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Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da fotografia e
as apropriações do cotidiano1
Rubens Venâncio (URCA | IFOTO / Ceará)
Resumo: Meu interesse nesse artigo direciona-se às práticas cotidianas dos moradores
dos baixios e a forma como estabelecem relações com o espaço; e para a construção
de um ensaio fotográfico sobre a maneira como esses indivíduos elaboram suas
experiências diárias: itinerários de lazer, trabalho e vivências. Considerando as
tensões desse cotidiano e da imanência das desapropriações, apresenta-se o desafio de
pensar a construção de uma experiência etnográfica-visual a partir da arquitetura
possível entre as dimensões do ensaio fotográfico, da pesquisa conceitual e do
trabalho de campo.
Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa.
Um cotidiano não negociado
Nos distritos rurais do Baixio do Múquem e no Baixio das Palmeiras moram
centenas de famílias que vivem, em sua maioria, da agricultura familiar e partilham
uma história e um intenso cotidiano de vivências e práticas. Ambos são distritos do
município de Crato, região do Cariri Cearense, e se encontram geograficamente entre
suas três principais cidades: Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. Atualmente as
comunidades estão ameaçadas pelo projeto – já iniciado – do Cinturão das Águas do
Ceará (CAC) que prevê a construção de um canal que trará água da transposição do
rio São Francisco para o Ceará.
O discurso da segurança híbrica para o estado Cearense não foi suficiente para
convencer os moradores do abandono de suas residências, principalmente após casos
de desrespeito. Trabalhadores e técnicos responsáveis pelas obras já começaram os
estudos, as medições e as pesquisas sobre o solo invadindo propriedades e sem se
preocupar em estabelecer qualquer diálogo com os habitantes. Que, por sua vez, não
1 Trabalho apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de
agosto de 2014, Natal/RN.
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sabem por onde exatamente passará o canal, quantas famílias serão desabrigadas e
para onde vão.
Ao falar desses distritos rurais, falo não de comunidades isoladas, ao
contrário, eles estão em contato com centros políticos, comerciais, industriais e
universitários. Ainda, a proximidade da Chapada do Araripe agrega importância
ecológica pela quantidade de nascentes, riachos e resquícios de mata nativa
encontradas; bem como arqueológica, já que em algumas encostas dos riachos
encontram-se camadas fósseis comuns na Bacia Sedimentar do Araripe, gerando a
constante incidência de vestígios arqueológicos, como inscrições nas pedras,
machadinhas e cerâmicas.
A alteração brusca no cotidiano e na sociabilidade dos habitantes, a
possibilidade da perda de vínculo com o passado, suas memórias e identidades,
coaduna-se à ameaça à natureza e não clareza dos impactos socioambientais. Mesmo
não ocorrendo nesses distritos influências de algumas transformações, fruto das
dinâmicas de crescimentos das cidades, como, por exemplo, intervenções
urbanísticas, eles estão num contexto de modificações econômicas e sociais ocorridas
no Ceará e no Brasil, vinculadas diretamente ao seu planejamento e a sua política de
gerenciamento das águas – bem como as suas contradições no que toca às
desapropriações, inundações e a utilização dos seus benefícios pela indústria e pelo
agronegócio.
Diante disso, como os moradores se relacionam com o lugar? Em meios às
adversidades, como elaboram suas experiências no espaço e quais os impactos em
seus itinerários cotidianos? Como é construída a relação com água, que além de
sinônimo de abundância passou a ser uma ameaça? Quais papéis e desafios podem ser
assumidos pela fotografia documental na contemporaneidade, como narrativa
imagética? E quais os desdobramentos estéticos e sociais advindo na apropriação do
cotidiano pela fotografia?
Assim, como que dotando o flâneur de uma câmera, busco com este trabalho
uma estética-sensibilidade para captar a relação cotidiana e imaginária que os
moradores do Baixio do Múquem e do Baixio das Palmeiras estabelecem com o
ambiente por meio da intervenção fotográfica. Para tanto, direciono o fazer artístico
para a criação de um ensaio fotográfico que se debruçará sobre como os indivíduos
elaboram suas experiências diárias: itinerários de lazer, trabalho e vivências.
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Considerando as tensões desse cotidiano e o início das desapropriações,
apresenta-se o desafio de pensar a construção de uma experiência etnográfica-visual-
artística a partir da arquitetura possível entre as dimensões do ensaio fotográfico, da
pesquisa conceitual e do trabalho de campo. Onde se impõem três questionamentos
oriundos dessa articulação: Como os moradores produzem percurso? Como a
fotografia pode produzir percurso? E quais são meus percursos possíveis como
fotógrafo-pesquisador?
Com essas inquietações, penso que a forma como o indivíduo vivencia o
cotidiano com táticas, astúcias e práticas – suas artes de fazer (CERTEAU, 2007) –
elaboram reciprocidades com o espaço que entram em desalinho com uma paisagem
proposta, criando um descompasso entre os locais em mudança e os percursos
individuais, bem como uma situação de conflito a partir do estabelecimento de vários
territórios e realidades sociais múltiplas ocorrendo no mesmo lugar (GOFFMAN,
2010: 30).
Estas alterações reorganizam (ou desorganizam) os laços, as sociabilidades, as
mensagens e a percepção do cotidiano, aqui entendido como um instrumento
conceitual para o entendimento da vida diária e enquanto uma forma de
experimentação do mundo (BRETAS, 2006). E se existe uma dimensão estética
envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las enquanto experiência?
Eckert e Rocha me ajudam, conceitualmente, com essas desorganizações:
“(…) compreender a cidade tem se revelado um ato de arrumar, encadear e
encaixar as diversas estruturas temporais e espaciais dos ritmos das
trajetórias e histórias de grupos humanos que nela habitaram e habitam,
num esforço de estabelecer um tempo humanitário que se solidarize com a
tarefa de seus habitantes de construir uma durée.” (ECKERT; ROCHA,
2005).
Nesse cotidiano que passa a se impor, aos poucos, o viver vai sendo marcado
pela tensão: do perder a casa, do não se adaptar aos novos locais, do que fazer com a
baixa indenização paga pelo Governo para as desapropriações, das consequências
imprevisíveis causadas pela instabilidade (velhos que ficaram doentes, um senhor que
morreu ao destelhar sua antiga casa). Onde toda uma perturbação da vida social me
faz ir além da compreensão das rotinizações, da normatividade e aproxima-se da
forma como a sociologia do cotidiano é pensado por Pais ao afirma que “(...) não é
apenas importante aquilo que fixa regularidades da vida social; é também importante
aquilo que a perturba” (2007, p. 84).
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Dessa forma, aquilo que está perturbando a experiência cotidiana não
necessariamente é oposto a ela, ou estranha, mas é necessário para a sua compreensão
e faz parte da sua dinâmica; e esse entendimento fortalece essa postura conceitual
específica sobre o cotidiano.
A água também é um fator nessas tensões, ao mesmo tempo em que assume
uma condição figurada determinada, sobretudo, pela sua capacidade de refletir, e de
refletir imagens profundas por meio da imaginação material (BACHELARD, 2002), e
se relaciona com essa investigação fotográfica à medida que estimula a imaginação do
fotógrafo a voltar-se para a busca de imagens não-reveladas, ainda latentes,
escondidas por trás da dura capa da realidade cotidiana.
Mas, se pudermos convencer nosso leitor de que existe, sob as imagens
superficiais da água, uma série de imagens cada vez mais profunda, cada
vez mais tenazes, ele não tardará a sentir, em suas próprias contemplações,
uma simpatia por esse aprofundamento; verá abrir-se, sob a imaginação
das formas, a imaginação das substâncias. (BACHELARD, 2002, p. 6).
O trabalho imagético e a discussão conceitual a partir e sobre os moradores
dos baixis, evidenciam sentidos e práticas que subjazem à ligação entre lugares,
personagens e contextos sociais. Configurando, assim, a possibilidade de traduzir o
espaço e as interações ali contidas em imagens fotográficas, sem abandonar o espírito
crítico ao questionar-me: que cenários são possíveis a partir dessas contradições?
As ameaças de alterações no espaço fazem parte das crônicas de vida dos
moradores dos baixis e guardam relações com a fotografia quando esta pode revelar
imagens de uma paisagem imanente, pronta a se modificar. Uma paisagem que está
operando como um vetor de encontro entre as individualidades e uma tessitura
coletiva.
O documental, o contemporâneo e os desafios atuais
Assim como a modernidade e suas visibilidades (ROUILLÉ, 2009), com toda
uma nova paisagem composta por construções e inovações nas cidades, ruas lotadas,
indústrias e edificações, proporcionou estímulos sensoriais e perceptivos, enfim,
interferências que adentraram a vida do indivíduo (SIMMEL, 1977), as
transformações hoje convidam o olhar fotográfico a flanar entre alguns de seus
contextos particulares, vide: entre as alterações no cotidiano; entre a água e os sonhos.
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Historicamente, linha de regra geral, é possível afirmar que o auge da
estética documental se deu no período em que se realizaram as maiores
alterações no meio ambiente social. Ou seja: a duração da estética
documental demarca a dinâmica das transformações que a burguesia
operava na natureza. (COSTA, 2004, p. 1).
O espaço em transformação, não raro, é um convite ao olhar fotográfico
despertando os mais diversos interesses a partir de mudanças na vida concreta. Alfred
Stieglitz e Paul Strand foram dois fotógrafos que tiveram trabalhos iniciados em meio
ao surgimento de outros cenários citadinos (FABRIS, 2011); o primeiro ao deixar de
lado uma estética pictorialista em função de uma maior aceitação das características
técnicas do meio; e Strand, que apostou na autonomia do dispositivo fotográfico, na:
(...) manipulação do mundo pelo aparelho fotográfico, sem que isso
signifique uma distorção da realidade (...) com o objetivo de propor um
realismo inerente ao aparato e sintonizado com os alcances da arte
moderna (...). (FABRIS, 2011, p. 57).
Esse momento da fotografia moderna – assim como do pictorialismo - foi
muito importante para a trajetória da fotografia por evidenciá-la como meio de
expressão plástica, e fazendo avança-la da posição, por vezes desprivilegiada,
ocupada por conta das tensões com o mundo da arte, principalmente aquelas que
versavam sobre a legitimidade de seu estatuto artístico, como discutido por Benjamim
(1994) e Schaeffer (1995).
Em meio a essa trajetória, a fotografia documental ganha destaque
reivindicando uma forma de expressão, uma estética e uma função de
problematizadora da realidade. Nessa esteira de pensamento fotógrafos como Walker
Evans e Dorothea Lange, entre outros, produziram dentro de um contexto que
Lombardi (2007) chamou de modelo paradigmático dos anos 1930.
O que com o tempo se mostrou problemático à medida que a fotografia não
correspondia a esse modelo e os fotógrafos buscavam outras discursividades na
fotografia documental. Como toda uma geração de fotógrafos do pós-guerra que por
meio de seus trabalhos e em meio a outra visibilidade do pensamento fotográfico
contestaram o limite desse modelo de fotografia dos primeiros documentaristas com
outras formas de fotografar o mundo, com outra ideia de realismo fotográfico. Robert
Frank (1997), por exemplo, fotografou cenas imprevisíveis, sem glamour, um
cotidiano supostamente desinteressado, deixando o apelo para desvendar novos
significados. Freud capta muito bem esse contexto ao afirmar: cada momento da
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História vê nascerem modos de expressão artística particulares, correspondendo ao
caráter político, às maneiras de pensar e aos gostos da época (1995, p. 19).
Em sintonia com as ideias aqui esboçadas, que tipos de percursos são
possíveis estabelecer na fotografia documental dentro de uma perspectiva
contemporânea? É notória, que a condição de investigadora da realidade já é atribuída
a fotografia há muito tempo. Mas de que maneira essas perspectivas problematizam as
tarefas documentais do tempo atual (ROUILLÉ, 2009, p. 163)?
Se ao longo de boa parte do século XX a fotografia foi tida como um
instrumento de representação da realidade, a intenção desse trabalho partiu de uma
concepção que se afasta de um essencialismo ontológico da fotografia (BAZIN, 1983)
e da ilusão de que uma equivalência sem resíduos une a imagem ao seu (famoso)
referente (ROUILLÉ, 2009, p. 162).
A crise do documento possibilitou que as narrativas fotográficas se
aproximassem dos processos que envolvem a construção do ato fotográfico, numa
estratégia de construção da imagem que valoriza a escrita autoral e outras formas de
observar:
[...] obriga inventar novas formas e novos procedimentos para acessar as
novas realidades: inventar a reportagem dialógica, para além de
reportagem canônica da fotografia-documento. Inventar formas e
procedimentos, uma espécie de nova língua fotográfica, para transformar
os regimes do visível e do invisível, para acessar o que está sob nossos
olhos, mas que não sabemos ver. Não fotografar “as” coisas ou “as”
pessoas, mas fotografar os estados de coisas e com as pessoas. (ROUILLÉ,
2009, p. 184)
Da guinada pictórica agenciada pela fotografia no século XIX ao ambiente
próprio das próteses visuais (GUIMARÃES, 1997), as formas de escrever apostam
em imagens que cada vez mais estão envoltas em momentos que se coadunam ao ato
de fotografar, que aparecem depois e antes da existência da imagem e a elaboram
imaginando outras relações entre o fazer e o ver, onde a produção das imagens parece
operar entre formas de visibilidade, modos de fazer e modos de pensar (RANCIÈRE,
2005), apontado lugares possíveis ocupados pela fotografia nesse cenário da atual
cultura visual.
Não obstante, a fotografia será entendida enquanto narrativa, onde toda e
qualquer forma de aproximação com o cotidiano estudado e com as tensões que
envolvem o espaço passará pelo olhar e pela subjetividade do fotógrafo, por uma
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maior separação dessas relações indiciais com as noções de objetividade e testemunho
e considerando todos os desafios impostos pela inclusão da fotografia no campo da
crítica de arte (KRAUSS, 2003).
Onde, por sua vez, estará contaminada pelo cotidiano explorado, assim como
um antropólogo que mergulha numa determinada realidade a fim de elaborar sua
etnografia (SILVA, 2006). Ela (a narrativa) mergulha a coisa na vida do narrador
para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador,
como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1994, p. 205).
Influenciado por D´agata (2013), Satana (2000) e Rio Branco (1998), que
mesmo partindo da realidade imediata, burlam a objetividade do meio com sua
percepção intimista, procurarei aquilo que esteja o mais próximo daquele cotidiano,
transformando-a de acordo com as percepções subjetivas, lidando com o estatuto
indicial da imagem fotográfica a partir de uma percepção imaginária, de pensar outras
potencialidades para a fotografia documental. Onde assumo na narrativa fotográfica e
no processo de elaboração das fotografias elementos de ficção, seja dirigindo a cena
ou intervindo no lugar com a ajuda do fotografado: “A imagem de qualquer objeto ou
situação documentada pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a ênfase
pretendida pelo fotógrafo em função da finalidade ou aplicação a que se destina”
(KOSSOY, 2009, p. 52).
Além de alterar o mapa dos itinerários, as mudanças no espaço mexem com a
percepção que se tem dele; outras visualidades vão se formando a partir de micro
acontecimentos, do trivial. Desde a época da vendedora de peixes de New Haven, de
David Octavius Hill citado por Benjamim (1994), as mudanças no campo da
fotografia ajudam a perceber o seu papel na presente pesquisa quando identificamos a
relevância de alguns temas, como o banal, o cotidiano. Segundo Rouillé, uma
relevância vista em outros momentos da história: a questão do trivial é um das mais
vivas na arte, na literatura, do pensamento do trivial do século XX (2009, p. 362).
Considerando que se foi a fotografia que me aproximou dessas pessoas é
possível pensar numa iconografia que nasça da interação, do convívio com realidades
e suas provocações e desafios inerentes. Uma iconografia surgida, gestada pelas
imprevistas tramas das relações humanas. Ou mesmo indo além, ao acreditar que,
apesar da mesma máquina que faz ver também multiplica a cegueira (GUIMARÃES,
1997, p.56), ela produz imagens podem ser lidas como mediações materiais e
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simbólicas do vivido (MARTINS, 2008, p. 51). Está no encontro a dimensão
performática da fotografia?
Trazendo o outro para a dimensão visual
A criação fotográfica que perpassa essa pesquisa será influenciada pelas
diversas inquietações aqui citadas, orientando, inclusive, seus desdobramentos nesse
desafio de falar-fotografar o outro e a dimensão de seus conflitos. A materialização
fotográfica sobre esse conjunto de experiências e práticas, pautará o seu processo
criativo em quatro momentos, visualizando quatro coleções fotográficas.
Instantes cotidianos: imagens que buscam formas de burlar a materialidade
imediata do cotidiano e fabular em torno das formas de interação entre os moradores a
partir dos percursos feitos por eles e os sugeridos por mim; paisagem humana: onde,
sobretudo, tentarei desterritorializar representações ao inventariar personagens por
meio do retrato encenado e não encenado; encantados: imagens metafóricas da
relação do homem com a água. E ruínas: fotografias dos rastros da destruição
deixados pelas casas abandonadas e os destroços das primeiras desapropriações. A
coleção ruínas será feita utilizando filme grande formato polaroid e as demais
fotografas em formato digital e médio formato analógico.
O artigo aqui exposto apresenta minha pesquisa de doutorado em
desenvolvimento, traz os vestígios de minhas investidas teóricas e trabalho
fotográfico. Nesse início de pesquisa percebo como as questões que giram em torno
do ensaio fotográfico2
são determinantes, coadunando uma exploração visual e
realização de uma atualização bibliográfica sobre fotografia documental na
contemporaneidade, cotidiano e espaço.
2 O meu ensaio fotográfico está sendo elaborado, encontrando-se hoje em fase inicial.
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Fotografia 1: “baixio”
Fonte: Rubens Venâncio
Fotografia 2: “baixio”
Fonte: Rubens Venâncio
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Fotografia 3: “baixio”
Fonte: Rubens Venâncio
Fotografia 4: “baixio”
Fonte: Rubens Venâncio
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Fotografia 5: “baixio”
Fonte: Rubens Venâncio
Fotografia 6: “baixio”
Fonte: “baixio”
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Com a narrativa fotográfica, a experiência desses moradores e sua relação com
a paisagem será captada de forma compartilhada, com uma metodologia que almeja a
construção do conhecimento pelo trabalho colaborativo e pela inserção de estratégias
dialógicas entre o fotógrafo-pesquisador e os interlocutores da pesquisa.
A imagem está sendo interpretada como um vetor para o estreitamento dos
laços e para a ampliação da empatia com os interlocutores no momento em que
compartilho com eles a produção das fotografias, bem como o acesso a elas, tendo em
vista que a restituição das fotografias é uma forma de estabelecer-construir relações
de empatia. Essa postura favorecerá uma significação e construção da imagem
fotográfica realizada concomitantemente à feitura do trabalho de campo, sinalizando
para uma postura que France (1998) nomeou de procedimento exploratório - em
detrimento do procedimento de exibição que atrela aos dispositivos visuais apenas
uma função de divulgação dos resultados da pesquisa.
O meu esforço em compreender o fenômeno artístico-social gestado a partir
das experiências contemporâneas de narrativa fotográfica e alterações no cotidiano,
leva-me a realizar caminhadas nos lugares ameaçados, a percorrer trilhas e atravessar
as comunidades de uma ponta à outra.
Estes deslocamentos me levam dos baixis para outros lugares em busca de
informações relevantes: para Fortaleza, percorrer acervos particulares e públicos em
busca de documentos e fotos históricas; a outras comunidades e cidades que também
serão afetadas pelo CAC para entrevistar a população e perceber outras lógicas.
Extrapolando, assim, o limite dos baixis num processo de “observação flutuante”,
onde o pesquisador tem sua atenção exigida a qualquer instante, estando sempre em
situação de pesquisa (GOLDMAN, 1995). Dessa forma, as particularidades desse
ambiente de pesquisa me levou a considera-lo como lugar de investigação múltiplo e
heterogêneo, me fazendo lançar mão da noção de “trabalho de campo
multilocalizado” como uma maneira de colocar-me em sintonia com as
particularidades desse processo investigativo (MARCUS, 2004).
Pensando um pouco na história do contato entre imagem e antropologia
diversas técnicas já foram utilizadas na prática de pesquisa, há muito tempo a câmera
é usada em diálogo com outros instrumentos de trabalho de campo, constituindo-se
em um momento da história desse contato já consolidado e estabelecido e como
referências para as gerações de estudiosos e profissionais da imagem. Mas questões
atuais são colocadas nessa discussão e lançam luz, não apenas sobre a
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contemporaneidades, mas sobre esse passado visual: suas práticas, usos,
procedimentos, suas articulações com outros áreas do conhecimento.
Atualmente, questões relacionadas a discussões de linguagem, edição,
acervos, formas e circulação, questões de expografia passaram a ocupar a agenda da
antropologia e ajudam a rever a história da antropologia e imagem e que a
preocupação com a dimensão estética não é um desvio das assertivas antropológicas,
mas uma forma de valorizar e entender o ato imagético.
Relembro um capítulo interessante dessa história no Brasil escrito-fotografado
por Luiz Robinson Achutti. Ao ter contato com Achutti em uma exposição organizada
por mim em Fortaleza3, tive a oportunidade de trazer a tona esse momento da
antropologia e imagem a partir de percepções atuais, tendo em vista que seus textos
foram escritos na década de 90.
Se nos valermos de qualquer linguagem-expressão visual é fundamental que
levemos em consideração a forma como estas se estruturam e organizam seus
repertórios, ou seja, sua linguagem e sua poética – compreensão muito bem
trabalhada e aceita pela área artística, tanto pelos realizadores como por aqueles que
se dedicam ao trabalho acadêmico. E Achutti, com sua trajetória no fotojornalismo,
trouxe sua poética e experiências para a academia no momento que passou a
desenvolver ensaios a partir da perspectiva da “fotoetnografia” e, dentro da dimensão
escrita, passa a criar capítulos cujo espaço é destinado, inteiramente, as imagens
fotográficas (ACHUTTI, 2004), editadas e diagramadas de forma a potencializar seus
enunciados, sendo, portanto, incorporadas como discurso autônomo em diálogo com
as elaborações conceituais.
Compreender que há uma inserção da imagem nas ciências sociais
potencializa-se quando ela não é sobreposta por “outras formas narrativas: ela deve
ser valorizada na sua especificidade”. Vide: na compreensão que ao trabalhar com o
ensaio as fotos ganham força no diálogo entre si; estudar situações de luz, trabalhar
composição e enquadramento; explorar o potencial subjetivo e sensível do gesto
fotográfico.
A maioria dos trabalhos ditos de antropologia visual que utilizam a
fotografia não explora de maneira ideal o potencial do que se poderia
chamar de uma poética fotográfica. Em geral, os trabalhos mas arrojados
são o resultado de concessões, conquistas resultantes de difíceis
3 A exposição "Achutti – 35 anos de fotografia", organizada paralelamente à exposição "Caminhos –
CE", foi produzida por mim enquanto diretor do Instituto da Fotografia, pela UFRGS e pelo Sobrado
Dr. José Lourenço.
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negociações com os detentores da tradição etnográfica que, via de regra,
preferem uma etnografia clássica. (ACHUTTI, 2004, p. 109).
Entendo o trabalho com as imagens nas “difíceis negociações” como uma
maneira de afirmar a necessidade de uma maior atenção aos protocolos de criação da
arte fotográfica, a necessidade de diálogos com ensaios fotográficos não etnográficos,
a importância de participar de leituras de portfólio, de ter uma vivência do mundo
fotográfico. E aí consideramos a fotografia como um processo e não como um
produto - um processo que pode singularizar o cotidiano. Quando Soulages coloca
que “O problema não é mais o do objeto transcendental a ser fotografado, mas do
objeto fotográfico a ser construído” (2010, p. 118), ela deixa margem para considerar
aquilo que o dispositivo pode possuir de mais singular – além de questões poéticas e
criação.
O meu ensaio fotográfico ainda está no início, sendo experimentado, buscando
sua plasticidade, onde, no momento, prefiro até chamar de trabalho fotográfico ao
invés de “ensaio”. Pelo fato das imagens ainda não dialogarem entre si e não
encadearem uma narrativa. São imagens isoladas que mais falam do meu olhar atual
sobre as problemáticas aqui tratadas, um olhar que vai mudar, transforma-se pela
busca fotográfica e pela experiência antropológica. Por hora são vestígios: “Mas
porque não também um vestígio do sujeito que fotografa ou do ato fotográfico, da
ação fotográfica ou do metafotográfico”? (SOULAGES, 2010, p.13).
Dessa forma, venho realizando esse trabalho em pontos simbolicamente
estratégicos das comunidades, cabendo-me o papel de desvendar os baixis e seus
personagens como fenômenos, delineados pela particularidade de um olhar próprio ao
campo de investigação do fotógrafo-pesquisador e a partir de uma estética do ponto
de vista, do particular (SOULAGE, 2010).
Em minha opinião, pensar a antropologia e os dispositivos visuais hoje é,
justamente, considerá-los em seu relacionamento epistemológico, teórico, de
compartilhamento de experiências com outras áreas do conhecimento e trazer essas
vivências para a produção visual. Como uma forma de expandir-se e particularizar-se,
também, pela interação com o outro e pelo entendimento da imagem como uma
plataforma, uma base, de observação dos fenômenos sociais, artísticos e humanos.
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