16
1 Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da fotografia e as apropriações do cotidiano 1 Rubens Venâncio (URCA | IFOTO / Ceará) Resumo: Meu interesse nesse artigo direciona-se às práticas cotidianas dos moradores dos baixios e a forma como estabelecem relações com o espaço; e para a construção de um ensaio fotográfico sobre a maneira como esses indivíduos elaboram suas experiências diárias: itinerários de lazer, trabalho e vivências. Considerando as tensões desse cotidiano e da imanência das desapropriações, apresenta-se o desafio de pensar a construção de uma experiência etnográfica-visual a partir da arquitetura possível entre as dimensões do ensaio fotográfico, da pesquisa conceitual e do trabalho de campo. Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. Um cotidiano não negociado Nos distritos rurais do Baixio do Múquem e no Baixio das Palmeiras moram centenas de famílias que vivem, em sua maioria, da agricultura familiar e partilham uma história e um intenso cotidiano de vivências e práticas. Ambos são distritos do município de Crato, região do Cariri Cearense, e se encontram geograficamente entre suas três principais cidades: Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. Atualmente as comunidades estão ameaçadas pelo projeto já iniciado do Cinturão das Águas do Ceará (CAC) que prevê a construção de um canal que trará água da transposição do rio São Francisco para o Ceará. O discurso da segurança híbrica para o estado Cearense não foi suficiente para convencer os moradores do abandono de suas residências, principalmente após casos de desrespeito. Trabalhadores e técnicos responsáveis pelas obras já começaram os estudos, as medições e as pesquisas sobre o solo invadindo propriedades e sem se preocupar em estabelecer qualquer diálogo com os habitantes. Que, por sua vez, não 1 Trabalho apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de agosto de 2014, Natal/RN.

Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

  • Upload
    lylien

  • View
    214

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

1

Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da fotografia e

as apropriações do cotidiano1

Rubens Venâncio (URCA | IFOTO / Ceará)

Resumo: Meu interesse nesse artigo direciona-se às práticas cotidianas dos moradores

dos baixios e a forma como estabelecem relações com o espaço; e para a construção

de um ensaio fotográfico sobre a maneira como esses indivíduos elaboram suas

experiências diárias: itinerários de lazer, trabalho e vivências. Considerando as

tensões desse cotidiano e da imanência das desapropriações, apresenta-se o desafio de

pensar a construção de uma experiência etnográfica-visual a partir da arquitetura

possível entre as dimensões do ensaio fotográfico, da pesquisa conceitual e do

trabalho de campo.

Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa.

Um cotidiano não negociado

Nos distritos rurais do Baixio do Múquem e no Baixio das Palmeiras moram

centenas de famílias que vivem, em sua maioria, da agricultura familiar e partilham

uma história e um intenso cotidiano de vivências e práticas. Ambos são distritos do

município de Crato, região do Cariri Cearense, e se encontram geograficamente entre

suas três principais cidades: Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. Atualmente as

comunidades estão ameaçadas pelo projeto – já iniciado – do Cinturão das Águas do

Ceará (CAC) que prevê a construção de um canal que trará água da transposição do

rio São Francisco para o Ceará.

O discurso da segurança híbrica para o estado Cearense não foi suficiente para

convencer os moradores do abandono de suas residências, principalmente após casos

de desrespeito. Trabalhadores e técnicos responsáveis pelas obras já começaram os

estudos, as medições e as pesquisas sobre o solo invadindo propriedades e sem se

preocupar em estabelecer qualquer diálogo com os habitantes. Que, por sua vez, não

1 Trabalho apresentado na 29a Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 03 e 06 de

agosto de 2014, Natal/RN.

Page 2: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

2

sabem por onde exatamente passará o canal, quantas famílias serão desabrigadas e

para onde vão.

Ao falar desses distritos rurais, falo não de comunidades isoladas, ao

contrário, eles estão em contato com centros políticos, comerciais, industriais e

universitários. Ainda, a proximidade da Chapada do Araripe agrega importância

ecológica pela quantidade de nascentes, riachos e resquícios de mata nativa

encontradas; bem como arqueológica, já que em algumas encostas dos riachos

encontram-se camadas fósseis comuns na Bacia Sedimentar do Araripe, gerando a

constante incidência de vestígios arqueológicos, como inscrições nas pedras,

machadinhas e cerâmicas.

A alteração brusca no cotidiano e na sociabilidade dos habitantes, a

possibilidade da perda de vínculo com o passado, suas memórias e identidades,

coaduna-se à ameaça à natureza e não clareza dos impactos socioambientais. Mesmo

não ocorrendo nesses distritos influências de algumas transformações, fruto das

dinâmicas de crescimentos das cidades, como, por exemplo, intervenções

urbanísticas, eles estão num contexto de modificações econômicas e sociais ocorridas

no Ceará e no Brasil, vinculadas diretamente ao seu planejamento e a sua política de

gerenciamento das águas – bem como as suas contradições no que toca às

desapropriações, inundações e a utilização dos seus benefícios pela indústria e pelo

agronegócio.

Diante disso, como os moradores se relacionam com o lugar? Em meios às

adversidades, como elaboram suas experiências no espaço e quais os impactos em

seus itinerários cotidianos? Como é construída a relação com água, que além de

sinônimo de abundância passou a ser uma ameaça? Quais papéis e desafios podem ser

assumidos pela fotografia documental na contemporaneidade, como narrativa

imagética? E quais os desdobramentos estéticos e sociais advindo na apropriação do

cotidiano pela fotografia?

Assim, como que dotando o flâneur de uma câmera, busco com este trabalho

uma estética-sensibilidade para captar a relação cotidiana e imaginária que os

moradores do Baixio do Múquem e do Baixio das Palmeiras estabelecem com o

ambiente por meio da intervenção fotográfica. Para tanto, direciono o fazer artístico

para a criação de um ensaio fotográfico que se debruçará sobre como os indivíduos

elaboram suas experiências diárias: itinerários de lazer, trabalho e vivências.

Page 3: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

3

Considerando as tensões desse cotidiano e o início das desapropriações,

apresenta-se o desafio de pensar a construção de uma experiência etnográfica-visual-

artística a partir da arquitetura possível entre as dimensões do ensaio fotográfico, da

pesquisa conceitual e do trabalho de campo. Onde se impõem três questionamentos

oriundos dessa articulação: Como os moradores produzem percurso? Como a

fotografia pode produzir percurso? E quais são meus percursos possíveis como

fotógrafo-pesquisador?

Com essas inquietações, penso que a forma como o indivíduo vivencia o

cotidiano com táticas, astúcias e práticas – suas artes de fazer (CERTEAU, 2007) –

elaboram reciprocidades com o espaço que entram em desalinho com uma paisagem

proposta, criando um descompasso entre os locais em mudança e os percursos

individuais, bem como uma situação de conflito a partir do estabelecimento de vários

territórios e realidades sociais múltiplas ocorrendo no mesmo lugar (GOFFMAN,

2010: 30).

Estas alterações reorganizam (ou desorganizam) os laços, as sociabilidades, as

mensagens e a percepção do cotidiano, aqui entendido como um instrumento

conceitual para o entendimento da vida diária e enquanto uma forma de

experimentação do mundo (BRETAS, 2006). E se existe uma dimensão estética

envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las enquanto experiência?

Eckert e Rocha me ajudam, conceitualmente, com essas desorganizações:

“(…) compreender a cidade tem se revelado um ato de arrumar, encadear e

encaixar as diversas estruturas temporais e espaciais dos ritmos das

trajetórias e histórias de grupos humanos que nela habitaram e habitam,

num esforço de estabelecer um tempo humanitário que se solidarize com a

tarefa de seus habitantes de construir uma durée.” (ECKERT; ROCHA,

2005).

Nesse cotidiano que passa a se impor, aos poucos, o viver vai sendo marcado

pela tensão: do perder a casa, do não se adaptar aos novos locais, do que fazer com a

baixa indenização paga pelo Governo para as desapropriações, das consequências

imprevisíveis causadas pela instabilidade (velhos que ficaram doentes, um senhor que

morreu ao destelhar sua antiga casa). Onde toda uma perturbação da vida social me

faz ir além da compreensão das rotinizações, da normatividade e aproxima-se da

forma como a sociologia do cotidiano é pensado por Pais ao afirma que “(...) não é

apenas importante aquilo que fixa regularidades da vida social; é também importante

aquilo que a perturba” (2007, p. 84).

Page 4: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

4

Dessa forma, aquilo que está perturbando a experiência cotidiana não

necessariamente é oposto a ela, ou estranha, mas é necessário para a sua compreensão

e faz parte da sua dinâmica; e esse entendimento fortalece essa postura conceitual

específica sobre o cotidiano.

A água também é um fator nessas tensões, ao mesmo tempo em que assume

uma condição figurada determinada, sobretudo, pela sua capacidade de refletir, e de

refletir imagens profundas por meio da imaginação material (BACHELARD, 2002), e

se relaciona com essa investigação fotográfica à medida que estimula a imaginação do

fotógrafo a voltar-se para a busca de imagens não-reveladas, ainda latentes,

escondidas por trás da dura capa da realidade cotidiana.

Mas, se pudermos convencer nosso leitor de que existe, sob as imagens

superficiais da água, uma série de imagens cada vez mais profunda, cada

vez mais tenazes, ele não tardará a sentir, em suas próprias contemplações,

uma simpatia por esse aprofundamento; verá abrir-se, sob a imaginação

das formas, a imaginação das substâncias. (BACHELARD, 2002, p. 6).

O trabalho imagético e a discussão conceitual a partir e sobre os moradores

dos baixis, evidenciam sentidos e práticas que subjazem à ligação entre lugares,

personagens e contextos sociais. Configurando, assim, a possibilidade de traduzir o

espaço e as interações ali contidas em imagens fotográficas, sem abandonar o espírito

crítico ao questionar-me: que cenários são possíveis a partir dessas contradições?

As ameaças de alterações no espaço fazem parte das crônicas de vida dos

moradores dos baixis e guardam relações com a fotografia quando esta pode revelar

imagens de uma paisagem imanente, pronta a se modificar. Uma paisagem que está

operando como um vetor de encontro entre as individualidades e uma tessitura

coletiva.

O documental, o contemporâneo e os desafios atuais

Assim como a modernidade e suas visibilidades (ROUILLÉ, 2009), com toda

uma nova paisagem composta por construções e inovações nas cidades, ruas lotadas,

indústrias e edificações, proporcionou estímulos sensoriais e perceptivos, enfim,

interferências que adentraram a vida do indivíduo (SIMMEL, 1977), as

transformações hoje convidam o olhar fotográfico a flanar entre alguns de seus

contextos particulares, vide: entre as alterações no cotidiano; entre a água e os sonhos.

Page 5: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

5

Historicamente, linha de regra geral, é possível afirmar que o auge da

estética documental se deu no período em que se realizaram as maiores

alterações no meio ambiente social. Ou seja: a duração da estética

documental demarca a dinâmica das transformações que a burguesia

operava na natureza. (COSTA, 2004, p. 1).

O espaço em transformação, não raro, é um convite ao olhar fotográfico

despertando os mais diversos interesses a partir de mudanças na vida concreta. Alfred

Stieglitz e Paul Strand foram dois fotógrafos que tiveram trabalhos iniciados em meio

ao surgimento de outros cenários citadinos (FABRIS, 2011); o primeiro ao deixar de

lado uma estética pictorialista em função de uma maior aceitação das características

técnicas do meio; e Strand, que apostou na autonomia do dispositivo fotográfico, na:

(...) manipulação do mundo pelo aparelho fotográfico, sem que isso

signifique uma distorção da realidade (...) com o objetivo de propor um

realismo inerente ao aparato e sintonizado com os alcances da arte

moderna (...). (FABRIS, 2011, p. 57).

Esse momento da fotografia moderna – assim como do pictorialismo - foi

muito importante para a trajetória da fotografia por evidenciá-la como meio de

expressão plástica, e fazendo avança-la da posição, por vezes desprivilegiada,

ocupada por conta das tensões com o mundo da arte, principalmente aquelas que

versavam sobre a legitimidade de seu estatuto artístico, como discutido por Benjamim

(1994) e Schaeffer (1995).

Em meio a essa trajetória, a fotografia documental ganha destaque

reivindicando uma forma de expressão, uma estética e uma função de

problematizadora da realidade. Nessa esteira de pensamento fotógrafos como Walker

Evans e Dorothea Lange, entre outros, produziram dentro de um contexto que

Lombardi (2007) chamou de modelo paradigmático dos anos 1930.

O que com o tempo se mostrou problemático à medida que a fotografia não

correspondia a esse modelo e os fotógrafos buscavam outras discursividades na

fotografia documental. Como toda uma geração de fotógrafos do pós-guerra que por

meio de seus trabalhos e em meio a outra visibilidade do pensamento fotográfico

contestaram o limite desse modelo de fotografia dos primeiros documentaristas com

outras formas de fotografar o mundo, com outra ideia de realismo fotográfico. Robert

Frank (1997), por exemplo, fotografou cenas imprevisíveis, sem glamour, um

cotidiano supostamente desinteressado, deixando o apelo para desvendar novos

significados. Freud capta muito bem esse contexto ao afirmar: cada momento da

Page 6: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

6

História vê nascerem modos de expressão artística particulares, correspondendo ao

caráter político, às maneiras de pensar e aos gostos da época (1995, p. 19).

Em sintonia com as ideias aqui esboçadas, que tipos de percursos são

possíveis estabelecer na fotografia documental dentro de uma perspectiva

contemporânea? É notória, que a condição de investigadora da realidade já é atribuída

a fotografia há muito tempo. Mas de que maneira essas perspectivas problematizam as

tarefas documentais do tempo atual (ROUILLÉ, 2009, p. 163)?

Se ao longo de boa parte do século XX a fotografia foi tida como um

instrumento de representação da realidade, a intenção desse trabalho partiu de uma

concepção que se afasta de um essencialismo ontológico da fotografia (BAZIN, 1983)

e da ilusão de que uma equivalência sem resíduos une a imagem ao seu (famoso)

referente (ROUILLÉ, 2009, p. 162).

A crise do documento possibilitou que as narrativas fotográficas se

aproximassem dos processos que envolvem a construção do ato fotográfico, numa

estratégia de construção da imagem que valoriza a escrita autoral e outras formas de

observar:

[...] obriga inventar novas formas e novos procedimentos para acessar as

novas realidades: inventar a reportagem dialógica, para além de

reportagem canônica da fotografia-documento. Inventar formas e

procedimentos, uma espécie de nova língua fotográfica, para transformar

os regimes do visível e do invisível, para acessar o que está sob nossos

olhos, mas que não sabemos ver. Não fotografar “as” coisas ou “as”

pessoas, mas fotografar os estados de coisas e com as pessoas. (ROUILLÉ,

2009, p. 184)

Da guinada pictórica agenciada pela fotografia no século XIX ao ambiente

próprio das próteses visuais (GUIMARÃES, 1997), as formas de escrever apostam

em imagens que cada vez mais estão envoltas em momentos que se coadunam ao ato

de fotografar, que aparecem depois e antes da existência da imagem e a elaboram

imaginando outras relações entre o fazer e o ver, onde a produção das imagens parece

operar entre formas de visibilidade, modos de fazer e modos de pensar (RANCIÈRE,

2005), apontado lugares possíveis ocupados pela fotografia nesse cenário da atual

cultura visual.

Não obstante, a fotografia será entendida enquanto narrativa, onde toda e

qualquer forma de aproximação com o cotidiano estudado e com as tensões que

envolvem o espaço passará pelo olhar e pela subjetividade do fotógrafo, por uma

Page 7: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

7

maior separação dessas relações indiciais com as noções de objetividade e testemunho

e considerando todos os desafios impostos pela inclusão da fotografia no campo da

crítica de arte (KRAUSS, 2003).

Onde, por sua vez, estará contaminada pelo cotidiano explorado, assim como

um antropólogo que mergulha numa determinada realidade a fim de elaborar sua

etnografia (SILVA, 2006). Ela (a narrativa) mergulha a coisa na vida do narrador

para em seguida retirá-la dele. Assim, imprime-se na narrativa a marca do narrador,

como a mão do oleiro na argila do vaso (BENJAMIN, 1994, p. 205).

Influenciado por D´agata (2013), Satana (2000) e Rio Branco (1998), que

mesmo partindo da realidade imediata, burlam a objetividade do meio com sua

percepção intimista, procurarei aquilo que esteja o mais próximo daquele cotidiano,

transformando-a de acordo com as percepções subjetivas, lidando com o estatuto

indicial da imagem fotográfica a partir de uma percepção imaginária, de pensar outras

potencialidades para a fotografia documental. Onde assumo na narrativa fotográfica e

no processo de elaboração das fotografias elementos de ficção, seja dirigindo a cena

ou intervindo no lugar com a ajuda do fotografado: “A imagem de qualquer objeto ou

situação documentada pode ser dramatizada ou estetizada, de acordo com a ênfase

pretendida pelo fotógrafo em função da finalidade ou aplicação a que se destina”

(KOSSOY, 2009, p. 52).

Além de alterar o mapa dos itinerários, as mudanças no espaço mexem com a

percepção que se tem dele; outras visualidades vão se formando a partir de micro

acontecimentos, do trivial. Desde a época da vendedora de peixes de New Haven, de

David Octavius Hill citado por Benjamim (1994), as mudanças no campo da

fotografia ajudam a perceber o seu papel na presente pesquisa quando identificamos a

relevância de alguns temas, como o banal, o cotidiano. Segundo Rouillé, uma

relevância vista em outros momentos da história: a questão do trivial é um das mais

vivas na arte, na literatura, do pensamento do trivial do século XX (2009, p. 362).

Considerando que se foi a fotografia que me aproximou dessas pessoas é

possível pensar numa iconografia que nasça da interação, do convívio com realidades

e suas provocações e desafios inerentes. Uma iconografia surgida, gestada pelas

imprevistas tramas das relações humanas. Ou mesmo indo além, ao acreditar que,

apesar da mesma máquina que faz ver também multiplica a cegueira (GUIMARÃES,

1997, p.56), ela produz imagens podem ser lidas como mediações materiais e

Page 8: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

8

simbólicas do vivido (MARTINS, 2008, p. 51). Está no encontro a dimensão

performática da fotografia?

Trazendo o outro para a dimensão visual

A criação fotográfica que perpassa essa pesquisa será influenciada pelas

diversas inquietações aqui citadas, orientando, inclusive, seus desdobramentos nesse

desafio de falar-fotografar o outro e a dimensão de seus conflitos. A materialização

fotográfica sobre esse conjunto de experiências e práticas, pautará o seu processo

criativo em quatro momentos, visualizando quatro coleções fotográficas.

Instantes cotidianos: imagens que buscam formas de burlar a materialidade

imediata do cotidiano e fabular em torno das formas de interação entre os moradores a

partir dos percursos feitos por eles e os sugeridos por mim; paisagem humana: onde,

sobretudo, tentarei desterritorializar representações ao inventariar personagens por

meio do retrato encenado e não encenado; encantados: imagens metafóricas da

relação do homem com a água. E ruínas: fotografias dos rastros da destruição

deixados pelas casas abandonadas e os destroços das primeiras desapropriações. A

coleção ruínas será feita utilizando filme grande formato polaroid e as demais

fotografas em formato digital e médio formato analógico.

O artigo aqui exposto apresenta minha pesquisa de doutorado em

desenvolvimento, traz os vestígios de minhas investidas teóricas e trabalho

fotográfico. Nesse início de pesquisa percebo como as questões que giram em torno

do ensaio fotográfico2

são determinantes, coadunando uma exploração visual e

realização de uma atualização bibliográfica sobre fotografia documental na

contemporaneidade, cotidiano e espaço.

2 O meu ensaio fotográfico está sendo elaborado, encontrando-se hoje em fase inicial.

Page 9: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

9

Fotografia 1: “baixio”

Fonte: Rubens Venâncio

Fotografia 2: “baixio”

Fonte: Rubens Venâncio

Page 10: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

10

Fotografia 3: “baixio”

Fonte: Rubens Venâncio

Fotografia 4: “baixio”

Fonte: Rubens Venâncio

Page 11: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

11

Fotografia 5: “baixio”

Fonte: Rubens Venâncio

Fotografia 6: “baixio”

Fonte: “baixio”

Page 12: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

12

Com a narrativa fotográfica, a experiência desses moradores e sua relação com

a paisagem será captada de forma compartilhada, com uma metodologia que almeja a

construção do conhecimento pelo trabalho colaborativo e pela inserção de estratégias

dialógicas entre o fotógrafo-pesquisador e os interlocutores da pesquisa.

A imagem está sendo interpretada como um vetor para o estreitamento dos

laços e para a ampliação da empatia com os interlocutores no momento em que

compartilho com eles a produção das fotografias, bem como o acesso a elas, tendo em

vista que a restituição das fotografias é uma forma de estabelecer-construir relações

de empatia. Essa postura favorecerá uma significação e construção da imagem

fotográfica realizada concomitantemente à feitura do trabalho de campo, sinalizando

para uma postura que France (1998) nomeou de procedimento exploratório - em

detrimento do procedimento de exibição que atrela aos dispositivos visuais apenas

uma função de divulgação dos resultados da pesquisa.

O meu esforço em compreender o fenômeno artístico-social gestado a partir

das experiências contemporâneas de narrativa fotográfica e alterações no cotidiano,

leva-me a realizar caminhadas nos lugares ameaçados, a percorrer trilhas e atravessar

as comunidades de uma ponta à outra.

Estes deslocamentos me levam dos baixis para outros lugares em busca de

informações relevantes: para Fortaleza, percorrer acervos particulares e públicos em

busca de documentos e fotos históricas; a outras comunidades e cidades que também

serão afetadas pelo CAC para entrevistar a população e perceber outras lógicas.

Extrapolando, assim, o limite dos baixis num processo de “observação flutuante”,

onde o pesquisador tem sua atenção exigida a qualquer instante, estando sempre em

situação de pesquisa (GOLDMAN, 1995). Dessa forma, as particularidades desse

ambiente de pesquisa me levou a considera-lo como lugar de investigação múltiplo e

heterogêneo, me fazendo lançar mão da noção de “trabalho de campo

multilocalizado” como uma maneira de colocar-me em sintonia com as

particularidades desse processo investigativo (MARCUS, 2004).

Pensando um pouco na história do contato entre imagem e antropologia

diversas técnicas já foram utilizadas na prática de pesquisa, há muito tempo a câmera

é usada em diálogo com outros instrumentos de trabalho de campo, constituindo-se

em um momento da história desse contato já consolidado e estabelecido e como

referências para as gerações de estudiosos e profissionais da imagem. Mas questões

atuais são colocadas nessa discussão e lançam luz, não apenas sobre a

Page 13: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

13

contemporaneidades, mas sobre esse passado visual: suas práticas, usos,

procedimentos, suas articulações com outros áreas do conhecimento.

Atualmente, questões relacionadas a discussões de linguagem, edição,

acervos, formas e circulação, questões de expografia passaram a ocupar a agenda da

antropologia e ajudam a rever a história da antropologia e imagem e que a

preocupação com a dimensão estética não é um desvio das assertivas antropológicas,

mas uma forma de valorizar e entender o ato imagético.

Relembro um capítulo interessante dessa história no Brasil escrito-fotografado

por Luiz Robinson Achutti. Ao ter contato com Achutti em uma exposição organizada

por mim em Fortaleza3, tive a oportunidade de trazer a tona esse momento da

antropologia e imagem a partir de percepções atuais, tendo em vista que seus textos

foram escritos na década de 90.

Se nos valermos de qualquer linguagem-expressão visual é fundamental que

levemos em consideração a forma como estas se estruturam e organizam seus

repertórios, ou seja, sua linguagem e sua poética – compreensão muito bem

trabalhada e aceita pela área artística, tanto pelos realizadores como por aqueles que

se dedicam ao trabalho acadêmico. E Achutti, com sua trajetória no fotojornalismo,

trouxe sua poética e experiências para a academia no momento que passou a

desenvolver ensaios a partir da perspectiva da “fotoetnografia” e, dentro da dimensão

escrita, passa a criar capítulos cujo espaço é destinado, inteiramente, as imagens

fotográficas (ACHUTTI, 2004), editadas e diagramadas de forma a potencializar seus

enunciados, sendo, portanto, incorporadas como discurso autônomo em diálogo com

as elaborações conceituais.

Compreender que há uma inserção da imagem nas ciências sociais

potencializa-se quando ela não é sobreposta por “outras formas narrativas: ela deve

ser valorizada na sua especificidade”. Vide: na compreensão que ao trabalhar com o

ensaio as fotos ganham força no diálogo entre si; estudar situações de luz, trabalhar

composição e enquadramento; explorar o potencial subjetivo e sensível do gesto

fotográfico.

A maioria dos trabalhos ditos de antropologia visual que utilizam a

fotografia não explora de maneira ideal o potencial do que se poderia

chamar de uma poética fotográfica. Em geral, os trabalhos mas arrojados

são o resultado de concessões, conquistas resultantes de difíceis

3 A exposição "Achutti – 35 anos de fotografia", organizada paralelamente à exposição "Caminhos –

CE", foi produzida por mim enquanto diretor do Instituto da Fotografia, pela UFRGS e pelo Sobrado

Dr. José Lourenço.

Page 14: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

14

negociações com os detentores da tradição etnográfica que, via de regra,

preferem uma etnografia clássica. (ACHUTTI, 2004, p. 109).

Entendo o trabalho com as imagens nas “difíceis negociações” como uma

maneira de afirmar a necessidade de uma maior atenção aos protocolos de criação da

arte fotográfica, a necessidade de diálogos com ensaios fotográficos não etnográficos,

a importância de participar de leituras de portfólio, de ter uma vivência do mundo

fotográfico. E aí consideramos a fotografia como um processo e não como um

produto - um processo que pode singularizar o cotidiano. Quando Soulages coloca

que “O problema não é mais o do objeto transcendental a ser fotografado, mas do

objeto fotográfico a ser construído” (2010, p. 118), ela deixa margem para considerar

aquilo que o dispositivo pode possuir de mais singular – além de questões poéticas e

criação.

O meu ensaio fotográfico ainda está no início, sendo experimentado, buscando

sua plasticidade, onde, no momento, prefiro até chamar de trabalho fotográfico ao

invés de “ensaio”. Pelo fato das imagens ainda não dialogarem entre si e não

encadearem uma narrativa. São imagens isoladas que mais falam do meu olhar atual

sobre as problemáticas aqui tratadas, um olhar que vai mudar, transforma-se pela

busca fotográfica e pela experiência antropológica. Por hora são vestígios: “Mas

porque não também um vestígio do sujeito que fotografa ou do ato fotográfico, da

ação fotográfica ou do metafotográfico”? (SOULAGES, 2010, p.13).

Dessa forma, venho realizando esse trabalho em pontos simbolicamente

estratégicos das comunidades, cabendo-me o papel de desvendar os baixis e seus

personagens como fenômenos, delineados pela particularidade de um olhar próprio ao

campo de investigação do fotógrafo-pesquisador e a partir de uma estética do ponto

de vista, do particular (SOULAGE, 2010).

Em minha opinião, pensar a antropologia e os dispositivos visuais hoje é,

justamente, considerá-los em seu relacionamento epistemológico, teórico, de

compartilhamento de experiências com outras áreas do conhecimento e trazer essas

vivências para a produção visual. Como uma forma de expandir-se e particularizar-se,

também, pela interação com o outro e pelo entendimento da imagem como uma

plataforma, uma base, de observação dos fenômenos sociais, artísticos e humanos.

Page 15: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

15

REFERÊNCIAS

ACHUTTI, Luiz Robinson Eduardo. Fotoetnografia da Biblioteca Jardim. Porto

Alegre: Editora da UFRGS/Tomo Editorial, 2004.

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria.

Tradução de Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Martins Fontes, 2002.

BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: A experiência do cinema

(Orgs). Ismail Xavier.

BENJAMIM, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e técnica, arte e

política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.

BRETAS, Beatriz. Interações cotidianas. In: FRANÇA, Vera e GUIMARÃES, César

(Orgs.). Na mídia, na rua: narrativas do cotidiano. Belo Horizonte: Autêntica, 2006

CASTILHO, Jõao; DAVID, Pedro; MOTTA, Pedro. Paisagem submersa. São Paulo:

Cosac Naify, 2008. Rio de Janeiro: Graal, Embrafilme, 1983.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ:

Vozes, 2007.

COSTA, Helouise; SILVA, Renato Rodrigues da. A fotografia moderna no Brasil.

São Paulo: Cosac Naify, 2004.

D’AGATA, Antoine. Anticorps: Antoine D'Agata. França: Xavier Barral, 2013.

ECKERT, Cornelia; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. O tempo e a cidade. Porto

Alegre: Editora UFRGS, 2005.

FABRIS, Annateresa. O desafio do olhar: fotografia e artes visuais no período das

vanguardas históricas. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

FRANCE, Claudine de. Cinema e antropologia. São Paulo: Editora da Unicamp,

1998.

FRANK, Robert. Les Americains. Photographies de Robert Frank. 7.ed. Genebra:

Delpire Editeur, 1997.

FREUND, Gisèle. Fotografia e Sociedade. Lisboa: Vega, 1995.

GOFFMAN, Erving. Comportamento em lugares públicos: notas sobre a organização

social dos ajuntamentos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.

GOLDMAN, Márcio. Antropologia contemporânea, sociedades complexas e outras

questões. Anuário antropológico/93. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995.

Page 16: Entre o Múquem e o Baixio das Palmeiras: a utilização da ... · Palavras-chave: fotografia, cotidiano e narrativa. ... envolta na vida cotidiana e na paisagem como percebê-las

16

GUIMARÃES, César. Imagens da memória: entre o legível e o visível. Belo

Horizonte: Ed. UFMG, 1997.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê

Editorial, 2009.

KOSSOY, Boris. Fotografia e história. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.

KRAUSS, Rosalind. O Fotográfico. Barcelona: Gustavo Gilli. 2003

LOMBARDI, Kátia Hallak. Documentário imaginário: novas potencialidades na

fotografia documental contemporânea. Minas Gerais, UFMG, 2007. Dissertação

(Mestrado em Comunicação). Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social

da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas

Gerais, 2007.

MARCUS, George E. O intercâmbio entre arte e antropologia: como a pesquisa de

campo em artes cênicas pode informar a reinvenção da pesquisa de campo em

antropologia. Rev. Antropol. [online]. 2004, vol.47, n.1, pp. 133-158.

MARTINS, José de Souza. Sociologia e fotografia da imagem. São Paulo: Contexto,

2008.

PAIS, José Machado. Sociologia da Vida Quotidiana: Teoria, Métodos e Estudos de

Caso. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2007.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo,

2005.

RIO BRANCO, Miguel. Miguel Rio Branco. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

ROUILLÉ, André. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo:

Editora Senac, 2009.

SANTANA, Tiago. Benditos. Fortaleza: Tempo d´Imagem, 2000.

SCHAEFFER, Jean-Marie. Sobre a arte fotográfica. Revista Imagens. Campinas,

1995, n.6.

SILVA, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. São Paulo: Edusp, 2006.

SIMMEL, George. A metrópole e a vida mental. In: GUILHERME, Otávio (Orgs). O

fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

SOULAGES, François. Estética da Fotografia: perda e permanência. São Paulo:

Editora SENAC, 2010.