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EDILENE DA SILVA FERREIRA ENTRE RIOS, CIDADES E FLORESTAS: IDENTIDADES ACREANAS EM A REPRESA ROMANCE DA AMAZÔNIA E CERTOS CAMINHOS DO MUNDO ROMANCE DO ACRE UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE 2010

Entre Rios, Cidades e Florestas - Edilene Ferreira

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EDILENE DA SILVA FERREIRA

ENTRE RIOS, CIDADES E FLORESTAS: IDENTIDADES ACREANAS EM A REPRESA – ROMANCE DA AMAZÔNIA E CERTOS CAMINHOS DO MUNDO – ROMANCE DO ACRE

UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE 2010

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EDILENE DA SILVA FERREIRA

ENTRE RIOS, CIDADES E FLORESTAS: IDENTIDADES ACREANAS EM A REPRESA – ROMANCE DA AMAZÔNIA E CERTOS CAMINHOS DO MUNDO – ROMANCE DO ACRE

Dissertação apresentada à Universidade Federal do Acre – UFAC, para obtenção do título de Mestre em Letras, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, área de concentração: Cultura e Sociedade.

Orientador: Prof. Dr. Henrique Silvestre Soares

Universidade Federal do Acre Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade

Rio Branco, 2010

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FERREIRA, E. DA S., 2010.FERREIRA, Edilene da Silva. Entre rios, cidades e

florestas: identidades acreanas em A Represa – Romance da Amazônia e Certos

caminhos do mundo- romance do Acre. Rio Branco: UFAC, 2010. 100f.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UFAC

Marcelino G. M. Monteiro – CRB 11ª - 258

F383e Ferreira, Edilene da Silva, 1979-

Entre rios, cidades e florestas: identidades acreanas em A represa – romance da Amazônia e certos caminhos do mundo – romance do Acre / Edilene da Silva Ferreira -- Rio Branco: UFAC, 2010.

100f. : il.; 30 cm. Dissertação (Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade) –

Universidade Federal do Acre - UFAC. Orientador: Prof. Dr. Henrique Silvestre Soares. Inclui bibliografia 1. Amazônia na literatura. 2. Literatura acreana. 3. Narrativa - Literatura.

4. Estudos culturais. 5. Identidade. I. Título.

CDD.: 808.809811 CDU.: 82-3.09(811)

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ENTRE RIOS, CIDADES E FLORESTAS: IDENTIDADES ACREANAS EM A REPRESA – ROMANCE DA AMAZÔNIA E CERTOS CAMINHOS DO MUNDO – ROMANCE DO ACRE

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Acre como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Letras: Linguagem e identidade. Orientador: Professor Doutor Henrique Silvestre Soares (UFAC).

Aprovada em 6 de dezembro de 2010.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________________

Prof. Dr. Henrique Silvestre Soares (UFAC) Coordenador

Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores doutores:

_______________________________________________________ Henrique Silvestre Soares (UFAC)

Orientador

_______________________________________________________ Sidney Barbosa Membro externo

________________________________________________________ Simone de Souza Lima (UFAC)

Membro efetivo

Rio Branco, 06 de dezembro de 2010.

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Dedico este trabalho a Deus, aos meus pais, ao meu filho, Ígor, e ao meu orientador, Henrique Silvestre.

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AGRADECIMENTOS

Esta dissertação nasceu devido à contribuição de muitas pessoas, que se

fizeram importantes no momento de sua produção. Por isso, quero expressar minha

gratidão a todos os que me ajudaram nesta tarefa tão árdua:

Agradeço primeiramente a Deus criador de todas as coisas, que com sua

misericórdia me deu forças para chegar até aqui.

à minha mãe e a meu pai, pelo apoio, acompanhamento e orações e também

por me educaram para vencer obstáculos, por maiores que eles fossem;

ao meu filho, Ígor, que, mesmo sem compreender, me deu o tempo que era

dele para que eu pudesse escrever;

aos meus irmãos Christian, Tayane e Tamires, que muito me ajudaram no

que eu precisasse;

ao meu esposo, Ivo, por me ajudar em muitos momentos, com livros e auxílio

quando eu precisava escrever;

à professora Dra. Simone de Souza Lima, minha primeira orientadora, que me

ajudou nos momentos iniciais desta dissertação, com indicação de leituras e atenção

constante, igualmente, na época do Exame de Qualificação pelas valiosas

sugestões;

ao professor Doutor Sidney Barbosa pela gentileza com que apresentou suas

valiosas sugestões no Exame de Qualificação e por vir de tão longe para compor a

banca examinadora desta defesa;

à professora Dra. Maria do Socorro Calixto, pelo apoio no início do mestrado

e por acreditar no meu trabalho;

a todos os meus colegas de turma, em especial àqueles que estiveram

comigo por mais tempo, compartilhando maravilhosas conversas e ideias: Vilma

Rodrigues, amiga incondicional, Célia Pires, que sempre me incentivou a terminar

logo, Evanilde (Eva), Marileize, Flávia, Mauro, Francemilda, Ceildes, Ana Maria,

Joelma.

Aos meus colegas de trabalho na Secretaria Estadual de Educação:

Alessandra, Fabiana, Janisléia, Marilene, Jocicleide, Valfisa, por toda torcida e apoio

em muitos momentos;

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a Vítor, também colega de trabalho, pelo resumo em língua estrangeira e pela

torcida;

à minha chefe, Fernanda dos Santos Alves pelo apoio e por me permitir

ausentar-me mesmo no momento em que tínhamos tantos trabalhos a realizar;

à minha Eleni, minha colega de graduação, pela torcida;

ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação do Mestrado em Letras:

Linguagem e Identidade por tantas lições dadas;

à Secretaria Municipal de Educação, na pessoa do Secretário de Educação,

Professor Moacyr Fecury, por permitir ausentar-me da sala de aula na ocasião do

cumprimento dos créditos.

à Universidade Federal do Acre pela oportunidade de realizar o curso de

Mestrado.

Ao Professor Orientador e amigo, Henrique Silvestre Soares, pelos anos de

convivência e apoio incondicional desde o início da minha pesquisa, e por acreditar

em mim muito mais do que eu mesma era capaz, trazendo, em qualquer situação,

orientações, ideias, muitos livros e o apoio constante, carregados de atenção e

paciência;

Enfim, a todos os que direta ou indiretamente me ajudaram nesta caminhada,

torceram e me deram apoio.

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O rio é destino. Que os rios se unam na mesma esperança e na mesma vontade que o navegante de rio inteiro amarra ao leme de sua intuição, ou predestinação. No rio abre-se um cenário de terras e de florestas. A Amazônia nasce, desenvolve-se, perdura, segundo o evangelho escrito pelo rio.

Leandro Tocantins

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ENTRE RIOS, CIDADES E FLORESTAS: IDENTIDADES ACREANAS EM A REPRESA – ROMANCE DA AMAZÔNIA E CERTOS CAMINHOS DO MUNDO – ROMANCE DO ACRE

RESUMO

Este trabalho, que pertence à área teórica de estudos culturais, toma como base estudar as identidades acreanas a partir dos romances Certos caminhos do mundo - romance do Acre, de Abguar Bastos, e A represa - romance da Amazônia, de Océlio de Medeiros. Estas duas narrativas apresentam como cenário o Acre desde o momento da constituição do território até a decadência do primeiro ciclo da borracha. Para nortear os caminhos desta pesquisa foram escolhidos teóricos, como Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva, Zigmunt Bauman, Homi Bhabha, Edward Said, Mikhail Bakhtin, Michel De Certeau, Gastón Bachelard e Carlos Reis. Os teóricos citados guiam as definições acerca da identidade, discurso, teoria da narrativa, noções de tempo e de espaço. Merecem destaque também os estudos de Laélia Rodrigues da Silva, que nos dão suporte na pesquisa acerca da literatura acreana e de seus caminhos ao longo da história. A partir da observação de aspectos que levaram muitos escritores da literatura amazônica a escreverem constantemente sobre temas como a relação do homem com a natureza e seus perigos, são expostas as ideias de que a identidade de um povo é formada a partir da sua relação com o outro, com o espaço e em um determinado tempo. Ela é revelada por meio da cultura, da qual faz parte a literatura. Assim, mostramos nesse trabalho como a identidade de um povo pode ser formada a partir das suas narrativas. Apresenta-se, além disso, a situação da literatura na Amazônia, especialmente no Acre, e como são manifestos, nos textos dos escritores da região, as relações de formação da identidade. Este é um dos aspectos que permeiam a literatura de expressão amazônica. Desta forma, esta pesquisa pretende contribuir para os estudos acerca da literatura na Amazônia.

PALAVRAS-CHAVE: Amazônia; Identidade; Literatura; Narrativa; Estudos Culturais;

Acre.

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ENTRE RÍOS, CIUDADES Y FLORESTAS: IDENTIDADES ACREANAS EM A REPRESA – ROMANCE DA AMAZÔNIA Y CERTOS CAMINHOS DO MUNDO – ROMANCE DO ACRE

RESUMEN

Este trabajo, que pertenece a la área teórica de estudios culturales, tiene como objetivo estudiar las identidades acreanas a partir de los romances Certos caminhos do mundo: romance do Acre, de Abguar Bastos, y A represa: romance da Amazônia, de Océlio de Medeiros. Estas dos narrativas presentan como escenario el Acre desde el momento de la constitución del territorio hasta la decadencia del primer ciclo del caucho. Para nortear los caminos de esta pesquisa, fueron elegidos teóricos como Stuart Hall, Tomaz Tadeu da Silva, Zigmunt Bauman, Homi Bhabha, Edward Said, Mikhail Bakhtin, Michel De Certeau, Gastón Bachelard y Carlos Reis. Los teóricos citados guían las definiciones sobre la identidad, discurso, estudio de la narrativa, nociones de tiempo y de espacio. Merecen destaque también los estudios de Laélia Rodrigues da Silva, que nos dan soporte en la pesquisa acerca de la literatura acreana y de sus caminos a lo largo de la historia. A partir de la observación de aspectos que llevaron muchos escritores de la literatura amazónica a escribir a menudo sobre temas como la relación del hombre con la naturaleza y sus peligros, son expuestas las ideas de que la identidad de un pueblo es formada a partir de su relación con el otro, con el espacio y en un determinado tiempo. Ella es revelada por medio de la cultura, de la cual hace parte la literatura. De ese modo, mostramos en ese trabajo como la identidad de un pueblo puede ser formada a partir de sus narrativas. Presenta, además de eso, la situación de la literatura en Amazonia, especialmente en Acre, y como son expresas, en los textos de los escritores de la región, las relaciones de formación de identidad. De esa forma, esta pesquisa quiere contribuir con los estudios sobre la literatura en Amazonia.

Palabras-clave: Amazonia; Identidad: Literatura; Narrativa: Estudios Culturales; Acre.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...........................................................................................................12 CAPÍTULO PRIMEIRO – DISCURSO E IDENTIDADE.............................................15 1.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA............................................................................15 1.2 LITERATURA E IDENTIDADE ............................................................................25 1.3 TRAJETÓRIA DOS AUTORES............................................................................29 1.3.2 As obras ..........................................................................................................32 1.4 CONCLUSÃO PARCIAL DO CAPÍTULO PRIMEIRO..........................................46 CAPÍTULO II – UMA LITERATURA NA AMAZÔNIA ..............................................48 2.1 ESPAÇO E VIDA..................................................................................................48 2.2 AS ÁGUAS E A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES.............................................52 2.3 NARRATIVA E FORMAÇÃO IDENTITÁRIA........................................................57 2.4 CONCLUSÃO PARCIAL DO CAPÍTULO II..........................................................73 CAPÍTULO III – FORMAÇÃO DAS IDENTIDADE ACREANAS...............................75 3.1 CERTOS CAMINHOS DO MUNDO E A REPRESA: A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO......................................................75 3.2 O RIO, A CIDADE E A FLORESTA COMO REFERENCIAIS DE IDENTIDADE AMAZÔNICA..............................................................................................................80 3.3 CONCLUSÃO PARCIAL DO CAPÍTULO III.........................................................91 CONCLUSÕES .........................................................................................................92 REFERÊNCIAS ........................................................................................................95 ANEXOS .................................................................................................................101

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INTRODUÇÃO

Nesta pesquisa pretende-se investigar as narrativas amazônicas, analisando

a partir delas como se dá o processo de formação das identidades acreanas. Para

isso, definimos como corpus as narrativas de dois autores dessa região, um acreano,

Océlio de Medeiros, autor da obra A represa – romance da Amazônia, e um

paraense, Abguar Bastos, que escreveu Certos caminhos do mundo – romance do

Acre. Estes autores foram escolhidos, levando-se em consideração o espaço

apresentado em suas narrativas e a sua relação com o espaço narrado. Suas

narrativas são ambientadas no Acre do tempo de constituição do antigo Território e

têm como foco a apresentação das pessoas da época e as principais dualidades da

cidade nesse período histórico

O interesse em estudar as narrativas amazônicas surgiu após o contato com

diversas narrativas dessa região, o que levou à observação de algumas

peculiaridades nesse tipo de texto, especialmente no que concerne ao espaço

apresentado, às personagens e seus discursos, o que nos fez observar que isso

poderia ser a tentativa de fixar determinadas identidades. Com base nisso, pensamos

em analisar como se dá o processo de busca das identidades acreanas a partir dos

romances desses dois autores. A definição do corpus da pesquisa para dissertação de

mestrado se deu com ao auxílio da Professora Doutora Simone de Souza Lima, minha

primeira orientadora, na ocasião do processo de seleção para o mestrado, e do

Professor Doutor Henrique Silvestre Soares, atual orientador, os quais indicaram as

leituras e orientaram o caminho a ser seguido para que a pesquisa fosse realizada.

Segundo os estudiosos da literatura amazônica, destaquemos Laélia

Rodrigues Silva, grande parte das produções literárias escritas na Amazônia, projeta-

se a partir de uma tentativa de revelar determinada projeção identitária, associada à

temática do isolamento e da relação do homem com seu espaço. A partir desse olhar,

pensamos em analisar como a busca da identidade se dá nessas narrativas. Assim,

interessa pesquisar como os romances desses escritores demonstram as relações do

homem com seu espaço e seu tempo na busca da identidade.

Mesmo diante da importância das narrativas amazônicas, é possível notar que

os estudos sobre tais obras ainda não são tão amplos, por isso é que se faz

necessário um registro acadêmico e também sistemático dessa produção literária,

uma vez que a fonte de pesquisa sobre a prosa acreana corresponde a poucos

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trabalhos, com destaque à já mencionada Laélia Rodrigues, com a obra Acre: prosa e

poesia, 1900 - 1090, cujos estudos serão utilizados para embasar esta pesquisa por

apresentar aspectos relevantes da produção literária no Acre.

A opção por estudar o romance e não outro gênero se dá em face de aquele

abordar de maneira mais evidente o ser humano e suas relações com o espaço e com

o outro, evidenciando determinadas realidades que se destacam e não outras. Para

isso, buscamos verificar, através dos discursos apresentados pelas personagens e

pelo narrador como se dá a tentativa de revelar, nesses discursos, identidades, o que

se torna evidente diante da realidade do homem.

Este trabalho está dividido em três capítulos, os quais foram distribuídos de

acordo com a pesquisa bibliográfica realizada. A distribuição desses capítulos será

apresentada a seguir.

O capítulo primeiro, “Discurso e identidade”, apresenta três partes. Na primeiro

se faz uma explanação dos principais teóricos estudados e que deram base a este

estudo. Aqui são apresentadas as primeiras ideias sobre identidade e a noção de

linguagem apresentada por Bakhtin, teórico que deu suporte aos estudos sobre o

discurso nesta pesquisa. Na segunda parte deste capítulo, apresenta-se a trajetória de

vida dos autores com o intuito de levar o leitor a conhecê-los e situar suas obras no

tempo e no espaço, bem como traçar um perfil do intelectual da Amazônia.

Acreditamos ser importante tal feita, uma vez que esses autores não são conhecidos

de todos e suas trajetórias de vida nos fazem compreender melhor suas obras. Ainda

neste capítulo serão apresentadas as obras com alguns aspectos importantes,

especialmente os que dizem respeito às construções identitárias.

No segundo capítulo, “Uma literatura na Amazônia, serão apresentadas na

primeira parte a relação e a importância do espaço na busca da identidade. Para isso,

serão expostas as principais características da região e relação do homem com seu

espaço e com o seu semelhante. Neste mesmo capítulo serão expostas as categorias

da narrativa, enfatizando a importância dessas categorias na relação com as questões

identitárias. Serão apresentados o tempo, o espaço, o narrador, as personagens e as

suas relações com a história narrada.

No terceiro capítulo, intitulado, “Formação das identidades acreanas”, serão

destacados dois aspectos: o primeiro relaciona-se ao discurso histórico e sua relação

com o ficcional na construção da identidade; o segundo diz respeito à representação

do rio, da cidade e da floresta como referenciais identitários, os quais serão

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apresentados de maneira mais aprofundada, explicando-se a sua relação com as

narrativas. Em suma, será demonstrado como esses espaços são utilizados na

formação das identidades acreanas.

É válido destacar que apesar de analisarmos duas obras paralelamente, não é

nossa intenção fazer comparação delas. O objetivo é usar uma diversidade maior

para se chegar à conclusão esperada: de que há na literatura que expressa a

Amazônia a tentativa de fixar determinadas identidades.

É válido mencionar que é com base nas idéias acerca da identidade que,

procuraremos mostrar como são apresentadas as identidades dos homens que vivem

na Amazônia acreana, suas práticas suas vivências, a partir das narrativas de Abguar

Bastos e Océlio de Medeiros. Interessa-nos pesquisar os romances para demonstrar

como são construídas as identidades a partir das relações do homem com seu espaço

e seu tempo, a partir da sua história e da sua cultura. Complementando essas ideias

lançaremos mão das teorias de Mikhail Bakhtin acerca da linguagem e da(s)

identidade(s).

Portanto, o nosso intuito com este trabalho é contribuir para os estudos que

discutem os projetos identitários, a partir das narrativas de Abguar Bastos e Océlio de

Medeiros, bem como ampliar o repertório de pesquisas sobre a prosa amazônica para

que futuramente outros pesquisadores possam utilizá-lo como fonte de pesquisa.

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CAPÍTULO PRIMEIRO – DISCURSO E IDENTIDADE

1.1 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O conceito de identidade, como se pode observar nos estudos culturais, é

um conceito recente e apresenta muitas definições. Conforme Stuart Hall, a

identidade é um problema da modernidade tardia. No entanto, ela figura entre as

ideias mais discutidas na atualidade, apresentando definições diversas, muitas

vezes, divergentes a exemplo de expressões como cultura e literatura. Marcada por

meio de símbolos, segundo Tomaz Tadeu da Silva, a identidade expressa a

diversidade das relações sociais, o modo como as pessoas percebem ou veem a si

mesmas e as atribuições que têm na sociedade. Com isso, é possível afirmar que a

identidade, ou melhor, as identidades podem ser analisadas por diversas óticas:

cultura, religião, nacionalidade, gênero, etnia, dentre muitas outras. Isto ocasiona

várias identificações para os indivíduos, as quais ao passo que identificam esses

indivíduos excluem outras identidades, criando significados para ele, ao mesmo

tempo em que definem os seus papéis na sociedade.

Assim, por serem formadas a partir das relações sociais, é possível afirmar

que as identidades, em sua formação, utilizam como material os elementos

fornecidos pelas diversas instituições da sociedade, pela história e pela geografia -

daí a importância de noções como espaço e tempo - pela biologia e pelas memórias

individuais e coletivas.

Pelo fato de as identidades serem formadas a partir das relações sociais,

observa-se que muito das produções da sociedade, expressam essas identidades.

Podemos tomar como exemplo as produções literárias dos mais variados gêneros,

que, de uma forma ou de outra, representam determinada identidade, seja ela social,

cultural ou de outra ordem.

Para Hall (2004. p. 47), no mundo moderno, as culturas nacionais em que

nascemos constituem-se em uma das principais fontes de identidades. Como a cultura

do povo é fonte inesgotável de inspiração, é nela que muitos escritores locais buscam

tais fontes de identidade, o que evidentemente ocorre nas narrativas que expressam a

Amazônia.

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Sempre que uma identidade é posta em pauta, deve-se lembrar que toda

identidade é atravessada por outras identidades. Isto quer dizer que não há

identidades puras, mas sim formadas a partir do cruzamento de várias outras, que

podem ser de caráter social, étnica, de gênero, dentre outras. Todas essas

identidades são formadas a partir das experiências que os indivíduos têm ao longo

da vida, nas suas relações sociais. São elas que estabelecem diferença entre os

sujeitos da sociedade. Isso é importante porque todo discurso da identidade é

sempre focalizado na diferença. Assim, pode-se perceber que a identidade do

sujeito sempre é formada a partir da posição que ele assume em determinado

contexto social.

É assim que a literatura brasileira que expressa a Amazônia, seguindo uma

tendência que vem desde as primeiras épocas da literatura no país, busca

constantemente formar uma identidade que venha representar as particularidades

do universo amazônico, a partir de “elementos de pertença”, como as questões

éticas, simbólicas e o próprio espaço. Daí observarmos que muito da produção da

região gira em torno dessa busca.

Talvez seja por isso que nas obras produzidas na Amazônia, sejam em

prosa ou em poesia, o que se percebe é que se apresenta o homem, a paisagem e a

cultura, representando muitos dos aspectos da região, especialmente o tom e a cor

local sem significar, contudo, que sejam obras regionalistas, pois tais elementos

figuram como elementos que marcam uma relação de pertencimento. A tentativa

de formação identidades locais, especialmente aquelas permeadas de traços

simbólicos, é percebida na narrativa, pois no romance, de uma forma geral, é mais

intrigante entender a vida humana, das mais variadas maneiras, tendo em vista que

nesse gênero são apresentadas as pessoas e seus modos de vida.

Pensando nisso, é que estudar as identidades a partir da narrativa como

fazem muitos dos escritores dos estudos culturais, por exemplo, Edward Said, torna

mais evidente a existência de confrontos identitários, uma vez que isso coloca

diversas identidades num mesmo cenário, agindo sobre determinado mundo social.

É, portanto, um instrumento cultural que age na construção das identidades sociais.

Segundo Luiz Paulo da Moita Lopes, as narrativas, ao apresentarem aspectos da

vida em sociedade e das relações do homem com o outro, criam determinados

sentidos de identidade.

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Lopes (2002, p. 59) afirma que a narrativa apresenta dois aspectos

principais. Vejamos a citação que se segue:

A enunciação da narrativa representa, por um lado, uma exceção ao mundo como ele é, isto é, uma exceção ao cânone cultural, e, por outro, sua natureza dramática, que possibilita vermos as personagens e os interlocutores, por extensão, atuando no drama da vida, na negociação de suas identidades, oferecendo a possibilidade de refletir sobre o mundo social.

Dessa maneira, é que se vê no estudo da narrativa, especialmente do

romance, uma possibilidade de se verificar como se dá a formação das identidades

de um povo, uma vez que é nesse gênero discursivo que se observam as

personagens, na representação da vida do homem atuando em seu espaço social,

pois é nas relações sociais que as questões identitárias são postas em pauta. Sendo

o romance um tipo de organização discursiva é que se percebe nele a possibilidade

de realização desse estudo, buscando enfatizar a relação existente entre o discurso

e a construção das identidades, tendo em vista que a narrativa é uma forma de ação

no mundo por intermédio do discurso. Isso é possível porque o discurso é uma

forma de manifestação social, através do qual, numa relação de alteridade, as

identidades são formadas.

Assim, é possível afirmar que é através das relações sociais e históricas

que os discursos são definidos, o que implica em dizer também que é nessa relação

que as identidades são reveladas, o que nos faz perceber que os indivíduos, nessas

relações sociais, não são homogêneos, daí a complexidade das identidades, pois

estas coexistem no mesmo sujeito e vêm à tona, mediante determinadas práticas

discursivas em que ele atua e de seu posicionamento diante delas.

Pode-se notar, com isso, que nem todas as nossas identidades são postas

em pauta em determinado momento. É importante lembrar também que tais

identidades não são fixas, pois mudam sempre que se faz necessário tornarem-se

compreensíveis para o outro, em determinada relação discursiva, pois se modificam

nos vários contextos em que o indivíduo atua. Além disso, elas também não são

puras, pois se misturam a outras com as interações dos sujeitos em determinadas

situações discursivas. Elas são, portanto, identidades híbridas.

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Sobre a narrativa e a construção das identidades Lopes (2002, p. 64) afirma

ainda que

No processo de construção das identidades sociais, mediado pelo discurso, as narrativas, como formas de organizar o discurso através das quais agimos no mundo social, têm sido entendidas como desempenhando um papel central no modo como aprendemos a construir nossas identidades na vida social. Ou seja, as narrativas são instrumentos que usamos para fazer sentido do mundo a nossa volta e, portanto, de quem somos neste mundo.

Vista dessa maneira é que se compreende a narrativa como um dos

melhores caminhos para a observação de como as identidades são constituídas,

pois apresenta vários contextos sociais, nos quais atuam vários indivíduos em suas

múltiplas identidades, o que nos faz perceber, através das vivências das mais

variadas personagens, quão fragmentadas são essas identidades, principalmente as

que são construídas em vários contextos sociais.

Pensando o romance como uma forma de discurso, é interessante

mencionar a ideia de Tomaz Tadeu da Silva (2000, p. 17), em Identidade e

diferença: “os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a

partir dos quais os indivíduos podem se posicionar”. Dessa forma, podemos dizer

que a narrativa, especificamente o romance, ajuda na formação de determinadas

identidades, sejam elas sociais, de gênero, dentre outras, apresentando o sujeito em

seus vários posicionamentos diante das suas práticas sociais.

Hall (1994, p. 13) afirma que se sentimos que temos uma identidade

unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma

cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora narrativa do eu. Essa

concepção nos faz refletir sobre a idéia de que não há identidade única, o que pode

haver é um convencimento do indivíduo a respeito de uma identidade fixa, que não

significa ser verdadeira. A partir disso é que nesta pesquisa trabalhamos com a

noção de que as identidades não são fixas, mas são formadas ao longo da

convivência do indivíduo na sociedade, isto é, de sua convivência com o outro.

Hall (1994, p. 9) apresenta, ainda, a idéia de que as identidades estão

sendo descentradas. As identidades vão se descentrando a partir da entrada de

novas identidades. Esse processo de descentramento pode ser facilmente

comprovado no romance pelas personagens, mediante as diversas relações que

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elas estabelecem na narrativa. Nas narrativas analisadas nesta pesquisa, podemos

comprovar isso pelo fato de serem ambientadas em uma região de fronteiras: o

Acre. Na fronteira há a possibilidade de entrada e saída de novas identidades, o que

causa esse descentramento. Na narrativa de Bastos podemos observar como isso

ocorre. Vejamos:

Estava provado. A terra não tinha amor ao seu dono. Com as suas florestas desgrenhadas e as suas sombras lascivas, preferia entregar-se ao extrangeiro que vinha do Brasil com o cheiro do mar nas carnes rijas. Cada vez chegava mais gente do Ceará. A terra ali inacessível e áspera. Os rios passavam velozes procurando o leito. Os cearenses também. E a terra parecia mais mansa. (BASTOS, p. 47)

Nessa citação podemos notar a chegada e a saída das pessoas em

decorrência de sua relação com o espaço em que vivem. Observamos, com isso,

que a relação do homem com a terra é de hostilidade. Aquele que outrora era

considerado dono é expulso dela pela chegada de um estranho, que se adapta à

terra.

No romance de Medeiros, A represa, apesar de não vermos essa referência

à fronteira, vemos a exposição das consequências do processo de colonização do

Território, o que também causa descentramento, como vemos na citação a seguir:

É certo que o desbravamento da Amazônia é uma aventura da raça. Mas a sua colonização fulminante é uma obra de saudade. O Território do Acre, a sua parte mais remota, é a saudade da terra distante. Na subida de rios tortos, buscando destinos incertos, os barracões, fincados nas partes mais altas das margens, ostentam nomes evocativos do nordeste. É a presença das serras vestidas de azul, do mar bravio riscado pela vela das jangadas, dos cenários rurais tostados pelo calor infernal; enfim, de toda aquela vida distante, renunciada pelo impulso da conquista que deu ao país a segunda fase das bandeiras. (MEDEIROS, 1942, p. 21)

Os dois fragmentos retirados das narrativas aqui estudadas são amostras

desse descentramento das identidades. São exemplos de que nas regiões de

fronteira as identidades tornam-se fragmentadas pelas mudanças que os indivíduos

sofrem, desencadeadas pela necessidade de entrada ou saída do espaço em que se

encontram.

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Hall desenvolve sua reflexão sobre o descentramento considerando a

fragmentação das sociedades modernas, o que ocasiona uma crise de identidade.

Dessa forma, podemos dizer que as identidades possuem um caráter dinâmico, não

podendo ser compreendidas como algo imutável, tendo em vista que se baseiam na

diversidade. Além disso, é importante tratar a identidade como algo que é produzido

a partir de uma espacialidade e de uma etnicidade, o que faz com que o sujeito

realize diversas interpretações do mundo a partir desse contexto.

As narrativas Certos caminhos do mundo - romance do Acre, de Abguar

Bastos, e A represa - romance da Amazônia, de Océlio de Medeiros, que são aqui

analisadas levam a esse olhar, pois elas não retratam apenas o ficcional ambientado

em um dado momento histórico, mas criam relações, entrelaçam personagens,

identidades e fatos, que dão às narrativas o caráter de romances que buscam

expressar determinadas identidades, reveladas num dado momento histórico e

numa determinada espacialidade.

Quando tratamos desses aspectos estamos também chamando a atenção

para as noções de tempo e de espaço que permeiam tanto a história, quanto a

questão da busca das identidades. Isso se torna válido a partir do momento em que

se tem consciência de que as identidades são constituídas a partir de determinados

posicionamentos do sujeito em seu discurso em relação ao tempo e ao espaço em

que vive, isto é, o contexto histórico.

Ao tratarmos dessas noções é importante levar em consideração que

quando falamos de identidade devemos observar o conceito de diferença que está

imbricado ao primeiro. A diferença permite que sejam aceitas num mesmo contexto

identidades ditas dessemelhantes. Isso permite ao sujeito sua identificação dentro

de um determinado espaço.

Sendo assim, é com base nos conceitos expostos até aqui, que será

analisado como se dá a formação das identidades através do estudo da narrativa.

Para isso, partiremos do princípio de que narrar determinadas histórias é uma

maneira de retratar a realidade de um tempo e de um espaço. É talvez por isso que

se conta determinada narrativa e não outra.

Narrar é uma maneira de nos posicionarmos diante do mundo e como as

pessoas se sentem em relação a determinado contexto ou situação social. Nas

narrativas são apresentadas as personagens em suas relações com outros

participantes das situações de fala. Isto se torna importante, visto que, segundo

Page 21: Entre Rios, Cidades e Florestas - Edilene Ferreira

21

Bakhtin, é na alteridade, nas relações dialógicas, através da voz do interlocutor que

as histórias podem ser confirmadas ou não. Daí dizer-se que, a partir das narrativas,

é possível observar como se dá a formação das identidades, tendo em vista que isso

se dá nas relações sociais.

É importante mencionar que é nos conceitos de Bakhtin acerca da

linguagem que buscamos fundamentação para estudar sobre como ocorre a

representação das identidades numa forma discursiva específica que é o romance, o

qual dialoga constantemente com a sociedade. Para isso, deve-se lembrar das

diversas ideologias que o perpassam, a sua especificidade perante uma situação de

produção específica, observando ainda que não estamos submetendo os discursos

estudados a nenhuma teoria pronta e acabada, uma vez que não se pode perder de

vista sua complexidade. Assim, a interação com o outro no mundo social é

fundamental, pois o ser humano, como já mencionado anteriormente, é constituído

através da alteridade, o que faz com que se perceba no seu discurso o discurso de

outrem. Essa interação com o outro ocasiona uma constante relação de construção

de identidades.

Sendo o gênero textual que apresenta a realidade como deveria ser, a

narrativa atem-se a narrar no presente o que acontece no passado, o que faz dela

um forte instrumento de reflexão acerca da realidade e das identidades. Além disso,

permite ao leitor perceber uma descrição das personagens e do narrador em suas

relações, ações, cenário, o objetivo da narrativa e o conflito apresentado.

Segundo Carlos Reis (p. 81, 82), a narração constitui-se num campo de

reflexão narratológica, implicando desde os mecanismos formais da enunciação até

a ponderação de tipologias narrativas. Afirma também que é possível equacionar a

problemática da narração à luz das teorias bakhtinianas sobre a condição dialógica e

pluridiscursiva da linguagem. Desta maneira concebe também a narrativa como

prática interativa, a partir da relação entre o narrador e o narratário, considerando

que a narração pode ser influenciada por atitudes de valoração, ideologias,

comportamentos éticos, dentre outros, via a subjetividade do narrador, o que acaba

por evidenciar o caráter pluridiscursivo da enunciação narrativa. Nessa perspectiva

surgem diversas possibilidades que são capazes de superar descrições

fragmentárias, que reduzem o processo narrativo. Com isso, é possível fazer uma

análise da narrativa com a perspectiva do discurso, uma vez que, no romance, estão

Page 22: Entre Rios, Cidades e Florestas - Edilene Ferreira

22

em pauta o modo da narração, o sujeito que a realiza e a perspectiva adotada por

ele.

Não podemos deixar de lado as categorias da narrativa, as quais nos

possibilitam o entendimento de como a narrativa está organizada, tendo em vista

que cada uma delas contribui para a constituição dos discursos e da narração em si.

Além disso, é importante mencionar que a narrativa apresenta também

todas as mudanças que podem ocorrer na sociedade e as influências que esta pode

exercer sobre os fatos. Pensando nisso, estudar as identidades a partir da narrativa

é uma forma de se perceber os diversos caminhos que elas percorrem para serem

formadas.

Na região amazônica a busca das identidades se dá de forma bem

particular, tendo em vista que a base dessa busca está na reafirmação dos

elementos que se destacam na região, especialmente aqueles ligados à relação do

homem com o seu semelhante e com a natureza, a qual é resultado da consciência

que ele tem da realidade.

Na região amazônica, o processo de formação histórica do povo se deu a

partir da miscigenação de vários povos, são eles: o índio, habitante típico da região,

que, muitas vezes, é injustiçado, sendo esquecido, nesse processo; os imigrantes

estrangeiros, como os holandeses, os sírios, libaneses, asiáticos, os bolivianos e

peruanos, da fronteira com o Brasil; e os nordestinos, que vieram em maior

quantidade, em decorrência da necessidade imediata de mão-de-obra nos seringais

para trabalharem na extração da borracha.

Segundo María Verônica Secreto (2007, p.40), a imigração dos nordestinos

para a Amazônia era parte de um plano para alargar o território como antes tinham

feito os bandeirantes, ocasionando um amplo projeto de colonização. A justificativa

eram as secas que atingiam o nordeste. No entanto, o que aconteceu foi bem

diferente do que se propunha. Tendo a borracha tornado-se um produto tão valioso,

em decorrência da Segunda Guerra Mundial, a ideia era prover os seringais de mão-

de-obra barata. Daí, o que antes era um projeto de colonização passou ao

cumprimento de um intenso processo de exploração do homem pelo próprio homem.

Das famílias que viriam inteiras para povoar a Amazônia, vieram apenas os homens,

sozinhos, extrair a borracha e adquirir dívidas infinitas com os donos dos seringais.

Diante desse contexto, que se relaciona à formação do homem da

Amazônia observamos os reflexos causados na literatura, o que dá às obras escritas

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23

na Amazônia, ou sobre a Amazônia, características muito particulares como a

tendência à apresentação do homem, da natureza local, dos costumes, etc.

Entretanto, é importante mencionar que embora retrate a realidade local e a relação

do homem com a natureza, muitas vezes, essa literatura nega alguns de seus

elementos, por exemplo, os que compõem a formação do homem dessa região.

Sabendo-se que na formação desse homem estão o índio, os imigrantes

nordestinos, em sua maioria, e os estrangeiros, verificamos a pouca referência ao

elemento indígena, o que se constitui em uma injustiça com esses povos que,

muitas vezes, foram massacrados em decorrência da exploração da borracha.

Essa omissão também pode ser observada nos romances analisados nesse

trabalho: Certos caminhos do mundo – romance do Acre e A represa – romance

da Amazônia, os quais apresentam o homem amazônida como sendo fruto somente

da imigração, negando, com isso, a presença de seu primeiro habitante: o índio, que

é mencionado poucas vezes, dando a impressão de que são somente parte de uma

paisagem local. Essa questão será mais bem discutida adiante nas análises das

obras.

Embora haja essa falha em relação à formação do homem, há uma

descrição realista da Amazônia, a qual não é retratada como um simples cenário.

Algumas vezes ela aparece personificada nas figuras do rio e da floresta, outra

aparece como reflexo do próprio homem, o que torna a relação deste com a

natureza um dos aspectos marcantes da literatura da região, desde os primeiros

textos escritos, sejam literários ou não. Embora A represa e Certos caminhos do

mundo, façam uma referência bastante evidente à cidade de Rio Branco na época

da sua formação apresentam também claramente essa relação do homem com a

natureza.

O cenário visto nas diversas obras da literatura amazônica em geral é a

natureza, definida a partir da dicotomia inferno x paraíso. Ora ela é apresentada

como um lugar hostil, que não permite ao homem viver dignamente, ora como um

eldorado, lugar de esperanças, onde as pessoas pensam encontrar infinitas

riquezas. Essas duas formas de olhar a Amazônia podem ser explicadas a partir de

determinados pontos focos, uma vez que se tratarmos a partir do olhar do

seringueiro, o nordestino, que veio para a região agenciado, com promessas de

condições melhores de vida, veremos uma natureza na qual se encontram muitos

perigos. Por outro lado, se olharmos pelo viés do seringalista, que veio para explorar

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não só a terra, mas também o próprio homem, veremos um lugar muito promissor e

cheio de esperanças de riquezas.

Essa tendência da literatura amazônica de expressar o tom local é evidente

nas obras Certos caminhos do mundo – romance do Acre e A represa –

romance da Amazônia. Estas duas narrativas de ficção dedicam parte de suas

páginas a expressar a história do Acre, reforçando muitas ideias que foram

apresentadas desde os primeiros textos sobre a região. Nessas narrativas, vê-se a

descrição de um espaço completamente estranho ao homem, o qual sofre toda a

hostilidade do lugar onde habita. Porém, isso também pode ser considerado uma

forma de afirmação da identidade, como se observa na citação a seguir:

[...] sendo minha tese básica a de que as histórias estão no cerne daquilo que dizem os exploradores e os romancistas acerca das regiões estranhas do mundo; elas também se tornam o método usado pelos povos colonizados para afirmar sua identidade e existência histórica própria deles (SAID, 1995, p.12).

Com isso, a partir das ideias expostas por Edward Said, podemos confirmar

a nossa tese de que através das narrativas, das histórias que os povos contam há

uma tentativa de firmar suas identidades, sua existência. No caso da Amazônia, a

história de um povo que por muito tempo foi explorado de diversas maneiras. Dessa

forma, podemos afirmar que o objetivo deste trabalho consiste em investigar como

se dá a busca da identidade amazônica por esses povos que foram hostilizados, que

passaram grandes conflitos, mas que, ainda assim, conseguiram afirmar sua

existência histórica.

Sendo assim, partindo das noções de identidade e discurso apresentadas

ao longo deste trabalho, o nosso fim é expor as principais ideias que as obras

expressam no que diz respeito a discurso e identidade, considerando os modos de

apresentação da realidade. Além disso, levaremos em consideração o fato de os

escritores serem homens que têm determinado conhecimento da Amazônia, pois

nasceram na região e viveram nela, tendo, portanto, conhecimento não só do

imaginário cultural da região, mas também da realidade vivenciada pelo povo da

localidade.

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25

1.2 LITERATURA E IDENTIDADE

Sempre que se fala na noção de identidade, pensa-se em algo que

necessita ser recuperado, buscado, construído, resgatado. Assim, pode-se dizer que

identidade é uma busca. É importante lembrar que se fala em identidade quando se

sente a necessidade de comprová-la. No livro A identidade cultural na pós-

modernidade, Stuart Hall discute a questão da identidade cultural no que ele chama

de modernidade tardia, na tentativa de responder algumas indagações,

principalmente no que diz respeito à crise de identidade. Ele questiona se realmente

há uma crise de identidade e quais são as consequências de tal crise.

Essas ideias, frutos dos estudos culturais, podem ser complementadas

pelo pensamento bakhtiniano, o qual afirma que a identidade de um povo nasce das

produções discursivas, fruto de projetos ideológicos. Dessa forma, isso nos leva a

perceber que o povo amazônico possui não uma, mas várias identidades que serão

observadas a partir dos romances A represa – romance da Amazônia e Certos

caminhos do mundo – romance do Acre. Podemos perceber, segundo as idéias

do teórico, que as identidades são construídas a partir de um processo de interação

social que criam um constante movimento de diálogo e alteridade entre

interlocutores.

Segundo Kathrin Woodward, uma das formas pelas quais as identidades

estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos.

Levando em consideração a afirmação, é possível dizer que em Certos caminhos

do mundo – romance do Acre, o que o autor faz é tentar estabelecer as identidades

do povo acreano, mediante a explanação de acontecimentos históricos como a

migração dos nordestinos para a região, a rivalidade com os bolivianos e a presença

de personagens históricas. No decorrer das descrições destas personagens,

principalmente dos nordestinos, percebemos que pouco a pouco sua presença vai

sendo incorporada pela população acreana, o que não significa que eles

esqueceram ou perderam sua identidade. Podemos afirmar, ao contrário, que a

identidade do povo acreano é formada também a partir da incorporação da

identidade de outros povos.

É interessante notar que muitos autores acreanos, assim como Abguar

Bastos e Océlio de Medeiros tentam reafirmar a identidade do povo, não só do Acre,

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26

mas da Amazônia, buscando suas fontes no passado, o que permite a produção de

novas identidades.

Assim como Abguar Bastos, Océlio de Medeiros faz uso do passado

histórico do Acre de um período semelhante ao descrito na obra de Bastos,

especialmente o período que corresponde ao declínio do primeiro ciclo da borracha

e ascensão do segundo ciclo, porém sua postura também exclui o indígena, embora

grande parte do enredo de A represa se passe no espaço da floresta. Nesse

romance é narrada as angústias dos seringueiros ao lado do Coronel Belarmino,

seringalista que via o seringal Iracema declinar sem nada poder fazer. Em

decorrência disso, todos foram levados a procurar novas formas de sobrevivência. O

narrador mostra o seringal sob o signo da decadência, colocando os seus

moradores, seringueiro e seringalista, num mesmo patamar social, no caso a

decadência social e moral.

Bastos e Medeiros utilizam em suas narrativas momentos significativos,

passados num momento histórico em que a decadência da borracha marca a

oposição entre o seringal e a cidade. Ambas mostram a cidade e a descrevem,

expondo toda a mediocridade das pessoas, os problemas enfrentados, etc. Com

isso, eles descrevem em suas narrativas momentos bem particulares da história do

Acre.

Essa tentativa de formar uma identidade apresentada em grande parte da

literatura que expressa a Amazônia vem acompanhando projetos ideológicos de

vários momentos da literatura brasileira, desde as suas origens até o movimento

modernista e seus desdobramentos. Desde os primeiros textos produzidos no Brasil,

nos tempos ainda da Colônia, observa-se que a literatura segue duas tendências: a

primeira desejava criar uma literatura, cujo princípio era a imitação do que era

produzido na Europa, por se acreditar que os textos produzidos lá tinham uma

tradição literária que levaria nossa literatura a ter o mesmo prestígio. A segunda

tendência preocupava-se em produzir textos que fortalecessem a construção de

uma identidade local, que primasse pelas temáticas da terra. Esta tendência

prevaleceu ao longo de muitos estilos literários, porém foi mais marcante em dois

momentos: no Romantismo, no século XIX, e no Modernismo, no século XX.

No Romantismo a busca da identidade evidenciava-se a partir da expressão

do homem local, de uma linguagem nacional e a exaltação da natureza. O homem

nacional era o índio, uma vez que ele representava, para os escritores, o que havia

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27

de mais nacional, porém ele ainda era muito “europeizado”, tendo em vista que as

principais características apresentadas giravam em torno de aspectos corteses,

típicos dos cavaleiros europeus. Outro aspecto interessante, é que a terra era

representada também como símbolo do nacionalismo, sendo objeto de um forte

ufanismo.

Alguns anos depois, já no Modernismo, esse projeto de busca de uma

identidade nacional voltou à tona, com alguns aspectos diferenciadores, apesar de

percebemos que os elementos caracterizadores são também o homem, a linguagem

e a terra. O homem nacional apresentado não é mais o índio, mas um homem

formado a partir das três raças constituintes do homem brasileiro: o índio, o negro e

o branco.

A linguagem dos textos literários escritos nessa época tentava retratar o

cotidiano, os falares dos vários segmentos, das classes sociais e o modo de falar do

povo, no seu dia-a-dia.

Caminho semelhante é observado na literatura que expressa a Amazônia,

que como parte da literatura brasileira, apresenta nas suas diversas formas de

representação, desde as primeiras manifestações, o homem e a cor local, motivo

pelo qual, muitas narrativas amazônicas podem ser usadas como mostruário da

cultura da região que transita entre os discursos sobre inferno e/ou paraíso, cujo

objeto de apresentação quase sempre é a exuberante floresta em detrimento do

homem que nela habita.

Nisso está o diferencial de Abguar Bastos e Océlio de Medeiros que de

maneira singular apresentam os aspectos que dizem respeito à relação do homem

com a floresta e também expõem muitos fatos relacionados à formação das cidades

acreanas.

Segundo Loureiro (1995, p. 33), o sentido de identidade corresponde ao

autoconhecimento, autoestima, consciência do próprio valor, conjugados à

consciência da própria inserção no conjunto da sociedade nacional e, mais

amplamente, na sociedade dos homens. A sociedade amazônica tendo consciência

de si mesma, reconhece-se com relação inter-humana, inter-social e ao mesmo

tempo com a natureza e a história

Na produção literária amazônica, essa busca apresentada por Loureiro é o

que se percebe no modo de ser do homem da Amazônia em face de sua identidade

que é marcada principalmente por uma tradição formal que preenche as concepções

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28

sobre a floresta com uma ideologia de paraíso e inferno, como se percebe nas

crônicas e outras criações do primeiro momento, ou a busca pelo reconhecimento

dos elementos que formam a sua realidade cultural e histórica.

A Amazônia é uma terra onde operam milhares de contrastes: ao lado da

riqueza da fauna, da flora e dos grandes rios, vê-se uma grande miséria humana;

pessoas que estão nestas terras muito mais por um acaso do destino do que por

vontade própria. Muitos desses homens tornaram-se frágeis diante da grandeza dos

rios e da floresta.

A Amazônia começa a ser comentada na época em que seus rios

começaram a ser navegados, por volta do século dezesseis, época em que

navegantes europeus, decidiram se aventurar nessa região, em busca de riquezas.

Destaquemos as expedições de Francisco de Orellana, ocorrida em 1542, a qual

ficou conhecida através de Frei Gaspar de Carvajal, cronista da expedição. Essa

expedição pode ser considerada um desdobramento da expedição de Gonzalo

Pizarro, governador da Província de Quito, realizada em 1541. Em 1581, houve a

expedição de Pedro Ursua e Lopo de Aguirre, registrada pelo Capitão Altamirano,

Francisco Vasquéz e Pedrarias de Almesto. Depois desses, muitos outros se

aventuraram pelos rios da Amazônia, os quais são difíceis de navegar e levaram

muitos desses aventureiros à morte.

Desde esse tempo, a hostilidade do local em relação ao homem já se

tornava evidente. Grandes rios, grandes florestas compunham um cenário que se

apresentava imponente a esses homens, particularizando a localidade. Neste

imenso cenário estava o bem e o mal de todos que decidiam se aventurar por essas

terras. Essa Amazônia, palco de tantos sonhos e penúrias, é cenário para uma

literatura ainda em busca de reconhecimento, que tenta firmar sua identidade.

Percebem-se, nessa Amazônia, textos literários voltados para os elementos

da região: homem, floresta, rios difíceis de serem navegados, quem sabe inspirados

na oposição firmada pelo impacto causado pela grandiosidade da floresta em face

da pequenez do ser humano. É salutar mencionar que nessa literatura que expressa

a Amazônia o foco é, em geral, a contemplação da beleza dos rios, da floresta e a

apresentação de um homem local, do qual nem sempre são expressos todos os

elementos étnicos que o formaram.

Como já afirmamos anteriormente, dentre os muitos escritores que usaram

esse imaginário amazônico povoado por grandes rios e magníficas matas destacam-

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29

se Abguar Bastos, paraense, e Océlio de Medeiros, acreano nascido na cidade de

Xapuri. As obras escritas por ambos retratam um recorte da vida da sociedade

acreana em um período singular da história que vai desde o primeiro ciclo da

borracha, apogeu e declínio, até a ascensão do segundo ciclo, em decorrência da

Segunda Guerra Mundial. Nessa época, as primeiras cidades acreanas estavam em

formação.

De Abguar Bastos damos destaque a Certos caminhos do mundo –

romance do Acre. A obra apresenta, com riqueza de detalhes, aspectos que vão

desde a Revolução Acreana, à vinda dos nordestinos, destacando-se a queda dos

preços da borracha, mesclados com um plano amoroso, no qual é exposto o

romance de Solon e Rubina, que também será abordado neste trabalho. De Océlio

de Medeiros, destacamos A represa – romance da Amazônia, em que são

narrados fatos num mesmo período histórico, porém, ficção e história fundem-se

num único plano.

1.3 TRAJETÓRIAS DOS AUTORES

Para localizar o leitor no tempo e no espaço da produção das obras

estudadas serão apresentadas neste tópico as trajetórias dos dois intelectuais

amazônicos aqui estudados.

Abguar Bastos (1902-1995), como intelectual que participou ativamente da

construção de um projeto da história nacional e do projeto estético/ideológico do

Modernismo na Amazônia, figura como um dos grandes nomes dessa região, uma

vez que ele foi um dos que tentaram estabelecer uma literatura de expressão

amazônica, o que o levou a escrever diversas narrativas ficcionais. Ele

foi romancista, poeta, folclorista, sociólogo, historiador, conferencista,

teatrólogo, jornalista, tradutor, político, administrador e etnólogo. Com uma vasta

obra literária, destaca-se como um dos maiores nomes da história literária

amazônica. Sobressai-se, ainda, como um autor que encarna uma visão "de dentro"

da Amazônia sem, entretanto, desvincular-se das influências com o modernismo que

tão profundamente marcou o período de formação no contexto cultural da cidade de

Belém.

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Bastos lançou o manifesto Flaminaçu, que em tupi (flami-n'-assú) significa

"grande chama", sob influência do Manifesto pau-brasil, de Oswald de Andrade. O

objetivo do manifesto, além de combater os representantes do passadismo literário

da região amazônica, era também convocar os intelectuais paraenses para o

movimento renovador iniciado em São Paulo e que na Amazônia deveria ganhar

feições próprias, dadas as peculiaridades da região.

Seu primeiro romance foi Terra de Icamiaba (1931), publicado em 1930 sob

o título de A Amazônia que ninguém sabe, romance de tese, o qual é considerado

um livro de intenções simbólicas e Certos caminhos do mundo: romance do

Acre (1936), também ambientado no Acre. Nesse romance aparecem muitos

aspectos da sociedade acreana, como a rivalidade que existia entre os dois lados de

Rio Branco: Penápolis e Empresa, os problemas sociais da época, além de fatos

históricos, tais como a Revolução Acreana e a migração nordestina para a

localidade, todos os fatos entrelaçados pelo conturbado romance de Solon e Rubina.

Conhecedor da realidade amazônica, por estar inserido nela, Abguar Bastos

possui uma obra riquíssima, que retrata não só a grandiosidade da Amazônia, mas

também retrata o homem e sua relação com a natureza. Nisso, percebemos que sua

narrativa Certos caminhos do mundo: romance do Acre é um retrato desse

cenário, que funciona como uma amostragem da cultura local.

Observamos que Abguar Bastos apresenta, numa mistura perfeita de

história e ficção. Nessa ambientação histórica nos textos do ficcionista, refletem-se

os contornos do imaginário amazônico através de uma evocação da memória

cultural dos antigos habitantes frente ao encontro com o nordestino e o boliviano,

mas não somente isso; enfatiza também a relação do homem com o seu espaço.

Aqui também se faz necessário apresentar a trajetória de Océlio de

Medeiros1. Nascido na histórica cidade de Xapuri, município noroeste do Estado do

Acre no dia 09 de dezembro de 1917. Océlio de Medeiros foi advogado por

imperativo de sobrevivência física e Professor Universitário, pela necessidade de

convivência intelectual. Seus pais são o Major João Felipe de Medeiros e D.

Dulcinéia Duarte Cardoso de Medeiros, integrantes da burguesia latifundiária do

ouro negro que participaram da obra histórica da colonização do Noroeste, com

1 ZANNINI, Iris Célia Cabanelas. Fragmento da Cultura Acreana. São Luís, 1989. p. 139, 140).

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quartel general em Xapuri. Às vésperas da revolução de 1930, sua família atingida

pela decadência econômica da borracha emigrou para Belém, no Estado do Pará.

Na capital paraense, completou seus estudos primários. Terminou o curso

secundário e pré-jurídico no “Ginásio Paraense”. Diplomou-se como professor

primário pela Escola Normal do Pará. Sob o pavor das perseguições políticas

estudantis que surgiam com o advento do Estado Novo, transferiu-se para o Rio de

Janeiro, permanecendo na antiga Capital da República por apenas dois anos.

Retorna ao Acre, após aperfeiçoar seus conhecimentos pedagógicos, para em Rio

Branco, dirigir o Departamento de Educação e Cultura, presidir o 1º Conselho

Técnico de Educação, lecionar Pedagogia e dirigir o jornal oficial “O Acre”. Implantou

a Escola Ambulante como as de modelos australianos. Permaneceu na terra natal

durante pouco mais de dois anos. Após isso, tentou novamente fixar-se no Rio de

Janeiro, a partir de 1942. Desde esse ano projetou-se escrevendo obras

especializadas de administração e política partidária.

No setor de Serviço Público, de fiscal ingressou na carreira de Técnico de

Administração do DASP. Seu cargo, conquistado em concorrido concurso público de

provas, títulos e defesa de tese, permitiu-lhe o exercício de várias funções de

assessoria, quer no Poder Legislativo, tanto na Câmara como no Senado, quer no

poder Executivo. Transferido do DASP para o Ministério da Fazenda, foi designado

para servir na Delegacia do Tesouro Brasileiro no Exterior, em New York, nos

Estados Unidos, durante quase cinco anos. Matriculou-se na “The Columbia

University” e daí transferiu-se para a “The New York University”. Nesta após

apresentar uma tese sobre o Sistema Tributário Brasileiro, obteve seu “Master’s”

(MPA-NYU-1954).

No setor especializado, escreveu as seguintes obras: Territórios Federais,

Administração Territorial, O Governo e a Administração dos Territórios

Federais, O Governo Municipal no Brasil. Dentre as obras de sua autoria

destacam-se: A Margem do Planejamento Econômico da Amazônia,

Municipalização de Serviços, Problemas Fundamentais dos Municípios. No

campo da literatura, além de A represa, escreveu Fronteira Noroeste e Jamaxi: A

poesia do Acre”.

Exerceu ainda a função de Assessor de Secretário da Secretaria da

Indústria, Comércio e Turismo do Governo do Distrito Federal. Lançou também sua

obra poética completa, intitulada Cantos do Acre, compreendendo os seguintes

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32

volumes: Cantos primitivos, Cantos Heróicos, Cantos Diáspora do Espaço

Interior, Tantas Estrofes e a Xapuri. No prelo, as obras: Baladas depois dos

Balanços para Chico Mendes, Só Brasília, Super Quadras, Poemas

Psicodélicos e Poemas Verdes e o Canto Brabo (Autobiografia decanônica do

primeiro amor).

Océlio de Medeiros passou seus últimos dias em Brasília. Ele morreu no dia

quatro de março de 2008, deixando-nos um grande legado. Era um homem de

talentos valiosos, por isso brilhou em muitas das áreas nas quais atuou, mas por sua

irreverência acabou incomodando a muitos e sendo incompreendido. Por sua obra e

por ter sido o primeiro acreano a escrever um romance sobre o Acre merece ser

lembrado sempre.

A partir das trajetórias dos dois escritores, podemos traçar um perfil dos

intelectuais da Amazônia. Longe de serem unicamente romancistas são pessoas que

exerceram, em geral, cargos públicos, foram políticos, historiadores dentre outras

atividades diferentes da literatura, o que nos leva à explicação do motivo que os faz

escrever narrativas com o foco em terceira pessoa e com um teor realista tão forte.

Tanto Abguar Bastos, quanto Océlio de Medeiros são modelos dos

intelectuais da época, os quais geralmente não são apenas romancistas. Contudo,

conhecem a realidade da região e, por conta disso, conseguem retratá-la de forma

realística, o que pode também ser considerado como uma forte marca da literatura

amazônica, na qual a realidade e o imaginário do povo figuram lado a lado.

1.3.2 As obras

Neste tópico será realizada uma breve apresentação das obras analisadas,

de modo a dar conhecimento ao leitor sobre alguns aspectos que se fazem

necessários.

Com um modo particular de narrar, Abguar Bastos apresenta ao seu leitor,

em Certos caminhos do mundo – romance do Acre, um texto que se alicerça na

construção de um projeto de história local que tem por base as vivências e o

imaginário do povo da Amazônia. Ele lança seu olhar sobre o espaço dessa região,

talvez, com a intenção de reafirmar determinados tipos das localidades amazônicas,

em especial o Acre. Além disso, ele traça muitos percursos feitos pelos habitantes,

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33

através dos rios, tão difíceis de navegar, o que reforça a situação de isolamento em

que se encontram os povos da região. É a partir disso que podemos pensar como a

apresentação dessa Amazônia permeada de pessoas, com um modo muito

particular de viver, um espaço cheio de perigos e hostilidades, tudo associado aos

fatores históricos presentes, podem ser considerados como uma tentativa de

reafirmação das identidades.

Com o narrador em terceira pessoa, Certos caminhos do mundo –

romance do Acre é uma obra que reflete uma Amazônia mais urbanizada,

especificamente a Amazônia acreana, mas o narrador dedica algumas páginas a

narrar fatos dos primeiros anos da história do Acre, por exemplo, a época da

Revolução Acreana, quando co-habitavam índios, nordestinos e bolivianos.

Podemos explicar isso, a partir da ideia de José Ribamar Bessa Freire (2008).

Segundo ele, o espaço amazônico foi ocupado pelo que ele chama de “povos-

testemunhas”, os quais viveram na Amazônia antes da chegada do europeu, fato

que é encoberto pelos herdeiros dos conquistadores. Isso gera a ruptura da

continuidade espacial entre a sociedade mestiça e o que havia antes.

Quanto à cidade, esta é apresentada com suas formações específicas,

suas gentes, seus modos de vida. Rio Branco, no início do século XX é uma cidade,

que embora ainda modesta, já tem problemas que se tornam maiores à medida que

a cidade vai crescendo e se modernizando. É apresentada também uma natureza

hostil, através de acontecimentos históricos e da descrição da relação do homem

com essa natureza. Dessa forma, podemos afirmar que o narrador faz um paralelo

entre a natureza e a cidade. Esta num plano que podemos chamar de ficcional,

aquela num plano histórico, voltado para a narração das relações entre nordestinos e

bolivianos, no início da constituição do território.

Esses povos são apresentados pelo que se compreende na obra, entre o

primeiro e o segundo ciclos da borracha. Nesse período, segundo o historiador

Carlos Corrêa Teixeira, no livro Servidão humana na selva: o aviamento e o

barracão nos seringais da Amazônia (2009, p. 22), havia na região uma grande

carência de mão-de-obra. Dessa forma, diante da necessidade de se extrair grandes

quantidades de borracha, pensou-se em várias soluções, como utilizar a mão-de-

obra indígena ou estrangeira. Entretanto, a solução veio do Nordeste brasileiro, de

onde foram transferidas cerca de quinhentas mil pessoas em menos de trinta anos.

Tal população, forçada a deixar o Nordeste em função das fortes secas, era

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formada, em grande parte, por indivíduos que perderam suas lavouras e criações.

Isso os obrigou, desde seus lugares de origem a assumirem dívidas, adiantamentos,

com seus empreiteiros, que os tornariam cativos dos seringais.

A partir desses dados, podemos observar que em Certos caminhos do

mundo: romance do Acre há um retrato bem realista das penúrias sofridas pelos

nordestinos nos seringais amazônicos até a fundação das cidades. Através disso, é

possível afirma que a obra apresenta de forma clara como se dava a relação do

homem com esse espaço, seja rural ou urbano, e também com o outro. Vejamos a

citação:

Entre as doenças do corpo havia uma, que, si não era também do corpo atuava nêle. Não assaltava: insinuava-se, distilava-se, gôta por gôta. Tomava conta da sua vítima, lentamente, como um anestésico. Apresentava-se sem ruído e nem silêncio a pressentia. Era a melancolia da distancia, mal de que sofreram os primeiros degredados da costa brasílica, os soldados portugueses da colonização e os africanos desenterrados da Costa do Ouro. Surpreendendo as trágicas lutas do futuro, o destino armou o cearense com uma qualidade digna de relevo: a resistência. Assim fez para que o esmorecimento não o possuísse, nem a incerteza, nem o langor, nem o desanimo, nada que lhe paralisasse as energias. Resistir. Resistir é que era, reagindo e atacando. Rios diluviais, chuvas coléricas, árvores tentaculares; na frente o paroxismos solar e na retaguarda o estridor das feras, eis o espetáculo inicial de vida do vale do Purus ao vale do Juruá. Para não ser devorado era preciso fincar o pé e não escorregar no devoramento. Por isto, o cearense resistiu. Agüentou o estrépito das intempéries e a sua esqualidez granítica é que assombrou o boliviano, fez a independência e fundou um estado. (BASTOS, p. 53)

Observemos que o narrador exalta as qualidades do cearense e nisto atribui

à sua força a adaptação e resistência na Amazônia. Isso lembra a tese evolucionista

que diz que “só os mais fortes sobrevivem”. O cearense mesmo magro, vencido na

vida, resiste às adversidades e instala-se no território.

Outro aspecto que se faz necessário mencionar é modo como ele descreve

a situação do indígena no território. Ele não atribui ao próprio homem a sua expulsão

da terra, mas aponta como responsáveis os elementos geográficos da região. Prova

disso podemos observar na seguinte citação:

Pouco a pouco o boliviano foi sentindo o desamôr das plagas adúlteras. Cada vez mais a sua taciturna indiferença tornava o vale alheio aos seus

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carinhos. Pelas veias impetuosas duma gigantesca potamografia as águas arremessavam os índios para o ocidente. O boliviano parecia extrangeiro. O cearense parecia o dono da casa. (Bastos, p. 47)

Podemos observar aqui que com a chegada do cearense, um elemento

novo na terra, os que já habitavam essa região acabaram sendo expulsos pelos

elementos formadores da geografia do lugar: o boliviano pela indiferença da terra, o

índio pelas águas.

Dentro de um processo de formação identitária, é possível perceber que

pela mobilidade, pelas idas e vindas, o sujeito acaba tornando-se descentrado

fragmentado. Os índios sofreram um processo de diáspora, foram expulsos. Os

bolivianos, ao passo que foram colocados na condição de estrangeiros também se

retiraram da terra. Com isso, é possível afirmar que houve um processo de

desestabilização da identidade do indígena e do boliviano. Fora da terra ambos

passaram à condição de estrangeiros. Dessa forma, passam a habitar as margens

dos discursos.

Verifica-se com isso que no discurso do narrador há uma interpretação que

parte de certo etnocentrismo sobre as identidades dos habitantes da Amazônia

acreana. É possível observar que ele de maneira clara, mas não tão simples, narra

diversos fatos, fazendo um percurso que vai da ficção à história, entrelaçando-as.

Nesse caminho, narra acontecimentos, descreve personagens tanto históricas

quanto ficcionais. É muito interessante o modo como o narrador descreve esse

processo de mudança, isto é, essa tomada da terra pelo elemento recém-chegado.

Em Certos Caminhos do mundo: romance do Acre há uma descrição do

que foi a Revolução Acreana, que resultou na tomada do Acre das mãos dos

bolivianos. Nesse conflito seringueiros e seringalistas revolucionários partiram para a

luta em seis de agosto de 1902, na cidade de Xapuri. A luta armada ocorreu até 24

de janeiro de 1903, data em que os brasileiros retomaram o poder e reinstalaram o

Estado Independente do Acre.

No início do século XX, no Acre havia um grande contingente humano, a

maioria deles indígenas, também muitos imigrantes, nordestinos e alguns

estrangeiros, e bolivianos. Entretanto, em seu romance, como já mencionamos,

Abguar Bastos dá mais destaque aos nordestinos e aos bolivianos. Conforme vemos

na citação abaixo:

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Dentro do Acre, os que transpunham suas inacreditáveis fronteiras encontravam, aqui e acolá, homens de côr branca, sujos, magros, um pouco ferozes. Vinham do Brasil e se diziam filhos duma terra muito longe que se chamava Ceará. Os bolivianos não deixavam de comentar a presença desses selvagens e ainda que já parecessem tribus, (tão importantes iam se tornando seus agrupamentos), não sobrava tempo para que fossem examinados seus propósitos. (BASTOS, p. 44)

Observemos a partir dessa citação que os dois povos são apresentados

sem se estabelecer uma relação de pertencimento ao espaço, pois eram ambos

ocupantes de um mesmo espaço, sem serem típicos da região. Com isso, é histórico

que, em decorrência desse grande número de pessoas, a Bolívia não se apossou

das terras acreanas, ou tinha dificuldades para isso, pois muitos brasileiros estavam

aqui com o intuito de trabalhar.

No romance a referência ao indígena, é, em geral, da maneira como já foi

apresentado ou sob a dominação do homem branco e a exploração de que eram

vítimas, como vemos em: “- Tudo é questão de transporte, mas os índios nos

ajudarão. Dois mil ou três mil índios trabalharão para nós, governaremos as tribos.”

(BASTOS, p. 26)

Além disso, faz-se necessário fazer uma referência a um fato histórico:

em 1899, quando já havia um aglomerado considerável de brasileiros em terras

acreanas, a Bolívia instala um posto no vilarejo de Puerto Alonso para que fossem

cobrados impostos pela produção de borracha, que em sua maioria, era enviada

para Manaus e Belém pelos rios de difícil navegação desta parte da Amazônia.

Essas duas cidades é que abasteciam os seringais com os aviamentos, era também

onde muitos iam gastar o dinheiro que ganhavam. Como se observa na obra:

“Enquanto no Pará ou no Amazonas o ricaço do Acre exibe faustosas

prodigalidades, o acreano que o conhece, sorri. (BASTOS, p. 55)

A apresentação de alguns fatos históricos na obra de Abguar Bastos

demonstra que há uma preocupação em expressar um discurso que fixe

determinada identidade, especificamente aquela em que o homem da Amazônia é

tratado como um ser formado a partir, não de uma, mas de várias identidades, uma

vez que são vários os povos que formaram o acreano. Com isso, observa-se que os

indivíduos não são unificados.

Apresentando aspectos de uma narrativa histórica, Certos Caminhos do

Mundo: romance do Acre se sobressai exatamente por ter um modo particular de

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apresentar os elementos de pertença: o tom e a cor local, especialmente no que

concerne à descrição do lugar. Abguar Bastos não apresenta unicamente o

seringueiro ou o imigrante nordestino, o homem simplesmente como rival da floresta,

mas vai deste o momento de chegada de tal imigrante até a formação da cidade.

Aí ele apresenta muito da história da formação do território acreano. Dessa

forma, a trama deixa transparecer um misto de história e ficção, isto é, são

apresentados aspectos históricos do Acre do início do século associados a uma

trama de amores e uma série de intrigas, que, além de prender a atenção do leitor,

enfatizam várias identidades.

Esta ideia de que o homem tem várias identidades está de acordo com o

que expõe Hall (2004), ao afirmar que o sujeito previamente vivido como tendo uma

identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de

uma, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas, o

próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas

identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático.

Escrito na década de 1930, Certos caminhos do mundo – romance do

Acre apresenta características semelhantes aos romances escritos na mesma

época. Podemos mencionar, por exemplo, o fato de esses romances, escritos na

época da emergência do romance regional nordestino, fizeram perceber que existem

várias realidades nacionais, revelando as diferentes formações discursivas do país,

através das literaturas produzidas em diferentes espaços.

Além da narração desses elementos históricos, na obra Certos Caminhos

do mundo: romance do Acre é narrada a história de Solon, que é mesclada por

uma série de intrigas, e o amor da mulata Rubina. Solon é Filho do coronel João

Gonçalves. Ele herdara uma quantia em dinheiro do pai, porém perde boa parte da

fortuna para o holandês, Ronie, o qual é apresentado a Solon pelo amigo Assunção.

O holandês é descrito como tendo “grandes recursos, homem de trabalho com

ideias largas e planos dignos de atenção”. (BASTOS, p. 19).

Observemos com a presença dessa personagem, a referência a presença

de imigrantes estrangeiros, que também vieram para a Amazônia com o objetivo de

enriquecer. É através de Ronie que Solon sofre profunda e definitiva

desestabilização. Enganado pelo sócio, vê-se sem recursos. Foi enganado pela

ingenuidade e talvez por nutrir certo interesse pela esposa daquele, a senhora

Chandla, que também participou de toda a trama para enganar Solon. Chandla e o

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marido articularam tudo. Ela, demonstrando certo interesse por Solon, consegue

enganá-lo, colocando em prática os planos do marido. Logo que Solon e Ronie

fecharam negócio, este partiu e as notícias que relatavam problemas, “dificuldades

trágicas”, como podemos observar no trecho a seguir:

Chegaram as primeiras notícias. O senhor Ronie dava conta de vários atropelos e surpresas. Falava em “dificuldade trágicas” e “seguras esperanças”. E nada mais adiantava. Solon sobressaltou-se. Lembrou-se da visita e começou a considerar os planos do Sr. Ronie como uma esperteza. Viu-se, de repente, pobre. Não dormiu nessa noite, com uma grande cólera no coração. (BASTOS, p.28)

Como vemos, Solon resolve ir ao seu encontro, mas Ronie dá algumas

desculpas e se faz de ofendido para continuar enganando o sócio. O diálogo entre

os dois revela a falta de caráter do holandês que parece ser capaz de tudo para

alcançar seus objetivos, ao mentir para o sócio e, ainda, fazer-se de ofendido com

sua presença. A ingenuidade de Solon ajuda na empreitada. Vejamos a citação

abaixo:

Quando chegou ao primeiro barracão junto ao morro do Capicpi, o holandês veio recebê-lo. Foi logo perguntando: - Por que veio? Quem ficou em Belém para receber os produtos? Não recebeu minha carta mês passado? - Sim. Mas tive vontade de ver essas coisas com meus próprios olhos. - Está desconfiado de mim? - Não. Nem penso nisso. Você como vai? - Muito bem. (BASTOS, p. 29)

A partir desse diálogo, podemos perceber as intenções nada boas de Ronie.

Mesmo com a presença de Solon, o holandês consegue enganá-lo, uma vez que,

mesmo sendo um estrangeiro, parecia conhecer muito bem os espaços que

percorria.

Após perceber que fora enganado Solon muda completamente suas

atitudes: “tinha os olhos mais duros, a voz mais forte, as atitudes mais enérgicas, o

sorriso mais reservado, parecia um homem de ação.” (BASTOS, p. 42). Essa

mudança expressa também uma mudança da identidade de Solon: de herdeiro do

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rico coronel ele passa a ser o comandante de um navio, passa de senhor a

empregado.

Depois disso, ele passa a guiar pelas águas dos rios amazônicos o navio

República, de propriedade dos irmãos Marinhos. Em uma das suas viagens encontra

Rubina, uma mulher bonita, que fugiu do marido e vive com Fadul, conforme

informações que Solon recebe de um turco.

O narrador apresenta Rubina como uma mulher que não segue regras. Ela,

mesmo sendo mulher, que na época deveria seguir os comportamentos

determinados pela sociedade, não o faz. Ao contrário disso, foge do marido e vive

uma situação condenada pela sociedade.

Solon apaixonou-se por Rubina desde que a conheceu. Entretanto, as

diferenças entre as duas personagens são bem marcantes: ele herdeiro de coronel,

agora comandante de um navio e nascido na virtuosa Penápolis; ela uma mulher

prostituída, fugitiva do marido, amásia de um turco, além de “filha da viciada

Empresa”. As localidades onde cada um nasceu marcam suas identidades, seu

modo de vida, determinam seus comportamentos.

O romance vai muito bem, até que Rubina vicia-se em coca, depois de

reencontrar a “Princesa Negra”, ex-prostituta que agora é modista e também viciada

em coca, o que era comum na época. Sólon para retirar Rubina do vício leva-a a

uma viagem no República, porém na embarcação estava Jorge, que oferece o pó a

Rubina, ela não resiste e acaba indo ao camarote do homem, porém Sólon sabendo

do fato, vai até lá e encontra a mulher tomada pela coca. Ele aponta uma arma para

os dois, mas não consegue atirar. Quando o navio chega a um trecho difícil da

viagem, embora Solon já tenha passado com sucesso por ali, o navio naufraga. Os

dois, Solon e Rubina, terminam em uma praia.

É importante mencionar eu Rio Branco mesmo ainda em formação já sofria

com o problema da droga. Por ser uma região de fronteira a entrada e saída das

drogas acaba por ser facilitado, problema que até hoje é muito comum nessas

regiões.

Outro fato importante é que Solon é sempre apresentado como superior,

tanto por sua condição de homem, como por sua posição social: comandante do

navio, e, além disso, é filho de Penápolis, o que o localiza num espaço físico

privilegiado.

Na obra, a tentativa de revelar a identidade do povo acreano não é

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representada somente pelo romance das personagens, mas também pelos fatos

históricos que marcaram a formação do povo, especialmente a Revolução Acreana e

a vinda dos nordestinos para o Acre, o que já foi mencionado. Esses fatos são

representados num plano que poderíamos chamar de histórico, no qual vemos

narrada também a discórdia que permeava a vida dos moradores de Penápolis e de

Empresa, que hoje correspondem a 1º e 2º Distritos respectivamente.

Divididas não só pelo rio, Penápolis e Empresa são tratadas como opostas

entre si, uma vez que toda a promiscuidade e os vícios são descritos como sendo

típicos de Empresa, e a virtude, de Penápolis. Assim, conforme já foi mencionado,

há dois planos, que são entrelaçados, uma vez que percebemos que no plano

ficcional há uma representação desses dois lados da cidade, representados

simbolicamente pelo romance de Solon e Rubina, o qual é conturbado, pois todas as

vezes que a mulher comete algum deslize, ele faz referência ao fato de ela ser filha

de “Empresa”. Com isso, nessas duas personagens percebemos duas identidades

distintas, marcados pelos mesmos traços que marcam as diferenças entre os dois

espaços: Penápolis e Empresa. Essas diferenças os levam a diversas divergências.

A partir disso, vemos reveladas as várias identidades desses sujeitos.

No discurso de Solon, apresentado a seguir, fica clara a sua opinião acerca

de Rubina. Percebe-se que a seu ver a identidade de uma pessoa é marcada pela

questão do espaço, conforme afirma, uma vez que, segundo ele, o comportamento

de Rubina é da maneira como é porque ela é “filha da Empresa, lugar das diversões,

das festas, das bebedeiras, das perdições. Sendo assim, não haveria nada de

surpreendente em seu comportamento.

Perdida! E como houvesse compreendido, duma vez para sempre, que ela

era uma filha do mundo ingrato e estranho nada se pode roubar sem

castigo, pôs-se, com pena, a alisar-lhe os cabelos.

E carregando-a novamente, foi arrastando-a, arrastando-a, até sumir na

mata pelo caminho dos bichos. (BASTOS, p. 251.)

As personagens são permeadas por marcas identitárias que perpassam as

condições de classes. Especialmente em Empresa, o narrador apresenta os tipos

que habitavam o lugar. Segundo ele, eram os seringueiros, os oficiais de polícia e os

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comandantes de navios. Em torno desses tipos estavam os comerciantes, os agiotas

e as mulheres. Na obra, observam-se também as identidades definidas por questões

de espaço, por exemplo, a já mencionada divergência entre os habitantes da cidade.

Há entre eles muito mais do que um choque no que concerne ao comportamento do

outro. Embora sejam filhos da mesma terra, ambos são de lados diferentes do rio, o

que faz com que suas identidades sejam marcadas por outros elementos típicos do

local onde nasceram. Vemos com isso, a descrição da formação da cidade de Rio

Branco, que dividida pelo rio Acre apresenta identidades distintas em cada lado.

Solon e Rubina são representações disso. Ele procura o que lhe parece certo, ela

não se preocupa com isso. Eles têm, portanto, comportamentos diferentes.

Podemos dizer que aqui temos um belo exemplo de diferença de identidades, uma

vez que o caráter de cada um foi forjado pelos problemas que enfrentaram ao longo

da vida. Solon por ser enganado pelo sócio, Rubina pelos sofrimentos amorosos.

Quanto à obra A represa – romance da Amazônia, esta é dividida em

dezesseis capítulos. O romance de Océlio de Medeiros inicia-se na cidade de

Xapuri, de onde são apresentados fatos do cotidiano da cidade, os moradores

típicos do local, portanto, as primeiras personagens, dentre as quais se destaca

Antonico que vai morar no Iracema, seringal do coronel Belarmino. A narrativa é

marcada, conforme as palavras do próprio autor, como romance propositadamente

descritivo, no qual predomina o registro da ocupação do território acreano. Com isso,

o romance registra em média uns 20 anos da vida do Acre, indo do período de

decadência do primeiro ciclo da borracha, coincidindo com os primeiros anos da

Segunda Guerra Mundial que desencadeou a conhecida batalha da borracha.

No seringal Iracema, Antonico conhece a filha do coronel por quem se

apaixona, porém não é correspondido. O seringal encontra-se em decadência por

causa da queda dos preços da borracha. Para não terem que ir embora, no

momento em que o coronel Belarmino está acertando as contas, os seringueiros

pedem para ficar no seringal e transformá-lo em uma colônia de agricultura, o que é

visto pelo coronel com bons olhos. O coronel, numa atitude desesperada, divide o

seringal em lotes e todos os seringueiros acabam ficando. Nesse intervalo, Antonico

vai estudar em Belém. No início todos estão se dando muito bem com a agricultura,

mas depois de um tempo, as safras não são mais tão boas, porque os seringueiros

não dominam as técnicas de agricultura e o solo é pobre. Com a chegada das

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chuvas, as coisas começam a ir de mal a pior, até que um repiquete acaba

destruindo o que sobrou no seringal.

Com a alagação, todos são levados para Rio Branco na balsa da prefeitura.

Os moradores do Iracema, mais uma vez enfrentam a desventura, tornam-se agora

flagelados das cheias do Rio Acre. Através disso, evidencia-se a representação da

força da natureza selvagem, especificamente a força das águas. Na cidade, eles são

recebidos pela Comissão de Socorros aos Flagelado das Cheias. Em Rio Branco

aparecem outras personagens, como O Jornalista Amadeu Aguiar, o Manoel Brasil,

o carteiro que lê as correspondências das pessoas da cidade. Dentre eles estava o

chefe de polícia, Donato, que se interessa por Santinha, a qual esta não

corresponde, mas logo se apaixona por Didi, com quem mais tarde se casa.

As coisas na cidade estão indo bem. Porém, na noite do casamento de

Santinha, Donato, responsabiliza Didi pela fuga de alguns prisioneiros e o prende

por isso. Cinco dias após o casamento de Santinha, Antonico chega à cidade, já

formado. Ele compõe uma Comissão de Saneamento. A moça aproveita para pedir-

lhe ajuda para tirar o marido da prisão. Antonico, que ainda está apaixonado por

Santinha pensa em se aproveitar dela, e marca um encontro. Porém, no dia

marcado ela chega com a notícia de que estão todos de volta ao Iracema, pois, com

a Segunda Guerra mundial, os preços da borracha voltam a subir.

A narrativa termina na perspectiva de um futuro melhor para todos os

moradores do Seringal, inclusive para o Coronel Belarmino, que no romance não é

visto como um vilão, ao contrário, percebe-se na obra a ênfase ao pioneirismo do

imigrante, ou melhor, do seringalista, uma vez que se destaca que o coronel

Belarmino veio com os primeiros imigrantes, com Neutel Maia. Com isso, percebe-

se, de certa forma, uma justificativa para a exploração dos trabalhadores, que

parece ser a única maneira de se chegar ao progresso a que o lugar está

determinado.

Em A represa – romance da Amazônia, percebe-se que o que marca a

narrativa é essa destruição que se dá pelas águas. A água funciona como uma

marca de identidade, pois o modo como ela se apresenta determina a maneira de

pensar das pessoas. Em A represa a água tirou a esperança dos moradores do

Iracema, porém traz a esperança com a alta dos preços da borracha. Através

desses deslocamentos, tem-se a superação dos conflitos sociais, das dificuldades,

para a chegada a um patamar superior. Entretanto para que isso aconteça é

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primordial a força da natureza, que determina o destino das pessoas. Assim, a

destruição do Iracema pelas águas enfatiza a mudança de vida das personagens e

também de suas identidades, tendo em vista que foram seringueiros, agricultores,

flagelados, vítimas das águas repentinas do rio Acre, mas agora têm a esperança de

uma vida melhor. Entretanto foi a partir da ideia de águas represadas, com o sentido

de retenção, de prisão, que possibilitou a mudança desse povo, que foi de uma vida

totalmente desventurada para uma perspectiva de uma vida mais promissora.

Não se percebe na obra intenção de denúncia social. Embora se apresente

aspectos desse tipo, há uma presença forte de aspectos relativos à memória, dando

ênfase mais a um caráter documental, como é declarado no prefácio. Há também

um tom descritivo que se sobressai, porém ao lado disso está a crítica que o autor

faz à sociedade acreana da época.

Toda a narrativa se passa no período entre as duas grandes guerras, que

marcaram a ascensão e decadência dos dois ciclos da borracha. Observa-se,

entretanto, como destaca Laélia Rodrigues da Silva, que o tempo se constrói a partir

das idas e vindas dos habitantes do território, do seringal para a cidade e vice versa.

Ela observa, em seu livro Acre: prosa e poesia, que o tempo histórico na narrativa é

motivado por duas guerras internas, que são motivadas por interesses externos: a

revolução acreana e a batalha da borracha.

Em A Represa esse deslocamento se dá de maneira cíclica, uma vez que

se percebe que as personagens iniciam sua trajetória no seringal, vão para a cidade

em busca de refúgio da cheia, e o romance termina com a perspectiva de retorno ao

seringal, onde uma vida promissora as aguarda.

Observando a narrativa sob o prisma econômico, pode-se perceber que a

narrativa acaba se tripartindo da seguinte maneira: o passado de glória, marcado

pela vitória na Revolução Acreana; o segundo é marcado pelo presente de derrota,

da decadência da borracha. É esse presente que faz com que as personagens

sintam falta do passado; e o terceiro momento é apenas sugerido, aparece na obra

por meio da perspectiva de melhorias pelo início do novo surto da borracha. Essa

divisão da narrativa será mais bem detalhada nos próximos capítulos desta

dissertação.

Observa-se em A represa que fatos históricos são apresentados, porém de

maneira sutil, tendo em vista que estes são incorporados à narrativa e muitos deles

são vivenciados pelas personagens e pela descrição do espaço. Tais fatos como a

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queda da borracha e os nomes de algumas personagens que fizeram parte da

história do Acre são mencionados, como podemos perceber na citação a seguir:

- Saiba esperar! Olhe que a borracha ainda há de ter bom preço!... - É a única esperança que ainda nos retém aqui. Se não fosse isso, o Acre era novamente deserto... As cidades estão cada vez mais se despovoando... A família do Ramalho baixou para Belém... O Américo Dutra voltou ao Ceará... Cada um juntou o resto do que teve. E Toda a nossa guerra deu em nada. - E onde anda o Zé Galdino? - Está pedindo esmola na porta da Agência do Banco do Brasil em Belém... Foi ele quem financiou tudo... O Coronel Plácido de Castro, que libertou o Acre foi assassinado... Pediu, antes de morrer, que lhe mandassem o coração para a noiva e lhe transportassem os ossos para o Rio Grande do Sul, pois aqui não queria ficar mais nem depois de morto... (MEDEIROS, 1942, p. 15)

O teor mais ficcional da narrativa de Medeiros se dá pelo fato de ele

apresentar os fatos incorporados a personagens também ficcionais. É narrada na

obra a história de Antonico, Santinha, coronel Belarmino e os seringueiros do

Iracema, seringal de propriedade do coronel. A narrativa é dividida em dois espaços:

o primeiro é no próprio seringal, onde todos vivem muitos infortúnios, que vão desde

a decadência da borracha, no primeiro ciclo, à subida dos preços, dando início ao

segundo ciclo. O segundo espaço é a cidade de Rio Branco, no início de sua

formação. Seguindo esse percurso, pode-se perceber que há na narrativa um

espaço que se apresenta de maneira cíclica, tendo em vista que começa no seringal

Iracema, há um período na cidade e termina novamente no seringal, porém este

último fica apenas num plano idealizado, já que não há fatos narrados nesse terceiro

momento, há a perspectiva de um novo tempo, de esperanças renovadas.

Na obra o teor documental se faz presente de maneira muito evidente. Os

fatos são narrados em meio à descrição da cidade e dos tipos humanos que

habitavam a Rio Branco de um período que, pela descrição, vai aproximadamente

de 1920, período em que a extração da borracha já estava em crise, a 1940, início

da Segunda Guerra, quando os preços da borracha sobem novamente.

A partir dos aspectos apresentados nas obras, um fator que merece

destaque e que fica explícito nas obras analisadas é a questão dos deslocamentos.

O ir e vir das pessoas marca suas vidas de modo a lhes fazer mudar de identidade.

Dessa forma, os deslocamentos poderão ser vistos como um significativo movimento

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que modificará as ações romanescas. Vemos esses deslocamentos tanto em Certos

caminhos do mundo - romance do Acre, quanto em A represa – romance da

Amazônia. Na primeira podemos enfatizar os deslocamentos das personagens,

Solon e Rubina, que mudam diversas vezes de lugares, o que acarreta também

mudanças para suas vidas. Eles vão e vêm pelos rios da Amazônia, mudando com

isso, suas atitudes, portanto suas identidades.

Em A represa ocorre fato semelhante, mas o deslocamento se dá por parte

de todos os moradores do seringal Iracema: primeiro Antonico, que se desloca

sempre em busca de ascensão social, primeiro para Iracema depois para Belém; em

seguida, todos os outros moradores, em decorrência da enchente, que os obriga a

mudar de lugar para sobreviverem.

Esses deslocamentos ocasionam experiências, muitas vezes,

desconfortantes para as personagens que têm que agir de maneira diversa daquele

que estão habituados. O caso mais claro se dá em Certos caminhos do mundo –

romance do Acre, no qual se observa que Rubina precisa esconder seus desejos,

suas vontades para que as pessoas não desconfiem que ela é viciada em coca.

Outra mudança ocasionada pelo deslocamento é a de Solon, que no navio

República não pode demonstrar carinho por Rubina porque ele ocupa uma posição

social mais elevada. Ficam claras também as relações de gênero, que são

construídas pela sociedade. Rubina, sendo mulher deve comportar-se como tal, não

deve tentar colocar-se em num mesmo patamar que Solon.

Com isso, é possível afirmar que, a partir do momento em que as

personagens decidem manter seus comportamentos, elas estão tentando manter as

identidades que as pessoas acreditam que elas têm e não manter suas próprias

identidades. O objetivo disso é fazer com que as pessoas continuem tendo a mesma

visão em relação a elas. Elas querem manter certa ordem, a qual é imposta pela

sociedade. Rubina está na posição de mulher, Solon de capitão do navio, o que

requer que ambos tenham sempre o comportamento esperado pelos outros. Esse

comportamento é determinado pelo espaço social em que se encontram.

A partir disso, podemos dizer que eles estão em lugar hostil, ou segundo a

teoria de Gaston Bachelard (1993), que aborda o espaço a partir do conceito de

topos, o que será mais detalhado adiante, estão num lugar atópico, isto é, um lugar

onde elas não deveriam estar por apresentar perigos, causar-lhes sofrimentos e

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insatisfações, a partir do momento em que proporciona situações desconfortantes e

conflituosas.

É a partir dessa idéia que observamos que as obras em estudo estão

organizadas seguindo esse princípio. Abguar Bastos teve a preocupação de

apresentar não apenas um aspecto, mas vários aspectos marcantes que nos fazem

perceber que a identidade do homem acreano não está voltada para uma identidade

única, mas para as várias identidades que compõem esse povo. O que evidencia

isso é a mudança de espaço, que vai do rural para o urbano sem fragmentar a obra,

enfatizando que essa mudança faz parte de um todo. Além disso, temos as

personagens, por exemplo, os imigrantes que se transformam em seringueiro, mas

há também a presença de pessoas vindas de outras regiões ou de outros países

para tentar a sorte aqui, o enriquecimento fácil.

Ao falar que muitas personagens apresentadas vêm de outros lugares

observamos a ideia de Tomaz Tadeu da Silva e Stuart Hall, que expõem no livro

Identidade e diferença, que as identidades são formadas a partir de outras

identidades, relativamente ao “forasteiro” ou ao “outro”. Observamos isso na obra de

Abguar Bastos, uma vez que os homens apresentados na obra são pessoas vindas

de muitos lugares. São pessoas que vieram com objetivos particulares, mas que

ajudaram a formar a identidade de nosso povo. Isso foi permitido a partir do contato

do homem com o espaço, com os elementos que o compõem e com o próprio

homem.

Em A represa também se observa tal acepção, uma vez que as

personagens descritas vieram, muitas delas, de outras localidades ou que tiveram

que se deslocar por questões de diversa ordem, muitas delas financeiras, como é o

caso de Antonico, que foi viver com o coronel Belarmino para tentar uma vida

melhor, e depois foi para Belém. Até mesmo os moradores do seringal Iracema

efetuaram vários deslocamentos quando foram conduzidos para a cidade de Rio

branco.

1.4 CONCLUSÃO PARCIAL DO CAPÍTULO PRIMEIRO

Neste primeiro capítulo fizemos a apresentação de algumas teorias que

nortearão os caminhos desta tarefa crítica, especialmente os que se referem aos

Page 47: Entre Rios, Cidades e Florestas - Edilene Ferreira

47

estudos culturais, como os de identidade, espaço, e à linguagem. Iniciamos as

análises das obras, a partir de questões identitárias que se destacam já numa

primeira leitura e pudemos observar que estas estão relacionadas também a

aspectos históricos, ao espaço em que as personagens atuam e a sua relação com

os outros.

No próximo capítulo serão apresentadas algumas informações importantes

acerca da literatura amazônica e procederemos à análise das categorias da

narrativa, enfatizando como esses elementos são organizados nas obras e qual a

sua contribuição no que concerne às questões identitárias.

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48

CAPÍTULO II – UMA LITERATURA NA AMAZÔNIA

2.1 ESPAÇO E VIDA

A vida das pessoas que ocupam o espaço da Amazônia é um capítulo a

parte no contexto brasileiro. O isolamento, as adversidades naturais são elementos

que marcam essa gente desde épocas remotas. Desde os rios até mesmo a terra

não dão muitas facilidades para o homem amazônida.

A Amazônia é uma região extremamente complexa, cheia de contrastes,

diversidade, longe, portanto, de ser homogênea. Habitar os espaços da Amazônia é

há muito tempo um desafio para o homem, pois em decorrência do já mencionado

isolamento e das dificuldades que isso ocasiona, a vida na região acaba por se

tornar uma dura luta diária, especialmente para aqueles que vivem em áreas mais

distantes. Tudo isso é, portanto, a maior marca das vidas dos homens amazônidas.

Esse isolamento torna-se evidente porque, na Amazônia, a maioria dos rios

“corta” as cidades em vez de dar acesso a elas, devido à planície. Além disso, há

muitos perigos, o que fortalece o caráter que desde tempos antigos foi dado à

região: a de um deserto e um inferno verde, que não perdoam ninguém, consumindo

o homem com enfermidades e perigos de toda espécie. A esse respeito, Laélia Silva

afirma que:

Com estigmas de deserto e de inferno verde, e com uma trajetória histórica acentuadamente marcada pela exploração dos recursos naturais, a cultura amazônica tem sido determinada por dois elementos significativos: o isolamento e a busca da identidade. (SILVA, 1998, p. 17)

Conforme Silva, o isolamento e a busca constante da identidade são traços

que se percebem claramente em muitos textos, literários ou não, que têm a

Amazônia como tema. Esses traços devem ser considerados como uma tentativa de

fixar uma identidade amazônica, através de aspectos culturais, sociais e históricos

que são apresentados pela célebre escritora.

Ainda sobre essa questão do isolamento que vive o homem da Amazônia,

Leandro Tocantins faz uma excelente descrição da situação da população dessa

região especificamente aquela que habita o Acre. Vejamos a citação a seguir:

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49

Condenados a um terrível isolamento, os habitantes dessas circunscrições durante muitas décadas suportaram as dificuldades irremovíveis da navegação fluvial, único meio de que dispunham para se comunicarem com os centros de interesse social. a despótica via natural roubava-lhe o mais precioso dos bens: o tempo. Arrastavam-se os dias,os meses,os anos, arrebatados pela tortuosidade dos rios, pelos verões inclementes, pelos empeços do paralelismo hidrográfico. [...] Primeiro, é uma decorrência da psicologia social de um povo que se viu insulado do país e da própria comunidade de seu Território, durante meio século. Somente o alto ganho oferecido pela borracha permitiu o povoamento contínuo, o desbravamento heróico operado pelos nordestinos em rincões tão longínquos, onde as comunicações tardias transformavam o sentido do tempo e das coisas. Trinta a quarenta dias de Belém para alcançar um seringal no alto Purus ou no alto Juruá, ou qualquer de seus tributários, indicam, desde logo, o aspecto marcante do Acre no cenário geográfico do país: a sua posição no espaço, submetida à tirania das distâncias. (TOCANTINS, p. 2000, 145.)

Esse cenário de isolamento no Acre tem diminuído com a construção de

estradas e com a aviação. Entretanto, ainda existem localidades onde o acesso é

difícil e a distância alarga as relações entre as pessoas.

É importante lembrar que nas descrições normalmente feitas da Amazônia

são apresentados grandes contrastes: ao lado da descrição de uma floresta

exuberante, árvores frondosas, rios caudalosos, o próprio eldorado ou paraíso, vê-se

uma região marcada pela hostilidade, pelas enfermidades, um inferno verde,

habitado por animais ferozes e homens hostilizados. Vale notar que ao lado da

riqueza da fauna, da flora e dos grandes rios observa-se uma grande miséria

humana; uma grande quantidade de pessoas que sofrem com as dificuldades

materiais da região.

Em muitos textos produzidos na Amazônia percebe-se a tentativa de fixar

determinadas identidades que são enfatizadas a partir da recorrência de um

discurso que se volta para o passado de constituição das cidades da região e da

relação do homem com o seu meio ou de aspectos heróicos dos pioneiros.

Nesse contexto, o espaço amazônico ocupa uma grande importância. No

caso das narrativas, ele se torna determinante da vida das personagens, definindo o

que cada uma será, como agirá, ou que identidade terá ou que rumo sua vida

tomará. Daí importância dos espaços e sua divisão em espaços físicos, sociais ou

psicológicos.

Sobre isso Carlos Reis e Ana Cristina Lopes afirmam:

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50

Entendido como domínio específico da história, o espaço integra, em primeira instância, os componentes físicos que servem de cenário ao desenrolar da ação e à movimentação das personagens: cenários geográficos, interiores, decorações, objetos etc.; em segunda instância, o conceito de espaço pode ser entendido em sentido translato, abarcando então tanto as atmosferas sociais (espaço social) como até as psicológicas (espaço psicológico). (REIS e LOPES, 1988, p. 204. Grifo do autor)

Assim, a partir da influência que o espaço pode exercer sobre ações das

personagens, é que ele se torna importante categoria da narrativa, pois não só

explicita o que será determinada personagem, mas também o modo como ela vai

agir em um dado momento, pois tudo depende do lugar onde vive. O espaço pode

ainda propiciar à personagem a realização de ações específicas, mesmo que sejam

ações que não fazem parte de seu caráter ou que não seriam possíveis em outro

lugar. Outras vezes, o espaço é apenas factual. Aparece simplesmente pela

necessidade que tem a narrativa de apresentar uma determinada referência, não

apresentando, por isso, nenhuma ligação simbólica com as personagens. Ele

apenas as situa topograficamente. Entretanto, em outras ocasiões, percebemos uma

ligação forte entre o espaço e o estado de espírito da personagem, seus

sentimentos ou seu comportamento, de tal modo que é possível até mesmo

anteciparmos alguns fatos.

Essa apresentação das funções do espaço torna-se necessária a partir do

momento em que, nas narrativas amazônicas, esse elemento, como acontece em

toda narrativa, é fundamental, uma vez que a relação do homem com seu espaço,

seja urbano ou rural, se dá de maneira intensa e estrutural. Além disso, a

constituição das identidades dos sujeitos se revela também a partir da relação que

eles estabelecem com o seu espaço, passando pela ideia de que espaço é o lugar

onde se passam as ações. Além disso, não podemos esquecer que não é possível

considerar somente o lugar físico, mas também os aspectos já mencionados, como

os sociais e psicológicos.

A partir desses conceitos, é que analisaremos os romances Certos

caminhos do mundo – romance do Acre e A represa – romance da Amazônia.

Nessas duas narrativas observa-se a apresentação de três espaços: o primeiro se

concentra na relação do homem em constante guerra com as leis da selva

amazônica, onde a grande marca é a luta pela sobrevivência, em um ambiente que

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51

lhe é hostil. O segundo é a cidade, a qual aparece como o lugar onde se busca o

refúgio, o consolo ou o descanso de longas viagens e trabalhos. Esses espaços,

sejam urbanos ou rurais, são interligados através de um terceiro: o rio. Assim, esses

espaços são apresentados de maneira singular e revelam a tendência a se fazer um

registro da realidade acreana do início do século XX, enfatizando as relações do

homem com seu espaço e com o seu semelhante. Em Certos caminhos do mundo

– romance do Acre vemos um exemplo dessa relação:

Ao distender das cartas corográficas, o Território surge, no desconsolo da distância, com um ar indesejável de Clevelândia ou Fernando de Noronha. Um ar de desterro. Um campo de mortes estúpidas. Tem-se a impressão de fugas insólitas, desfiladeiros, caçadas humanas, furnas de conspiradores e criminosos. O Acre não abriga a satisfação. Procura-se-lhe o âmbito, com desespero, em aflição, mesmo sabendo-se das suas riquezas e dos seus ganhos fabulosos. (BASTOS, p. 54)

O mesmo é possível observar em A represa – romance da Amazônia, no

qual as vidas das personagens são determinadas em muitos aspectos pelos

espaços em que elas estão inseridas. Vejamos:

- Estamos perdidos! A crise acabou o seringal. Primeiro foi a borracha sem preço, os homens indo embora, morte do Beneditão... segundo,os bichos, as capivaras, as sauvas, as chuvas inesperadas estragando os roçados. A terra cansada empecando as plantações. Agora, a alagação veio completar a desgraça matando os roçados e levando as barracas. Tudo debaixo do fundo! Que luta,Santo Deus!Puxa! (Medeiros, 1942, p. 103)

Como pudemos observar o espaço tem grande relevância nessas duas

narrativas, tendo em vista que ele não é apenas um lugar, mas faz parte das vidas

das personagens, influenciando seus modos de vida.

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2.2 AS ÁGUAS E A FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES

Quando falamos do espaço nas narrativas amazônicas é importante notar

que o isolamento em que se encontra o homem é marcado muito pelo modo de vida

do lugar. Por isso, em grande parte dessas narrativas o espaço privilegiado está

ligado à importância das águas, tendo em vista que tudo gira em torno delas, na

forma do rio: o povoamento, as fronteiras, a economia e a sobrevivência. Sobre isso

Samuel Benchimol (1995, p. 17) afirma que na Amazônia “a pátria do homem não é

a terra, mas o rio. A terra não tem expressão humana, porque o homem vive em

função dos rios, dos lagos, furos e paranás”. Sua importância vem do fato de

definirem o modo de vida de determinados lugares e de permitirem, apesar das

dificuldades, os deslocamentos das pessoas nesse tipo de espaço

Em decorrência disso, a navegação torna-se elemento importante nessas

narrativas. Os rios da Amazônia começaram a ser navegados já por volta do século

dezesseis, época em que navegantes europeus, decidiram se aventurar por essas

bandas, em busca de riquezas. Desde esse tempo, a hostilidade do local em relação

ao homem já se tornava evidente. Grandes rios, grandes florestas compunham um

cenário que se apresentava a esses homens, particularizando a localidade. Neste

imenso cenário estava o bem e o mal de todos os que habitavam ou passavam pela

região. Essa Amazônia palco de tantos sonhos e penúrias é, em nossos dias,

cenário para uma literatura que expressa um realidade particular e ainda busca

reconhecimento.

Dessa maneira, analisando as obras Certos caminhos do mundo –

romance do Acre, de Abguar Bastos e A represa – romance da Amazônia, de

Océlio de Medeiros, é possível perceber o quanto isso é marcante na vida do

homem da Amazônia. Na obra de Bastos temos um protagonista que vive da

navegação, o que enfatiza o quanto os rios são um espaço relevante, uma vez que é

por ele que as pessoas que habitam a região entram e saem das cidades. No

romance, o rio é o meio de sobrevivência de Solon, uma vez que ele sobrevive

navegando por suas águas. A relação do homem com o rio é tão forte que em

alguns momentos, na obra, é possível verificar que há uma ligação entre os

sentimentos ou o estado emocional das personagens e esse espaço. Solon, por

exemplo, mudou de vida a partir do momento em que passou a ter uma maior

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ligação com os rios, transformando-se em capitão do navio “República”. O próprio

narrador é quem destaca a sua mudança de personalidade:

Quando lhe perguntavam o que estava fazendo, respondia rispidamente: - Vou para o Acre. Tinha os olhos mais duros, a voz mais forte, as atitudes mais enérgicas, o sorriso mais reservado. Parecia um homem de ação. Para alguma coisa já servira a experiência do Tapajoz. (BASTOS, p. 42)

Solon parece sempre influenciado pelas águas. Em outra ocasião ele

demonstra que suas emoções também mantêm uma forte ligação com o espaço do

rio. Por exemplo, lembrando o paralelismo existente entre natureza e personagem

no romance romântico, o momento em que ele se aborrece com Rubina, coincide

com o momento em eles chegam ao Ajuricaba, uma região onde as águas do rio

Acre são bastante agitadas. Esse lugar é considerado pelos navegantes como um

dos pontos mais difíceis de serem transpostos. Solon e Rubina passaram por essa

região exatamente num momento em que passavam por um conflito interior.

Vejamos um trecho desse conflito:

Solon ia acabar com os dois. Atiraria na cabeça de Jorge. Fuzilaria a mulher pela boca. O braço erguido. O pulso firme. Neste momento a mulher sorriu alheada. De repente, o homem lembrou-se: - ... “Mas, enquanto respirar este ar e dormir sobre estes rios, ah! Não existe nada de mim!... porque este lugar tem febre... e a febre vem...” Vacilou. - Comandante. Ajuricaba à vista! Era a voz do marinheiro. De repente o revólver baixou. ( BASTOS, p. 244) [...] Solon guiava o barco. Ajuricaba aproximava-se. As ondas recochetavam. As vagas subiam e espadanavam. Redemoinhos silvavam na torrente escachoante. (BASTOS, p. 245)

Solon enfrentava os dois piores momentos de sua vida: a decepção com a

amante e a difícil passagem pelo Ajuricaba. Aqui percebemos a relevância do rio

para a personagem. Esse aspecto na Amazônia tem muita expressão não só na

literatura, tendo em vista que é uma questão cultural a valorização dos rios na

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região. Conforme mencionado anteriormente, mesmo de difícil navegação, eles são

o meio de entrada e de saída das isoladas cidades. Com isso, o rio acaba impondo

certo isolamento para o habitante da região, o que também é uma marca da vida do

homem da Amazônia.

Em A represa as águas, na figura do rio, ocupam também um lugar de

destaque, pois transporta o homem para novas perspectivas de vida, por exemplo,

causar a ida dos moradores do Iracema para a cidade, em busca de condições mais

dignas de vida, pois o seringal totalmente inundado, não permite mais a

permanência no lugar. Vejamos a descrição que o narrador faz do rio no momento

da inundação:

O rio parecia um mar. As chuvas da noite ainda mais o alagaram. As barracas restantes tinham sido arrastadas. As hortas, os roçados, os campos estavam inundados. As criações, galinhas e porcos, continuavam morrendo. Só escaparam três bois, que Coronel Belarmino ainda pôde levar para a terra firme. [...] Só barracão, com a água na porta, continuava a resistir. Não foi sem razão que a firma do seringal o construiu ali, naquele lombo do barranco, no cocoruto da margem. O Rancho e o Armazém, situados em lugares mais baixos, já estavam com água a um palmo do soalho, fazendo os ratos escorridos abandonar os esconderijos, mansos de fome. Os homens do rancho amontoavam-se, olhando a curva do rio. Pedro Marreta foi ver a segunda marca. Nada de a água baixar. [..] - Vamos logo, gente! Não demorem para o embarque! Ainda tenho que socorrer outras pessoas. (MEDEIROS, p. 104)

Observemos que as mesmas águas que conduzem para um novo lugar,

forçando- as pessoas a buscarem rumos diferentes para sua vida devolvem as

esperanças quando as personagens decidem voltar para o seringal, após a nova alta

dos preços da borracha.

Antonico viu Santinha sumir-se no escuro. Ficou olhando para aquele vulto que se perdia na dobra da rua, mergulhada na sobra das mangueiras e no escuro da noite. E horas depois, na cadeia em que se tinha sentado antes, ouviu o barulho do motor, levando o pessoal para Iracema, com a tristeza na alma de um rio que perdeu o seu destino... (MEDEIROS, p. 209)

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É importante mencionar que no romance A represa o próprio título remete à

água, metaforicamente, pois, conforme consta na própria narrativa, nele se faz

referência às vidas das pessoas que, em condições adversas, tornam-se

represadas. Com isso, podemos observar que o narrador usa uma expressão

própria das águas para expressar o modo de vida das pessoas. Como afirma em: “A

mata espreitando os arrabaldes, em ondas sinistra, avançaria a qualquer descuido

do trabalho de contê-la, para asfixiar, na sua massa compacta, aquelas vidas

represadas.” (MEDEIROS, 1942, p. 9. Grifo nosso). Nessa citação observamos que

até mesmo um elemento da terra firme, no caso a mata, traz ao homem uma

situação que representa as águas e os rios: a represa. Dessa forma, na narrativa de

Medeiros, vê-se igualmente a relevância do rio, especificamente o rio Acre que é

marcante tanto em espaço rural quanto urbano. É ele um dos grandes responsáveis

pela diversidade cultural e identitária, em virtude de ser através do rio que chegam

as pessoas de outras localidades. No Acre, é bem mais do que isso. Ele divide as

concepções e modos de ser das pessoas:

Empresa à margem direita e Penápolis à margem esquerda do rio Acre defrontam-se e formam Rio Branco, capital do Território. (p. 65) Ao contrário de Empresa, Penápolis, da outra banda, é uma cidade tímida. É o lado da Administração, da Justiça e da Igreja. O seu nome é uma homenagem a Afonso Pena. Zona essencialmente morigerada, rescende a jesuitismo e a burguesia, os seus divertimentos não constrangem ninguém. Às dez horas da noite toca a silêncio. Tudo em Penápolis é doméstico, cerimonioso e familiar, (BASTOS, 1963, p. 69)

Como bem se percebe, o rio é muito mais do que um elemento da natureza.

Ele também contribui para a diversidade que apresentamos em nossa cultura. Essa

diversidade é que permite a percepção de várias identidades. Por meio dele,

observamos como o rio é apresentado na narrativa de Bastos e também quão

verdadeiro é o modo como o autor define a sua obra: “Certos caminhos do mundo

é um romance do homem e do rio.” Essa definição esclarece de forma singular o

significado da obra, que representa muito bem a relação do homem com o rio.

Isso se torna relevante ser mencionado, tendo em vista que, segundo

Leandro Tocantins (2000, p. 276), importante estudioso da Amazônia e seus rios, “o

primado social dos rios, trazendo a marca da geografia singular revela-se nos

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56

múltiplos aspectos da vida amazônica”. Isso revela-nos que o rio faz parte da vida do

homem amazônida de maneira bastante evidente. O mesmo autor afirma que:

[...] o homem, diante do cenário grande demais para a sua pequenez, sente-se impotente, inapto para transformar as energias atuantes no meio em proveito próprio, e lhe avassala o espírito a angústia das distâncias tirânicas que os rio ainda mais aumentam no sinuoso deflúvio. E se torna rendido, senão à terra mas fatalmente ao rio, poderoso gerador de fenômenos sociais. [...] Os caminhos que andam trazem a fortuna ou a desgraça. Quando nas cheias a navegação alcança os sítios mais longínquos, certas vezes as alegrias do feliz acontecimento são toldadas pelas inundações funestas, arrasando culturas agrícolas, tragando barrancos, removendo a pobreza franciscana das barracas, levando o desespero aos lares, e constituindo uma séria ameaça à economia. (TOCANTINS, 2000, p. 276)

Com isso, Leandro Tocantins descreve, em parte, o significado do rio para o

homem da região Amazônica. Esse aspecto pode ser observado tanto em Certos

caminhos do mundo como em A represa. Nessas narrativas o poder avassalador

do rio é um aspecto que se sobressai, uma vez que é a ação do rio Acre que

ocasiona a mudança nas vidas das personagens.

O rio não é tomado apenas enquanto um elemento que corta

geograficamente a cidade, mas enquanto marca das várias identidades que

compõem a região. Dessa forma, os rios na Amazônia comandam a vida2 das

pessoas. Isso se dá porque, como vimos, na região tudo depende dos ciclos dos

rios. As cheias, as vazantes, tudo influencia o modo de vida dos habitantes do lugar.

Tudo gira em torno dele: o povoamento, as fronteiras, a economia, os

deslocamentos e a sobrevivência.

Isso é evidenciado tanto em Certos caminhos do mundo – romance do

Acre, quanto em A represa – romance da Amazônia. Nas duas obras os rios são

um importante caminho seguido pelas personagens, ao ponto de os narradores

usarem expressões que associam a vida das personagens a determinadas

característica dos rios. Medeiros, por exemplo, usa a expressão “vidas represadas”,

conforme mencionado anteriormente.

É importante notar que os rios podem ser considerados como determinantes

da condição das vidas das pessoas, pois representam transitoriedade, por serem

2 Alusão à obra O rio comanda a vida: uma interpretação da Amazônia de Leandro Tocantins.

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57

águas em movimento, segundo exposto em A água e os sonhos: ensaio sobre a

imaginação da matéria, por Gastón Bachelard (ano, 1998, p. 11). Essa

transitoriedade das águas faz com que as personagens tenham comportamentos

que lembrem esse princípio, uma vez que há uma ligação forte entre elas e o espaço

que habitam. Em decorrência disso, as identidades também passam por esse

processo de transitoriedade, principalmente no seu processo de construção.

Dessa forma, pode-se dizer que o rio é um importante espaço apresentado

nos romances estudados, e, enquanto elemento da natureza, desempenha um papel

fundamental para o curso do enredo. Nas duas narrativas o rio Acre apresenta-se

com maior destaque, uma vez que é ele que corta a cidade de Rio Branco, cenário

em que se passa a maioria das ações nas duas narrativas. Ele é quem define o

caráter e o modo de vida de cada habitante da cidade, de acordo com o lado do rio

em que habitam. Os moradores de Empresa, por exemplo, são, na sua maioria,

comerciantes e prostitutas, pessoas que aparentemente são mais livres das

convenções sociais, tendo em vista que esse lado do rio é o lugar onde tudo se pode

fazer. Quem desejar um pouco mais de liberdade é para lá que deve ir. Penápolis é

o local em que os moradores são as pessoas de maior destaque na sociedade. Isso

pode ser observado principalmente pela composição do espaço, pois lá é que estão

localizadas a delegacia, a igreja e outras instituições sociais, o que acaba por não

permitir a mesma liberdade aos moradores, uma vez que os indivíduos devem seguir

as convenções sociais, pois as aparências devem ser mantidas e os

comportamentos precisam ser adequados socialmente.

2.3 NARRATIVA E FORMAÇÃO IDENTITÁRIA

Certos caminhos do mundo – romance do Acre (1936) e A represa –

romance Amazônia (1942) são romances que caracterizam muito bem a sociedade

da época em que foram escritas. Abguar Bastos, apesar de dizer no prefácio de seu

livro que sua intenção não é a documentação, apresenta aspectos, fatos e

personagens que transformam a obra em um documento. Isso acontece porque

muito do que foi aí mostrado por ele passou a ser conhecido como elemento

histórico. É o caso, por exemplo, da tomada do território acreano pelos brasileiros.

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58

Entretanto, é importante mencionar que tudo isso é apresentado com certa

imparcialidade, uma vez que os fatos são narrados por um narrador que vê tudo de

fora, sem expressar opiniões a respeito dos fatos narrados.

A represa apresenta um tom mais crítico, embora no seu prefácio o autor

diga que o livro está “longe de ser um ataque à terra, é uma cinematografia das suas

convulsões sociais”. Ao dizer isso, o autor se sente à vontade para criticar os

moradores e as atitudes das pessoas da sociedade.

Com base nisso, o objetivo deste tópico é fazer uma análise das categorias

da narrativa, percorrendo os caminhos que o narrador faz para apresentar o enredo,

as personagens, o tempo e o espaço e como isso pode expressar determinadas

identidades da amazônica.

Para proceder à análise serão utilizadas as teorias da narrativa,

especialmente as apresentadas por Carlos Reis e as ideias sobre espaço literário de

Gastón Bachelard. Interessam-nos também nesse trabalho os aspectos embasados

nas teorias de Bakhtin acerca da narrativa, referentes à ficção moderna.

A partir desses princípios teóricos, buscaremos analisar

as obras e tentar determinar como esses aspectos estão relacionados aos

processos identitários, verificando como eles contribuem para revelar nas obras uma

identidade que caracterize a Amazônia.

Iniciaremos a análise a partir do foco narrativo, apresentando as relações

estabelecidas entre narrador e leitor e daquele com as personagens. Para isso, é

importante levar em consideração a noção de romance polifônico explicitada por

Bakhtin, o qual afirma que cada um dos elementos que compõem o romance

apresenta suas próprias vozes, o que estabelece a noção de romance polifônico.

Nele cada elemento é dono de consciência própria e de uma visão de mundo que

faz com que gozem de certa autonomia ideológica. Isso tona as personagens donas

de seu próprio discurso e sujeitos de suas trajetórias. A partir desse princípio tem-se

o que Bakhtin chama de romance polifônico, no qual tanto narrador quanto

personagens têm voz própria.

O narrador de Certos caminhos do mundo – romance do Acre, de

Abguar Bastos apresenta um foco em terceira pessoa, com um narrador onisciente,

que tem domínio dos fatos narrados e é capaz de revelar os sentimentos das

personagens, com precisão, embora em alguns momentos ele não faça isso.

Enquanto narrador, ele expõe os fatos, mas permite que as personagens tenham

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voz própria apresentando-os por meio do discurso direto. É assim que o leitor

percebe o que elas pensam, uma vez que seus pensamentos são expressos através

da voz do próprio ator da ação.

Assunção bateu palmas pedindo “gin”. E em seguida: - Não, meninas. Sou proprietário. Tenho as minhas terras e os meus castanhais. O meu lago é do tamanho desta cidade. - Upa!! Fez uma das pequenas, com os olhos querendo pular para a testa. - Ah! Disse a gauchita, admirada. Como é o nome do lago? Não tem nome? Assunção fixou-se em gauchita e perguntou: - Como se chama? - Valquíria. (BASTOS, p. 16)

O narrador, entidade ficcional, que segundo a teoria da narrativa é uma

invenção do autor, entidade real, em Certos caminhos do mundo: romance do

Acre pode ser considerado alter-ego deste. Levando em consideração o fato de o

autor ser historiador, é possível observar que e o narrador, enquanto entidade criada

pelo autor, em muitas partes da narrativa, assume o papel de historiador apenas

relatando os fatos como eles aconteceram. Faz isso em diversos capítulos, nos

quais não há qualquer referência ao ficcional, apenas relatos de acontecimentos

históricos, o que já foi mencionado, como: Revolução Acreana e chegada dos

nordestinos, a expulsão dos bolivianos, dentre outros episódios.

O narrador faz o papel de um historiador em vários capítulos, um exemplo

disso está no capítulo quatro, no qual ele narra todo o processo de colonização do

Acre, desde a chegada dos nordestinos até a expulsão dos bolivianos, as

enfermidades que eram uma realidade constante, etc. Vejamos na citação a seguir

um exemplo disso:

O governo boliviano, então, preparou um golpe mortal. Reduziria aquêle trecho patrimonial a um simples colônia. Aquêles homens que abusavam duma liberdade eu a distancia e as asperezas da terra multiplicavam, passariam, de golpe, para o regime de feudalismo e escravisação. Antes, homens livres, correndo pelas florestas e pelos rios, soltos nas correntezas, donos duma vida privilegiada.agora seriam apenas colonos. E o território foi arrendado ao “Bolivian Syndicate”. (BASTOS, p.49)

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Com a narração desse fato histórico podemos observar que o narrador tem

a preocupação de ser imparcial, assim como um historiador. Ele limita-se a narrar os

fatos como eles aconteceram, ou pelo menos como ele acredita ser, a partir de um

ponto de vista em terceira pessoa.

Em A represa, de Océlio de Medeiros, também há um narrador em terceira

pessoa, que dá voz às personagens e que é onisciente, uma vez que, além de ter

domínio dos fatos, ele apresenta, muitas vezes, os pensamentos ou sentimentos das

personagens. Um dos exemplos disso ocorre quando Antonico chega ao seringal

Iracema e o narrador diz que Araripe, o caixeiro, olha-o com inveja, como se vê a

seguir: “Antonico foi arrumar a bagagem no quarto do caixeiro Araripe. Não demorou

muito. Araripe o observava com inveja. Compreendia que o xapuriense poderia

tomar-lhe o lugar. Falava secamente.” (MEDEIROS, p. 29)

Podemos ver outro exemplo quando fala de Santinha, a filha do Coronel

Belarmino. Vejamos:

Santinha nunca tomou conhecimento de si. Ia à cidade duas vezes por ano, no S.João e no Natal, afim de passar as festas na casa do Dr. Flávio Silveira, inventor de um tal Banco Rural do Acre. Apesar de bem mocinha, ainda não pensava em casamento, ser ter botado o olho em ninguém. Coronel Belarmino não se preocupava com seus passeios a Rio Branco. Tinha a máxima confiança na indiferença de Santinha e na casa do Dr. Flávio, embora todas as filhas deste houvesse casado quando não eram mais de nada. (MEDEIROS, 1942, p. 61)

O fato de o narrador de A represa também apresentar o foco em terceira

pessoa se deve ao fato de que, assim como é o caso de outros escritores da época,

Océlio de Medeiros não era romancista por ofício. Ele mesmo chegou a afirmar, fora

do universo romanesco, que escreveu aquela obra como “vingança” contra a

sociedade acreana. Além disso, a obra tem um declarado teor documental.

A partir dessas reflexões acerca do narrador podemos verificar que se trata

quase de uma lei da literatura acreana esse narrador em terceira pessoa e o caráter

documental de muitas obras. Isso se vê nas duas narrativas aqui analisadas, mas

também em muitas outras narrativas, escritas por escritores em tempos diversos.

É válido ressaltar que o narrador não domina sozinho a narrativa. Ele delega

voz às personagens, por meio do discurso direto. Além disso, muitos fatos são

explicados através das vozes das personagens:

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61

O Mustafa voltou da visita que fez aos depósitos. Vinha decepcionado. Tirou o maço de notas. Remoeu algumas frases de censura. - O pessoal não trabalha mais! Há dez anos atrás o quintal mostrava mais de quinhentas bolas de borracha! Agora só vi umas quatro peles... E essas contas? Não posso esperar!... Paciência, Mustafá! Na próxima semana, o Lindolfo vai me trazer um carregamento. Com essa borracha, pagareis essas contas!... (MEDEIROS, 1942, p. 28)

O narrador apresenta também fatos históricos, porém estes são

apresentados em meio aos fatos ficcionais, como memória das próprias

personagens, entre os diálogos destas, na descrição dos espaços ou na voz do

próprio narrador. Entretanto, não podemos esquecer que, segundo Carlos Reis

(1988, p. 62), o narrador enquanto entidade criada pelo autor pode ter projetadas

sobre ele certas atitudes ideológicas, éticas, culturais, históricas. Vejamos um

exemplo:

O desânimo continuou por muito tempo na planície. A Amazônia não podia livrar-se da derrocada. Em Rio Branco, Manaus e Belém, - as metrópoles da borracha, - os homens do governo procuravam uma solução de emergência. A castanha e a madeira, em alguns rios, amparavam a situação. Verdadeiras massas humanas abandonavam os seringais improvisando a população das cidades amazônicas ou retornando ao Ceará. Dezenas de casas aviadoras abriram falência. Fecharam-se muitas companhias de navegação. Os seringalistas não obtinham créditos. A crise estava no auge. E muitos seringais foram desaparecendo: Humaitá, Catuaba, Floresta, Porvenir, Boa Esperança, Novo Axioma, Califórnia... (MEDEIROS, p. 34)

O narrador descreve, com muita clareza, o processo de decadência pelo

qual passaram muitos seringais do Acre, ocasionado pela queda dos preços da

borracha. Ele descreve as dificuldades que as pessoas enfrentaram nesse período.

No fragmento a seguir é apresentado outro fato histórico de grande relevância para

o Acre:

Desde esse momento começou a lavrar a conspiração. Falava-se em revolução e um brasileiro chamado Plácido de Castro desceu nos rios, fomentando a revolta. Em Caquetá reuniam-se muitos conspiradores. Porém, o centro das operações seria o Xapuri, no Alto Acre. O grosso do movimento seria no Baixo Acre. Os coronéis dos seringais reuniam-se e discutiam. Os cearenses desciam dos “centros”. (MEDEIROS, p. 9)

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O narrador não só apresenta as ações das personagens, mas insere-as

num espaço que é típico da região amazônica, permeado por florestas imensas, rios

caudalosos, perigos de todas as espécies. Esse espaço, muitas vezes, é hostil ao

homem, que sofre com as dificuldades ocasionadas por perigos iminentes.

Quanto à noção de espaço nas narrativas, este será estudado à luz das

teorias de Gaston Bachelard (1993), que analisa o espaço na narrativa a partir da

noção de topos (lugar). Para ele, há três tipos de espaços. Os espaços podem ser

tópicos, quando estão associados à ideia de conforto; podem ser atópicos quando

associados à idéia de desconforto, da insatisfação e podem ser utópicos quando

constituem espaços de desejo. É a movimentação desses variados espaços no

enredamento que desencadeia uma rede de significações. Um mesmo espaço pode

ser, ao longo do enredo, tópico, atópico e utópico. Em A represa, por exemplo, o

seringal tem essa representação, uma vez que as personagens, moradoras do

seringal Iracema, vivem em um lugar que inicialmente pode ser considerado tópico,

seguro. Quando começam os problemas, os baixos preços da borracha e a

enchente, por exemplo, esse espaço passa a ser atópico, um lugar sem segurança.

À medida que isso acontece, os moradores começam a desejar um novo espaço

para substituir aquele, que seria, no caso, a cidade de Rio Branco, a qual se

transforma em um espaço utópico, isto é, desejado. A partir do momento em que

eles saem do seringal Iracema e passam a morar na cidade, o espaço utópico é o

próprio seringal, espaço que é alcançado somente no final da narrativa. Toda essa

movimentação contribui para o processo de construção das identidades das

personagens, especialmente Santinha e sua família, que adquirem uma nova

identidade, diferente daquela que apresentavam outrora, mas isso será aprofundado

em momento oportuno.

Em Certos caminhos do mundo – romance do Acre, o tratamento dado

ao espaço também pode ser definido da mesma forma. Neste romance os espaços

mais frequentes são a floresta, a cidade de Rio Branco e o navio República. A

floresta torna-se mais evidente quando são narrados os fatos históricos. Este espaço

pode ser considerado atópico, pelos perigos que a floresta representa para aquela

população. A cidade de Rio Branco pode ser considerada em determinados

momentos como um espaço tópico, uma vez que representa o lugar de segurança, a

realização do para romance de Solon e Rubina. Porém, este mesmo espaço torna-

se atópico quando Rubina vicia-se em coca e destrói sua relação com ele. No navio

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o espaço é inicialmente tópico para Rubina e para Solon. Porém, após Rubina ceder

ao vício esse mesmo espaço torna-se atópico, pelos perigos que apresenta ao

casal.

Os espaços, nos dois romances, são sempre descritos da maneira o mais

verossímil possível, sendo isso um aspecto marcante nas ações das personagens

que povoam essas duas narrativas. Elas se apresentam como reflexos do espaço

em que vivem ou agem. Muito mais do que um simples lugar de localização, o

espaço exerce nas narrativas a função de auxiliar na construção da identidade dos

moradores da cidade de Rio Branco. Dessa forma, pode-se dizer que a identidade

das pessoas é constituída também pelo espaço em que vivem.

Esse fato chama a atenção tanto no romance de Bastos quanto no de

Medeiros, nos quais é ressaltada a relação do comportamento do homem com o

espaço em que vivem. É importante mencionar que a narrativa de Abguar Bastos

apresenta o espaço, seguindo a orientação dos planos em que está dividida.

Percebemos que no plano histórico o espaço de destaque é a floresta. Já no plano

ficcional o espaço predominante é a cidade e o navio conduzido por Solon pelos rios

amazônicos. A citação a seguir é um exemplo do espaço retratado no plano

histórico:

Estava povoado. A terra não tinha amor ao seu dono. Com suas florestas desgrenhadas e suas sombras lascivas, preferia entregar-se ao extrangeiro que vinha do Brasil com o cheiro do mar nas carnes rijas. Cada vez chegava mais gente do Ceará. A terra ali estava ali mais inacessível e áspera. Os rios passavam velozes procurando o seu leito. Os cearenses também e a terra parecia mais mansa. (BASTOS, p. 47)

O narrador descreve com bastante clareza a hostilidade do espaço da

floresta com relação ao homem que a habita. Ele descreve aqui o processo de

colonização do então Território do Acre, para isso apresenta a forte relação do

homem com o seu espaço, seja esta de amor ou de desamor, de virtude ou de

perdição. Vejamos:

Em se olhando Empresa e Penápolis, é o mesmo que ver o Vício desafiando a Virtude. Quando anoitece os maridos hipócritas e os filhos onanistas abandonam apressadamente as ruas de Empresa, atravessa o rio e somem-se em

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Penápolis, onde moram. É uma forma de serem bom moços, “paradigmas da distinção, da moralidade e da ordem”. Mas os maridos alegres, o celibatários, os rapazes felizes e as mulheres duvidosas, ao cair da noite, saem de Penápolis e desaparecem nos becos de Empresa. (BASTOS, p.70)

Em na citação vemos como é evidente essa relação do homem com o

espaço, uma vez que este é um determinante do comportamento que cada indivíduo

deve ter ou pelo menos aparentar. Observemos que na citação que aqueles que

querem a diversão vão para Empresa ao cair da noite, o lado onde tudo é liberado.

O narrador, não deixa, porém, de destacar o mau caráter das pessoas por viverem

de aparências.

No romance de Océlio de Medeiros, A represa, são apresentados também

dois espaços: um urbano e um rural, interligados pelo rio. Na obra, o narrador

apresenta primeiro a cidade de Xapuri, depois o Seringal Iracema e, por último, a

cidade de Rio Branco, parte que mais se destaca na narrativa, pois é ali que se

observa a mudança no modo de ser das personagens, o que, por consequência

modifica suas identidades. Por exemplo, a formação da cidade o narrador afirma:

“Rio Branco já estava acostumada com essas chegadas. Foram essas chegadas,

nas diversas fases da decadência, que transformaram o seringal em cidade”.

(MEDEIROS, 1942, p. 115). O narrador apresenta aqui a ideia de que foi a partir das

mudanças das pessoas para os lugares mais urbanizados que as cidades se

formaram. Isso nos faz observar que tanto a ação da natureza, quanto as questões

econômicas influenciaram na formação de cidades, o que é natural tendo em vista

que as pessoas sempre buscam melhores condições de vida como se vê narrado

nos romances analisados neste trabalho.

Em A represa essa mudança de espaço faz com que as personagens

sintam-se, muitas vezes, hostilizadas pelo meio em que vivem. Elas vivem sob uma

tensão que as faz sentirem-se inseguras. Nesse ambiente hostil é que acontece

grande parte das ações, tendo em vista que nessa narrativa os perigos não cessam

nem com a mudança de espaço. O espaço tópico, lugar de segurança, parece não

ser atingido, parece estar fora do alcance das personagens. Assim, cabe-lhes

apenas se conformarem com a sua situação. Isso só muda no final da narrativa, na

qual se tem a perspectiva de mudanças quando ocorre a histórica alta dos preços da

borracha.

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A partir dos espaços apresentados nessas duas obras, é possível observar,

que nelas emerge um Acre organizado discursivamente em dualidades: a primeira,

mais geral, porém não menos definida desde o aspecto político-social, é aquela que

estabelece um contraponto entre Empresa e Penápolis, definindo o caráter dos

moradores de cada uma dessas duas localidades. Esta situação é permeada

também por elementos históricos que se destacam. A segunda aparece no plano

ficcional no qual aparecem as personagens com suas ações. Essas dualidades

estão expressas a partir dos espaços apresentados, uma vez que qualquer mudança

destes ocasiona uma diferença na trama.

É importante que se faça a apresentação de como esses espaços aparecem

nos romances, tendo em vista que as mudanças tanto de espaços quanto de

comportamentos das personagens são aspectos essenciais para a sua constituição.

Podemos dizer que em Certos caminhos do mundo o cenário sempre modifica a

condição das personagens. Além disso, como já pudemos observar nesta obra, as

personagens Solon e Rubina, representam a divergências existentes entre

Penápolis e Empresa. A sua relação é tão conturbada quanto à relação dos

habitantes da cidade de Rio Branco. Vejamos a citação abaixo:

- E escolheu justamente o meio mais provável de me afastar... É boa! Não! Estou decidido: ou acaba com o vício ou não quero mais vê-la. - Naturalmente está caído por outra mulher. Os homens são assim. Bem me disse Adélia. - Então vá atrás da Adélia. - Por que me quis? - É a segunda vez que faz a pergunta. Quis porque quis. Agora, fique sabendo, que não quero mais! Aliás, não devia admirar-me. Você é filha de Empresa. - Eu também não devia estranhar. Você é de Penápolis. (BASTOS, p. 186)

Observemos que a divergência que existe na cidade, aparece como parte

da discussão do casal, o qual faz questão de mencionar a origem de cada um como

motivo para os comportamentos desagradáveis vistos no outro. Neles percebemos

duas identidades distintas, marcadas pelos mesmos traços que marcam as

diferenças entre as duas terras: Penápolis e Empresa. Essas diferenças, oriundas

de suas ligações espaciais com a cidade as levam paralelamente a muitas

Page 66: Entre Rios, Cidades e Florestas - Edilene Ferreira

66

divergências. Com isso, no temperamento dos dois também está o modo como

conviviam os moradores da cidade de Rio Branco, naquela época.

Outro aspecto que se faz necessário mencionar é que muito do que se vem

elegendo sobre personagens e espaço pode ser comprovado sinteticamente em

Rubina. Ela é a personagem que mais muda de comportamento, que não se importa

com as convenções.

Algumas mudanças também podem ser observadas em A represa, pois a

partir do momento em que os moradores de Iracema passam a morar na cidade de

Rio Branco, verifica-se a descrição de um espaço que também se mostra a partir da

dualidade entre Penápolis e Empresa. Além da oposição desses dois espaços, há as

divergências políticas entre os moradores da cidade representados por alguns tipos

locais, como políticos, religiosos e poetas. O narrador descreve algumas

personagens. Observemos a citação abaixo:

Rio Branco fica dividida ao meio pelo Acre. No lado esquerdo estão o Palácio do Governo, a Matriz, o Fórum, a Polícia, o Obelisco e o busto de João Pessoa. Aí moram as principais famílias. Esse lado lembra o menino de colégio de padre, cheio de bons costumes, religioso e moralista. No lado direito, em verdadeira contradição, estão as lojas dos sírios gananciosos ocupando quase toda a rua da frente, com fazenda de amostra nas fachadas de madeira das casas baixas, o Pavilhão, as pensões, as casas de jogo, o beco do meretrício, o Hotel Madri e o poeta Juvêncio. Faz lembrar, nos contrastes da terra, o menino perdido, o menino de rua. O rio, separando os dois temperamentos, parece uma permanente censura, um velho experiente, de barbas compridas, que gosta de dar conselhos às crianças. (MEDEIROS, p. 109)

Em A represa é essa representação dual da cidade de Rio Branco que

caracteriza os comportamentos urbanos identitário, os quais são descritos com a

mesma divisão e discórdia que existe entre Empresa e Penápolis. Para isso, o

narrador usa a metáfora do “menino bom” e do “menino mau”, que são

respectivamente Penápolis e Empresa. “O menino bom é sempre quem procura o

menino mau”. (MEDEIROS, p. 110). Dessa forma, a cidade, enquanto um todo

organizado e estruturado, traz à tona seus sentidos de identidade para as

personagens e para o coletivo, isto é, o social.

Segundo De Certeau, “o espaço é o efeito produzido pelas operações que o

orientam, circunstanciam-no, temporalizam-no e o levam a funcionar em unidade

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67

polivalente de programas conflituais ou de proximidades contratuais.” (1998, p. 202).

Ainda segundo De Certeau, o espaço é o lugar em movimento. Com as mudanças

de lugar operadas pelas personagens das duas narrativas aqui estudadas temos a

ideia de constituição dos espaços e de seus sentidos apresentados nas obras.

Dessa forma, podemos observar que o espaço é o lugar praticado, ou seja,

é onde as ações são realizadas. Bem mais do que o marco geográfico onde se

passam as ações, o espaço é responsável pela mudança de comportamento

daqueles que realizam essas ações. Ele faz com que as personagens demonstrem

sempre o que deveriam ser e não o que realmente são e vice-versa. Em outras

palavras, eles criam uma realidade a partir de padrões pré-estabelecidos.

Em Certos caminhos do mundo o espaço representado pelo rio, adquire

grande importância, uma vez que muitas das ações se passam dentro do navio

República. Entretanto, o rio não é só o elemento que transporta as pessoas que

habitam a região, funciona também como meio de sobrevivência da personagem

Solon. Como já mencionamos anteriormente, os rios na Amazônia apresentam uma

realidade extraordinária, tendo em vista que deles depende tudo nessa região: a

formação e a destruição das terras, a inundação, a seca, a economia, o comércio e

até mesmo a destinação de vida e de morte.

Portanto, o que podemos perceber é que o romance de Abguar Bastos

mostra-nos as várias identidades que temos na Amazônia acreana. Embora não

tenha nascido no Acre, pelo fato de pertencer a uma realidade semelhante a nossa,

Belém do Pará, o autor é capaz de apresentar perfeitamente como se deu a

formação desse povo. Além disso, sua obra faz-nos constatar que a constituição de

nossas identidades se deu estruturalmente a partir da diversidade e da diferença. É

bom ressaltar que o modo particular como ele compõe a sua obra, quase poético,

faz-nos ver que Certos caminhos do Mundo não é um simples romance sobre

nossa terra. O seu valor está na expressão apresentada por ele, mostrando que

nossas identidades não estão apenas em quem nós somos, mas têm forte ligação

com o lugar em que vivemos e com os elementos que o compõem esse espaço.

Na intenção de compreender as marcas identitárias presentes nas obras

Certos caminhos do mundo – romance do Acre e A represa – romance da

Amazônia, traçaremos agora um perfil das principais personagens desses dois

textos literários, expondo as características que compõem suas marcas identitárias,

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destacadas pelos constantes deslocamentos através dos rios da Amazônia, sua

relação com o espaço e com os outros seus conterrâneos.

As personagens da obra Certos caminhos do mundo podem ser

consideradas representações de tipos locais. São pessoas que poderiam muito bem

ter habitado realmente a região amazônica. São os moradores do Acre desde a

época da alta da borracha, dos grandes empreendimentos, das uniões duvidosas,

como foi a de Solon e de Ronie. Muitas das personagens podem ser consideradas

representações de toda a gente que historicamente habitou essa região. Muitas

delas são representantes de personagens históricas que viveram realmente na

época da formação do antigo Território do Acre. Percebemos na obra personagens

que se destacam pelo grupo ao qual pertencem, como é o caso dos cearenses e dos

bolivianos que aparecem várias vezes na narrativa tanto como representações

individuais quanto coletivas. Vejamos um exemplo de como o narrador descreve

essas personagens:

Dentro do Acre, os que transpunham suas inacreditáveis fronteiras encontravam, aqui e acolá, homens de côr branca, sujos, magros, um pouco ferozes. Vinham do Brasil e se diziam filhos duma terra muito longe que se chamava Ceará. Os bolivianos não deixavam de comentar a presença desses selvagens e ainda que já parecessem tribus, (tão importantes iam se tornando seus agrupamentos), não sobrava tempo para que fossem examinados seus propósitos. (BASTOS, p. 44)

Vemos aqui a descrição um tanto naturalista dos grupos que habitavam

o Acre na época. Esses grupos representam os povos que compuseram a formação

das identidades acreanas. Embora sejam forasteiros, adaptaram-se, isto é,

aprenderam a viver na terra. É o que vemos na citação a seguir:

Os bolivianos passavam com a mochila rangendo e a água do cantil de hora em hora se renovando. Muitos estacavam no limite do Antimari, outros rodavam para o norte até Sena Madureira. Mesmo aí não deixava de ser surpreendente a presença daqueles homens do Ceará que, de machadinha em punho, vigiavam ferozmente as seringueiras. Enquanto esses exquisitos homens nômades aí permaneciam, os bolivianos, cobertos de pó e feridas, roídos pelos mosquitos e descarnados pelas febres, retrocediam e, aos pares, reapareciam nas estradas de Cobija. Era o regresso. (p. 44, 45)

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69

Ao longo da narrativa, o narrador apresenta essas personagens, dando

ênfase aos protagonistas: Solon e Rubina, descrevendo também personagens

menores, os quais aparecem ao longo da narrativa. Dessa forma, a partir da

apresentação das personagens, o narrador demonstra uma tendência a expor os

sujeitos que fizeram parte da composição do povo acreano. Isso pode significar uma

tentativa de revelar determinada identidade desse povo, que foi formado a partir de

caracteres de vários espaços e de várias formações.

Em A represa também observamos a presença de personagens, que de

acordo com a teoria da narrativa poderiam ser caracterizadas como personagens

tipo, denominadas no romance como seringueiros, fofoqueiras, o coronel, etc.

Entretanto, mesmo sendo representantes de um grupo, essas personagens têm

nome e realizam ações importantes para o curso da narrativa. Por exemplo, no início

da narrativa o narrador descreve alguns tipos que habitavam a cidade de Xapuri,

apresentando de início os pais de Antonico, o major Isidoro e D. Candinha, e o

Mustafa, que é mencionado muitas vezes na narrativa como o único interessado em

comprar borracha. No final da história ele é o primeiro a enriquecer com a alta do

produto. Do seringal Iracema são descritos os moradores do local, que são, em sua

maioria, seringueiros. Citemos alguns nomes: Lindolfo, Raimundo Quinto,

Possidônio, Pedro Marreta, Maneco Brabo, Candunga. Aparecem também D. Zinha,

a mãe protetora de Santinha, e o coronel Belarmino, que é descrito com maior

riqueza de detalhes. Belarmino é o coronel falido que no auge da borracha teve

muitas riquezas e tenta pelo menos manter o seringal, mas não consegue devido

aos baixos preços da borracha. É importante destacar que ele não é descrito com a

típica “maldade” da figura que representa, no caso os coronéis que eram sinônimos

da maldade e da injustiça, ao contrário ele passa pelas mesmas adversidades, sem

no entanto,ser considerado melhor por isso. A personagem passa de coronel a

seringalista flagelado, porém sem perder o respeito de todos e pode continuar

usufruindo dos benefícios que o “título” lhe confere. O seu modo de vida é alterado,

sem que ele perca o poder que a figura do coronel representa naquele momento

histórico.

A filha do coronel Belarmino, Santinha, é a protagonista da narrativa. Nela

podemos ver a representação das transformações que a mudança de lugar pode

operar na vida dos sujeitos. De moça ingênua do seringal, ela passa a ser a mulher

desejada, capaz de fazer qualquer coisa para realizar o que quer. Percebem-se

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mudanças físicas, mas também alterações na sua personalidade. Notamos isso,

quando ela, a todo custo tenta tirar o marido da cadeia. Ela demonstra ser a mulher

destemida que não mede esforços para alcançar seus objetivos.

Antonico é o típico mocinho de seringal, que vai morar no Iracema para

tentar uma vida melhor. Entretanto ele muda totalmente de perspectiva, quando se

apaixona por Santinha, tornando-se uma “ameaça”, pois o Coronel Belarmino, talvez

por simpatia pelo rapaz, manda-o para Belém para que ele estude e tenha um futuro

melhor do que aquele que ele poderia ter se permanecesse no seringal. Antonico

estuda e transforma-se num homem respeitado. Quando volta ao Acre vai para a

cidade de Rio Branco, onde agora estão todos os moradores do seringal. Ele volta

formado, acompanhando uma Comissão de Saneamento, após o casamento de

Santinha e a prisão de Didi. Após esses acontecimentos, Antonico muda de vida e

também de identidade, isso pode ser observado no momento em que ele chega à

cidade de Rio Branco. Ele deixa de ser o Antonico e passa a ser o Dr. Antônio

Saraiva, respeitado por todos pelo cargo que ocupa, não é mais o menino do

ingênuo, mas um homem estudado. A mudança de identidade, marcada pela

variação de condição social, pode ser percebida até mesmo no modo como as

pessoas o tratam: de menino de seringal, que representava um perigo, na

concepção de D. Zinha, passa a ser considerado um bom partido. Vejamos a citação

a seguir:

O carteiro Manoel Brasil espalhou por todo mundo que o Antonico iria regressar à terra. Era agora o Dr. Antônio Saraiva. Tinha concluído em Belém o curso de Agronomia e Veterinária. Antonico voltaria trabalhando numa Comissão de Saneamento. Antonico jamais esquecera a terra. Sempre mandava notícias suas e um artigo para “O Acre”, que o Amadeu publicava em destaque. Aparecendo uma oportunidade para rever o Acre, e rever também Santinha, era uma felicidade aproveitá-la. Foi o que fez Antonico. No outro número, o “hebdomadário” confirmou a notícia. Fez um comentário sobre os acreanos que triunfam fora. (MEDEIROS, p. 175)

Com esta citação comprovamos o que afirmamos antes, que Antonico

mudou de identidade, especialmente no que diz respeito a sua condição social, pois

ele deixou de ser o menino sem perspectiva nenhuma de vida e passa ao importante

Dr. Antônio Saraiva. Isso demonstra que a identidade também pode sofrer

mudanças com a mudança de espaço, o que já mencionado anteriormente.

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No que se refere às personagens em geral e ao modo como elas são

apresentadas ao leitor, tanto em Certos caminhos do mundo quanto em A represa

elas são vistas como presas fatalmente a essa terra, capazes de enfrentar quaisquer

sofrimentos, pois mesmo inseridas em um lugar tão inóspito, não conseguindo sair,

como se estivessem exiladas, têm a capacidade de enfrentar as mais variadas

situações. O narrador de Certos caminhos do mundo a esse respeito afirma:

O Acre é a bravura, a inclemência, o sangue mais ardente que vasa no labirinto arterial do Brasil. - Estive no Acre! Quando alguém pronuncia estas palavras, está definido. É capaz de todos os sofrimentos e com isto nada mais há em que experimentá-lo. Fonte secular, com tão grandes sinais da providência, não será o Acre a terra da experimentação? (BASTOS, p. 64)

Fazendo alusão ao conceito de exílio apresentado por Edward Said,

podemos dizer que essas personagens foram exiladas de sua terra natal, pois o

Acre era considerado um espaço inóspito, outra nação. Said faz uma associação

entre exílio e nacionalismo. Ele afirma que o nacionalismo é uma declaração de

pertencimento a um lugar, a um povo ou a uma cultura, e, a partir disso, o estudioso

opõe-se ao exílio, afirmando que ele causa prejuízos ao indivíduo ou à coletividade.

Todo nacionalismo desenvolve-se a partir de uma situação de separação. E aí, a

partir de uma fronteira que existe entre o exilado e os outros, há o perigoso território

do não-pertencer, do estar deslocado geográfica e culturalmente O exílio é

fundamentalmente um estado de “ser descontínuo”.

É possível perceber isso quando são apresentadas as personagens tanto

bolivianas quanto nordestinas em Certos caminhos do mundo. Elas se encontram

precisamente nessa condição do não-pertencer. Em Ambos os casos, eles estão

num ambiente hostil, que lhes causou danos, pois não pertencem àquela terra. NO

romance o Acre parece não pertencer nem aos bolivianos nem aos nordestinos. Daí

a relação de não-pertencer dessas pessoas, as quais poder, por essa razão, serem

considerados exilados. Em A represa, esse exílio pode ser visto com relação aos

moradores do seringal Iracema, quando são obrigadas a sair de sua terra por conta

da enchente e têm que ir para Rio Branco. Pelo fato de estarem represadas, estão

também exiladas, fazendo alusão ao conceito de Said.

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Said chama a atenção ainda para a necessidade de o exilado construir uma

nova identidade. Como ele está vivendo em um novo contexto, longe de seu

nacionalismo, ele deve ter consciência de si mesmo enquanto ser. Como “o exílio é

a vida levada fora da ordem habitual”, o indivíduo exilado deve criar, a partir disso,

sua nova ordem, levando em consideração que está em outro meio. Isso pode ser

observado claramente em Certos caminhos do mundo:

Ninguém busca o Território com intenção de sobreviver. A perspectiva é sempre a de suicídio. As cidades vão desvendando ao forasteiro os seus refinamentos precavidos. O refugiado resolve ficar, mas sujeita-se à adaptação, sob pena de ser esquecido pela terra que o esqueceu. (BASTOS, p. 57)

Esses indivíduos ao passo que precisaram construir novas identidades,

fizeram parte da constituição da identidade do grupo de moradores locais, já

formado por pessoas de vários lugares, que, de uma forma ou de outra, foram

exiladas, como é o caso dessas personagens. Os seringueiros eram, em sua

maioria, nordestinos que viajaram para a Amazônia com o objetivo de encontrar uma

vida melhor. Ao contrário disso, deparam-se com uma floresta que, devido à

exploração do seringalista, “agrediu-os” e “aprisionou-os”, impedindo-os de voltar à

sua terra. Além disso, foram deixados à mercê de doenças e animais ferozes que

havia por aqui. Esses homens tornaram-se exilados em seu próprio país, sofrendo

transformações em suas identidades e em seus comportamentos.

De uma maneira mais generalizada, ao longo da descrição dessas

personagens, percebemos, no discurso do narrador, uma mudança na perspectiva

delas. De fato, ocorre a mudança de identidade: o boliviano passa de dono da terra

a estrangeiro, ao passo que o cearense passa a ser considerado o dono dessa terra:

As tropas começaram a dispersar-se. Os homens voltaram lentamente ao trabalho, até que, pelos tratados, aquele trecho de conquista passou a chamar-se Território do Acre, incorporando-se ao patrimônio nacional do Brasil. O cearense, agora, era o dono da terra. Estrangeiro, era o boliviano. (BASTOS, p.51)

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73

Por serem romances ambientados em determinados tempos históricos, o

tempo da narrativa em ambos os romances pode ser considerado cronológico, isto

é, histórico, tendo em vista que os fatos são narrados de maneira linear, havendo

apenas alguns flashbacks para situar determinadas situações, justificar fatos ou

apresentar personagens. A linearidade do tempo se dá porque os fatos são

narrados, em sua maioria, na ordem em que aconteceram, quase não havendo

passagem, em nenhuma das narrativas, paradas ou cortes no enredo.

Essa análise das categorias da narrativa torna-se importante a partir do

momento em que nos possibilitam verificar as construções identitárias das

personagens, relacionando-as com as pessoas que fizeram parte da história. Tais

aspectos são mais perceptíveis por meio das ações das personagens que agem de

modo a demonstrarem como suas identidades são construídas ao longo da

narrativa. Sabendo que a identidade do indivíduo é formada a partir das relações

dele com o espaço em que habita, é que se verifica como as personagens mudam

de personalidade e de comportamento. Seu modo de ser altera-se denotando uma

mudança na identidade. De modo geral, ambos os romances buscam demonstrar

como se dá a busca das identidades acreanas, que ainda estão em formação,

demonstrando que os aspectos que já foram estruturados deram-se a partir das

relações do sujeito com o espaço em que vive e nas relações desse mesmo sujeito

com o outro, numa relação dinâmica de alteridade.

Percebe-se, assim, que Certos caminhos do mundo: romance do Acre e

A represa: romance da Amazônia buscam no passado histórico do Acre, via a

literatura, os elementos que fizeram parte da construção da identidade do povo

Acreano e da Amazônia.

2.4 CONCLUSÃO PARCIAL DO CAPÍTULO II

Foram apresentadas neste capítulo algumas ideias acerca da literatura na

Amazônia, expondo-se, além disso, alguns elementos, que tornam bem evidente a

complexidade da região. Foram analisadas algumas categorias da narrativa nos

romances, expondo-se como essas categorias podem aparecer nos dois romances,

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74

enfatizando o processo de determinação de novas identidades nesses outros

contextos.

Dessa forma, a partir do que foi apresentado, podemos dizer que as

produções literárias que têm a Amazônia como tema, sejam elas histórico-

documentais ou de caráter ficcional. Tanto as do século XIX, quanto as de meados

do século XX, contribuíram sobremaneira para o processo de constituição discursiva

da identidade dessa região. Esse processo é representado pela linguagem que

reflete a realidade amazônica, expressa por meio dos referenciais da natureza,

como elementos que refletem a imagem dessa região. O Acre segue a mesma linha

de representação do restante da região, tendo em vista que a Amazônia apresenta,

desde os primórdios, características comuns em toda a sua extensão, seja no que

concerne ao processo de exploração ou povoamento, seja na caracterização da

natureza ou na literatura produzida.

No capítulo seguinte serão apresentadas as relações do discurso histórico e

do discurso ficcional, bem como a sua relação para a busca de referenciais

identitários. Além disso, analisaremos os espaços descritos, tratando-os enquanto

referências para a formação das identidades acreanas.

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75

CAPÍTULO III – FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES ACREANAS

Nosso foco na primeira parte deste capítulo centra-se na apresentação das

identidades acreanas apresentadas nas duas obras estudadas a partir dos discursos

histórico e ficcional, demonstrando em que aspectos a busca pelas formações

identitárias se evidenciam tanto na história, como na ficção. Para isto, será feita uma

análise de partes dos romances que apresentam fatos históricos, sejam de forma

explícita ou implícita, ressaltando-se os fatos ficcionais, nos quais se percebe a

busca de uma referência identitária. Neste mesmo capítulo, discutiremos a respeito

dos três espaços evidentes na narrativa, tratando-os enquanto referenciais de

identidades: o rio, o espaço urbano, representado pela cidade, e o espaço rural, no

caso, o seringal.

3.1 A BUSCA IDENTITÁRIA: ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO

Giddens (2002, p. 54 ) afirma que a identidade supõe a continuidade no

tempo e no espaço. Com isso, é importante pensar a sua representação através das

narrativas que permitem que sejam apresentados em um só lugar fatos históricos ao

lado de fatos ficcionais sem estabelecer limites entre eles. Refletindo acerca dessa

afirmação, chegamos ao ponto em que se faz necessário discutir como os discursos

apresentados nas obras contribuem para revelar determinadas identidades e

trabalhar os diversos espaços apresentados como referenciais de identidade.

Conforme mencionamos nos capítulos anteriores, as obras ora analisadas

são permeadas por discursos que vão da história à ficção. Essas narrativas

apresentam, em maior ou menor grau, fatos históricos que são documentos da vida

do povo amazônico, especificamente do povo acreano, ligados à narração de fatos

ficcionais que são o ponto forte dos dois romances. Devido ao nosso foco não ser

estabelecer comparações entre as duas obras estudadas, mas verificar em que

medida elas representam uma constituição identitária que realmente aconteceu,

serão feitas análises distintas para cada uma delas.

Page 76: Entre Rios, Cidades e Florestas - Edilene Ferreira

76

Observamos nos estudos sobre identidade, que esta não é imutável.

Segundo Hall (2004, p. 13), a identidade unificada, completa, segura e coerente é

uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e de

representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade

desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais

poderíamos, a nosso turno, identificar-nos – ao menos temporariamente.

Podemos observar, por exemplo, que as identidades de um povo não são

fixas, elas se modificam na medida em que novos contextos e novos espaços vão

sendo ocupados e incorporados pelos sujeitos. A partir disso, é importante pensar e

repensar uma identidade amazônica a partir dos diversos tipos que compõem a sua

sociedade. Dessa forma, vemos nas obras analisadas que se manifestam diferentes

identidades que mesmo fragmentadas, como diz Hall (2004, p. 9), complementam-

se, refletem-se, como um só povo formado por várias identidades. Ele afirma ainda

que aceitar essa identidade que se move e se faz a todo instante, é começar a

dialogar com o mundo, com o outro e com nós mesmos, para construir e não para

destruir.

Nos texto analisados neste trabalho, observa-se a busca, no passado, de

elementos que constituíram a cultura amazônica para justificar o homem como

sujeito que atua na história de maneira a revelar a sua própria identidade. Nelas,

observa-se o narrar da história por quem parece estar fora dela, apenas observando,

recontando e reconstruindo os fatos do passado a partir de um ponto de vista

diferente. O narrador da obra de Abguar Bastos, talvez pelo fato de este ter sido

também historiador, dá mais ênfase aos fatos históricos, registrando esse discurso

de maneira evidente, à medida em que entrelaça-o às histórias de Rubina e de

Solon. Entretanto, história e ficção são partes de planos distintos, pois ora são

narrados fatos da trama ficcional, ora fatos históricos. Vale ressaltar que no plano

ficcional os aspectos históricos aparecem somente na descrição do cenário e dos

tipos locais que habitam a cidade de Rio Branco.

Em A represa observa-se a presença de um discurso histórico que se

apresenta de maneira sutil, isto é, funciona somente como pano de fundo e não

como ação que interfere diretamente na vida das personagens. Ele se dá de forma a

revelar ao leitor apenas alguns aspectos da história acreana, apresentados a partir

da memória dos antigos moradores da cidade de Xapuri. Com isso, é possível

afirmar que a história na obra é demonstrada a partir da situação do Acre por

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77

ocasião da decadência da borracha, das migrações a que foram submetidos os

moradores dos seringais e do fato de muitos seringueiros terem sido obrigados a

viverem da agricultura por não haver outro modo de subsistência possível à época.

É o que se observa na citação a seguir:

Os trabalhadores de Iracema passaram da vida de seringueiro para a vida de agricultor. As manhãs, no alarido das asas acordadas, vinham encontrá-los no cabo da enxada. Dois meses depois, onde havia touceiras brabas para esconderijos dos jacarés traiçoeiros, viam-se barracas novas naquele longo trecho do rio, debruçadas no lombo do barranco vermelho. (MEDEIROS, p.75)

Vemos claramente que o modo de vida dos moradores do seringal mudou

muito com a decadência da borracha. Muitos seringueiros viveram essa experiência

de se transformarem em agricultores. Esse fato só se tornou possível devido à

decadência do seringal, como se vê em muitos relatos de seringueiros, pois na alta

da borracha, os donos de seringais não permitiam os roçados, pois além de exigirem

total esforço do seringueiro para produzir mais, tudo tinha que se comprado no

barracão. No livro Servidão humana na selva: o aviamento e o barracão nos

seringais da Amazônia, Carlos Corrêa Teixeira (2009, p. 85) revela a entrevista de

um seringueiro que afirma:

Os patrões [...] não queriam que o sujeito plantasse. Tudo era importado do Pará ou de Manaus (...), tudo, a farinha, o tabaco, o arroz... (Eles) não queriam que o sujeito trabalhasse na roça (...) o sujeito só cortava seringa... Naquela época não havia nem castanha.

Essa realidade revelada por esse seringueiro foi vivida por muitos que

moravam nos seringais da Amazônia. A vida de servidão e as dificuldades

enfrentadas por essa pessoas tornavam a situação ainda mais difícil.

É importante mencionar que em A represa o discurso ficcional é mais

evidente, a história aparece como pano de fundo. A preocupação na obra é

descrever o cenário de modo a fixar determinada documentação histórica. Como já

foi mencionado anteriormente, há a presença de personagens como o coronel, que

marcam bem essa intenção documental, visto que o coronel Belarmino, apesar da

decadência é um representante fiel do vilão mais conhecido da história dos

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78

seringais. Porém, não se pode deixar de mencionar que na figura do coronel não se

pretende fazer nenhuma denúncia, uma vez que o narrador não o descreve como o

causador dos sofrimentos. Nessa narrativa, o que mais se destaca é a narração de

determinados episódios da história do Acre e a formação da cidade, por meio de um

discurso que se apresenta muito mais por meio do ficcional, ligadas à memória e às

ações das personagens. As lembranças do Coronel Isidoro e do Seu Lúcio, ambos

moradores de Xapuri, ilustram bem essa ideia:

[...] Os hinos patrióticos, cantados na Escola, davam vida à fumaça. Os combates passaram na imaginação dos dois amigos. Telheiros... Bom Destino... Benfica.... Volta da Empresa ... Xapuri de outros tempos pintava-se na fumaça, com o porto cheio de navios e o dinheiro correndo de mão em mão. Seu Lúcio tinha saudade desse tempo. Nesse tempo o Acre era Acre! Xapuri tinha de tudo! E hoje é a terra do já teve... [...] E agora ninguém tem mais nada!... [...] O Coronel Plácido de Castro, que libertou o Acre, foi assassinado. (MEDEIROS, p. 14-15)

Esse ressentimento faz parte da memória coletiva dos moradores, que

sentem falta da glória de outrora. Depois do passado de riqueza resta agora o

retrato da decadência material e moral vivida por todos. Essa decadência afetou até

o Coronel Belarmino, que apesar do título, compartilha a mesma desventura dos

demais moradores sem nenhuma revolta: “O coronel Belarmino, como todos os

seringalistas vencidos, longe de ser um revoltado, é a resignação em pessoa. Um

saudosista apenas.” (MEDEIROS, p. 23). Essa representação da decadência é fruto

da histórica baixa na produção de borracha, que se iniciara já no início do século XX,

e que por volta de 1914 a crise já deixa evidente.

Nesta obra, embora não sejam tão explícitos, esses elementos históricos

revelam a identidade de um povo que, mesmo tendo um passado cheio de lutas e

glórias, acredita que nesse passado estão suas identidades, pois aquelas pessoas

felizes são agora os saudosos do passado sem nenhuma perspectiva de vida

melhor. Resta-lhe apenas lembrar o tempo em que tudo era bom. Esse discurso faz

também parte dessas identidades e da vontade de sobrevivência.

É importante levar em conta que no que concerne à identidade deve-se

enfatizar o fato de que os discursos identitários, estão relacionados à invenção e à

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79

reinvenção da própria história do sujeito. Percebemos, assim, que essas questões

identitárias são também marcadas por elementos do passado. Daí a importância do

discurso histórico para se revelar e confirmar as identidades de um povo.

Dessa forma, vemos que tudo isso faz com que as identidades estabeleçam

ligação entre o presente, o passado e o futuro, criando um movimento positivo de ir

e vir, como uma trajetória. Dessa forma, de acordo com as palavras de Moita Lopes

(2002), vistas como trajetórias, as nossas identidades, são, portanto, constituídas

historicamente.

Com isso, a formação das identidades apresentadas nas obras se dá na

exposição das coletividades. Podemos dizer que os autores valem-se também da

memória para expor como se deu a construção das identidades amazônicas. É a

partir de narrativas que apresentam fragmentos de coletividade, que eles ressaltam

momentos históricos importantes para a consolidação do antigo território do Acre.

Em Certos caminhos do mundo, por exemplo, o narrador vale-se de momentos

históricos, descrevendo-os à maneira de um historiador que expõe os fatos

conforme eles aconteceram realmente. Suas narrativas são permeadas de fatos

históricos porque este autor não era somente romancista. Ele foi um historiador e

etnólogo, exercendo muitas outras funções ao longo de sua vida. Isso pode explicar,

de certa forma, a trajetória de muitos intelectuais da Amazônia. Já Medeiros traz à

tona todos os fatos que poderiam causar danos à imaculada sociedade acreana do

início do século, mencionando acontecimentos do cotidiano da cidade de Rio

Branco, que podem ter acontecido, mas não são tidos ideologicamente como fatos

históricos. Muitos desses fatos são apresentados com tom de crítica, descrevendo,

também, questões políticas do então Território. Como observamos, isso pode ser

constatado nas citações a seguir:

Não havia água encanada, nem tampouco serviços de esgotos, pois as latadas eram transportadas da Fonte da Independência no costado dos jumentos e as águas podres tinham saída pelas valas das ruas. Mas via-se um belo palácio de alvenaria, o Palácio Rio Branco, onde se instalam os serviços da administração pública. (MEDEIROS, p. 126) Os partidos tradicionais, o que sonha com a autonomia do Acre e o que prevê a união popular, ambos servindo a fins ridiculamente impossíveis, dividiram as famílias, envenenando a alma dos homens. Os autonomistas moram do lado direito, representados pelo comércio, e os unionistas moram do lado esquerdo representados pelos funcionários públicos. Um lado da cidade

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vive em rivalidade com o outro. O farmacêutico Nilo Bezerra, único unionista que morava do lado autonomista, sempre teve essa idéia: - O lado direito é Beiruth, é de sírios... O lado esquerdo é Acre, é de brasileiros... O melhor é conceder-se independência a Beiruth, instalando um consulado em minha casa, ou então declarando-lhe guerra de morte... (MEDEIROS, p. 144)

O fato de estarem ambientados nesse período histórico, os romances nos

fazem observar que muito do que se revela das identidades acreanas está ligado a

essa primeira metade do século XX, momento no qual a cidade estava sendo

formada e os sujeitos que habitavam esse espaço estavam em busca de suas

identidades, as quais são reveladas quando se apresentam as lutas que houve em

torno da nacionalidade do então território do Acre. Assim, em um único espaço

emergem várias identidades. Através disso, podemos observar que muito do que é

revelado das identidades acreanas perpassa o discurso histórico, tendo em vista que

grande parte do que é apresentado nos romances em tela surge disso.

3.2 O RIO, A CIDADE E A FLORESTA COMO REFERENCIAIS DA IDENTIDADE

AMAZÔNICA

Ao longo deste trabalho nossa preocupação tem sido apresentar, através

das narrativas Certos caminhos do mundo – romance do Acre e A represa –

romance da Amazônia, como são discutidos os processos de formação das

identidades amazônicas, especificamente a acreana. A partir daqui

desenvolveremos a análise dos elementos espaciais que compõem o processo de

formação das identidades. Para isso, utilizaremos algumas ideias já expostas nos

dois capítulos anteriores, especificamente algumas teorias sobre a identidade e a

reapresentação dos espaços das narrativas, tendo em vista que estes são tomados

como elementos formadores de identidade nas duas obras estudadas. Isto será

possível a partir do princípio de que é também na relação do homem com seu

espaço que as identidades são reveladas.

Os espaços apresentados nas duas narrativas são especialmente a cidade,

a floresta e o rio. Este último, enquanto elemento fluido, representante de

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81

transitoriedade estabelece a perfeita ligação entre os dois espaços anteriores,

conforme análise sobre a importância das águas do rio realizada no capítulo

anterior.

Já afirmamos com Hall (2004), que as identidades não são fixas, imutáveis.

Em contrapartida elas são resultados de processos transitórios de identificação, o

que explica as contidas transformações sofridas por elas, daí dizer que as

identidades não são sólidas nem permanentes. Por isso, estamos sempre em busca

de novas identidades. Estas são fortemente ligadas às noções de tempo e de

espaço e, por conseguinte, dependem de determinados sentidos que estes tomem.

Dessa forma, nossas identidades estão em constante transformação, requerendo

sempre novas interpretações e definições.

“A Amazônia muitas vezes é vista como sendo a última fronteira, onde

parece existir uma natureza intocada”. (Gonçalves, 2001, p. 16). Entretanto, a visão

da Amazônia vai além dessa idealização, uma vez que por trás de tudo isso há uma

realidade muito dura vivida por muitos. Esses discursos são, muitas vezes,

apresentados também na produção literária de diversas épocas. Esses aspectos são

em geral apresentados através de imagens que se tornam consagradas, como

aquelas que definem a Amazônia como sendo o local que abriga riquezas

incalculáveis. Segundo Gonçalves (2001, p. 20):

A imagem mais comum do que seja a Amazônia é a de que se trata de uma imensa extensão de terras, onde o principal elemento de identificação é uma natureza pujante, praticamente indomável que a história nos legou intocada.

Na modernidade essa ideia tem sido difundida ao lado de um discurso que

deságua em questões ecológicas, que se tornaram comuns ou quase estereótipos.

Ao lado desses elementos têm aparecido as questões relacionadas ao discurso de

das identidades de caráter amazônico que têm sido muito discutidas.

A relação do homem com o espaço é relevante para a construção de suas

identidades, uma vez que através desse espaço há uma reunião de diversidades

que são arrastadas a uma unidade de entrelaçamentos. Vemos nos dois romances

analisados que há uma preocupação em revelar a relação do homem com o espaço,

apresentando, muitas vezes, os sentimentos das próprias personagens, criando

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82

determinadas imagens que refletem suas emoções. Nessas obras há uma forte

apresentação do espaço que faz um contraponto entre o espaço rural, natureza, e o

espaço urbano, a cidade de Rio Branco nos primeiros anos de sua formação,

momento em que se consolidava a sociedade e eram estabelecidas as primeiras

relações entre os moradores.

Vemos tanto em Certos caminhos do mundo, quanto em A represa, que

essa preocupação com o espaço dá-se em função do momento em que se passam

os enredos. Por isso, estudar o espaço é primordial para se compreender como se

estabeleceram as primeiras relações sociais. Essa preocupação acaba por solicitar a

descrição de uma paisagem, que nessas narrativas se confunde com as noções de

lugar, que de acordo com De Certeau (1998, p. 201), “é uma configuração

instantânea de posições. Implica uma indicação de estabilidade”. Por isso, criar um

espaço urbano, uma cidade, torna-se algo fundamental a partir do momento em que

as pessoas se aglomeram por qualquer razão que seja.

As narrativas aqui analisadas, como já mencionamos, são organizadas em

torno de três espaços: o primeiro concentra-se na relação do homem em constante

luta com as leis da selva amazônica, onde a grande marca é a busca pela

sobrevivência em um ambiente hostil; o segundo é a cidade, a qual aparece como o

lugar onde se busca o refúgio ou o descanso de longas viagens; o terceiro, como já

foi dito, é o rio. Esses espaços apresentados de maneira singular revelam a

tendência a se fazer um registro da realidade acreana do início do século XX. Assim,

a partir das relações do homem com seu espaço e consigo mesmo, é possível

evidenciar uma série de aspectos que aparecem de maneira clara nas obras. Dentre

eles figuram a descrição do homem, do trabalho que executa, do espaço e dos

relacionamentos que estabelece com os seus semelhantes.

Quando nos referimos aos discursos elaborados em torno da Amazônia,

notamos que, de uma maneira geral, eles têm ligação, com a floresta, mas

especialmente com as navegações e os rios da região. Dessa forma, é possível

afirmar que a identidade do homem da Amazônia está diretamente ligada a esse

elemento da natureza tão importante para o homem. Ana Pizarro no livro El rio tiene

voces chama a atenção para isso:

Los discursos que han contruido a La Amazonía tienen, respecto del resto de los de América Latina, la especificidad de lo fluvial. Son discursos

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83

muchas veces conducidos por la navegación, como em caso de los descobridores, o el agua aparece como instancia previa y se intercala em ellos, como em el de los exploradores cintíficos. Son textualidades que reposan sobre el decurso, que se despliegan em uma Maraña de furos, igarapés, lagunas, tributários, cachuelas, pongos, em una geografia de águas que cuando no lo invade todo se hace presetir em su cercania, en su permanência, em su ritmo. Son los discursos de una nación de águas. Nación em el sentido figurado de um área cultural formada por ocho países que tienen referetnes comunes, com centro em el rio y em la selva

3.

A partir dessa citação, podemos observar o que há muito se vem falando: o

homem da Amazônia tem forte ligação com a água, especialmente a do rio, e com a

selva, portanto, com seu espaço. Assim, florestas, cidades e rios são elementos

fundamentais quando a ideia se liga à identidade desse povo. Entretanto se faz

necessário lembrar que, embora seja o rio o ponto de referência para o homem da

Amazônia ele não favorece totalmente o fluxo das pessoas em todos os lugares. Na

Amazônia, especialmente no Acre grande parte dos rios é de difícil navegação, o

que faz com pequenas distâncias sejam percorridas em muito tempo. Nos lugares

onde o único acesso se dá via fluvial é notória a dificuldade que as pessoas têm

para se deslocar. Mesmo assim, as águas permanecem como sendo o único

caminho viável para elas.

A busca da identidade pode ser percebida nesses fatos, uma vez que não

vemos um só olhar, mas vários deles que nos fazem refletir sobre as diversas

formações que tivemos e as modificações pelas quais passamos até chegarmos

onde estamos. Sabemos que nossa identidade não é única, muito menos

permanente. Daí acharmos interessante valorizar as obras de Abguar Bastos e de

Océlio de Medeiros, tendo em vista que mesmo tendo escrito seus romances há

muitos anos, não os limitaram a apenas mais duas obras que retratam o homem da

Amazônia em uma guerra sempre igual contra a natureza. Nelas se vê uma visão do

homem que é muito mais que uma simples visão da história, é uma apresentação

singular desse do homem.

Nessa relação de diferença, podemos observar que o espaço, dividido pelo

rio Acre, determina a identidade do homem que nela habita, tendo em vista que o

que marca a vida das pessoas de Penápolis em relação aos de Empresa é a

diferença social. entretanto, segundo consta em A represa, a própria topografia da

cidade enfatiza essa diferença: “A própria topografia do lugar localizou os

3 PIZARRO, Ana. Amazonía: el rio tiene voces. Chile, 2009. p. 15

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84

sentimentos dos dois lados: o lado esquerdo da cidade, o do menino bom, é alto, e o

direito,o do menino mau, baixo”. (MEDEIROS, 1942, p. 111). Lembremos que

conforme já foi mencionado, “menino bom” é Penápolis, ao passo que “menino mau”

é Empresa. Porém, apesar das diferenças sociais as pessoas dos dois lados da

cidade têm identidades semelhantes.

Se o espaço privilegiado nas narrativas amazônicas é em geral o rio, em

Certos caminhos do mundo - romance do Acre e A represa – romance da

Amazônia, o rio apresentado é o Acre. Esse rio é o que assume maior importância

para o Estado do Acre por banhar a capital, Rio Branco. Ele nasce no Peru,

atravessa o território acreano no sentido Sul/Norte e deságua no rio Purus, no

município de Boca do Acre, Estado do Amazonas, percorrendo um trajeto de

aproximadamente 1.190 quilômetros, representando o limite natural com os dois

países vizinhos do Acre: Bolívia e Peru. Cerca de cinquenta e seis por cento da

população acreana habita o vale do rio Acre4, que é a região mais desenvolvida e

habitada do estado. A relevância do rio Acre no cotidiano dos acreanos é

incontestável, especialmente para o ribeirinho e para parte da população para quem

as águas do rio constituem base fundamental para muitas atividades, inclusive o

transporte. Assim sendo, o rio pode ser símbolo da realidade local, e com isso,

reforça a formação de uma identidade acreana que, ao lado da floresta, representa o

referencial identitário na construção de imagens da tradição histórica e literária

amazônica.

Em Certos caminhos do mundo – romance do Acre percebemos esses

referenciais identitários, representados de duas maneiras: no plano considerado

histórico se sobressai muito a relação do homem com o espaço terrestre,

especialmente a floresta, uma vez que com a expressão de um evolucionismo, no

qual só o mais forte sobrevive, apresenta-se a floresta com maior destaque em sua

estreita relação com o homem que nela habita. Já no plano ficcional, o espaço que

mais aparece é o próprio rio. Essas relações podem ser vista na seguinte citação:

Sob a tutela dos gênios metafísicos, os milagres irrompem de toda a costa humana da superfície e os fenômenos estalam nas fendas cósmicas, iluminando a zona vasia, que se multiplica entre o chão e o céu.

4 Com base em dados do IBGE 2007.

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85

O homem que chega é triturado. Dessa amálgama fôfa renasce o homem que póde ficar. Ele reaparece trasladado da consciência original para o objetivismo total que o absorveu. Antes era causa, agora é o produto. Fez-se a imagem da terra, com todos os seus defeitos. Deixou-se fundir e abroquelar, pois só assim póde pertencer a grei, que o recebe com entusiasmo na hora suprema. Então não mais o tipo inferior, o homem ordinário do passado. Conseguiu a tremenda integração. Deixemos que ele cumpra o seu destino. O seu coração está fechado. Os seus olhos estão sêcos. A sua vida é uma avalanche. É o homem fenomenal. (BASTOS, p. 57)

Como se observa, neste fragmento, Bastos exalta o homem de modo a

revelar a mudança de identidade sofrida por este sujeito que, a partir do contato com

a terra, teve que se adaptar a ela para poder sobreviver. Ele afirma que o homem

não é mais o ser inferior ele é o homem que se tornou tão forte como a terra que

habita. Essa relação à oposição terra versus homem fez com que surgisse um novo

homem, constituído a partir de uma nova identidade, a qual irrompe desse contato.

Observemos, porém, da mesma forma que o lugar em outros momentos foi

apresentado como hostil, como perverso aos olhos do homem. Entretanto, tudo isso

lhe tornou mais forte.

Neste plano histórico emerge um Acre ainda no início de sua formação com

a apresentação dos primeiros contatos entre os diversos habitantes da região, na

época da conquista. Nesse cenário emerge uma floresta hostil ao seu habitante, seja

ele local ou estrangeiro. Observemos a citação:

Estava provado. A terra não tinha amor ao seu dono. Com as suas florestas desgrenhadas e as suas sombras lascivas, preferia entregar-se aos extrangeiro que vinha do Brasil com o cheiro do mar nas carnes rijas. (BASTOS, p. 47)

Aquela visão da floresta enquanto inferno verde vem à tona mais uma vez.

O homem precisa adaptar-se a ela para sobreviver. No entanto, é importante

mencionar que essa floresta não é expressa apenas como paisagem e sim como um

território, tendo em vista que ali ocorreu uma disputa por sua ocupação, por sua

posse. Em Certos caminhos do mundo, todas as vezes que essa floresta é

descrita, ainda no momento de formação do Acre tem-se essa ideia de que há uma

disputa entre os seus habitantes. Falamos isso não pelo fato de se mencionar a

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86

tomada das terras acreanas das mãos dos bolivianos, mas porque a relação do

homem com esse espaço é estabelecido a partir dessa ideia de disputa, seja entre

os sujeitos, seja destes com a floresta.

Em Certos caminhos do mundo, o espaço urbano também é privilegiado.

De Certeau (1998 p.172) discute o conceito de cidade, afirmando que ela foi

instaurada pelo discurso utópico e urbanístico definida, dessa forma, pela

possibilidade de uma tríplice operação: a produção de um espaço próprio; o

estabelecimento de um não-tempo, e por último a criação de um sujeito universal e

anônimo que é a própria cidade. Supõe-se, com isso, que a cidade seja um espaço

organizado. A cidade apresentada nas narrativas que analisamos emerge dessa

maneira, uma vez que nelas, como já foi dito, Rio Branco está organizada em torno

de dualidades. É uma cidade que ainda está em formação e nela muito dos

elementos rurais ainda aparecem. Entretanto, já apresenta as organizações típicas

de uma cidade mais modernizada.

Nesse romance, o narrador, muitas vezes, descreve elementos que nos

fazem ver que embora ainda modesta já há uma organização desse espaço, no qual

vemos destacarem-se diversos símbolos do urbanismo e de civilidade tais como a

igreja, a delegacia, a presença de intelectuais, representados pela figura do poeta

Juvenal, vistos ao mesmo tempo em que são descritas as paisagens do local.

Porém, mesmo diante da descrição de um espaço urbano, vemos uma cidade que

emerge em meio à floresta, guardando ainda muitos resquícios desta e mantendo

uma forte relação com ela. O próprio narrador, ao descrever Empresa, afirma que

parte dos habitantes são seringueiros, habitantes típicos do seringal. Com isso, a

dicotomia floresta x cidade parece fundir-se num só elemento.

Nesta obra, como se percebe, a cidade de Rio Branco aparece logo no

início de sua formação, época em que as redes de relações se entrelaçam e

compõem uma história múltipla de enredos e tensões dramáticas formadas a partir

de fragmentos de outras histórias. O narrador apresenta uma cidade que, embora

ainda pequena e habitada por personagens típicas recém-chegadas de áreas rurais,

como os seringueiros, já apresenta problemas de cidade grande, dividida, como já

foi mencionado, em dois espaços, evidenciando a dualidade permanente do lugar,

sendo representada pelas pessoas que neles se fazem presentes.

A partir da leitura de Certos caminhos do mundo, percebemos a cidade de

Rio Branco, a terra firme, como um lugar de passagem. O rio apresenta-se como

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87

mais um local de permanência. Isto parece ocorrer pelo fato de Solon, o

protagonista, destacar-se através dos rios. Enquanto comandante de navio, ele está

na cidade apenas de passagem. Na cidade de Rio Branco as identidades das

personagens se destacam, tendo em vista que nela Solon é reconhecido por ser o

capitão de um navio, tendo até alguma influência no lugar. Já Rubina apresenta o

que realmente é. Sendo uma filha do espaço dos vícios, ela, na sua estada em

Empresa, deixa-se vencer pela fraqueza da coca e acaba entregando-se a ela.

Através dela, o narrador apresenta um problema que é típico dos espaços urbanos:

as drogas e suas consequências perniciosas aos sei usuários. Isso se torna mais

evidente pelo fato de ser o Acre uma região de fronteira, lugar propício para a

manutenção do tráfico.

O terceiro espaço e, diga-se de passagem, o que mais se destaca nas

construções identitárias apresentadas nas narrativas aqui estudadas, é o rio. Como

já fizemos uma análise deste no capítulo anterior, resta-nos confirmá-lo agora como

uma referência de identidade, ao lado dos outros espaços já apresentados. O rio,

como bem se observa no romance, estabelece um elo entre a cidade, a floresta e

até com outras cidades., tendo em vista que é um elemento bastante característico

da paisagem amazônica e aparece na obra como um forte referencial identitário.

Podemos afirmar isso, porque o rio é a via de acesso das pessoas, com suas

diferentes concepções e, historicamente falando, foi importante no processo de

conquista do solo acreano. Por isso, ele pode ser considerado como a maior

referência de identidade do acreano. Daí, podermos fazer uso da afirmação de

Leandro Tocantins (2000), segundo o qual o habitante da Amazônia é filho do rio e

nunca da terra ou da cidade.

Em A represa – romance da Amazônia observamos a presença dos

mesmos espaços: o rio, a cidade e a floresta, esta representada pelo seringal.

Neste, as identidades das pessoas são definidas a partir da função que cada

personagem exerce: o coronel, os seringueiros, a filha, a mulher do coronel, o

guarda livros, dentre outras.

O outro espaço, a cidade de Rio Branco, é apresentado já com formação

social bem definida na qual se verificam várias tensões sociais em que os diversos

setores da sociedade se contrapõem movimentando a vida urbana. O narrador

descreve a cidade, apresentando os principais tipos que a compõem: os

comerciantes, o chefe de polícia, o prefeito, o jornalista, o poeta, o padre, as

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fofoqueiras, etc. A cidade, como podemos verificar, só é apresentada depois da

chegada dos moradores do seringal, quando passa a ser vista como o lugar de

transformações e apropriações, de acordo com a ideia apresentada por De Certeau.

Desta maneira, a cidade funciona como uma referência de identidade, porque

observamos que o contato com ela opera transformações imediatas na vida das

personagens. Nela rapidamente os seringueiros se apropriam da vida da cidade e

são assimilados pela sociedade, tornando-se habitantes do bairro Capoeira.

Santinha também logo começa a participar da vida da sociedade e casa-se

com Didi. O coronel Belarmino mantém-se respeitado. É interessante notar que na

obra, esse espaço da cidade é apresentado a partir da ideia da decadência de seus

habitantes, que são apresentados mediante metáforas e comparações que estão em

geral relacionadas ao rio. Na citação a seguir vemos um exemplo disso ao serem

mencionadas as cidades amazônicas e as pessoas que são definidas como rios:

As cidades amazônicas são obra de decadência. Os rios humanos, nos primeiros tempos da borracha, saindo do nordeste, foram correndo Amazônia a dentro, divididos em centenas de braços.rios malucos sem rumo certo, que vieram do Atlântico, em sentido contrário aos rios de água, como que para desaguar no Pacífico, cavando na sua corrida pela mata, o próprio leito. O que foi mais longe, rio porocante de cearenses brabos, chegou até o Território do Acre, nos domínios da Bolívia e do Peru. Só não foi mais longe porque esbarrou na muralha dos Andes. (MEDEIROS, p. 108)

Em A represa – romance da Amazônia, esse mesmo rio com o qual se

identificam as pessoas também aparece como espaço privilegiado. Podemos dizer

que a maior referência de identidade é ele, tendo em vista que ele é a via de acesso

das pessoas do seringal para a cidade e vice-versa. O título da obra pode ser

explicado a partir de uma metáfora relacionada ao rio: a partir do momento em que o

seringal Iracema desaparece, engolido pelas fortes e violentas águas da enchente

do rio Acre, a cidade fica represada e com ela as pessoas que foram obrigadas a

tomar outros rumos e formar novas identidades. As vidas dessas pessoas têm,

dessa forma, uma forte relação com as águas. A citação a seguir pode exemplificar

essa afirmação:

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Rio Branco com seu igapó de homens, numa região onde ninguém pensou em edificar uma cidade, é por isso um rio que perdeu o seu destino. Dá a ideia de uma represa. Uma enorme represa humana, onde se agitam, num drama de isolamento, os recalques e as paixões. Trabalhando pelas piores remanescências, o grosso da sociedade sofre na sua contensão, buscando uma saída, buscando um fim que nunca chega. (MEDEIROS, p. 109)

Observamos que as marcas identitárias presentes nas obras estudadas

estão ligadas, de maneira mais geral, aos espaços em que se passam as ações, os

quais podem representar referências identitárias. Na obra, verifica-se efetivamente o

valor que se dá a esta relação. O homem e o rio estabelecem uma ligação

intrínseca, na qual ambos são interdependentes.

Por isso, pode-se observar que o rio é muito mais que um elemento da

natureza, ele contribui também para a diversidade que se apresenta na cultura do

povo acreano. Por meio do modo como ele é apresentado nessas narrativas,

observamos que em Certos caminhos do mundo – romance do Acre, os

caminhos seguidos pelo homem estão nos rios. Em A represa o próprio título da

obra remete ao rio, ou a uma condição dele, fazendo alusão à situação desse

elemento ao descrever o modo de vida das pessoas.

O rio não é tido apenas enquanto um elemento que corta geograficamente a

cidade, mas enquanto marca e veículo das várias personagens que a povoam,

portanto, também de identidades. Observa-se nas obras que esse elemento é o

responsável pelas construções identitárias, tendo em vista que, através da divisão

que ele ocasiona na cidade de Rio Branco dos primeiros anos, proporciona a

diversidade que há nessa sociedade. Dessa forma, é possível afirmar que as

identidades são frutos dessa diversidade. O rio na cidade de Rio Branco separa

muito mais do que a terra, separa também as maneiras de pensar, o que, como já

mencionamos, evidencia diversas identidades.

Portanto, o que podemos observar é que o romance de Abguar Bastos

mostra-nos as várias identidades acreanas, embora este autor não tenha nascido no

Acre. Além disso, sua obra nos faz constatar que a constituição de nossas

identidades deu-se a partir da diversidade e da diferença. É bom ressaltar que o

modo particular como o autor compõe a sua obra faz-nos ver que Certos caminhos

do Mundo não é um simples romance sobre nossa terra, o seu valor está na

expressão apresentada por ele, mostrando que nossas identidades não estão

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apenas em quem nós somos, mas têm uma intensa ligação com o lugar em que

vivemos e com os elementos que o compõem.

O mesmo pode ser afirmado a respeito de A represa, romance no qual se

evidenciam as várias identidades e espaços que são fortalecidos pela ideia dos

deslocamentos. O espaço para as personagens é tão transitório quanto as suas

identidades. Essas constantes mudanças de lugar resultam em identidades híbridas

e dinâmicas.

A partir disso, verifica-se que as narrativas analisadas são marcadas pela

busca de uma identidade local resultante de uma forte ligação do homem com seu

espaço, seu tempo e sua realidade. Isso revela a relação do homem com a

natureza, com o espaço urbano, com o rio e, por consequência, com a relação dos

homens entre si. Essas relações demonstram com a realidade é instaurada.

É importante notar que nas obras analisadas as identidades e as escolhas

das personagens estão sempre vindo à tona e se ligam aos espaços que ocupam.

Em Certos caminhos do mundo, vemos as escolhas de Solon e de Rubina. Em A

represa essa mudança de espaço nem sempre é realizada devido a uma escolha

das personagens. De fato, elas não têm muitas escolhas. Saem do seringal porque

são obrigadas pelas circunstâncias. Quando fazem determinada escolha, esta se

processa porque eles não têm alternativa. Podemos citar como exemplo os

seringueiros do Iracema, que, para sobreviver, deixaram de ser seringueiros e

passaram a ser agricultores, embora não tivessem muita habilidade para isso. O

importante para o processo de formação identitário é que eles se adaptaram à sua

nova condição.

Os trabalhadores de Iracema passaram da vida de seringueiros para a vida de agricultor. As manhãs, no alarido das asas acordadas, vinham encontrá-los no cabo da enxada. Dois meses depois, onde touceiras brabas para esconderijo dos jacarés traiçoeiros, viam-se barracas novas naquele longo trecho do rio, debruçadas no lombo do barranco vermelho. (MEDEIROS, p. 75)

Observe-se que os seringueiros mudam sua condição, mudam também

suas identidades. Dessa forma há uma nova condição de vida para esses sujeitos.

Não são mais vistos os seringueiros e sim os agricultores. Essa nova forma de vida

demonstra o que já foi mencionado antes, que os homens da Amazônia talvez pelas

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adversidades do início de sua história têm um forte poder de superação e

adaptação.

É importante verificar que a identidade de um povo pode ser revelada a

partir de diversos aspectos. Nas narrativas aqui analisadas nota-se que as questões

identitárias são muito fortes, especialmente pelo fato de os acontecimentos narrados

em ambas estarem ambientados no Acre dos primeiros anos, em especial aqueles

em que havia a disputa entre os lados da cidade: Penápolis e Empresa.

3.3 CONCLUSÃO PARCIAL DO CAPÍTULO III

Neste capítulo foram apresentados, vários aspectos que dizem respeito a

questões identitárias. Alguns foram apenas retomados como a questão dos espaços.

Aqui, demos destaque à oposição existente entre os discursos históricos e ficcionais,

demonstrando sua contribuição para revelar determinadas identidades.

Preocupamo-nos também em expor os diversos espaços expressos nas narrativas:

rio, cidade e floresta, enquanto referenciais de identidade. Apresentamos cada um

desses elementos, enfatizando a relevância do rio para os processos identitários.

Ressaltou-se a relevância desse elemento nessa construção, tendo em vista que os

romances analisados enfatizam a importância dos rios e a relação deste com o

homem, daí com as identidades. Devem-se levar em consideração os próprios títulos

das obras, uma vez que Certos caminhos do mundo representa perfeitamente isso

porque os caminhos referidos nada mais são do que os próprios rios. Já A represa

ressalta uma condição da água, que é o fato de ela estar presa. Assim, podemos

afirma que essa reunião de história, ficção, rios, cidades e florestas constitui-se em

elementos que se sobressaem na formação da identidade do povo acreano. Essa

situação impõe-se tanto na história quanto na literatura estudadas.

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CONCLUSÕES

A guisa de conclusão, podemos afirmar que ao longo desta pesquisa, na

qual nos propusemos a analisar as narrativas Certos caminhos do mundo –

romance do Acre de Abguar Bastos e A represa – romance da Amazônia de

Océlio de Medeiros, pudemos observar que essas narrativas foram organizadas

discursivamente de modo a serem utilizadas como projeto de busca das identidades

acreanas. Trata-se de um procedimento estético que vem, ao longo dos anos,

fazendo-se presente em muitas produções literárias da região amazônica.

Pudemos observar que há nas obras muitos aspectos que levam à tentativa

de formação de determinadas identidades coletivas. No entanto, isso se revela não

só nas narrativas, uma vez que através das leituras realizadas para fundamentar

esta pesquisa, foi possível observar que essa inquietação de se tentar revelar

determinadas identidades faz parte da vida do homem moderno. É que ele busca

fazer-se visto na sociedade da qual faz parte, com todas as diferenças que o tornam

um sujeito inquieto. Ele busca constantemente firmar-se como sujeito de sua própria

história, com sua identidade definida, apesar das adversidades que se lhe

apresentam nessa caminhada.

Além disso, podemos afirmar que falar sobre identidade faz lembrar o fato

de que toda questão identitária envolve uma determinada organização discursiva,

seja ela política ou social, tendo em vista que existem várias maneiras possíveis

para expor as diferenças entre os sujeitos, os quais podem mudar de posições

dentro de determinada sociedade e de uma sociedade para outra. Assim, se se

muda de posição, efetua-se igualmente uma mudança identitária.

A partir disso vimos emergir nas narrativas analisadas neste trabalho o

homem apresentado como ser que possui não uma, mas várias identidades as quais

surgem diante das diversas posições que este homem enquanto um sujeito social

ocupa. Diante disso, torna-se importante reconhecer os diferentes discursos

apresentados por ele em cada uma dessas posições. Fala-se em discurso, porque

de acordo com as ideias bakhtinianas, apresentadas ao longo desta pesquisa, as

identidades também são formadas a partir da interação entre os sujeitos, a qual se

dá por meio dos discursos apresentados por eles.

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As obras literárias aqui estudas são exemplos de narrativas amazônicas que

apresentam como tema a Amazônia do tempo em que já se estava constituindo as

cidades, e Rio Branco se destaca nelas. Ambas as narrativas orientem-se para a

apresentação das dualidades desse local, uma vez que essas narrativas apresentam

as personagem de modo que elas representem os típicos moradores da cidade. Os

autores fazem isso através da exposição das dualidades que perpassam as

fronteiras geográficas e seguem até as questões morais, sociais e discursivas, o que

nos leva a observar que várias identidades são reveladas por meio dessa

representação.

Escolhemos trabalhar com as narrativas porque acreditamos que a

organização discursiva deste gênero permite observar com clareza determinadas

realidades que emergem no enredo de cada uma delas. Dessa forma, acreditamos

ter contribuído com os estudos acerca do romance acreano e das questões

identitárias de nossa região, embora de maneira modesta.

Logo no início desse estudo, quando apresentamos uma fundamentação

teórica, na qual apresentamos as principais teorias que deram suporte a essa

pesquisa, expusemos as ideias acerca da identidade. Já aí iniciamos a exposição de

pontos das obras em que se percebem marcas identitárias. Foi com isso, que

observamos que ambas são verdadeiras representações das identidades do povo

acreano.

Ao escrever os demais capítulos, essas identidades reveladas nos

romances foram tornando-se mais evidentes, tendo em vista que os discursos que

se revelavam demonstravam a presenças de muitas marcas identitárias. Assim,

diante das análises das obras, podemos afirmar que por meio delas surge a imagem

de um homem, ou melhor, de um sujeito que se revela em constante diálogo com o

rio. No caso dessas narrativas, o rio Acre é o que se apresenta com maior destaque.

Essa relação do sujeito com o rio é tão forte que é a posição geográfica dele,

dividindo Rio Branco em duas partes distintas, faz várias identidades virem à tona.

Isso nos faz reconhecer o habitante da Amazônia como um ser que busca nas

margens e no leito do rio identidades que se revelam em sua própria história de vida.

Vemos nisso um espaço que se constrói como marca de identidade. Entretanto, não

podemos esquecer que nas obras abordadas emergem outros espaços como a

cidade e a floresta, que entrelaçadas pelo rio constituem-se verdadeiros referenciais

identitários.

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Certos caminhos do mundo – romance do Acre é uma narrativa na qual

o discurso histórico apresenta-se com destaque, o que nos leva a observar que é

também no passado histórico que os sujeitos buscam parte de suas identidades.

Esse romance revela um escritor que conhece a Amazônia de perto, sua história,

sua geografia, hidrografia e seu habitante. Delineiam-se, com isso, questões sociais,

culturais e econômicas da realidade acreana, o que foi vivenciado por vários sujeitos da

Amazônia.

A represa – romance da Amazônia, traz à tona também um Acre organizado

discursivamente em torno de dualidades que se revelam da mesma forma pela divisão

da cidade de Rio Branco pelo rio Acre. Aqui há um destaque para esse aspecto, uma

vez que todas as mudanças apresentadas na obra têm o rio como responsável:

enchentes, mudança das personagens para a cidade e retorno ao seringal. O que é

importante destacar na narrativa de Medeiros é a sua apresentação crítica dos fatos e

de algumas personagens, o que já foi destacado no corpo desta pesquisa.

Observamos, com isso, que os romances aqui analisados podem ser

considerados mostruários do que pode ser uma literatura que expressa as Amazônias,

tendo em vista que o modo como estão estruturadas, como as personagens são

apresentadas, o espaço em que se passam as ações, o retorno a um determinado

tempo histórico, que revela ora a decadência, ora a prosperidade do povo, revelam

muito do que se tem em muitas narrativas sobre a região, desde os primeiros escritos.

Finalmente devemos reconhecer que as obras aqui analisadas refletem,

enquanto produtos sociais, o tempo histórico e o espaço em que são produzidas, no

caso a Amazônia. Porém, temos que destacar que os sujeitos nelas apresentados,

embora representem homens de determinada época, podem ser considerados

representantes do homem da amazônida de todas as épocas.

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ANEXOS