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Miriam Halpern Pereira (Foto de Miriam Halpern Pereira)

Entrevista a Miriam Halpern Pereira

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Uma entrevista realizada à Historiadora Portuguesa Miriam Halpern Pereira.

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  • Miriam Halpern Pereira(Foto de Miriam Halpern Pereira)

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    Anlise Social, vol. XLVI (200), 2011, 574-587

    Entrevista a Miriam Halpern Pereirapor Jos Vicente Serro

    Miriam Halpern Pereira (n. 1937), Catedrtica Emrita do ISCTE-IUL, uma figura de referncia maior da historiografia portuguesa das ltimasdcadas. Licenciada em histria e filosofia pela Faculdade de Letras deLisboa (1962) e doutorada em histria pela Sorbonne (1969), iniciou a suacarreira acadmica profissional em Frana, como investigadora do CNRS eprofessora da Universidade de Vincennes. Regressando a Portugal em 1972,tornou-se professora do ISCTE, onde progressivamente formou uma equipade ensino e investigao em histria moderna e contempornea, congregadaem torno do Centro de Estudos de Histria Contempornea e do Departa-mento de Histria. Miriam Halpern Pereira foi igualmente fundadora (e direc-tora at 2008) da revista Ler Histria, uma das mais importantes revistasportuguesas da especialidade. Entre 2001 e 2004 foi directora-geral dos Arqui-vos Nacionais/Torre do Tombo, cargo que representou o culminar de umadedicao de longa data problemtica das fontes e dos arquivos em Portugal,da qual j havia sobressado a direco de um Roteiro das Fontes para aHistria Contempornea (1984-1985).

    A sua vasta obra tem incidido principalmente na discusso dos problemasde desenvolvimento econmico, mudana poltica e transformaes sociais,associados formao do Portugal contemporneo nos sculos XIX e XX,com estudos sobre a emigrao, os nveis de vida, os padres de consumo,a economia agrcola, a industrializao, o comrcio externo, o problema dosmercados, as questes financeiras, as lutas liberais, as polticas econmicas,o papel das instituies ou os modelos de governana, entre outros. Dos seusmuitos artigos e livros, refiram-se apenas aqui o ltimo, O Gosto pelaHistria (2010), onde reuniu vrios estudos recentes sobre aqueles temas etambm sobre teoria e metodologia da Histria, assim como o seu primeirolivro, intitulado Livre-cmbio e Desenvolvimento Econmico em Portugal(1971), uma obra que desde logo marcou o panorama historiogrfico nacio-nal, tanto pela sua novidade interpretativa sobre a transio para o Portugalcontemporneo como pelos debates a que deu origem.

    Jos Vicente Serro doutorado em histria moderna e contemporneapelo ISCTE-IUL e Professor Associado deste instituto. Especialista na poca

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    Jos Vicente Serro

    moderna (com ensino e investigao nas reas de economia, poltica e pen-samento econmico, imprios e colonialismo, diplomacia e poltica externa,sociedade rural, urbanismo e demografia), trabalha actualmente sobre direi-tos de propriedade, territorializao e conflito nos espaos imperiais.

    Jos Vicente Serro (JVS) Deu como ttulo ao seu ltimo livroO Gosto pela Histria (Lisboa, ICS, 2010), o que parece ser o testemunhomais eloquente do balano prprio que faz de 50 anos de carreira comohistoriadora. Como que nasceu esse gosto pela Histria?

    Miriam Halpern Pereira (MHP) Nasceu na realidade muito cedo, ano 2. ciclo do antigo Liceu. Entre os 13 e os 15 anos tive uma excelenteprofessora de histria, j contei esta histria muitas vezes, a M. EmliaCordeiro Ferreira, que era uma pessoa notvel de todos os pontos de vista,como professora e como cidad. Eu at a no gostava nada de histria.Tinha tido um professor tradicional na 4. classe, que ensinava aquela his-tria muito aborrecida, cronolgica e estritamente poltica, contrastando como ensino da escola americana onde iniciara a minha escolarizao (da qual meficou o nico livro da escola primria que guardei at hoje!). CordeiroFerreira realmente criou-me o interesse pela histria. Mais tarde a M. LucliaEstanco Louro viria a desenvolv-lo. De qualquer maneira, eu tambm meinteressei muito por biologia, tendo estado hesitante em seguir a fileira cien-tfica, e no ltimo ciclo do liceu por filosofia. Li muita coisa, tudo menoso manual do Aresta, foi at nessa altura que li o primeiro livro de Marx, AsTeses de Feuerbach, emprestado pelo Augusto Abelaira, atitude muito cora-josa na poca para um professor do liceu. Quando entrei para a faculdade,no estava nada definido o que que eu preferia, se a filosofia, se a histria.Nesse aspecto, a faculdade foi particularmente frustrante. Se, no conjunto,o nvel de ensino era muito mau, o da filosofia era certamente ainda pior doque o da histria (nos anos seguintes alterou-se um pouco, com a entradade novos elementos) e foi assim que eu acabei por enveredar pela histria.

    JVS Diz-se muitas vezes que a histria que um historiador faz determinada pela sua experincia de vida, pelas suas vivncias culturais,pelo seu estatuto social, pelas suas convices polticas, cvicas ou ideol-gicas. No seu caso pessoal, diria que isso que principalmente explica assuas escolhas de trabalho, ou elas foram determinadas por outro tipo decircunstncias?

    MHP difcil de dizer. Eu a posteriori constru uma explicao queme parece lgica, mas que capaz de ser um pouco uma construo, porquese tivesse tido outros professores melhores em filosofia talvez me tivessededicado reflexo filosfica, de que eu gostava realmente muito. Portanto,em certa medida, deveu-se a um acaso. Mas eu acho que esse acaso real-mente acabou, no contexto pessoal, por ter uma funo de integrao. Eu

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    tinha um problema de identidade nacional, devido s minhas origens familia-res. No fundo eu tenho uma origem diversificada em termos europeus, tenhocomponentes culturais diversas na minha formao e tinha optado por serportuguesa. Foi uma opo racional, porque tinha outras opes,inclusivamente a de mudar de pas. Foi uma escolha que eu fiz claramente,entre os 15 e os 17 anos, e o estudo da histria deu-me um passadocolectivo e foi uma forma de integrao indirecta. Recordo tambm umaprofessora de literatura extraordinria que tive no final do liceu que nosfalava da gerao de 70, de Fernando Pessoa e Mrio de S Carneiro,ousando afrontar o reitor. Intrigavam-me muito as causas do atraso dePortugal, os problemas levantados pela gerao de 70, etc. um tema queme interessou desde muito cedo.

    JVS Mas alguma vez sentiu, por exemplo, que fez histria para fazerpoltica, ou que estava a fazer histria para responder a preocupaescvicas, de cidadania, suas ou da sua gerao?

    MHP tambm uma questo que difcil, porque sempre umainterpretao. Eu no me dei conta que isso estivesse a acontecer, no fizhistria para responder directamente a preocupaes polticas, que de factotinha, mas j me foi observado numas provas acadmicas que o meu inte-resse pelas revolues liberais depois do 25 de Abril tinha muito a ver coma situao poltica. Eu no me dei conta, no surgiu assim. Surgiu at muitoligado a um certo vazio que havia nesse domnio cientfico e necessidadede falar dessa poca aos meus alunos. Para mim, esse interesse esteve muitomais ligado ao ensino, e por isso lhe dediquei at um livro, que era tambmuma antologia e que estava escrito um pouco como um manual, quase semnotas e com pouca ou quase nenhuma bibliografia. Na realidade eu at estavaum tanto em contra-ciclo. Muitos investigadores interessaram-se ento pelomovimento operrio, eu interessei-me pelas revolues liberais. Fui das pri-meiras historiadoras a mostrar a importncia das revolues liberais, questona poca polmica, hoje finalmente j geralmente admitida. Falta dedicar-lheum feriado, mas a conjuntura adversa, at se fala em suprimir o feriadodo 5 de Outubro, o que se me afigura muito grave. O simbolismo desta data muito forte. Constituiu durante dcadas uma comemorao da resistnciademocrtica ao Estado Novo. Porque no suprimir o 1. de Dezembro, deinveno recente? A data de 1640 distante, a sua celebrao estdesactualizada em tempo de paz com a Espanha e de integrao na UnioEuropeia. Voltando sua pergunta, admito que tenha havido alguma influn-cia poltica de forma indirecta nos meus trabalhos de investigao e isso nome parece em caso algum um mal, desde que no se deforme a realidadehistrica para fins polticos. Acho que no me aconteceu nunca tal coisa.

    JVS H uma pergunta que sempre tive vontade de lhe fazer: dosmuitos livros e trabalhos que publicou, sobre temas muito diversos, qual que gostou mais de fazer ou de qual que guarda uma melhor memria?

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    MHP No sei eu gosto sempre muito daquilo que estou a fazer emdeterminado momento. Alis, s me interesso por aquilo que estou a fazernesse momento. Isso que realmente apaixonante. Depois, quando acabo,est resolvido o problema que eu procurei esclarecer e distancio-me umbocado. Passados uns anos posso voltar, mas com novas interrogaes.Aconteceu-me no decorrer do meu estudo recente sobre instituies edesenvolvimento econmico reler a minha tese de licenciatura sobre a crisede 1876, e at verificar que havia informao que podia ser interessantenesse novo contexto. Foi assim que decidi depositar este trabalho na Biblio-teca Nacional e nas principais bibliotecas universitrias. At ento s existianuma estante da minha arrecadao, pois me ausentei sem discutir a tese quetinha sido aceite na Faculdade de Letras. Voltando sua pergunta, no tenhonenhuma preferncia especial por nenhum trabalho que tenha feito. Achoque, de certo modo, todos deixaram de me interessar a partir do momentoem que encontrei resposta para as minhas interrogaes. Mas no significaque fico indiferente. E defendo com vigor as minhas interpretaes, quandoquestionadas.

    JVS Em que que est a trabalhar actualmente? Qual o tema quea ocupa neste momento?

    MHP Eu normalmente s gosto de falar dos trabalhos que acabei.Tenho sempre receio que no acabe um trabalho que comecei, seja ele qualfor, sem grande fundamento para isso, alis. Ser que vai correr bem? Claroque no a mesma nsia que eu tinha antigamente mas, de qualquer maneira,pode sempre correr mal, pode no dar, posso no ficar satisfeita com oresultado da investigao, por um motivo ou por outro. Nestes ltimos doisanos, alm de dois livros publicados (Mouzinho da Silveira, reedio que medeu bastante trabalho, e O Gosto pela Histria), e do trabalho de sntese jmencionado sobre instituies, estudei trs temas republicanos, um sobrea Repblica e a questo social, outro sobre a Repblica e o voto, e outroainda sobre a poltica da emigrao nessa poca. Acabei recentemente umpequeno trabalho para apresentar em So Paulo na prxima semana, relacio-nado tambm com a emigrao, A emergncia do conceito de emigrante napoltica de emigrao. At agora no havia um estudo sobre a categoriajurdica de emigrante e achei curioso descobrir a sua articulao com acronologia e a evoluo sociolgica do fenmeno em anlise. Podia parecerum regresso a um tema estudado, mas no foi, pois estudei quase toda alegislao sobre a emigrao de oitocentos e das primeiras dcadas do sculopassado com uma perspectiva completamente diferente da anterior, sobre apoltica da emigrao em si mesma. Agora acabei-o, j respondi minhapergunta, pergunta que eu me tinha colocado no princpio, e o assunto estmais ou menos encerrado para mim. Tambm preparei um livro, acabado depublicar agora no Brasil, com vrios estudos meus. O que eu vou fazer a

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    seguir? No lhe vou dizer, porque, como j expliquei, tenho esse hbito, sfalo das coisas quando as concluo. A minha agenda de trabalho para oprximo ano um desafio com o qual estou muito entusiasmada. Vamos vero que que d.

    JVS Voltemos ento ao passado. H pouco referiu algumas pessoasque tiveram influncia na sua formao inicial. Penso que tambm poderiater interesse para os leitores desta revista saber quais foram os historiadores,ou outros intelectuais, portugueses ou estrangeiros, que mais a marcaram aolongo da sua carreira acadmica, fosse pela positiva ou pela negativa.

    MHP Portugueses primeiro. Eu comecei por estudar em Portugal etive um contacto mais directo (ento apenas atravs dos livros) com autorescomo o Armando Castro, que foi muito importante no meu interesse pelosculo XIX. Um livrinho que ele publicou na Cosmos, com todos os limitesque tinha, era das poucas coisas que havia. Mais tarde apareceu um livro doMagalhes Godinho, Prix et monnaies. Os livros do Godinho sobre osDescobrimentos tambm foram importantes, mas como eu no me interesseipor essa poca, s tm relevncia no conjunto da minha formaometodolgica, de crtica das fontes e da manipulao e propaganda polticacolonialista. Depois, a um nvel mais geral, o Antnio Jos Saraiva, com osseus livros sobre a cultura portuguesa do sculo XIX ou o livro sobre oHerculano. O livro do Barradas de Carvalho sobre o Herculano menos,porque s o conheci mais tarde. Tambm os livros do Joel Serro sobre osculo XIX, aqueles primeiros livros, Temas Oitocentistas, que tambm sur-giram nessa altura, nos finais dos anos 50. H ainda um livro, hoje muitoesquecido mas que teve a sua importncia, uma Histria Contempornea doPovo Portugus, em dois volumes, de Flausino Torres. E parece-me que noestou a esquecer ningum muito relevante. A paisagem intelectual era topobre neste domnio

    Depois, como sabe, eu estive vrios anos em Paris, e h todo um uni-verso que se abre. extraordinrio o atraso que havia na altura em Portugal,o que no se conhecia de livros que j eram clssicos, e que j estavam atem certa medida a ficar desactualizados, mas que para mim foram extrema-mente importantes. Por exemplo, a obra do Labrousse, da qual nem mesmouma sntese traduzida em espanhol tinha chegado a Portugal. Depois, claro,o meu orientador de tese, Pierre Vilar, que foi realmente muito importantena abertura de novos horizontes. Assim como Braudel, que eu tambm noconhecia. J se falava dele um pouco em Portugal, mas sobretudo no seconheciam os seus livros fundamentais, conheciam-se mais os livros dedivulgao e no os grandes livros bsicos desse e doutros autores. Frequen-tei tambm na EHESS um seminrio de sociologia, de C. Bettelheim, e umde matemtica para as cincias sociais, do professor e matemtico Barbut,muito til e interessante.

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    JVS Foram ento sobretudo essas grandes figuras da historiografiafrancesa aquelas que tiveram uma maior influncia?

    MHP Numa primeira fase sim. Mas tambm a obra de vrios econo-mistas, desde os clssicos Aftalion, Marx ou Schumpeter, at Samir Amin,Imanuel Wallerstein, entre outros. Para cada tema que fui estudando aolongo da vida fui sempre encontrando novos autores, como Perrot, Agulhon,Rosanvallon. De lngua inglesa tambm Sewell, Thompson, Sabel eZeitlin, Esping-Andersen, tantos outros que esto sempre claramenteexplicitados nos meus diversos trabalhos. De qualquer maneira, mesmo antesde sair de Lisboa, eu conhecia tambm, e tinha at mais contacto (sempreintelectual e no pessoal) com a historiografia inglesa, atravs do InstitutoBritnico de Lisboa que tinha uma bela biblioteca nessa altura. At fiqueiadmirada por uma srie de autores ingleses no serem conhecidos nemestarem traduzidos em Frana. Quando me interessei, por exemplo, por umautor como E. P. Thompson, muito mais tarde, fiquei admiradssima deverificar que a traduo francesa era muito tardia, o mesmo sucedendo comHobsbawm, creio que mais conhecido em Portugal do que em Frana at aosanos 1980. Nessa poca, nos anos 60, a cultura francesa era muito fechadae muito pouco europeia. Tinha tambm os seus prprios limites, como ainglesa. Realmente cada pas vivia muito fechado sobre a sua prpria cultura,sobre os seus prprios trabalhos cientficos. Se calhar um dos primeirosautores a ter uma perspectiva europeia da histria e a contribuir muito nessesentido, ter sido mesmo o Hobsbawm, que muitas vezes desprezado porser generalista. H quem s refira os livros que ele escreveu na primeira fase,ligados a problemas sociais, a revoltas, mas eu acho que os outros livrosdele, no fundo virados para um grande pblico, foram extremamente impor-tantes para criar uma ideia de histria europeia. No vejo nenhum outro autorque tenha tido tanta importncia nesse domnio como ele, o que talvez seexplique pela sua prpria experincia familiar.

    JVS Esse gnero de abordagens mais macro as grandes narrativas,as grandes explicaes o que corresponde ao tipo de histria que maisa seduz?

    MHP Eu acho que preciso ser capaz de integrar aquele pequenouniverso que estamos a estudar, seja um pas seja um determinado problemada histria desse pas, numa viso sempre mais ampla. Seno, esse problemaque estamos a estudar no tem nenhum interesse. Ele nunca existiu isolado, uma construo artificial. Eu, quanto mais estudo a histria dos sculos XIXe XX, mais me estou a dar conta de que h uma sincronia frequente nasmedidas que se tomam em vrios pases, nomeadamente no Sul da Europa.E h uma evoluo conjunta. H uma Europa h muito tempo. A relaoentre os pases muito intensa, como se sabe, e portanto h uma histriainterligada, no de caminhos paralelos que no se encontram. A histria de

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    Portugal no se pode compreender, no mnimo, sem a histria de Espanhaque aqui ao lado. Ns normalmente fazemo-la voltados de costas. Temoso Atlntico, para o qual nos virmos. Estamos sempre a olhar para o mare no olhamos para o continente. Fazemos muito mal.

    JVS Na linha da pergunta que lhe fiz atrs, sobre os autores que maisa influenciaram, gostava de lhe perguntar tambm se alguma vez sentiu quefazia parte de uma escola, uma escola historiogrfica. Alguma vez teveesse sentimento de pertena, nem que seja olhando hoje retrospectivamente?

    MHP Sim, sim, absolutamente. Eu sempre me senti integrada numalinha historiogrfica muito ampla que rejeita a compartimentao do real emfatias isoladas, por exemplo estudando s a economia, ou s o social, ocultural ou o poltico. Portanto, perteno sem dvida nenhuma quele tipo dehistoriador que vive numa ansiedade muito grande porque acha sempre queno tem uma viso de conjunto suficiente ou que provavelmente no articulouainda o tema que estudou numa histria mais geral de uma forma satisfatria.No vou falar de histria total. Isso um mito, como j sabemos. Mas ummito que, apesar de tudo, estimulante, se calhar como todas as construesideais, que tm a funo de nos propor um objectivo difcil de alcanar masdo qual temos de tentar aproximar-nos. E sou contra uma histria estritamentequantitativa, mas no rejeito o quantitativo. O real to complexo que nopodemos isolar nenhuma das abordagens disponveis.

    JVS Com uma carreira de 50 anos, mas sempre muito atenta ao quese faz por esse mundo fora, que balano que faz das principais mudanasou dos momentos mais marcantes da historiografia internacional ao longode todo este perodo?

    MHP Bom, evidente que uma das grandes crises da historiografiaest ligada chamada crise do marxismo. evidente que foi um momentode incerteza para muitos historiadores, a inexistncia de um modelo (se quehavia um s modelo). Mas essa crise foi muito produtiva, a meu ver, porquea historiografia, ou pelo menos uma parte da historiografia que estava depen-dente desse modelo, encontrou outros caminhos. Eu acho que realmente hojeessa crise est ultrapassada e muito bem. Se calhar, j ningum se lembradela e j se pode olhar para a obra de Marx ou de historiadores marxistasde uma forma mais independente, mais autnoma, sem aceitar tudo de umaforma religiosa, mas tambm sem rejeitar tudo de uma forma igualmenteintransigente. Portanto, acho que hoje h at uma viso mais crtica e maisrica da Histria.

    JVS Num certo sentido, atravs daquilo a que agora se chama oglobal turn e o material return, parece mesmo assistir-se hoje a umretorno a algumas componentes da historiografia dos anos 50, 60 ou 70(no necessariamente a historiografia marxista, ou s essa), que est areabilitar aquela abordagem mais global e mais material da histria que

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    tinha sido muito posta em causa pelas perspectivas ps-modernas e ps--estruturalistas. Como que interpreta estas tendncias?

    MHP Sim, h uma linha culturalista que talvez tenha chegado a umponto extremo e que hoje parece estar a ser enriquecida por uma abordagemmais complexa.

    JVS Olhando agora um pouco para o caso portugus, gostaria desaber a sua opinio sobre as relaes entre as sucessivas geraes de his-toriadores que tem encontrado.

    MHP Vamos deixar de lado evidentemente a questo das relaespessoais, porque isso para mim no tem qualquer interesse, a no ser uminteresse afectivo e pessoal. O que me est a perguntar, portanto, se temhavido, em termos cientficos, uma transmisso cultural que foi til?

    JVS Sim, e tambm se acha que a evoluo se tem pautado mais porrupturas entre as diferentes geraes, ou se, pelo contrrio, tem prevalecidouma linha de continuidade. Ou mesmo se, do seu ponto de vista, o problemadas transies geracionais nem sequer muito significativo na historiografiaportuguesa

    MHP Pensando na actualidade, vejo por vezes que h nalguns jovenshistoriadores uma vontade de criarem falsas rupturas. Pessoalmente, nostemas que estudei sempre me interessou ver as origens, quem que tinhatrabalhado o tema antes, como o tinha efectuado, fazer um ponto da situaoe definir-me em relao ao que estava feito, muitas vezes em oposio oucom uma orientao diferente. Acho muito interessante fazer o ponto dasituao, mostrar de onde se partiu e acentuar, se o caso, a ruptura ou ainovao de cada nova investigao. No reconhecer que se est a contribuirpara uma linha de desenvolvimento que j existia anteriormente parece-meempobrecedor, inclusivamente para o conhecimento da prpria historiogra-fia. Essa atitude existe, felizmente s numa minoria de jovens investigadores,por vezes s por ignorncia... O papel dos seus orientadores pois funda-mental. Podem e devem ter uma posio activa em relao s boas prticascientficas, ou seja, s normas deontolgicas. Isso seria importante para ahistoriografia e para o progresso cientfico.

    JVS Numa perspectiva mais geral, como que v a histria e ahistoriografia hoje, em Portugal?

    MHP Vejo de uma maneira muito positiva. Acho que houve realmenteum alargamento da comunidade cientfica. Pela primeira vez, pode-se falarde uma comunidade cientfica. Ainda que ela seja pequena quando compa-rada com a de outros pases, j existe uma comunidade cientfica, o que erauma coisa que no existia antigamente. Lembro-me de sentir muito a faltade dilogo quando comecei a trabalhar e quando voltei para Portugal em1973. Quando entrei no ISCTE, senti a necessidade de constituir um centrode investigao o Centro de Estudos de Histria Contempornea Portu-

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    guesa, como ento se chamava, foi um dos primeiros centros novos nestedomnio. Foi difcil, no existiam as condies institucionais, nem financeirasde hoje, mas apesar disso singrou bem e teve um papel impulsionador. Hojeos investigadores que comeam a sua carreira encontram sempre parceiroscom quem discutir o assunto que esto a estudar e isso extremamenteestimulante e importante para o progresso cientfico. Houve no s umalargamento temtico, mas tambm uma subida qualitativa do nvel mdio.Indiscutivelmente. Vejo de uma maneira muito positiva o desenvolvimento dahistoriografia em Portugal nos ltimos anos. notvel o que se progrediuem to pouco tempo. As publicaes de livros e de revistas especializadasespelham esse ritmo da investigao, alm das revistas institucionais j exis-tentes, que foram renovadas, surgiram vrias revistas novas, como a nossaLer Histria, tornando mais fcil a difuso dos trabalhos recentes, particu-larmente importante para jovens historiadores/as. A diversidade de editorase a m difuso nas livrarias de pequenas editoras institucionais e privadas que constitui hoje um grande problema. Vale-nos a net. pena, porque eugosto de ir s livrarias, onde, aqui como nos outros pases, h cada vez maiss best-sellers, em geral de fraca qualidade.

    JVS E, olhando para o futuro, qual que acha que deveria ser aagenda da historiografia portuguesa? Quais so os principais desafios,problemas e oportunidades que ela enfrenta? Enfim, por onde que poderiaou deveria evoluir?

    MHP Em termos muito genricos, eu acho que devia enveredar maispor uma histria comparada, integrada na Pennsula Ibrica em primeirolugar, e, em segundo, integrada na Europa. Essa dimenso comparada fundamental, descobrem-se aspectos muito inovadores e muito enriquecedo-res. Alm disso reconstitui-se a realidade como ela foi. A realidade tevesempre uma dimenso ibrica e europeia. E, claro, tambm atlntica, umavertente que j est mais integrada na historiografia portuguesa, embora deuma forma por vezes demasiado nacionalista. Quando se estuda o imprio,por exemplo, estuda-se apenas o imprio portugus, no se estuda como que evoluram comparativamente outros imprios, pelo menos o imprioespanhol. Eu sei que j h historiadores que esto a trabalhar com essadimenso multinacional e esto a fazer um trabalho muito interessante.

    JVS A prpria questo da internacionalizao da historiografia por-tuguesa, que na comunidade se discute muitas vezes, parece-lhe que est aevoluir da maneira certa, ou que h sequer possibilidades de uma verdadeirainternacionalizao desta historiografia, sendo Portugal um pequeno pas?

    MHP Eu acho que a nica maneira de fazer essa internacionalizaoa srio pela histria comparada, porque a histria de Portugal isoladamenteinteressa pouco ao meio cientfico. Quer dizer, fcil a histria da Frana ouda Inglaterra ou da Alemanha interessar a qualquer cidado japons ou a um

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    cidado indiano. mais difcil interess-lo pela histria de Portugal, apesar dasligaes distantes existentes noutros tempos, e de que poucos sabem...A geopoltica tem uma enorme influncia nas cincias sociais. De qualquermaneira, evidente que um pequeno pas s se pode tornar interessante comuma histria integrada, comparada, que mostre ao mesmo tempo a suaespecificidade, onde ela existe, e tambm o que ela tem de comum.

    JVS Passando agora para um plano mais alargado, em que que ahistria se distingue, e em que que se aproxima, das outras cincias sociais?

    MHP A questo do tempo fundamental, como evidente. o tempoque distingue a histria de outras cincias sociais que se situam no presente.Claro que sabemos que essa uma fronteira que nos ltimos anos tendeua esbater-se, na medida em que nas outras cincias sociais, por exemplo naantropologia e na sociologia, tambm houve um interesse pelo passado, pelasorigens. H antroplogos e socilogos que se tornaram historiadores e as-similaram por completo a percepo de que o tempo fundamental, de queas categorias e os conceitos econmicos, sociais, polticas no so abstrac-tos e intemporais. Mas, em geral, a perspectiva no a mesma. Nas outrascincias sociais visa-se a definio de leis gerais intemporais. Ora, a grandediferena entre a sociedade e a natureza fsica o tempo social.

    JVS E, por falar em cincias sociais, como que v a sua evoluoem Portugal no ltimo meio sculo?

    MHP Tambm houve um progresso extraordinrio. Alis, para come-ar, a maior parte delas no existia praticamente. De um modo geral, ahistria a cincia social mais antiga em todo o mundo, e em Portugal erapraticamente aquela que era tolerada e que at era favorecida, num certosentido, pelo Estado Novo. Como se sabe, a sociologia era proibida, aprpria palavra era proibida. Da a origem do nome deste instituto, ISCTE(Instituto Superior de Cincias do Trabalho e da Empresa), porque no sepodia falar de sociologia mesmo quando ela existia. Portanto, havia as cin-cias do trabalho. A antropologia tinha-se desenvolvido no sculo XIX. Tive-mos uma antropologia fsica e mesmo uma antropologia humana, talvez maisetnologia, que apareceu ao mesmo tempo que nos outros pases, e ligada expanso colonial. Tivemos os nossos pioneiros mas depois houve um corteenorme. Tirando dois ou trs nomes, de facto houve um definhamento daantropologia. A psicologia era um desastre. Enfim, existia, mas as pessoasque se dedicavam a ela eram pessoas que no tinham qualidades intelectuais,pura e simplesmente, tirando uma excepo ou outra, claro, ligada mais medicina e outros trabalhos. Mas isso no bem a psicologia, mais apsiquiatria. A geografia realmente foi privilegiada. A geografia humana foitolerada e essa teve maior continuidade no seu desenvolvimento. Mas, de ummodo geral, evidente que as cincias sociais se implantaram de uma formamais definida, mais estvel, e tiveram um enorme desenvolvimento nos l-

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    timos 50 anos em Portugal. Tambm a, como evidente, se constituramcomunidades cientficas considerveis.

    JVS Como que classificaria o papel desempenhado pela revistaAnlise Social, e tambm pelo Instituto de Cincias Sociais, neste processode afirmao das cincias sociais em Portugal?

    MHP Bom, antes de haver o ICS houve o GIS, portanto a AnliseSocial era uma revista do GIS e o GIS era uma instituio ligada ao InstitutoSuperior de Economia. Foi criado por um grupo de economistas porque nohavia socilogos. O Adrito Sedas Nunes um self-made socilogo, vem daeconomia. Outros ficaram ligados economia, como o Mrio Murteira.O GIS, depois de ter estado ligado ao ISEF, como se chamava nessa altura,criou uma certa autonomia mas acabou tambm por ter uma existncia muitoligada ao ISCTE. No do ponto de vista institucional, porque se mantevesempre autnomo, embora o Adrito Sedas Nunes tenha tido um projecto deintegrao do GIS no ISCTE, que estava pronto quando veio o 25 de Abril. claro, com a evoluo subsequente ps de lado esse projecto, e comrazo. Mas uma grande parte dos investigadores do ento GIS, e mesmo noprincpio do prprio ICS, eram professores do ISCTE, que foi um grandesuporte financeiro no desenvolvimento do GIS e do ICS. No havia inves-tigadores a pleno tempo, a carreira de investigador relativamente recente.Portanto, no princpio houve uma relao entre o ISCTE, o GIS e o ICS,que agora ainda existe, mas em termos muito diferentes e de muito maiorautonomia. At porque o ISCTE constituiu entretanto os seus prprios cen-tros de investigao, com uma importncia indiscutvel.

    Mas falou-me da Anlise Social. A Anlise Social uma revista que teve,e continua a ter, um papel extremamente importante na difuso dos conhe-cimentos cientficos nas diferentes reas da histria e das cincias sociais.Foi, alis, a revista onde eu publiquei o primeiro artigo que escrevi, sobredemografia, que era o meu primeiro captulo da tese. No tinha mais nadaescrito quando o Sedas apareceu em Paris e se lembrou de me convidar paracolaborar na Anlise Social. uma revista que soube acompanhar a evolu-o dos tempos e que hoje, para grande felicidade dos investigadores, estdigitalizada. Tem, claro, um suporte financeiro que lhe permite sofrer odesgaste da digitalizao, o qual pode ser um problema para as revistas. Masd muito jeito que esteja digitalizada e muito importante para a difuso dostrabalhos nela publicados.

    JVS Qual o papel que atribui aos factores institucionais ou aoenquadramento institucional na explicao do modo como as cincias so-ciais evoluram em Portugal nas ltimas dcadas?

    MHP Fundamental, e nunca demais salientar a importncia de umEstado democrtico, onde existe liberdade de expresso. Mas no teria sidosuficiente. Foi fundamental a poltica de apoio cincia, em particular s

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    Jos Vicente Serro

    cincias sociais, das ltimas dcadas, por parte do Estado e tambm deinstituies privadas, entre as quais se destaca a Fundao Gulbenkian. Veioao encontro do meio acadmico onde se tinham vindo a constituir vrioscentros de investigao novos. Os programas de financiamento plurianualso fundamentais, juntaram-se ao modelo pr-existente de projectos indivi-duais e colectivos de investigao. Sublinhe-se o incremento dado qualifi-cao acadmica, mediante bolsas de diferentes nveis, em particular demestrado e doutoramento. Foram determinantes para o crescimento da co-munidade cientfica. Hoje, o estrato mais jovem desta comunidade confron-ta-se porm com a poltica de conteno do corpo acadmico dos ltimosanos e o consequente envelhecimento do corpo acadmico. Um problemamuito grave, que pode anular os benefcios da poltica de desenvolvimentocientfico na rea das cincias sociais, pela qual o mundo empresarialpouco se interessa em tempos normais e ainda menos em poca de crise.A implementao da internacionalizao tem sido outra vertente importanteda poltica cientfica. Mas no posso concordar com a desvalorizao daproduo em lngua portuguesa e em publicaes portuguesas, nem com osjuris s de investigadores estrangeiros, que a tem acompanhado. Isso pare-ce-me uma forma de matar a componente cientfica da cultura portuguesa,uma espcie de harakiri cultural!

    JVS Falar das cincias sociais e das relaes entre elas leva-nostambm a pensar na interdisciplinaridade, um conceito, como todos sabe-mos, difcil de definir e talvez ainda mais de aplicar. Normalmente, nacomunidade acadmica h uma retrica predominante em favor da interdis-ciplinaridade e dos seus benefcios. Ora, eu gostava de lhe colocar a ques-to ao contrrio: o que que se pode perder com a interdisciplinaridade?

    MHP Isso estranho!JVS provocadorMHP provocador, sim, porque eu acho que se perde imenso, acho

    que seria um regresso, um empobrecimento do conhecimento cientfico narea das cincias sociais e da histria. inconcebvel que se voltasse atrs.A interdisciplinaridade tornou-se uma maneira de trabalhar natural. Em certamedida, j no nos damos bem conta disso, porque se tornou um hbitointelectual, quando vamos estudar determinado tema, lermos o que se escre-veu sobre esse tema em diferentes dimenses, para termos uma viso deconjunto que certamente enriquecedora do nosso prprio trabalho. Isso uma dimenso do trabalho intelectual que deve ser quase automtica. Aspessoas que no seguem esse caminho so aqueles historiadores amadores,enfim, so aqueles elementos que, no fundo, a comunidade cientfica vcomo marginais, embora possam ter um grande xito comercial, eventual-mente mais do que os outros.

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    Entrevista a Miriam Halpern Pereira

    JVS Para acabarmos a entrevista eu queria voltar novamente histria e ao seu papel na sociedade. Num momento como este, em que opas est mergulhado numa depresso profunda, o que que a histria e oshistoriadores tm para oferecer? No mnimo, o que que a histria ou oshistoriadores tm para dizer?

    MHP Bem, infelizmente os historiadores tm imenso para dizer. In-felizmente, porque momentos muito dramticos como este j foram vividosem Portugal e, portanto, os historiadores podem por exemplo evocar agrande crise de 1808, a de 1891, mas tambm a crise dos anos 1929-1930,que foi terrvel e conduziu a uma ditadura terrvel e muito dramtica, euacho. Durou umas dcadas e deu cabo da vida de muita gente. No vejo aquesto s em termos econmicos. uma causa do atraso de que ainda hojesofremos, o que aconteceu com o Estado Novo. Ainda hoje sofremos, emtodos os domnios, muito mais do que temos conscincia. Os historiadorespodem lembrar isso, acho que pode ter utilidade. Infelizmente os historiado-res esto a ser pouco lembrados, ou melhor, no bem os historiadores, a histria que est a ser mal evocada, numa linha de propaganda. Agora,tem-se evocado de uma maneira parcial. Por exemplo, uma ideia falsa quetem estado a ser difundida a de que ns, tirando alguns perodos excep-cionais, sempre tivemos uma situao de dvida externa, foi sempre tudoigual. O que, de resto, no se percebe e entra at em contradio com ooutro lado do discurso poltico actual, que atribui uma origem muito precisae muito limitada no tempo a esta dvida. Mas as duas linhas coexistem nasmesmas pessoas exactamente. O que curioso, nem se do conta da con-tradio.