141
FACULDADE DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS E LINGUÍSTICA ESTUDOS LITERÁRIOS ANALICE DA CONCEIÇÃO LEANDRO DA SILVA Entre lírios e liras: a mitopoética utópica da Jurema Sagrada DISSERTAÇÃO Maceió 2017

Entre lírios e liras: a mitopoética utópica da Jurema Sagrada lírios e... · dança, a aura de tremendo poder, a estética das cores e a hipnose da percussão eram os elementos

Embed Size (px)

Citation preview

  • FACULDADE DE LETRAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LETRAS E LINGUSTICA

    ESTUDOS LITERRIOS

    ANALICE DA CONCEIO LEANDRO DA SILVA

    Entre lrios e liras: a mitopotica utpica da Jurema

    Sagrada

    DISSERTAO

    Macei

    2017

  • ANALICE DA CONCEIO LEANDRO DA SILVA

    Entre lrios e liras: a mitopotica utpica da Jurema

    Sagrada

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao em Letras e Lingustica,como parte dos requisitos necessrios obteno do ttulo de mestra em EstudosLiterrios.

    Orientadora: Dr Ildney de Ftima SouzaCavalcanti

    Macei

    2017

  • Catalogao na fonte Universidade Federal de Alagoas

    Biblioteca Central Bibliotecria Responsvel: Helena Cristina Pimentel do Vale

    S856e Silva, Analice da Conceio Leandro da.

    Entre lrios e liras : a mitopotica utpica da Jurema Sagrada / Analice da Conceio Leandro da Silva. 2018.

    141 f.

    Orientadora: Ildey de Ftima Souza Cavalcanti. Dissertao (Mestrado Letras e Lingustica : Estudos Literrios) Universidade Federal de Alagoas. Faculdade de Letras. Programa de Ps-Graduao em Letras e Lingustica. Macei, 2017.

    Bibliografia: f. 102-105. Apndices: f. 106-141.

    1. Jurema Sagrada- Crtica e interpretao. Lrios da Jurema. 2. Utopias na literatura. 3. Crtica literria. Poema. I. Ttulo.

    CDU: 82.09

  • Aos mestres e mestras da/na Jurema,

    cuja sabedoria desconhece os limites da instituio acadmica

  • Agradecimentos

    Ao querer falar pouco, sendo muito grata, percebo que palavra e gratido,aparentemente, so grandezas dspares. Comearei, ento, pela raiz, sou grata:

    dona Josete e ao caboclo Danizete, av e av, paterna e materno, presenada voz, ausncia narrada. Dois sbios analfabetos que me lanaram a semente dacuriosidade na imaginao, o gosto pelo jogo da palavra e a memria afetiva quefez nascer uma qualquer baguna sentimental pela poesia popular que me obriga aescrever para tentar entender.

    Minh (D. Miriam) e ao amigo Paulo Victor de Oliveira, pelos cafs e conversase solas de sandlia que gastamos andando, sorrindo e ouvindo as vozes da Jurema deMacei; pela acolhida fsica: o jantar, a cama, a palavra de carinho; pelas calorosasdiscusses sobre os/as mestres/as; e pelos contatos do/no mundo da Jurema.

    Ao Seu Ferreira (in memoriam), sacerdote de uma tradicional casa de culto noVergel, cuja voz provocou certo arrepio sagrado na poesia da minha alma, chamandoateno para a expresso lrica, bela e forte dessa manifestao religiosa.

    A todos/as os/as integrantes de caminhada do Literatura e Utopia, pelas trocas,dicas, crticas, leituras e encorajamento. No cito nomes para no correr o risco de sertrada pela memria e por que so muitos/as.

    s professoras doutoras Izabel Brando e Ana Cludia Martins e e ao Dr.Marcelo Marques leitores cuidadosos e professores excepcionais.

    Dra. Ildney Cavalcanti, orientadora, professora, parceira de caminhada durantetodo o meu percurso acadmico. Verdadeira mestra (no sentido pedaggico), seu olhovivo, sua exortao edificadora e seu cuidado esto por todo o trabalho sem dvida. Apalavra, a carona, a caneta tudo presente.

    Ao Me. Felipe Bencio, Me. Aline Maire, leitores, crticos, guias, amigos maisdo que queridos, sempre.

    s minhas mes todas: Anita, Rosa, Clia, pelos cuidados comigo e com meufilho,que possibilitaram a escrita e pelo mesmo motivo equipe da escola O verbo e Vivian Rodrigues e Lays Amanda.

    A Eric Assumpo pelas fotos gentilmente cedidas e pelo apoio. pau Guin!

    Ao CNPq pelo financiamento que permitiu o desenvolvimento da pesquisa.

    A Andr, minha parelha, pela presena, pelo apoio e ouvido.

    A Antnio, por ser minha utopia particular.

  • Mandei fazer uma casa no arNa espcie de um bangalQue pra ver se esses mestre vai lAs paredes s fao de prataO telhado afirmamentoNas portas, o ventoe a chave o ar(Poema-adivinha, domnio popular)

  • Resumo

    Situada na interface dos Estudos da Utopia com os Estudos literrios sobre a mitopo-tica, proponho, com este trabalho, a anlise dos lrios de Jurema, hinos religiosos dedomnio pblico que fazem parte da liturgia da religio brasileira Jurema Sagrada. Ocorpus composto por uma amostra de 100 lrios que escolhi e categorizei a partir deum levantamento que envolveu fontes bibliogrficas e mdias eletrnicas, centralizandoum nmero significativo de poemas para anlise. A construo deste estudo implicouna apresentao de um panorama da tradio juremeira, com vistas a compreenso desua produo lrica; e em uma investigao do trabalho da crtica, desde o surgimentoda Jurema como objeto de estudos at o presente momento. Na segunda parte dotrabalho, apresento uma perspectiva mais analtica interpretativa dos poemas e finalizominha incurso pelo tema ressaltando as aproximaes entre a jurema e a utopia que, ameu ver, apresentam-se em trs nveis distintos: na expresso do discurso mitopotico;na representao de lugares mticos espirituais, parasos/lugares secretos maravilho-sos; e, por ltimo, na eternizao do ser pela palavra, atravs do encantamento e suasligaes com o sebastianismo. Com este trabalho, visei colaborar com a ampliao dainvestigao na rea dos estudos crticos da utopia em textos nacionais e contribuircom a fortuna crtica dos poemas de Jurema, promovendo a visibilidade da mitopoticadesta rica manifestao religiosa e cultural.

    Palavras-chave: Jurema Sagrada. Mitopotica. Utopismos brasileiros. Crtica literria.Sebastianismo.

  • Abstract

    Informed by the Utopian and Literary Studies on Mythopoetic, I propose, with this work,the analysis of the lirios of Jurema, religious hymns of public domain that are part of theBrazilian religion Jurema. The corpus is composed of a sample of 100 lirios that I choseand categorized from a survey that involved bibliographic and audio visual sources,centralizing a significant number of poems for analysis. The construction of this studyimplied in the presentation of a panorama of the Jurema traditions and beliefs, pointingto understanding its lyrical production; and in an investigation of the work of criticism,from the beginning of Jurema studies until the present moment. Following, I present amore analytical perspective on the interpretation of the poems. I end my exploration ofthe theme by emphasizing the approximations between Jurema and utopia, which in myview are presented in three distinct levels: in the expression of mythopoetic discourse; inthe representation of mythical spiritual places, wonderful paradises / secret places; and,finally, in the perpetuation of human being, through enchantment and its connectionswith Sebastianism. With this work, I aim to collaborate with the expansion of research inthe area of critical studies of utopia in national texts and contribute to the critical fortuneof Juremas poems, promoting the visibility of the mythopoetic of this rich religious andcultural manifestation.

    Keywords: Jurema Sagrada. Mythopoetic. Brazilian Utopisms. Literature critics. Sebas-tianism.

  • Lista de ilustraes

    Figura 1 Flor da jurema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23Figura 2 Consagrao. Detalhe ao fundo: representao das cidades, atravs

    das taas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25Figura 3 Encantado apresentando-se no terreiro . . . . . . . . . . . . . . . . 28Figura 4 Sacerdote Sandro de Juc entoando um lrio/ponto . . . . . . . . . . 41Figura 5 Imagem da cruz como parte dos objetos ritualsticos . . . . . . . . . 68Figura 6 Mesa ornada com flores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81

  • Sumrio

    1 INTRODUO: ENCRUZILHADAS E LEGENDAS EM UM MAPA MU-TANTE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 12

    2 UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIADOS ENCANTOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

    2.1 Para abrir os trabalhos: o ponto de partida. . . . . . . . . . . . . . 172.2 A Jurema plurissignifica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222.3 As Cidades de Jurema ou encantos . . . . . . . . . . . . . . . . . 242.4 Os encantados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272.4.1 Rei Sebastio, Malunguinho e as representaes da realeza en-

    cantada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 322.5 Os lrios da Jurema: caracterizando as linhas/pontos/cantigas . 402.6 Itinerrio encantado: surgimento e transformaes da Jurema

    Sagrada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452.6.1 Origem do culto Jurema . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452.6.2 Ressignificao simblica e Jurema hoje . . . . . . . . . . . . . . . . 47

    3 CAMINHANDO ENTRE LRIOS E LIRAS. . . . . . . . . . . . . . . . 533.1 Abertura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 553.2 Licena . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 613.3 Firmeza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 663.4 Apresentao/louvao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 693.5 Encerramento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

    4 PARA FECHAR O PONTO, NAS FRANJAS DO FUTURO, O MI-RANTE DA UTOPIA: . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89

    4.1 O molde do mundo: a palavra e o mito . . . . . . . . . . . . . . . . 894.2 Utopia, porto dos mundos. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

    REFERNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

    APNDICES 106

  • 12

    1 INTRODUO: ENCRUZILHADAS E LEGENDAS EM UM MAPA MU-

    TANTE.

    O mapa aberto, conectvel em todas as suas dimenses, desmont-vel, reversvel, suscetvel de receber modificaes constantemente. Elepode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natu-reza, ser preparado por um indivduo, um grupo, uma formao social[. . . ]. Um mapa uma questo de performance, enquanto o decalqueremete sempre a uma presumida competncia (DELEUZE; GUATTARI,1995).

    Muito antes de ser alfabetizada, eu j era leitora/ouvinte de poesia. Minha avsempre gostou de recitar poemas, cantar canes (improvisadas, narrando a prpriahistria e da famlia), propor charadas e contar causos que sempre eram entremeadospor algum poema trocado entre os personagens. Meu av, ndio fulni-, gostava dedizer a origem das coisas, como surgiu tal espcie de rvore, tal peixe, etc. Contava ecantava inmeras histrias e, muitas vezes, era pelo improviso potico, com auxlio deum pandeiro, que conseguia, na feira mesmo, transformar palavra em proviso. Meuav morreu antes que eu pudesse criar lembrana dele, ainda assim, minha me, aorepetir aquelas histrias, gravou no meu cerne a alma do caboclo que amalgamada minha. Irremediavelmente, meu eu torna-se ns.

    A memria afetiva da poesia do povo est entranhada na minha memria desdeque aprendi a linguagem e nunca me acostumei com ela (a lrica popular), pois, sempreme intrigou, me fascinou, me provocou. Apesar de conhecer ladainhas, benditos,oraes contra mau-olhado, etc., eu no desconfiava que existisse um mundo todobordado de f e lrica at ser apresentada a Jurema. Aqui entram meus cicerones maisque competentes, Paulo e Dona Miriam, com quem por anos frequentei as festas, assesses de Jurema, e de candombl tambm. Mas, enquanto no candombl o corpo, adana, a aura de tremendo poder, a esttica das cores e a hipnose da percusso eramos elementos motrizes daquela manifestao, na Jurema, a voz, apenas a voz de umvelho/velha, que era o motor de toda a epifania. H outros elementos a gua, afumaa, a bebida, o som de instrumentos (especialmente na Jurema traada em quese ouvem os tambores) , mas o elemento primordial uma voz cantando em nossoprprio idioma a abrir dimenses. Isso sempre me intrigava.

    Ento, encarei o desafio de escrever sobre a potica da Jurema Sagrada. Es-crevi um projeto e submeti a este Programa de Ps-graduao. Da surgiram as milquestes: hinrio literatura? O que folclore, o que tradio, o que literaturapopular? Literatura popular sempre apresentada na modalidade oral? Ento ao tomarconhecimento da obra Introduo poesia oral (ZUMTHOR, 2010) muitas dessas

  • Captulo 1. INTRODUO: ENCRUZILHADAS E LEGENDAS EM UM MAPA MUTANTE. 13

    dvidas se dissolveram e se organizaram. Nessa obra, o autor lana uma pertinentediscusso a respeito da excluso ou apagamento da poesia oral do cnone e, aocontrastar esse apagamento com a presena da poesia oral na histria e no cotidiano,demonstrava sua importncia do assunto e a relevncia de estud-lo. Com uma expla-nao que parte sempre das particularidades do prprio objeto e avana de maneirasimples e objetiva, a leitura de Zumthor subsidiou neste trabalho, categorizaes econceitos inerentes poesia oral dificilmente encontrados na crtica de modo geral. Aodescrever e analisar progressivamente meu objeto, fui abordando questes relativas aele, medida que se apresentavam. Assim, ao seguir o fluxo do prprio texto potico,escolhi no lanar um olhar prescritivo sobre a forma/frmula da potica juremeira eme permiti investigar o objeto sem deform-lo com premissas pr-moldadas. O textode Zumthor me apresentou s peculiaridades do registro oral que no deviam/podiamser planificadas ou ignoradas.

    No me restaram dvidas de que tudo comea na voz do povo, sagrada, que cria,recria, agrega e reproduz num movimento orgnico que no se define por nenhumapalavra que no seja bifurcao. At poderia sem esforo chamar a potica da Juremade poesia da encruzilhada (sem renegar os muitos sentidos que vo surgir dessapalavra). Ligando as coisas do alto e do plano terrestre, a direita e a esquerda espiritual1,o ser e a palavra, o tempo e o espao convergindo para se condensar em palavrasregradas, intencionadas, vocbulos que jogam com sentidos, que criam redes deimagens e significados dentro de uma paisagem mental/espiritual sagrada. Ento sim!Por ser encruzilhada, convergente e circular, condensar sentidos, entalhar imagens,por ser esteticamente belo e semanticamente frtil, o lrio da Jurema nasce da artepotica. Chama ateno a impressionante aparncia de naturalidade, espontaneidade,dessas obras. No essa a iluso que a palavra colhida, tratada e manejada no poemanos causa? Quando a vemos somos capazes de pensar que ela se encrustou ali porobra da natureza que em tamanha simplicidade tem o dom de colocar as coisas ondeelas sempre deveriam ter estado. A maneira como o som e os sentidos se comunicamnum verso, como cada um se organiza em uma estrofe, flutuando e se abraando umao outro como se nunca houvessem existido separadamente.

    Ao me deparar com a paisagem sagrada da Jurema e suas amplas possibili-dades de compreenso, senti o ar rarefeito, como se estivesse do alto de um monte,observando o todo. Posio privilegiada para o vislumbre: meu pai mora no alto/ doalto eu vejo bem/ do alto eu vejo quem passa/ do alto eu vejo quem vem (Lrio 32). Edo alto, ou seja, do mbito do geral, vi que h muito o que ser feito e dito. A primeira1 Segundo Andr Souza e Lourival Nascimento Jnior (2013): Direita: Faixa energtico-vibratria

    na qual se manifestam entidades espirituais tidas como evoludas, Pretos-Velho e Caboclos, porexemplo; Esquerda: Faixa energtico-vibratria na qual se manifestam entidades espirituais tidascomo menos evoludas, Exus e Pomba-giras, por exemplo.

  • Captulo 1. INTRODUO: ENCRUZILHADAS E LEGENDAS EM UM MAPA MUTANTE. 14

    coisa a definir era qual perspectiva adotar, dentro da linha de pesquisa, para anlisee crtica desses textos. A escolha foi relativamente fcil, mesmo diante da vastidode possibilidades. Estive sempre orientada pelo norte dos Estudos da Utopia, o quecertamente cooptaria a anlise em algum ponto, a questo era s a de identificar,definir, o tal ponto. Neste trabalho, a interface entre a utopia e a Jurema se apresentaexplicitada em trs lugares diferentes: na expresso do discurso mitopotico2, que fundante por meio da palavra, levando a lrica aos domnios da criao de coisas, serese mundos; pela existncia de lugares mticos espirituais que so a expresso daquelaacepo mais conhecida e celebrada da utopia, a criao de parasos/lugares secretosmaravilhosos; e, por ltimo, na eternizao do ser pela palavra, arrancando-o assimdos dedos da histria e o colocando-o alm do espao-tempo tal qual um/a deus/atotalmente tecido/a por palavras e esperanas. Sempre tive em mente que o tratamentoterico-crtico dispensado aos textos, dentro da esfera dos Estudos Culturais, deveriase ocupar (tanto quanto possvel) de todos os fenmenos que fazem parte de seuespectro de existncia e assim o compe (histria, performance, contexto), sem perderde vista a especificidade com que estou gratamente comprometida, que a de proporuma anlise pelo vis da literatura, em que o eixo central sempre ser o texto. Minhaleitura se constitui como uma leitura de trnsito: partindo do centro para abarcar asperiferias do corpus, buscando dar a ele um sentido de completude (ainda que essesentido esteja limitado pelo recorte escolhido).

    Outra deciso importante que merece ser explicitada o recorte do corpus.Recolhi e cataloguei 100 lrios, peas de domnio pblico, espalhado pela rede emsites, blogs, cds e vdeos, um vasto material ainda no sistematizado. As fontes emque foram recolhidos esto sinalizadas e o material fonogrfico tambm se encontraanexado ao trabalho para uma apreciao mais adequada do/a leitor/a e ouvinte. Oprocedimento que tomei foi selecionar, agrupar e incorporar essas peas ao trabalho.A seleo foi pautada nos seguintes parmetros: categorias/funes ritualsticas doslrios (procedimento melhor explicitado no captulo dois); qualidade lrica; e, por ltimo,recorrncia metafrica e simblica de interesse dessa pesquisa. A deciso de anexaros textos, ao invs de somente cit-los, partiu da necessidade de dar corpo e conjunto,reunir mesmo, em quantidade, essas peas. Gostaria de realar a percepo de queelas formam um conjunto e de que a pequena amostra aqui apresente exemplardo universo de poemas que h l fora, longe de qualquer perspectiva crtica. Almdisso, reuni-las foi tambm minha forma de reproduzir, dando visibilidade a essas peas(mesmo atravs de circulao to limitada).

    Esses poemas, em geral, so denominados de pontos, linhas, cantigas, hinos,2 A mitopotica a expresso do iderio mtico, sacro ou religioso que, por meio da poesia, guarda os

    dogmas, ideologias e histrias de um povo ou de uma comunidade. Apresento e discuto melhor esseconceito ao tratar das bases tericas e conceituais, no captulo 3.

  • Captulo 1. INTRODUO: ENCRUZILHADAS E LEGENDAS EM UM MAPA MUTANTE. 15

    chamadas ou lrios. Escolhi esta ltima denominao, talvez por que seja a menosconhecida entre todas essas citadas, mas tambm a mais particular (menos ambgua)e a mais expressiva de esttica que no deixa de dialogar, simultaneamente, com anatureza (que serve de elemento de comparao e de composio desses poemas)e com a cultura/lngua, uma vez que a imagem da lrica e, assim, do lrico um elemento que pode advir da imagem acstica dessa palavra lrio, uma metforaquase sinestsica. O lrio evoca o cheiro e a brancura da flor, o som da lira. Presentenas imagens da herldica, da religio e da poesia. smbolo de beleza, pureza,entrega mstica ao divino e da eleio do objeto/sujeito amado. Com minha escolha,visei particularizar esse tipo de poema, diferenciado de outros cuja ambiguidade daterminologia poderia fazer com que fossem confundidos, alm de, claro, fazer uso dametfora flor/cor/cheiro/som, cujos sentidos essa palavra atina.

    De volta composio do meu texto, acrescento ainda que procurei dar ao todoares de incurso no universo mitopotico, para o qual convido o/a leitor/a. Ofereodesde j, por meio destas palavras iniciais, as boas-vindas, e sigo apresentando-lheso percurso, o mapa, os lrios e as cores utpicas que tingem os (no) limites desseterritrio sagrado, belo e assombroso que so os encantos.

    O vislumbre panormico se encontra encarnado principalmente no primeirocaptulo desta dissertao, que se constitui o tanto quanto possvel dentro de umaproposta acadmica em uma visada sobre o mundo dos encantos, uma espciede inventrio da imensido. Para tal foi indispensvel circular pelo corredor do tempo,trazendo algo da historiografia dos folcloristas especialmente Camara Cascudo(1978) e Mario de Andrade (1983) , que se ocuparam desse fazer literrio; passarpelos trabalhos de cunho mais etnogrfico e teolgico, como os de Alexandre Oliveira(2011) ; at chegar ao olhar literrio de anlises como a de Jos Jorge carvalho (1997) eClaudiclio Silva (2010), que enfrentam a empreitada crtica sob as luzes da potica,do mito e do texto.

    No captulo trs, a anlise o trabalho. O trabalho investigar o jogo deque o mito se reveste. O mito que poesia. Procurei colocar mesa as estratgiasmotrizes desse engenho, consciente de que grande parte delas ainda est por serdescoberta ou aprofundada, tamanha a gama de jogadas de que esse discursopotico dispe. Para tal, procurei traar um dilogo entre mitologia, potica e jogo,mediado por Johan Huizinga (2012), sem esquecer a contribuio da simbologia, aquinorteada, majoritariamente, pelo trabalho de Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1993).Neste captulo, classifiquei a servio da didtica os lrios de acordo com funesritualsticas que tambm se encontram demarcadas no plano da linguagem-forma queencarnam os versos. Aqui me fao alerta e alerto a/o leitor/a sobre a fragilidade dessasdemarcaes, da possibilidade de embaralhar essa organizao. Talvez caractersticas

  • Captulo 1. INTRODUO: ENCRUZILHADAS E LEGENDAS EM UM MAPA MUTANTE. 16

    comuns entre lrios de diferentes categorias possam surgir, assim como diferenasentre lrios do mesmo conjunto podem se avultar. Portanto, uma mera conveno parafacilitar e agrupar as anlises e que se sustenta se observada pelo (e somente pelo)estratagema proposto, que a clareza e didtica da exposio analtica.

    No quarto captulo, intitulado Nas franjas do porvir, o mirante da utopia, discutoas relaes entre Jurema e utopia que se apresentam em trs nveis distintos: (1) na mi-topotica, cuja temtica tende a criar narrativas fundantes de seres, objetos, mundose que, por isso, tendem a ser narrativas gnmicas, que se situam num tempo maravi-lhoso, o tempo do princpio, conferindo ao universo a que pertencem os lrios/poemasanalisados o seu universo contextual particular, fundando para este universo premissasinternas prprias que diferem e no necessariamente se relacionam como mundo doreal imediato do/a leitor/a ou interlocutor/a; (2) na descrio/criao de lugares/cidadesparadisacos em que vivem as entidades que povoam o imaginrio juremeiro. Esseslugares msticos constituem uma geografia sagrada dos ares que mistura beleza naturalcom o desejo de liberdade e se situam, conforme apontado por Alexandre Oliveira3,numa ruptura do tempo e do espao que possibilita acontecimentos e conhecimentosfabulosos; (3) no processo de encantamento, que, atravs de um arrebatamento doser que habita agora esse lugar onde tempo e espao no obedecem s convenesimpostas pelo real imediato, eterniza o ser como personagem mestre/mestra dessealm maravilhoso, colocando na estratgica e privilegiada posio do porvir. Destamaneira, esse ser converte-se num deus/deusa com poderes capazes de atender sdemandas do povo, transformando-se em agentes do desejo popular, muitas vezes, osnicos que aquele povo pode acessar. Tal discusso , como no poderia deixar deser, permeada pela linguagem e os artifcios a que ela submetida para se revestirno poder transcendente e potico de veicular o desejo, de construir textualmente autopia e de conter e contar por meio da poesia a tradio e a sabedoria inerentes aessa manifestao religiosa genuinamente brasileira, que tem muito a dizer sobre aidentidade e os anseios do brasileiro do Norte-Nordeste. Na Jurema, a palavra opoder, o poder de se fazer e refazer ciclicamente pela voz. A palavra o mapa mutanteque nos conduzir nos meandros da magia juremeira. Se o mapa se transforma, se ele questo de performance, ento o mapa poesia.

    3 Ver (OLIVEIRA, 2011)

  • 17

    2 UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA

    DOS ENCANTOS

    abre-te jurema

    abre-te ajuc

    abre essas cortinas

    varanda ao luar

    j vem chegando j

    o bom saber do outro mundo

    para esse mundo

    para esse mundo

    2.1 Para abrir os trabalhos: o ponto de partida.

    Dizer que nossas artes brasileiras mesclam elementos advindos no s dacultura europeia, mas, tambm, de outras matrizes tnicas, mais pronunciadamentea indgena e a africana; reconhecer e apontar tais contribuies; pensar a maneirapela qual essas formas de expresso se introjetaram na cultura popular e, a partirda matriz oral, como alimentaram a poesia nacional no constitui, em si, novidade. Acrtica literria brasileira, de uma maneira geral, (aqui incluo romnticos, modernistas,folcloristas e culturalistas), por longo tempo, se ocupou desse arcabouo culturalmiscigenado evidenciando seu carter pedaggico, folclrico e sua brasilidade, porassim dizer. No entanto, no tocante acepo literria, esses textos permaneceram,praticamente, margem da crtica dos Estudos literrios.

    H agora uma maior conscincia da dimenso artstica (e literria) presente emcertas manifestaes culturais no-cannicas e da necessidade de sua apreciao.A essa tarefa que se propem os Estudos Culturais, ao eleger como objeto, justa-mente, o conjunto de artefatos artsticos negligenciado pela crtica mais tradicionalista,promovendo sempre que possvel uma reflexo que revisa as posturas anteriormenteempreendidas e reconhece o valor esttico dessas manifestaes. A crtica at aquidispensada ao objeto de estudo dessa pesquisa que o corpus mitopotico decantigas/pontos/linhas da religio Jurema tem se voltado para a novidade, aoriginalidade dos motivos/temas presentes nesses textos e para a sua performance.Poucos so os trabalhos que consideram o carter potico que se evidencia nessecorpus.

    No caso da potica das religies da Encantaria, considerando-se o campo dosestudos literrios, salvo alguns trabalhos produzidos sobre Encantaria maranhense esobre Jurema e outro trabalho de etnomusicologia na interface com a literatura, no

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 18

    encontrei nenhum outro que utilize essa materialidade como corpus ou a sua poticacomo objeto. Em parte, desta lacuna, ou antes, desta oportunidade, no campo dosestudos em literatura, que surge o interesse nesse tema ainda pouco explorado. Poroutro lado, por ser nordestina, essa realidade cultural sempre me foi familiar, tendosido pano de fundo de minha formao identitria. Assim, sendo dela sujeito e tendoacessado esses textos por quase toda uma vida, tive oportunidade de conhecer essecorpus e vivenci-lo.4

    Partindo das reflexes sobre os utopismos na literatura e na cultura que venhodesenvolvendo junto ao grupo Literatura & Utopia , decidi empreender pesquisa sobreessas cantigas, uma vez que plenamente possvel e fundamentalmente importanteproblematiz-lo enquanto objeto dos estudos literrios e culturais. Visava, desta ma-neira, alm de contribuir para duas reas de conhecimento em questo, visibilizar,preservar e dar a conhecer a riqueza literria e cultural que se encontra no cerne destapotica.

    No entanto, os percursos de pesquisa nem sempre so constantes e previsveiscomo tencionamos quando escrevemos um projeto dessa natureza. A escrita demanda,o objeto exige, a bibliografia cresce e as coisas mudam medida que escrevemos. Oque prova apenas que a literatura (por ser expoente da cultura e da lngua) organismovivo. No caso da minha pesquisa, ao propor explorar o cancioneiro da Jurema notocante s Cidades de Jurema, pretendi desenvolver uma anlise, cujo eixo principalseria a descrio dos parasos ou topoi utpicos presentes na construo desseslugares espirituais. Aconteceu que aquilo que me era acessvel, enquanto visitante,conhecida, pessoa do trato dirio, me foi impossibilitado enquanto pesquisadora. Asfontes procuradas foram enfticas ao ressaltarem que, especificamente, essas canes(que fazem referncia s cidades encantadas) no deveriam ser dadas ao conhecimentopblico, pois contm fundamentos e mistrios da manifestao religiosa que nodeveriam ser de conhecimento de no-iniciados. Obviamente, por uma questo de ticao foco da pesquisa foi alterado.

    Voltei ento minha ateno construo deste cancioneiro, enquanto objetoque poderia ser estudado na interface dos Estudos da Utopia com a mitopotica. Aobservao da representao literria do desejo nestas composies, as influnciasmilenaristas e o prprio conceito de mitopoesia torna-se o centro de interesse dapesquisa. Esses eixos, a meu ver, unem-se e confluem, formando um conjunto coesode propriedades ou qualidades destes textos da cultura que favorecem o enfoque4 Fui e sou vizinha de terreiros, frequentadora e conhecedora dessa tradio. Meu posicionamento

    como pesquisadora se coaduna com aquilo que postulou Bakthin, respeito das relaes entrepesquisador e objeto no mbito das cincias humanas, em que no h como sustentar uma pretensaneutralidade e em que o olhar do/a pesquisador/a nasce extamente na especificidade de cada sujeitoe nas relaes de alteridade permitidas por essa singularidade subjetiva (BAKHTIM, 2003)

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 19

    analtico pela perspectiva dos estudos crticos da utopia.

    Ao ser informada sobre as restries acima relatadas, optei por trabalhar commaterial bibliogrfico catalogado por outros/as autores/as e de domnio pblico que noapresentassem impasse tico. Ao faz-lo, pude reunir diversos textos (depoimentos,documentrios, cantigas, msicas etc.) que circulam em variados meios (impressos,audiovisuais e digitais) a respeito do cancioneiro e do imaginrio juremeiro, de forma acompor uma espcie de arquivo que, posteriormente, foi sistematizado, analisado elido atravs do recorte da pesquisa.

    As canes que tratam das cidades no foram abandonadas de todo. Aquelascuja divulgao j se tinha dado por outros meios foram reutilizadas. Nesse ponto,recorri ao mrito de folcloristas como Lus da Camara Cascudo, Arthur Ramos, EdisonCarneiro e Mario de Andrade5 que publicaram vasto material a respeito de Jurema.Nenhum/a pesquisador/a que se propusesse a observar essa manifestao religiosa po-deria ignorar.

    Apesar de os citados autores terem adotado, como esperado, pontos de vistadiferentes cada um orientado pelas correntes de pensamento de sua poca e porsua rea de interesse , acredito ser possvel fazer (sempre ) uma nova leitura luz da perspectiva aqui escolhida e com os olhos do nosso sculo, ponderando essascomposies sob aspecto literrio, sem negar seu carter sacro, e dispensando aelas o cuidado que merecem pela importncia cultural e literria que carregam. Maisprecisamente, o que esta minha leitura traz de novo em relao aos estudos dosfolcloristas, alm da perspectiva literria e culturalista, a tentativa de uma leituramenos apegada a uma viso mais tradicionalista, cannica. Pois, como sabemospor experincia documentada bibliograficamente, a apreciao intelectual de umareligio no hegemnica, de minoria (principalmente e geralmente quando a religiodos outros), vista por uma esfera de valorao etnocntrica, tende a rotular essasmanifestaes como folclore. Essas religies so alvos de comentrios e anlisesdepreciativas sob o pressuposto de serem manifestaes de menor valor intelectual oucultural j que provm de grupos tnicos subjugados pela cultura (letrada) dominante.

    Essa valorao negativa recai triplamente sobre a Jurema por se tratar de poesiaoral (variante que, frequentemente, considerada literatura menor), por ser parte doarcabouo mtico de uma religio minoritria e por ser produto da sntese cultural decamadas do povo, cujo poder aquisitivo e, consequentemente, a influncia sobre osbens culturais quase nula. A Jurema no gera produo de conhecimento intelectualcomercializvel, a no ser quando apreciada como folclore, tradio cultural de todos,a ser preservada, da mesma maneira que os contos populares, as parlendas e aculinria. Essa rotulao, quando posta no campo literrio utilitria, impositiva e hie-5 Ver (CASCUDO, 1978; CASCUDO, 1999; ANDRADE, 1983; RAMOS, 2007; CARNEIRO, 1964)

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 20

    rarquizante, pois, aprisiona uma manifestao religiosa/cultural e literria extremamenterica sob o enfoque de apenas uma de suas possibilidades de anlise.

    Retomando a questo da abordagem das cantigas, afirmo que muitas delasapresentam como motivo literrio parasos mi(s)ticamente construdos. No entanto,no so somente as composies que se desenvolvem em torno do mote das cidadesencantadas que apresentam carter utpico. Esse carter constri essa potica, e porela construdo, de vrias maneiras. Em algumas composies mais evidente natemtica, em outras na forma, mas, finalmente, em qualquer caso, resulta num conjuntode representaes mitopoticas (SILVA, 2010), exclusivo da cultura nordestina6. possvel perceber neste corpus a representao de motivos sacro-literrios nicos,prprios desta mitopotica em particular, que se expressam atravs de estruturaspoticas prprias da literatura popular.

    A ideia comum de bom lugar (eutopus) est mimetizada nessa poesia difundidanos cultos de Jurema, na forma de cantigas, toadas ou hinos prprios desta mani-festao religiosa. A construo dessa ideia de topos paradisaco, feita por essesautores/atualizadores annimos do imaginrio juremeiro, representa no o pensamentode um nico indivduo, mas de toda uma comunidade. Ali tambm veiculado o con-junto de crenas que exprime o conceito coletivo de utopia que est na base dasreligies msticas praticadas no norte-nordeste brasileiro. A palavra eutopia, literal-mente traduzida como bom lugar, est na base do neologismo utopia que se constituinum

    trocadilho na medida em que pode ser entendido no sentido de lugarnenhum (grego, ou no; topus, lugar) ou bom lugar (Grego, eu, bom)e o nome dado originalmente por Sir Thomas More ilha imaginriade seu romance poltico de mesmo nome. ((ERICKSON; ERICKSON,2006)

    O termo utopia, de acordo com seu uso pelo senso comum, indica algo irre-alizvel, uma quimera, um delrio, mas esse termo carrega acepes acadmicasque vo desde a rea da poltica e das teorias acerca da sociedade, passando pelaexpresso de desejos inerentes psique humana (onde abordado pela psicologia)at a literatura, em que denota formas e motivaes artsticas que se caracterizam porsua expresso de um melhor horizonte para as perspectivas ficcionais contrapondo-se realidade de maneira crtica e/ou especulativa. A palavra Utopia, que parte de umjogo lingustico sagaz, abre as possibilidades de se pensar o conceito de utopia eproblematizar a escrita desses bons lugares ficcionais.

    Na medida em que uma tradio em torno das invenes desses parasos foi seconsolidando, a maneira e os meios de escrever e de analisar essas produes tambm6 Considerando-se toda miscigenao pela qual foram forjadas identidades culturais nordestinas.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 21

    foram se modificando e se tornando mais contguos s necessidades colocadas pelaanlise dos textos. A criao do termo utopia surge para nomear essas construesliterrias que vm sendo produzidas pela sociedade/cultura, muito antes do advento dagrafia. A diversidade de abordagens do impulso utpico nas fices faz entrever queo conceito Utopia no pode estar restrito apenas a formas narrativas semelhantes de More. Pois, a coisa, em si, maior que o gnero literrio e que seu mais famosomodelo. Aprofundarei as discusses acerca da utopia na potica juremeira no capitulo4, no qual tratarei das relaes entre utopia, mito/religiosidade e poesia.

    Partindo de uma vertente crtica dos Estudos culturais, defendo o mapeamentodessas expresses literrias como um trabalho de urgente resgate, que poderia, inclu-sive, abrir veredas para que mais estudos sobre essa literatura fossem desenvolvidos,ao reconhecer que as manifestaes da Encantaria esto (veiculadas na cultura oralou letrada) na base da cultura popular no hegemnica do Nordeste. Assim, essapesquisa apresenta contribuio nesse sentido. H uma enorme gama de problemasapreciveis, h particularidades formais prenhes de sentido, h a interao que seretroalimenta entre cultura popular e literatura escrita. H um sem-nmero de vertentese possibilidades interpretativo-analticas que podem informar a leitura crtica destecorpus.

    Desejo que essas veredas possveis se tornem caminhos trilhados para quepossamos conhecer de maneira mais ntima nossa cultura, que no estanque, nemapartada das demais, mas que caminha, s vezes orgulhosa, fazendo distino de sie das outras e, s vezes, sincretizando-se e se metamorfoseando conforme a vogae a necessidade, que nossa e que nos informa e d notcia de ns ao mundo. Eque, por vezes, est descrita e analisada pela curiosidade do olhar estrangeiro nossaliteratura popular, nossa cultura de massa. Somos assim vistos e assim nos vemospela diferena do outro olhar.

    Acredito que pesquisa possa se converter numa experincia intelectualmenterica, ao empreendermos uma jornada de conhecimento do que nos prprio. E, aousar a nossa viva voz prpria como instrumento de questionamento, anlise, mudana,criao e divulgao de nosso pensamento intelectual, que migremos da condionica de objetos para sermos tambm sujeitos na cultura. Que sejamos a alteridade, avoz no homogeneizante, o pensamento mais inventivo e menos reprodutivo, a fim detrazer um pouco de oxignio ao cenrio intelectual contemporneo.

    No esforo de analisar essas expresses literrias e culturais da potica que sefiliam tradio do Catimb, Jurema ou Jurema-de-caboclo7, vejo a necessidade de7 A partir de agora, sempre que for fazer referncia ao culto religioso utilizarei somente o vocbulo

    Jurema, salvo quando estiver me referindo a outras acepes do termo, pois ento ser necessriouso de apostos para promover desambiguao.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 22

    caracterizar e problematizar essa manifestao e sua potica. A seguir, crio para tal umpanorama que serve de prembulo ao trabalho analtico, apresentando a/o leitor/a ascategorias, conceitos e os caminhos que escolhi percorrer para apresentar uma leituraem que a utopia se configura como uma ponte que atravessa a correnteza encantadado rio mitopotico que a Jurema.

    2.2 A Jurema plurissignifica

    Primeiramente, cumpre esclarecer a significao mltipla inerente ao vocbuloJurema que, de acordo com ngelo Sangirardi Jnior8, denota diversas espciesvegetais pertencentes aos gneros: Mimosa, Accia e Pitecelbio. Jurema, tambm, o nome que recebem diversas bebidas ritualsticas a que so atribudas propriedadesentegenas9 e que so conhecidamente utilizadas em rituais de origem indgena noNordeste. Jurema, Catimb ou Jurema-de-caboclo a denominao de uma manifesta-o religiosa que agrega elementos indgenas, africanos e catlicos (que tem lugar nonorte-nordeste brasileiro) e em cujos cultos bebe-se (eventualmente) o vinho de jurema(bebida preparada com a casca e raiz da rvore de mesmo nome) e se entoam cnticosque, associados ritualisticamente a outros expedientes religiosos, levam os adeptose adeptas a transes espirituais. Nesses transes eles/as so capazes de visualizartopografias do imaginrio mtico dessa prtica mgico-religiosa chamadas de Cidadesde Jurema. Por ltimo, Jurema tambm o nome de uma deusa ou entidade msticareverenciada por este culto. Talvez, por conta dessa recorrncia e reverncia, Mrio deAndrade afirmava que: No catimb existe quase uma fitolatria, no culto da jurema. Eleacrescenta outro uso como estupefaciente ritual de catimboseirice, fumada em vez debebida(ibidem, p. 30).8 Cf. SANGIRARDI, 19839 Diz-se dos compostos que contm a Dimetiltriptamina (DMT) presente na Jurema , mesmo

    alcaloide psicoativo da Ayahuasca, bebida xamnica utilizada pelos ndios da Amaznia ocidental e,mais recentemente, pelas seitas religiosas do Santo Daime e da UDV (Unio do Vegetal), tem aosobre o sistema nervoso central (SNC), no metabolismo das funes psquicas. A D.M.T. original uma composio cromtica que proporciona modificaes de dimenses, assim como ilusesacsticas e ticas. Tambm provoca alteraes no humor, como euforia, depresso, ansiedade,distoro na percepo do tempo e espao, bem como despersonalizao, midrase e hipertermia(OLIVEIRA, 2011, p. 1090).

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 23

    Figura 1 Flor da jurema

    Fonte: Eric Assumpo - Acervo pessoal

    Neste contexto,nomeia-se Jurema (1) uma rvore, (2) uma beberagem feitadesta planta com propriedades que agem psicoativamente com fins ritualsticos emquem a ingere, (3) uma prtica mgico-religiosa de tradio nordestina10, (4) lugares oucidades mtico-imaginrias de que se tem conhecimento atravs do transe ritualsticoe das cantigas ou hinos entoados pelos/as adeptos/as que vivenciaram o culto daJurema (5) e o nome de uma entidade que povoa o panteo desta manifestao deEncantaria11.

    No h muito mais o que dizer sobre o carter plurissemntico12 do termoque no tenha sido dito e explicado antes pela nova leva de pesquisadores/as que da dcada de oitenta at a contemporaneidade tem ampliado e atualizado asperspectivas e as informaes dos folcloristas. Esses/as autores/as so, em sua maioria,antroplogos/as e telogos/as interessados/as nas manifestaes de Encantaria.

    Passo agora a apresentar a Jurema como religio, seus smbolos e figuras, aexplorar suas descries de bom lugar , que ligam essas manifestaes utopia pelarepresentao do espao interdito-maravilhoso; bem como seus e suas habitantes egovernantes; seu percurso histrico e a atual face do culto no Nordeste.10 Culto centrado em noes espirituais indgenas, africanas e remanescentes do catolicismo mstico,

    cujas crenas incluem poderes mgicos curativos, clarividncia e imortalidade da alma. As consultasa espritos, o uso de fumo, bebidas, oferendas e cantigas que so base para o desenvolvimento desuas atividades religiosas.

    11 Entre os Cariri, a Jurema a divindade criadora que se apresentou, o passado mtico, ensinando auma das primeiras mulheres a preparar uma bebida especial (MOTA; BARROS, 2002, p.36)

    12 Para uma explanao mais variada do termo Jurema e seus usos confira o artigo intitulado Teologiada Jurema: existe alguma? (OLIVEIRA, 2011).

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 24

    2.3 As Cidades de Jurema ou encantos

    preciso compreender, inicialmente, o que aqui chamo de Cidades de Jurema.Entendo, com (OLIVEIRA, 2011) , que as Cidades da Jurema so locais/espaossagrados onde vivem os caboclos e caboclas, mestres e mestras, trunqueiros e trun-queiras, entre outras entidades e divindades, [e] nos mostram uma cosmologia densa ecomplexa (p. 1083).

    H ainda aqui a dupla significao do vocbulo cidade dentro do contexto daJurema, por isso, adoto perspectiva semelhante de Sandro Salles (2010, p23-24) queargumenta que a palavra cidade:

    Refere-se a dois espaos distintos e ao mesmo tempo interligados. Afronteira entre ambos tnue e complexa, uma vez que so igualmentedescritos como a moradia dos mestres encantados. Assim, o termorefere-se tanto aos sete reinos que compem o reino encantado da Ju-rema, espaos mticos, invisveis, tambm denominados os encantos,quanto aos santurios formados por um ou mais ps de jurema [rvore,objeto fsico], encontrados na regio, denominados Cidades de Jurema(SALLES, 2010) .

    A descrio das Cidades encantadas de Jurema ou encantes remete aos parasosnaturais, s descries buclicas do bom lugar, de natureza generosa, onde fartura etranquilidade so imperativos. As Cidades de Jurema, apesar de paradisacas, no so

    um lugar de descanso ou ventura para os bons mortos. Antes, so povoadas porespritos temperados por diversos tipos de personalidade e orientao

    moral/tica. Constituem portais no presente, uma espcie de suspenso mtica ea-histrica no espao-tempo comum, que permite a essas entidades gozarem de

    poderes msticos de trnsito entre-mundos. Aqui me baseio em Salles (2010, p. 112),quando este afirma que As cidades da Jurema so lugares sagrados e, como tais,constituem uma ruptura na homogeneidade do espao, demarcando, assim, umageografia sagrada (grifo meu). No entanto, entendo que no s o espao, mas o

    tempo outro. As cidades situam-se em um tempo mtico, a-histrico esagrado (ELIADE, 2010) que difere deste que experimentamos na contemporaneidade.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 25

    Figura 2 Consagrao. Detalhe ao fundo: representao das cidades, atravs das taas.

    Fonte: Eric Assumpo - Acervo pessoal

    Assim, os Encantos so lugares mticos, reinos invisveis, inacessveis (ouquase inacessveis) aos vivos, a que so atribudos a cincia13, um poder mgico-curativo, que exerce sobre quem a visita um fascnio irresistvel. Essa geografia msticapode ser lida como mitopoesia, no sentido atribudo por Claudiclio Silva (2010) con-ceito que irei explorar um pouco mais adiante. A construo de um territrio do desejo,uma nao imaginada (ANDERSON, 2008), um procedimento pronunciadamenteutpico, ainda mais quando esse reino perfeito representa o interdito, a ilha inacessvele maravilhosa que est ao alcance de poucos/as, mas que povoa o imaginrio detodos/as. Para fazer uma leitura da Jurema pelo vis utpico, necessrio entenderesses lugares como ilhas interditas. Para melhor compreender a natureza dessasrestries e condies, convm citar as consideraes de Mundicarmo Ferreti (2008, p.4, grifos meus):

    Ao contrrio do que ocorre com os locais ligados vida ou a apariesde santos e almas milagrosas, a aproximao de encantarias s

    13 curioso notar que a cincia (sabedoria mgica) no emana da cidade em si, mas ela dada/alimentada a/na cidade por uma mestra ou mestre juremeiro, pessoa viva que cultuava osencantos e que agora passa a agir como guardio/ dessa sabedoria mgica.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 26

    permitida a poucas pessoas, as que recebem encantados de l e foramautorizados por eles. E quem se aproxima de lugares encantados (nasguas ou nas matas) para fazer uma oferenda ou buscar algo solicitadopelos guias espirituais (como pedra, areia, etc. para assentar um terreiroetc.), costuma sair de l sem olhar para trs, pois fala-se que muitosdos que viram encantados ficaram doentes ou morreram logo depois.Adverte-se tambm que intromisses, curiosidades e profanaes deencantarias so severamente punidas, pois quem no pertence s suaslinhas rejeitado pelos donos do lugar .[grifos meus]

    No por acaso, os portais para esses lugares so secretos e isolados (FERRETI,2008), a dificuldade de acesso protege de invasores e inimigos e tambm da banali-zao da sacralidade daquele lugar. O encante cumpre tambm a funo de fonte oureserva de energia (ibidem), deve ser protegido do grande fluxo de pessoas. Essa uma das caractersticas da espacialidade utpica: ser ermo e hermtico, no entanto,maravilhoso e desejvel, simultaneamente. O viajante/visitante tem de ser convidado,sua presena ou solicitada para o cumprimento de alguma tarefa ou permitida pelosdonos do lugar, por ter o viajante caractersticas ou atitudes que o revestem dessedireito. Alm disso, nas palavras do sacerdote Pai Luiz Tayand14: A encantaria umaregio tridimensional, onde quem entra jamais pode voltar.

    Nos estudos dos folcloristas sobre a Jurema, encontramos certa variao nacatalogao. O nmero de cidades que formam reinos ou estados varia entre cinco eonze. Os nomes tambm variam, mas sempre mantendo a lgica de atender a umaonomstica formada por elementos naturais. Mrio de Andrade (1983, p.75) encontrouas seguintes variantes: Vajuc, Cidade do Sol, Florestas Virgens, Fundo do Mar,Juremal, Vento, Rio Verde, Cova de Salomo, Ondina, Urub e Cidade Santa , todasapresentando caractersticas paradisacas, mticas. J de acordo com os estudos deCamara Cascudo, cada aldeia tem trs mestres. Doze aldeias fazem um Reino com36 mestres. No Reino h cidades, serras, florestas, rios (CASCUDO, 1978, p.54).Tambm bastante varivel a lista dos reis e rainhas que comandam cada um dosreinos ou cidades.

    Explorando ainda a geografia dessas cidades, encontramos um dado bastanterevelador: o conjunto de Cidades denominado Reino ou Estado, fazendo refernciaa algum tipo de organizao sociopoltica. Rei Salomo, Rei Sebastio/Rei Sab,Mestre/Rei Tertuliano, Rei Heron, Dom Lus, Sulto Toy Darsalam e suas filhas, asprincesas Mariana, Herundina e Jarina, entre outras figuras da realeza, habitam osReinos e Cidades e, na maioria das vezes, ocupam papel de governantes. Esse dadose confirma em inmeras descries das cidades recolhidas por pesquisadoras/es15,sendo constante e abundante essa aluso s figuras de realeza e importncia histrica.E foi exatamente essa constatao que capturou meu interesse para as relaes entre14 Cf. A. . . , 200515 Cascudo (1978), Andrade (1983), Salles (2010), Oliveira (2011), Ferretti (2008), entre outros.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 27

    essas figuras reais heroicas e os parasos encantados, pois pode se ler nesse dado umaforte aproximao entre Jurema e milenarismo, especialmente sobre as manifestaesde sebastianismo16, uma vez que a figura de Rei Sebastio exaltada e cultuada emtoda a Encantaria do Norte e Nordeste, incluindo a Jurema. Desta maneira, no terceirocaptulo, no qual enfoco de maneira mais aprofundada o carter utpico da mitopoticada Jurema, ser necessria uma breve incurso no sebastianismo (especialmente emsuas manifestaes literrias), com vistas a entender a relao intrnseca entre a utopiae a Jurema.

    igualmente conveniente explorar o conceito e a descrio dos encantadosque so os cidados dos reinos ou cidades de Jurema. Chegamos ao tempo, ento, deconhecer os habitantes desses parasos de f e poesia.

    2.4 Os encantados

    Uma narrativa constante que faz parte do arcabouo mtico dessas religies a figura do encantado. Este ente mgico, no estando entre os vivos nem entre osmortos, tem no trnsito entre mundos, em sua relao diversa com o tempo e emseus poderes msticos, suas principais caractersticas. Dentre esses seres h umagrande quantidade de figuras cujos nomes e histrias remetem realeza so reisencantados ou encobertos.

    A palavra encantado na lngua portuguesa adjetivo corrente e denota algoou algum que pode ter sido (1) vtima de encantamento ou (2) que se deixou enredar,arrebatar, deslumbrar, etc. Enquanto substantivo de acepo religiosa, remete enti-dade ou esprito de ancestrais indgenas que se cultua nos terreiros de candomblsde caboclo ou qualquer dos seres que se supe ter poderes sobrenaturais na crenaindgena ou cabocla. A apresentao dicionarizada do substantivo encantado, comsinalizao para sua significao religiosa, j revela a presena do conceito no imagi-nrio e, consequentemente, no repertrio lingustico do brasileiro. Se o que dito estvivo, a simples presena desse verbete dicionarizado j aponta para a vivacidade dacrena nessas entidades no exerccio religioso dessas manifestaes populares.16 O sebastianismo a crena espiritual, poltica e proftica de base milenarista que postula a volta do

    Dom Sebastio, rei de Portugal, desaparecido em batalha no Marrocos, para libertar o seu povo dojulgo de Castela.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 28

    Figura 3 Encantado apresentando-se no terreiro

    Fonte: Eric Assumpo - Acervo pessoal

    Algumas caractersticas atribudas aos encantados (e mais notadamente suacapacidade de trnsito entre mundos) foram elencadas pela pesquisadora MundicarmoFerreti (2008, p.1), de maneira bastante didtica, como possvel constatar na citaoque segue:

    Os encantados [. . . ] portanto no so classificados como santos, anjos,demnios e nem como espritos de mortos. So representados [. . . ]como: 1) seres invisveis maioria das pessoas ou algumas vezesvisveis a certo nmero delas; 2) que habitam as encantarias ou in-cantes, situados acima da Terra e abaixo do cu, geralmente emlugares afastados das populaes humanas; 3) que tiveram vida terrenae desapareceram misteriosamente, sem morrer, ou que nunca tiverammatria; 4) que entram em contato com algumas pessoas em sonhos,fora de lugares pblicos (na solido do mar, da mata, por exemplo) oudurante a realizao de rituais medinicos em sales de curadores epaj, barraces de mina, umbanda, terec (religies afro-brasileiras) eem outros locais onde so chamados.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 29

    No Nordeste, o vocbulo encantado sinnimo de envultado. Em suma, asentidades, encantadas ou envultadas, so espritos humanos (no necessariamentesob forma humana), que passam a existir no plano espiritual. Essa existncia se dno atravs do processo de desencarne, mas por uma espcie de arrebatamentomgico/mstico, que os leva para uma dimenso espao-temporal diferente da do planofsico. No esto mortos, tampouco esto vivos. So espritos em trnsito, agindonesse lugar espiritual denominado Cidades de Jurema (para as religies nordestinas),encantos ou encantes (para as religies do norte do Brasil), para a melhoria do mundofsico, prestando tambm assistncia a seus/suas discpulos/as. Essa assistnciarevela-se na forma de trabalhos espirituais de cura, resoluo de contendas, problemasafetivos, financeiros etc.

    A existncia desses espritos em trnsito dessas entidades que vagam pelomundo espiritual enfrentando demandas faz recuperar a ideia dos benandanti ouandarilhos do bem, sujeitos campesinos do nordeste da Itlia que praticavam umculto de contornos cristos, com forte ascendncia nas religies da terra (stregoneria).Tal culto agrgrio entra para o discurso da historiografia das mentalidades, atravsdo trabalho Os andarilhos do bem: feitiaria a cultos agrrios nos sculos XVI eXVII, (GUINZBURG, 1988), que ao recuperar e analisar documentos da inquisionos quais constavam acusaes de bruxaria contra diversos camponeses, trouxe aoconhecimento do pblico esta forma de culto.

    Os benandanti, assim como os encantados Rei Sebastio, Malunguinho, SultoToy Darsalan, entre outros, eram guerreiros do bem que , por meio de viagens (transe)ao plano espiritual, iam combater as foras opositoras (ditas obscuras), a fim de res-guardar a colheita, a fertilidade, a segurana do vilarejo etc. Como se pode perceber,alm do fato de serem combatentes espirituais, os benandanti, assim como os jure-meiros, professavam uma f ligada a terra e s foras da natureza, j com influnciascrists e suas entidades se constituiam de um poder militar/blico de combater o mal.Retomarei essa discusso, a respeito da beligerncia de certas entidades, mais adiante,quando tratarei da relao entre o sebastianismo e as entidades da encantaria.

    A respeito das caractersticas dos encantados, de uma maneira mais geral,Alexandre Oliveira (2011, p.1100) esclarece-nos, ao afirmar que:

    As entidades so os espritos desencarnados dos ancestrais que foramdivinizados pelo povo nordestino, como: os ndios e ndias, caboclos ecaboclas, cangaceiros e cangaceiras, marinheiros e marujos, ciganos eciganas, brabes sertanejos, crianas, marginais e malandros, prostitu-tas, mestres de coco, mestres e mestras dos saberes da vida e antigoscatimbozeiros e catimbozeiras, que por algum motivo especial para opovo, se tornaram heris dignos de culto.

    consenso entre os/as pesquisadores/as que essas entidades habitam lugares

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 30

    mgicos/mticos do plano espiritual e que se conectam com o mundo fsico, atravsde mdiuns em sesses religiosas ou por meio de passagens que se apresentamem lugares a que se atribuem a caracterstica de portais. Essas conexes com osencantos so bastante conhecidas na literatura popular, so praias (como Tambaba PB, Lenis-MA), Ilhas (Ilha de Maraj, Itamarac-PE), matas e stios (Catuc/Matasde Pitanga II PE, Acais-PB), cachoeiras (como Paulo Afonso-BA Kukenan,), rios(como o rio Negro-AM, So Francisco-MG/BA/PE/SE/AL, Rio Ipanema-AL) ou mesmocavernas, rvores e outros stios naturais (estreito de Gilbraltar, tringulo das Bermudas,a rvore conhecida pelo nome de juazeiro e o prprio p-de-jurema etc.).

    Ento, alm de serem os mediadores entre o mundo da Encantaria e o mundoreal, com suas caractersticas peculiares, essas figuras tambm carregam em suacomposio a carga mitolgica das aes mgico-curativas pelas quais so respon-sveis e a forte referncia ao contexto nordestino, ao seu folclore, seus personagens,seus tipos. Faz-se comum nas cantigas, alm da referncia s cidades, a presena depoderosos reis, caboclos feiticeiros, princesas misteriosas, boiadeiros e cangaceiroscorajosos, todos habitantes de um lugar que no se localiza nem no mundo concretonem no destino mstico espiritual dos imaginrios das culturas hegemnicas, como oda tradio crist. Na Jurema, esses lugares so descritos como sendas misteriosasda natureza. Os habitantes dessas terras etreas voltam para o nosso mundo paratrabalhar em favor de seus discpulos, conforme se pode constatar no exemplo abaixoque faz referncias a uma entidade protetora e a uma cidade mstica e maravilhosa,com o acrscimo de veicular tambm a influncia do cristianismo popular (ver grifos).

    que cidade to linda aquela que eu estou avistando a cidade de Campos Verdes, luz do mundo a cidade de Tertuliano

    E eu aviso aos Senhores MestresQue a minha cidade, ela tem cincia17

    de Panema, de PanemaTertuliano trabalhando na Jurema

    E Ele me ordenouPara um dia eu trabalharEis Tertuliano, Senhores Mestres!L do Jurem18

    Olha l, Tertuliano!Os teus prncipes esto te chamando

    17 De acordo com Oliveira (2011), dentre os vrios significados associados cincia esto as ideias deconhecimento, complexidade, prtica, conscincia, auto aprendizado, busca, saber, doutrina, procurade verdades. A cincia da Jurema seria ento o conjunto de prticas, dons e conhecimentos quecompem o saber associado a religio.

    18 Variao comum do vocbulo juremal que denota uma das cidades e tambm pode referir-se aoReino, conjunto de cidades encantadas da Jurema.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 31

    Com os poderes de Jesus CristoMalefcios vai quebrando

    E o menino est chorandoNa torrinha de Belmoi, se aquiete esse meninoQue o seu recado vem

    Neste caso, o mestre encantado evocado, rei Tertuliano19, habita a cidade jure-mal, caracterizada pelos campos verdes, por ser luz no mundo. A figura histrica daigreja catlica, desde o Juremal envia aos seus discpulos ou prncipes ordens de tra-balhar. Seus seguidores e suas seguidoras aguardam sua apario para se imburemdos poderes de quebrar os malefcios, cuidando, assim, do povo. Interessa, tambm,notar a referncia ao Rio Panema20, que corre pelo serto alagoano. Em muitas dessascantigas, vamos encontrar aluses a espaos fsicos que so parte da geografia realdo Nordeste, indicando, possivelmente, as regies onde foram compostas.

    Alm dos reis e demais figuras da realeza, misturam-se tangerinos, caboclose curandeiras, formando essa populao mgica heterognea que habita as regiestridimensionais da Encantaria e o imaginrio do povo nordestino. Aqui, mais umavez, recorro a Alexandre Oliveira, que elencou os tipos e funes de encantados, oscategorizando da seguinte maneira:

    Ainda, as entidades so identificadas nas classes de: 1. Caboclos ecaboclas, ndios e ndias e pajs (entidades das matas, que regem todaa Jurema); 2. Trunqueiros/Exus de Jurema21 (que so entidades deesquerda, que trabalham em diversas funes, onde uma delas adefesa da casa); 3. Os Mestres e Mestras, que so os orientadores dacomunidade e curandeiros, assim como os anteriores (ibidem, 2011,p.1100-1101).

    Essa terceira categoria especial de encantados, citada por Oliveira, que so osmestres e as mestras de Jurema, constituem uma casta de lderes que se dedicaram Jurema enquanto vivos e que, ao morrerem, encantaram-se, eternizando-se no panteoda Encantaria. Assim, aos j citados , acrescento Maria do Acais I, Maria do Acais19 Provvel referncia a Quintus Septimius Florens Tertullianus (c. 150 - c. 220) era cartagins. Figurou

    nas pginas da histria como advogado da Igreja de Roma, escrevendo a20 A nascente do rio Ipanema se situa no municpio de Pesqueira-PE e segue seu curso pe-

    los estados de Pernambuco (aproximadamente 139 km) e Alagoas (passando pelos mu-nicpios de Santana de Ipanema e Dois Riachos), na direo norte-sul, at desaguarno rio So Francisco. Fonte: Agncia pernambucana de guas e Clima. Disponvel em:www.apac.pe.gov.br/pagina.php?page_id=5&subpage_id=16 Acesso em: 2 Out. 2017.

    21 Nesta categoria entram os crioulos e as entidades de origem afro-brasileira, cuja influncia fortssimadentro do culto. Entre os mais conhecidos esto pomba-giras, Tranca-ruas, malandros, boiadeiros etc.Com destaque especial para as entidades Z Pilintra e Maria Padilha, que so conhecidas e referidasnacionalmente.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 32

    II22, Mestre Zezinho, Mestre Incio, Mestre Flsculo, etc. Os nomes citados todos soreferentes a famosos/as juremeiros/as da conhecida dinastia do Acais, regio da cidadede Alhandra, na Paraba, grande centro de desenvolvimento da religio Jurema, cujaimportncia reconhecida nacionalmente. Esses Juremeiros, portanto, foram figurasviventes que passaram pelo processo de encantamento, tornando-se agora habitantese governantes nas cidades de Jurema.

    A prpria Cabocla Jurema (aqui referida como entidade) tambm vem compor apopulao dos encantos, recebendo um status especial, de acordo com sua importn-cia, conforme nos sinaliza Oliveira (2011, p. 1097): A Jurema, em si, ainda representae materializa uma deusa, j que, para a maioria dos povos indgenas do Nordeste, adivindade suprema da existncia seria mulher (Me Tamain).

    Por ltimo, cito duas categorias a que o pesquisador pernambucano tambmmenciona em suas consideraes: os encantos da natureza e as figuras histricasdivinizadas.

    Os encantados da natureza, por sua vez, representam uma classe de entidadesque jamais viveu sob a forma humana, mas so agentes espirituais que habitam asregies mgicas dos encantos. Como exemplo de tais entidades, temos animais eforas naturais encantadas como Comadre fulzinha, o Boto, boitat, me dgua,sereias, entre outros/as.

    As figuras histricas reais tambm podem ser divinizadas e transformadas emencantos ou entidades que baixam nas mesas, cumprindo a funo de patronos/as,defensores/as e governantes de encantes, a seguir apresento duas dessas figurasescolhidas por sua importncia no culto juremeiro.

    2.4.1 Rei Sebastio, Malunguinho e as representaes da realeza encantada

    Abro espao, ainda no contexto desta discusso acerca das entidades encan-tadas, para o sebastianismo como objeto de culto juremeiro (e de outras religies deencantaria), pois, creio ser bastante pertinente a ligao entre Rei Sebastio e utopiapara este estudo. Assim, primeiramente, fao uma breve introduo sobre a figura deRei Sebastio e das manifestaes sebastianistas. A seguir, ilustro a presena destemonarca na mitopotica juremeira; e para finalizar, discorro sobre as imbricaes entresebastiansimo, mito e utopia. Claudiclio Silva (2010, p. 31) apresenta a trajetria dorei encantado da seguinte maneira:

    Sculo XVI d.C. - Portugal espera um rei ardentemente. O desejadonasce, e o reino no cai em mos espanholas. Aos 24 anos, na frica,

    22 Mestra Maria Eugnia Gonalves Guimares a segunda Maria do Acais, uma lendria recifensemestra de Jurema que nos deu parte essencial do molde de culto que conhecemos, hoje, nos terreiros.Portanto, saudada e lembrada em todas as casas (OLIVEIRA, 2011, p. 1101).

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 33

    numa batalha contra os mouros, o rei perece, tornando-se o Enco-berto, e s resta a Portugal voltar a sonhar com o seu retorno, para afundao do Quinto Imprio. Metrpole e colnias constroem e passama alimentar o mito do ocultamento, propagando-o atravs de narrativasorais, trovas, cantos, cartas, sermes e relatos da vida e da morte dorei. (grifo meu)

    Rei Sebastio, foi um monarca Portugus que representava muito mais queautoridade real, a esperana de um povo, pois, como nos esclarece Marcio Honoriode Godoy, ele j existia antes de nascer [. . . ] encarnando as expectativas e vontadesde uma nao vida por manter seu papel especial entre as outras naes do mundo.(2009, p. 18), recebendo, por isso, o primeiro epteto que lhe atribudo: o desejado.As circunstncias de seu nascimento acabam por significar um momento no qual,mesmo sendo relmpago, consegue fazer coincidir, novamente, os desejos da coroaportuguesa com os do povo (ibidem, p. 19). Sebastio materializa a esperana popular,tornando-se o depositrio da adorao e da afeio sincera dos portugueses. Poucospersonagens histricos, desde sua primeira apario nas pginas da literatura, sejamestas crnicas supostamente fidedignas realidade ou textos poticos, profticos erelatos que compem os mitos, se ligam utopia. Afirmo junto Godoy que El-rei D.Sebastio

    [. . . ] formou sua personalidade, tanto histrica quanto mtica, agindo(em sua existncia histrica) sendo reinventado (em moventes textosda cultura) muito pelos impulsos emanados dos adjetivos que foram seacoplando a ele, e acompanhando sua pessoa. (GODOY, 2009)

    possvel afirmar que a caracterstica mais proeminentemente utpica de reiSebastio seu eterno porvir. Pois, enquanto existir no homem a vontade de tornar-sealgo alm o seu estado atual, algo que o torne mais potente que sua condio presente,Dom Sebastio retorna eternamente renovado (2009, p. 18). Alm disso, a morte noo alcana, o rei dado por desaparecido, aos 24 anos, na batalha de Alccer Quibir,no Marrocos, norte da frica (1578) e seu corpo jamais encontrado, sua trajetriapermanece inacabada enquanto h o desejo no homem de se alar sobre si mesmo,em busca da proximidade com o encantamento do mundo e com o sagrado (idem).

    No entanto, a fora de sua lenda no diminuiu com o passar dos tempos edo viajar pelas colnias. No Brasil, a lenda do rei encoberto, vai ecoar em diversasmanifestaes culturais, literrias e religiosas23. interessante notar a tenso entre23 Cmara Cascudo relata em seu dicionrio do Folclore Brasileiro, uma das verses da narrativa mtica

    de D. Sebastio, na qual o rei tendo se transformado num touro fantasmagrico assombra a praia deLenis. Para libertar o monarca de sua condio bestial seria necessrio que algum com coragemsuficiente o ferisse letalmente na testa, local em que traz um sinal no formato de estrela. Uma vezrealizado esse feito, todo o reino encantado de Rei Sebastio que se encontrara submerso, emergiria,apagando do mapa So Lus do Maranho (Cmara Cascudo, 1972, p.875). Nessa verso, a volta de

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 34

    os eptetos desejado e encoberto ou ocultado, o que refora o carter utpico destapersona. A mirao/esperana jamais se realiza. A redeno que no se encontra emparte alguma. O desaparecimento do rei em circunstncias no esclarecidas vai somar-se com a veemncia com que o povo nega a perda de sua grande nica esperana,fazendo nascer a crena sebastianista que muda de nome ao longo do tempo, masque no arrefece por completo. O sebastianismo , por excelncia, a utopia nacionalportuguesa. O pas das grandes navegaes, nao que se reputa ter nascido de ummilagre (o de Ouriques) e que sempre buscou, sob a gide da cristandade, a expansoimperialista e a conquista de mundos novos. Bem se v a tendncia para a crenareligiosa e a peleja pela glria.

    Tal qual uma representao de um messias, lder social e religioso, D. Sebastio,expresso de desejo, alcana para sempre o imaginrio de Portugal e de pases coloni-zados pelos portugueses. A importncia de seu promissor papel poltico, encorpadapelos traos carismticos dos relatos populares acerca de sua figura, passa a alimentara tradio utpica oral e escrita na literatura de lngua portuguesa. Atravs de D. Joode Castro cuja luta pelo resgate da soberania lusitana destacada, as trovas de ttuloParaphrase et Concordancia de Alguas Propheias de Bandarra apateiro de Trancoso(que teriam sido escritas entre 1530 e 1540) so reproduzidas e comentadas por voltade 1603 (GODOY, 2009, p. 24). Este texto potico, de conotaes messinicas, temsido editado e reproduzido desde ento. Ainda de acordo com Godoy:

    A partir de sua [de D. Joo de Castro] interpretao, surge, enfim, umsebastianismo que ressalta contornos milenaristas, utpicos, escatol-gicos, transformando esse texto na bblia do sebastianismo, como bemobservou Joo Lcio de Azevedo em seu conhecido livro A Evoluodo Sebastianismo. (GODOY, 2009, p. 24)

    Assim, com o processo colonizatrio, chega ao Brasil, junto com o povo por-tugus, a ardente crena no rei encoberto. Atravs de cidados degredados, algunsdeles exatamente por espalhar em terras lusas as profecias de Bandarra, rei Sebastiochega s novas terras. Deste modo, o mito do encoberto como texto da cultura passaa fazer parte de uma rede de transmisso e recepo que permite sua viagem pelotempo-espao (GODOY, 2009, p. 29). Num solo de descobrimentos e de promessade liberdade e recomeo, as terras recm-achadas tornaram-se um ambiente propciopara o alastramento do mito.

    D. Sebastio luso mistura-se com as tradies e mitos das matrizes culturais quese embatem no novo territrio, tornando-se uma amalgama longeva que se reitera e se

    dEl rei realizar-se-ia de maneira convulsiva e apocalptica, com a promessa do renovo por meio dadestruio do sistema vigente para implantao da perfeio. Facilmente, reconhece-se ecos da novaJerusalm bblica nesse reino sebastinico. Alm da necessidade de ferir de morte o messias, que foiarrebatado, mas que retorna para libertar seus devotos da secularidade, levando-os a eternidade.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 35

    atualiza a cada voz que o invoca. O encoberto se revela e se renova na performancee nas cores das terras e povos que dele se servem como alegoria de esperana,tornando-se a materializao do vir-a-ser, uma esperana que no recebe senoreticncias no imaginrio e na potica popular.

    a figura de D. Sebastio comparecer em movimentos populares rebel-des e religiosos do Serto nordestino [. . . ] E hoje ainda vive com fortepresena no antigo territrio do Gro-Par em narrativas de lendas trans-mitidas oralmente e em manifestaes da religiosidade afro-brasileirado Tambor de Mina e da Pajelana, sofrendo transformaes constantesem sua viagem virtual. (Ibidem, 2009, p. 30)

    Essa crena, tanto crist quanto hertica, do rei que jamais morreu, pode terorigem em romances de cavalaria que j se mostram em histrias como a do rei Arthur.No Nordeste brasileiro, essas histrias vo inspirar inclusive movimentos rebeldes.Herdeiros desta tradio so muitos, desde a literatura de cordel aos eventos emtorno da Pedra do Reino. As manifestaes sebastianistas so visveis e ainda vivasna cultura, msica, literatura, no cinema e na histria da poltica24. Enlevando asesperanas do povo e as assentando sobre Canudos-BA e sobre a Pedra do Reinoou Pedra Bonita-PE, uma histria que vai da utopia distopia, passando pelas raiasda loucura e do beatismo. A repercusso do sebastianismo no Nordeste no podeficar restrita a lembranas dessas tragdias, embora seja impossvel abordar o temasem mencionar a existncia desse movimento poltico utpico/distpico. Superando aexistncia histrica e mortal, Dom Sebastio eterniza-se na mentalidade popular pormeio da mitologia e da literatura. O monarca e seu contraponto literrio (personagem)no coincidem, pois, o segundo tornou-se autnomo em relao ao primeiro. O fato que Dom Sebastio figura primordial nessas manifestaes religiosas brasileiras,no importando se seu molde foi literrio ou histrico, o rei encantado adorado dasgentes.

    A batalha de Alccer Quibir, do ponto de vista da literatura, no teve perdedores.Pois se de um lado, na Turquia os feitos heroicos dos trs bravos reis so contadose recontados se eternizando na memria do povo, conforme nos afirma Lucette Va-lensi25, por outro lado o Rei imortalizado, vivo em esperana e pleno de possibilidadede liberdade, jamais morreria. O processo de encantamento se d, neste caso emparticular, por duas vias. O encantamento que diz respeito crena espiritual de queaquele que se foi (no caso o rei Sebastio), na verdade, encontra-se aqui no presenteeterno e atuando por seus sditos/fiis; e pelo encantamento performatizado pelalinguagem potica que eterniza no s o rei, mas tambm os combatentes mouros na24 Vide Joo Cabral de Melo Neto; os Cordis de Leandro Gomes de Barros; as msicas de Cordel do

    fogo encantado, Rita Ribeiro, Marienne de Castro; e o filme Deus o Diabo na Terra do Sol, de GlauberRocha; entre outras obras conhecidas.

    25 Cf. VALENSI, 1994

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 36

    memria de seus respectivos povos, ressaltando o processo que Valensi to belamenteexplica a confeco da memria feita da soma de inmeros expedientes (apagamento,mentira, reformulao, etc).

    Reconhecendo a importncia dessa manifestao espiritual literria, tanto paraos estudos da utopia, quanto para a mitopotica juremeira, proponho uma pequenaanlise de fragmento a guisa de ilustrao das caractersticas principais desse encan-tado. Destaco, especialmente no trecho que apresento a seguir, a chefia territorial emilitar representada pelo encoberto. Neste fragmento do lrio, em que Rei Sebastio citado numa louvao endereada a Malunguinho, entidade sobre a qual dissertareimais adiante, interessante observar a unio de duas figuras histricas a quem sorelegadas aes combativas (militares) de libertao. So dois guerreiros, autoridadede representatividade para seus respectivos povos, ambos so chefes de Naes. Pois,convm lembrar que, por certo perodo de tempo, o Catuc constituiu-se como umenclave de resistncia e mesmo uma nao dentro das matas.

    Em cima daquela serra

    Tem um cruzeiro assentado

    do Reis Sebastio

    Que dono deste reinado

    Em cima daquela serra

    Tem um cruzeiro de ouro

    do reis Sebastio

    Que dono deste tesouro

    Na encantaria nordestina (tanto na Jurema, quanto no Tambor de Mina) as qua-lidades blicas dessa entidade em particular so amplamente ressaltadas. Somentepara ilustrar e reforar essa afirmao, trago como exemplo a seguinte toada mineira:Reis Sebastio, Guerreiro militar/ Rei Xapan, ele pai de terreiro/ encantado dentroda guma26 real. Tambm igualmente importante destacar que os dois assumemposio de liderana e se tornam smbolos das lutas em que se envolveram. EnquantoMalunginho torna-se um mrtir da resistncia pela liberdade negra e contra a escra-vido e contra o poderio dos escravocratas que oprimiam o povo negro escravizado,Dom Sebastio encanta-se exatamente numa batalha contra os mouros, defendendoa cristandade, ou seja, torna-se um mrtir do cristianismo. A forte ligao de ReiSebastio com o cristianismo, neste lrio, evidenciada pela repetio do verso tem umcruzeiro assentado e seu combate religioso, fazem recuperar, na historiografia dasmentalidades, o tema dos Benandanti , guerreiros espirituais que combatiam forasobscuras em defesa da fertilidade da terra. Sinalizar a relao desses cultos com a26 Guma tem o mesmo significado de gong na jurema (terreiro, casa).

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 37

    Jurema significa lig-los, no somente pelos traos cristos que apresentam, maspodem levar a uma conexo da encantaria com antigas formas de devoo europeiasde origem pag. A aproximao dessas duas manifestaes certamente, ainda temmuitos contributos a oferecer para o estudo de ambas. Apesar de estar margeando ocampo dos estudos das mentalidades por todo o percurso do texto, seriam necessriosum maior aprofundamento terico e uma anlise comparativa cuidadosa de materiaisacerca desses dois fenmenos religiosos para balizar uma discusso mais consistente.Tal investigao, no momento, foge ao escopo deste estudo, mas se apresenta comouma potencialidade de anlise e extenso/continuao da presente pesquisa.

    A simbologia do cruzeiro na Jurema, melhor explorada no captulo 3, na se-o que trato de firmeza, aqui evocada e repetida como sinal da presena destaentidade. O cruzeiro de ouro est assentado em cima de uma serra. Os lugares altose verticalizados, em especial as montanhas e serras, carregam uma simbologia deproximidade com o cu, consequentemente evocando a pureza e a elevao espirituaise, ao mesmo tempo, de centro ou eixo do mundo, negociando sentidos semelhantesaos da rvore do mundo (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1994, p. 616) em unio com asimbologia do cruzeiro, de orientao, guia, funcionando simbolicamente quase comoum farol de almas, pode-se construir uma imagem carregada de sentidos ligados aespiritualidade.Percebe-se tambm que a repetio que dono de alm de revelar opoderio de Rei Sebastio tambm cria por paralelismo, uma equivalncia entre os voc-bulos reinado e tesouro. Assim, domnio espiritual de rei Sebastio ao mesmo temposeu tesouro, aquilo que est sob sua proteo. A figura de Malunguinho que reisde tribo e pomar surge, neste contexto, como um habitante desse reino comandado eprotegido por Reis Sebastio. Curiosamente, o uso da palavra reis no plural, mesmoquando apenas um monarca est sendo referenciado bastante difundido, tanto naJurema, como na cultura nordestina de uma maneira geral. No encontrei, at aquinenhuma hiptese que explique tal uso. No entanto, arrisco aventar que, para alm deuma simples variao lingustica, esse vocbulo tenha um significado diferencial, pois utilizado apenas quando se trata de reis a-histricos, reis que foram juremados, en-cantados, envoltos, de alguma maneira nos domnios da criao/imaginao. A relaoentre o rei Sebastio, as princesas turcas, o Sulto Toy Darsalan e aqui, neste caso,Malunguinho , no mnimo, curiosa. A configurao de uma relao entre essas entida-des por si s j marca a miscelnea referencial que caracterstica da Jurema (e dasreligies da encantaria, de modo geral).

    Neste ponto, retomo e amplio a discusso a respeito de Malunguinho que tambm importante figura histrica emblemtica divinizada pelo culto juremeiro. Amisteriosa figura do Malunguinho tem sido estudada por historiadores e antroplo-gos que apresentam interpretaes diversas sobre a existncia desse lder. No livroLiberdade por um fio (2005), organizado por Joo Jos Reis e Flvio dos Santos

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 38

    Gomes, encontra-se um captulo totalmente dedicado ao Quilombo do Catuc e, con-sequentemente, a Malunguinho e sua controversa histria. Considerado um guerreirodefensor do negro oprimido, um dos lderes do Quilombo do Catuc (Pernambuco),que, juntamente com outros lderes/negros/escravos, construiu a resistncia quilom-bola, localizada nas matas da regio norte do Estado de Pernambuco. Extremamenteorganizado, esse quilombo servia de refgio para escravos fugidos que preparavamresistncia contra o sistema escravagista. O Catuc considerado uma tentativa desociedade alternativa que, mesmo com o fim do quilombo como forma de resistncia,ainda perdurou como uma estruturada comunidade quilombola, sendo comparado aoQuilombo (repblica) dos Palmares (Alagoas).

    Marcus Joaquim Carvalho (2005), ao dissertar sobre a origem do termo ma-lunguinho, esclarece que o vocbulo teve origem na lngua Banto e recebeu sufixodiminutivo inho tpico da linguagem rural brasileira, o que indica caracterstica crioula.O significado de malungo diz respeito aos companheiros que foram sequestrados evieram juntos num mesmo navio negreiro, de modo que, no sofrimento, esses homense mulheres se irmanavam tornando-se companheiros, inclusive de luta e resistncia. Oautor defende a tese de que o primeiro lder do catuc, de origem africana, pode tervivido tempo suficiente para ter seu nome/apelido abrasileirado, evidncia de que aliderana do quilombo teria sido mantida atravs de certa hierarquia e repassada here-ditariamente. Assim, os lderes que seguiram esse primeiro Malunguinho teriam sidoseus descendentes j nascidos brasileiros. H duas hipteses aventadas acerca dafigura de Malunguinho: alguns historiadores defendem que Malunguinho tenha tornado-se o ttulo atribudo ao lder do Quilombo do Catuc; j outros defendem que esse sejao codinome atribudo a um lder especfico. certo que o grande ltimo lder conhecidochamava-se Joo Batista e que os nomes dos lderes do Quilombo do Catuc entrarampara a posteridade histrica atravs das buscas e das recompensas que a elite senho-rial realizou e que deu notcia sociedade da existncia desses homens. Independentedo fato de ter sido o nome Malunguinho de um homem, ou o ttulo concedido a qualquerum dos lderes do quilombo, ele carrega a acepo da liberdade, da luta e da realezadesse(s) lder(es) na cultura popular e no culto da Jurema.

    Carvalho inicia e encerra suas consideraes ressaltando esse fato e referenci-ando pontos de Jurema que homenageiam Malunguinho. Ele afima que: Malunguinhoentrou mesmo na cultura popular foi como entidade no culto da Jurema Sagrada em que aparece como Exu, Mestre ou Caboclo, o que singular sendo adoradoem centros localizados entre o grande Recife e Goiana [localizao que coincide coma do quilombo] (CARVALHO, 2005). Ainda de acordo com Carvalho, tornar-se divin-dade digna de culto das maiores honras que um povo pode prestar aos seus heris.Malunguinho, tendo nascido dentro da cultura brasileira e tendo sido assimilado ecultuado por uma religio de origem indgena, hoje totalmente mesclada e sincretizada,

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 39

    considerado um deus brasileiro, pois compe o panteo de entidades espirituais dopovo nordestino.

    Malunguinho desses deuses/entidades que so quase unanimidade no cultoda Jurema. Embora tenha surgido no contexto pernambucano, seu culto espalhou-sepor todo o Nordeste, sendo Malunguinho reconhecido/cultuado inclusive em outrasmanifestaes religiosas, como a Umbanda.

    Assim como Sebastio, Malunguinho exponente do poderio militar. E, comoguerreiro, defende seu povo de ataques, emboscadas, oferendo proteo. Aqui maisuma vez, temos o lder militar e poltico com poderes msticos liderando seus fiis.Carvalho ressalta que a referncia s armadilhas de emboscada militar conhecidascomo estrepes27 demonstram que o Malunguinho da jurema [. . . ] , portanto, arecriao simblica do prprio Malunguinho do Catuc: o verdadeiro rei das matas dePernambuco (2005, p. 428). Tal afirmao feita em relao ao lrio que segue, tambmreferenciado pelo pesquisador:

    Malunguinho, portal de ouro,

    Malunguinho, portal de espinho

    cerca, cerca malunguinho,

    tira as estrepes do caminho.

    Neste lrio, alm de ficarem evidentes os poderes militares e espirituais deofensividade e defesa que so potencias dessa entidade, vemos mais uma vez aquesto da dualidade no maniquesta entre bem e mal. Malunguinho enquanto portalpode ser de ouro ou de espinho, pode cercar ou tirar os estrepes do caminho. Afora da espiritualidade aparece, como tantas outras vezes na Jurema, como neutra.V-se tambm a referncia a vocbulos que aludem a passagens e itinerrios (caminho,portal etc), o que refora o papel do mestre/Caboclo como lder, que guia, protege edefende.

    Tanto o Rei Sebastio quanto o Malunguinho so tipos divinizados que corres-pondem aos deuses e deusas de perto, por assim dizer, pois, em audincia direta,falam com seus/suas crentes, curando, orientando, alertando, protegendo e ensinando.Grandes amados/as e/ou temidos/as lderes da poltica e religio, realeza, cientistasdo mato (especialistas em cura), figuras do serto (mestras e mestres, boiadeiros,tangerinos, cangaceiros etc.), ndios/as e pretos/as, foras da natureza, entre outros/as,formam o diverso povo encantado que habita as terras etreas da Jurema sagrada.27 Lanas de madeira escondidas em valas ou vegetao que eram usadas como armadilhas para os

    inimigos tanto os que atacavam a p, como os que dispunham de montaria. Ao serem estrepadosmuitos combatentes morriam, perdiam a montaria ou ficavam aleijados.

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 40

    Uma vez definidos os valores que atribuo aos vocbulos Jurema, encantos eencantados/as, volto minha ateno tentativa de ouvir/ler essa comunicao queacontece entre o mundo dos encantados e o mundo fsico, e que se d nos rituais,alm da conversa/consulta, principalmente por meio do lrio, elemento central desteestudo, do qual passo a abordar a partir de agora.

    2.5 Os lrios da Jurema: caracterizando as linhas/pontos/cantigas

    Um dos mais importantes elementos da cosmologia da Jurema (e da Encantariade maneira geral) a linha, tambm conhecida como cantiga, ponto ou lrio. atravsdessas composies annimas e populares que veiculada para o pblico28 toda amundiviso em forma de mitopoesia do imaginrio juremeiro.

    Essas composies j foram alvo de interesse de vrios/as pesquisadores/as,em sua maioria da rea da antropologia e da teologia. Na interface msica/literatura,Mrio de Andrade, que empreendeu pesquisa sobre esses pontos, justifica a/o leitor/aseu interesse e sua incurso no mundo da feitiaria pela sua crena (apoiada emCombarieu) de que a msica uma parceira instintiva, imediata e necessria, tantodas prticas da alta magia das civilizaes espirituais, como da baixa feitiaria29

    das civilizaes naturais (1983, p.23). Alguns pontos levantados nessa pesquisa porAndrade vm ao encontro deste meu trabalho, a saber: a caracterizao das peas, aconstatao de seus elementos literrios e artsticos (que conferem o status de poesiaa elas) e suas consideraes acerca das funes dessas linhas no ritual.

    No primeiro captulo de Msica de Feitiaria no Brasil, o autor discorre sobreas origens e parentescos da Jurema com outras formas de encantaria e sua possvelinfluncia para a formao da Umbanda carioca, e explana sobre os costumes, ossmbolos e atos ritualsticos que presenciou durante sua pesquisa. Julgo necessrioressaltar aqui algumas de suas contribuies a respeito dessa manifestao musical,apontadas na conferncia.28 Entre os iniciados, h tambm a narrativa do tombo ou ajuremao em que o iniciado vai relatar

    aquilo que viu e os lugares espirituais pelos quais passou, demonstrando assim, atravs da acurciadas informaes, a verdade de seu relato.

    29 No decorrer do texto avulta-se a tese de que ele identifica o catimb com as formas de baixa feitiariapor sua origem no-civilizada (indgena).

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 41

    Figura 4 Sacerdote Sandro de Juc entoando um lrio/ponto

    Fonte: Eric Assumpo - Acervo pessoal

    Primeiramente, Andrade sinaliza para o vocbulo linha como sendo de uso cor-rente para denotar essas peas musicais e para seu carter de rtmica livre e recitativa,que a diferencia de outras manifestaes religiosas, afirmando que [n]o catimb, asmelodias so chamadas de linhas e no de pontos como na macumba, raramenteapresentam esse ar de dana [. . . ], em geral as linhas so de uma rtmica muito livre,legtimos recitativos (1983, p. 39). Ressalta o uso do marac, como marcador do rtmo,e faz algumas consideraes importantes, uma vez que destaca atravs de suasimpresses acerca do ritual e das peas musicais elementos que embasaro parteda discusso e da anlise dos pontos mais adiante. Leio, nas afirmaes de Andrade,observaes acerca da matria potica da Jurema/Catimb que podem ser aproxima-das, de certa maneira, s postulaes feitas por Paul Zumthor30, no sentido de que, aose constiturem em legtimos recitativos e ao apresentarem ritmo livre, ainda assim semostrando poticas, essas composies revestem-se da especificidade da poesia oral,o que exige uma leitura que envolve olhos e ouvidos, uma leitura da performance empresena. Outra importante considerao que podemos fazer ainda sobre a leiturade Zumthor (ibidem) a relao simbitica e indissocivel entre a performance e oconhecimento, a qual se pode comparar relao forma e contedo (tema dos estudos30 Cf. ZUMTHOR, 2007, p.32

  • Captulo 2. UM MAPA DOS ARES: ROTEIRO PANORMICO PARA POESIA DOS ENCANTOS 42

    de literatura). Zumthor chega a afirmar que A performance, de qualquer jeito, modificao conhecimento. Ela no simplesmente um meio de comunicao: comunicando elao marca (2007, p.32). Como se pode notar na citao seguinte, a performance ele-mento marcante para Andrade coo interlocutor, de maneira a perturbar seus sentidos.H, ainda neste mesmo trecho, o reconhecimento, por parte deste poeta e pesquisador,da qualidade potica e lrica presente nas composies:

    impossvel descrever tudo o que se passou na cerimnia disparatada,mescla de sinceridade e charlatanice, ridcula, religiosa, cmica, dram-tica, enervante, repugnante, comoventssima, tudo misturado. E p