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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X ENTRE IDENTIDADE E DESLOCAMENTO: RELAÇÕES ENTRE PRÁTICAS DE DESIGN E O FAZER ARTESANAL FEMININO Viviane Mattos Nicoletti 1 Ana Julia Melo Almeida 2 Bruna Ferreira Montuori 3 Resumo: O artigo tem como intuito revelar como práticas do design deslocam o fazer artesanal feminino de seu contexto original, sob pretexto de alteridade, mas contribuindo para a redução de autonomia que as artesãs detêm sobre os artefatos. Como método, o artigo analisará duas imagens de divulgação de trabalhos produzidos após algumas intervenções brasileiras pré-selecionadas, com base em três conceitos teóricos: (1) dialética da alteridade, (2) apropriação do artesanato e (3) deslocamento. Acreditamos que uma crítica da prática de design atual possa levantar aprendizados e novos caminhos para o campo, considerando o design para além do objeto. Palavras-chave: Design. Comunidades artesanais. Produção feminina. Alteridade. Apropriação. Deslocamento. Introdução O presente artigo tem como objetivo revelar como práticas atuais do design brasileiro, realizadas com comunidades artesanais presentes no Nordeste do país, têm impactado o fazer artesanal e vernacular, deslocando seu contexto e foco a fim de atender a demandas mercadológicas e tendências da moda. Tal investigação vem tomando corpo nos últimos dois anos por meio das pesquisas de mestrado e doutorado das autoras deste artigo, que buscam constantemente por ações projetuais no campo do design mais balanceadas e recíprocas. Neste sentido, o artigo enfoca a relevância não apenas de trocas horizontais entre diferentes atores, mas a preservação de patrimônios materiais e imateriais ameaçados no território brasileiro. Vale ressaltar que a intenção deste trabalho não é de criticar a atuação de designers brasileiros, mas lançar luz, em uma perspectiva panorâmica, ao que ocorre nas entrelinhas, quando políticas orientadas para uma ação de âmbito unicamente produtivo e mercantil, atropelam aspectos sociais, culturais e históricos de comunidades tradicionais nacionais. Atenta-se aqui que é papel do campo do design refletir sobre as ações já realizadas e levantar questões para práticas mais coerentes. 1 Mestranda, bolsista CAPES, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São Paulo, Brasil. 2 Doutoranda, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São Paulo, Brasil. 3 Mestranda, bolsista FAPESP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São Paulo, Brasil.

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Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

ENTRE IDENTIDADE E DESLOCAMENTO: RELAÇÕES ENTRE PRÁTICAS DE

DESIGN E O FAZER ARTESANAL FEMININO

Viviane Mattos Nicoletti1

Ana Julia Melo Almeida2

Bruna Ferreira Montuori3

Resumo: O artigo tem como intuito revelar como práticas do design deslocam o fazer artesanal

feminino de seu contexto original, sob pretexto de alteridade, mas contribuindo para a redução de

autonomia que as artesãs detêm sobre os artefatos. Como método, o artigo analisará duas imagens

de divulgação de trabalhos produzidos após algumas intervenções brasileiras pré-selecionadas, com

base em três conceitos teóricos: (1) dialética da alteridade, (2) apropriação do artesanato e (3)

deslocamento. Acreditamos que uma crítica da prática de design atual possa levantar aprendizados e

novos caminhos para o campo, considerando o design para além do objeto.

Palavras-chave: Design. Comunidades artesanais. Produção feminina. Alteridade. Apropriação.

Deslocamento.

Introdução

O presente artigo tem como objetivo revelar como práticas atuais do design brasileiro,

realizadas com comunidades artesanais presentes no Nordeste do país, têm impactado o fazer

artesanal e vernacular, deslocando seu contexto e foco a fim de atender a demandas mercadológicas

e tendências da moda. Tal investigação vem tomando corpo nos últimos dois anos por meio das

pesquisas de mestrado e doutorado das autoras deste artigo, que buscam constantemente por ações

projetuais no campo do design mais balanceadas e recíprocas.

Neste sentido, o artigo enfoca a relevância não apenas de trocas horizontais entre diferentes

atores, mas a preservação de patrimônios materiais e imateriais ameaçados no território brasileiro.

Vale ressaltar que a intenção deste trabalho não é de criticar a atuação de designers brasileiros, mas

lançar luz, em uma perspectiva panorâmica, ao que ocorre nas entrelinhas, quando políticas

orientadas para uma ação de âmbito unicamente produtivo e mercantil, atropelam aspectos sociais,

culturais e históricos de comunidades tradicionais nacionais. Atenta-se aqui que é papel do campo

do design refletir sobre as ações já realizadas e levantar questões para práticas mais coerentes.

1 Mestranda, bolsista CAPES, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São

Paulo, Brasil. 2 Doutoranda, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São Paulo, Brasil. 3 Mestranda, bolsista FAPESP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), São

Paulo, Brasil.

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O conhecimento de feitura do artesanato tem sua gênese intimamente enraizada na relação

de pertencimento, identidade e memória de seu local de origem. A prática artesanal, quando

feminina, usualmente é tida como um passatempo dentro da própria comunidade, e quando

mercantilizada é vista como um complemento da renda familiar, reforçando a marginalização do

trabalho artesanal feminino, altamente qualificado.

Os saberes artesanais inseridos na dinâmica capitalista resultam em produtos que servem ao

mercado, e por isso, deslocam-se para atender aos anseios de seus consumidores. Em contrapartida,

para muitas artesãs, o fazer artesanal representa uma perspectiva de vida mais digna e a

possibilidade de maior empoderamento no lar e na comunidade em que vivem. Desta forma,

milhares de mulheres têm o artesanato tradicional popular, tal como o bordado, a costura, a trança

de palhas e muitas outras atividades, como sua subsistência e orientação de vida cotidiana.

Neste contexto, desde que o Programa de Artesanato Brasileiro (PAB) passou a subordinar-

se ao Ministério da Indústria Comércio e Turismo, em 19954, especialmente com a intensificação da

atuação do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae)5, o design autoral,

em parceria com governos e prefeituras onde estão localizadas algumas comunidades artesanais

brasileiras, vem se inserindo localmente a fim de promover e estimular a produção artesanal por

meio dos vieses de empreendedorismo e estética. Desta maneira, o papel de designers insere-se

como mediador na relação entre artesãs e mercado, podendo portar-se ora a privilegiar os

significados sociais do trabalho artesanal, ora a beneficiar o mercado.

Para tanto, fugindo do aprofundamento de um cenário de marginalização crônica, que

desloca o cerne deste artigo, serão apresentadas duas imagens que ilustram como esta relação tem

caminhado de forma assimétrica, apresentando-se de maneira a valorizar a artesã e o significado

social do seu trabalho, mas que acabam por utilizar a sua imagem para agregar valor a produtos,

inserindo-a em uma lógica de mercado que não é habitual ao seu contexto e dinâmica cotidiana.

Desenvolvimento

O mercado, para satisfazer seus anseios, apropria-se não somente dos saberes artesanais,

mas principalmente da identidade do produto artesanal, que constitui-se de um imaginário

4 Decreto nº 1.508 de 31 de maio de 1995. 5 Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas. Disponível em: https://www.sebrae.com.br/sites/

PortalSebrae.

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territorial. É possível perceber a apropriação deste imaginário por meio de algumas imagens que,

muitas vezes, modificam a identidade e memória originais vernaculares, deslocam a relação de

pertencimento entre a artesã e o objeto produzido, e ainda promovem uma espécie de autonomia e

direitos limitados a produção.

Apresenta-se as duas imagens de uma só vez, visto que o intuito não é apontar a qualidade

do trabalho colaborativo desenvolvido, mas o modo de apresentação da figura da mulher artesã,

enquadrada a lógica produtiva e efêmera da moda. A primeira imagem (figura 1) apresenta a figura

de uma artesã de cestos de palha do povoado de Várzea Queimada, no Piauí, vestindo em sua

cabeça um cesto, como máscara de palha, fabricado no local. Já a segunda imagem (figura 2)

apresenta a figura de uma mulher rendeira da região do Cariri, na Paraíba, desfilando em uma

passarela de um evento de moda, utilizando vestido de renda produzido localmente.

Figura 1. Artesã do povoado de Várzea Queimada. Fotografa Tatiana Cardeal. Fonte: Projeto Rosenbaum ®_ A gente

transforma. Várzea Queimada: Espírito, Matéria e Inspiração. São Paulo, 2016, p.146-147.

Figura 2. Rendeira paraibana desfilando no São Paulo Fashion Week. 2015. Fotógrafo Zé Takahashi. Fonte:

http://tambau247.com.br/noticia/cidades/rendeiras-da-paraiba-desfilam-no-sao-paulo-fashion-week.html. consulta em

junho 2016.

A seguir abre-se espaço para a análise das imagens apresentadas acima com base em três

conceitos teóricos: (1) dialética da alteridade, (2) apropriação do artesanato e (3) deslocamento. Os

conceitos foram levantados, a fim de embasar e justificar porque as imagens acima reduzem a

verdadeira potência do artesanato popular tradicional brasileiro e o delegam como um instrumento

para o mercado de moda/design brasileiro.

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1. Dialética da alteridade

“Quem define o lugar? Quem fala por ele? (…) É possível redefinir e reconstruir o mundo a

partir da perspectiva de múltiplas práticas culturais, ecológicas e econômicas da alteridade

existentes em muitos lugares do mundo?”. É por meio de tais perguntas que o antropólogo

colombiano Arturo Escobar (1999, p. 30, tradução nossa) aborda a relação entre a cultura local do

‘outro’, sua dimensão política e territorial em face à hegemonia neoliberal ocidental.

O artesanato tradicional não pode ser excluído deste debate. Sua cultura autóctone passada

por gerações, carrega, como colocam os antropólogos Tim Ingold e Elizabeth Hallam (2007), a

chave para o aspecto relacional da improvisação como ato natural na vida do ser humano. Para eles

(Ibid., p. 7) seguir a “tradição não se trata de replicar comportamentos padronizados, mas dar

continuidade a de seus antecessores”. Neste sentido, compreender e reconhecer a prática artesanal

como autônoma e possuidora de sua própria narrativa, identidade e memória é imprescindível para

atividades compartilhadas entre profissionais do campo do design e da moda e os próprios artesãos.

Para tanto, ‘dialética da alteridade’ é abordada aqui com a intenção de lançar luz à

necessidade de valorização e visualização da cultura do ‘outro’ como paralela e horizontal àquela

que possui hegemonicamente o lugar de fala. O termo, extraído de textos das arquiteta Paola

Jacques e Fabiana Britto (2015), refere-se a capacidade de estabelecer relações de tradução e

interpretação entre diferentes atores de contextos e culturas distintos, de forma que ocorra a

assimilação simultânea das narrativas da figura do outro horizontalmente. Para o designer Gui

Bonsiepe (2011, p. 38), alteridade é a “palavra que significa colocar-se no lugar do outro na relação

interpessoal, com respeito e consideração, valorização etc. É um princípio filosófico que significa

trocar seu próprio ponto de vista pelo do outro”.

Compreende-se a dificuldade em apreender o sentido de alteridade, uma vez que estamos

diante de um complexo sistema baseado no progresso desenvolvimentista creditado na produção

desenfreada tecnocrática. Para Escobar (1999, p. 43), as ordens de cunho europeu deveriam admitir

a instabilidade presente em seus fundamentos com relação às diferentes culturas, ainda que se

esforcem para eliminar ou domesticar os fantasmas da alteridade. Considerando ainda o âmbito

patriarcal em que a maior parte das comunidades de artesãs estão envolvidas, valorizando “a

competência, as hierarquias, o poder, o crescimento, a procriação, a dominação dos demais e a

apropriação de recursos em nome da racionalidade” (Id., 2016, p. 37), visualizar o desequilíbrio de

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instâncias sociais no intuito de promover uma perspectiva da alteridade apresenta-se como um

desafio.

Embora a instabilidade paire justamente pelo fato de que muitas comunidades artesanais já

não conseguem se manter com sua própria autonomia social, cultural e econômica, e exercem seu

papel com a mera intenção de sobrevivência, acredita-se que o entendimento e a leitura sobre suas

linguagens e o seus próprios modos de fazer e usar, sem olhares impositivos, faz-se extremamente

necessária no cerne das atividades artesanais colaborativas. Por este caminho busca-se um

entendimento mais democratizado sobre a noção de alteridade, focado em relações menos

instrumentalizadas, que evitam práticas modernizantes, “de modo hierárquico e de controle

patriarcal, objetivador e individualizador” (Ibid., p. 238), para trocas baseadas em conhecimentos

relacionais, históricos e culturais.

No que se refere às imagens apresentadas, em ambos casos a alteridade é deslocada por

meio do modo como o objeto produzido localmente perde sua função principal. Nos dois casos, o

trabalho original é imposto a outra posição de fala, não aquela tradicional, abrindo margem para

uma perspectiva fetichizante e objetificadora. O cesto, utilizado por décadas como ferramenta de

transporte de alimentos e objetos locais, ao esconder a face da artesã, retira sua autonomia sobre o

que ela mesma produziu, reduzindo a sua identidade e escondendo seus valores, sua cultura e

história. Com relação à mulher rendeira desfilando, observa-se que o trabalho e a autoria são

primordialmente voltados para atender ao campo da moda, mais uma vez instrumentalizando a

figura da artesã. Ainda sobre o conceito de alteridade, Bonsiepe afirma que este

pressupõe a disposição de respeitar outras culturas projetuais com seus valores inerentes, e

não vê-las com o olhar de exploradores em busca da próxima moda de curta duração. Essa

virtude pressupõe a disposição de resistir a qualquer visão messiânica etnocentrista. (Ibid.,

p. 38)

Por fim, o autor (2011, p. 18) deixa explícito que “(…) o design se distanciou (…) da ideia

de <solução inteligente de problemas> e se aproximou do efêmero, da moda, do obsoletismo rápido

(…) do jogo estético-formal, da glamourização do mundo dos objetos”. Em razão disso, acredita-se

na importância de uma postura de alteridade dos profissionais envolvidos no processo de

mercantilização dos artefatos artesanais.

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2. Apropriação do artesanato

O lugar ocupado pelo artesanato na sociedade atual é reflexo de sua trajetória e das

significações adquiridas por essa atividade ao longo do tempo. As transformações ocorridas na

divisão social do trabalho acarretaram uma nova organização caracterizada pela separação das

etapas de concepção e produção dos objetos. Esse processo impactou e influenciou o próprio

conceito de trabalho artesanal, evidenciando os possíveis fatores de sua condição social e

econômica nos dias de hoje.

Segundo Canclini (1983, p. 83), não se deve estudar o artesanato como um objeto final, mas

sim como um produto inserido em relações sociais; é preciso entendê-lo como um processo. Isso

significa, sobretudo, que os elementos mobilizados pelos produtos artesanais expressam diretamente

o que se passa no contexto social e cultural no qual se inserem e revelam delicadas conexões com

seus produtores.

No que se refere, especificamente, ao contexto brasileiro, Bardi escreve que o artesanato se

assemelha mais a um estado de “pré-artesanato”. O entendimento da autora (1994, p. 16) acerca do

conceito dessa atividade está atrelado à organização social das corporações de ofício que

caracterizava o modo de produção artesanal europeia.

Segundo a autora (1994, p. 28), as corporações de ofício não entram na formação histórica

do Brasil. “A organização social artesanal pertence ao passado, o que temos hoje são sobrevivências

naturais em pequena escala, como herança de ofício” (Ibid., p. 26). O estado de “pré-artesanato”, a

que Bardi se refere, é argumentado por conta de sua produção doméstica e rudimentar. A autora

enfatiza ainda a vulnerabilidade social e econômica das atividades artesanais no Brasil e ressalta

nossa capacidade inventiva para driblar as condições mais adversas, as barreiras de pobreza em

favor de sua sobrevivência.

Por mais que o artesanato utilize técnicas tradicionais, o que confere a ele uma impressão de

prática do passado, essa atividade se modifica e se reconfigura ao longo do tempo. Canclini (1983,

p. 51) afirma que os produtos artesanais se reestruturam nos dias de hoje devido às “transformações

de significado das culturas populares segundo três dimensões correlacionadas entre si, isto é,

enquanto processos sociais, culturais e econômicos contemporâneos”.

Dessa maneira, o artesanato não retrata apenas os objetos, mas também as práticas sociais,

os processos envolvidos e seus produtores. Por essa razão, não é uma atividade estática, um

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conjunto de repertórios fixos e imutáveis; é fruto de uma experiência coletiva, da forma como as

pessoas se ligam entre si, com os artefatos e com o contexto social e cultural a que pertencem.

Os processos artesanais, bem como os da cultura como um todo, modificam-se pelos seus

próprios agentes e pelos contextos sociais aos quais pertencem. Estas são questões que vão além do

objeto; elas indagam sua permanência no tempo e no espaço, pensam sua resistência e a forma de

produção desses saberes. Nesse sentido, pensar esse artefato requer, essencialmente, conhecer quem

o faz, onde e como é feito.

Nas últimas décadas o design e o artesanato brasileiro têm se aproximado de forma bastante

frequente. Essa aproximação levanta questionamentos significativos no que se refere à forma como

esses campos interagem, a situação de vulnerabilidade social que contorna as produções artesanais e

as práticas projetuais de atuação do design no âmbito social.

Podemos levantar alguns questionamentos a respeito dessa interação: de que forma a

produção artesanal se relaciona com o campo do design? Qual é o papel do design nessa relação?

Quais são as repercussões desse processo nas comunidades artesanais?

Para Cardoso (2013, p. 249-250), nos últimos quinze anos os termos “responsabilidade

ambiental” e “inclusão social” são bastante utilizados no discurso político das práticas de design. O

autor pondera, no entanto, que “o risco maior é permanecerem apenas no âmbito do discurso, como

belas palavras de ordem apensadas à prática projetual de modo mais decorativo do que efetivo”.

Segundo Leon (2007, p. 66), um dos pressupostos básicos da produção artesanal é que ela

envolve a reunião de saberes manuais e intelectuais. A autora questiona a validade dos projetos que

envolvem design e artesanato, realizados no Brasil, pelo fato de que muitas vezes se mantém a

separação desses saberes. Além disso, “um programa de design e artesanato deve criar condições e

autonomia projetual para os artesãos”.

Em relação às imagens apresentadas neste artigo, a apropriação do artesanato somente como

mão de obra gera uma ruptura dessas habilidades e não cria condições de autonomia, pois o trabalho

artesanal reúne saberes manuais e intelectuais. Para Sennett (2013), este é um ponto crítico: ao

separar cabeça e mãos, separamos o trabalho não só intelectualmente, mas também socialmente.

3. Deslocamento

Apropriado pelo mercado e mediado pelo design, o artesanato desloca-se de seu ambiente de

origem e passa a circular por arenas desconhecidas. Por muitas vezes o contexto social no qual o

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artesanato tem um sentido próprio é descartado e impõe-se uma lógica incompatível com o sistema

de produção do artefato artesanal em seu local de origem.

A busca comunitária por soluções para problemas cotidianos de ordem imediata, como

questões alimentares, de vestimentas ou ainda ritualísticas, é propulsora para o desenvolvimento de

conhecimentos coletivos aplicados. Essa busca por soluções, que encontram sua matéria prima

disponível localmente e que aprimoram seus saberes geracionalmente, pode ser chamado de design

vernacular resultando no artesanato tradicional.

A diretriz estatal brasileira que trata do artesanato denominada Programa do Artesanato

Brasileiro (PAB), através da portaria SCS/MDIC nº29, de 5 de outubro de 2010 define o artesanato

tradicional sendo aquele que resulta em artefatos que são produzidos comunitariamente e que são

“parte integrante e indissociáveis dos seus usos e costumes” e tem suas técnicas e seus processos

transpassado geracionalmente e por isso são portadores da memória cultural de seu povoado de

origem.

Assim, o design vernacular, como ato de busca para solucionar problemas cotidianos, insere-

se na rotina de sua comunidade originária, acomodando-se intimamente aos processos vitais

mantenedores da vida em sociedade. Seu resultado, o artesanato tradicional, tem seu fazer

consumido em totalidade: utiliza-se de matéria prima local, tem sua técnica de feitura dominada

localmente e seu resultado é utilizado para um fim imediato. O cesto quando confeccionado por

fibras providas pela flora local, feito a partir de uma técnica dominada localmente e utilizado para

fins imediatos, como carregar ou guardar o resultado da colheita, configura-se como um artesanato

tradicional. Essa configuração de produção, que não gera excedentes, consumindo-se em sua

totalidade é caracterizado por Arendt como labor:

[...] é típico de todo o labor nada deixar atrás de si: o resultado do seu esforço é consumido

quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse esforço, a despeito de

sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o um impulso mais poderoso que

qualquer outro, pois a própria vida depende dele. (ARENDT, 2007, p. 98)

A autora aponta que nos cenários modernizantes, a economia se pauta na produção de

excedentes, o que corrompe a lógica do labor. A artesã, ao ter sua prática tradicional deslocada para

atender a demanda de mercado, tem sua prática de labor corrompida para atender a lógica da

produção para além de suas necessidades imediatas, tendo sua produção orientada por compradores

alheios à sua rotina. A aplicação de seus saberes passa a servir uma arena diferente da que

tradicionalmente se construiu, o mercado passa a reger aspectos de seu conhecimento.

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A intervenção do design se faz presente quando o artefato artesanal precisa se adequar a uma

nova arena de comércio, anseios e necessidades. O designer, como um agente no processo de

mercadorização do artesanato, pode se portar ora de maneira a ser pouco invasivo aos saberes

tradicionais, ora privilegia anseios do mercado, mas como ressaltado por Granovetter (2007) em

seu conceito de imersão, análises que subsocializem as relações extremando os ganhos próprios ou

que as supersocializem colocando-as à mercê de padrões interiorizados pela socialização, podem

não revelar a complexidade do estudo do comportamento econômico, por isso é importante ressaltar

que as intervenções não adotam uma única postura mas alternam entre ganhos e perdas para as

comunidades.

Há uma faceta do design institucional que se dedica a forjar significados nos objetos,

servindo a interesses mercadológicos, num contexto de “astúcia e fraudes” como indica Flusser

(2007, p. 182). Já Bonsiepe (2011, p. 18), indica que o desgaste do termo design fez com que o seu

significado tenha se descolado de seu referencial de prática projetual e tenha se submetido a servir

interesses mercadológicos.

Portanto, quando o design se apresenta ao artesanato como seu mediador e o mercado, o

objetivo primário é a adequação dos artefatos às exigências dos consumidores. Por isso, as

intervenções podem tanto referentes a aspectos formais, incluindo questões estéticas e adequação de

dimensões para facilitar o transporte ou ainda intervenções no modo de produção para otimizar o

processo de confecção dos artefatos artesanais. Nas figuras apresentadas no início deste artigo, é

possível observar como o cenário territorial e as imagens das artesãs foram transformados em

argumentos de venda, deslocando seus significados sociais para atender ao apelo publicitário do

mercado.

O enfoque nas exigências de mercado, por vezes acabam desconsiderando a totalidade dos

processos envolvidos na produção artesanal. Tony Fry (2009, p. 143-173) indica que a falta de

consideração da complexidade dos sistemas sociais, ambientais, econômicos e políticos, em todas

as esferas de ação humana, acaba gerando um desequilíbrio de impactos imediatos e profundos:

Comunidades se fragmentam, economias vão à falência, a pobreza se aprofunda. Da mesma

forma o medo se espalha, a depressão se intensifica, a omissão se generaliza – assim, a

incapacidade de debelar a crise se transforma em crise. (FRY, 2009, p.146)

Por outro lado, o autor sugere uma postura reguladora ao design. Ela é holística e considera

a complexidade dos sistemas interferidos/mediados pelo design que abrange as “relações de

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ecologias biológicas, sociológicas e psicológicas” (2009, p. 145). Considera que a modernidade,

provoca a perda das significações sociais, mas que o estabelecimento de fatores sagrados antes e

além da produtividade imposta colabora para manter a coerência das relações localmente.

Portanto, quando o artesanato deixa de atender a necessidades locais e imediatas e é

deslocado para atender ao mercado, para evitar reforçar um cenário de crise, no qual a lógica

produtiva insere o trabalho artesanal, o design deve se posicionar de maneira a considerar a

complexidade do sistema das relações para manter o equilíbrio comunitário.

Conclusão

Neste artigo, buscamos analisar de que forma as práticas atuais do campo do design

deslocam o fazer feminino artesanal para contextos fora do domínio das comunidades de origem.

Ao fazê-lo, a autonomia que artesãs têm sobre o seu trabalho se torna menor, pois se altera a lógica

de produção e comercialização, compreendendo o seu ofício unicamente como mão de obra.

É importante reiterar que não se pretendeu abordar a atuação dos designers envolvidos em

tais projetos, mas sim analisar e aprofundar uma visão crítica ao campo em uma perspectiva mais

ampla, investigando de que maneira as políticas na área ainda são orientadas para um desempenho

de mercado, deixando à margem aspectos sociais, culturais e históricos de comunidades tradicionais

nacionais.

O pensamento do design foi posto para preencher uma lacuna entre o que existe e o que

pode ser possível. A crítica do campo atual se apresenta como um meio para levantar aprendizados

e novos caminhos para práticas mais coerentes e equilibradas, considerando o design para além de

seus objetos. Acreditamos que a aproximação entre o design e o artesanato acarreta diversos

questionamentos e revela situações delicadas, por serem campos social e economicamente distintos.

Portanto, é importante refletir como o design é compreendido e praticado em tais contextos, os

desdobramentos e impactos de suas atividades, repensando a prática para além de uma visão

orientada aos objetivos do mercado e evidenciando a função social como parte fundamental para o

pensamento sobre o papel do design hoje.

Referências

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Universitária, 2007.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

Between identity and displacement: relations among design practices and the female

craftwork

Abstract: This article aims to reveal how design practices displace the handicraft making by female

artisans from its original context. Despite the claim for otherness, these practices contribute for the

reduction of these artisans autonomy when it comes to artifacts production. As method, this paper

will analyse published images of design practices developed in a few Brazilian interventions. The

analysis will be sustained by three theoretical concepts: dialectics of otherness, high quality

craftwork appropriation and displacement. As stated, we believe that making critics of current

design practices could unveil apprenticeships and new paths for the field, thus consider design as

beyond the object.

Keywords: Design. Crafts communities. Women's production. Otherness. Appropriation.

Displacement.