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Pontes ENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Setembro 2010 Vol.6 No.3 ISSN: 1813-4378 Para receber o PONTES via e-mail, favor escrever uma mensagem para [email protected], informando seu nome e profissão. PONTES está disponível on-line em: www.ictsd.org/news/pontes/ Você sabia? 1 Consumo e crescimento: novas fronteiras para o debate sobre mudanças climáticas 4 Os critérios de sustentabilidade da UE para biocombustíveis são compatíveis com as regras da OMC? Andreas Lendle, Malorie Schaus 6 A presença da China na América do Sul: características, impactos e perspectivas Lina Chang, Carolina Pancotto Bohrer 8 As negociações entre Mercosul e UE: uma leitura a partir do bloco sul- americano Mauricio López Dardaine 10 O crédito à exportação no Brasil e o acordo sobre subsídios da OMC José Guilherme Moreno Caiado 12 Haiti: política comercial e desenvolvimento Christiane S. Aquino Bonomo, Diego Z. Bonomo 14 Mercado de bens e serviços ambientais: desafios e oportunidades para a América Latina Cecilia Häsner, Tereza Cristina Romero Consumo e crescimento: novas fronteiras para o debate sobre mudanças climáticas Enquanto as negociações rumo à 16ª Conferêncida das Partes (COP, sigla em inglês) da Convenção- Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês) avançam com dificuldade, no meio acadêmico toma corpo um debate que coloca consumo e crescimento econômico no epicentro da definição de responsabilização pelas emissões de gases-estufa. O presente artigo busca apresentar os principais pontos deste debate e analisar seus possíveis desdobramentos para a esfera política. A despeito da reconhecida urgência que a questão do aquecimento global demanda para a mobilização da governança global, um olhar retrospectivo sobre a COP 15, realizada em Copenhague, revela que as negociações multilaterais não lograram alcançar as metas de seu mandato. Assim, a definição dos termos de um acordo substituto ao Protocolo de Quioto e da transferência de recursos financeiros para mitigação e adaptação às mudanças climáticas foram postergadas para a COP 16, a se realizar em Cancún (México), em dezembro. Contudo, as reuniões preliminares promovidas ao longo deste ano, em Bonn, não permitem otimismo quanto a reunião de Cancún. Enquanto as negociações prosseguem nesse qua- dro de impasse, acaloram-se os debates acerca de como os governos nacionais e a governança empresarial assumirão a frente na busca pela incorporação, em seus planos de desenvolvimento, de padrões de sustentabilidade climática. Nesse cenário, alguns analistas e formadores de opinião têm questionado certos parâmetros e conceitos que permeiam a formulação de políticas públicas e as negociações multilaterais na seara climática. Dentre os questionamentos colocados, destacam- -se duas correntes que têm adquirido força. A primeira delas está relacionada ao aumento do consumo e do consumismo em escala global, e consiste na retomada das teorias que defendem a imposição de limites ao crescimento econômico. Esta linha critica a adoção do incremento do pro- duto interno bruto (PIB) como principal critério para medir o grau de desenvolvimento dos países. A segunda corrente também enfatiza o consumo, porém sob a ótica do papel do comércio inter- nacional na distribuição de responsabilidades pelas emissões de gases-estufa. Assim, propõe que se considere as emissões relativas aos bens comercializados internacionalmente, bem como a diferença entre países primordialmente impor- tadores e exportadores de emissões. As propostas que emanam de tais debates consideram dois movimentos contrapostos. De um lado, os países em desenvolvimento (PEDs) têm puxado o cresci- mento econômico e o aumento do consumo mun- diais. De outro, os países desenvolvidos (PDs) ainda consomem a maior parte das emissões relacionadas aos produtos comercializados internacionalmente. Que se todos os países apresentassem padrão de consumo semelhante ao dos Estados Unidos da América, os recursos naturais disponíveis no planeta seriam suficientes para abastecer somente 2,1 bilhões de pessoas? Fonte: Banco Mundial, World Development Indicators Online População mundial sustentável com diferentes níveis de consumo

ENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO … · perto do esgotamento sob a perspectiva da sustentabilidade. Na esfera regional, esta edição do Pontes ... que considera os recursos

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PontesENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

Setembro 2010

Vol.6 No.3

ISSN: 1813-4378

Para receber o PONTES via e-mail, favor escrever uma mensagem para [email protected], informando seu nome e profissão. PONTES está disponível on-line em: www.ictsd.org/news/pontes/

Você sabia?

1 Consumo e crescimento: novas fronteiras para o debate sobre mudanças climáticas

4 Os critérios de sustentabilidade da UE para biocombustíveis são compatíveis com as regras da OMC? Andreas Lendle, Malorie Schaus

6 A presença da China na América do Sul: características, impactos e perspectivas

Lina Chang, Carolina Pancotto Bohrer

8 As negociações entre Mercosul e UE: uma leitura a partir do bloco sul-americano

Mauricio López Dardaine

10 O crédito à exportação no Brasil e o acordo sobre subsídios da OMC

José Guilherme Moreno Caiado

12 Haiti: política comercial e desenvolvimento

Christiane S. Aquino Bonomo, Diego Z. Bonomo

14 Mercado de bens e serviços ambientais: desafios e oportunidades para a América Latina Cecilia Häsner, Tereza Cristina Romero

Consumo e crescimento: novas fronteiras para o debate sobre mudanças climáticasEnquanto as negociações rumo à 16ª Conferêncida das Partes (COP, sigla em inglês) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês) avançam com dificuldade, no meio acadêmico toma corpo um debate que coloca consumo e crescimento econômico no epicentro da definição de responsabilização pelas emissões de gases-estufa. O presente artigo busca apresentar os principais pontos deste debate e analisar seus possíveis desdobramentos para a esfera política.

A despeito da reconhecida urgência que a questão do aquecimento global demanda para a mobilização da governança global, um olhar retrospectivo sobre a COP 15, realizada em Copenhague, revela que as negociações multilaterais não lograram alcançar as metas de seu mandato. Assim, a definição dos termos de um acordo substituto ao Protocolo de Quioto e da transferência de recursos financeiros para mitigação e adaptação às mudanças climáticas foram postergadas para a COP 16, a se realizar em Cancún (México), em dezembro. Contudo, as reuniões preliminares promovidas ao longo deste ano, em Bonn, não permitem otimismo quanto a reunião de Cancún.

Enquanto as negociações prosseguem nesse qua-dro de impasse, acaloram-se os debates acerca de como os governos nacionais e a governança empresarial assumirão a frente na busca pela incorporação, em seus planos de desenvolvimento, de padrões de sustentabilidade climática. Nesse cenário, alguns analistas e formadores de opinião têm questionado certos parâmetros e conceitos que permeiam a formulação de políticas públicas e as negociações multilaterais na seara climática.

Dentre os questionamentos colocados, destacam--se duas correntes que têm adquirido força. A primeira delas está relacionada ao aumento do consumo e do consumismo em escala global, e consiste na retomada das teorias que defendem a imposição de limites ao crescimento econômico. Esta linha critica a adoção do incremento do pro-duto interno bruto (PIB) como principal critério para medir o grau de desenvolvimento dos países.

A segunda corrente também enfatiza o consumo, porém sob a ótica do papel do comércio inter-nacional na distribuição de responsabilidades pelas emissões de gases-estufa. Assim, propõe que se considere as emissões relativas aos bens comercializados internacionalmente, bem como a diferença entre países primordialmente impor-tadores e exportadores de emissões.

As propostas que emanam de tais debates consideram dois movimentos contrapostos. De um lado, os países em desenvolvimento (PEDs) têm puxado o cresci-mento econômico e o aumento do consumo mun-diais. De outro, os países desenvolvidos (PDs) ainda consomem a maior parte das emissões relacionadas aos produtos comercializados internacionalmente.

Que se todos os países apresentassem padrão de consumo semelhante ao dos Estados Unidos da América, os recursos naturais disponíveis no planeta seriam suficientes para abastecer somente 2,1 bilhões de pessoas?

Fonte: Banco Mundial, World Development Indicators Online

População mundial sustentável com diferentes níveis de consumo

Pontes Setembro 2010 Vol.6 No.3

2 www.ictsd.org/news/pontes/

Espaço aberto

EditorialEstimado(a) leitor(a),

Enquanto avançamos em direção ao último trimestre de 2010, aproxima-se a realização da 16ª Conferêncida das Partes (COP-16, sigla em inglês) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC, sigla em inglês). Apesar de representar o ponto mais alto na agenda do regime climático, os prognósticos mantêm-se pessimistas quanto à possibilidade de avanço nas questões centrais do mandato negociador. Contudo, o debate em torno do tema não arrefeceu. Em meio a este cenário, o artigo de abertura analisa duas correntes que buscam evidenciar como os modelos de expansão do consumo e do crescimento econômico encontram-se perto do esgotamento sob a perspectiva da sustentabilidade.

Na esfera regional, esta edição do Pontes apresenta uma análise sobre a quebra do impasse nas negociações para um acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, retomadas após seis anos de estagnação. Mauricio Lopez Dardaine analisa o significado desta iniciativa, bem como as dificuldades que se impõem à conclusão de um tratado entre os blocos.

No âmbito da aproximação comercial, Christiane Aquino Bonomo e Diego Bonomo discutem a tentativa dos governos de Brasil e Estados Unidos da América (EUA) de integrar seus respectivos programas de acesso preferencial aos produtos do Haiti. A iniciativa permitiria criar um espaço recíproco de comércio entre os países concessores por meio do investimento no parque produtivo haitiano.

Esta edição apresenta ainda duas análises sobre políticas nacionais e regionais cuja compatibilidade com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) tem sido questionada pela comunidade internacional. Neste sentido, José Caiado aborda a política brasileira de crédito às exportações, operada por meio do programa Exim do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A análise de Andres Lendle and Malorie Schaus foi dedicada à Diretiva de Energia Renovável da União Europeia.

Esperamos que aprecie a leitura.

Equipe Pontes.

Expansão do consumoNos últimos anos, multiplicaram-se as preocupações acerca do aumento do consumo no mundo e das decorrentes pressões sobre os recursos naturais. Entre 1996 e 2006, o consumo mundial aumentou em 28% e mais que sextuplicou em relação aos níveis de 1960. Ainda que se considere o crescimento populacional – que se deu em uma razão de 2,2 no período de 1960 a 2006 –, o consumo per capita triplicou neste intervalo1.A quantidade de recursos naturais extraída para suprir essa demanda é 50% superior ao volume extraído em 1980. O cidadão médio dos Estados Unidos da América (EUA) consome em média 88 quilos de recursos diariamente. Se o mesmo padrão fosse reproduzido para os demais países, a capacidade do planeta seria suficiente para abastecer somente 2,1 bilhões de pessoas. As disparidades valem também para as emissões de gases-estufa: a emissão per capita dos EUA é quatro vezes superior à da China e 18 vezes maior que a da Índia. Embora não sejam recentes as considerações acerca da insustentabilidade dos padrões de consumo, a rapidez com que os PEDs de renda mais alta caminham para patamares semelhantes desenha um quadro mais preocupante. Após a recessão em que imergiram os PDs a partir de 2007, o consumo nos mercados emergentes superou aquele verificado nos EUA pela primeira vez . Um relatório publicado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) revela que parcela significativa da população chinesa entrou para a classe média, o que implica novos padrões de consumo e o aquecimento do mercado interno. A Índia ainda não atingiu esse ponto, porém isso deverá acontecer em futuro próximo3.Segundo o documento, a classe média na China corresponde a cerca de 157 milhões de pes-soas, número superado apenas nos EUA. Com isso, o mercado chinês passou a ocupar posi-ção importante para bens de alto valor agregado, como veículos. Em 2009, as vendas de carros na China superaram 13 milhões de unidades, colocando o país como o maior mer-cado do segmento no mundo. O mesmo ocorreu no ramo de telefones celulares, no qual a China despontou como primeiro mercado consumidor ao alcançar 700 milhões de assinantes. Na Índia, a classe média é menos significativa: não alcança 10% da população. Contudo, pro-jeções apontam para uma evolução ainda mais acelarada: até 2040, 90% dos indianos serão incorporados a esse estrato. No Brasil, entre 2003 e 2008, foram incorporadas 34 milhões de pessoas às classes sociais mais altas – A, B e C. Até 2014, este aumento será praticamente repetido, o que significa que 72% da população se encon-trará nas classes média e alta. O país constituirá então o quinto maior mercado consumidor do mundo. Além da expansão do consumo em termos quantitativos, estudos apontam também para a face sociológica do fenômeno, traduzida no aumento do consumismo – definido como a incorporação cultural do hábito e desejo de consumir. Este padrão comportamental, identificado emblematicamente com a sociedade estadunidense, tem sido cada vez mais observado entre os países emergentes. Em pesquisa realizada na China, 40% dos entrevistados relataram que fazer compras constitui sua atividade de lazer preferida.Os indianos mostram inclinação semelhante. A parcela da população com renda anual superior a US$ 8 mil considera indispensável a aquisição de bens como máquinas de lavar roupa, aparelhos de DVD e computadores. Na faixa de renda superior a esta, viagens de avião e aparelhos de ar-condicionado passam a ser consumidos.Entre os brasileiros, a transição para a classe C acarreta um aumento de 86% nos gastos com ele-trônicos e móveis. Nesta faixa, os consumidores normalmente adquirem computador e acessam a internet, bem como passam a viajar de avião.A constatação do aumento no consumo puxado pelos PEDs de renda mais elevada, assim como a perspectiva de que a pujante classe média nestes países inclua cada vez mais bens à sua cesta, alimenta a dúvida acerca da sustentabilidade do atual padrão de crescimento econômico no mundo.

Sustentabilidade climática: um novo limite ao crescimento?Diante do quadro exposto, alguns especialistas em economia climática têm defendido que as estratégias apregoadas para a mitigação dos efeitos das mudanças climáticas não serão suficientes se os atuais padrões de crescimento e consumo persistirem.Vale notar que, em um quadro mais abrangente, que considera os recursos naturais e o meio ambiente como um todo, a ideia de limites ao crescimento não é recente. O embate entre essas correntes principais prossegue até os dias atuais e adquire novas nuances com a contribuição de reflexões análogas voltadas à relação entre crescimento econômico e emissões de gases-estufa.No Brasil, José Eli da Veiga é um dos maiores expoentes da corrente que se debruça sobre essa rela-ção. Em trabalho publicado em 20094, o economista apresenta um quadro pouco alentador: apesar de estar em marcha a redução da intensidade-carbono da economia mundial (medida pelo peso de dióxido de carbono (CO2) de origem fóssil emitido para cada unidade do PIB), isto não implicou a redução das emissões em termos absolutos. Desta forma, ainda que a média mundial de CO2 emitido por unidade do PIB tenha sido reduzida de 1kg para 770g entre 1980 e 2006, este descolamento (em inglês, decoupling) não foi suficiente para induzir o chamado “movimento ao baixo carbono”.

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Espaço aberto

Isto porque as emissões globais encontram-se em patamar 40% superior ao verificado em 1990 – ano-base do Protocolo de Quioto – e 60% superior ao de 1980.Segundo Eli da Veiga, esse paradoxo explica-se pela insuficiên-cia do descolamento, que tem como principal fator os ganhos em eficiência, para superar a pressão sobre o aumento das emissões, exercida pelo crescimento numérico da população e da renda per capita – e, consequentemente, do consumo. A partir dessas constatações, o autor conclui que o desenvolvi-mento deverá ser dissociado do crescimento econômico, em especial nas nações centrais.Também representante dessa corrente, Tim Jackson, autor de Prosperity Without Growth, defende que o descolamento entre crescimento e emissões de gases-estufa não acontecerá na velocidade necessária para impedir danos catastróficos à segurança climática, o que o leva a propor a adoção de um novo paradigma pós-crescimento.Em comum, Eli da Veiga e Tim Jackson acreditam que o padrão de crescimento zero ou de redução do crescimento não é plausível para os países de menor desenvolvimento relativo (PMDRs), ainda muito dependentes do incremento na produção para atingir padrões mínimos de bem-estar. Porém, entre os países que devem iniciar um movimento em direção a esse paradigma, os autores incluem as economias emergentes, muitas das quais ultrapassaram boa parte dos PDs em crescimento do PIB e das emissões.

Princípio do poluidor-pagador: um marco adequado?Paralamente à discussão sobre limites ao crescimento, outra linha de análise tem se dedicado a uma questão com potencial repercus-são no embate sobre responsabilidade pela redução de emissões.

No nível político das discussões e negociações, essa responsa-bilização continua focalizada na produção, o que significa que os países respondem pelas emissões decorrentes da atividades industriais ou produtivas que tomam lugar em seus territórios. Em outras palavras, o ônus das políticas de mitigação deverá recair sobre a produção de cada país, fortemente atrelada ao crescimento econômico. Este foi o enfoque escolhido para pautar as negociações que levaram à assinatura do Protocolo de Quioto.

Contudo, a adequação do emprego exclusivo deste critério tem sido questionada, sob o argumento de que ele ignora o papel do comércio internacional na contabilização das emissões. Segundo estudo produzido pelo Instituo Alemão de Desenvolvimento, em 2005, as emissões de CO2 envolvidas na produção de bens comercializados internacionalmente corresponderam a 27% do total das emissões relacionadas ao uso de energia5.

Para os autores do estudo, é importante considerar o que deno-minam “balanço de carbono”, que correponde à quantidade de CO2 emitida na produção de bens importados e exportados pelos países. Os países membros da OCDE importam 85% das emissões decorrentes dos bens comercializados, dos quais 30% apenas pelos EUA. Todos os países da OCDE consomem ao menos 30% mais emissões do que produzem. Por sua vez, os países membros do G-77, grupo composto por PEDs, con-somem 23% menos emissões do que produzem. Em base per capita, as emissões correspondentes ao consumo dos países da OCDE também se mostram mais elevadas do que aquelas relativas à produção.

Diante disso, o estudo sugere que os dados relativos a esse balanço deveriam ser incorporados a um novo critério para a atribuição de responsabilidades por emissões. Os autores levantam dois principais problemas decorrentes da adoção do critério baseado exclusivamente na produção. O primeiro consiste no estímulo ao vazamento de carbono, uma vez que, para cumprir a redução de emissões atrelada à produção, os países tendem a realo-car as atividades intensivas em energia para outros países.

Uma segunda distorção está relacionada à justiça do sistema, uma vez que o critério de produção implica uma penalização maior dos países cujo balanço de carbono é negativo, ou seja, que são exportadores líquidos de emissões. Nesse sentido, o exemplo da China é emblemático. Cerca de 30% das emissões produzidas no país são relativas a produtos consumidos em mercados estrangeiros. Este quadro tem levado o governo chinês a alegar que os consumidores deveriam ser corres-ponsáveis pelo ônus de reduzir as emissões.

Reconhecendo que a adoção de critério puramente baseado em consumo também possui desvantagens e que ambos – produção e consumo – trazem benefícios econômicos para os países em que ocorrem, o estudo sugere o balanceamento entre os dois critérios. Porém, reconhece que a forma de operacionalizar este equilíbrio deve ser encontrada mediante estudos e discussões mais amplos.

Considerações finaisAs duas correntes analisadas possuem em comum a apresenta-ção de propostas de alteração em conceitos já cristalizados na definição de compromissos de mitigação e nas políticas públicas adotadas pelos países. Desta forma, caso adquiram força sufi-ciente para influenciar o debate na esfera política, as ideias propagadas por estas correntes podem influir em ambas direções.

Contudo, a transposição para a prática apresenta obstáculos evidentes. O primeiros deles observa-se na firmeza com a qual a busca por crescimento econômico continua atrelada ao ideal de desenvolvimento. Como reconhece José Eli da Veiga, existe uma forte convicção coletiva de que o crescimento é sempre benéfico. De forma quase unívoca, estipulou-se como modelo a ser seguido o dos 13 países que obtiveram taxas de crescimento anuais superiores a 7% desde 1950.

Com efeito, a defesa incondicional do direito ao desenvolvimento, lido como reflexo do crescimento econômico, tem sido a base do apego dos PEDs ao princípio das “resposabilidades comuns, porém dife-renciadas”, discurso reiterado na seara das negociações climáticas.

Diante do impasse observado nas últimas COPs, teorias como a do crescimento zero parecem demasiado radicais. Ainda que reconheçam esta limitação, os novos defensores do limite ao crescimento alertam que se tornará cada vez mais custoso negligenciar por completo a necessidade de alterar o modelo de crescimento atualmente abraçado.

Numa posição talvez menos remota, a revisão do princípio do poluidor-pagador, com a consequente incorporação de critérios baseados na responsabilidade pelo consumo, pode servir como primeiro passo em busca de maior equilíbrio na balança da “justiça climática”. Passos como este poderiam contribuir para superar as inércias e pontos sensíveis que impedem maiores avanços em direção à era de desenvolvimento sustentável.

1 Ver: The Worldwatch Institute. O estado do mundo: transformando culturas - do consumismo à sustentabilidade. Disponível em: <http://www.worldwatch.org.br/estado_2010.pdf>. Acesso em: 16 jun. 2010.

2 Ver: Daily Finance, Consumer Power’s Big Shift From the U.S. to China and India. (26/03/10). Disponível em: <http://www.dailyfinance.com/story/u-s-consumer-no-longer-king-china-india-ascend-to-throne/19411572/>. Acesso em: 06 set. 2010.

3 Ver: Organização Econômica para Cooperação e Desenvolvimento. The emerging middle class in developing countries. (2010). Disponível em: <http://www.oecd.org/dataoecd/12/52/44457738.pdf>. Acesso em: 06 set. 2010.

4 Ver: ELI DA VEIGA, José. Mundo em transe: do aquecimento global ao ecodesenvolvimento. Campinas: Armazém do Ipê, 2009.

5 German Development Institute. Counting CO2 emissions in a globalised world: producer versus consumer-oriented methods for CO2 accounting. (2010). Disponível em: <http://www.die-gdi.de>. Acesso em: 18 ago. 2010.

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OMC em foco

Os critérios de sustentabilidade da UE para biocombustíveis são compatíveis com as regras da OMC?Andreas Lendle*Malorie Schaus**

Conforme a União Europeia (UE) avança na implementação de um novo mandato sobre o uso de biocombustíveis, emergem questões relacionadas aos critérios de sustentabilidade destes e à compatibilidade de tais exigências com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Ao aprovar a Diretiva sobre Energia Renovável 2009 (RED, sigla em inglês) (2009/28/EC), a UE estabeleceu como meta a substituição, até 2010, de 20% de sua matriz energética por fontes renováveis1. Embora esse percentual corresponda à média das Partes que compõem o bloco europeu – com metas específicas para cada um de seus membros –, cada país deve substituir ao menos 10% das fontes de energia empregadas em seu setor de transportes até 2010. Isso exige um aumento substancial no consumo de biocombustíveis e, por conse-guinte, implica um incremento significativo na produção e importação desta fonte de energia. Diversos países membros da UE já dispõem de políticas com vistas a promover o uso de biocombustíveis, mas a RED torna obrigatória a adoção de políticas nesse sentido por todos os membros do bloco.

Os biocombustíveis são sustentáveis?Os biocombustíveis constituíram objeto de controvérsias no período recente, particularmente devido a seu potencial impacto sobre o preço dos alimentos e o meio ambiente. Além dos possíveis efeitos nocivos sobre a biodiversidade, a produção de biocombustíveis em larga escala pode resultar em níveis similares ou mais elevados de emissões de gases--estufa que aquelas decorrentes do consumo de combustíveis fósseis, caso seja necessário desmatar terras com estocagem de carbono para utilizá-las na produção de biocombustíveis.

Com vistas a atender tais preocupações, a RED estipula cri-térios de sustentabilidade que devem ser cumpridos por todo biocombustível incluído no percentual de 10% ou beneficiário de incentivos oferecidos no escopo da Diretiva2. Cabe destacar que os biocombustíveis que não estiverem em conformidade com tais critérios podem ser importados e utilizados, mas sua comercialização é pouco provável, na medida em que os preços desta fonte de energia são consideravelmente superiores àqueles de combustíveis fósseis e, portanto, não são competitivos na ausência de incentivos.

Os critérios de sustentabilidade inserem-se em duas categorias: emissões de gases-estufa e uso da terra. No que diz respeito à redução de emissões de gases-estufa, a RED determina um nível mínimo de emissão de CO2 ou gases equivalentes resul-tante do uso de biocombustíveis, quantidade que compreende as etapas de produção, processamento e transporte, além das emissões decorrentes da mudança no uso da terra – por exemplo, quando um terreno com elevada estocagem de

carbono é desmatado para a produção de biocombustíveis. Tais emissões são então comparadas com aquelas resultantes do consumo de combustíveis fósseis, o que resulta em uma “taxa de poupança” dos biocombustíveis. Diversos biocom-bustíveis possuem uma taxa de poupança bastante abaixo de 50%, ou seja, causam mais da metade das emissões advindas do consumo de fontes fósseis. Isso é surpreendente, uma vez que as emissões resultantes da queima de biocombustíveis são eminentemente equivalentes ao CO2 estocado na biomassa e, portanto, são “neutros em CO2”. Contudo, o plantio e o processamento da biomassa podem ser intensivos em consumo de energia. Assim, a RED estipula níveis mínimos para a taxa de poupança, a qual deve inicialmente corresponder a, no mínimo, 35%, aumentando para 50% em 2017 e 60% em 2018, com algumas exceções para as plantas de processamento já existentes. Dito de outro modo, até 2020, somente poderão ser utilizados biocombustíveis com taxa de economia de 50 a 60%.

Um segundo critério está relacionado ao uso da terra para o cultivo de matérias-primas voltadas à produção de bio-combustíveis. A Diretiva proíbe plantios com essa finalidade em terras protegidas para conservação ambiental, ricas em biodiversidade ou com elevada estocagem de carbono. É importante destacar que o cultivo de matérias-primas para a produção de biocombustíveis pode ocorrer em terrenos desmatados anteriormente a 2008, sendo proibida apenas após a entrada em vigor da RED.

A RED também trata do possível impacto social da produção de biocombustíveis – por exemplo, aumentos no preço de alimentos – e cria um mecanismo de monitoramento nesse sentido em países produtores dessa fonte de energia. No entanto, os critérios de ordem social definidos no âmbito da Diretiva não são direcionados ao produtor de biocombustíveis.

Tais critérios constituem um protecnionismo disfarçado?Os critérios analisados acima aplicam-se tanto aos bio-combustíveis produzidos no âmbito da UE como àqueles importados pelos países membros do bloco. Tais exigên-cias têm sido criticadas por constituírem uma espécie de “protecionismo verde”, ou seja, uma forma de proteger os agricultores europeus de competidores estrangeiros por meio do estabelecimento de padrões de sustentabilidade tendenciosos. Particularmente, alguns críticos afirmam que

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OMC em foco

esses critérios não são compatíveis com as obrigações assu-midas pela UE no âmbito da OMC. De acordo com Mitchell e Tran3, a RED viola o artigo III do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT, sigla em inglês), que, ao definir tratamento nacional, obriga os membros da OMC a não discriminarem produtos análogos entre importados e domésticos. Os critérios estipulados pela UE tampouco se enquadram nas exceções especificadas no artigo XX do GATT.

Contudo, parece mais plausível sustentar, após uma análise profunda sobre a compatibilidade dos critérios estabelecidos pelo bloco europeu com as regras da OMC, que a RED é consistente com as obrigações assumidas pela UE junto à Organização, ainda que alguns de seus elementos de fato violem o artigo III do GATT. Tal leitura pode ser fundamentada pelo artigo XX deste Acordo, mais especificamente, pelas exceções de ordem ambiental. Um tratamento diferenciado em direção a produtos análogos não necessariamente constitui conduta incompatível com as regras da OMC, desde que não haja discriminação de facto baseada na origem.

A RED aplica-se igualmente a biocombustíveis importados e domésticos. Uma análise detalhada dos critérios de redução de emissões de gases-estufa revela que, na verdade, alguns biocombustíveis produzidos na UE não atendem aos crité-rios estabelecidos na Diretiva, em especial o percentual de 50-60% exigido para a taxa de poupança. Por exemplo, o biocombustível produzido a partir da semente de colza – principal matéria-prima utilizada na Europa – apresenta uma taxa de poupança de aproximadamente 45%. Em contrapartida, diversos biocombustíveis produzidos exter-namente à UE atendem aos critérios estabelecidos na RED. Assim, a referida Diretiva não favorece os biocombustíveis domésticos em detrimento dos estrangeiros.

Em contraste, o critério de uso da terra parece ter sido desenvolvido de forma a criar uma discriminação de facto contra biocombustíveis produzidos no exterior. Embora existam, na UE, terras inelegíveis para a produção dessa fonte de energia segundo os critérios da RED, o critério de uso da terra desfavorece, em grande medida, os produtores estrangeiros, tais como os malaios e indonésios. Apesar disso, o critério de uso da terra pode ser considerado compatível com o artigo XX do GATT, na medida em que este prevê como exceção ao tratamento nacional medidas “necessárias para proteger a vida ou saúde humana, animal ou vegetal” ou “relacionadas à conservação de recursos naturais não-renováveis”, desde que tais medidas não constituam uma “discriminação arbitrária ou injustificada entre países em que prevalecem as mesmas condições, ou uma restrição ao comércio internacional disfarçada”. Ora, é possível argumentar que o critério de uso da terra é importante para garantir que a produção de biocombus-tível não projete efeitos nocivos sobre o meio ambiente. Além de não aparentar arbitrariedade ou discriminação, tal critério está associado ao objetivo central da RED, qual seja, a redução das emissões de gases-estufa. O critério de poupança de emissões também poderia, nesse sentido, ser justificado sob o artigo XX do GATT, caso se considere a violação do artigo III.

Considerações finaisÀ parte os instrumentos legais, não parece lógico supor que a UE implementaria uma política que obrigasse seus Estados membros a garantir um aumento significativo no uso de bio-combustíveis com a finalidade de proteção ao meio ambiente, sem que o bloco fosse capaz de assegurar que tal política é favorável ao meio ambiente. Nesse sentido, o consumo de biocombustíveis que sejam mais nocivos ao meio ambiente do que os combustíveis fósseis é pouco plausível – menos ainda se considerarmos que o preço dessa fonte renovável é maior.

No entanto, mesmo diante de critérios de sustentabilidade, não há garantia de que a política de biocombustíveis da UE será eficaz na redução de emissões de gases-estufa. A chamada mudança indireta no uso da terra constitui um dos possíveis efeitos nocivos. Ainda que o critério relacionado ao uso da terra elaborado pela UE possa ser considerado sustentável, o aumento na demanda europeia por biocombustíveis pode contribuir para o aumento do desflorestamento em outras localidades. Assim, critérios adicionais com vistas a evitar a mudança indireta no uso da terra devem ser futuramente incorporados à RED – cabe destacar, entretanto, a dificuldade em tratar dos problemas relacionados ao uso da terra. É prová-vel, ainda, que seja difícil defender esses critérios adicionais no âmbito da OMC, a depender de como estes são definidos.

A eficiência de políticas de redução de emissões de gases-estufa focadas no consumo de biocombustíveis constitui outro ponto digno de nota. Mesmo que o aumento no uso dessa fonte de energia conduza, de fato, à redução de tais amissões, é pertinente questionar a que custos essa vantagem foi alcançada. Sendo o preço dos biocombustíveis superior ao dos combustíveis fósseis, os consumidores são diretamente afetados por políticas como a RED. Os governos também são sobrecarregados por medidas com tal propósito, na medida em que estas implicam incentivos como a isenção de impostos e, portanto, reduzem as receitas governamentais. Atualmente, estima-se que o custo geral da política europeia de redução de emissões por meio do con-sumo de biocombustíveis seja de €600 a €4.400 por tonelada4.

Os biocombustíveis possuem um enorme potencial no longo prazo, principalmente quando tipos mais eficientes desta fonte de energia passarem a ser produzidos e comercializados. No entanto, o uso de biocombustíveis de primeira geração pode gerar impactos negativos para o meio ambiente ou à produção de alimentos e, portanto, implica custos demasiado elevados. Assim, é preciso que a UE repense suas ambições no que diz respeito a tais biocombustíveis, apesar de os critérios de sustentabilidade não parecerem violar as obrigações do bloco frente à OMC.

* Aluno do Instituto de Graduação em Genebra (Suíça). Participa do projeto do ICTSD “Trade Law Clinic”.

** Aluno do Instituto de Graduação em Genebra (Suíça). Participa do projeto do ICTSD “Trade Law Clinic”.

Tradução e adaptação de texto originalmente publicado em Bridges Trade BioRes Review, Vol. 4, No. 2 - jul. 2010.

1 Esse percentual correspondia, em 2005, a 8,5%.

2 Tais benefícios envolvem, principalmente, redução de impostos e exigências de mistura obrigatória.

3 Ver: Mitchell A.; Tran Ch., The Consistency of the EU Renewable Energy Directive with the WTO Agreements, Georgetown Law School Faculty Working Paper, 2009.

4 Ver: <http://www.globalsubsidies.org/files/assets/Subsidies_to_biofuels_in_the_EU_final.pdf>.

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6 www.ictsd.org/news/pontes/

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A presença da China na América do Sul: características, impactos e perspectivasLina Chang*Carolina Pancotto Bohrer**

Apesar de trazer oportunidades, o aumento da presença da China na América do Sul em termos de comércio e investimen-tos deve ser analisado com cautela, em função de seus impactos. A crescente participação de produtos chineses na região significou, por exemplo, perda de mercado para países como o Brasil. Diante disso, este artigo caracteriza a presença da China na América do Sul, analisa alguns impactos desta e delineia perspectivas para a retomada do equilíbrio nos fluxos de comércio na América Latina e para a destinação dos investimentos chineses.

O tema da integração regional, especialmente na América do Sul, faz parte da política brasileira, não apenas no âmbito externo – já tradicional –, mas também no interno. Além de estar envolvido nas negociações do Mercado Comum do Sul (Mercosul) para o aprofundamento de acordos com Chile e México, o Brasil incluiu em sua Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP) o tema da integração produtiva com a América Latina e o Caribe.

A busca pela integração faz parte da história latino-americana já há bastante tempo e adquiriu maior relevância a partir dos estudos cepalinos de meados do século passado. Neste contexto, foram criadas a Associação Latino Americana de Livre Comércio (ALALC) e sua sucessora, a Associação Latino Americana de Integração (ALADI). Essa última visa à implantação, gradual e progressiva, de um mercado comum latino-americano, caracterizado principalmente pela adoção de preferências tarifárias e pela eliminação de restrições não-tarifárias. É composta em sua grande maioria por países sul-americanos: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Cuba, Equador, México, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela. Segundo a ALADI, o comércio entre os países membros multiplicou-se por 14 entre 1980 e 2008 – passando de US$ 10 bilhões para US$ 140 bilhões –, ao passo que o comércio mundial aumentou em nove vezes nesse período. Ao mesmo tempo, o comércio entre os países membros caracteriza-se pela inclusão de maior valor agregado quando comparado com as exportações da ALADI para o restante do mundo1.

No caso das exportações do Brasil para os países membros da ALADI (incluindo aqueles que compõem o Mercosul), a análise da balança comercial desde 1981 mostra, primeiramente, que as vendas de produtos brasileiros para o bloco latino-americano evoluíram sobremaneira desde a criação desta, especialmente a partir do ano 2000: passaram de US$ 4 bilhões em 1981 para US$ 40 bilhões em 2008. Nesse mesmo período, o comércio exterior brasileiro como um todo aumentou em oito vezes, passando de US$ 23 bilhões para US$ 197 bilhões em 2008. Em segundo lugar, além do saldo comercial ser positivo para o Brasil, a composição das exportações brasileiras para a região tem um diferencial com relação às exportações do país para o restante do mundo: concentra-se em produtos de maior valor agregado e de média-alta intensidade tecnológica. Em 2008/2009, estes produtos representavam em torno de 47% dos produtos exportados,

enquanto que os de alta intensidade tecnológica perfaziam a média de 8,5%. Ademais, desde o início da ALADI, a maior parte das exportações brasileiras é de produtos manufaturados – tendência que foi se consolidando ao longo do tempo2.

No entanto, a evolução do quantum da participação de mercado que o Brasil possui na América Latina e Caribe3, em relação a outros países fornecedores presentes, revela que, no período de 2001 a 2005, a participação de mercado dos produtos brasileiros passou de 3,9% para 6,2%, parcela mantida até 2007. Nos anos seguintes, essa participação decresce para 6,0% em 2008, principalmente em função do aumento das vendas de outros países concorrentes na região, com destaque para a China, cujos produtos passaram de uma participação de mercado de 2,3% para 9,4% em 2009.

O rápido aumento da participação da China na América do Sul em termos de comércio e investimentos é reflexo da estratégia governamental deste país asiático em priorizar fontes de recursos naturais e insumos básicos. Essa necessidade decorre da alta demanda interna gerada pela política de desenvolvimento econômico do país, bem como da busca pela garantia de mercados para escoar os produtos chineses4. Em um período mais recente, a demanda interna na China vem aumentando a uma velocidade superior àquela da oferta. Isso obriga a China a integrar suas políticas industrial, econômica, de comércio exterior e de investimentos externos, de forma a alcançar objetivos múltiplos, ligados a seu mercado interno e externo5.

É importante destacar que as diretrizes da política de investimentos externos de empresas chinesas são focadas em áreas que assegurem: acesso a recursos naturais; apoio às exportações para garantir o aumento de sua participação nos mercados nos quais investe; aquisição de novas competências; estabelecimento de redes locais de distribuição – com destaque para área de bens de capital e componentes eletrônicos–; incremento da competitividade industrial no mercado interno; necessidade de realocação de indústrias maduras para mercados com custo mais baixo; criação de marcas internacionais; acesso a tecnologias avançadas; entre outros6.

O portfólio de investimentos abrange joint-ventures, fusões, aquisições, prestação de serviços e empréstimos7 em setores selecionados, como petróleo e gás. As principais commodities para o direcionamento dos investimentos são as minerais e agrícolas, riquezas abundantes na América do Sul8. Também,

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desde 2005, o governo chinês incentiva suas empresas a investir em indústrias agrícolas no exterior. Tais medidas resultaram no aumento da participação chinesa no fluxo de comércio exterior de grande parte dos países sul-americanos: em 2008, a China constituiu um dos cinco principais destinos para as exportações de seis países sul-americanos: Argentina, Brasil, Colômbia, Chile, Peru e Venezuela. Por sua vez, a China vem aumentando sua participação de mercado nas importações feitas pela região, sendo, em média, um dos cinco principais fornecedores9.

Embora o acelerado crescimento econômico da China tenha criado diversas oportunidades para os países sul-americanos, alguns destes parecem depender muito dessa parceria comercial. É o caso das exportações de Argentina, Brasil, Chile e Peru no período 2006-2008, as quais se concentraram em produtos básicos e semimanufaturados. No âmbito das importações, o Paraguai é o país mais dependente da China seguido de Chile, Argentina, Brasil e Colômbia.

Da mesma forma, a participação dos investimentos chineses na região vem crescendo expressivamente desde 2000 – mais acentuadamente a partir de 2006. Esses investimentos estão presentes em maior volume no Brasil, Peru, Argentina, Venezuela e Chile10. Embora os volumes totais na América do Sul ainda sejam pequenos, a tendência tem sido de crescimento em função do aumento das necessidades da economia chinesa e de sua estratégia competitiva global.

Ademais, os investimentos estão em sua grande maioria concentrados em áreas que buscam o fornecimento de commodities agrícolas e minerais para o mercado chinês, resultando na exportação de produtos finais competitivos para o resto do mundo.

Considerações finaisA dinâmica da economia chinesa nos últimos anos vem se refletindo na sua participação nos mercados sul-americanos tanto em termos de comércio como de investimentos. Os dados apontados mostram que o aumento da corrente de comércio da América do Sul com a China está diretamente associado ao incremento dos investimentos chineses na região. À medida que a participação de mercado da China se eleva, ocorre o deslocamento do comércio intrarregional.

O Brasil, por exemplo, começou a perder participação no mercado dos países membros da ALADI principalmente como decorrência do aumento da participação chinesa nestes. Além disso, no período 2006-2009, a pauta de produtos de alta e média-alta intensidade tecnológica foi reduzida, em contraste com o aumento observado nas vendas externas brasileiras para a ALADI de bens de média-baixa intensidade tecnológica.

Isso posto, seria importante dar maior equilíbrio na corrente de comércio da região com a China, de modo a não gerar dependência comercial e econômica excessiva com este país. Além disso, os investimentos chineses poderiam ser melhor direcionados, de forma a auxiliar nas políticas de desenvolvimento econômico sustentável nos países sul-americanos. O próprio processo de integração regional – seja o Mercosul ou a ALADI – poderia ser utilizado nas relações com a China: em conjunto, os países que compõem esses

blocos teriam uma capacidade de negociação maior do que isoladamente e poderiam, inclusive, repartir de forma mais equilibrada os benefícios que poderiam advir dos investimentos estrangeiros na região. Outro forte argumento para a investida no fortalecimento da integração produtiva regional refere-se à evidência dos deslocamentos das exportações de produtos manufaturados sul-americanos por produtos concorrentes – como os chineses – em mercados como o europeu, norte-americano, latino-americano e africano.

De forma geral, os investimentos estrangeiros podem gerar efeitos positivos quando os países da região os utilizarem para reduzir as assimetrias nas relações intrabloco. Por exemplo, por meio da melhoria e expansão da base industrial; do aperfeiçoamento da infraestrutura de transporte e logística para diminuição dos custos transacionais; do fortalecimento do capital humano; da harmonização das normas no ambiente de negócios; do desenvolvimento de centros de pesquisa e desenvolvimento (P&D); do apoio a pequenas e médias empresas como fornecedoras de cadeias globais; da valorização estratégica do segmento de serviços, como tendência mundial de crescimento e exportação; e do fomento de exportações de serviços vinculados a bens (vice-versa).

O próprio Brasil, em sua política externa, poderia conferir maior relevância à estratégia de comércio exterior e maior foco à América Latina em suas relações comerciais, fortalecendo os acordos já existentes e aprofundando os temas por eles abrangidos. O volume e qualidade da corrente de comércio com a ALADI demonstram a importância da mesma para a manutenção de saldos positivos no intercâmbio comercial.

1 Ver: Comércio Exterior en Cifras, Boletín Electrónico nº 11, 2010, p. 2.

2 Fonte: MDIC/SECEX.

3 Dados analisados a partir do TRADE MAP/ITC.

4 Devido à escassez de recursos naturais na China, o governo prioriza a busca por recursos em outros países para assegurar a sustentabilidade do crescimento econômico chinês.

5 Ver: OECD. Recent Developments in China’s Investment Policies. OECD Investment Policy Reviews: China 2008. Ver também: UNCTAD. World Investment Report 2006.

6 Ver: UNCTAD.World Investment Report 2004.

7 Em sua maioria os empréstimos realizados pelos bancos chineses têm como parte do pagamento contratos de exportação de insumos, por exemplo, os empréstimos realizados pelo Banco de Desenvolvimento da China à Petrobras para ser liquidado com o contrato de fornecimento de dez anos de petróleo a empresa petrolífera chinesa. Percebe-se também o aumento de financiamentos para compra de produtos chineses, principalmente máquinas e equipamentos.

8 Ressalte-se que os interesses chineses são percebidos também em alguns países da África por suas riquezas em petróleo, cobre, diamantes, platina, urânio, entre outros. Com isso observa-se que a América Latina, África e Ásia ocupam lugar de destaque nos investimentos chineses pela concentração de recursos naturais existentes.

9 Ver: Cepal. La Republica Popular China y America Latina y el Caribe: hacia una relación estratégica. Mayo de 2010.

10 O estudo dos investimentos chineses é sempre um desafio devido à dificuldade em se obter dados atualizados e ao nível de confiabilidade destes. Na América Latina e no Caribe há uma enorme presença dos investimentos chineses nas Ilhas Cayman e Ilhas Virgens Britânicas, camuflando seus investimentos por meio de suas subsidiárias instaladas em paraísos fiscais.

* Analista de Comércio Exterior na Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior.

** Analista do Banco Central do Brasil. Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina.

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8 www.ictsd.org/news/pontes/

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As negociações entre Mercosul e UE: uma leitura a partir do bloco sul-americanoMauricio López Dardaine*

Apesar de já percorrerem uma trajetória duradoura, as negociações envolvendo os países do Mercado Comum do Sul (Mercosul) e da União Europeia (UE) parecem envolvidas por uma atmosfera de maior otimismo. Sob tal pano de fundo, este artigo debruça-se sobre as decisões da Cúpula de San Juan (Argentina), consideradas importantes não somente para o amadurecimento do bloco sul-americano, como também para a atribuição de novo vigor às tratativas birregionais

Talvez seja apropriado retomar um excerto do Pontes Quinzenal de princípios de julho de 2010: “A UE e os países do Mercosul finalizaram a primeira rodada de negociações comerciais desde a retomada do processo com vistas a estabelecer um acordo entre os blocos. Estas haviam sido suspensas em 2004 devido a divergências em matéria de bens industriais e acesso a produtos agrícolas – desacordos que parecem persistir”1.

Não há dúvidas de que as divergências persistem mesmo após a rodada realizada em Buenos Aires, quando a Argentina ainda exercia a presidência pro tempore do Mercosul. Contudo, tais divergências não serão aqui analisadas, uma vez que não constituem novidade – estão na raiz das enormes dificuldades que deverão ser superadas mediante negociações do mais alto nível político caso se pretenda alcançar um acordo.

O que há de novo então?Por que, em meio às dificuldades econômicas enfrentadas pela UE, surge este renovado impulso, após seis anos de inatividade nas negociações? Não se pretende obter todas as respostas: ao invés disso, serão apresentadas algumas reflexões sob a perspectiva do Mercosul e, em particular, da Argentina, com vistas a buscar uma aproximação em direção a algumas das respostas.

Quanto à estratégia do Brasil de se consolidar como uma potência emergente – não apenas na América do Sul, mas também no contexto mundial –, é importante mencionar que o fato de se apresentar frente à comunidade internacional como Mercosul possui, em determinados cenários, um peso relativo diferente da ação isolada. Inclusive, no caso aqui mencionado, existe um fator adicional: a exigência por parte da UE de que a negociação ocorra entre blocos. Por outro lado, devemos recordar que o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, concluirá seu segundo mandato em dezembro de 2010, mês em que também será encerrado o exercício da presidência pro tempore do Mercosul pelo Brasil.

Além disso, é importante reconhecer que, nos últimos anos, o Mercosul não logrou – ou não tentou – concluir negociações de acordos substancia i s . É prec iso retroceder diversos anos para encontrar exemplos nesse sentido, os tratados assinados com o Chile e a Comunidade Andina de Nações (CAN).

Para o presidente Lula, assinar um acordo com um parceiro da magnitude da UE significaria um avanço internacional muito importante, que coroaria seu duplo mandato. Na Argentina, por sua vez, o período presidencial em curso terminará em 2011, o que significa que não haverá outra oportunidade para que a atual presidenta, Cristina Fernández de Kirchner, ocupe novamente a presidência pro tempore do Mercosul.

Sérias dificuldades técnicas para exportações do Mercosul à UEAs normas san i tá r ia s e f i to s san i tá r ia s f i xadas unilateralmente pelas cadeias de supermercado europeias preocupam o Uruguai. As normas oficiais da Comunidade Europeia também possuem impactos significantes outros setores, como no caso das indústrias química e petroquímica do Mercosul, cujas exportações foram afetadas por certas regulamentações europeias, como a norma sobre registro, avaliação, autorização e restrição de substâncias e preparados químicos (REACH, sigla em inglês), em vigor desde 1º de junho de 2007 e em estado avançado de implementação2. Os objetivos da REACH são: i) proteger a saúde e o meio ambiente dos possíveis riscos derivados das substâncias químicas; ii) promover o uso de métodos alternativos de comprovação da segurança; e iii) melhorar a manipulação e o uso destas substâncias com total segurança em todos os setores da indústria. Essa imposição implica custos elevados tanto aos exportadores do Mercosul quanto aos importadores europeus que são seus clientes. Embora os fins sejam louváveis, o registro é altamente complexo e acaba constituindo uma barreira aos produtores de menor porte, que não dispõem de condições de enfrentar os custos envolvidos no processo REACH.

Condições necessárias e suficientes à conclusão do acordo Sabe-se que nenhum acordo com tais características pode ser concluído sem um forte impulso político. Embora seja certo que não existe acordo sem um peso político exercido no mais alto nível da pirâmide negociadora, é igualmente difícil concluí-lo sem o apoio do setor industrial. Quando da criação do Mercosul, por exemplo, a indústria automotriz teve enorme influência na concretização do Tratado de Assunção,

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Análises regionais

assinado em 26 de março de 1991. Hoje, a indústria automotriz europeia, com forte presença nos países do Mercosul, tem sido, desde o primeiro momento, levada em consideração na retomada das negociações. Afinal, que governo poderia não escutar os interesses dessa indústria? Esta possui como mais duros adversários os agricultores europeus, devido à oposição destes às cotas que a UE poderia outorgar ao Mercosul. Paradoxalmente, tal indústria tem como um de seus mais fortes aliados os agricultores do Mercosul.

Na Argentina, por exemplo, os sinais políticos foram muito claros desde o início de 2010. O setor agrícola, em função do interesse do mercado europeu sobre os bens exportados pelo Mercosul, ocupou-se em analisar detalhadamente a provável oferta da UE. Por sua vez, o setor industrial concentrou-se imediatamente nos produtos sensíveis.

A negociação envolvendo governo e indústria adquiriu intensidade à medida que os prazos de negociação interna do Mercosul se aproximavam, antes mesmo dos encontros entre o bloco sul-americano e o europeu. Com base nessa dura etapa de negociações, é possível concluir que, apesar da persistência das divergências ressaltadas no início deste artigo, existe uma vontade política genuína de negociar.

TEC dupla e temas relacionadosNo per íodo conhecido como “anos perdidos”, o Mercosul empreendeu esforços para avançar em temas considerados prioritários para a UE. Dentre estes, destaca-se a eliminação da dupla tarifa externa comum (TEC), questão que, por sua vez, está relacionada ao código aduaneiro do bloco comercial e à repartição equitativa da renda aduaneira, situação que preocupa especialmente o Paraguai.

Desde 2004 – quando foi aprovada a Decisão do Conselho de Ministros (CMC) No. 54/04 –, houve progressos como a implementação de sistemas de informática compatíveis em matér ia aduaneira. A pressão da negociação com a UE influenciou tal processo, na medida em que já existiam esboços que incluíam fórmulas matemáticas para a repartição da renda aduaneira. No entanto, foi somente em 2 de agosto de 2010, por ocasião da Cúpula do Mercosul na cidade de San Juan (Argentina), que o órgão máximo do bloco assinou as decisões-chave.

Estas decisões constituirão a base para a eliminação da dupla TEC, que ocorrerá a partir de 2012 para bens importados oriundos de terceiros países que circulem sem transformação; e a partir de 2014 para bens importados de terceiros países cuja tarifa seja 2% ou 4% e que circulem dentro do Mercosul logo após terem sido incorporados a um processo produtivo. Existe, ainda, uma última etapa, que expira em 1º de janeiro de 2019, referente àqueles bens importados de terceiros países que não se enquadram em nenhuma das caracterizações anteriores.

Ademais, os países membros do bloco sul-americano assinaram um acordo que define as diretrizes para a repartição da renda aduaneira entre os Estados membros, além de ter sido evitado o obstáculo das retenções argentinas à exportação. Soma-se a isso – como ponto culminante da Cúpula de San Juan – a aprovação do Código Aduaneiro do Mercosul.

Tais feitos indicam uma forte decisão política de avançar em direção a uma união aduaneira que justifique seu nome. Isso é um importante sinal para o mundo, sobretudo para a UE, que condicionou a retomada das negociações com o Mercosul ao aperfeiçoamento interno deste bloco.

Considerações finais

São muitas as questões em negociação, e sua articulação é complexa. O extenso processo de diálogo demonstrou que os negociadores técnicos têm seus limites e que, além de certas pautas predeterminadas, sua margem de manobra é restrita. Na ausência de uma vontade política persistente, que acompanhe sistematicamente a negociação em ambos os lados do Atlântico, a nova série de rodadas poderá terminar em um limbo como a Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC). Contudo, as negociações não parecem caminhar para esse destino: as decisões da Cúpula de San Juan relativas à eliminação da dupla TEC e à aprovação do Código Aduaneiro do Mercosul permitem adotar certo grau de otimismo.

Todavia, a zona de concordância entre as Partes é estreita e apresenta fronteiras instáveis. A fraqueza do atual governo francês frente a seus agricultores, a influência que a indústria automotriz europeia pode exercer nas tratativas, o interesse dos agroexportadores do Mercosul, os resultados das eleições presidenciais no Brasil e um eventual aprofundamento da crise europeia são alguns dos fatores que influenciarão as negociações. Será preciso, portanto, aproveitar com muito olfato político o momento certo. Conscientes deste cenário inconstante, tanto industriais como negociadores estão fazendo seu dever. Se o acordo for concret izado, muitos verão ampl iados seus mercados em uma proporção considerável; outros serão testemunhas importantes do fim de suas indústrias.

1 Disponível em: <http://ictsd.org/downloads/pontesquinzenal/pq5-11.pdf>.

2 Cabe ressaltar que os impactos foram mais sentidos pelas indústrias do Brasil e da Argentina, haja vista o volume e a diversidade de produtos químicos que tais países exportam à UE.

* Consultor em comércio internacional e fundador do Escritório López Dardaine de assessoria em comércio internacional na Argentina.

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Brasil

O crédito à exportação no Brasil e o acordo sobre subsídios da OMCJosé Guilherme Moreno Caiado*

À luz das críticas proferidas contra o programa BNDES Exim em fóruns internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), este artigo debruça-se sobre a compatibilidade do referido programa com o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC) desta Organização. O autor conclui que, embora tais linhas de financiamento promovidas pelo Banco brasileiro possam ser questionadas como subsídio proibido, algumas podem ser justificadas.

As regras referentes a se i s l inhas de crédi to à exportação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) oferecem condições de financiamento mais vantajosas que aquelas encon-tradas no mercado de crédito, o que é considerado um subsídio. Tais linhas vinculam o financiamento não apenas à exportação dos bens1, como também à nacionalização de até 60% de seu conteúdo2, o que é proibido pela OMC. De fato, o BNDES Exim sujeita as companhias beneficiárias a multas e outras pena-lidades que podem atingir até 50% do valor dos bens contratados e não exportados3, situação que pode ser entendida como violação ao artigo 3(a) e (b) do ASMC, caso os financiamentos também atendam ao disposto no artigo 1º deste Acordo, isto é, se forem considerados uma forma de subsídio.

Segundo o acordo, subsídio é uma “contribuição financeira que confere uma vantagem”. O artigo 1º define contribuição financeira como “a prática d[e] governo [que] implique transferência direta de fundos (por exemplo, doações, empréstimos e aportes de capital)”. Todos os programas do BNDES Exim – seja em sua modalidade direta, quando empresta diretamente às companhias beneficiárias, seja na indireta, quando instrui e dirige outros agentes financeiros a atuarem no mercado de crédito – podem ser caracterizados como contribuição financeira. Isso porque preveem algum tipo de transferência de recursos, seja ao produtor, à empresa exportadora ou ao comprador sediado no exterior.

A fim de avaliar se tais programas do BNDES também oferecem uma vantagem – conceito que, segundo a jurisprudência da OMC, caracteriza-se pela oferta de crédito em condições mais favoráveis do que aquelas do mercado –, confrontam-se as taxas de juros oferecidas pelo BNDES Exim com as taxas esta-belecidas pelo índice da Taxa de Referência de Juros Comerciais (CIRR, sigla em inglês)4 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por meio desse exercício comparativo, verifica-se que todos os programas em questão podem oferecer juros menores que os da CIRR em ambos os casos.

Mais um ponto: o cálculo das taxas de juros dos programas analisados não faz referência ao risco de inadimplência das empresas beneficiárias nem ao risco relacionado com sua localização geográfica (e.g. o risco país, cobrado por instituições financeiras no mercado internacional de crédito). Uma vez que o conceito de vantagem exige uma comparação entre as condições do financiamento concedido pelo governo e as condições vigentes no mercado de crédito – e considerando que as instituições privadas analisam os riscos individuais de cada contratante e, eventu-almente, o risco país –, é possível argumentar que, dada a ausência de um elemento relacionado ao risco do beneficiário na determinação da taxa de juros cobrada pelo BNDES, os programas podem oferecer condições mais favoráveis que as do mercado, con-trariando as regras da OMC. Isso posto, as linhas de crédito do BNDES Exim podem ser classificadas como subsídio proibido, a menos que sejam justificáveis pela

exceção contida na letra (k) do Anexo I do ASMC, condição que permitiria considerar os programas do Banco brasileiro compatíveis com o referido acordo.

Apesar de controversa, essa exceção pe rm i te que o s Estados concedam subsídios à exportação: i) desde que a taxas não inferiores às obti-

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Brasil

das por seus governos no mercado internacional – o que foi descartado ao se verificar que os programas oferecem taxas abaixo das obtidas pelo governo bra-sileiro em emissões de títulos da dívida; ou ii) desde que o crédito à exportação não garanta vantagem de monta à empresa beneficiada. No que concerne à segunda possibilidade, algumas das linhas analisadas podem ser justificadas, em especial, se concedidas na modalidade indireta, em que a operação ocorre mediante outro agente financeiro. Nestas operações, o banco intermediário cobra uma remuneração que poderia aproximar a taxa total paga pelas empresas às taxas da CIRR. De acordo com o Órgão de Apelação (OA), se a taxa mínima de juros é ao menos igual à CIRR – apesar de configurar uma vantagem nos termos do artigo 1º – não deve ser considerada vantagem de monta5, e poderia excetuar algumas das linhas do BNDES Exim, em especial na modalidade indireta.

Isso leva à conclusão de que os programas de incentivo às exportações brasileiras conduzidos no âmbito do BNDES Exim podem ser considerados como subsídios vinculados à exportação e à substituição de impor-tações, situação a priori proibida pelo ASMC da OMC. Contudo, algumas das linhas de financiamento podem se beneficiar de exceções contidas nesse acordo. Mais precisamente, é possível, a partir da exceção estabelecida na letra k do ASMC, que os governos de países em desenvolvimento (PEDs) ofereçam subsídios para exportação em condições de igualdade com as taxas normalmente obtidas por empresas localizadas em países desenvolvidos (PDs).

Esse é um ponto relevante para empresas sediadas em PEDs, onde não é comum que os mercados domés-ticos de crédito ofereçam financiamentos de longo prazo. Dessa forma, as empresas precisam recorrer ao mercado internacional, no qual também deveriam arcar com o risco país. Isso pode ser um problema porque as instituições financeiras internacionais acrescentam à taxa de juros de seus financiamentos um diferencial sobre o risco de cada país, que costuma ser mais elevado em PEDs. A jurisprudência da OMC define subsídio como uma contribuição financeira em “condições mais favoráveis que normalmente oferecidas às empresas no mercado”. A jurisprudência estabelece, ainda, que a CIRR constitui uma taxa de referência mínima do mercado. Assim, para adequar seus programas de financiamento ao ASMC, os governos deveriam incluir nas taxas de juros dos financiamentos oferecidos por bancos públicos um adicional relativo a seu próprio risco país, a despeito da concessão do crédito ser feita no mercado doméstico e por um banco nacional. Isso significa que empresas sediadas em PEDs podem obter crédito a taxas mais altas que aquelas sediadas em PDs.

A interpretação feita pelo OA da letra k, entretanto, excetua os subsídios fornecidos, desde que provado que as taxas de juros são iguais ou maiores que a CIRR6. Com isso, empresas nacionais podem obter cré-dito em condições similares àquelas obtidas por seus concorrentes de PDs. No que concerne à regulação de subsídios industriais, é plausível concluir que, apesar de o ASMC implicar um controle maior sobre os PEDs, há espaço para a elaboração de políticas de incentivo às exportações por meio de financiamentos, desde que seus juros sejam limitados pelo piso mínimo da CIRR. A manutenção e a conquista de mercados fica, assim, limitada à capacidade da indústria doméstica de produzir bens com uma eficiência igual ou melhor que suas concorrentes internacionais.

Com base nessa análise, é possível indicar alguns possíveis espaços para ação dos PEDs que tenham aderido ao ASMC. Na esfera doméstica, os financia-mentos à exportação devem conter previsões que vinculem a autoridade responsável pela concessão do crédito às taxas mínimas da CIRR como condição para a liberação de recursos. Além disso, é preciso que os f inanciamentos incorporem elementos de análise de risco ao cálculo das taxas de juros e que ofereçam discricionariedade substancial à autoridade responsável pelo financiamento para não conceder o crédito, caso haja indícios de que uma vantagem será conferida. Ainda, na esfera internacional, existe a possibilidade de que os Estados negociem alterações no ASMC ou interpretações7 que relativizem o trata-mento indiferenciado entre PDs e PEDs.

1 Item incluído nos regulamentos dos programas mencionados pelo Anexo à Carta-Circular AEX nº 14/2008, de 28 de Março de 2008.

2 Todos os programas do BNDES analisados exigem um índice de nacionalização em valor igual ou superior a 60% dos produtos. O cálculo do Índice de Nacionalização em Valor (Iv) é regulado pelo Anexo II à Circular nº 195, de 28 de Julho de 2006, que impõe o uso da seguinte fórmula: Iv = ( 1 – X/Y) x 100, sendo X o valor dos componentes importados, e Y o preço de venda efetivamente praticado. Assim, quanto maior a proporção dos valores dos componentes importados em relação ao preço final do produto, menor o Iv. Desse modo, limita-se o uso de componentes importados em favor de componentes produzidos no mercado doméstico.

3 Item incluído nos regulamentos dos programas mencionados pelo Anexo à Carta-Circular AEX nº 14/2008, de 28 de Março de 2008.

4 A CIRR serviu de base comparativa para o Órgão de Apelação da OMC em outros casos de subsídios. Ver, por exemplo, o relatório do OA em Brazil-Aircraft, parágrafos 61/62.

5 Conforme o parágrafo 67 do Relatório do OA em BRAZIL – AIRCRAFT 21.5: “Para demonstrar que os subsídios oferecidos pela nova versão do PROEX não são usados para “garantir vantagem de monta nas condições dos créditos à exportação”, o Brasil deve provar que (...) as taxas líquidas de juros oferecidas pelo PROEX são iguais ou menores que a CIRR em questão”.

6 Ainda que o Painel em Brazil-Aircraft 21.5 (ii) tenha rejeitado essa interpretação, o relatório do OA em Brazil-Aircraft parece deixar aberta essa possibilidade.

7 Conforme artigo IX:2 do Acordo Constitutivo da OMC.

* Doutorando pela Universidade de Hamburgo, LLM pelo Instituto Europeu da Universidade de Sarre (Alemanha) e Mestre pelo PROLAM/USP com bolsa da CAPES.

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Brasil

Haiti: política comercial e desenvolvimento1

Christiane S. Aquino Bonomo*Diego Z. Bonomo**

Os problemas de ordem econômica, social e política que assolam o Haiti fazem deste país foco de atenção dos Estados Unidos da América (EUA) e do Brasil. Suas políticas comerciais apresentam, cada vez mais, uma interface com medidas relacionadas a programas de desenvolvimento do Haiti. Este artigo analisa a proposta de integração entre o programa preferencial dos EUA ao Haiti e a política comercial em fase de estruturação pelo governo brasileiro.

O Haiti é o país mais pobre e com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (0.532) das Américas. Cerca de 70% da população vive com menos de US$ 2,00 por dia e o desemprego é crônico, atingindo entre 75% e 80% da força de trabalho. Entre os países catalogados pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Haiti apresenta, ainda, o quarto maior índice de Gini (59.5), indicador de concentração de renda. No país, os 10% mais ricos possuem 54 vezes mais riqueza do que os 10% mais pobres.

Os problemas da pobreza e do desemprego são agravados pela alta incidência de desastres naturais. O Haiti está localizado na rota dos furacões que assolam o Caribe e seu território é sismicamente ativo. Por essa razão, o país possui histórico significativo de destruição da infraestrutura econômica e social por enchentes e terremotos. O país chegou a ter perdas econômicas de até 62% do Produto Interno Bruto (PIB) em um único desastre.

Por fim, o Haiti padece de incessante instabilidade política. Desde a Revolução Haitiana (1791-1804), que pôs fim ao colonialismo francês, o país viveu quase ininterrupta sucessão de regimes autocráticos, cujos chefes de governo foram, em geral, depostos. Até os anos 1990, essa situação coexistiu com intervenções e ocupações militares estrangeiras, sobretudo dos EUA.

Nos anos 90, após o governo de transição (1986-1991) que pôs fim ao regime autocrático da família Duvalier (1957-1986), houve a tentativa de estabelecimento de regime democrático no Haiti. Desde então, o sistema político tem sido polarizado pelas forças ligadas a Jean-Bertrand Aristide, eleito presidente em 1991 e em 2001, e René Garcia Préval, eleito presidente em 1996 e em 2006.

Aliada à pobreza e à desigualdade social, a instabilidade política reflete-se em alto índice de corrupção e baixa institucionalidade. A incapacidade do Estado haitiano de prover serviços básicos à população, somada ao interesse da comunidade internacional pelo desenvolvimento do país, resultou na crescente atuação de organizações não-governamentais (ONGs) – domésticas e estrangeiras – para suprir lacunas de políticas públicas. Hoje, o Haiti é considerado uma “República das ONGs”, em que a própria descentralização e descoordenação decorrente da atuação simultânea de centenas de organizações contribui para a fragilização do Estado.

Após a rebelião de 2004 contra o então presidente, Jean-Bertrand Aristide, e a subsequente intervenção multinacional autorizada pelo Conselho de Segurança

da ONU, a estabilização e o desenvolvimento do Haiti passaram a ser tema relevante para a política externa dos dois principais países do continente: os EUA e o Brasil.

Para os EUA, o Haiti é, historicamente, alvo de considerações de política externa por razões de segurança nacional. Hoje, essa ligação é reforçada pela diáspora haitiana, que tem grande influência em distritos eleitorais de estados como Flórida e Nova York. Sua mobilização política tornou-se variável importante no cálculo de atuação de dezenas de parlamentares estadunidenses.

Para os brasileiros, o país tornou-se mais relevante após a liderança do Brasil na Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Desde sua criação pela Resolução 1542 do Conselho de Segurança da ONU, em 2004, o componente militar da missão é comandado pelo Brasil. Após o terremoto de 12 de janeiro de 2010, o efetivo brasileiro foi praticamente dobrado.

A despeito da ação política e militar dos dois países, há um aspecto cada vez mais relevante na estratégia de engajamento dos EUA e do Brasil entre si e com o Haiti: ações na área de política comercial relacionadas a programas de desenvolvimento do país.

A política comercial estadunidense há muito é utilizada como instrumento nas relações bilaterais, como no caso de embargos comerciais. No entanto, foi nos anos 1970 que os interesses econômicos de setores da indústria e do agronegócio dos EUA passaram a constituir variável mais visível – e determinante – das ações de política comercial voltadas ao Haiti.

Exemplo significativo é a implementação do Sistema Geral de Preferências (SGP) dos EUA. A notificação estadunidense às Partes Contratantes do antigo Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, sigla em inglês) sobre a entrada em vigor do mecanismo, em 1976, já demonstrava o choque entre interesses comerciais da indústria doméstica, de um lado, e oportunidades de desenvolvimento para o Haiti, de outro. O país caribenho foi incluído como beneficiário do programa, com a exceção de equipamentos de baseball. Curiosamente, nos anos 1970 e 1980, tais produtos constituíam um dos carros-chefe da produção industrial e das exportações haitianas, resultado do esforço de “taiwanização” do país levado a cabo pelo regime do presidente Jean Claude “Baby Doc” Duvalier – na prática, política de apoio à criação de

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Brasil

maquiladoras em Porto Príncipe como forma de concentrar o poder econômico e político na capital. A não inclusão do produto no SGP é um sinal do descompasso inicial entre política comercial e ação humanitária.

Outro exemplo significativo diz respeito às exportações estadunidenses de arroz para o Haiti. O esforço de “taiwanização” já havia contribuído para o esvaziamento do interior do país ao incentivar a migração para a capital. Contudo, o último embargo comercial implementado pelos EUA e outros países, em resposta ao golpe militar de 1991, bloqueou as exportações do Haiti, assim como suas importações de insumos. No setor agrícola, o resultado foi a queda na produção das commodities para exportação – de bens como açúcar e café – e o bloqueio às importações de fertilizantes e sementes. Além disso, a proibição à importação de combustível criou incentivo adicional ao desmatamento para a produção local de carvão vegetal. Além de contribuir para o desflorestamento e a degradação do solo, esse quadro resultou no enfraquecimento da produção agrícola haitiana.

De maneira concomitante, os EUA aceleraram a exportação de arroz subsidiado ao Haiti, inclusive na forma de ajuda alimentar (food aid). Em 1988, 47% do suprimento do país era constituído por produção local. Os demais 53% eram importados no mercado varejista. Já em 2008, apenas 15% do suprimento haitiano passou a ser produzido localmente. Os demais 85% foram importados, dos quais 11% na forma de ajuda alimentar. No mesmo período, os subsídios domésticos aos rizicultores estadunidenses saltaram de US$ 128 milhões, em 1988, para um pico de US$ 1,7 bilhão, em 2000, e retornaram a US$ 301 milhões, em 2008.

A despeito dos efeitos deletérios dessas políticas, desde 2000 o Congresso dos EUA busca ampliar oportunidades de exportação do Haiti para o país. Esse movimento teve início com a aprovação do Trade and Development Act of 2000, que incluiu, pela primeira vez, certos tipos de vestuário no programa preferencial estadunidense para os países do Caribe, desde que a produção local fosse feita com base em fios e tecidos produzidos nos EUA – regra de origem conhecida como yarn-forward. A aprovação da lei foi impulsionada pelos danos econômicos na região causados pelo Furacão Mitch e pelo Furacão Georges, ambos de 1998. A resposta inaugurou – ainda que informalmente – uma “política comercial dos desastres naturais”, muito evidente no caso haitiano.

Desde meados da década, o Congresso ampliou, em três ocasiões (2006, 2008 e 2010), as preferências comerciais ao Haiti, por meio do alargamento do escopo de produtos beneficiados e das cotas de importação livres de impostos, bem como mediante a adoção parcial da regra de origem simplificada, que permite a utilização de insumos de quaisquer terceiros países (“any country source”) para a produção de determinados itens. Em duas dessas ocasiões, a ampliação das preferências foi acelerada por desastres naturais, caso das enchentes de 2008 e do terremoto de 2010.

O objetivo explícito da política comercial dos EUA nessa área é criar oportunidades para a retomada da ampliação de empregos no setor de vestuário, hoje responsável por cerca de 75% a

80% da receita exportadora do país e por aproximadamente 25.000 empregos. Ao mesmo tempo, a política busca resguardar a indústria têxtil estadunidense, severamente afetada pela concorrência asiática, sobretudo da China.

Em paralelo a esse esforço, o Brasil também passou a construir as bases institucionais de sua nova política comercial para o Haiti. Em 2008, a indústria têxtil e de vestuário brasileira propôs a criação de um programa preferencial ao país que fosse integrado ao seu similar estadunidense. O objetivo era criar, por meio da cooperação trilateral, uma plataforma de exportação no Haiti que permitisse à indústria brasileira exportar insumos e investir no país para produzir bens beneficiados pelo programa dos EUA e, em contrapartida, permitir à indústria estadunidense realizar o mesmo tipo de operação para exportação ao Brasil, beneficiada pelo programa brasileiro. Assim, seria criado espaço recíproco de comércio entre os dois países (EUA e Brasil) por meio do incentivo ao investimento estrangeiro no parque produtivo haitiano.

Após dois anos de intenso diálogo envolvendo as indústrias brasileira e estadunidense, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) do Brasil e órgãos do Executivo e Legislativo dos EUA, a legislação estadunidense aprovada em 2010 abriu a primeira possibilidade real de integração da política comercial para o Haiti implementada pelos dois países ao incluir linguagem sobre “cooperação regional”.

O Brasil ainda não estabeleceu seu próprio programa, mas iniciou a estruturação deste em 2010. Durante a tramitação da Medida Provisória 482, que implementou no país o uso do mecanismo de “retaliação cruzada” previsto pelas regras da Organização Mundial do Comércio (OMC), o Congresso Nacional fez o primeiro debate sobre a criação das preferências comerciais brasileiras ao Haiti.

De forma complementar, os membros do Mercado Comum do Sul (Mercosul) aprovaram, em agosto de 2010, resolução permitindo a coexistência de programas desse tipo com a Tarifa Externa Comum (TEC). A resolução foi fruto de pedido de derrogação de obrigações (waiver) feito pelo Brasil e prevê a possibilidade de o programa brasileiro vigorar até o fim de 2019. Ela inclui, também, provisão de compensação para países do bloco que sejam afetados pelas importações haitianas.

Nos próximos meses, o Brasil deverá avançar na criação de seu programa para o Haiti e no diálogo com os EUA para a integração de suas preferências comerciais. Se concretizado, o esforço resultará em inovador instrumento de harmonização entre política comercial e ação humanitária, contribuindo para o desenvolvimento do Haiti por meio da geração de exportações, empregos e renda.

1 Todas as estatísticas deste trabalho foram retiradas de documentos produzidos pelo Banco Mundial, Center for Economic and Policy Research (CEPR), Congressional Research Service (CRS), Organização das Nações Unidas (ONU) e United States Institute of Peace (USIP).

* Diplomata atualmente lotada na Embaixada do Brasil em Washington. As opiniões expressas nesse artigo são pessoais e não refletem necessariamente a posição oficial do governo brasileiro.

** Diretor Executivo da Coalizão de Indústrias Brasileiras (BIC, sigla em inglês), em Washington.

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Brasil

Mercado de bens e serviços ambientais:desafios e oportunidades para a América LatinaCecilia Häsner*Tereza Cristina Romero**

Este artigo aborda o panorama do mercado de bens e serviços ambientais (BSA) no mundo, na América Latina e no Brasil, bem como a experiência do estado do Espírito Santo (Brasil) na realização de um estudo pioneiro sobre a oferta de bens e serviços ambientais. Além disso, esta análise buscará identificar os principais pontos críticos e oportunidades deste setor.

Segundo a Environmental Business International Inc.1, o mercado ambiental mundial movimentou US$ 772 bilhões em 2009 e está concentrado nos países desenvolvidos (PDs) – sendo os Estados Unidos da América (EUA) responsáveis por 37% deste mercado, seguidos da Europa ocidental, com 27%, e do Japão, com 12%. A participação da América Latina corresponde a 4%, com valor similar ao da China. O Brasil domina o mercado latino-americano de BSA, uma vez que responde por 47% (o correspondente a US$ 15,9 bilhões). O México encontra-se em segundo lugar, com 20% do mercado ambiental da América Latina.

A base de cálculo para projetar o volume do mercado ambiental considera a classificação tradicional de BSA. Posto que esta tipologia é fundamentada em bens voltados à solução de problemas ambientais e não inclui produtos e serviços de interesse para países em desenvolvimento (PEDs) e megadiversos. Segundo a Environmental Business International Inc, existem três categorias no mercado de BSA: equipamentos, dentre os quais se destacam produtos químicos e equipamentos para tratamento de água; serviços, principalmente aqueles relacionados com gestão de resíduos; e recursos, setor que envolve a rede de abastecimento de água e a produção de energias limpas. O segmento de serviços é o maior em termos de montante: em 2009, o setor movimentou US$ 142,5 bilhões.

Em termos de taxas de crescimento, o mercado ambiental apresentou uma grande variação nestes últimos anos, chegando a taxas negativas em 2008 e 2009 para alguns países ou regiões. Este resultado pode ser explicado pela influência da crise econômica de setembro de 2008. Em geral, observam-se taxas de crescimento menores nos PDs, comparativamente aos PEDs. Essa constatação revela uma saturação do mercado ambiental nos PDs, o que reforça o interesse desses países na abertura comercial para outras regiões. A América Latina apresentou taxas superiores a 10%, superando a Ásia em 2008, porém a região teve uma queda brutal de seu crescimento em 2009, como reflexo da crise econômica mundial. A alta taxa de crescimento observada nos PEDs mostra um mercado em plena expansão. Dados sobre o volume do comércio de produtos e tecnologias amigáveis com o clima mostram um crescimento similar ao exposto aqui, com taxas de crescimento anual entre 7 e 14%2, tendo um impacto positivo nos projetos de Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL) por meio do aumento na transferência de tecnologia de produtos relacionados à produção de energias renováveis.

No Brasil, o mercado ambiental cresceu acentuadamente a partir de 2000, à exceção de uma queda em 2009, em decorrência dos impactos da crise econômica de 2008; o referido mercado passou de US$ 3,77 a 17,21 bilhões.

O balanço comercial para o ano de 2007 no mercado ambiental foi bastante favorável aos PDs (ver Tabela 1): tanto a Ásia como a América Latina aparecem como importadores líquidos de BSA. Por meio desse dado, é possível compreender o posicionamento dos PDs na Organização Mundial do Comércio (OMC), isto é, pressionar pela liberalização do comércio de BSA, a fim de ampliar o acesso a mercado para a sua já consolidada indústria ambiental.

Um estudo elaborado pela Câmara Brasil-Alemanha sustentou que a Alemanha investiu US$ 40 bilhões no setor de energias renováveis em 2007, enquanto que, no Brasil, esse montante totalizou US$ 6,7 bilhões3. Esse panorama vai ao encontro das ações governamentais de estimular a produção do etanol e de biodiesel, e a falta de priorização para o setor de saneamento e gestão de resíduos sólidos no país. O referido estudo também apontou para a dependência do Brasil em relação a tecnologias sustentáveis estrangeiras, bem como a falta de inovação tecnológica no país e a escassa cooperação em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) entre empresas do mesmo setor e entre estas e instituições nacionais ou internacionais.

Conhecendo o mercado ambiental: a experiência do estado do Espírito SantoO estado do Espírito Santo (ES) realizou a pioneira Pesquisa sobre a Oferta de Bens e Serviços Ambientais, que faz parte do Plano Estratégico de Negócios Ambientais Amigáveis com o Clima4. O estudo concluiu que o volume do mercado ambiental em 2009 chegou a movimentar R$ 1,2 bilhão (1,86% do Produto Interno Bruto do estado), sendo 80% em serviços ambientais, com participação maior do setor

TABELA 1: BALANÇA COMERCIAL DO MERCADO AMBIENTAL MUNDIAL (EM US$ BILHÕES)

*Nota explicativa da tabela: cada país dentro da mesma região, não como um bloco. Por exemplo: a venda da Alemanha para a Itália é uma exportação e uma importação.Fonte: Environmental Business International Inc. (2010).

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Pontes

PONTES tem por fim reforçar a capacidade dos agentes na área de comércio internacional e desenvolvimento sustentável, por meio da disponibilização de informações e análises relevantes para uma reflexão mais aprofun-dada sobre esses temas. É também um instrumento de comunicação e de geração de idéias que pretende influenciar todos aqueles envolvidos nos processos de formulação de políticas públicas e de estratégias para as negociações internacionais.

PONTES foi publicado pelo Centro Internacional para o Comércio e o Desenvolvimento Sustentável (ICTSD).

Equipe editorial

Michelle Ratton Sanchez Adriana VerdierManuela Trindade VianaDaniela Helena Oliveira Godoy

ICTSD

Diretor executivo: Ricardo Meléndez-Ortiz7, chemin de Balexert1219, Genebra, Suíç[email protected]

As opiniões expressadas nos artigos assinados em PONTES são exclusivamente dos autores e não refletem necessariamente as opiniões do ICTSD, ou das instituições por ele representadas.

1 Ver: EBI Inc. Global Environmental Market. San Diego: Environmental Business International Inc., 2010.2 Ver: World Bank. International Trade and Climate Change: economic, legal and institutional perspective.

s.l.: World Bank, 2008.3 Ver: AHK, Roland Berger Strategy Consultants Green Technologies in Brazil: An Overview of the Sustainability

Market / ed. Jutta Scherer JS textworks. - 2009.4 A organização classifica bens e serviços ambientais em três grupos: Manejo da Poluição; Tecnologias e

Produtos Limpos; e Manejo de Recursos.5 Ver: CEPAL & GTZ Project Document: SMEs in the environmental goods and services market: identifying areas of

opportunity, policies and instruments. Case studies: Argentina, Chile, Colombia and Mexico. United Nations, 2006.6 Nesse contexto, o Instituto IDEIAS empreende, desde o início de setembro, a Pesquisa de Demanda por BSA

na cadeia produtiva de rochas ornamentais no ES.

* Especialista em gestão ambiental e Mestre em Propriedade Intelectual e Inovação. Atua como Consultora e Pesquisadora do IDEIAS.

** Arquiteta especialista em gestão de projetos na área de resíduos sólidos e diretora-presidente do IDEIAS.

de resíduos sólidos. A pesquisa também apontou para a importância das micro e pequenas empresas no peso relativo em termos de número de empresas, enquanto que as empresas de médio e grande porte possuem um peso relativo maior no faturamento e na geração de emprego deste setor ambiental.

O tipo de BSA ofertado pelas empresas contempladas na pesquisa resultou na identificação de 148 produtos e serviços, agrupados em diferentes categorias, conforme a classificação da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE)4. As áreas que mais se destacaram são gestão de resíduos sólidos; consultoria e educação ambiental; materiais recicláveis; e monitoramento e avaliação ambiental.

Os principais pontos críticos identificados na referida pesquisa foram: i) carga tributária elevada; ii) licenciamento ambiental e fiscalização; iii) acesso a linhas de créditos específicas para a área ambiental; iv) desconhecimento sobre o tema de BSA, tal como conceitos e classificação em conformidade com os códigos nacionais de atividades econômicas (códigos CNAE); v) falta de organização do setor; vi) acesso a tecnologias; e vii) aspectos culturais e de mercado em geral, como a dificuldade das empresas investirem em tecnologias limpas ou em eficiência energética relacionadas a mudança climática ou preservação ambiental.

Muitos desses pontos críticos também foram apontados em um estudo similar realizado pela Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), cujo objetivo foi estudar o mercado ambiental do ponto de vista da demanda e o nível de oferta que Argentina, Chile, Colômbia e México dispunham para suprir essa demanda. Uma das conclusões principais desse estudo é a necessidade de revisar a estrutura institucional e o marco regulatório existentes, com a finalidade de criar um setor de empresas que ofereçam BSA capazes de responder à real demanda ambiental de acordo com o porte das empresas5. Esse desafio também é apontado pela Pesquisa de Oferta de BSA realizado no ES6. Dessa forma, pode-se concluir que o mercado de BSA no ES é similar a outras economias da América Latina, dependente de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento deste setor, bem como a falta de organização institucional deste.

Tanto nos estudos da Cepal como na pesquisa realizada no ES, são evidentes os desafios impostos à América Latina com relação ao tema de BSA. Ao mesmo tempo, tais obstáculos transformam-se em grandes oportunidades de negócios ambientais, fomentando o mercado verde. Ainda, é possível destacar outras oportunidades para a América Latina, tais como o estímulo ao desenvolvimento local, a atração de investimentos e o maior desenvolvimento tecnológico, o que repercute na independência de tecnologias importadas.

Considerações finaisO panorama mundial do mercado ambiental apresentado neste artigo mostra um nicho de mercado promissor – principalmente para países como o Brasil. Todavia, o setor de BSA carece de informações mais precisas sobre a real demanda e oferta nos países latinos, bem como de estudos sistemáticos que forneçam indicadores de desempenho do mercado ambiental.

Nesse sentido, a pesquisa realizada no ES serve de subsídio para conhecer melhor o perfil das empresas que trabalham no setor de BSA, na medida em que identifica pontos críticos e oportunidades em comum com os demais países da região. Fica clara a necessidade de organizar o setor de BSA e traçar políticas públicas que fomentem este mercado na América Latina para poder estabelecer metas precisas de liberalização comercial de BSA no âmbito da OMC.

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PontesENTRE O COMÉRCIO E O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL

EVENTOS PUBLICAÇÕES

SETEMBRO

15-17 OMC – Fórum Público da Organização Mundial do Comércio. Genebra, Suíça.

16 BID – Conferência Anual: Rede de Integração, Comércio e Crescimento. San José, Costa Rica.

19 OMC – Dia de portas abertas. Genebra, Suíça.

20-21 FAO – Workshop sobre guia prático para inte-gração de mudanças climáticas em programas florestais nacionais. Roma, Itália.

20-24 CDB – Workshop global para especialistas sobre os benefícios do REDD sobre a biodiversidade em países em desenvolvimento. Nairóbi, Quênia.

27-28 OCDE – Conferência para América Latina e Caribe sobre investimento em empregos para o desenvolvimento. Santiago, Chile

27 FAO – 30ª Conferência regional para Ásia e Pacífico. Gyeongju, Coreia.

28 BID – Fórum de Eficiência Energética e Acesso. Cidade do México, México.

OUTUBRO8-10 FMI/Banco Mundial – Reunião anual. Washington,

EUA.

11-15 CBD – 5ª Reunião da Conferência das Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança. Nagoya, Japão.

13 BID – 6ª Conferência de Compras Governamentais nas Américas. Lima, Peru.

13-15 UNECE – Reunião Regional sobre os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Genebra, Suíça.

14-15 OCDE – Fórum Global sobre Comércio. Chengdu, China.

18-29 CDB – 10ª Conferencia das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (COP 10). Nagoya, Japão.

19 CEPAL – 2º Seminário Internacional de Desenvolvimento Econômico Territorial. Santiago, Chile.

21 OMC – Reunião do Conselho Geral. Genebra, Suíça.

Vossenaar, R. Climate-related Single-use Environmental Goods. ICTSD. Genebra, set. 2010. Disponível em: <http://ictsd.org/i/publications/84489/?view=document>.

Melendez-Ortiz, R. e Roffe, P. Intellectual Property and Sustainable Development: Development Agendas in a Changing World. ICTSD. Genebra, jul. 2010. Disponível em: <http://ictsd.org/i/publications/81935/>.

Woolverton, A., Regmi, A.e Tutwiler, A. The Political Economy of Trade and Food Security. ICTSD. Genebra, jul. 2010. Disponível em: <http://ictsd.org/i/publications/82053/?view=document>.

OCDE-FAO. Perspectivas sobre a Agricultura OCDE-FAO: 2010-19. Paris, 2010. Disponível em: <http://www.agri-outlook.org/pages/0,3417,en_36774715_36775671_1_1_1_1_1,00.htmlf>.

União Europeia. Renewable Energy Snapshots 2010. Itália, 2010. Disponível em: <http://re.jrc.ec.europa.eu/refsys/pdf/FINAL_SNAPSHOTS_EUR_2010.pdf>.

Gross, D. et al. Climate Change and Trade: Taxing Carbon at the Border? Centre for European Policy Studies. Bruxelas, mai. 2010. Disponível em: <http://www.ceps.eu/book/climate-change-and-trade-taxing-carbon-border>.

Hufbauer, G., Schott, J. e Woan, F.W. Figuring out the Doha Round. Peterson Institute, jun. 2010. Disponível em: <http://bookstore.piie.com/book-store/5034.html>.

Banco Interamericano de Desenvolvimento. Integration and Trade Journal n. 30. Buenos Aires, jan-jun. 2010. Disponível em: <http://www.iadb.org/intal/detalle_publicacion.asp?idioma_pub=eng&tid=4&idioma=eng&pid=388&cid=234 >.

UNCTAD. World Investment Report. Genebra, jul. 2010. Disponível em: <http://www.unctad.org/Templates/webflyer.asp?docid=13423&intItemID=1397&lang=1&mode=downloads>.

South Centre. The Impact of the Global Economic Crisis on Industrial Development of Least-developed countries. Genebra, mai.2010. Disponível em: <http://www.southcentre.org/index.php?option=com_content&view=article&id=1330%3Athe-impact-of-the-global-economic-crisis-on-industrial-development-of-least-developed-countries&catid=54%3Acommodities-and-economic-diversification&Itemid=67&lang=en>.