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24/01/13 14:55 Uma visão íntima de sua vida pública Página 1 de 3 http://www.valor.com.br/imprimir/noticia_impresso/2905574 Imprimir () (/sites/default/files/images/sipaphotosthree634405.jpg) Pilar na fundação que dirige, na Casa dos Bicos, em Lisboa: segundo ela, o escritor afirmava que "não deveria ser feita uma Europa dos mercadores, mas uma Europa da cultura" 16/11/2012 - 00:00 Uma visão íntima de sua vida pública Por Na mesa de trabalho de Pilar del Río, ao lado de um par de rosas brancas e alguns porta-retratos, descansa "O Ano da Morte de Ricardo Reis", livro que fez que ela, em 1986, conhecesse José Saramago. A jornalista espanhola foi leitora, admiradora, logo amiga e por fim companheira, por mais de 20 anos, do escritor português. Hoje preside a fundação que trabalha para - mas não só, como gosta de frisar - manter viva a memória do autor de obras potentes como "Levantado do Chão" e "História do Cerco de Lisboa". Em meio aos preparativos para as celebrações dos 90 anos de Saramago, Pilar encontra um espaço na agenda para conversar com o Valor em seu escritório, na Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago. Pede um minuto para responder a um e-mail urgente e quando fecha o computador busca em um armário uma foto que, dois dias antes, fora salva de uma enchente. Por causa de um temporal e de uma obra no prédio vizinho, a casa de Pilar inundou. E ela, de madrugada, se viu arrastando móveis e enxugando fotos. Conseguiu salvar esse retrato em branco e preto de um casal abraçado diante de um monumento. "É a primeira foto minha e do José juntos. Foi tirada em Lisboa. O mais incrível é que, passados quase 30 anos, tenho a mesma saia. É esta com que estou vestida." É uma veste longa, negra, da mesma cor das meias e dos sapatos, e fazem bom contraste com a blusa cinza brilhante que usa. A delicadeza do traje e do físico contrasta com a firmeza das palavras e dos gestos. "Nós não vamos nos suicidar", diz, como quem desafia alguém, ao falar sobre a crise na Europa. Ao fim da entrevista escolhe outro retrato para mostrar: um José Saramago despojado aparece deitado na grama, em um piquenique. Além do escritor, do militante político, do comunista convicto, havia também a versão marido com quem desfrutava de momentos de tranquilidade. "Ele era esse homem também", diz, segurando uma fotografia, essa

Entrevista a Pilar del Río

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Jornalista espanhola fala sobre os projetos da Fundação José Saramago, para o Valor Econômico, novembro de 2012

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(/sites/default/files/images/sipaphotosthree634405.jpg)Pilar na fundação quedirige, na Casa dos Bicos, em Lisboa: segundo ela, o escritor afirmava que "não deveria ser feita uma Europa dosmercadores, mas uma Europa da cultura"

16/11/2012 - 00:00

Uma visão íntima de sua vida pública

Por

Na mesa de trabalho de Pilar del Río, ao lado de um par de rosas brancas e alguns porta-retratos, descansa "O Ano daMorte de Ricardo Reis", livro que fez que ela, em 1986, conhecesse José Saramago. A jornalista espanhola foi leitora,admiradora, logo amiga e por fim companheira, por mais de 20 anos, do escritor português. Hoje preside a fundaçãoque trabalha para - mas não só, como gosta de frisar - manter viva a memória do autor de obras potentes como"Levantado do Chão" e "História do Cerco de Lisboa".

Em meio aos preparativos para as celebrações dos 90 anos de Saramago, Pilar encontra um espaço na agenda paraconversar com o Valor em seu escritório, na Casa dos Bicos, sede da Fundação José Saramago. Pede um minuto pararesponder a um e-mail urgente e quando fecha o computador busca em um armário uma foto que, dois dias antes, forasalva de uma enchente. Por causa de um temporal e de uma obra no prédio vizinho, a casa de Pilar inundou. E ela, demadrugada, se viu arrastando móveis e enxugando fotos. Conseguiu salvar esse retrato em branco e preto de um casalabraçado diante de um monumento.

"É a primeira foto minha e do José juntos. Foi tirada em Lisboa. O mais incrível é que, passados quase 30 anos, tenhoa mesma saia. É esta com que estou vestida." É uma veste longa, negra, da mesma cor das meias e dos sapatos, e fazembom contraste com a blusa cinza brilhante que usa. A delicadeza do traje e do físico contrasta com a firmeza daspalavras e dos gestos. "Nós não vamos nos suicidar", diz, como quem desafia alguém, ao falar sobre a crise na Europa.

Ao fim da entrevista escolhe outro retrato para mostrar: um José Saramago despojado aparece deitado na grama, emum piquenique. Além do escritor, do militante político, do comunista convicto, havia também a versão marido comquem desfrutava de momentos de tranquilidade. "Ele era esse homem também", diz, segurando uma fotografia, essa

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em cores, na qual um homem risonho aproveita um dia de sol tendo como paisagem uma montanha. Ele parececontente no instantâneo, e ela, ao mostrá-lo, também.

Valor: José Saramago era muito querido e respeitado, e no documentário "José e Pilar" se nota que havia até certaidolatria em relação a ele. Um pouco improvável para um ateu, comunista...

"Saramago dizia que não era uma crise econômica, mas uma crise moral a que estávamos passandoe dela é que nasciam as demais crises", diz Pilar

Pilar del Río: Qual é o problema de ser comunista? O comunismo é ultrapassado? Não. Ultrapassado é ocapitalismo. O comunismo foi uma tentativa de igualdade que, onde foi implantado, deu errado justamente porque setransformou em outra coisa. Agora, o que, sim, sabemos é que o capitalismo é um sistema pervertido. Saramago foi tãoquerido porque era um a mais. Eu vi [se levanta da cadeira], quando ele andava na rua, as pessoas darem passo comosinal de admiração. E vi uma grávida fazer isso. "Minha senhora, por favor", disse o José. E sabe o que a mulherrespondeu? "Por favor, passe o senhor, quero poder dizer a meu filho [coloca a mão na barriga] que dei meu lugar aJosé Saramago." Era assim. No México, na feira literária, ele teve que ser escoltado porque as pessoas queriam seaproximar e eram muitas, e todas queriam um autógrafo. E ele dizia: "Mas como vou negar uma foto com alguém,quem sou eu para dizer não?" E no fim, quando não havia mais tempo porque iríamos perder o voo, ele passou pelocorredor esticando os braços e tocando a mão das pessoas.

Valor: Saramago alertou, há bastante tempo, sobre os rumos que a União Europeia poderia seguir. Em 1997 disseque não passava de um "império econômico". Foi muito criticado, mas hoje em dia alguns compartilham dessaopinião.

Pilar: Saramago dizia que não era uma crise econômica, mas uma crise moral a que estávamos passando e dela é quenasciam as demais crises. Estive em Nova York justamente quando do furacão Sandy [a viagem era para participar deeventos em homenagem a Saramago, que acabaram cancelados]. Não tive medo, mas voltei estarrecida. Para mim,ficou claro que, como descrito em "Ensaio Sobre a Cegueira", o sistema está construído sobre o ar. Nunca havia vistotão exposta a fragilidade do sistema como vi nesses dias, e por um temporal. Inclusive os mais ricos são frágeis.Saramago tinha dito, mas só agora eu constatei.

Valor: O que diria Saramago dessa Europa que parece não saber como sair do buraco em que se meteu?

Pilar: O que diria não podemos saber, mas sabemos, sim, o que ele já disse. Está tudo nos "Cadernos de Lanzarote".Ali estão as respostas: Saramago dizia que não deveria ser feita uma Europa dos mercadores, mas uma Europa dacultura. Há um vídeo que tem sido muito compartilhado na internet em que Saramago diz que a alternativa para oneoliberalismo é a consciência. E repete, no fim da fala, várias vezes a palavra: consciência, consciência, consciência! Éisso que falta.

Valor: Como a crise afeta a fundação?

Pilar: Não afeta. Não deixamos que afete. Não despediremos ninguém, viveremos a crise todos juntos, comcontenção, mas todos juntos. Aqui nós não vamos nos suicidar, é o que querem, mas não vamos nos suicidar. Aspessoas realmente estão passando muito mal, mas o que me intriga é por que elas não mordem?

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Valor: Angela Merkel disse recentemente que será preciso mais cinco anos de sacrifício para sair da crise e pediuum esforço mais. Acha suportável mais cinco anos assim?

Pilar: Vamos ver, não digo que são corruptos porque não gosto de ofender, mas o que digo é que a senhora AngelaMerkel e esses que estão aí não têm a menor ideia do que está acontecendo, não vivem na realidade, vivem em Marte.Não frequentam as ruas, não sabem o que se está passando e perderam totalmente o sentido da moralidade.

Valor: Saramago deixou um livro inacabado, que tratava da indústria armamentista. Esse material serápublicado?

Pilar: Sim, será, mas não sei quando. Não faremos uma operação comercial em cima disso. Estudaremos o momentoe o como fazer. Quem tem esse manuscrito sou eu, e será uma decisão muito meditada sua publicação. Não tenhopressa. Ou melhor, tenho pressa, mas, enfim... (RV)