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Vidas de literacia: Práticas de leitura e escrita de adultos “iletrados” em processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (RVCC) Ana Silva & Maria de Lourdes Dionísio Centro de Investigação em Educação (CIEd) Fundação para a Ciência e a Tecnologia – SFRH/BD/93506/2013 Universidade do Minho PORTUGAL

Entre práticas vernáculas e dominantes: conflitos e ... Forum... · Conceptualização sobre si enquanto adulta iletrada – inscrição voluntária no processo de RVCC , tendo

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Vidas de literacia: Práticas de leitura e escrita de

adultos “iletrados” em processos de

Reconhecimento, Validação e Certificação de

Competências (RVCC)

Ana Silva & Maria de Lourdes Dionísio

Centro de Investigação em Educação (CIEd)Fundação para a Ciência e a Tecnologia – SFRH/BD/93506/2013

Universidade do MinhoPORTUGAL

Enquadramento teórico e objetivos do estudo…

Literacia(s)

Adultos “iletrados”

Processo de RVCC

Práticas sociais de leitura e escrita, histórica e culturalmente

situadas, e observáveis em eventos mediados por textos:

Perspetiva social de literacia

Perspetiva instrumental de literacia (Street, 1984; Barton & Hamilton, 1998)

…Competências que se adquirem de uma vez por todas, sendo

independentes dos contextos onde são produzidas e usadas.

Até que ponto são (e como são) desafiadas e

transformadas as práticas de literacia vernáculas de

adultos em processos de

RVCC de nível Básicoantes depois

Procura-se…

Compreender as literacias dos sujeitos num quadro de pressupostos

em que avultam: i) a sua multiplicidade, dada a associação intrínseca

a diversos domínios sociais; ii) a sua natureza motivada, porque meio

de outras práticas culturais mais vastas; iii) a sua variabilidade e

transformação, por ação da participação no processo de RVCC.

durante

Procedimentos metodológicos…

Metodologia mista(‘mixed methodology’, Tashakkori & Teddlie, 2010)

… “the type of research in which a researcher (...) combines elements of

qualitative and quantitative research approaches (e.g., use of qualitative

and quantitative viewpoints, data collection, analysis, inference techniques)

for the purpose of breadth of understanding or corroboration” (Johnson, 2007,

p. 123).

Métodos de investigação

Survey (descritivo)

Estudo de caso

Questionário Entrevistas

semiestruturadas

Obs. participante

Recolha de

documentos[Abordagem etnográfica]

Biografias de literacia

No início do processo de RVCC(ano de 2011-2012)

Durante… Após o processo de RVCC…(ano de 2012-2013)

O quê, para quê e em que

contextos os adultos leem e

escrevem; atitudes, valores

e crenças acerca da

literacia

Questionário + Entrevista semiestruturada

30 adultos

(aleatoriamente

selecionados)

Práticas textuais

suscitadas; primeiras

mudanças nas identidades

letradas dos adultos

Recolha de

documentos

Observação

participante

6 adultos

(criterialmente

selecionados)

Modos de compreensão e

produção de textos;

mudanças nas biografias de

literacia

Entrevistas

semiestruturadas

… de 6 Centros

de Novas

Oportunidades,

Braga

amostra

Os sujeitos do estudo…

Nome Idade Sexo Última profissão Escolaridade

Jorge 58 masculinoOperário

(construção civil)5.º ano

Albano 38 masculinoempresário

(construção civil)6.º ano

Marta 49 femininooperária têxtil

(costureira)4.º ano

Rosa 62 femininoempresária

(indústria têxtil) 4.º ano

Margarida 44 femininooperária têxtil

(costureira)5.º ano

Patrícia 37 femininooperária (fabrico

de pastelaria)6.º ano

Identidades letradas no início do processo

de RVCC

A história de literacia de Jorge…

Infância e juventude vivida em Angola.

Abandonou a escola por opção própria:

«Naquela altura, era quase o máximo. Só aqueles que iam mesmo para

doutores e coisas assim é que tiravam depois o 7.º e não sei quê. (…)

Aquilo dava acesso a todo o tipo de empregos».

Experiência profissional: empregado de serviços externos; gestor financeiro;

agente comercial; encarregado de montagem de parques infantis.

Práticas de leitura e escrita:

Leitura e preenchimento de documentos (talões de depósitos bancários, pedidos

de registo automóvel, …); receção e distribuição de correio; produção de

relatórios de contas e de clientes; processamento de taxas de juro; leitura de

livros associados ao Direito do Trabalho; redação de cartas formais. = Contexto

profissional

Pagamento de contas; comunicação de leituras de contadores; produção de listas

de compras; verificação de promoções em folhetos de supermercado. = Contexto

doméstico e familiar

Leitura de livros de História e de Arqueologia; leitura de obras literárias

dos mais reconhecidos escritores do panorama nacional e internacional: Eça de

Queirós, Alexandre Herculano, Ernest Hemingway, Jack Kerouac. = Contexto

privado

Práticas de literacia múltiplas e variadas, com lugar em diferentes esferas sociais.

Envolvimento expressivo em práticas de leitura e escrita dominantes, associadas a

instituições formais como a escola.

Representação de si como sujeito altamente letrado – passagem involuntária pelo

processo de RVCC tida como inútil e desprestigiante.

Considerações face ao exposto…

«Mas isso não vem modificar nada, só me vai fazer perder tempo (…). Repare

que eu leio muito bem! Não encontro ninguém que leia tão bem como eu. (…) E

escrevo muito bem! (…) Trabalhei na área financeira (…) nos escritórios mais

modernos (…). Que não havia ninguém que entrasse para lá sem o décimo

segundo ano e eu entrei! (…) Nunca ninguém duvidou das minhas habilidades.

Só a única dúvida foi agora aqui. Esses aqui é que duvidaram».

A história de literacia de Marta…

Cresceu no seio de uma família numerosa e com parcos recursos financeiros.

Abandonou a escola depois de completar o ensino primário:

«Ela [a professora] queria que eu fosse estudar e eu não, porque eu tinha que

trabalhar para ajudar a minha mãe».

Experiência profissional: empregada doméstica; oleira; costureira na

indústria têxtil.

Práticas de leitura e escrita:

Leitura de histórias de embalar e de textos de manuais escolares; tomada de

notas relativas a volumes de produção. = Contexto profissional

Leitura de revistas, folhetos de publicidade, legendas de televisão. = Contexto

doméstico e familiar

Leitura da Bíblia; redação de notas sobre textos religiosos, de desabafos num

diário e de cartas a familiares e amigos. = Contexto privado

Práticas de literacia variadas, com lugar em diferentes esferas sociais.

Predominância de práticas de literacia vernáculas, raramente identificadas e

reconhecidas como práticas de leitura e de escrita válidas:

«Presentemente, até só estou a estudar a Bíblia. Não, não estou a ler mais nada.

(…) Não vou dizer que leio, porque não leio. Não me desperta assim. (…) É só

baseado nisso, porque livros de romances e assim não».

Conceptualização sobre si enquanto adulta iletrada – inscrição voluntária no

processo de RVCC, tendo em vista a obtenção de um certificado de habilitações

mais elevado, o desenvolvimento de conhecimentos e de competências:

«Vim aqui para as Novas Oportunidades (…) para fazer o 6.º ano e, se puder, o

9.º, para conseguir ao menos ter uma coisinha melhor. (…) Eu queria saber mais.

Queria, por exemplo, saber trabalhar no computador, saber escrever e-mails,

essas coisas todas».

Considerações face ao exposto…

E depois do processo de RVCC?

Mudanças nas identidades letradas

No caso de Jorge…

O seu quotidiano não ficou a pautar-se por formas de ler e de escrever

muito diferentes das que tinha no início do processo de RVCC. Começou, no

entanto, a usar com mais eficácia o computador e a fazer uso da internet

para pesquisas relacionadas com História e Arqueologia:

«Uso [o computador] para fazer assim coisas. Faço, olhe, uso agora o Skype para

falar com a minha filha, que foi para Londres. (…) E uso isso e a internet para

fazer, para fazer buscas e não sei quê».

Apesar disso, desconsiderou o valor das suas novas e reconfiguradas

práticas de literacia, avaliando a sua passagem pelo processo de RVCC como

uma perda de tempo e uma experiência a não repetir:

«Nah, eu fui obrigado! (…) Se não, não ia. Nem pensar nisso! Nada! (…) Eu é uma

coisa que eu gosto de aproveitar bem é o meu tempo. E aquilo foi tempo

perdido! (…) Aquilo não serviu de nada! Não teve qualquer influência em mim

aquilo que lá andei a fazer. A mínima influência!».

No caso de Marta…

Ao seu envolvimento no contexto formal de aprendizagem, seguiu-se um

envolvimento mais assíduo e seguro em eventos de literacia formais,

moldados por práticas textuais dominantes – integrou-se num grupo de

Testemunhas de Jeová, passou a comunicar autonomamente com repartições

públicas e a interessar-se pela leitura de livros.

A passagem pelo processo de RVCC equipou-a, dessa forma, com a

confiança que precisava para participar mais ativamente em domínios de

prática que lhe eram estranhos ou que lhe despoletavam algum tipo de receio:

«Quando eu vim para aqui, naturalmente que ainda vinha muito fechada a

muitas coisas (…). E, naturalmente, quando eu fui embora, já fui muito mais

lúcida (…). Senti que realmente eu tinha capacidades dentro de mim que

desconhecia. (…) Aprendi a escrever e a ler melhor e já me dá mais vontade para

isso. (…) Nisso, [o processo de RVCC] valeu muito a pena».

No processo de socialização com as práticas de literacia das instituições

‘educação’ e ‘religião’, Marta tomou como inúteis e desprestigiantes algumas

das suas atividades textuais, nomeadamente a leitura de revistas cor-de-rosa e

a escrita de desabafos no diário.

Em consequência disso, excluiu-as quase por completo do seu

quotidiano, com a argumentação de que «não ensinavam nada» e que era

mais profícuo canalizar o tempo para tarefas cognitivamente mais exigentes,

socialmente mais valiosas e espiritualmente mais aceites:

«E eu já há muito que não escrevo no diário e só de vez em quando leio

a revista. (…) Tenho outras coisas para fazer…».

Apesar das mais-valias que associou à participação no processo de RVCC,

Marta não considerou a hipótese de dar continuidade aos seus estudos, pelo

facto de, mesmo com mais habilitações, não ter conseguido encontrar emprego.

Considerações finais…

Apesar de Marta e de Jorge terem tido percursos escolares curtos, os

eventos de literacia em que se envolviam eram de natureza múltipla e

variada. Fora dos contextos formais de aprendizagem, usavam a leitura e a

escrita como aliadas na resposta a tarefas do dia a dia, no desempenho dos

seus papéis sociais de trabalhadores, membros de família e de outras

comunidades.

Ainda assim, Marta, no início do processo de Reconhecimento,

Validação e Certificação de Competências, julgou-se indigna de receber o

título de “sujeita letrada”, porque aquilo que lia e escrevia no quotidiano

era diferente daquilo que considerava serem práticas de literacia válidas.

Essa conceção de si saiu legitimada depois de participar no processo

formativo, visto que nele o que se valorizava era a leitura de livros e a

redação de textos sintaticamente bem estruturados.

Uma vez que Jorge nunca se considerou iletrado, a passagem pelo

contexto formal de aprendizagem foi percebida como uma nulidade na

transformação da sua identidade de literacia – aquilo que supostamente o

identificaria como insider da comunidade educada já exibia antes de dar

entrada no processo de RVCC.

Conscientização dos adultos acerca do

“pouco” valor social das práticas de

literacia vernáculas

=

Aquisição última dos comportamentos,

crenças, atitudes e valores partilhados

pelas “comunidades letradas”.

Referências bibliográficas…

Barton, D., & Hamilton, M. (1998). Local Literacies. Reading and Writing in

one Community. London/New York: Routledge.

Johnson, R., Onwuegbuzie, A., & Turner, L. (2007). Toward a definition of

mixed methods research. Journal of Mixed Methods Research, 1, 112-133.

Street, B. V. (1984). Literacy in Theory and Practice. Cambridge, UK:

Cambridge University Press.

Tashakkori, A., & Teddlie, C. (2010). Handbook of Mixed Methods in Social &

Behavioral Research. Thousands Oaks, California: Sage Publications, Inc.

Obrigada!

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