pedintes” e ter

que negar ajuda a eles, por ordem do patrão. Os “pedintes”, por sua vez, são assumidos por

Miguel, Simão Pedro e o próprio Manuel Carpinteiro, na única intervenção direta deste na peça,

que aparece como a última tentativa dada ao rico de ser generoso.

O recurso a esta rede de atores ajuda a compreender a complexidade dos

personagens. É o momento do particular, na passagem do universal (actantes) à singularidade dos

personagens, tendo como vantagem suplementar uma melhor compreensão dos personagens

pelo jogo de oposições que permite caracterizá-los em sua interação. É o caso, por exemplo, das

oposições maiores:

a) Trabalho (x não-trabalho)

b) Rico (x não-rico)

c) Virtude (x não-virtude)

Aplicadas aos personagens terrestres, teríamos o seguinte jogo258:

Simão - a -b -c/c

Aderaldo a b -c Nevinha a -b c

Clarabela - a b -c

257 É curioso notar, quanto ao uso de disfarces, que tanto os diabos quanto os personagens celestes os utilizam para interagir no plano terrestre. Mas, enquanto os celestes somente usam disfarces temporários, os diabos, além dos temporários, apresentam-se o tempo todo disfarçados, somente revelando suas figuras caprinas no episódio final. Este aspecto reforça a falsidade dos diabos, cuja ação principal é fazer o mal. 258 Este quadro é inspirado no modelo apresentado por Anne Ubersfeld; In: UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 64.

Page 140: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

139

Esse quadro permite constatar de modo mais objetivo como os dois casais são

construídos com base em características quase todas opostas. A única hesitação consiste

justamente na característica “virtude”, que não se aplica inicialmente a Simão, mas que não será

jamais aplicada ao rico.

3.1.2. Entre actantes e personagens: os papéis

Outro elemento intervém, ainda, na passagem dos actantes ao personagem, embora

não de modo necessário259. Trata-se do papel, que pode ser definido como “o sentido de ator

codificado limitado por uma função determinada”260. Anne Ubersfeld dará o exemplo dos papéis

ou funções exercidas pelos atores na Commedia dell’Arte. É o espaço do tipo, que interfere também

na construção dos personagens, ao lado dos atores, reforçando a complexidade daqueles.

Na Farsa da boa preguiça, seria inadequado aplicar papéis muito claramente definidos

na construção de atores. O tipo pícaro, por exemplo, ou zanni, embora interfira na construção do

personagem Simão – de modo específico no terceiro ato, quando assume o perfil do criado

espirituoso – , é muito modificado por outros elementos como veremos no próximo capítulo261.

Quanto aos demais personagens, é sobretudo no ato terceiro, quando Aderaldo se aproxima do

velho ridículo, que a influência de um tipo como Pantaleão pode ser evocada. De modo muito

259 Nem sempre a determinação do personagem obedece à interferência de um papel ou, pelo menos, nem sempre com uma influência muito determinante. Situamos este elemento no mesmo nível III, sendo mais genérico que o ator, apesar de mais codificado. Nesse sentido, não seguimos a classificação de Patrice Pavis, que separa atores e papéis em dois níveis distintos de manifestação da personagem (Cf. Papel, in: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 274-275). Em nosso entendimento, os processos de mediação do papel e do ator têm ambos natureza particular, na dialética de passagem do universal (actante) ao singular (personagem). 260 UBERSFELD, Anne, op. cit., p. 65. 261 Cf. cap. V, item 2.1.2, p. 167 et seq.

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140

geral, ainda, podemos considerar a constante presença de inversões, quiprocós, etc., uma

influência dos tipos da Commedia, especialmente quando organiza os papéis em dois partidos

opostos exercendo diversos jogos de cena cômicos deste tipo.

Podemos acrescentar a este panorama os personagens sobrenaturais: santos, anjos, o

próprio Cristo e os diabos. Como vimos no primeiro capítulo, estes elementos do teatro religioso

interferem diretamente na forma da Farsa da boa preguiça.

3.1.3. Personagem: noção necessária e em crise

Chegando à superfície do texto após este longo mergulho na estrutura profunda da

peça, compreendemos melhor a construção da intriga e dos personagens que se destacam dela.

Mas, se podemos tratar dos personagens de um determinado texto como entidades relativamente

autônomas, sua vinculação ao texto é um requisito imprescindível para uma crítica correta. Em

termos mais claros, os personagens – como toda a literatura – não são “coisas”, mas “quase-

coisas” como diria Paul Ricœur.

Embora devamos concordar com a afirmação de que “a personagem de teatro não se

confunde com nenhum discurso que se possa construir sobre ela”262, não se pode chegar à realidade

textualmente fundada do personagem sem a reconstituição dos processos que o compõem. E isso se

configura inevitavelmente num outro discurso, a própria análise, como esta que empreendemos

agora. Mas Ricœur nos ajuda a perceber esta distância, ao situar nossa apreensão da realidade

textual no plano da mimesis III (sempre ligada de forma necessária ao momento central da mimesis

262 Ibidem, p. 73.

Page 142: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

141

II, a configuração operada pelo texto), ou do mundo do texto, quando estamos certamente ligados

ao conteúdo, mas de forma criativa.

Há sempre excessos, porém, a corrigir. Anne Ubersfeld observa, por exemplo, que a

ênfase dada à noção de personagem está relacionada à necessidade de encontrar “um sentido

preexistente ao discurso dramático”263, aspecto relacionado ao tema da intencionalidade da obra.

No entanto, como observa a autora, este sentido é propriamente uma construção. Encontramos

aqui novamente a noção de poiesis tão cara a Aristóteles e a Ricœur, que nos recoloca no caminho

da mimesis como construção processual que parte de uma entidade “autor”, mas que não vive sem

uma construção complementar, aquela que ativa o processo em sua recepção. Sobre a

importância desta noção de construção da personagem, Anne Ubersfeld dirá, de modo muito

claro:

De uma certa maneira, podemos tomar a personagem como uma abstração, um limite, o cruzamento de séries ou de funções independentes – ou então podemos tomá-la como o agregado de elementos não autônomos -, mas não podemos negá-la: dizer que uma noção a é a relação, a adição ou o produto de dois elementos b e c não significa que a não exista (a = b + c ou a = b x c ou a = b/c). Que a personagem não seja uma substância, mas uma produção, que ela esteja no cruzamento de funções ou, mais precisamente, que ela constitua a intersecção de vários conjuntos (no sentido matemático do termo), não significa que não tenhamos de considerá-la, mesmo que fosse de um ponto de vista puramente lingüístico: ela é um sujeito de enunciação. Ela é o sujeito de um discurso marcado com o seu nome.264

A crise da noção de personagem, ainda, como observa a mesma autora, relaciona-se

com o problema da dissolução do indivíduo na cultura contemporânea265. Neste ponto é curioso

observar em Paul Ricœur uma certa resposta a esta problemática a que se refere Anne Ubersfeld,

na medida em que o filósofo busca na literatura recursos para resolver o problema da identidade

263 Ibidem, p. 70. 264 Ibidem, p. 74. 265 “Aquilo que quase não se pode dizer de seres humanos presos nas malhas de suas existências concretas, será que ainda poderá ser dito de personagens literárias? Por isso não nos causará espanto o lugar-comum infinitamente cômico que as apresenta como ‘seres mais verdadeiros que certos seres vivos, mais reais que o real’, como se fosse possível transportar para o plano fantasmático da criação literária a noção idealista de pessoa, quando esta se encontra, por outro lado, desmantelada...”. In: Ibidem, p. 70.

Page 143: Entre ética e estética: o processo mimético da Farsa da boa preguiça

142

pessoal. Voltaremos a este tema no próximo capítulo. Note-se, no entanto, que não há sentido

em opor identidade narrativa e identidade pessoal. Ao contrário, a relação entra ambas é

necessária. De um lado, a identidade narrativa ficcional é construída como representação da

identidade pessoal. Do outro, não há personalidade que não conheça um processo de construção,

ou seja, não há identidade pessoal sem narratividade, é contando quem somos que acedemos à

nossa identidade. Personagem e pessoa, portanto, embora conceitos ontologicamente distintos,

são relacionáveis como momentos de um processo dialético.

Voltando nossa atenção à Farsa, basta-nos complementar o que já foi dito na seção

precedente. A construção das personagens na peça, como vimos, obedece a uma estrutura que

cruza qualidades e paradigmas marcados por oposições em cruz (pobre x rico na esfera

horizontal, vício x virtude na esfera vertical, estando os seres humanos situados na intercessão

dos dois eixos). E aos elementos da ação somam-se outros de natureza descritiva que os

reforçam.

É o caso, por exemplo, da caracterização da figura de Joaquim Simão e de sua família

como pobres, salientada várias vezes e de modos muito diversos, quase sempre atribuindo a esta

um valor positivo. Os ricos, pelo contrário, serão caracterizados de forma negativa.

Assim, na construção dos personagens terrestres, interferem a descrição do cenário

(o texto falará apenas de “casa do pobre”, enquanto a casa do rico é descrita “com alpendre,

janelão e um baú”266), a descrição das roupas (no começo do terceiro ato Simão e Nevinha

aparecem “esfarrapados, com sacos de viagem nas costas”267), as falas dos próprios personagens

terrestres (Aderaldo irá contrapor várias vezes sua riqueza à pobreza de Simão) e as falas dos

personagens divinos.

266 Cf. SUASSUNA, Ariano Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 4. 267 Ibidem, p. 116.

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143

Podemos incluir nesta lista, ainda, o tipo de linguagem empregada pelos personagens,

por exemplo no modo de expressão de Clarabela, onde a linguagem erudita é satirizada268. Mas

nesse aspecto temos um ponto curioso que une Aderaldo, Simão e Nevinha, em que se revela

certa co-naturalidade: todos usam linguagem simples, embora somente o poeta recorra ao

esculacho269. Deve-se dizer que as diferenças entre eles podem ser encontradas mais em

elementos extrínsecos, como as posses, do que em características mais interiores, como a

linguagem e o comportamento. Como já tivemos ocasião de dizer no primeiro capítulo, Aderaldo

é rico, mas rústico – assim como Clarabela em certa medida, apresentada como intelectual falsa.

Esta ênfase na ação e no descritivo completa de algum modo o pequeno grau de interioridade

dos personagens da Farsa.

Já os personagens celestes e infernais têm menos necessidade de uma caracterização

complementar, como a que encontramos nos personagens terrestres. Os diabos, quando não

recorrem aos disfarces, assumem formas temporárias: criada, vaqueiro, para chegar, enfim, à

forma animalesca, como bodes. Os personagens celestes possuem apenas um pouco mais de

elementos, quando, além dos elementos da realidade bíblica de onde são tirados e que

permanecem até certo ponto implícitos, são apresentados como camelô (Manuel Carpinteiro),

“homem da cobra” (Miguel) e pescador (Simão Pedro)270. Explica-se o grau menor de

singularização desses personagens por sua interferência menor na intriga. Mas é pela mesma

razão que os personagens celestes terão um pouco mais determinação que os diabos, cujo papel é

268 Basta recordar o diálogo entre Clarabela e Aderaldo: “Clarabela: Você precisa fazer um curso, Aderaldo!/ Aderaldo: Curso de quê, Clarabela?/ Clarabela: Qualquer curso! Se for dado por um alemão neomarxista/ é melhor! Mas, na falta dele, um francês estruturalista/ ou um sociólogo tropicalista também serve!” In: Ibidem, p. 30. 269 Curioso notar que o outro personagem a utilizar um termo do baixo corporal é precisamente Manuel Carpinteiro, no final do capítulo terceiro (“fundo do camelo”). Consideramos esta menção um indício de certo paralelismo entre os personagens, ambos progatonistas, mas em planos distintos, como veremos no próximo capítulo. 270Na rubrica inicial, lemos: “Miguel Arcanjo, seu secretário[...] tem na mão uma maleta, de onde retira, de vez em quando, uma balança e uma cobra, dessas que se mexem. Presume-se, com certo matiz cômico, que, dentro da maleta, estão uma cobra e um jacaré enormes – como, aliás, acontece com os “homens-da-cobra[...]. Simão Pedro veste pobremente e tem utensílios populares de pesca na mão”. De Manuel Carpinteiro, além da auto-designação que já se mencionou aqui, é dito na rubrica associada à sua primeira fala, que a diz “em tom de camelô”. In: SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 4-5.

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144

ainda mais restrito. A apresentação de Manuel Carpinteiro como camelô é suficiente para situá-lo

como arauto ou anunciador do “produto”, que é a exegese da peça que ele irá propor em cada ato

e, sobretudo, no final da peça.

Esta sua função (destacada, sobretudo, no capítulo precedente) está situada no centro

de inteligência da peça, embora não no plano da ação propriamente. Nesse plano, como vimos

nessa etapa de aprofundamento da mimesis II, destaca-se a ação dos personagens terrestres,

sobretudo de Joaquim Simão e, em segundo plano, de Aderaldo Catacão. Mas é pela interação

dos dois personagens (Manuel-Simão) que chegamos ao ponto a que queríamos chegar, vendo aí

o elemento maior da inteligência da peça. Esta interação se dá em pleno eixo comunicativo

(destinador-destinatário). No ponto de transição entre a mimesis II e a mimesis III, deparamo-nos

com o julgamento do herói que fará o objeto do capítulo a seguir. É esta figura que ao mesmo

tempo encerra a peça e abre-a à progressão do processo mimético.

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145

V

ENTRE ÉTICA E ESTÉTICA:

JOAQUIM SIMÃO NO BANCO DOS RÉUS

Na abertura de nossa pesquisa, tivemos ocasião de verificar como a peça de Suassuna

aqui analisada retoma traços formais da farsa ibérica, do entremez e da moralidade, misturados

com elementos do teatro religioso. Sobre esta composição híbrida, concluímos que o tema

religioso da oposição vício x virtude – que convoca o tema mais amplo da salvação – é

temperado por elementos temáticos mais próximos da ética, através da discussão de uma

moralidade (boa ou má preguiça). Essa discussão manifesta-se simbolicamente na constituição de

dois planos, um terrestre e outro sobrenatural (inferno e céu), comunicáveis entre si.

Nessa divisão de planos, a ação fica restrita ao plano terrestre. No âmbito

sobrenatural, o plano infernal quase não conhece ação: temos apenas a narração da chegada dos

personagens ricos à porta do inferno, além da volta dos diabos para este plano, mas estas ações

sempre se passam fora de cena. Já o plano celeste é mais explícito. De fato, a interferência do

plano celeste na ação é mais restrita ao Santo e ao Anjo, intervindo o personagem-narrador

apenas no final. Essa figura épica, representada na peça através de Manuel Carpinteiro, é

totalmente ausente dos entremezes e será convocada a desempenhar um papel central no plano

celeste da Farsa (sendo o protagonismo do plano terrestre, porém, reservado a Joaquim Simão). A

função hermenêutica deste personagem é um dos elementos formais mais eficazes para construir

a unidade da peça. Essa função consiste de modo particular em enunciar, desenvolver e concluir

o ponto central do tema, a moralidade da peça, a partir da ação dos personagens terrestres. Foi o

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146

que verificamos no capítulo terceiro, depois de termos dedicado um capítulo inteiro à

apresentação da teoria da mimesis como processo, de Paul Ricœur (capítulo segundo).

Com o recurso à teoria do filósofo francês, pudemos organizar nossa análise em três

etapas – mimesis I, II e III –, dando sempre prioridade à mimesis II, etapa centrada na construção

(poiesis) da narrativa que, como vimos, retoma inúmeros recursos épicos (em sentido adjetivo)

numa forma dramática (em sentido substantivo). Esses elementos épicos apareceram-nos como

recursos formais solicitados por uma temática de natureza ético-religiosa.

Esta opção de concentração sobre a mimesis II levou-nos, ainda, a dar seguimento a

nossa investigação através da análise da estrutura da Farsa com a ajuda do modelo actancial.

Pudemos então verificar até que ponto essas afirmações podiam ser confirmadas no plano da

estrutura, investigando em que medida a relação forma-conteúdo, articulando elementos éticos e

estéticos, refletia o plano mais profundo do texto. Este momento do processo interpretativo,

Ricœur denomina precisamente aprofundamento. E os resultados a que chegamos deixaram ainda

mais evidente a dupla tensão (de natureza ética e de natureza religiosa) a que são submetidos os

personagens terrestres, situados entre riqueza e pobreza, vício e virtude, revelando uma estrutura

que combina dois eixos responsáveis pela dinamicidade da ação (representada no plano terrestre)

e da exegese (ação comentada no plano celeste).

Nesse panorama, os dois personagens que se destacam dos demais são Joaquim

Simão e Manuel Carpinteiro. Vimos outras possibilidades de interpretação: uma situando

Aderaldo no centro da intriga (que não dá conta de toda a peça, embora lance luz sobre certos

elementos da peça, em especial sobre o terceiro ato), outra que situa não apenas o poeta, mas

todos os seres humanos no centro da intriga. Chegamos porém à conclusão de que, embora essas

hipóteses sejam possíveis e a última delas evidencie ainda mais a relação entre os eixos vertical

(bem x mal) e horizontal (rico x pobre) da intriga, parece ser de alguma forma a expansão do

modelo particular centrado no poeta. Neste sentido, poderíamos falar de função metonímica do

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147

personagem Joaquim Simão271.

O estudo da interação entre os dois protagonistas fará o objeto deste último capítulo:

de um lado, Manuel Carpinteiro; do outro, Joaquim Simão (e, através dele, os demais personagens

terrestres)272. Num gênero como o dramático, a interação dos personagens é uma categoria

essencial, especialmente numa peça que não conhece monólogos e na qual jamais um

personagem está sozinho em cena. Nossa investigação partirá, porém, de outro conceito, o de

identidade narrativa, antes de chegar ao tipo de relação estabelecida entre os dois protagonistas da

peça. De modo mais preciso, antecipando um pouco nossa conclusão, é através da investigação

da identidade narrativa desses dois personagens que nós chegaremos à forma do relacionamento

estabelecido entre eles, qual seja, uma forma particular de julgamento.

1. A identidade narrativa

Em Si mesmo como um outro, Ricœur discute o problema da identidade pessoal, que

inclui o paradoxo da identidade idem e da identidade ipse, a identidade como “mesmo” e a

identidade reflexiva. Segundo ele, é por elidir essa distinção que outras tentativas ignoram o papel

da narratividade na constituição da personalidade. Anne Ubersfeld já notara a atualidade desse

271 “Enquanto lexema, a personagem pode estar integrada em um discurso que é o discurso textual integral, em que ela figura como elemento retórico. Assim, a personagem pode ser a metonímia ou a sinédoque (figura que representa a parte pelo todo) de um conjunto paradigmático, ou a metonímia de uma ou várias outras personagens”, in: UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 76. 272 Por “protagonista”, designamos os “personagens principais de uma peça” (Protagonista. In: PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999. p. 310). Neste sentido, estamos em concordância com a etimologia da palavra: protos – o primeiro – mais agoon – assembléia ou, na Grécia antiga, encenação em competição teatral nas dionisíacas. (Ver também: Protagonist. In: VV.AA. Dictionary of Theatre. Londres: Penguin Books, 2004. p. 485); e BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 104-118). Devemos destacar, no entanto, que a referência a mais de um protagonista não segue o mesmo princípio do teatro antigo, que se referia a um deterogonoista e a um tritagonista. Designamos dois personagens assumindo função protagônica em planos distintos, em relação.

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148

problema, na passagem que comentamos no capítulo precedente a propósito da relação entre a

necessidade de defesa do conceito de personagem e o problema da consistência do indivíduo no

mundo contemporâneo. Nesse sentido, a investigação de Ricœur é de certa forma uma resposta

ao problema, na medida em que ele relaciona positivamente os dois planos quando constata que

o homem só pode aceder à sua personalidade narrando-a.

Voltando aos conceitos-base do filósofo, a noção geral de identidade idem diz

respeito, sobretudo, à identidade numérica (duas ou mais ocorrências da mesma realidade se

referem à mesma coisa) e à identidade qualitativa (semelhança extrema, quando notamos que duas

coisas – X e Y –, por serem muito parecidas, são ditas idênticas). Mas a fragilidade desses dois

critérios solicita um terceiro termo, o da continuidade ininterrupta entre o início e a continuação do

desenvolvimento de uma mesma realidade. Nesse momento a mudança representa uma ameaça à

identidade. Mas a ameaça pode não se cumprir, quando a similitude é fundada sobre o princípio

de permanência no tempo.

O que a reflexão de Ricœur manifestará é que o campo conceitual da identidade idem

– válido não só para o ser humano, mas de abrangência universal – não consegue suprir a

necessidade de definição da identidade pessoal como si-mesmo, na medida em que a questão pelo

“quem?” é irredutível à questão “quê?”. Noutros termos, a resposta à ipseidade é um “se”

reflexivo (“si-mesmo”), não um sujeito objetivado segundo o modo do Cogito cartesiano. Ricœur

colocará o problema da relação entre estas duas formas inter-relacionadas de identidade em duas

situações em que os dois aspectos aproximam-se e distinguem-se: o caráter e a permanência do si

mesmo.

Ricœur definirá caráter como “o conjunto de disposições duráveis pelas quais se pode

reconhecer uma pessoa”. E continua: “É a este título que o caráter pode constituir o ponto limite

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149

onde a problemática do ipse torna-se indiscernível da do idem e inclina a não as distinguir”273. Ele

chegará a dizer que “o caráter é, verdadeiramente, o ‘quê’ do ‘quem’”274, para reforçar essa

aproximação dos dois momentos da identidade narrativa.

Devemos fazer um parêntesis, aqui, para notar que a reflexão de Ricœur concentra-se

sobre um problema propriamente ético, o da compreensão da personalidade humana

responsável. Seu recurso à literatura para compreender o processo de construção da

personalidade corresponde, do ponto de vista da ação, ao estudo da ação considerada como

texto, em sua obra Do texto à ação. Mas se nos ativermos ao campo literário, o ponto de vista é

outro, não podendo jamais haver extrapolação dos processos de construção do personagem em

direção a uma entidade “separada”, como o alerta Anne Ubersfeld, citada no capítulo precedente.

A identidade do personagem literário, no entanto, é construída como imitação de seres humanos

sobre a base de um “quê” diverso de outros objetos, mas sem existência separada. Daí a

importância da noção de caráter como “disposições duráveis” identificadoras (como a preguiça

de Joaquim Simão e o artificialismo de Clarabela, por exemplo), que nos dá acesso a outros

aspectos da identidade do personagem. E sua diferença com relação às outras realidades está na

representação (mimesis) da realidade reflexiva (ipse) do ser humano, cuja tensão dialética com o

elemento idem é narrativamente posterior à descrição do seu caráter. Em outros termos, se

podemos dizer que a literatura cria “quase-coisas”, podemos dizer também que ela cria “quase-

pessoas” que, como as pessoas, podem ser descritas como possuidoras de maior ou menor

reflexividade.

273 RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre. 1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. p. 146. (Poche, 330). Ricœur definirá de modo mais preciso o caráter como “o conjunto de marcas distintivas que permitem de re-identificar um indivíduo humano como sendo o mesmo. Pelos traços descritivos que vamos enunciar, ele cumula a identidade numérica e qualitativa, a continuidade ininterrupta e a permanência no tempo. É por aí que nós designamos de modo emblemático a ‘mesmidade’ da pessoa”. In: Ibidem, p. 144. 274 Ibidem, p. 147.

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150

Retomando nossa exposição da dialética idem-ipse na identidade narrativa, a distinção

entre os dois aspectos da identidade é levada ao limite na segunda situação analisada, a da

permanência do si mesmo. Apresentada sob o ponto de vista da palavra empenhada, ela aparece como

um outro modo de permanência no tempo diverso do caráter. De fato, nessa situação a referência

ao “quem” é muito mais relevante do que a referência ao “quê” próprio do caráter. A situação é

análoga, por exemplo, nos casos da amizade e da manutenção de uma promessa, nos quais se

realiza de modo semelhante um desafio ao tempo e à mudança. As situações de fidelidade-

infidelidade na Farsa, por exemplo, são um momento em que esta tensão entre os dois pólos da

identidade aparecem.

A importância da distinção entre identidade-idem e identidade-ipse para responder ao

problema da identidade pessoal é testata por Ricœur no confronto com três situações-limite,

tiradas da obra de Derek Parfit275. Este autor apresenta o que ele denomina “casos-enigma”

(puzzling-cases) de identidade pessoal: transplantação do cérebro, bissecção do cérebro, cópia

idêntica do cérebro de uma pessoa. No encontro da pessoa com sua “cópia”, qual seria a

qualidade da permanência? Quem ou o quê permanece? Ricœur observa em primeiro lugar que a

identidade aqui é reduzida ao cérebro276, com o que Parfit quer contestar a afirmação de um

núcleo separado de permanência da identidade. Mas essa redução, observa o filósofo, exclui algo

essencial para a identidade pessoal (em seu aspecto reflexivo), que é a possessão por alguém de

seu corpo próprio e de seu vivido.

Em segundo lugar, no seu exame dos “casos-enigma”, Ricœur observará que não há

resposta possível à pergunta “quem permanece?”. Três alternativas sucedem-se, sem que se possa

optar por nenhuma: “1) não há ninguém que seja o mesmo que eu; 2) eu sou o mesmo que um dos

275 PARFIT, Derek. Reasons and Persons. Oxford: Oxford University Press, 1986 apud RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre. 1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. p. 156, nota 1, et seq.. (Poche, 330). 276 “É nesse ponto que a tese reducionista exerce todo o seu controle: numa ontologia do evento e numa epistemologia da descrição impessoal dos encadeamentos portadores da identidade, o lugar privilegiado das ocorrências nas quais a pessoa é mencionada é o cérebro”. In: RICŒUR, Paul, op. cit., p. 162.

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151

indivíduos produzidos pela experiência; 3) eu sou o mesmo que os dois indivíduos”. E completa:

“o paradoxo é bem um paradoxo da ‘mesmidade’”277.

De todo modo, mesmo nesses casos extremos, evidencia-se que a resposta à questão

pelo sujeito (“quem”) não é jamais um nada: um “não-sujeito” não é jamais nada, mas “a questão

quem, simplesmente reconduzida à nudez da questão ela mesma”278. Ou seja, a questão “quê?”

aplicada à identidade conduz a situações em que não há resposta possível e a questão torna-se

vazia de sentido. Contrariamente à questão pelo “quê”, que conduz à identidade como mesmo, a

questão “quem?” conduz o sujeito a afirmar-se, mesmo quando procura negar a si mesmo279. No

confronto com o “mesmo”, o sujeito acede à sua identidade reconhecendo-se em sua

interioridade como “si-mesmo”.

É nesta altura que Ricœur contesta a terceira afirmação de Parfit, para quem a

identidade pessoal não é o mais relevante. Em sua obra, Parfit contesta a racionalidade da moral

utilitarista, que leva ao que ele denomina de “teoria do interesse próprio”280. É para fundar sua

argumentação que Parfit dirá que “a identidade pessoal não é o que importa”281. No entanto, por

mais que as situações-limite coloquem em cheque a identidade reflexiva – o que a literatura não

cessa de fazer – a questão “quem?” jamais desaparece completamente. Como nota Ricœur,

“como seria possível interrogar-se pelo que importa se não fosse possível perguntar a quem a coisa

importa ou não?”282. Ou seja, trata-se de uma crise interna à ipseidade em que se põe em cheque a

noção da pertença de minhas experiências vividas a mim mesmo. Mas é justamente aqui que se

revela o papel mediador da narratividade, capaz de conectar o quê do vivido ao quem sujeito que se

percebe vivente. Embora não tenhamos na Farsa nenhuma situação análoga a estas situações

277 Ibidem, p. 162. 278 RICŒUR, Paul. L’identité narrative. In: Esprit, jul-agost, 1988, n. 7-8. Trimestral. p. 302. 279 Nesse sentido, o filósofo pergunta-se: “Quem é ‘eu’, quando o sujeito diz que não é nada? Precisamente um “si mesmo” privado do recurso à identidade-idem.”. In: Ibidem, p. 302. 280 “A cada pessoa [a teoria] S dá por finalidade as conclusões que seriam as melhores para ele e que assegurariam a sua vida o melhor possível para ele. ”. In: PARFIT, Derek, op. cit., p. 3 apud RICŒUR, Paul, op. cit., p. 164, nota 1. 281 PARFIT, Derek, op. cit., p. 255 passim apud RICŒUR, Paul, op. cit., p. 156. 282 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 165.

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152

limítrofes, esta ligação do “quê” ao “quem” é um dos pontos centrais ao qual queríamos chegar,

tendo grande relevância para a figura do julgamento que analisaremos no final deste capítulo.

O argumento consiste em que a identidade pessoal, que solicita a narratividade, não

se deixa perceber plenamente senão na dialética entre idem e ipse. Ricœur o demonstra em dois

momentos. Primeiro, ao conjugar eventos dispersos na construção coerente de uma intriga, a

narratividade integra à permanência no tempo elementos que escapam à identidade-idem, quais

sejam, a diversidade, a variabilidade, a descontinuidade e a instabilidade. Segundo, dentro do

espaço das variações imaginativas próprio da ficção literária, Ricœur examinará casos nos quais a

dialética idem-ipse tende a levar ao limite a distinção entre os dois aspectos da identidade dos

personagens agentes, revelando o caráter problemático e dialético da identidade pessoal.

1.1. A dialética entre a construção da intriga e a construção do personagem

Em sua primeira abordagem da dialética idem-ipse na narrativa, Ricœur parte da

correlação entre a identidade da construção da intriga e a identidade da construção do

personagem283. No plano da construção da intriga, a identidade é compreendida como o processo

dinâmico no qual a exigência de concordância e a admissão de discordâncias se articulam. Em

termos mais amplos, a identidade da composição narrativa vem da síntese do heterogêneo: “entre

diversos eventos e a unidade temporal da história contada; entre os componentes díspares da

ação, intenções, causas e acasos, e o encadeamento da história; enfim, entre a pura sucessão e a

283 Vale lembrar que, aqui, identidade narrativa equivale a identidade do personagem. É de fato essa perspectiva que nos interessa, diferentemente de Ricœur que avança em direção da designação do sujeito agente responsável. Em termos visuais, paramos nosso percurso antes do fim da estrada: enquanto Ricœur avança do modelo narrativo da identidade (do personagem) para o momento final da identidade (da pessoa) construída através do momento narrativo, nós interrompemos a viagem no primeiro pedágio.

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153

unidade da forma temporal”284. Quem opera esta síntese é o ato poético configurante, que articula

o evento (matéria-prima do modelo de conexão próprio da narrativa) em seus aspectos de

instabilidade, na medida em que ameaça a concordância, e de estabilidade, enquanto assegura o

andamento da narrativa. Aqui revela-se um paradoxo da construção da intriga: ao cristalizar o

andamento de uma ação, ela inverte o efeito de contingência, incorporando de certo modo à ação

um efeito de necessidade ou de probabilidade exercido pelo ato configurante. O evento que

aparece como surpresa, ao termo transfigura-se em necessidade que se revela apenas na totalidade

temporal da narrativa concluída.

Mas somente ao passarmos da ação ao personagem é que tocamos o problema da

identidade, pois o personagem é quem executa a ação na narrativa. A tese de Ricœur é que “a

identidade do personagem se compreende pela transferência sobre ele da operação de construção

da intriga inicialmente aplicada à ação narrada; o personagem, diríamos, é ele mesmo colocado na

teia da intriga (mis en intrigue)”285. Para fundamentar sua afirmação, Ricœur voltar-se-á para a

narratologia, depois de lembrar que Aristóteles já sugere essa subordinação do personagem à ação

no plano poético. De fato, como vimos no capítulo precedente, a identidade dos personagens,

em Greimas, vem da progressão actante ator (papel) personagem. Assim, pois,

comentando a postura dos formalistas russos (especialmente Propp) e dos estruturalistas

(Bremond e Greimas), Ricœur analisa essa tentativa de estabelecer um laço lógico estrito entre

ação e actante. Conforme nota, já Propp encontrava certa dificuldade em, após identificar as

funções, justificar sua relação com os personagens – ele o fará recorrendo ao conceito de “esferas

de ação” identificadas aos personagens, que podem incluir uma ou mais funções.

284 RICŒUR, Paul, op. cit., p. 169. Ricœur prossegue no mesmo parágrafo: “Essas múltiplas dialéticas não fazem senão explicitar a oposição, presente já no modelo trágico segundo Aristóteles, entre a dispersão episódica da narrativa e a potência de unificação desenvolvida pelo ato configurante que é a poiesis ela mesma.” 285 Ibidem, p. 170.

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154

Em Greimas, nota Ricœur, esta correlação entre ação e identidade é ainda mais

arraigada, anterior mesmo à constituição do personagem286. Esta postura radicaliza-se tanto do

lado dos actantes (construídos sobre as categorias do desejo, da comunicação e da ação

propriamente dita) quanto do lado do percurso narrativo (quando define, no plano mediano entre

as estruturas profundas e o plano figurativo, a noção de relação polêmica que se instaura entre dois

programas narrativos rivais e convergentes, manifestando que ação é interação).

Em todos esses casos, porém, trata-se da convergência entre a descrição da ação de

um personagem e a construção do seu caráter, na medida em que toda construção de uma intriga

procede de uma gênese mútua entre o desenvolvimento do caráter e da história narrada. Assim, a

estrutura narrativa “reúne os dois processos de construção da intriga: o da ação e o do

personagem. [...] Narrar, é dizer quem fez o quê, porquê e como, organizando no tempo a

conexão entre estes pontos de vista”287.

Nesse ponto, Ricœur observa que se chega a uma solução poética ao problema da

ascrição, ou seja, da relação de atribuição de uma ação a uma pessoa, contra as aporias a que

chegara Kant no registro filosófico. Se tal réplica poética pode ser discutida em outro jogo de

linguagem, no campo da literatura ela nos servirá adiante plenamente.

1.2. A dialética idem-ipse em funcionamento na experiência literária

Em sua segunda abordagem da relação idem-ipse, Ricœur observa que, da correlação

entre ação e personagem, resulta uma dialética interna a este:

286 É por esta razão que o narratólogo fala em actante, não em personagem, “a fim de subordinar a representação antropomórfica do agente a sua posição de operador de ações sobre o percurso narrativo”. In: Ibidem, p. 173. 287 Ibidem, p. 174.

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155

A dialética consiste em que, segundo a linha da concordância, o personagem tira sua singularidade da unidade de sua vida considerada como a totalidade temporal ela mesma singular que o distingue de todo outro. Segundo a linha da discordância, esta totalidade temporal é ameaçada pelo efeito de ruptura dos eventos imprevisíveis que a pontuam (encontros, acidentes, etc.); a síntese concordante-discordante faz que a contingência do evento contribua para a necessidade de certo modo retroativa da história de uma vida, à qual se iguala a identidade do personagem. Assim, o acaso é transmutado em destino. E a identidade do personagem que nós podemos dizer colocada na teia da intriga (mis en intrigue) não se deixa compreender senão sob o signo dessa dialética.288

Não há distinção entre a identidade e uma entidade abstrata separada de seu vivido,

contra a qual reagia Parfit. Recordemos mais uma vez a posição de Anne Ubersfeld, que reagia

contra uma tendência a tratar o personagem como uma substância autônoma em relação à sua

construção. Mas já podemos compreender melhor de que modo a identidade de uma história

narrada é que faz a identidade do personagem. A identidade narrativa, com sua dialética própria

de concordância e discordância, inscreve-se entre os pólos da permanência no tempo que são a

“mesmidade” do caráter e a ipseidade da permanência do si mesmo. Aparece aí novamente sua

função mediadora, especialmente através do que Ricœur denomina variações imaginativas289,

situações às quais a narrativa submete a problemática da identidade, constituindo este aspecto um

elemento central da inteligência narrativa. Mais ainda, “nesse sentido, a literatura demonstra ser

um vasto laboratório para experiências de pensamento nas quais são submetidas à prova da

narrativa os recursos de variação da identidade narrativa”290.

Ricœur observa que a literatura, de fato, varia de momentos nos quais aparecem

personagens facilmente identificáveis e reidentificáveis como “mesmo”, nos quais os elementos

idem e ipse da identidade parecem se confundir, a outros momentos em que a distinção é levada ao

limite. É o caso, por exemplo, dos romances de fluxo de consciência, onde aparentemente a

288 Ibidem, p. 175. 289 Ricœur dirá mais tarde, comentando o pensamento de MacIntyre, que “é na ficção literária que a ligação entre a ação e seu agente se deixa melhor apreender, e que a literatura demonstra ser um vasto laboratório para experiências de pensamento onde esta junção é submetida a variações imaginativas sem número”. In: Ibidem, p. 188. 290 Ibidem, p. 176.

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156

relação se inverte e a intriga parece depender do personagem. Escapando ao controle da intriga,

este tipo de identidade põe à prova a dialética da identidade narrativa, como nos “casos-

enigma”291. Nesses casos, no entanto, a crise de identidade pode ser compreendida como a perda

da referência de uma identidade-idem, causando um fechamento do personagem na esfera da

reflexividade inativa e dando origem a uma crise da conclusão da narrativa. De fato, o ponto final

de uma narrativa, quando não orientado pelo encadeamento de uma ação cuja necessidade deixa-

se perceber no “depois”, desemboca no fim aleatório no qual a continuação da história é aludida.

Em todo caso, a literatura revela-se como um espaço onde a experimentação, o sonho e os jogos

com a identidade exploram os limites do possível, sem jamais escapar da dialética inerente à ação,

estando ligada a ela pela mimesis enquanto processo.

1.3. Função-chave da identidade narrativa e suas implicações éticas

Enfim, é neste ponto em que se revela o papel-chave da identidade narrativa nas

fronteiras entre as mimesis I e II, e entre as mimesis II e III. No primeiro caso, parte-se da estrutura

do agir humano cujas leis próprias condicionam sua representação, seja enquanto agente ou como

paciente, e do conjunto simbólico no qual a construção da representação é inscrita. Nesse estágio,

dá-se uma certa precedência da ação sobre o agente, no que podemos notar um certo paralelismo

entre o percurso da mimesis I, II e III e a tríade descrever-narrar-prescrever. A descrição da ação

inaugura a narrativa, modelando progressivamente o personagem à medida que narra seu agir-no-

291 Ricœur distinguirá, porém, as variações imaginativas da literatura em geral, das de ficção científica, quanto ao tratamento da dimensão corporal. Esta seria o invariável da literatura convencional que é transgredido pela ficção científica. No entanto, ainda que se pretenda eliminar a dimensão terrestre, alguma forma de condição corporal permanece necessária, fazendo novamente aparecer o problema da identidade em seu funcionamento dialético.

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157

mundo e em interação com outros. É como se o momento da passagem da primeira etapa do

processo ao segundo se desse progressivamente a partir do momento em que as primeiras linhas

são escritas, quando os primeiros vestígios da história, com seu maior ou menor domínio do

campo conceitual do agir humano, começam a soprar vida nas narinas dos personagens. Vemos

no ato da escritura o momento dessa passagem progressiva entre a mimesis I e II. E nessa

passagem, é a questão da identidade que está em jogo: a identidade da história, da qual se destaca

a identidade de certos personagens.

No segundo caso, a passagem da mimesis II à III corresponde à entrada progressiva

numa forma de julgamento da ação análogo ao ato interpretativo, no qual o elemento

propedêutico à ética manifesta-se de modo mais evidente. Identificamos o momento dessa

passagem como o ato de leitura. Não se trata, aqui, de medir o alcance da recepção, tarefa de

difícil execução e inútil para nossa análise. Trata-se de ver como o ato de leitura instaura um

processo – o processo de interpretação – no qual um elemento judicativo nos leva ao elogio ou à

condenação de certas atitudes292. O prazer da leitura consiste, em grande parte, na exploração

desses limites, muitas vezes impossível na realidade. Mas é essencial ressalvar a natureza

propriamente literária, poética desse julgamento, que, se possui ligações com o agir humano real

(campo da ética), não é senão através da imaginação produtiva, em caráter propedêutico,

preliminar, antecipatório e não-determinante com relação ao agir real. Ao falar sobre o prazer

estético da literatura, Ricœur deixa clara essa situação de distinção sem separação desses dois

campos, a literatura e a ética:

292 Ricœur afirma claramente a relação de implicação entre poética e ética: “Que a função narrativa não seja sem implicações éticas, o enraizamento da narrativa literária no solo da narrativa oral, o plano da prefiguração da narrativa já o deixa entrever. Em seu famoso ensaio sobre “o narrador”, W. Benjamim lembra que, sob sua forma mais primitiva, ainda discernível na epopéia e já em via de extinção no romance, a arte de narrar é a arte de trocar experiências; por experiências, ele entende não a observação científica, mas o exercício popular da sabedoria prática. Ora, essa sabedoria prática não deixa de comportar apreciações, avaliações que caem sob as categorias teleológicas e deontológicas [...]; na troca de experiências que a narração opera, as ações não deixam de ser aprovadas ou desaprovadas e os agentes de serem elogiados ou contestados.”. In: Ibidem, p. 194.

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158

Pode-se dizer que a narrativa literária, no plano da configuração narrativa propriamente dita, perde suas determinações éticas em benefício de determinações puramente estéticas? Seria mal compreender a própria estética. O prazer que nós desfrutamos em seguir o destino dos personagens implica certamente que nós suspendamos todo julgamento moral real ao mesmo tempo que nós colocamos em suspenso a ação efetiva. Mas, no recinto irreal da ficção, nós não deixamos de explorar novas maneiras de avaliar ações e personagens. As experiências de pensamento que nós conduzimos no grande laboratório da imaginação são assim explorações conduzidas no reino do bem e do mal. Transvalorizar, ou mesmo desvalorizar, ainda é avaliar. O julgamento moral não é abolido; ele é submetido às variações imaginativas próprias à ficção.293

Na passagem do segundo para o terceiro momento da mimesis, o texto abre para o

leitor um espaço no qual a experiência de descoberta é o traço distintivo. Nesse diálogo com o

texto, trata-se da descoberta de um novo mundo, do mundo criado pelo texto.

Tocamos, enfim, o cerne de nossa pesquisa, através do tema da identidade narrativa.

É com base nesse material teórico que iremos analisar a inter-relação entre os dois protagonistas

da Farsa, voltando ao tema da construção de ambos como personagens, mas concentrando-nos

no modo como os dois interagem. Acompanhando a figura do herói e do narrador, veremos

como a figura do julgamento, imagem situada dentro do texto, mimetiza o que se passa no

próprio ato de leitura, fazendo funcionar o “laboratório” ético-literário. De modo mais explícito,

enquanto intérprete da ação e na medida em que convida explicitamente o leitor (e o público) a se

posicionar diante dos acontecimentos, Manuel Carpinteiro instaura uma forma de julgamento

(inspirado do julgamento apocalíptico) que permanece de certa forma aberto, abrindo a peça para

uma continuidade possível no pólo da mimesis III. É nessa figura literária, correspondente à

estrutura profunda da peça e coerente com as formas literárias amalgamadas pelo autor, que

aparece de modo mais explícito a relação dialética entre forma estética e conteúdo ético.

293 Ibidem, p. 194.

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159

2. Manuel e Simão em processo: a construção das identidades na Farsa

Para fundar essa nossa afirmação e para alcançarmos uma maior clareza do tipo de

relação que se estabelece entre os dois protagonistas, voltemos ao processo de construção das

identidades de Manuel Carpinteiro e de Joaquim Simão. Retomando alguns pontos tratados nos

capítulos precedentes, enriquecê-los-emos com novas observações, sobretudo a partir dos

elementos do caráter obtidos através da análise do discurso desses personagens. Optamos por

analisar os dois processos separadamente, destacando a interação sempre que necessário, para

depois concentrar nossa atenção sobre o tipo de julgamento que se estabelece em torno à ação do

poeta.

2.1. Como se faz um poeta preguiçoso

A construção do personagem Joaquim Simão manifesta a habilidade de Ariano

Suassuna em manipular materiais de fontes muito diversas, alguns retirados da cultura nordestina

e outros inéditos, como vimos no primeiro capítulo. Neste plano, correspondente à passagem da

mimesis I à mimesis II, a coerência do personagem mascara sua filiação a personagens tão distintos

como o “cantador” Simão de O homem da vaca e o palhaço Tirateima de O rico avarento, diversidade

que não compromete a identidade idem de Simão. Já havíamos tocado neste ponto no início do

terceiro capítulo, retomando as conclusões do capítulo primeiro sob a ótica da mimesis I. O que

faremos agora é buscar uma melhor compreensão da natureza desse personagem, que nos

aparecerá mais claramente com a explicitação do processo de construção de sua identidade

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160

narrativa, que opera a mediação entre o “quê” de sua ação e o “quem” de sua personalidade

literária. Não detalharemos os aspectos já considerados na análise das fontes e na abordagem

actancial. Voltaremos nossa atenção para o plano simbólico, sobretudo, que, no caso de Simão,

significa verificar as conseqüências para seu caráter de sua vinculação ao tipo anti-heróico,

analisando em que medida esta categoria pode ser aplicada ao poeta. A fim de melhor pôr em

evidência a construção da intriga e a construção do personagem, consideraremos a progressão do

texto e a descrição das “disposições duráveis” (caráter) de Joaquim Simão.

Na Farsa da boa preguiça, o poeta Joaquim Simão é mencionado pela primeira vez já na

terceira fala, na boca de Manuel Carpinteiro que o apresenta simplesmente como pobre e

poeta294. Mas imediatamente intervém Miguel Arcanjo, qualificando o poeta de preguiçoso e de

leviano295. Simão Pedro defende o poeta, acusando o anjo de jamais haver trabalhado. Assim, já

nas sete primeiras falas estão dadas as cartas: de um lado o anjo, do outro o santo, no meio

Manuel Carpinteiro e, diante de todos, o poeta cuja preguiça é contestada. Devemos notar, no

entanto, que a caracterização de Joaquim Simão como poeta já prepara o leitor (e o espectador)

para acolher um comportamento menos afeito ao trabalho, segundo o estereótipo do poeta

difundido na cultura hodierna, do qual dá testemunho uma das definições do termo: “Aquele que

devaneia ou tem caráter idealista”296. Mas o qualificativo é ambíguo, pois esta definição um tanto

negativa do termo convive com significados positivos. Esta ambigüidade do termo, porém, é

apenas mais um elemento que reforçará a ambigüidade ética de Joaquim Simão, dificultando a

passagem da ação à imputação, como veremos.

É a atitude preguiçosa que é questionada pelos personagens celestes. Mesmo Miguel,

que se opõe a Simão, contesta não o personagem, mas uma atitude que ele julga viciosa. De fato,

294 Cf. SUASSUNA, Ariano Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 6. 295 “Miguel Arcanjo: O tal do Joaquim Simão/ é um poeta preguiçoso,/ que, detestando o trabalho,/ vive atolado e ainda tem coragem/ de se exibir alegre e animoso”. In: Ibidem, p. 6. 296 Poeta. In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Eletrônico -século XXI. (CD-rom). Versão 3.0. Rio de Janeiro, Nova Fronteira e Lexicon Informática, 1999.

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161

a discussão entre os personagens celestes irá destacar a ambivalência que pode haver tanto na

preguiça quanto no trabalho. A questão toda será de saber qual a natureza da preguiça do poeta.

E é com a finalidade de “ver e apurar” este ponto que Manuel Carpinteiro convocará a ação, o

que nos remete diretamente à tríade descrever-narrar-prescrever. A análise da construção do

personagem-narrador revelará, de fato, como sua função é conduzir esta progressão mimética que

culminará com a situação judicativa. Mas já podemos observar como, desde o início, estabelece-se

o perfil de Joaquim Simão sob o olhar atento dos personagens celestes, sob a conduta de Manuel

Carpinteiro.

Daí por diante, ao longo dos atos um e dois, Joaquim Simão é apresentado de modo

extremamente ambíguo, que nos leva quase a concordar com Miguel Arcanjo. Ele é pobre, mas

não luta por uma melhor condição de vida para si e, o que é pior, para a família. Recusa diversas

propostas de trabalho feitas por sua esposa, mas deixa-se levar pelos encantos de Dona Clarabela,

esposa de Aderaldo. Jamais demonstra preocupar-se convenientemente com os filhos. Nesse

contexto, o maior trunfo em favor de Simão parecem ser seus aliados: sua esposa, que se mantém

não apenas fiel, mas também defensora do esposo, e o apoio de Simão Pedro. A estes, associam-

se como elementos favoráveis a pobreza, circunstância atenuante do comportamento de Simão, e

o contraste com o vício oposto de Aderaldo, ávido por trabalho e riqueza.

A reviravolta da passagem dos atos dois e três leva este perfil ambíguo de Simão para

o lado negativo. Ao enriquecer, o poeta assume traços de Aderaldo, deixando-se levar pelo

“espírito da riqueza”297 e traindo Nevinha. Neste ponto encontramos um dos elementos fortes da

descontinuidade da identidade de Simão, cuja traição manifesta uma ruptura na permanência do si

mesmo. E caso a peça terminasse aí, o poeta certamente não ganharia o apoio dos personagens

celestes. É neste momento, no entanto, que o personagem ganha mais profundidade, revelando

um certo traço de reflexão por sua capacidade de voltar atrás, com a ajuda de Manuel Carpinteiro

297 SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 115.

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162

que empobrece o poeta. Ou seja, ele sai vitorioso e purificado da prova. Esta mudança de atitude

é indicada por uma situação inusitada para um poeta, quanto mais para um poeta preguiçoso: ele

pede trabalho. Daí por diante, apenas aspectos positivos são atribuídos a Simão. Ao se aproximar

da casa de Aderaldo para pedir emprego, por exemplo, ele defenderá sua mulher do rico que

havia tentado seduzi-la no primeiro ato:

Simão (a Nevinha) – (...)Por outro lado, depois do que você me contou de Seu Aderaldo, eu não quero expor você às safadezas daquele safado!298

E, se é verdade que Simão entra e sai da peça sem deixar seu bordão (“Ô mulher, traz

meu lençol, que eu estou no banco, deitado!”), sua preguiça parece enfim estar mais próxima do

ócio criativo. E o que caracteriza esta atitude como boa parece ser justamente a criatividade,

reflexo da criatividade de Deus, que “criou tudo o que cria”299. Simão afirma que agirá assim. Mas

a ambigüidade volta a fazer seu ninho na sua última fala na peça:

Carregar pedra é pra jumento! O que eu vou fazer É escrever três folhetos arretados, Três folhetos chamados “O Peru do Cão Coxo”, “A Cabra do Cão Caolho” e “O Rico Avarento”. Vendo tudo e é da vez que fico rico! Rico e desocupado, Vivendo só de escrever, De tocar e de cantar!300

De fato, a menção de folhetos com os nomes dos atos da própria peça pode até ser

considerada um indicativo do sucesso que Simão promete. Mas o sonho de riqueza e de uma vida

sem trabalho, ou com pouco trabalho (indicado pela partícula “só”, na expressão “vivendo só de

escrever”) é muito ambíguo para afastar totalmente as suspeitas de um comportamento negativo

298 Ibidem, p. 118. 299 Ibidem, p. 181. 300 Ibidem, p. 177 (grifos nossos).

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163

do poeta. Convém, portanto, perguntar-nos se o poeta não poderia ser caracterizado como anti-

herói e, em caso afirmativo, em que termos.

2.1.1. Simão, o anti-herói?

Em texto de 1964 sobre A Pena e a Lei, de Ariano Suassuna, Sábato Magaldi afirma

que “no gosto de pintar seres frágeis e pecadores, Ariano Suassuna se liga a uma das

características da ficção moderna, nutrida de preferência pelo anti-herói”301. Embora o crítico trate

de um texto específico, não hesita em alargar o horizonte de sua afirmação para incluir esta

característica como um traço estilístico do autor, presente em outras obras. Para entender a

afirmação, convém ressaltar a dupla antítese que compõe o significado da categoria genérica de

“anti-herói”. O prefixo “anti”, de fato, indica uma definição pela negativa, que deve ser entendida

em duas direções: de um lado, temos a antítese entre herói cômico e herói clássico; do outro, a

antítese entre herói clássico e herói moderno. As matizes contidas nesta categoria, dentro do

universo anti-heróico, esclarecem ainda mais o perfil ambíguo do protagonista da Farsa da Boa

Preguiça.

A primeira e mais antiga antítese contrapõe o herói clássico (trágico ou épico) ao

herói cômico. A hipótese é que, na própria definição do herói cômico, estaria algum elemento

anti-heróico, tomando o termo em sentido lato. Ou seja, tal idéia de antítese do heroísmo trágico

estaria presente na essência do herói cômico.

Convenciona-se chamar de herói clássico aquele personagem, trágico ou épico,

herdado da antiguidade grega e possuidor de uma virtude extraordinária, quase sempre fruto de

301 MAGALDI, Sábato. Moderna dramaturgia brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 72.

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164

uma origem divina. Tal virtude será provada numa série extraordinária de peripécias, cujo

desenlace poderá ser negativo sem que isso abale a qualidade especial do herói.

O tipo de herói clássico grego influenciará diretamente os poetas latinos e, com eles,

toda a era medieval. Não foi por acaso que Dante escolheu Virgílio como guia de seu périplo no

outro mundo. Pouco a pouco, porém, vai-se acentuando o aspecto humano do herói. O herói

cavalheiresco, por exemplo, já não possui origem divina, embora seja diretamente ajudado pela

divindade e o tema da linhagem seja de extrema força, associado ao ideal de pureza. Galaaz, herói

de A demanda do Santo Graal302, recebe sua dignidade tanto de sua origem – filho de Lançalot, o

“melhor cavaleiro do mundo” – quanto de sua casta virgindade. Além disso, embora a

comunicação entre o mundo divino e o mundo humano seja intensa – idéia que se reforça com a

doutrina cristã da encarnação do Verbo –, a ação do herói será cada vez mais humana, sempre

ajudada pela divindade. O sentimento do sagrado, onipresente no herói cavalheiresco, reforçará

sua busca pelo maravilhoso e seu itinerário de aperfeiçoamento espiritual. O maravilhoso acaba

se tornando o ambiente onde este ideal heróico se realiza. Mas a virtude extraordinária do herói

será agora marcada pelo ideário cristão e pela honra. Diferentemente do herói clássico, resignado

diante da necessidade (ananké) e do destino (moira), o herói cavalheiresco encara o sofrimento e a

provação como ocasião de maior merecimento para a outra vida.

Não encontraremos em Simão nenhum vestígio de filiação nobre ou divina, pelo que

ele se distancia totalmente do padrão clássico de heroísmo, incluindo em seu perfil o aspecto

negativo da primeira antítese (herói cômico x herói clássico). No entanto, a influência medieval

sobre esta peça aparece também na comunicação entre homem e Deus. Simão é ajudado pela

esfera celeste na provação da qual se pode dizer que ele sai vitorioso (embora talvez não

completamente corrigido).

302 DEMANDA DO SANTO GRAAL, A. Trad. e notas de Augusto Magne. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1944. 3 vols.

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165

Mas em meio ao ideal do herói de cavalaria aparece Dom Quixote, o “cavaleiro da

triste figura” de Cervantes, que representa uma mudança radical na compreensão do herói na

cultura ocidental. O maravilhoso, também presente, não se encontra mais no exterior do

personagem, mas na interioridade do herói. Tal elemento maravilhoso ao mesmo tempo o incita a

agir e lhe perturba a ação. A partir de agora, como observa Lukács, “a existência subjetivamente

não apreensível e objetivamente afiançada da idéia transformou-se numa existência

subjetivamente clara e fanaticamente segura, mas despida de toda a relação objetiva” 303.

De modo mais amplo, Lukács observa que um novo tipo de herói aparece à medida

que a cultura ressente o abandono do mundo por Deus. Numa afirmação clássica, ele observa

que essa nova realidade “revela-se na inadequação entre alma e obra, entre interioridade e

aventura, na ausência de correspondência transcendental para os esforços humanos”304. Inaugura-

se assim a era do herói moderno, não mais ajudado nem coagido pelos deuses, obrigado a agir

sem qualquer apoio transcendental.

Simão não se enquadra completamente neste perfil, até mesmo porque sua existência

não é desvinculada do apoio divino como observamos. Mas o personagem terá aspectos de

“inadequação entre alma e obra” que o aproximam do cavaleiro, como o sonho de ficar rico que

sobrevive a todas as peripécias da Farsa305. Por este traço, Simão aproxima-se da categoria de anti-

herói no sentido da segunda antítese, ou seja, na passagem do heroísmo clássico para o heroísmo

moderno.

No entanto, o perfil cômico de Simão situa-o mais decididamente na contramão do

heroísmo clássico no sentido da primeira antítese (herói cômico x herói clássico). Segundo

303 Cf. LUKÁCS, George, “O idealismo abstrato”. In: ______. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000. p. 108. 304 Ibidem, p. 99 305 Segundo comentário do próprio autor, Ariano Suassuna, o poeta Simão “é um misto de Quixote e Sancho Pança”. In: SIMÕES, Eduardo. Suassuna defende sonho quixotesco na Flip. Folha de São Paulo, São Paulo, 11 jul. 2005. Folha Ilustrada, C.4.

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166

Aristóteles, de fato, “a comédia é [...] imitação de maus costumes, não, contudo, de toda sorte de

vícios, mas só daquela parte do ignominioso que é o ridículo. O ridículo reside num defeito e

numa tara que não apresentam caráter doloroso ou corruptor”306. Na comédia, portanto, os

homens são representados de modo inferior ao que na realidade são307. É precisamente nisso que

o herói cômico representa uma antítese do herói trágico. Talvez seja mais acertado dizer que o

herói cômico inverte o modo de representação do herói trágico, ambos tendo como parâmetro o

homem comum. De qualquer modo, o perfil do herói cômico não terá nada de superior. Ao

contrário, a sua comicidade pode estar precisamente em mostrar “como baixo o que pretende ser

não só alto, mas elevado, sem que aí necessariamente se mostre o baixo como elevado”308.

A exaltação do poeta por Nevinha no segundo ato obedece a esse princípio cômico

da pretensão, por exemplo. Ademais, Simão certamente enquadra-se na categoria do heroísmo

cômico por sua postura certas vezes ridícula, como ao rejeitar todas as propostas de Nevinha, ou

ao mascarar a massagem dada por Clarabela dançando xaxado. Esses seus traços, embora

viciosos, não são dolorosos. O aspecto vicioso, porém, ao se manifestar na extrema pobreza que

implica na falta de comida para ele e para sua família, tempera o ar cômico da peça.

Com isto tocamos um ponto relevante da peça de Suassuna, o da sua qualidade

cômica. Deixaremos para desenvolver esse tema no fechamento deste capítulo, pois a mistura de

elementos sérios e cômicos poderá ser melhor explicitada ao analisarmos a figura do julgamento.

Mas notemos desde já que a Farsa não induz a mesma qualidade de riso que outras peças de

306 ARISTÓTELES. Poética, cap. V, nn. 1 e 2 – grifos nossos. (As citações que seguem abaixo são extraídas da tradução de Antonio Pinto de Carvalho – Arte Retórica e Arte Poética. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.]). 307 “Como a imitação se aplica aos atos das personagens e estes não podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase só nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que as personagens são representadas ou melhores ou piores ou iguais a todos nós. (...) A mesma diferença distingue a tragédia da comédia: uma propõe-se a imitar os homens, representando-os piores, a outra melhores do que são na realidade”. In: Ibidem, cap. II, nn. 1 e 7. 308 ROTHE, Flávio, R. O Herói. São Paulo: Ed. Ática, 1985. p. 43. E o autor continua, exemplificando: “No início da comédia As Nuvens, de Aristófanes, o filósofo Sócrates (considerado na peça como um supremo sofista) aparece sentado numa cesta que paira bem no alto do palco, esperando-se que, com isso, ele tenha pensamentos mais elevados... Colocado, assim, num plano alto, ele é rebaixado, mas isto só ocorre porque ele é considerado “alto” por outros segmentos sociais”.

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167

Suassuna. Embora outras comédias do autor conciliem o riso frouxo com temas difíceis como a

morte e o julgamento (referimo-nos ao Auto da Compadecida e a A pena e a lei), aqui temos um

tratamento um pouco diferente, perceptível de modo mais claro na presença do imaginário

apocalíptico que comentaremos a seguir, a propósito de Manuel Carpinteiro. Esse tipo de mistura

sério-cômico, em nosso parecer, é semelhante à atmosfera do romance maior do mesmo autor, o

Romance da pedra do Reino. A proximidade entre a fala inaugural de Manuel Carpinteiro e um dos

textos centrais do romance já foi objeto de nossa consideração no capítulo terceiro. Mas qualquer

que seja o caso, o que nos importa adiante verificar não é tanto a origem, mas o significado desta

opção estética, que em nosso entender tem fortes implicações éticas.

2.1.2. Simão, herói neopicaresco

A aproximação da Farsa e do Romance da Pedra do Reino a partir da mistura sério-

cômico coloca-nos na pista de um outro paralelo, referente aos protagonistas do romance e da

peça. Trata-se da vinculação de ambos ao tipo picaresco. É Mario González quem nos indica o

caminho, ao incluir o Romance da Pedra do Reino entre os romances neopicarescos que analisa em seu

livro A saga do anti-herói309. Vale notar, porém, que esse aspecto já fora sugerido de certa forma por

Idelette Muzart, referindo-se à linhagem dos principais personagens cômicos de Suassuna:

Para compreender melhor o processo de recriação da personagem por Suassuna, parece necessário definir este tipo a partir de seu universo próprio. Em primeiro lugar, está Pedro Malasarte, o avô, o modelo (...). João Grilo é o segundo desta galeria (...). Cancão de Fogo parece ser o mais original e o mais brasileiro dos pícaros-malandros criados por Leandro Gomes de Barros.310

309 GONZÁLEZ, Mario M.. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. 310 SANTOS, Idelette Muzart F. dos. Em demanda da poética popular. SP: Ed. da Unicamp, 1999. p. 250-251. A aproximação dos personagens de Suassuna com o tipo pícaro também foi abordada por Mário Guidarini. (Cf.:

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168

Convém lembrar desde o início que o tipo pícaro não nasceu no teatro, podendo-

se falar, no entanto, de uma extensão da picaresca a este campo. Como observa Mario González,

o corpus original onde o pícaro é forjado é constituído pelo Lazarillo de Tormes, pelo Guzmán de

Alfarache e por La vida Del Buscón, romances espanhóis dos séculos XVI-XVII311. Portanto, a fim

de manter a distinção entre um tipo pícaro em sentido próprio (cujo lugar de nascimento é o

romance espanhol do período mencionado, sendo o romance de certa forma seu lugar

privilegiado de manifestação) e suas derivações, preferimos utilizar o adjetivo “picaresco” para

nos referirmos aos traços desse tipo cômico que realmente encontramos em Simão, personagem

da Farsa. Seguindo o raciocínio de González, devemos acrescentar, ainda, o sufixo “neo” para

caracterizar o poeta Simão. De fato, como observa o crítico, a retomada de certos aspectos do

romance picaresco espanhol num outro contexto exigirá uma reavaliação do uso do termo, com

modificações significativas do tipo pícaro:

[...]A maior diferença entre a picaresca européia e seu precedente espanhol está no diferente contexto social em que o pícaro é colocado agora: ele já não mais se espelha na aristocracia, mas tem como horizonte e modelo a burguesia emergente. Posteriormente, com a definitiva transformação desse contexto devido à instalação da burguesia num plano predominante, e com o aparecimento dos subprodutos do capitalismo que acabariam por se definir no Terceiro Mundo, a picaresca sofre uma profunda transformação. Por outro lado, desaparecerá, em muitos casos, a noção da existência de um modelo clássico. Ao mesmo tempo, a linguagem narrativa, com a superação do realismo do século XIX, sofrerá transformações que permitirão o uso de novas fórmulas para a picaresca. Tudo isso nos leva a falar em neopicaresca, como já outros o fizeram no mesmo ou em outros sentidos, para referirmo-nos a toda a abundante produção que, principalmente nos países ibero-americanos, pode ser lida à

GUIDARINI, Mário. Os pícaros e trapaceiros de Ariano Suassuna. São Paulo: Ateniense, 1992). Esta obra, no entanto, visa mais uma abordagem genérica da obra de Suassuna através dos personagens principais que um estudo detalhado da presença do tipo pícaro na obra do autor paraibano. 311 Cf. GONZÁLEZ, Mario M., op. cit, p. 19 passim. A esses três romances principais são acrescentados outros de menor importância, mas todos situados no contexto espanhol entre os séculos XVII e XVIII. O próprio Mario González alertará para os limites de sua abordagem: “Cabe outra advertência, no sentido de que conscientemente deixamos de lado dois universos vinculados à picaresca, por não fazerem parte do nosso objetivo de estudar as suas manifestações apenas no romance : um deles é o que chamamos de ‘picaresca popular’, povoada de heróis como Pedro Urdemales, Pedro Malazartes e outros, que faz parte, na verdade, do precedente da picaresca culta [...].Outro segmento que não consideraremos é o da existência de elementos picarescos em outras artes, como a pintura, o teatro ou o cinema”. (In : Ibidem, p. 262). Nosso interesse converge exatamente para este ponto ausente do estudo de González, do qual aproveitaremos as características da neo-picaresca para verificar sua aplicabilidade ao herói da Farsa.

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169

luz da picaresca clássica.312

Em outros termos, a referência à picaresca clássica (espanhola) é o ponto de

referência original de uma corrente posterior que a ela se vincula, mas com modificações

significativas. A fim de entender melhor a inovação introduzida pela neopicaresca, porém, é

necessário esclarecer os principais traços da picaresca tradicional.

Em primeiro lugar, González apressa-se em desvincular-se do sentido comum do

termo “picaresco”, tal como definido nos dicionários onde é relacionado, por exemplo, aos

termos “burlesco”, “ridículo” e, às vezes, “picante”. A definição que ele propõe é muito mais

precisa, concentrada no romance picaresco clássico que é o lugar de nascimento da picaresca.

Essa opção o faz partir do corpus original espanhol, mas com uma definição abrangente o

suficiente para incluir a retomada da forma nos séculos seguintes. Ele dirá, assim, que “nossa

noção de romance picaresco se apóia num tripé: o anti-herói denominado pícaro, seu aventureiro

projeto de ascensão social pela trapaça e a sátira social traçada na narração desse percurso”313. De

modo ainda mais preciso, o romance picaresco será definido como

a pseudo-autobiografia de um anti-herói, definido como marginal à sociedade, o qual narra suas aventuras, que, por sua vez, são a síntese crítica de um processo de tentativa de ascensão social pela trapaça e representam uma sátira da sociedade contemporânea do pícaro, seu protagonista.314

Ao propor uma definição mais precisa da picaresca, González nota que a precisão

conceitual não foi objeto de preocupação da maior parte da crítica interessada na picaresca.

Apesar disso, ele identifica alguns traços constantes da picaresca apontados pelos críticos, que são

a presença do pícaro, a forma auto-biográfica, o aspecto anti-heróico do pícaro e a crítica social

312 Ibidem, p. 261. 313 Ibidem, p. 18. 314 Ibidem, p. 263.

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170

da narrativa picaresca315. Dentre os críticos analisados por González, porém, Claudio Guillén se

destaca como o único a tentar uma definição estrita do termo316. Apesar de muito rígida, a

definição de Guillén ilumina certos aspectos do tipo. É sobre ele que concentrar-nos-emos,

sendo o principal ponto de intercessão entre o romance picaresco e os elementos picarescos na

peça que estudamos.

Em primeiro lugar, o tipo pícaro “se diferencia do vagabundo, do bufão, do

despossuído e do delinqüente histórico [...]. Ele é, antes de mais nada, um órfão que, solitário,

deve-se valer por si mesmo, num meio para o qual ele não está preparado e acabará sendo um

semimarginal”317. Mas o pícaro é também aquele que se movimenta verticalmente na sociedade (e

horizontalmente no espaço), oferecendo uma visão “reflexiva, filosófica, crítica no terreno moral

ou religioso”318. Sua visão permite, ainda, uma sátira social por sua visão de certas condições

sociais do mundo em que vive. Acrescente-se a isso que o pícaro é muitas vezes o pivô em torno

do qual articulam-se uma série de episódios que compõem o romance picaresco319.

Antonio Candido, descrevendo o tipo pícaro em seu famoso artigo “Dialética da

malandragem” 320, destacará alguns aspectos semelhantes aos de Guillén, como origem humilde e

um tanto suspeita, vida levada sem grandes previsões, o temperamento amável e espontâneo

associado a uma certa confiança numa forma de destino que rege a sua conduta, a ausência de

315 Cf. Ibidem, p. 247-248. 316 Cf: GUILLÉN, Claudio. Toward a definition of the picaresque. Third Congress of the International Comparative Literature Association. Gravenhage, Mouton, 1962. p. 71-106. (Apud GONZÁLEZ, Mario M., op. cit, p. 225). 317 GONZÁLEZ, Mario M., op. cit, p. 226. 318 Ibidem, p. 226. 319 “O romance picaresco é estruturado mediante a seriação dos episódios que, aparentemente, não têm outro elo comum a não ser o herói’. In: Ibidem, p. 227. 320 CANDIDO, Antonio. Dialética da Malandragem. In: ______. O discurso e a cidade. SP: Duas Cidades, 1993. p. 20 passim. Nesse artigo, em que o crítico traça o paralelo entre o tipo pícaro clássico e o tipo malandro, a descrição do tipo pícaro é elaborada com referência às obras de Frank Clandler (CHANDLER, Frank W. Romances of roguery: an episody in the history novel. In two Parts. Part I, The picaresque novel in Spain. Nova York:[s.e.], 1899) e Ángel Valbuena Prat (PRAT, Ángel V. La novela picaresca española. Madrid: Aguilar, 1943), como nota Antonio González (cf.: GONZÁLEZ, Mario M., op. cit., p. 284). Embora não concorde com o procedimento compilatório de Candido, nem com a seleção de autores de referência do crítico, González irá concordar com ele quanto à não filiação de Memória de um sargento de milícias à picaresca, vendo nesse romance precisamente o que González denominará de neopicaresca como “o desenvolvimento de um processo análogo [no Brasil] ao acontecido na Espanha dos Áustrias”. In: Ibidem, p. 286.

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171

sentimentos que o tornam apto a acomodações, tolice e esperteza, aspecto satírico ou de crítica

social.

Curioso notar que, dentre os protagonistas das peças cômicas mais longas de

Suassuna, Simão é justamente o menos esperto. Pelo contrário, seu perfil aproxima-se do tolo, ao

menos na cena das trocas em que sai perdedor. Assim sendo, sua visão não tem nada de

filosófico, nem de reflexivo. Não se pode dizer, também, que Simão seja um solitário. Além da

ajuda celeste, Simão encontrará um apoio constante em Nevinha. O temperamento de Simão não

é propriamente amável. Basta recordar seu costume de comparar pessoas a animais, como vemos

no início do primeiro ato321. Enfim, o projeto de ascensão pela trapaça não pode ser atribuído a

Simão, que parece estar mais preocupado com a manutenção da sua preguiça que em ascender

socialmente. A tirar por esses pontos, Simão afasta-se do tipo pícaro tradicional.

Mas outros aspectos estarão fortemente presentes na construção da identidade de

Simão e que permitem aproximá-lo da picaresca. A confiança na “Fortuna”322, a acomodação, o

temperamento espontâneo, sua condição humilde e quase marginal (especialmente no início do

terceiro ato, quando aparece mendigando emprego), seu programa de vida sem projetos e seu

comportamento satírico (em relação a Clarabela e a Aderaldo, por exemplo, que acaba se

estendendo como uma crítica ao capitalismo desenfreado) são alguns exemplos. Um aspecto

formal que o aproxima do pícaro é a importância do poeta para a articulação de diversos

episódios que se sucedem na peça, embora não seja ele o único nem o principal fator de

integração da intriga da Farsa. A movimentação de Simão – tanto vertical, na sociedade, quanto

321 “Simão: [...] Andreza parece um bicho,/ um desses bichos malignos,/ uma mistura de cobra,/ morcego e sapo hidrofóbico! Andreza: E sua mãe, com que parece? Nevinha: Dona Andreça, não se zangue!/ Simão tem essa mania de achar gente parecida com bicho!”. (In: SUASSUNA, Ariano Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 19-20). O procedimento se repetirá pouco adiante, entre Simão e Aderaldo. (Cf.: Ibidem, p. 31). 322 “Simão: Trabalhar, cansa e dói muito,/ coisa que não me convém./ Se a Fortuna nos quiser,/ de qualquer modo ela vem!” in: SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 81-82.

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172

horizontal, como retirante – completa o quadro do parentesco do personagem com o tipo

picaresco.

O que mais nos interessa, no entanto, é verificar a modificação do tipo pícaro pela

neopicaresca. Comentando a situação de Leonardo, protagonista de Memória de um sargento de

milícias, um dos romances que González situa na neopicaresca, este autor notará que sua situação

não é mais definida em relação à nobreza, mas sim em relação à pequena burguesia:

Seu problema será afirmar-se nela ao menor custo possível, já que ele nasce vadio e será sempre vadio. Estão ausentes, assim, na sua visão da realidade, os universos do trabalho e da nobreza. Estes foram fundamentais para o pícaro, que aspirava a prescindir do primeiro para atingir o segundo.323

De modo ainda mais explícito, González dirá que:

Na neopicaresca – salvo exceções em que a fábula é situada em outro contexto histórico –, a linha divisória não mais passa entre a nobreza e o terceiro estado, mas entre a burguesia e o proletariado. Os neopícaros são, em geral, marginais àquela por pertencerem a este. E, além disso, ocupam muitas vezes posições claramente inferiores dentro desse grupo. Isto é, os malandros em questão tendem a ser marginais absolutos, com relação à sociedade como um todo, em função do sistema vigente.324

Suassuna parece escapar em parte dessa característica, tanto pela pretensão

nobiliárquica do protagonista do Romance da Pedra do Reino, quanto pela dificuldade em enquadrar

o poeta Simão como “marginal absoluto”, ou definí-lo em relação ao proletariado. Sobre este

último ponto, o fato de a peça situar-se no campo parece interferir na caracterização (note-se que

a picaresca é em geral situada nas cidades325). Mas Simão é realmente marginal em relação ao meio

em que vive: tanto em relação ao modelo capitalista que interfere no campo (presente na peça

323 GONZÁLEZ, Mario M., op. cit., p. 288. 324 Ibidem, p. 340. Note-se que o uso do termo “malandro” por González denuncia sua dívida para com Antonio Candido. 325 “A cidade é o espaço das relações humanas adequadas e até necessárias para a picaresca. [...] Fora da cidade, o pícaro desaparece, a menos que esteja indo de uma cidade para outra”. In: Ibidem, p. 74.

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173

pela proposta dos “galegos” a Aderaldo326), seja em relação ao próprio modelo rural, uma vez que

jamais é sugerida qualquer atividade de Simão como agricultor.

Mas é, sobretudo, a relação com o trabalho que nos interessa. De fato, a negação do

trabalho é um dos elementos centrais da caracterização do personagem Joaquim Simão, sendo

este um dos traços marcantes da neopicaresca como observa González:

Os romances brasileiros que ora consideramos, mesmo que em outro contexto sócio-econômico, situam-se, segundo nos parece, na mesma linha de rejeição do trabalho por parte dos seus protagonistas. No máximo, algum tipo de subemprego é aceito como meio de sobrevivência, mas em nenhum caso o trabalho é valorizado como recurso válido para se atingirem degraus sócio-econômicos mais elevados.327

Este parece ser um traço que Joaquim Simão compartilha perfeitamente com a

neopicaresca. Mas há uma ressalva. Na Farsa da boa preguiça simplesmente não há interesse em atingir

níveis sociais mais elevados por parte do protagonista. Mesmo quando chega a ficar rico, isto

acontece a Joaquim Simão por pura sorte ou pela astúcia de Nevinha, sem que haja planejamento

algum em vista disso. Ou seja, se a negação do trabalho em geral pelo romance neopicaresco pode

ser entendido como um descrédito de que o trabalho possa servir para melhorar as condições de

vida das pessoas, a negação do trabalho na Farsa funciona especialmente como uma crítica ao

modelo que coloca a obtenção da riqueza como valor maior.

Outro aspecto da neopicaresca presente também na Farsa, ainda que de modo

secundário, é um certo erotismo328, quase sempre associado na peça aos personagens Aderaldo e,

sobretudo, a Clarabela. A proposta de uma utopia, ainda, é outro elemento da neopicaresca que

podemos identificar na obra de Suassuna. Segundo González, “a permanente duplicidade do

protagonista que leva adiante um projeto pessoal de ascensão social escorado numa mitologia de

326 Cf. SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 28. 327 GONZÁLEZ, Mario M., op. cit., p. 346. 328 “Os neopícaros brasileiros que nos ocupam herdam, em muitos casos, o erotismo onipresente em Macunaíma”. In: Ibidem, p. 350.

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caráter ficcional é um traço marcante de A Pedra do Reino”329 Embora este elemento seja mais

claramente identificável no romance do que na peça, a Farsa da boa preguiça também recebe seu

influxo, cujos vestígios podem ser encontrados na defesa de uma “preguiça de Deus” por parte

dos personagens celestes, no final da peça. A estas características, finalmente, devemos

acrescentar a ausência de maniqueísmo que reforça a ambigüidade da peça. Segundo este ponto,

“o bem e o mal são rótulos que, às vezes, são trazidos de fora até o universo dos protagonistas,

mas que não partem da consciência destes”330. Tal parece ser o caso do poeta, para o qual não há

preocupação quanto ao caráter vicioso ou virtuoso de sua atitude. Tal reflexão acontecerá fora

dele, no âmbito dos comentários feitos pelos personagens celestes. O poeta simplesmente adere

aparentemente à atitude apontada como virtuosa, no final da peça.

A presença de elementos picarescos na construção do perfil de Simão, devemos

concluir, só reforça a ambigüidade desse personagem. A esfera simbólica à qual ele se liga, de

fato, não induz uma atitude admirativa ou um julgamento positivo de seu agir. Se, por outro lado,

algumas atitudes e projetos do poeta caracterizam-no positivamente, a conseqüência de tal

procedimento parece ser não a elevação do personagem, mas o aumento de complexidade do

juízo feito sobre ele. Seus elementos negativos (inação, defeitos, etc.) servem mais ao riso positivo

que ao sarcasmo, mais à defesa de um programa de vida do que à crítica de caráter. E se há,

enfim, uma oposição constante no texto, esta refere-se à refutação de um modo de vida que

exclui o prazer em função da acumulação de riqueza.

329 Ibidem, p. 354. 330 Ibidem, p. 349.

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2.2. Deus demasiado humano: o processo de construção de Manuel Carpinteiro

São muitos, portanto, os elementos que tornam a figura de Joaquim Simão ambígua.

Mas esta descrição do poeta, que determina sua interação como os outros personagens, não é

suficiente para descrever o protagonismo complexo em funcionamento na Farsa da boa preguiça. Já

observamos como a posição “sujeito”, no modelo actancial, atribuída ao ator “poeta” que

incluímos no personagem Joaquim Simão, determina toda uma rede de relações em torno ao eixo

ativo “poeta” “Boa Preguiça”. Poderíamos detalhar melhor esta rede de interações,

verificando como as características ambíguas de Joaquim Simão levam mesmo os personagens

que se inscrevem na casa “adjuvante” a mencionar um juízo negativo sobre Simão, embora não

de forma condenatória331. Deixamos de lado esta pista, no entanto, para nos concentrarmos em

sua relação com o protagonista do plano celeste. É em torno deles dois, de fato, que poderemos

compreender melhor que tipo de julgamento se estabelece em torno ao poeta, conduzido por

Manuel Carpinteiro. Para tanto, será necessário proceder à análise da construção da identidade de

Manuel Carpinteiro, dando ênfase no plano simbólico, como o fizemos para Joaquim Simão.

Como observamos no capítulo terceiro, a posição de Manuel Carpinteiro como

personagem-narrador, é central tanto para a forma da peça (contribuindo fortemente para a

coerência do todo), quanto para o conteúdo (através da interpretação da ação, da qual tira a

“moralidade”). Destacamos sua onisciência, manifestada em mais de um episódio e explicitamos

a inclusão nesse personagem dos atores “Deus” e “ser humano”, situação única na peça.

Observamos também como sua aparente neutralidade disfarça um perfil ideológico mais

claramente perceptível na análise do eixo comunicacional (“destinador” “destinatário”). Em

331 No primeiro ato Nevinha, apesar de reafirmar seu amor pelo marido, reconhece que ele pode ser “safado” e “podre de preguiça” (Ibidem, p. 17). Já São Pedro, ao menos no início do terceiro ato, será forçado a reconhecer as falhas do poeta.

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todas as hipóteses interpretativas que formulamos com base no modelo actancial, de fato, Manuel

Carpinteiro enquadra-se na casa “destinador”, por sua situação divina. Como também já tivemos

ocasião de observar, seu discurso revela uma certa idealização da pobreza ou, mais precisamente,

uma condenação da busca da riqueza pela riqueza com base em certos valores cristãos.

Todos esses elementos bastam para fundar o protagonismo desse personagem, mas

um protagonismo partilhado com Simão332. Devemos analisar, agora, o perfil de juiz que a peça

atribui a Manuel Carpinteiro, pois é este traço de sua identidade que lhe permitirá exercer a

função hermenêutica da ação. A construção desse personagem se fará com base na sua dupla

natureza (humano-divina) e na evocação do imaginário apocalíptico (recursos simbólicos), dentro

de uma concepção do juízo final segundo a tradição cristã. A explicitação da constituição dessa

identidade complexa e de tamanha força simbólica revelará tanto a passagem da mimesis I à mimesis

II (enquanto o processo manipula elementos simbólicos articulados com a construção da

identidade de um personagem complexo humano-divino), quanto a passagem da mimesis II à III

(sobretudo através da figura do julgamento, que conclui a peça e sugere uma abertura no plano

interpretativo).

2.2.1. Um Cristo diferente

O personagem Manuel Carpinteiro não tem nenhum antecedente nos entremezes de

Ariano Suassuna que serviram de base para a Farsa. Em outras comédias do mesmo autor,

porém, não é raro vermos o Cristo representado de modo demasiado humano, sendo essa demasia

332 Designaremos o lugar de Manuel Carpinteiro, mais ligado ao plano celeste, de plano exegético, pois é neste âmbito que se opera a interpretação da ação. Ao lugar de Simão, mais ligado ao plano terrestre, denominaremos plano ativo, sendo aí que se passa o principal da ação da intriga.

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um recurso propriamente cômico, mas de forte significado teológico333. O Auto da compadecida,

por exemplo, joga com a apresentação de um Cristo negro, também chamado Manuel334. Em A

pena e a lei, o mamulengueiro Cheiroso assumirá o papel de Cristo, mas destacando muito mais

sua distância em relação ao ser divino335. Manuel Carpinteiro aparece como a meio caminho entre

uma e outra opção de aderência do personagem ao Cristo. De um lado, a Farsa toma o mesmo

nome do Cristo do Auto, nome cujo poder simbólico é muito acentuado e faz pensar que o

personagem é o Cristo mesmo336. O personagem assume, ainda, em seu próprio nome, a provável

profissão de Cristo, herdada do carpinteiro José. Por outro lado, porém, o personagem se

distanciará do referente divino quando, no terceiro ato, dirá que apenas o representa337.

Esse distanciamento, enquanto manifestação de uma reflexão sobre seu próprio ser, é

um indício de interioridade do personagem, o único na peça a manifestar de modo tão explícito

este tipo de reflexão. Sequer Joaquim Simão terá procedimento parecido, apesar de ter operado

uma mudança de vida. Essa falta de interioridade dos personagens não deixa de estar ligada à

vinculação da peça com relação à tradição cômica e popular. Esse elemento não impedirá, porém,

que algum tipo de juízo sobre a atitude de Simão seja realizado. Mas este acontecerá de forma

também pouco profunda. Sem isso, o tom grave do tema impediria o tratamento cômico dado

pelo autor.

333 Tal sentido não nos interessa aqui diretamente. Ele apontaria na direção de uma imagem de Deus muito próxima da humanidade, ponto discutido pela teologia contemporânea cristã, católica ou não. Veja-se, por exemplo, o maravilhoso texto de Karl Barth, L’humanité de Dieu (BARTH, Karl. L’humanité de Dieu. Genève, Labor et Fides, 1956) ou a reflexão do teólogo belga Adolphe Gésché (GESCHÉ, Adolphe. Dieu pour penser VI. Le Christ. Paris, Cerf, 2001. p. 21-53 e 223-248 – publicado em tradução para o português pelas Edições Paulinas). O único ponto teológico que nos interessa para a construção da peça, ou para o reforço de sua verossimilhança, é o papel mediador do Cristo que se funda justamente na manifestação de sua dupla natureza, humana e divina. 334 Cf. SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. 30. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1996. 335 Cf. SUASSUNA: Ariano. A pena e a lei. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998. 336 Emmanuel significa “Deus conosco” em hebraico e é um dos nomes do messias segundo a tradição bíblica judaico-cristã, como tivemos ocasião de ver no capítulo terceiro. 337 Nesta fala, porém, vemos que tal distanciamento se justifica mais pelo trocadilho “fundo da agulha” - “fundo do camelo”, que poderia chocar se posto diretamente na boca de Cristo. Lamentavelmente, de fato, são poucas as representações do Cristo brincalhão e sorridente, embora a alegria seja uma das marcas da doutrina cristã. De fato, como observa Vilma Áreas comentando Northrop Frye, “a tragédia nos ensina a inevitabilidade da morte, enquanto a comédia, a inevitabilidade da ressurreição”, in: ARÊAS, Vilma. Iniciação à comédia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990. p. 22.

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178

Outro elemento que afasta Manuel Carpinteiro do Cristo real é sua apresentação

como camelô de feira. Mas tal procedimento aparece nas três comédias do autor já citadas, que

conhecem uma aparição do Cristo, sendo um traço estilístico de Suassuna: no Auto da compadecida,

o Cristo é negro; em A pena e a lei, o messias é representado como dono de mamulengo; na Farsa,

é camelô. Mas o autor não se contenta em provocar inserindo uma imagem. O significado destas

opções é sempre comentado nas peças. No Auto da Compadecida, ao ser contestado por João

Grilo, Manuel dirá:

Vim hoje assim de propósito, porque sabia que isso ia despertar comentários. Que vergonha! Eu Jesus, nasci branco e quis nascer judeu, como podia ter nascido preto. Para mim, tanto faz um branco como um preto. Você pensa que eu sou americano para ter preconceito de raça?338

Cheiroso, por sua vez, no diálogo com Cheirosa, esclarecerá o significado da

metáfora do mamulengueiro, reforçada pelo fato de terem aparecido eles próprios como

mamulengos, assumindo progressivamente uma gesticulação humana a cada novo ato:

Cheirosa: Era o que faltava! O Cristo veio como carpinteiro, que era uma coisa melhor, ninguém acreditou que ele era filho de Deus, quanto mais aparecendo como dono de mamulengo! Cheiroso: Mas não é isso o que ele é? Não é Deus o dono do mamulengo?339

Não é de estranhar, portanto, que Manuel Carpinteiro induza uma explicação

semelhante, quando lança a pergunta:

Mas não será verdade Que o Cristo é o camelô de Deus, seu Pai?340

Em todos os três casos, o papel de Cristo assume, com traços populares, um aspecto

da identidade do messias tal como fixado pela cultura religiosa cristã. A qualidade desta

338 SUASSUNA, Ariano. Auto da compadecida. 30. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1996. p. 149. 339 SUASSUNA: Ariano. A pena e a lei. 4. ed. Rio de Janeiro: Agir, 1998. p. 142-143. 340 SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 5.

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179

associação dos personagens com o referente real, através de figuras tiradas do meio popular,

revela grande habilidade na etapa da mimesis I341. Isto acontece na medida em que a seleção do

material utilizado na composição do personagem articula-se com um contexto do qual o autor

retira, com muita propriedade, elementos com forte carga simbólica. O Cristo negro, por sua

força inclusiva, destaca o aspecto redentor universal do messias. Como dono de mamulengo, por

exemplo, associa-se o Cristo à onipotência e à realeza divinas342. Como camelô, destaca-se a

função profética, o anúncio da boa notícia (eu-anguelion). Mas a evocação do perfil profético de

Cristo inclui, também, o papel de juiz.

Manuel Carpinteiro exercerá, de fato, este papel profético de anúncio e julgamento

ao longo da Farsa. Ele inicia a peça propondo seu “produto”, fechará também a peça com o

mesmo gesto que é repetido outras vezes ao longo do texto. No entanto, nem o “produto”

cristão que o personagem anuncia é apenas religioso (sendo também moral), nem sua atividade se

resume a oferecer o produto.

2.2.2. De carne e de fogo: um juiz apocalíptico

Acompanhemos as atividades de Manuel Carpinteiro na peça. Inicialmente

apresentado como mero comentador dos acontecimentos, seu papel assume uma importância

gradativa, destacando-se na passagem do segundo para o terceiro ato quando interfere na ação

fazendo o poeta empobrecer novamente. Neste momento Manuel Carpinteiro aproxima-se do

341 Como já observamos nas notas 146 e 197, referimo-nos aqui à habilidade em selecionar e manipular, no plano do real, os elementos que serão utilizados na composição da mimesis II. 342 Logo após a fala citada acima, o personagem Cheiroso diz a Cheirosa que lhe coloque nos ombros um manto (símbolo de realeza), caso o público duvide de seu papel.

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180

perfil de “dono do espetáculo”, para usar a metáfora de A pena e a lei. Seu poder manifesta-se

também na onisciência do personagem, conforme comentamos no capítulo terceiro. Porém o

traço mais constante de seu agir, mais do que apregoar as virtudes cristãs, é o de fazer a exegese

da ação – não só comentar, mas descobrir-lhe o significado e julgar – que se passa no plano ativo

(terrestre). Nisso se dá a evocação do Cristo-juiz, cujo significado é bastante revelador de sua

relação com o poeta e, mais ainda, com todos os personagens humanos.

Uma fala de Manuel Carpinteiro deixa transparecer este traço judicativo, mas pela

negativa. Ao anunciar o que teria acontecido aos ricos ameaçados de condenação pelos diabos,

ele dirá:

Mas, como eu não quero levar o Poeta a julgar vamos supor que os dois em vez de entrarem no Inferno, em cuja porta já se encontravam, caíram no Purgatório....343

Ou seja, o poeta não deve ser levado a julgar. Mas Manuel Carpinteiro dará o

veredicto, ainda que sob a forma de probabilidade (indicada pela expressão “vamos supor”). Esse

é apenas um dentre inúmeros elementos de seu papel de juiz na peça. Mas será talvez o exemplo

mais extremo e relevante, pois estamos diante da salvação ou da condenação, numa situação

supra-terrestre que evoca o outro elemento simbólico da construção deste personagem como

juiz. Trata-se do imaginário apocalíptico, gênero literário bíblico desenvolvido nos períodos que

vão do século III a.C. ao século IV da era cristã.

A característica mais destacada desse gênero é precisamente o uso de metáforas e

símbolos extremos para falar da realidade da morte, do fim do mundo, da volta do messias e do

julgamento divino. Vários escritos canônicos ou apócrifos escritos em gênero apocalíptico

exerceram grande influência sobre a cultura ocidental. Basta dizer que o livro do Apocalipse dito

343 SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 176 (grifos nossos).

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de São João é o livro bíblico mais representado nas artes, depois dos evangelhos. Também sobre

a Farsa, a influência do livro do Apocalipse será grande. A presença do Arcanjo Miguel, por

exemplo, cujo nome significa em hebraico “Quem é como Deus?”, é tirada diretamente desse

livro344. A roupagem de “homem da cobra” dada a este personagem, além de reforçar o

imaginário apocalíptico345, salienta o aspecto judicativo, pois ele eventualmente tira de sua maleta

uma balança, símbolo da aplicação da justiça.

O fato de a peça abrir-se com um convite de Manuel Carpinteiro dirigido ao leitor (e

ao público), revela não apenas mais um indício de seu papel protagônico, mas, sobretudo, de sua

função mediadora. Ele se posicionará mais de uma vez, aliás, entre o leitor (público) e os

acontecimentos da narrativa (ou da cena). A associação dos aspectos de mediação e de juízo,

note-se, é muito importante. É por sua situação de mediação que Manuel Carpinteiro pode

exercer um julgamento. Essa posição é representada graficamente nessa mesma fala inaugural, já

citada no capítulo terceiro, mas que voltamos a apresentar de modo estruturado:

O cavalheiro pode ver aqui

– inteligente e culto como é – O Fogo escuro, o enigma deste

Mundo e o rebanho dos Homens em seu Centro!

Que Palco! Quantos planos! Que combates!Embaixo, o turvo, as Cobras e o Morcego.

No meio, o que esta Terra tem de cego e esquisito.

Em cima, a Luz Angélica – esta Luz mensageira Com seu vento de Fogo puro e limpo!

Embaixo, três Demônios que aqui passam.

[...]

344 “Houve, então, um combate no céu: Miguel e seus anjos combateram contra o dragão. Também o dragão combateu, mas não conseguiu vencer”, in: Ap. 12, 7. Todas as citações bíblicas serão tiradas da Tradução ecumênica da Bíblia – TEB. São Paulo: Edições Loyola, 1994. 345 Miguel derrota o dragão, no Apocalipse. Mas o dragão é metáfora do diabo. O próprio Apocalipse o diz, ele é a antiga serpente do gênesis (Cf. Gn. 3,1 et. seq.).

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182

De cima, entramos nós, dirigindo o espetáculo!

Um dos santos: São Pedro, o Pescador!

Um Arcanjo: Miguel, guerreiro de Fogo!

E eu, o lume de Deus, o Galileu! [...]

Agora, me pergunta o cavaleiro: “Que tem esse idiota para mostrar?”É simples: duas Cobras venenosas, um Jacaré terrível, e a luta que esses três irão travar contra um Pássaro alado e benfazejo!A feroz sucuri do Alto Amazonas! O feroz jacaré do Rio Una, E esta Jóia vermelha, a Ave-do-Paraíso! 346

Este discurso é retomado em seu vigor simbólico pouco mais tarde, logo antes de

começar a cena, deixando mais explícito o aspecto de mediação e de juízo:

Vamos ver e apurar:

Depois se tem um roteiro para este caso julgar!

Vamos, então, começar! As Cobras contra o Pássaro de Fogo, o Escuro contra a Luz,o Ócio contra o mito do Trabalho, o Espírito contra as forças cegas do Mundo! Os homens nesse meio, sepultadose ligados às Cobras pelo Mundo, pela desordem do Pecado, e ligados ao Lume, ao claro, ao solar,

por um Santo de carne, um Anjo de fogo e por aquele que é carne e fogo e que se chamou Jesus!

Vai começar! Comecem! Luz!”347

Esse texto é de grande importância para compreendermos o tipo de posição de

Manuel Carpinteiro, o “quê” de sua identidade. Se não possuímos informações muito claras sobre

seu caráter (seus hábitos arraigados e características permanentes), tanto mais relevantes são os

346 SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 5-6 (grifos nossos). 347 Ibidem, p. 11-12 (grifos nossos).

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183

elementos simbólicos que o constituem, em particular os elementos apocalípticos que

encontramos neste discurso, alguns dos quais retornarão em outros momentos.

O imaginário apocalíptico é evocado pelas imagens animalescas, tanto positivas

quanto negativas. As “cobras”, “morcego”, “jacaré” são associados a “demônio”, como no

Apocalipse de são João o diabo é representado pelo dragão e pela serpente. Do outro lado,

“guerreiro de Fogo” e “Anjo de fogo” referem-se a Miguel. “Santo de carne” designa São Pedro e

evoca os 144 mil eleitos purificados no julgamento derradeiro348. Para Manuel, vemos serem

empregadas explicitamente as expressões “lume de Deus” e “carne e fogo”. Mas a maior parte

das imagens que designam o plano celeste referem-se seja ao próprio Manuel Carpinteiro, seja ao

campo do divino em geral, influente sobre os homens que se situam no meio. São as imagens:

“Luz angélica”, “luz mensageira”, “Fogo puro e limpo”, “Pássaro alado e benfazejo”, “Pássaro de

Fogo”, “a Luz”, “Espírito”, “Lume”, “claro” e “solar”. O que nos permite considerar estes

elementos como influência divina sobre o homem é a simultânea atribuição desses elementos a

Deus e o emprego da metáfora da luz. Essa luz é lançada sobre o “meio” onde estão os homens

“sepultados”, “palco” onde acontecem os “combates” e a “luta”. Este meio do mundo, de fato, é

representado como necessitado de luz (“escuro”, “cego e esquisito”). O combate se dará,

portanto, entre “escuro contra a luz”.

No jogo de oposições enumerado nesse discurso programático, é bom observar o

cruzamento da temática religiosa com a temática moral, quando vemos a organização das

oposições (note-se que invertemos a posição dos dois últimos termos):

As Cobras

x o Pássaro de Fogo,

o Escuro a Luz,o mito do Trabalho, o Ócioas forças cegas do Mundo! o Espírito

348 Cf. Ap. 7, 9 et. seq..

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184

Nesta série, identificamos uma progressão que passa de termos identificáveis com

personagens (“cobras”=diabos x ”Pássaro de Fogo”=Cristo) a termos que designam a influência

de cada uma dessas esferas sobre os homens (“Escuro” x “Luz”), chegando a atitudes eticamente

discutíveis (“mito do Trabalho” x “Ócio”349) para voltar, enfim, a elementos que podem se referir

tanto à influência como aos entes diabólicos e divinos (“forças cegas do Mundo” x “Espírito”).

No meio deste panorama conflituoso, a figura do árbitro é apontada de modo

explícito não apenas por sua posição superior em relação a todos os personagens350, mas por sua

própria fala que emprega as expressões “ver e apurar” e “julgar”.

O exame deste pequeno trecho do discurso encontra respaldo em inúmeras outras

passagens da Farsa. Antes de propor seu “produto Providencial” no final do primeiro ato,

Manuel Carpinteiro introduzirá a idéia de temperança, propondo um critério ético que será

empregado no julgamento da ação na peça: o equilíbrio351. O segundo ato abre-se com novas

imagens apocalípticas (“luz do Santo”, “fogo deste Pássaro”) e com o “inquérito” das duas

testemunhas celestes: “Que opinião vocês têm de Simão?” 352. Já no final da abertura do mesmo

segundo ato, a ação será introduzida com nova fala de Manuel Carpinteiro que salienta sua

posição de imparcialidade, típica de juiz:

[...] Deixemos que esses dois ajam. Você, Simão, não se meta! Deixe que os dois, livremente, Sigam, por lá, seu caminho!353

349 A palavra “Ócio”, ao ser grafada com maiúscula, indica em nosso entender a Boa Preguiça, contraposta ao mito do trabalho (não ao trabalho em si que, também grafado com maiúscula, é visto de forma positiva). 350 Esta posição evoca o actante “árbitro”, apontado por Souriau e eliminado por Greimas, enquanto Manuel Carpinteiro é colocado em situação de julgar toda a ação. Como “destinador”, porém, este seu papel já está de certa forma assegurado. 351 “[É preciso] temperar sabiamente/ o trabalho com a contemplação e o descanso./ Existe um ócio corruptor, mas existe também um ócio criador”, in: SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. 55. 352 Ibidem, p. 57. 353 Ibidem, p. 60.

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185

O final desse ato revela que “saiu tudo mais ou menos”, segundo Miguel354, pois o

poeta (protegido por Simão Pedro) sai beneficiado. Manuel Carpinteiro apresenta nesse momento

os perigos da riqueza a que estará sujeito o poeta, sendo ainda mais explícito sobre os critérios do

julgamento que acontecerá no final da peça.

O terceiro ato se abre, como todos os outros, com a fala de Manuel Carpinteiro

dirigida ao leitor (e ao público). Nesta altura da peça, com o reiterado convite a “comprar o

produto” divino e a julgar o comportamento dos personagens, reconhecemos os vestígios da

passagem da mimesis II à mimesis III, quando o leitor (e o espectador) são induzidos a assumir

papel semelhante ao de Manuel Carpinteiro, julgando a ação. Neste sentido, poderemos falar

também de uma figura metonímica de Manuel Carpinteiro, não em relação a um personagem da

peça, mas em relação ao próprio leitor. Mas trata-se, aqui, de uma extrapolação e uma imagem

que, se pode ser iluminadora ao olhar o texto de fora para dentro, não pode ser provada

textualmente. Quando muito, podemos indicar seus vestígios, como aqui fizemos.

O terceiro ato conhece uma maior intervenção dos personagens divinos, inclusive a

única intervenção de Manuel Carpinteiro que aparece como o último pedinte a Aderaldo Catacão,

imagem da última chance dada ao rico. Isso não impede que, ao final da peça, Manuel Carpinteiro

pronuncie de certa forma o veredicto, anunciando a situação dos ricos e abençoando os pobres.

Mas a estes não bastará sua condição social. Eles deverão “comprar o produto” de Manuel

Carpinteiro:

Sirvam Deus e a Igreja, Guardem amor, fidelidade, Se querendo sempre muito bem, Gozando gerações e gerações de paz Entre seus amigos e descendentes.355

354 Ibidem, p. 109. 355 Ibidem, p. 177.

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186

A conclusão da intriga se dá com esta fala. Mas a peça continua um pouco mais,

como se abrira pouco antes de a ação começar: Manuel Carpinteiro e seus dois auxiliares tiram a

moral da história, mesclando novamente religião e ética ao propor a apologia da “preguiça de

Deus”356, que evoca o repouso do Criador após os seis dias da criação, um dos fundamentos

teológicos do princípio do Sabbat judeu357.

A figura de juiz é, em nosso parecer, o traço principal do personagem Manuel

Carpinteiro, estando todos os outros ligados a ele como fundamento (como a dupla natureza

humano-divina) ou como conseqüência (a posição de hermeneuta da ação). E é através desta

função de juiz – e de juiz divino, que exerce seu poder para além da vida e da morte, julgando

não apenas o mérito e a punição, mas a salvação e a danação – que Manuel Carpinteiro se

relacionará com o poeta e com todos os humanos.

3. O juízo derradeiro de Joaquim Simão ou um julgamento sem pena

Percorremos a Farsa da boa preguiça verificando como sua temática ética demanda

uma apresentação estética, numa relação dialética entre forma e conteúdo. Em primeiro lugar,

observamos que os elementos formais empregados na composição da peça combinam-se com

um tema de natureza ético-religiosa: a escolha de uma atitude equilibrada diante do trabalho e da

criação poética, imitadora da criatividade divina (capítulo primeiro). Na progressão do processo

mimético entendido segundo Paul Ricœur, notamos como os elementos narrativos compõem

uma intriga coesa, apesar de dividida em dois planos (exegético e ativo) e em três atos

356 Ibidem, p. 181. 357 Cf. Gn 2,2ss e Ex. 20, 11.

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relativamente autônomos do ponto de vista da intriga (capítulo terceiro). Verificamos, também,

que a estrutura profunda articula dois eixos: o eixo vertical da oposição mal x bem (ou vício e

virtude) e o eixo horizontal da oposição pobre x rico (capítulo quarto). Enfim, vimos que a

identidade dos dois protagonistas da peça é construída em relação mútua, cabendo a Manuel

Carpinteiro a posição de mediador entre a ação e o leitor-espectador, posição correspondente ao

imaginário de juiz da ação que lhe é associado. Ao pensar a literatura como um laboratório onde

o agir humano é reproduzido, suscitando um julgamento propedêutico à ética, Paul Ricœur nos

coloca sobre a pista para darmos esse último passo na compreensão do tipo de relação que se

estabelece entre a construção estética do texto e seus elementos éticos358.

Joaquim Simão, personagem construído de modo a preservar um perfil eticamente

ambíguo ao longo de toda a peça, é submetido a uma forma de juízo que examinaremos agora.

Mas identificamos não apenas em um julgamento, senão dois. Em primeiro lugar, o poeta é

julgado por Manuel Carpinteiro enquanto Cristo, numa forma de juízo de inspiração cristã e

apocalíptica, juízo do qual Joaquim Simão sai sem sentença. Em segundo lugar, a inclusão da

figura de um julgamento na peça antecipa de certa forma o julgamento literário. Nesse

julgamento, situado já no âmbito da mimesis III, a ficção literária oferece à ética um espaço de

experimentação para a imaginação produtiva. Diferente do julgamento ético, porém, este

julgamento é submetido às mesmas variações imaginativas que produzem a intriga. Noutros

termos, trata-se de uma espécie de jogo com o comportamento humano, no qual o juízo que

fazemos dos personagens, por assim dizer, não pode ser levado a sério. Mas, antes de

detalharmos esse julgamento mais amplo, vejamos o primeiro tipo de juízo que a Farsa propõe,

tomando do imaginário cristão do Cristo Juiz os elementos para sua composição.

358 Como observamos na nota 72, o elemento do julgamento estaria mais propriamente ligado ao elemento moral enquanto obrigação de buscar o bem ou, mais precisamente, à sabedoria prática necessária para o julgamento moral na situação concreta.

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3.1. Um julgamento sem condenação

Vimos como o personagem Manuel Carpinteiro é apresentado como camelô de

Deus, representante de Cristo e hermeneuta da ação que se passa no planto ativo, em cujo centro

está um personagem de comportamento ambíguo, o poeta Joaquim Simão. Sob esse ponto de

vista, a peça pode ser considerada como um grande julgamento, no qual o juiz Manuel

Carpinteiro, protagonista no plano exegético, ajudado por seus dois “secretários” Miguel e Simão

Pedro, assiste ao desenrolar das situações envolvendo Joaquim Simão e os demais personagens

naturais para emitir um veredicto no final. Essa interpretação é respaldada, como vimos, na

construção do perfil dos dois protagonistas, situados um face ao outro, numa situação de

paralelismo cujo único vínculo é o do julgamento, ou seja, a Simão cabe agir (embora sua ação

seja paradoxalmente ligada mais ao pathos que à práxis, mais ao ócio que à preguiça), a Manuel

Carpinteiro cabe julgar.

Por “julgamento”, no entanto, não devemos entender simplesmente o juízo moral ou

jurídico. Sendo Manuel Carpinteiro associado a Deus, seu julgamento se dá no plano

escatológico, embora individual359. Basta lembrar que a situação de Aderaldo e Clarabela se passa

no pós-vida, incluindo a ida deles ao purgatório, situação supra-terrestre360. Mas o poeta Joaquim

Simão parece situar-se na fronteira dessa situação limite. De fato, a ação conclui-se com sua

despedida e sua volta à vida terrestre, depois de ter testemunhado os acontecimentos no plano

359 Devemos notar, de fato, que a doutrina do julgamento final individual é tardia. (Cf. Jugement. In: RAHNER, Karl; VORGRIMLER, Herbert. Petit dictionnaire de théologie catholique. Paris: Seuil, 1970. p. 244-245). Embora Suassuna recorra muitas vezes a cenas de juízo final em suas peças, será sempre no plano individual (mesmo quando inclui muitos personagens, como em A pena e a lei e Auto da Compadecida). Jamais estamos na situação de Parusia (segunda vinda do messias, ligada ao fim do mundo). 360 Essa situação pós-vida pode ser depreendida do recurso ao apagar e acender de luzes que, em A pena e a lei, representa a chegada de mais uma alma ao “tribunal” de Cheiroso-Cristo.

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sobrenatural. Por isso será necessária a menção da “nuvem”, que o Cristo passa nos olhos dele e

da esposa para esquecerem o que viram361.

Essa situação-limite parece corresponder também à dupla natureza do julgamento

operado pelo personagem-narrador. Esta duplicidade, ademais, é representativa dos dois eixos

que estruturam a peça. Ao mesmo tempo em que julga a possibilidade de salvação ou condenação

dos seres humanos, Manuel Carpinteiro emite um juízo de natureza ético-valorativa sobre o

comportamento de Simão. Essa dupla natureza, religiosa e ética, porém, é também presente no

julgamento divino tal como compreendido na doutrina cristã.

3.1.1. O julgamento divino na doutrina cristã

Antes de ser desenvolvida no imaginário escatológico cristão, a imagem do

julgamento remonta ao direito das civilizações antigas que influenciaram as Escrituras. O juiz é a

instituição social que, por delegação comunitária, pode conter a violência e interromper a

vingança no nível privado. No direito bíblico, por exemplo, a instituição dos juízes no século XII

a. C. representa um avanço em relação ao código da Aliança, contido no livro do Êxodo, que

previa a aplicação direta da justiça. No teatro grego, a Oréstia dá testemunho do mesmo

procedimento, quando o julgamento de Orestes interrompe o círculo da violência362. Mas o ideal

de justiça que se manifesta, tanto num caso como no outro, é o de uma justiça restauradora e

punitiva, que consiste em restabelecer uma certa ordem alterada pela violência. A imagem do

Cristo Juiz não estará isenta do aspecto punitivo, do qual dá testemunho a “constituição” pós-

361Cf. SUASSUNA, Ariano. Farsa da boa preguiça. 2. ed. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1979. p. 178. 362 Cf. ÉSQUILO. Oréstia: Agamêmnon, Coéforas, Eumênides. Trad., introd. e notas: Mário da Gama Kury. 6. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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bíblica do inferno. Mas seu traço principal será outro: o da justiça misericordiosa, mais

preocupada em socorrer, perdoar e corrigir do que em punir.

De fato, a identidade evangélica do messias tem pouco do Deus justiceiro vetero-

testamentário. O próprio nome de Jesus (“Deus Salva”) indica outro acento. Se ele não nega sua

função de juiz363, deixa clara sua intenção, porém, como no texto fundamental do Evangelho de

João: “Eu não vim para julgar o mundo, mas salvar o mundo”364.

É esse perfil, sobretudo, que iluminará o personagem Manuel Carpinteiro. De fato, se

ele age como juiz ao deixar a ação desenrolar-se – como quem informa-se sobre os fatos

relatados em um processo – para depois julgar, em certa altura ele irá intervir para procurar

salvar. Isso é certamente verdade em relação ao poeta Joaquim Simão, que é submetido à prova

do empobrecimento. Mas é também verdade em relação a Aderaldo quando, depois de duas

tentativas frustradas de fazê-lo manifestar um pouco de generosidade através de Miguel e de São

Pedro, o próprio messias se disfarça de pedinte, dando uma última chance ao ricaço365.

É o paradigma da misericórdia que norteia a aplicação da justiça divina na Farsa,

portanto. Aliás, esta afirmação pode incluir não só a Farsa, mas também as outras grandes

comédias do autor (Auto da Compadecida e A pena e a lei). Em todas elas, ninguém é condenado,

embora às vezes por pouco. Esse critério é coerente, porém, com a doutrina cristã mais ortodoxa.

O Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, insiste em que “o Filho não veio para julgar, mas

para salvar e para dar a vida que está nele”366, evocando o princípio joanino já citado há pouco. A

salvação de todos os personagens também não estaria em desacordo com o princípio formulado

pelo grande teólogo Hans Urs von Balthasar, segundo o qual o cristão tem o dever de esperar por

363 Um dos textos mais explícitos sobre este tema é certamente o “apocalipse” de Mateus – cf. Mt. 25, 31-46 – onde os bons (cordeiros) e os maus (cabritos) são separados e premiados ou punidos. 364 Jo. 12, 47b. 365 Esse recurso evoca uma das imagens principais do julgamento segundo Mateus a que fizemos referência a pouco. Perguntados como tinham feito o bem ao messias, os bons ouvirão: “Todas as vezes que o fizestes a um destes mais pequenos, que são meus irmãos, foi a mim que o fizestes”, in: Mt. 25, 40. 366 CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Ed. Paulinas, Edições Loyola e Ed. Ave Maria, 1993. (n. 679) p. 168.

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191

todos367. Esse princípio se aplica aos ricos, que escapam do inferno sem razão aparente (na peça

nenhum ato virtuoso deles é relatado), a não ser a oração dos pobres em favor deles. Mas esta

situação pedirá um complemento, em coerência com o imaginário católico que serve de matriz ao

paradigma do julgamento: os ricos deverão ser purificados, indo parar no purgatório.

Segundo o teólogo João Batista Libânio, a doutrina do purgatório firma-se apenas no

século XII, embora possua fundamentos escriturários368. Ela corresponde a uma maior

consideração da mudança de vida como processo. De todo modo, no plano simbólico a inclusão

do purgatório representa “[a superação das] oposições radicais por meio de uma tríade mais

complexa [céu, inferno e purgatório]”369.

3.1.2. Misericórdia e riso

Em termos estéticos, o recurso ao purgatório na Farsa enfatiza o final cômico,

salientando a misericórdia divina, apesar da seriedade do tema. Mas a mistura de sério e de

cômico é apenas mais uma expressão da relação entre ética e estética na construção da Farsa da

boa preguiça.

Como já tivemos ocasião de ver, essa não é uma novidade de Suassuna. Segundo

Ernst Curtius, “as conferências populares (diatribes) dos cínicos e estóicos desenvolvem o estilo

misto do spoudolegoion (joco-sério), imitado por Horácio em suas sátiras”370. Ele afirma ainda que

367 Cf. BALTHASAR, H. U. von. L’enfer. Une question. Paris, Desclée de Brower, 1988. 368 Cf. LIBÂNIO, J. B. e BINGEMER, M. Clara. Escatologia cristã. Petrópolis: Vozes, 1985. p. 232 et. seq. 369 Ibidem, p. 239. 370 CURTIUS, Ernst Robert. Literatura Européia e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1957. p. 436.

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192

essas formas híbridas perduraram até o fim da Antiguidade e mesmo durante a Idade Média,

apesar da crítica dos filósofos e de uma parte da Igreja Católica a partir do século IV d. C.

Curioso notar que a posição da Igreja não chega a ser unívoca na condenação do

riso. Embora tenha, de fato, separado o cômico do oficial (âmbito em que prevaleceu quase

exclusivamente o estilo sério), encontram-se posições díspares e contraditórias. A norma de São

Bento, por exemplo, é francamente contrária ao riso e ao gracejo, ao passo que Sinésio de Cirene

(aprox. 400 d.C.) “divide sua existência entre a seriedade e o gozo”371 e Suplício Severo reproduza

gracejos de São Martiniano. Em suma, Curtius defende a tese de que

a Idade Média gostava do cruzamento e a mistura de gêneros de estilo em qualquer forma. Com efeito, na Idade Média encontramos ludicra em setores e gêneros que, para o nosso sentimento moderno, educado na estética classicista, excluem totalmente essa mistura.372

Esta opinião parece concordar com a posição de Mikhail Bakhtin que, estudando o

problema da compreensão de Rabelais do século XVII em diante, constata que a “compreensão

dos contemporâneos era ingênua e espontânea. E que para o século XVII e os séculos seguintes

se tornara um enigma”.373 Este enigma parece ser, precisamente, a compreensão do valor do riso

para a Idade Média e para o Renascimento. Por isso, Bakhtin afirma:

para a teoria do riso do Renascimento (como para as suas fontes antigas), o que é característico é justamente o fato de reconhecer que o riso tem uma significação positiva, regeneradora, criadora, o que a diferencia nitidamente das teorias e filosofias do riso posteriores, inclusive a de Bergson, que acentuam de preferência suas funções denegridoras.374

Dá-se, porém, uma passagem progressiva de um riso regenerador a um riso de

caráter denegridor à medida que o Renascimento deixa espaço para a era burguesa e moderna. De

princípio positivo que era – na cultura popular e depois integrado, no Renascimento, à cultura

371 Apud ibidem, P.439. 372 Ibidem, P. 445. 373 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. SP: Hucitec, 1987. p. 53. 374 Ibidem, p. 61.

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193

elevada –, o riso sofrerá uma mudança de sentido. Disso testemunha, já no final do século XVI e

início do século XVII, a desvalorização das obras de Rabelais e de Cervantes, por exemplo375. Os

séculos XVII e XVIII conhecem uma redução dessa forma de riso ao cômico de baixa qualidade.

A raiz grotesca da literatura dita “de qualidade” perde-se e se formaliza.

O riso na Farsa da boa preguiça, nesse sentido, estaria mais próximo do riso

regenerador renascentista. Além de sua função positiva376, não diretamente preocupado em fazer

crítica social e distante de formas negativas do riso como o sarcasmo e a ironia, o cômico dessa

peça não se faz às custas do mal de nenhum personagem. E nisso manifesta-se também a

conformidade com o julgamento divino na peça, um julgamento sem condenação. Porém, se não

há condenação, há sentença. Essa expressa-se na absolvição dos ricos e na proclamação do

“produto” divino, que consiste na defesa do ócio criativo e de uma vida desvinculada de ambição

desmedida, segundo os valores cristãos.

Em termos mais precisos, deveríamos dizer que no julgamento presente na Farsa,

não há propriamente julgamento das personagens e sim de uma atitude. Isso também inscreve-se

no âmbito de uma opção valorativa cristã, segundo a qual se deve condenar o pecado, não os

pecadores, ensina Santo Agostinho377.

Mas o perfil ambíguo que constitui o caráter de Joaquim Simão parece driblar

mesmo essa condenação do pecado que seria a má preguiça, o que se manifesta na ausência de

veredicto a propósito de Simão. Sabemos que ele não é condenado, pois não vai ao inferno. Mas

375 “É nessa época [fim do séc. XVI] que se começa a crer que Rabelais não passava de um autor divertido, um escritor extravagante. Essa foi também, como se sabe, a sorte que teve o Dom Quixote, por muito tempo mantido na categoria das leituras fáceis e agradáveis”. In: Ibidem, p. 56. 376 Veja-se, a propósito da função positiva do riso, a defesa que faz Ariano Suassuna do risível em sua Iniciação à estética. Constata Suassuna que, “talvez impelidos pelo velho conceito – ou preconceito – europeu do Belo, ainda hoje existem pensadores que relutam em aceitar a legitimidade do Cômico ou do Humorístico como categorias estéticas”. E acrescenta ele em defesa do risível: “Parece-nos, ao contrário, que o Risível – com seus dois tipos mais importantes para a Arte, isto é, o cômico e o humorístico – é uma categoria estética tão legítima quanto qualquer outra”. In: SUASSUNA, Ariano. Iniciação à estética. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 1996. p. 132-133. 377 O próprio Ariano Suassuna o menciona, quando diz: “Santo Agostinho dizia: ‘Abominar o pecado e amar o pecador’. O pecador é perdoado”. In: CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Instituto Moreira Salles, novembro de 2000, n. 10. Semestral. ISSN 1413-652X. p. 41.

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não sabemos se ele irá ao céu, pois continua na terra. O fato de ele continuar a vida terrestre,

aliás, com a bênção de Manuel Carpinteiro, pode ser entendido como uma segunda chance, ou

seja, uma abertura. E é essa abertura que permite ao leitor (espectador) formar seu próprio juízo,

encontrando na peça argumentos tanto condenatórios quanto absolventes do personagem em

questão.

3.2. Do julgamento derradeiro ao julgamento literário

Já havíamos tocado anteriormente na hipótese que acabamos de formular – de que a

forma da peça abre espaço para “incluir” o receptor –, quando dissemos que a figura de Manuel

Carpinteiro poderia ser de algum modo considerada uma metonímia do leitor, numa imagem que

iria de fora para dentro do texto. Nessa ocasião, dissemos que essa hipótese seria uma

extrapolação do texto, e provavelmente o é sob o ponto de vista de um paralelo entre um

personagem do texto e uma realidade extratextual como o receptor. Mas a hipótese pode ser

retomada agora num outro nível, mais próximo do texto, através do paralelo entre a imagem do

julgamento na Farsa e o processo de interpretação como um julgamento. Nesse caso, nossa tese

seria remodelada para dizer que a relação entre ética e estética no texto, percebida através da

dialética forma-conteúdo até este ponto de nossa investigação, realiza-se também num outro

plano, situado na fronteira entre as mimesis II e III, qual seja, o da passagem do texto ao mundo

do texto ativado pelo leitor. Na medida em que a peça recorre à figura de um julgamento da ação

como um dos elementos centrais de sua construção, essa relação é interior ao texto. Mas ela se

volta para fora do texto na medida em que antecipa o processo de interpretação que o próprio

texto da peça provoca em quem o lê (ou assiste ao espetáculo). Entre um e outro aspecto, entre o

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195

interior do texto e o “fora” de sua interpretação, funciona a mediação da inteligência narrativa à

obra na literatura como laboratório do agir, inteligência narrativa que é fruto de uma imaginação

capaz tanto de criar o texto quando de criar julgamentos diversos sobre a mesma obra. Em

outros termos, a mimesis é processual, começando numa instância polarizada pelo autor,

concluindo-se em outra polarizada em torno ao público receptor.

Mas devemos dizer que essa afirmação só tem sustentação após um percurso como o

nosso, quase inteiramente centrado na mimesis II, ou seja, sobre o texto mesmo da Farsa da boa

preguiça. Explorar o que se pode dizer a partir do texto, de fato, já não seria mais fazer a análise do

texto. Seria tarefa da filosofia, da ética, da teologia ou da antropologia. Para respeitar as fronteiras

de uma crítica literária, quando muito podemos chegar aonde chegamos agora, aos indícios de

uma passagem do texto para o tipo de movimento que ele induz.

Sobre a interpretação como um julgamento, é preciso dizer que a importância dada

ao texto não exclui a diversidade das interpretações. O que se exige é a fundamentação do

processo em elementos reais que funcionam como limites ou regras para a atividade

interpretativa, assim como um veredicto deve fundar-se sobre evidências. Mas interpretações

diversas de uma mesma construção mimética da ação sempre irão conviver lado a lado. Como diz

Ricœur, “a plurivocidade comum aos textos e às ações é trazida à luz sob a forma de um conflito

de interpretações, e a interpretação final aparece como um veredicto do qual é possível apelar”378.

E isto se funda sobre uma concepção da interpretação como produtora, poiesis, continuadora do

processo mimético que consiste na criação de um quase-mundo, ou de um mundo imaginário, no

qual variações imaginativas da ação são propostas e submissas a um julgamento ético-literário.

Não é de estranhar que tenhamos formulado mais de uma hipótese do modelo

actancial, por exemplo, todos com certa validez. De fato, podemos considerar a Farsa como uma

peça centrada sobre Joaquim Simão, ou como a comédia (acrescentaríamos o qualificativo

378 RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 229. (Poche, 377).

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196

dramática) da humanidade que oscila nos dois eixos, entre pobreza e riqueza e entre vício e

virtude. Também não é estranho que o personagem Simão possa ser visto positiva ou

negativamente, sendo essa discussão exatamente um aspecto do convite da peça à interpretação,

como o julgamento eternamente inconcluso da Capitu machadiana.

A expressão “ético-literário”, porém, deve ser entendida pela modificação que o

traço de união aporta aos dois termos. Ou seja, não se trata de um julgamento propriamente ético

(cujo foco é a ação humana real e suas conseqüências no plano do agir inter-humano), nem de

um julgamento estético “puro” (consideração das formas literárias). Como vimos no primeiro

item deste capítulo, a literatura não abole o julgamento ético, mas o submete às mesmas variações

imaginativas que levam a imaginação produtiva a pôr em funcionamento a “célula melódica”

muthos-mimesis, quer dizer, “ficção e re-descrição” da realidade da ação379.

Uma conseqüência importante dessa ressalva que acabamos de fazer é a defesa da

liberdade de criação na literatura. A ficção é o lugar do sonho, da exploração dos limites, mesmo

(e sobretudo) de sonhos proibidos pela exigência de comportamento ético na vida ordinária.

Comentando o poma sádico Pomo do mal, de Antônio da Fontoura Xavier, por exemplo, Antonio

Candido dirá que

Pomo do mal desvenda [re-descreve] um pouco a dualidade que faz da vida do sexo, de um lado, fruição e alegria; de outro, bestialidade e tormento como preço eventual do prazer. Este lado turvo suscita com freqüência na arte e na literatura o impulso sublimador, como se fosse necessário compensá-lo por meio de mundos inventados, ou por meio de ‘testemunhos’ (fictícios) que aliviam como confissão. Isso ocorre, seja expondo aspectos ‘excêntricos’, ‘medonhos’, seja lavando-os, filtrando-os até transformá-los em límpido cristal.380

De modo semelhante, a propósito dos situações-limite apresentados por Derek

Parfit, Ricœur afirma que

379 Sobre a tragédia grega, Ricœur dirá que “ela vai diretamente à essência da ação, precisamente porque ele liga muthos e mimesis, quer dizer, no nosso vocabulário, ficção e re-descrição” (Ibidem, p. 248). É por sua possibilidade de re-descrever o real através da ação, portanto, que a tragédia (e, generalizando, a literatura) consegue pôr em destaque o sentido da ação e toda a sua força simbólica. 380 CANDIDO, Antonio. O discurso e a cidade. SP: Duas Cidades, 1993. p. 223

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197

se um imaginário que respeita o invariante da condição corporal e terrestre tem mais afinidade como o princípio moral da imputação, uma cisão do outro imaginário, aquele que atinge com a contingência esse mesmo invariante, não seria ele por sua vez imoral sob todo ponto de vista, enquanto interdito de sonhar? Um dia será sem dúvida necessário impedir a realização daquilo que a ficção científica se limita a sonhar. Mas o sonho não foi desde sempre a transgressão do interdito? Sonhemos, pois, com Parfit!381

O próprio Ariano Suassuna, ainda, defende a literatura dessa intromissão de uma

ética cerceadora, quando diz que “a ética não tem poder condenatório nem mutilatório sobre a

arte, mas tem poder declaratório”382. Ou seja, uma vez assegurada a liberdade criadora da arte e

da literatura, não se pode negar seu imenso poder ético, que se manifesta na possibilidade de

imaginar a ação, seu significado e imaginar, inclusive, o seu julgamento, cujo caráter literário se

evidencia de modo mais expressivo na relação de descompromisso com a realidade383. É a essa

faculdade, a esse poder da literatura que se pode chamar com Ricœur de “laboratório” e de

considerá-lo como propedêutico à ética na medida em que revela significados novos da ação

através da operação de um aumento icônico sobre ela384.

Por aí se vê como o julgamento da boa preguiça pode ser retomado na etapa da

mimesis III, apoiada sobre o julgamento de Manuel Carpinteiro segundo valores cristãos, que

condenam a busca da riqueza pela riqueza e, segundo a peça, valorizam o “ócio de Deus”, ou

seja, o ócio ligado à atividade criadora. Este posicionamento é “testado” no espaço de

experimentação aberto pela Farsa através da criação das identidades de Simão, mas também de

Nevinha, Aderaldo e Clarabela, sobretudo, na medida em que são eles que serão julgados. Ao

381 RICŒUR, Paul. Soi-même comme un autre. 1. ed. 1990. Paris: Seuil, 1996. p 179-180. (Poche, 330). 382 CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. São Paulo: Instituto Moreira Salles, novembro de 2000, n. 10. Semestral. ISSN 1413-652X. p. 41. 383 “É nesse estado de não-engajamento que nós ensaiamos idéias novas, novos valores, maneiras novas de estar no mundo”. In: RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 245. (Poche, 377). 384 Sobre esse poder revelador, Ricœur dirá: “O paradoxo da ficção é que a anulação da percepção condiciona uma aumento de nossa visão das coisas” (Ibidem, p. 246). E ainda: “Quer se trate da tragédia antiga, do drama moderno, do romance, da fábula ou da lenda, a estrutura narrativa fornece à ficção as técnicas de abreviação, de articulação e de condensação pelas quais é obtido o efeito de aumento icônico que se descreve na pintura e nas outras artes plásticas. É no fundo o que Aristóteles tinha em vista na Poética, quando ele ligava a função ‘mimética’ da poesia – quer dizer, no contexto de seu tratado, da tragédia – à estrutura ‘mítica’ da intriga construída pelo poeta”. In: Ibidem, p. 247-248.

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198

interpretarmos a Farsa, portanto, entramos na discussão desses valores, tomando nossas próprias

posições a favor ou contra os personagens, mais próximos ou mais distantes do “produto”

oferecido por Manuel Carpinteiro e seus secretários, mas não indiferentes ao que lemos ou

assistimos. E nesse sentido continuamos o papel de hermeneutas da ação, tarefa presente no

próprio texto através da atividade dos personagens celestes. Enfim, além da relação dialética

forma-conteúdo que integra na Farsa elementos éticos e estéticos, articulam-se também, na peça

de Suassuna, um exercício ético e uma interpretação literária.

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199

A MODO DE CONCLUSÃO:

DO MUNDO DO TEXTO AO UNIVERSO DE SUASSUNA

Após este longo percurso, não nos resta muito a acrescentar. No entanto, inúmeras

janelas se abriram, quanto mais avançávamos na exploração do texto da Farsa. O processo de

leitura-releitura exige um termo sempre arbitrariamente delimitado. Aliás, arbitrado e delimitado

por nós desde o início, o que nos permitiu a salvaguarda da coerência de nossa análise. Nossa

hipótese interpretativa, segundo a qual a construção estética da Farsa da boa preguiça se articula

dialeticamente com uma temática ética, foi verificada em diversas instâncias do texto. Seguindo a

progressão do processo mimético proposta por Ricœur , vimos como Suassuna seleciona um

material simbólico e formas eficazes para a construção de uma trama complexa, apesar da

aparente simplicidade que a linguagem utilizada sugere (mimesis I). Vimos como a mimesis da ação

é construída com habilidade no plano da intriga, mas comentada em paralelo no seio da própria

peça, recurso que nos dá acesso a uma forma de crítica interna ou um tratamento dialógico da

temática da preguiça (boa ou má). Essa construção, constatamos no quarto capítulo, apóia-se

numa estrutura que combina dois eixos, o que permite um duplo olhar sobre a intriga: somente

centrada no herói ou centrada em todos os seres terrestres (mimesis II). Enfim, constatamos que a

relação dos dois planos manifesta-se de modo mais explícito na figura de um julgamento, em que

a relação entre estética e ética se deixa perceber de modo mais claro ainda. Em primeiro lugar,

trata-se do julgamento do poeta por Manuel Carpinteiro, ou, de modo ainda mais genérico, da

representação cômica do julgamento das atitudes humanas por Deus. Em segundo lugar, é

também uma estratégia do autor que convida o leitor (espectador) a julgar ele próprio as atitudes

que contempla, mas um julgamento que deixa espaço para considerar a ambigüidade do agir

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humano no mundo, na medida em que o texto não fecha o veredicto sobre Joaquim Simão

(mimesis III).

Podemos considerar nosso percurso relativamente concluído, portanto. No entanto,

as inúmeras janelas abertas sem que as pudéssemos explorar (sob pena de dispersão) legam-nos a

tarefa de ao menos apontá-las, agora. Encontramos essas encruzilhadas fascinantes desde o

começo do trabalho, quando poderíamos ter aprofundado a relação da Farsa e de Suassuna com a

cultura popular e com a cultura erudita. Deixamos pouco espaço, também, para a análise da

mimesis I, quando poderíamos ter explicitado melhor o manuseio do material simbólico recolhido

pelo autor, assim como os recursos empregados para a construção de um discurso capaz de

configurar o agir humano na peça. Outra janela, ainda, poderia ter sido mais explorada para

revelar melhor a figura do personagem-narrador, aprofundando o paralelo entre as iniciativas de

Boal e de Suassuna. Tudo isso para não mencionar a reflexão sobre a cena, que colocamos entre

parênteses em nosso método. Assim por diante, deixamos entreabertas portas importantes –

mencionemos, ainda, uma possível análise detalhada da construção dos demais personagens sem

função protagônica, o diálogo da Farsa com outros textos do autor, etc – para nos concentrarmos

numa análise da mimesis II do texto de Suassuna, sob o prisma da relação entre ética e estética385.

Mas, sobre esse ponto, vemo-nos na obrigação de acrescentar um derradeiro tema,

ainda que de forma sintética: o mundo do texto. Em vista disso intitulamos essa etapa de “a modo de

conclusão”, mais para indicar aberturas do que para fechar um percurso. Com essa opção, somos

coerentes com a teoria de Ricœur , que apresenta a interpretação como processo. Vejamos, afinal,

385 Uma outra perspectiva da análise que não abordamos, destacada pelo Prof. Abrahão Costa Andrade, é a de considerarmos Joaquim Simão como autor implícito da Farsa. De fato, ao sugerir no final da peça que iria escrever três folhetos com os nomes dos atos, legitima-se esta hipótese. Chegamos a observar que esta menção pode ser compreendida como um indício do sucesso do propósito de Simão. Pensamos que a categoria de autor implícito não se aplicaria convenientemente a Joaquim Simão. Mas essa hipótese nos oferece um outro elemento da relação forma-conteúdo: ao imaginarmos Simão como autor de todas as peripécias que assistimos, e que por terem sido criação sua não pertenceriam ao mundo real, o aspecto farserco é posto em relevo. Nessa espécie de curto-circuito entre ficção (a peça tal como a lemos ou assistimos) e ficção da ficção (Simão como autor de uma peça que lemos ou assisitmos), seria ainda mais interessante a relação entre as etapas da mimesis, sobretudo a situação da mimesis I enquanto plano pré-narrativo da ação.

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201

em que consistiria uma investigação desse horizonte do mundo do texto situado na etapa da mimesis

III.

Com o conceito de mundo do texto, Paul Ricœur enfrenta o problema epistemológico

da referencialidade da obra ficcional. A questão central é o problema da “realidade”, conceito que

ele desmonta com a crítica à visão inocente de história que a situa diretamente ligada a um “real”

que, na verdade, é também fruto de uma construção narrativa, embora com métodos e

pretensões diferentes da literatura. No campo da ficção, Ricœur propõe uma solução análoga à

que ele oferece para o campo do conhecimento histórico através da função de “representância”

do conhecimento do passado. A resposta para a literatura consiste numa estética da recepção que

inclui uma fenomenologia da leitura, opção que valoriza tanto o papel do autor implícito à obra

quanto o do leitor que ativa o processo, os dois em relação dialética. Assim é dada à obra a

possibilidade de constituir, pela configuração da mimesis II, uma refiguração da realidade na etapa

da mimesis III, precisamente através do mundo criado pelo texto.

A inscrição deste momento na etapa da mimesis III explica-se pelo papel mediador da

leitura e pelo cruzamento dos horizontes da obra e do receptor, como diz Ricœur :

[A mimesis III] marca a interseção entre o mundo do texto e o mundo do ouvinte ou do leitor, a interseção, portanto, entre mundo configurado pelo poema e mundo no seio do qual a ação efetiva se desenvolve e desenvolve sua temporalidade específica. A significação da obra de ficção procede dessa interseção.386

Ricœur sustentará sua posição com o recurso crítico à noção de autor implícito,

proposta por Wayne Booth387, e com a dialética que este autor implícito estabelece com o papel

ativo do leitor. A noção de autor implícito é de grande importância, como nota o filósofo, pois

ela permite “escapar à objeção de recaída na ‘falácia intencional’, e mais geralmente de confusão

386 RICŒUR, Paul. Temps et récit. Vol 3. 1. ed. 1985. Paris: Seuil, 1991. p. 287. 3 volumes. (Poche, 229). 387 BOOTH, Wayne. The Rhetoric of Fiction. Chicago: University of Chicago Press, 1961 (trad. port. A Retórica da Ficção, Lisboa, Arcádia, 1980) apud RICŒUR , Paul, op. cit., p. 289.

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202

com uma psicologia do autor, na medida em que ela põe o acento não sobre o processo

presumido de criação da obra, mas sobre as técnicas pelas quais uma obra se torna comunicável”388.

Mas Ricœur discordará de Booth quanto à avaliação que este faz do narrador “não

digno de confiança” ou “equívoco”389, crítica que aponta na direção da inclusão de uma tensão

necessária entre autor implícito e leitor: “a afirmação segundo a qual o autor cria seus leitores

parece desconsiderar uma contrapartida dialética”390. É a deixa para que o filósofo apresente sua

fenomenologia e estética da recepção.

Com o termo “estética”, note-se, Ricœur volta ao sentido grego do termo aisthesis, o

sentir ou ser afetado, para dizer que “este ser afetado [...] combina, numa experiência de tipo

particular, uma passividade e uma atividade, que permitem designar como recepção do texto a

própria ação de lê-lo”391. Reconhecemos novamente a importância dada pelo filósofo à noção de

poiesis, incluindo o próprio leitor no processo de construção da mimesis.

A relação dialética entre a instância do leitor e a do autor implícito dá-se segundo três

figuras: a do combate (como no romance moderno, quando as expectativas do leitor são

constantemente frustradas pelo autor implícito), a do excesso de sentido (pela qual a leitura se

revela como possibilidade de inovação) e a do equilíbrio sempre instável entre a conivência com a

ilusão da obra e sua crítica392.

A este ponto de nossa síntese compacta deste momento da mimesis III, podemos

abordar o assunto que nos interessa aqui. Trata-se de poder ver a literatura em geral – e a Farsa da

boa preguiça em particular – como a possibilidade de descobrir novos mundos, de experimentar

novas maneiras de ser e de habitar a história a partir das aberturas que nossa relação com as obras

388 RICŒUR, Paul, idem, p. 289-290. É com essa intenção que utilizamos o nome próprio “Ariano Suassuna” em diversos momentos, sempre relacionando-o enquanto autor implícito ao texto específico que analisamos. Apesar de limitada, a noção apresenta inúmeras vantagens, como a de poder articular em torno a uma mesma instância as rubricas, o texto das falas e, até mesmo, outras referências a obras do mesmo autor, sem cair no biografismo. 389 Cf. ibidem, p. 294-296. 390 Ibidem, p. 297. 391 Ibidem, p. 303. 392 Cf. ibidem, p. 307-308.

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oferece. Já havíamos abordado este tema antes, ao acompanharmos Ricœur em sua tese das

variações imaginativas próprias da ficção. Mas agora temos um enfoque mais específico, mais

distante do texto (razão pela qual situamos estas considerações ao final de nosso percurso

analítico), mas não desligado dele na medida em que se trata de um diálogo com o texto, voltando

ao real refigurado a partir do texto. Reaparecem, nesse momento, aspectos da mimesis I como a

importância dos recursos simbólicos, mas em um outro patamar, no nível das possibilidades

novas de significação do real oferecidas pela mediação simbólica proposta pela obra. Ricœur o

diz admiravelmente:

O momento em que a literatura atinge sua mais alta eficiência é talvez aquele em que ela coloca o leitor na situação de receber uma solução para a qual ele deve encontrar sozinho as questões apropriadas, aquelas que constituem o problema estético e moral levantado pela obra.393

Isso não significa absolutamente reduzir a literatura a uma instância de discussão do

real, como se desvalorizássemos sua função estética. Ao contrário, trata-se de valorizar a

mediação estética da literatura, o que a situa num altíssimo grau de pertinência para a vida

humana (que se define pelo acesso à consciência da consciência e pela consciência que o homem

tem do seu sentir). Ricœur o reforça ao dizer:

Contrariamente à idéia comum de que o prazer é ignorante e mudo, Jauss [esteta da recepção sobre o qual se apóia o filósofo] reconhece o poder de abrir um espaço de sentido no qual se desenvolverá ulteriormente a lógica da questão e da resposta. Ele faz compreender (donne à comprendre).394

De modo ainda mais explícito, após considerar com Jauss o valor da noção de

catharsis395, Ricœur dirá:

393 Ibidem, p. 317. 394 Ibidem, p. 320. 395 “Um efeito mais sutil ainda se refere à catharsis: em favor da clarificação que ela exerce, a catharsis delineia um processo de transposição não somente afetiva, mas também cognitiva, que pode ser aproximado da alegorese, cuja história remonta à exegese cristã e pagã. Há alegorização desde que alguém se proponha ‘a traduzir o sentido de um texto de seu contexto primeiro para um outro contexto, o que significa dizer: dar-lhe uma significação nova que

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204

[Uma última dialética] diz respeito a dois papéis, senão antitéticos, ao menos divergentes, assumidos pela leitura. Esta aparece vez por outra como uma interrupção no curso da ação ou como um relançamento em direção à ação. Essas duas perspectivas sobre a leitura resultam diretamente da sua função de afrontamento e de ligação entre o mundo imaginário do texto e o mundo efetivo do leitor. Enquanto o leitor submete suas expectativas às que o texto desenvolve, ele se ‘irrealiza’ a si próprio na medida da irrealidade do mundo fictício para o qual ele migra; a leitura se torna, então, um lugar irreal onde a reflexão faz uma pausa. Ao contrário, enquanto o leitor incorpora – consciente ou inconscientemente, pouco importa – os ensinamentos de suas leituras à sua visão de mundo a fim de aumentar sua legibilidade prévia, a leitura não é para ele um lugar onde ele pára; ela é um meio que ele atravessa.396

Temos consciência da limitação da discussão que abrimos exatamente no momento

de fechar a pesquisa, impertinência que consiste em passar da análise do texto ao significado do

ato de ler. Mas, como dissemos mais de uma vez, não gostaríamos de perder a oportunidade de

sugerir elementos para uma possível continuação da pesquisa, sobretudo a partir de um marco

teórico ainda pouco explorado no meio acadêmico literário brasileiro.

Coerentes com a linha de pesquisa à qual nos inscrevemos, leituras do texto literário, na

área de literatura e cultura, tal impertinência parece ter seu sentido, porém. De um lado, não

renunciamos ao princípio que adotamos no início do percurso, o da fidelidade ao texto em nossa

análise principal. Sequer agora, quando partimos do texto. E, por outro lado, ganhamos em

perspectiva ao poder considerar outras facetas da Farsa que abrem a perspectiva do interior do

texto aos horizontes do “mundo” criado pela Farsa e do universo artístico de Suassuna.

No mundo criado pela Farsa, de fato, encontramos o espaço onde convivem Deus,

santos, demônios e gente comum no tabuleiro da vida, complexa e cômica como costuma ser em

seu real vivido. A essa visão de mundo Suassuna alude diretamente no prólogo da edição da peça,

quando diz que, “em segundo lugar, o que eu desejava ressaltar, na peça, era a diferença da visão

ultrapassa o horizonte de sentido delimitado pela intencionalidade do texto no seu contexto original’ [JAUSS, H-R, Limites et tâches d’une herméneutique littéraire. In: ______. Pour une esthétique de la réception. Paris: Gallimard, 1978. p. 124]. É finalmente esta capacidade de alegorização, ligada à catharsis, que faz da aplicação literária a réplica mais aproximada da apreensão analogizante do passado na dialética do face-a-face e da dívida”. In: RICŒUR , Paul, op. cit., p. 232. 396 Ibidem, p. 327-328.

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205

inicial que nós, povos morenos e magros, temos do Mundo e da vida, em face da tal

“cosmovisão” dos povos nórdicos”397. Mas o que mais toca nesse mundo é a singularidade da

construção proposta pelo autor, que se exprime, sobretudo, em seu estilo398, outra janela que

poderia ter sido explorada na análise.

Enfim, a presença de uma ruralidade um tanto utópica, uma religiosidade ao mesmo

tempo tradicional e criativa e outros elementos, ainda, não são exclusividade da peça que

analisamos. Eles estão presentes no ambiente imaginário criado pelo autor. Extrapolando a obra

e a noção de mundo do texto proposta por Ricœur, podemos dizer que, através do mundo

ficcional criado por esta obra em particular, estamos conectados com o universo formado pela

constelação das obras de Suassuna. Maria Aparecida Lopes Nogueira faz uma abordagem desse

tipo, ao propor uma análise dos elementos míticos, imaginários, culturais e utópicos do universo

de Suassuna399. De modo semelhante, Cláudia Leitão procederá a uma reflexão sobre uma ética da

estética armorial, partindo da obra ficcional para voltar a re-significar a realidade com a carga de

sentido adquirida por meio da ficção400.

No entanto, essas considerações nos distanciam cada vez mais do terreno literário,

ainda que partindo dele, e sugerem uma abordagem imensamente válida, mas incabível aqui.

Terminamos apenas voltando a destacar o interesse de uma abordagem como a que propusemos,

capaz de conjugar uma análise profunda da obra em si mesma com sua importância para a vida

humana. E, se quiséssemos apontar uma última janela, esta seria a da crítica das ideologias e

397 SUASSUNA, Ariano, “A Farsa e a preguiça brasileira”. In: SUASSUNA, Ariano, op. cit., p. xi. 398 Por “estilo”, seguimos a posição de Ricœur : “Se nós consideramos a obra como a resolução de um problema [...], podemos chamar de estilo a adequação entre a singularidade da solução que constitui por ela mesma a obra e a singularidade da conjuntura da crise, tal qual o pensador ou o artista a apreenderam. Esta singularidade da solução, respondendo à singularidade do problema, pode receber um nome próprio, o nome do autor”. In: RICŒUR, Paul, op. cit., p. 292-293. 399 NOGUEIRA, Maria Aparecida L. Ariano Suassuna, o cabreiro tresmalhado. São Paulo: Palas Athena, 2002. 400 LEITÃO, Cláudia. Por uma ética da estética: Uma reflexão acerca da “ética armorial” nordestina. Fortaleza: UECE, 1997.

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utopias que essa visão de mundo proposta pela obra de Suassuna (e por qualquer obra literária)

solicita401. Mas isso é mote para um outro começo.

401 Cf. RICŒUR, Paul. Du texte à l’action. 1. ed. 1986. Paris: Seuil, 1998. p. 367 et. seq.. (Poche, 377).

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