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Língua Portuguesa – Redação Lista 1 Pág. 1 de 16 Colégio Integral – 8º ano – 3º bimestre - 2013 1 CRÔNICA DEFINIÇÃO E USOS Você já deve ter encontrado, em jornais diários, textos em que o autor parte de uma experiência pessoal, quase sempre a observação de um fato cotidiano, a partir do qual elabora uma reflexão mais geral. Esses textos exemplificam um gênero discursivo chamado CRÔNICA. Leia o texto a seguir: Entre quatro paredes Saí para dar uma volta, outro dia, e notei uma coisa. Fazia um tempo glorioso – melhor impossível, e com toda probabilidade o último do gênero a se ver por estas bandas durante muitos meses gelados -, no entanto quase todos os carros que passavam estavam com os vidros fechados. Todos aqueles motoristas tinham ajustado o controle de temperatura de seus veículos hermeticamente fechados para criar um clima interno idêntico ao que já existia no mundo exterior, e me ocorreu então que, no que se refere a ar fresco, os americanos perderam de vez a cabeça, ou o senso de proporção, ou alguma outra coisa. Ah sim, de vez em quando eles saem para experimentar a novidade de estar ao ar livre – fazem um piquenique, digamos, ou passam o dia na praia, ou num parque de diversões -, mas esses são acontecimentos excepcionais. De maneira geral, boa parte dos americanos acostumou-se de tal forma à ideia de passar o grosso da vida numa série de ambientes com clima controlado que a possibilidade de uma alternativa não lhes passa mais pela cabeça. Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses shoppings com as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o tempo está ótimo, como nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as janelas mesmo que quisessem – não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de férias, em geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza sem na verdade se expor a ela. Cada vez mais, quando vão a um evento esportivo, o jogo é realizado num estádio fechado. Dê uma volta a pé por praticamente qualquer bairro americano, agora no verão, e não verá nenhuma criança andando de bicicleta ou jogando

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CRÔNICA DEFINIÇÃO E USOS

Você já deve ter encontrado, em jornais diários, textos em que o autor parte de uma

experiência pessoal, quase sempre a observação de um fato cotidiano, a partir do qual elabora uma

reflexão mais geral. Esses textos exemplificam um gênero discursivo chamado CRÔNICA.

Leia o texto a seguir:

Entre quatro paredes

Saí para dar uma volta, outro dia, e notei uma coisa. Fazia um tempo glorioso –

melhor impossível, e com toda probabilidade o último do gênero a se ver por estas bandas

durante muitos meses gelados -, no entanto quase todos os carros que passavam estavam

com os vidros fechados.

Todos aqueles motoristas tinham ajustado o controle de temperatura de seus

veículos hermeticamente fechados para criar um clima interno idêntico ao que já existia no

mundo exterior, e me ocorreu então que, no que se refere a ar fresco, os americanos

perderam de vez a cabeça, ou o senso de proporção, ou alguma outra coisa.

Ah sim, de vez em quando eles saem para experimentar a novidade de estar ao ar

livre – fazem um piquenique, digamos, ou passam o dia na praia, ou num parque de

diversões -, mas esses são acontecimentos excepcionais. De maneira geral, boa parte dos

americanos acostumou-se de tal forma à ideia de passar o grosso da vida numa série de

ambientes com clima controlado que a possibilidade de uma alternativa não lhes passa

mais pela cabeça.

Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses

shoppings com as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o

tempo está ótimo, como nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as

janelas mesmo que quisessem – não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de

férias, em geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza

sem na verdade se expor a ela. Cada vez mais, quando vão a um evento esportivo, o jogo é

realizado num estádio fechado. Dê uma volta a pé por praticamente qualquer bairro

americano, agora no verão, e não verá nenhuma criança andando de bicicleta ou jogando

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bola, porque estão todas dentro de casa. Tudo o que você vai ouvir é o zumbido uniforme

dos aparelhos de ar-condicionado.

Cidades do país inteiro deram ultimamente de construir o que chamam de skywalks

– passarelas fechadas e climatizadas, claro – ligando todos os prédios do centro. Na minha

cidade natal, Des Moines, no estado de Iowa, a primeira “calçada no céu” foi construída uns

25 anos atrás, entre um hotel e uma loja de departamentos, e fez tamanho sucesso que

logo foram surgindo outras. Hoje já é possível andar por quase um quilômetro no centro de

Des Moines, em qualquer direção, sem nunca botar o pé lá fora. Todas as lojas que ficavam

no nível da rua mudaram-se para o primeiro andar, onde agora trafegam os pedestres. Hoje

em dia, as únicas pessoas que se veem nas ruas de Des Moines são os bêbados e os

empregados de escritórios, que saem para fumar um cigarro. A rua tornou-se uma espécie

de purgatório, um lugar para onde você é expulso.

Existem até clubes formados por gente que troca o terno pelo abrigo de ginástica e

passa a hora do almoço fazendo caminhadas rápidas e saudáveis ao longo de uma trilha

com quilometragem marcada nos skywalks. Jamais lhes passaria pela cabeça fazer uma

coisa dessas ao ar livre. Clubes semelhantes, integrados por aposentados, podem ser vistos

em todos os shoppings do país. São pessoas, compreenda, que marcam encontro nos

shoppings não para fazer compras e sim para fazer seus exercícios diários.

Da última vez que estive em Des Moines, encontrei um velho amigo da família. Ele

esta de abrigo de ginástica e me disse que acabara de sair do clube do shopping Valley

West. Estávamos em abril e o tempo era esplêndido. Perguntei-lhe porque o clube não

usava um dos muitos belos e enormes parques da cidade.

“No shopping não tem chuva, não tem frio, não tem morro e não tem

trombadinha”, ele respondeu sem hesitar.

“Mas não existe nenhum trombadinha em Des Moines”, eu respondi.

“Exato”, ele concordou sem pestanejar. “E sabe por quê? Porque não tem ninguém

na rua para roubar.” Balançou a cabeça enfaticamente, como se eu não tivesse pensado

nisso, como de fato não tinha. [...]

Enquanto me achava ali parado, um passarinho derrubou sobre o dedão do meu sapato

esquerdo qualquer tipo de coisa que você em geral não gosta muito que um passarinho

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Agora que você já leu o texto, responda as questões a seguir:

1. a) Que acontecimento desencadeou o texto de Bill Bryson?

b) Por que o autor julgou tal acontecimento digno de nota?

2. a) Transcreva, do início do texto, as passagens em que o autor deixa claro estar partindo

de uma observação pessoal.

b) Que elementos desses trechos caracterizam como particular a observação feita?

3. a) No 2º parágrafo, podemos identificar um trecho em que o autor começa a refletir

sobre o significado mais geral que o fato observado por ele pode ter. Identifique essa passagem.

b) Podemos afirmar que essa passagem recria, para o leitor do texto, o início de um

raciocínio analítico realizado por Bill Bryson. Explique.

4. a) Em que momento fica evidente que a observação particular torna-se uma reflexão

mais geral sobre os hábitos do povo americano?

b) Que elementos dessa passagem denotam a mudança de perspectiva (de particular para

mais geral) observada no texto?

Releia:

5.a) Que relação de sentido o parágrafo acima estabelece com o trecho final do 3º

parágrafo? Explique.

derrube. Olhei do céu para o sapato e de volta para o céu.

“Muito obrigado”, eu disse, e, creia-me, eu falei de coração.

(BRYSON, Bill. Crônicas de um país bem grande. Trad. De Beth Vieira. São Paulo: Companhia das

Letras, 2001. Fragmento)

ANÁLISE DO TEXTO

Por isso fazem suas compras em shoppings fechados e vão de carro até esses

shoppings com as janelas do carro fechadas e a ar-condicionado ligado mesmo quando o

tempo está ótimo, como nesse dia. Trabalham em escritórios onde não poderiam abrir as

janelas mesmo que quisessem – não que alguém fosse querer, claro. Quando saem de

férias, em geral viajam numa casa-reboque imensa, que lhes permite saborear a natureza

sem na verdade se expor a ela.

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b) Em termos formais, que expressão marca o estabelecimento dessa relação de sentido?

c) Que tipo de “orientação de leitura” essa expressão fornece ao leitor do texto?

6. a) No 5º parágrafo, Bill Bryson passa a falar dos skywalks. O que são essas estruturas?

b) De que modo o exemplo dos skywalks se relaciona com a questão tematizada no texto?

Releia:

7. Por que, no contexto da reflexão apresentada, Bill Bryson faz essa afirmação?

8. a) O texto termina com a retomada da perspectiva particular com que havia começado.

Que fatos são relatados pelo autor nesse momento?

b) Podemos afirmar que, apesar de Bill Bryson retomar um tom mais pessoal, o texto não

se desvia da reflexão central. Por quê?

c) Como pode ser entendido o “Muito obrigado” que o autor dirige ao passarinho?

A rua tornou-se uma espécie de purgatório, um lugar para onde você é expulso.

DEFINIÇÃO E USOS

Os grandes jornais, de circulação diária, e as revistas semanais costumam reservar um

espaço fixo para a publicação de CRÔNICAS.

CRÔNICA é um gênero discursivo no qual, a partir da observação e do relato de fatos cotidianos, o autor manifesta sua perspectiva subjetiva, oferecendo uma interpretação que revela ao leitor algo que está por trás das aparências ou não é percebido pelo senso comum. Nesse sentido, é finalidade da crônica revelar as fissuras do real, aquilo que parece invisível para a maioria das pessoas, ajudando-as a interpretar o que se passa à sua volta.

No texto de Bill Bryson, acompanhamos o processo de exposição de um comportamento

característico do povo americano – a opção por viver em ambientes climatizados, envoltos por uma

falsa “natureza” -, a partir da observação de um fato aparentemente banal: em um dia de verão, o

autor constata que as pessoas dentro dos carros que circulavam pela rua mantinham os vidros

fechados e o ar-condicionado ligado.

Esse procedimento ilustra o princípio desencadeador da crônica:

a observação do real com olhos investigativos, que desejam não só “registrar” uma

cena (corriqueira ou surpreendente, não importa), mas sempre ir além do que tal

cena ilustra, para buscar seu significado mais geral em relação ao comportamento

humano.

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Como gênero, a crônica tem raízes na história e na literatura. Durante o período das grandes

descobertas, quando as pessoas ainda descobriam territórios misteriosos nos quatro cantos do

mundo e se aventuravam nas explorações marítimas, era comum haver sempre um cronista que

acompanhava essas expedições. Sua função era clara: narrar os acontecimentos de modo

cronologicamente organizado. Naquele momento, portanto, fazer uma crônica significava registrar,

de modo fiel, uma série de fatos ordenados no tempo. A finalidade da crônica, nesse caso, era

preservar a memória dos acontecimentos e, por isso, aproximava-se da história.

Até o século XIX, era comum encontrar crônicas que apresentavam essa estrutura básica. Não

se tratava mais, é claro, de registrar os acontecimentos de uma expedição, mas sim os fatos

cotidianos. Grandes escritores brasileiros, como José de Alencar e Machado de Assis, celebrizaram-

se como cronistas de seu tempo. Como os cronistas eram muitas vezes romancistas ou poetas, o

parentesco da crônica com a literatura se estreitou.

UM POUCO DE HISTÓRIA...

Aos poucos, porém, as crônicas foram sofrendo

algumas modificações significativas. Em lugar, por exemplo,

de registrarem vários acontecimentos típicos de uma

sociedade, os cronistas passaram a relatar um único fato (ou

vários fatos que ilustrassem uma tendência comum) e, a

partir desse relato, a tecer comentários mais gerais sobre

como o acontecimento apresentado podia ser interpretado.

Quando essa transformação se consolidou, a crônica

assumiu a estrutura e a finalidade que ainda hoje apresenta.

Escrito para ser publicado em jornais, esse gênero discursivo

se define por ser claramente opinativo. Em meio a notícias e

reportagens, em que deve prevalecer uma perspectiva

imparcial, a crônica oferece um contraponto para o leitor.

Torna-se uma espécie de avesso da notícia: em lugar da

objetividade e da imparcialidade que caracterizam aquele

gênero, a crônica se define como subjetiva, opinativa,

pessoal.

A crônica e o estilo individual

A crônica é um gênero

discursivo que permite a

manifestação de estilos individuais,

por ser um texto inspirado em um

olhar subjetivo para acontecimentos

cotidianos. No Brasil, houve um

crescimento na produção de crônicas

a partir da década de 1950.

Autores como Carlos

Drummond de Andrade, Rubem

Braga, Paulo Mendes Campos,

Fernando Sabino, Rachel de Queiroz,

Carlos Heitor Cony, Otto Lara

Resende, além de promoverem a

popularização do gênero, também

estabeleceram seus estilos de modo

claro e, com isso, conquistaram

leitores fiéis.

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As crônicas circulam, em sua maior parte, no espaço jornalístico. Dessa forma, há crônicas

em jornais diários que, geralmente, contam com espaço e autor fixo.

Também é possível encontrá-las em revistas. Quando isso acontece, elas costumam aparecer

no início, como uma “introdução” às notícias da semana; ou no fim da revista, como uma

“conclusão”, um espaço para o leitor refletir sobre algum dos muitos acontecimentos que viraram

notícia naquele período.

Muitas publicações especializadas, como revistas para adolescentes, público feminino, dentre

outras, também reservam um espaço para os cronistas.

O que se costuma observar é que, quanto mais geral for a abordagem jornalística do veículo

no qual a crônica se insere, maior tende a ser a liberdade dos escritores na hora de decidirem o que

irão tematizar em suas crônicas.

Os livros também são um meio de circulação bastante comum para as crônicas. Geralmente

os autores reúnem um conjunto de textos que julgam mais representativos da sua obra e dos

tempos em que vivemos e os publicam sob a forma de livro.

A estrutura da crônica não segue um padrão fixo, mas apresenta algumas linhas gerais que

costumam ser seguidas pela maior parte dos autores. Vamos analisá-la a partir do exemplo seguinte:

CONTEXTO DE CIRCULAÇÃO

ESTRUTURA

Gente boa

Li outro dia um artigo sobre monges budistas,

freiras de clausura e essa gente toda que medita com

frequência. Estudos provaram que eles têm mais

desenvolvida a parte do cérebro que percebe o

aspecto luminoso das coisas. Enxergam mínimas

virtudes, têm mais compaixão e sabem amar com

desprendimento.

O ponto de partida para

a crônica é uma observação de

caráter mais pessoal: no caso, a

autora começa a falar sobre um

artigo que leu sobre pessoas

que meditam com frequência.

As conclusões apresentadas no

texto evocaram uma outra

experiência pessoal: uma

viagem feita há 7 anos para

Myanmar.

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Há sete anos passei um mês em Myanmar, a

antiga Birmânia, e lembro-me de sentir nitidamente

que aquela gente era melhor do que eu. Havia

harmonia e benevolência na expressão das pessoas.

Eu acordava predisposta para o bem, não porque seja

de fato boa, mas porque era o que se esperava de

mim. Ninguém na rua imaginava que eu pudesse dar

um golpezinho, enganar ou pensar algo crítico

enquanto sorria gentilmente. A delicadeza ali está

por toda parte e aponta para o que há de mais puro

na gente, umas belezas emboloradas foram brotando

feito susto de dentro dos meus egoísmos. Por lá não

há, ou não havia na época, o hábito de televisão a

qualquer hora, nem sequer existia TV por satélite, e a

cultura mantinha-se, assim, preservada de costumes

ocidentais. Não vi uma pessoa vestindo calça jeans,

nem eu mesma, que rapidamente aprendi a amarrar

panos na cintura para fazer saia igual à das moças de

lá – se amarrar diferente vira saia de homem. A única

infiltração de hábito ocidental que se percebe é um

pouco de cinema e, mesmo assim, os filmes são quase

sempre indianos. Quem chega ali vindo de um mundo

em que tudo se consegue por força, fica perplexo

diante dos meninos e meninas que escolhem passar,

às vezes, três anos de sua adolescência burilando o

espírito em monastérios budistas, no preparo para a

vida adulta. Saem sabendo tudo de abnegação,

generosidade, da importância do silêncio, do não

julgamento... Sabem pouco ou nada de sexo, drogas

e rock’n roll. E conseguem viver sem isso, rindo! Não

pretendo fazer o relato sentimentaloide da pureza de

um povo simples e isolado do mundo, mas é que a

virtude precisa mesmo de exercício para se manter

espontânea, e aquele povo, sei lá por quê, parece

achar essa prática importante. [...]

O exemplo das pessoas

citadas no artigo e também das

muitas outras observadas na

viagem à Myanmar é o ponto de

partida para o desenvolvimento

da reflexão pessoal que a autora

deseja fazer.

A conclusão apresentada

no texto lido, aliás, já antecipa o

que será o ponto central da

crônica de Maitê Proença:

pessoas que se dedicam à

meditação, em sofrer a

influência da cultura ocidental

que estimula a competição e o

consumo, são pessoas

melhores, que vivem em

harmonia.

O desenvolvimento do

tema da crônica continua sendo

atravessado pela experiência

particular, pessoal da autora.

Da observação do povo

de Myanmar, Maitê conclui algo

muito importante sobre os seres

humanos em geral: a virtude

precisa mesmo de exercício

para manter-se espontânea. Ou

seja, bondade exige prática. E só

existe ação continuada da

generosidade, da aceitação do

outro faz com que as pessoas

realmente aprendam a viver em

harmonia.

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Tenho consciência de que um dia fui melhor

do que hoje – quando eu era mais simples. A vida foi

se sofisticando, me deixando esperta e mais apta

para o jogo social. Tive ganhos com isso mas perdi

algo de genuíno que me diferenciava. Fui perdendo,

no corre-corre do “fiz, faço, aconteço”, o que me

aproximava de uma experiência particular e única – e

melhor eu acho. Felizmente nada é irreversível e não

preciso ir morar em Myanmar pra resgatar minhas

virtudes distantes. Posso fazer isso do meu

apartamento em Copacabana – não é mais poderoso

que a firmeza de uma intenção.

Mas aí... Cadê a firmeza?

(PROENÇA, Maitê. Entre ossos e a escrita. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. p. 99-100. (Fragmento).

No penúltimo parágrafo,

a autora mais uma vez assume o

seu comportamento como

“modelo” para refletir sobre o

que aprendeu com a experiência

de viver um mês em Myanmar.

Conclui, então, que o exercício

das virtudes pode ocorrer em

qualquer lugar onde viva:

Myanmar ou Copacabana.

Basta que tenha força de

vontade.

De modo geral, o princípio organizador da crônica é o movimento reflexivo que parte de

uma experiência única, particular, pontual e vai ampliando a abrangência do que foi vivido ou

observado para alcançar um significado mais geral, que ecoe a experiência de diferentes pessoas.

A reação frequente dos leitores aos textos de seus cronistas preferidos é uma prova de que,

de fato, há muito a ser aprendido sobre o comportamento humano a partir da observação e análise

dos fatos cotidianos.

LINGUAGEM

A linguagem utilizada na crônica é marcada por certa informalidade. Como se trata de um

texto para publicação, espera-se que as regras do português escrito culto sejam seguidas, mas

admite-se a presença de algumas marcas de oralidade.

Essa aparente contradição é facilmente explicada: por trazer sempre uma perspectiva

fortemente subjetiva, a crônica configura-se como um gênero discursivo no qual se espera a

presença de um “eu”. É essa perspectiva mais pessoal que introduz algumas notas de informalidade

ao texto.

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CRÔNICA PROPOSTA DE PRODUÇÃO I

É bastante comum que as crônicas publicadas nos jornais tenham como ponto de partida a

leitura de uma notícia exibida anteriormente no próprio meio e lida pelo cronista. O autor da crônica

demonstra interesse em escrever a respeito de determinado assunto a fim de extrapolar o campo da

mera exposição de um acontecimento e revela um caráter de questionamento e indagação acerca

da vida cotidiana.

Veja, abaixo, dois textos: o primeiro, uma crônica escrita por Fernando Sabino; o segundo, a

notícia que deu origem a ela.

Notícia de jornal

(Crônica de Fernando Sabino)

Leio no jornal a notícia de que um homem morreu de fome. Um homem de cor branca,

30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome, sem socorros, em pleno centro da

cidade, permanecendo deitado na calçada durante 72 horas, para finalmente morrer de fome.

Morreu de fome. Depois de insistentes pedidos e comentários, uma ambulância do

Pronto Socorro e uma radiopatrulha foram ao local, mas regressaram sem prestar auxílio ao

homem, que acabou morrendo de fome.

Um homem que morreu de fome. O comissário de plantão (um homem) afirmou que o

caso (morrer de fome) era da alçada da Delegacia de Mendicância, especialista em homens

que morrem de fome. E o homem morreu de fome.

O corpo do homem que morreu de fome foi recolhido ao Instituto Anatômico sem ser

identificado. Nada se sabe dele, senão que morreu de fome.

Um homem morre de fome em plena rua, entre centenas de passantes. Um homem

caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo, um anormal, um tarado, um pária,

um marginal, um proscrito, um bicho, uma coisa - não é um homem.

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E os outros homens cumprem seu destino de passantes, que é o de passar. Durante

setenta e duas horas todos passam, ao lado do homem que morre de fome, com um olhar de

nojo, desdém, inquietação e até mesmo piedade, ou sem olhar nenhum.

Passam, e o homem continua morrendo de fome, sozinho, isolado, perdido entre os

homens, sem socorro e sem perdão.

Não é da alçada do comissário, nem do hospital, nem da radiopatrulha, por que haveria

de ser da minha alçada? Que é que eu tenho com isso? Deixa o homem morrer de fome.

E o homem morre de fome. De trinta anos presumíveis. Pobremente vestido. Morreu

de fome, diz o jornal. Louve-se a insistência dos comerciantes, que jamais morrerão de fome,

pedindo providências às autoridades.

As autoridades nada mais puderam fazer senão remover o corpo do homem. Deviam

deixar que apodrecesse, para escarmento dos outros homens. Nada mais puderam fazer

senão esperar que morresse de fome.

E ontem, depois de setenta e duas horas de inanição, tombado em plena rua, no centro

mais movimentado da cidade do Rio de Janeiro, Estado da Guanabara, um homem morreu de

fome.

Agora, leia a notícia que deu origem a essa crônica:

Homem morre de fome no centro da cidade

Um homem de cor branca, 30 anos presumíveis, pobremente vestido, morreu de fome

ontem, no centro da cidade, depois de ter permanecido por setenta e duas horas deitado na

calçada. Uma ambulância do Pronto Socorro e uma radiopatrulha, chamadas insistentemente

por comerciantes instalados nas proximidades, nada fizeram, alegando que o caso fugia às

suas atribuições, era da alçada da Delegacia de Mendicância. O corpo foi recolhido ao Instituto

Médico Legal, onde aguarda identificação.

(Notícia retirada do livro: Português: uma proposta para o Letramento. Livro 7. Autora: Magda Soares)

Observe que a notícia restringe-se a expor ao leitor qual foi o acontecimento, não há

qualquer tipo de subjetividade, ou seja, de reflexão do autor. Ao contrário do que acontece na

crônica, um texto permeado pelas impressões, ou subjetividades, do cronista Fernando Sabino, que,

ao repetir a frase “um homem morreu de fome”, demonstra sua indignação diante do fato.

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AGORA É A SUA VEZ...

Leia a notícia abaixo e, a partir dela, escreva uma crônica em que você apresente ao leitor

suas impressões e opiniões a respeito do tema abordado por ela.

Anunciado no Facebook, tênis da Adidas é considerado racista

Com correntes de borracha, calçado teve a venda suspensa

No mês de junho, a fabricante de materiais esportivos Adidas anunciou em sua página

do Facebook o lançamento de um novo tênis na linha outono-inverno 2012, segundo informou

o jornal “Le Monde”. Desenhado pelo estilista Jeremy Scott Roundhouse, o calçado traz

pulseiras de borracha simulando correntes, que muitos internautas viram como uma

referência à escravidão.

Segundo a CNN, a empresa rapidamente removeu a postagem na página do Facebook,

mas o assunto já havia rodado o globo gerando revolta entre internautas.

“Aparentemente não havia pessoas de cor no departamento de marketing que o

aprovou”, brinca Rodwell em comentário no site “Nice Kicks”, portal destinado aos

lançamentos de tênis.

A empresa, inicialmente, defendeu o designer, descrevendo seu estilo como “original”

e alegre, mas o fabricante alemão emitiu um comunicado onde pede desculpas aos ofendidos

com o caso e afirma que o modelo não será comercializado.

Fonte: (http://ocadernodarose.blogspot.com.br/2012/09/escreva-uma-cronica-com-base-nesta.html)

Organize suas ideias. Procure anotar que tipo de emoção, sentimento, reação ou reflexão o

assunto da notícia desencadeou em você.

A estrutura da crônica prevê como ponto de partida para o texto a apresentação de um breve

relato que situe o leitor em relação ao fato/ imagem/ comportamento que desencadeou o

processo analítico. Como você fará essa introdução?

A linguagem da crônica admite uma certa informalidade, mas evite exageros nas marcas de

oralidade. Se você julgar interessante, lembre-se de que é possível estabelecer uma

interlocução com o leitor do texto.

ORIENTAÇÕES

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DIFERENTES TEMAS, DIFERENTES CRÔNICAS...

A possibilidade de abordar um sem-número de temas faz com que os cronistas escrevam

sobre os mais variados tópicos. É possível, porém, identificar algumas grandes tendências no interior

desse gênero discursivo. Por essa razão, alguns teóricos propõem uma “classificação” das crônicas, a

depender dos assuntos nelas abordados.

Vejamos algumas delas:

Crônica mundana: trata de fatos ou acontecimentos característicos de uma

sociedade. É o caso do primeiro texto lido no começo deste material, a crônica Entre

quatro paredes, de Bill Bryson;

Crônica reflexiva: registra a expressão de um estado de espírito do cronista. Veja um

exemplo:

Vitória nossa

O que temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia?

Não temos amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque

não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos termos, nem aos

outros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos construído catedrais e

ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós mesmos construímos tememos que sejam

armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmos, pois isso seria o começo de uma vida larga

e talvez sem consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga: teu

medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a bebida com soda.

Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos envergonharmos de

ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não termos de reconhecer sua contextura

de amor e de ódio. Temos mantido em segredo a nossa morte. Temos feito arte por não

sabermos como é a outra coisa. Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado

nossa indiferença com a angústia, disfarçando com o pequeno medo o grande medo maior. Não

temos adorado, por termos a sensata mesquinhez de nos lembrarmos a tempo dos falsos

deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos de nós mesmos e para que no fim do dia

possamos dizer “pelo menos não fui tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos

tido a certeza de que eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam.

Temos sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos. Temos chamado de

fraqueza a nossa candura. Temo-nos temido um ao outro, acima de tudo. E a tudo isso temos

considerado a vitória nossa de cada dia...

(Clarice Lispector)

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Crônica humorística: apresenta uma visão irônica ou cômica dos fatos relatados; Veja

um exemplo:

Desabafos de um bom marido

Minha esposa e eu temos o segredo pra fazer um casamento durar: duas vezes por

semana, vamos a um ótimo restaurante, com uma comida gostosa, uma boa bebida, e um bom

companheirismo. Ela vai às terças-feiras, e eu às quintas.

Nós também dormimos em camas separadas. A dela é em Fortaleza e a minha em São

Paulo. Eu levo minha esposa a todos os lugares, mas ela sempre acha o caminho de volta.

Perguntei a ela onde ela gostaria de ir no nosso aniversário de casamento. "Em algum lugar que

eu não tenha ido há muito tempo!" ela disse. Então eu sugeri a cozinha.

Nós sempre andamos de mãos dadas. Se eu soltar, ela vai às compras. Ela tem um

liquidificador elétrico, uma torradeira elétrica, e uma máquina de fazer pão elétrica. Então ela

disse: "Nós temos muitos aparelhos, mas não temos lugar pra sentar". Daí, comprei pra ela uma

cadeira elétrica.

Lembrem-se, o casamento é a causa número um para o divórcio. Estatisticamente, 100

% dos divórcios começam com o casamento. Eu me casei com a "Sra. Certa". Só não sabia que o

primeiro nome dela era "Sempre".

Já faz 18 meses que não falo com minha esposa. É que não gosto de interrompê-la. Mas

tenho que admitir, a nossa última briga foi culpa minha. Ela perguntou: "O que tem na TV?" E

eu disse "Poeira".

No começo Deus criou o mundo e descansou. Então, Ele criou o homem e descansou.

Depois, criou a mulher.

Desde então, nem Deus, nem o homem, nem Mundo tiveram mais descanso.

"Quando o nosso cortador de grama quebrou, minha mulher ficava sempre me dando a

entender que eu deveria consertá-lo. Mas eu sempre acabava tendo outra coisa para cuidar

antes: o caminhão, o carro, a pesca, sempre alguma coisa mais importante para mim.

Finalmente ela pensou num jeito esperto de me convencer. Certo dia, ao chegar em

casa, encontrei-a sentada na grama alta, ocupada em podá-la com uma tesourinha de costura.

Eu olhei em silêncio por um

tempo, me emocionei bastante e depois entrei em casa.

Em alguns minutos eu voltei com uma escova de dentes e lhe entreguei."

- Quando você terminar de cortar a grama," eu disse, "você pode também varrer a calçada."

Depois disso não me lembro de mais nada. Os médicos dizem que eu voltarei a andar,

mas mancarei pelo resto da vida. "O casamento é uma relação entre duas pessoas na qual uma

está sempre certa e a outra é o marido..."

(Luis Fernando Veríssimo)

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Crônica jornalística: trata periodicamente de aspectos particulares de notícias ou

fatos; pode ser policial, esportiva, política, etc. Trata-se do exemplo dado na página 8

deste material, a crônica Notícia de jornal.

Existem várias outras classificações para as crônicas. É claro que essa é apenas uma

referência e, em muitos casos, uma mesma crônica pode apresentar características associadas a

mais de um dos tipos identificados acima.

CRÔNICA PROPOSTA DE PRODUÇÃO II

Veja o texto abaixo, trata-se de uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, que

fala da situação da cidade do Rio de Janeiro após fortes chuvas.

Os dias escuros

Amanheceu um dia sem luz – mais um – e há um grande silêncio na rua. Chego à janela e

não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores. A cidade, ensopada de chuva, parece

que desistiu de viver. Só a chuva mantém constante seu movimento entre monótono e nervoso.

É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí

está, molhando, ensopando os morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós.

Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos,

mortos, mortos. Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos

amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa gente precisando de colchão,

roupa de corpo, comida, medicamento. O calhau solto que fez parar a adutora. Ruas que

deixam de ser ruas, porque não dão mais passagem. Carros submersos, aviões e ônibus

interestaduais paralisados, corrida a mercearias e supermercados como em dia de revolução. O

desabamento que acaba de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos

instantes.

Este, o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é

menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência de seus

horrores.

Sim, é admirável o esforço de todo mundo para enfrentar a calamidade e socorrer as

vítimas, esforço que chega a ser perturbador pelo excesso de devotamento desprovido de

técnica. Mas se não fosse essa mobilização espontânea do povo, determinada pelo sentimento

humano, à revelia do governo incitando-o à ação, que seria desta cidade, tão rica de galas e

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bens supérfluos, e tão miserável em sua infraestrutura de submoradia, de subalimentação e de

condições primitivas de trabalho? Mobilização que de certo modo supre o eterno despreparo, a

clássica desarrumação das agências oficiais, fazendo surgir de improviso, entre a dor, o espanto

e a surpresa, uma corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os

flagelados.

Chuva e remorso juntam-se nestas horas de pesadelo, a chuva matando e destruindo

por um lado, e, por outro, denunciando velhos erros sociais e omissões urbanísticas; e remorso,

por que escondê-lo? Pois deve existir um sentimento geral de culpa diante de cidade tão

desprotegida de armadura assistencial, tão vazia de meios de defesa da existência humana, que

temos o dever de implantar e, entretanto, não implantamos, enquanto a chuva cai e o bueiro

entope e o rio enche e o barraco desaba e a morte se instala, abatendo-se de preferência sobre

a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza; a mão de obra de

hoje, esses trabalhadores entregues a si mesmos, e suas crianças que nem tiveram tempo de

crescer para cumprimento de um destino anônimo.

No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta

num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro

sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do

Rio de Janeiro.

(Carlos Drummond de Andrade)

Agora, você terá a oportunidade de escrever a respeito de alguma situação vivenciada por

você na cidade onde mora ou a respeito de alguma notícia a respeito de uma cidade que sofreu com

alguma forma de desastre natural. Para tanto, reflita sobre os seguintes aspectos:

Qual foi o fato que motivou seu texto?

De que maneira esse desastre natural influenciou (alterou positiva ou

negativamente) a vida das pessoas que moravam na cidade?

Como essas pessoas se comportaram depois do ocorrido, houve alguma

mudança de comportamento da parte delas?

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ORIENTAÇÕES

Lembre-se: a crônica começa com uma observação pessoal, particular e, depois, passa para uma

visão mais ampla;

Escreva sua crônica na primeira pessoa do singular (eu) e empregue a variedade padrão;

Sua redação deve ter no mínimo 20 linhas.

Faça um rascunho e, depois, passe-o a limpo – à tinta. Não se esqueça de lhe dar um título

adequado (de acordo com o texto produzido).