27
8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 1/27 Heloisa – O convite para o senhor participar des- ta entrevista foi motivado por uma dupla razão. De um lado, pelo nosso interesse em entrevistar uma pessoa tão importante como o senhor na nossa história intelectual e, também, na história das ciências sociais em São Paulo, que é um dos temas da pesquisa que estamos desenvolvendo aqui, no Idesp. 1 De outro lado, temos um objeti-  vo muito específico que é o de publicar esta en- trevista, junto com uma série de outras entrevistas que pretendemos fazer com pessoas centrais, como o senhor, na história das ciências sociais no Brasil. Estamos pensando em editá-las em um vo- lume separado e, quem sabe, se isto não for pos- sível em curto prazo, publicar primeiro a sua en- trevista na  Revista Brasileira de Ciências Sociais . Nós fizemos um roteiro que vai servir mais para nos orientarmos do que para pautar a entrevista.  Antonio Candido – É melhor vocês usarem o ro- teiro, porque eu tenho uma certa tendência para a loquacidade! Heloisa – Ótimo! Nós gostaríamos que o senhor falasse sobre a história das ciências sociais em São Paulo e, sobretudo, sobre a sua vida e traje- tória. Mas, para dar o chute inicial, será que o se- nhor poderia abordar primeiro a questão do im- pacto da revolução de 1930 para o senhor e a sua geração?  Antonio Candido – Vocês querem que eu fale so- bre a incrível atmosfera de paixão pelas coisas so- ciais que aconteceu depois de 30? ENTREVISTA COM  ANTONIO CANDIDO* Heloisa Pontes * Entrevista feita em 19 de agosto de 1987, no Insti- tuto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo – Idesp. Revista pelo autor em julho de 2001. Transcrita e editada por Heloisa Pontes.  RBCS Vol. 16 nº . 47 outubro/2001

Entrevista com Antonio Candido

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 1/27

Heloisa – O convite para o senhor participar des-ta entrevista foi motivado por uma dupla razão.De um lado, pelo nosso interesse em entrevistaruma pessoa tão importante como o senhor nanossa história intelectual e, também, na históriadas ciências sociais em São Paulo, que é um dostemas da pesquisa que estamos desenvolvendoaqui, no Idesp.1 De outro lado, temos um objeti-

 vo muito específico que é o de publicar esta en-trevista, junto com uma série de outras entrevistasque pretendemos fazer com pessoas centrais,como o senhor, na história das ciências sociais no

Brasil. Estamos pensando em editá-las em um vo-lume separado e, quem sabe, se isto não for pos-sível em curto prazo, publicar primeiro a sua en-

trevista na  Revista Brasileira de Ciências Sociais .Nós fizemos um roteiro que vai servir mais paranos orientarmos do que para pautar a entrevista.

 Antonio Candido – É melhor vocês usarem o ro-teiro, porque eu tenho uma certa tendência paraa loquacidade!

Heloisa – Ótimo! Nós gostaríamos que o senhorfalasse sobre a história das ciências sociais emSão Paulo e, sobretudo, sobre a sua vida e traje-tória. Mas, para dar o chute inicial, será que o se-

nhor poderia abordar primeiro a questão do im-pacto da revolução de 1930 para o senhor e a suageração?

 Antonio Candido – Vocês querem que eu fale so-bre a incrível atmosfera de paixão pelas coisas so-ciais que aconteceu depois de 30?

ENTREVISTA COM

 ANTONIO CANDIDO*

Heloisa Pontes

* Entrevista feita em 19 de agosto de 1987, no Insti-tuto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos deSão Paulo – Idesp. Revista pelo autor em julho de2001. Transcrita e editada por Heloisa Pontes.

 RBCS Vol. 16 nº. 47 outubro/2001

Page 2: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 2/27

Heloisa – Isso!

 Antonio Candido – Para as pessoas da minha ida-de que estão na faixa dos 70, e sobretudo para as

mais velhas que eu, o impacto da revolução de1930 foi tremendo.2 Hoje eu vejo pessoas de res-ponsabilidade minimizarem muito a década de 30,com o argumento de que não houve uma revolu-ção, e sim um movimento burguês. Não foi umarevolução social, como a russa ou a francesa, éclaro, mas o movimento armado de 1930, quecoincidiu com uma crise econômica sem prece-dentes, teve impacto enorme na vida política e nacultura. Foi quando surgiu a expressão “realidadebrasileira”, que de tão utilizada se tornou até meioridícula. Em qualquer discurso, artigo, ensaio apa-recia a expressão.

Esse interesse foi decisivo, por exemplo, parao aparecimento das grandes coleções, em especiala Biblioteca Pedagógica Brasileira, talvez o maisnotável empreendimento editorial que o país co-nheceu até hoje. Vocês não podem imaginar o quefoi essa coleção. Ela marcou a nossa época. Con-cebida, planejada e durante muito tempo dirigidapor Fernando de Azevedo, tinha cinco seções: Bra-siliana, Atualidades Pedagógicas, AtualidadesCientíficas, Livros Infantis e Livros Didáticos. A

Brasiliana foi um marco decisivo, não apenas pelareedição de clássicos estrangeiros e nacionais, maspelo estímulo a autores contemporâneos.

Graças à seção de Livros Didáticos o paíscomeçou a ter em larga escala obras destinadasao ensino escritas por autores brasileiros ajusta-dos à nossa realidade. Para vocês, que se forma-ram muito mais tarde, isto deve parecer semsentido. Mas foi só depois de 1930 que o desejode nacionalizar o livro e torná-lo instrumento

 vivo de cultura se generalizou em grande escala.O que havia antes nesse sentido era relativamen-

te pouco, de modo que nós dependíamos da bi-bliografia estrangeira.

Para vocês terem uma idéia mais precisa doque isto significou, basta dizer que, antes do de-cênio de 30, os alunos do ginásio que quisessemlivros bons tinham de recorrer a obras como: His-tória natural, de Pizon, Química, de Bazin, Geo-

logia, de Langlebert,  Matemática, de Comberous-

se  , Física, de Ganot (ou do seu mau adaptadorportuguês Nobre) etc. etc. De repente, Fernando

  Azevedo, que foi fundamental nesse processo,criou uma biblioteca didática brasileira, graças à

qual os alunos de ginásio estudavam em livros fei-tos aqui em função deles. E isso ocorreu em vá-rias outras editoras, de São Paulo, do Rio, de Por-to Alegre.

Eu lembro da importância que tiveram livroscomo  Anatomia e fisiologia humana, de Antoniode Almeida Júnior, ou  Biologia geral , de Cândidode Mello Leitão, que dispensavam o acesso a Pi-zon, que só se podia ler em francês. Ou a série delivros de Joaquim Silva, que tomaram no ensino dehistória da civilização o lugar da rançosa  História

universal, do português Raposo Botelho. Muitosdos livros em português a que tínhamos acessoeram traduções das coleções francesas, F.T.D eF.I.C, todos publicados anonimamente e esta feitapelos maristas, cuja mentalidade tacanha e retró-grada aparecia sobretudo nos livros de história.

Quanto aos estudos brasileiros, a coleçãoBrasiliana, criada em 1931, foi seguida por outras,como Documentos Brasileiros, a partir de 1936,dirigida por Gilberto Freyre para a Editora JoséOlympio. Ou a Biblioteca de Divulgação Científi-ca, dirigida na Civilização Brasileira por Artur Ra-

mos, e outras menos importantes. O Brasil come-çou a se apalpar. Lembro de Afonso Arinos afir-mar, num artigo, que raros países demonstravamtanta curiosidade sobre si mesmos quanto o Bra-sil naquela época. Lembro também de um artigode Plínio Barreto, de 1937 ou 38, no qual diziaque na geração anterior todo jovem sonhava en-trar na vida intelectual com um livro de poesias.Mas depois de 1930 o sonho era publicar um livrode sociologia... A voga dos estudos sociais corres-pondia ao grande desejo que o Brasil tinha de seconhecer.

Muito importante nesse sentido foi a inicia-tiva de Fernando de Azevedo de publicar os via-jantes estrangeiros do século XIX. Em 1932, nósestávamos de passagem em São Paulo, vindos doRio para Minas, quando meu pai chegou ao ho-tel com uma pilha de livros, entre os quais al-guns com a capa vistosa da Brasiliana, que vipela primeira vez: um mapa do Brasil de uma cor

6 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 3: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 3/27

sobre fundo de outra, tudo semeado de estrelasbrancas. Eram:  Raça e assimilação, de Oliveira

 Vianna,   As idéias de Alberto Torres, de AlcidesGentil , O marquês de Barbacena, de Pandiá Ca-

lógeras,  A segunda viagem ao Rio de Janeiro e à província de Minas Gerais , de Saint-Hilaire. “Vo-cês devem ler isso”, disse a mim e a meus ir-mãos. Eu tinha um pouco menos de 14 anos ecomecei logo por Saint-Hilaire esse processo deiniciação ao Brasil.

 A iniciativa de Fernando de Azevedo se ligaà atmosfera de grande interesse pelos estudos so-ciais e políticos, que vinha dos anos de 1920 masexplodiu depois de 30, inclusive com o adventodos estudos sociológicos. Ao mesmo tempo houveuma espécie de radicalização das posições ideoló-gicas, para a esquerda ou para a direita, gerandopor parte desta certa desconfiança em relação àsociologia, considerada dissolvente dos valorestradicionais. Mesmo as idéias pedagógicas moder-nas despertaram animosidade, a tal ponto que areforma do ensino feita por Fernando de Azevedono Rio de Janeiro, antigo Distrito Federal, de 1927a 1930, chegou a ser considerada empresa comu-nista. Ainda predominavam, no começo do decê-nio, obras de corte conservador, como Populações 

meridionais , de Oliveira Vianna, que Fernando de

 Azevedo, aliás, reeditou na Brasiliana. E foi nesseenquadramento que, de repente, surgiu em 1933,Casa-grande & senzala.

Heloisa – Como foi a reação ao livro, professor?

 Antonio Candido – Hoje é difícil a vocês avaliar oimpacto dessa publicação. Foi um verdadeiro ter-remoto, com reações favoráveis por parte damaioria dos leitores, sobretudo os mais esclareci-dos, inclusive os comunistas. Mas houve muitarestrição por parte dos elementos conservadores e

da direita. É preciso vocês esquecerem as críticasposteriores sobre o corte conservador de muitasposições de Gilberto Freyre, porque numa pers-pectiva de história das idéias o livro dele atuoucomo força radical, devido à sua grande carga dedesmistificação.

Heloisa – O que mais impressionava no livro?

 Antonio Candido – Para responder talvez valha apena contar como fiquei conhecendo o livro, em1934. Eu tinha dois amigos, os irmãos AntonioCarlos e José Bonifácio de Andrada e Silva, que

eram de esquerda, sendo um da minha idade eoutro um ano mais velho. Como se vê pelo nome,pertenciam a uma família importante de políticos,uns liberais, outros conservadores, mas o ramodeles era todo de esquerda, tanto assim que tive-ram um tio preso em Santos em 1935 por ocasiãodo levante comunista. Esses rapazes influírammuito na minha inclinação progressiva para o so-cialismo. Tendo morrido o pai, a mãe deles semudou em 1933 para Poços de Caldas, de ondeera natural e onde eu morava com minha família.Eles leram Casa-grande & senzala e me contaramcomo era o livro, do qual líamos trechos juntos. Aprimeira reação que lembro foi do Antonio Carlos,que começou a se olhar no espelho, a puxar oslábios para engrossá-los, dizendo: “Acho que soumulato”!

Conto isso para indicar que nós, adolescen-tes, começamos por aí a tomar consciência damestiçagem como algo próximo de nós, nãocomo fato externo, mas como algo de que certa-mente participávamos, nós que éramos de famí-lias antigas, formadas num tempo em que eram

intensas as relações sexuais entre senhores e es-cravas. Começamos a sentir que nalgum lugar danossa ascendência, mais longe ou mais perto, po-deria estar um antepassado negro. Se não me en-gana a memória, creio que foram desse tipo asnossas primeiras reações.

Parece que não é nada, mas é alguma coisa.Como vocês sabem, as famílias brasileiras sempreforam preconceituosas: mesmo, e talvez sobretudo,quanto eram mestiças. Léopold Sendar Senghor,então presidente do Senegal, contou a um jornalis-ta francês o seguinte: quando esteve no Brasil, foi

recebido de uma maneira encantadora. O presiden-te Juscelino Kubitscheck e os figurões do governolhe diziam que gostavam muito dos negros, que fo-ram amamentados por mãe preta, ou tiveram amassecas negras, pelas quais demonstravam extraordi-nário carinho. Senghor concluía: todos falavamcom ternura das mães pretas que os criaram, masnenhum mencionava a avó mulata que todos cer-

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 7

Page 4: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 4/27

tamente tinham, como era visível por uma inspe-ção à primeira vista...

Resumindo, eu diria que talvez as nossas pri-meira impressões depois da leitura de Casa-gran-

de & senzala foram que o negro teve importânciafundamental não apenas na economia, mas na for-mação familiar e afetiva do brasileiro; e que a mes-tiçagem não era um fato relativo aos outros, mas acada um de nós, eventualmente. Mais tarde viemosa saber que muitas dessas coisas já tinham sido di-tas, inclusive por Sílvio Romero. Mas no tempo deSílvio os tempos não estavam maduros, de modoque a bomba foi lançada por Gilberto Freyre, aquem ficamos devendo a noção exata da presençae da dignidade do negro.

Mais tarde percebi a extraordinária liberdadecom que ele estudava a sociedade. Eu tinha lido na-quela altura Oliveira Vianna, que meu pai admiravae cujos livros possuía. Quem descende de muitasgerações de fazendeiros, como ele, podia aceitar aperigosa noção de “aristocracia rural” formada poruma elite branca. Se lembro bem, ele ia um pouconessa onda. Aliás, em Gilberto Freyre há tambémum pouco disso, mas apesar dos fermentos elitistasdo seu livro ele mostrou que a formação do paísnão podia ser interpretada pela raça. Para nós, jo-

 vens bastante ignorantes, foi uma revelação a expli-

cação que ela dava por meio da cultura, que nãopodíamos avaliar bem no momento mas teve papelcada vez mais importante em nosso modo de ver.Ele mostrou que o essencial está na organização fa-miliar e política, na maneira de vestir, comer, na

 vida sexual, na relação com o meio. Graças a elecomeçou a se impor uma visão mais dinâmica, maismóvel da sociedade. As explicações por meio daraça são muito rígidas. E isso ajudou o brasileiro adesafogar, a ficar mais livre da mania de imitar atodo custo os padrões europeus, inclusive a maniada brancura, que aqui toca no ridículo. O Oliveira

 Vianna, por exemplo, tão racista, era mestiço. Elísiode Carvalho, autor de um dos livros mais racistas ereacionários,  Evolução da sociedade brasileira, de1912, era mulato escuro. Gilberto Freyre contribuiupara acabar com essas coisas.

Heloisa – O senhor já estava na faculdade quan-do leu Casa-grande & senzala?

 Antonio Candido – Não. Como disse, mais parti-cipei da leitura de meus amigos do que li Casa-

 grande & senzala quando estava no 3º. ano do gi-násio. Só fui ler direito, de cabo a rabo, depois de

terminado o ginásio, no fim de 1935. Nessa oca-sião meu pai me deu de presente a 3ª. edição.Devo ter feito a leitura completa lá por 1937 ou38, já no curso complementar.

Quero ainda dizer que aos poucos fui vendooutros lados do livro, nem sempre favoráveis.Creio que o li inteiro umas cinco vezes, e umacoisa que acabou parecendo negativa foi a visãosenhorial a que aludi há pouco, a idéia de que aclasse dominante era o sal da sociedade. É fatoque ela fez muito e em certos casos tudo, mas issonão justifica o desvanecimento em relação a ela.

 Além disso, ele extrapolou ao estender para todoo Brasil traços que são apenas do Nordeste, so-bretudo de Pernambuco. Segundo me disse umeminente pernambucano, mesmo em relação aPernambuco houve extrapolação, pois GilbertoFreyre, rapaz de cidade, educado em parte nosEstados Unidos, conhecia pouco da vida no inte-rior do Estado. Na verdade, conhecia bem só oengenho Japaranduba, de Pedro Paranhos Ferrei-ra, que tinha um requinte absolutamente excep-cional, que ele espichou como se fosse a norma.

Essas extrapolações exprimem um traço interes-sante de Gilberto Freyre, que é a imaginação cria-dora, fonte de muito do seu encanto e do relevode suas idéias. Casa-grande & senzala talvez sejaem parte uma obra de ficção histórica, ficçãotransfiguradora e divinatória que seduziu a nossamocidade e faz parte do seu imenso talento. Pen-so que ele é um dos maiores intelectuais do sécu-lo XX em escala universal.

Um pormenor que exprime bem o que sen-tíamos naquele tempo: quando entrei para o 1º.ano da Faculdade de Filosofia, conheci Décio de

  Almeida Prado, já formado em 1938. Logo nosidentificamos, porque os nossos pais se davam,foram contemporâneos na Faculdade de Medicinado Rio, onde ambos foram, em anos diferentes,internos de um tio meu que era professor de Clí-nica Médica. Numa de nossas conversas, Déciome perguntou: “Se você fosse escritor, gostaria deescrever um romance ou um ensaio?” (ele decla-

8 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 5: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 5/27

rou em seguida que preferiria escrever um roman-ce). Respondi sem hesitar: “Um ensaio”. E infor-mei que o livro que gostaria de ter escrito eraCasa-grande & senzala. Por aí vocês vêem como

eu o admirava, o que não me impediu, mais tar-de, de criticar bastante as posições ideológicasque se poderiam extrair do livro. Mas quando eraestudante, cheguei a pensar em escrever, à manei-ra de Gilberto Freyre, um estudo sobre a forma-ção social do Sul de Minas, minha região, focali-zando os fazendeiros, naturalmente...

Heloisa – No prefácio que o senhor escreveu paraa quinta reedição de  Raízes do Brasil ,3 de SérgioBuarque, o senhor fala um pouco sobre a reaçãoda sua geração a esse livro e menciona também ainfluência do Caio Prado Jr.

  Antonio Candido –   Raízes do Brasil não teve omesmo impacto de Casa-grande & senzala. Ele foipenetrando discretamente e só mais tarde o ritmodas edições mostrou a sua presença forte. Eu oconheci nas mãos dos mesmos amigos de que jáfalei, e também só aos poucos fui me capacitandoda sua grande importância, porque é discreto enão tem o encanto pitoresco do livro de GilbertoFreyre, que ele de certo modo retificava, ao assu-

mir posição diferente com relação à colonizaçãoportuguesa e ao demonstrar confiança no povo,que o outro ignora. Como falei bastante dele noprefácio a que você alude, e foi escrito por dese-jo de Sérgio, bastam essas considerações.

Em 1935 li  Evolução política do Brasil , deCaio Padro Júnior, publicado em 1933 em ediçãocusteada por ele, porque naquele tempo isso ain-da era freqüente. É um resumo sem o peso dosanteriores, mas exerceu sobre mim uma grandeinfluência, porque foi o primeiro ensaio de inter-pretação marxista da história do Brasil. Nós está-

 vamos descobrindo o socialismo e ele atuou a fa- vor deste junto com a  História do socialismo e das 

lutas sociais , de Max Beer.

Heloisa – Como é que cruzava o socialismo, a Fa-culdade de Direito e a graduação em Ciências So-ciais, na sua experiência?

 Antonio Candido – No começo eu confundia umpouco socialismo com sociologia, achando talvezque esta era uma preparação para ele. Havia pou-ca informação de cunho ideológico na minha tur-

ma. Quanto ao momento histórico, já sentíamos va-gamente a superação do coronelismo, que ainda vifuncionando na minha pequena cidade de Cássia,no Sudoeste de Minas, onde minha família compu-nha a oligarquia local. Para os jovens, sobretudo osdo interior, como eu, o panorama era confuso. Daí a aproximação de socialismo com sociologia.

Mas o fato é que a sociologia suscitava o es-pírito crítico e analítico em relação às instituições,de modo que gerava desconfiança entre os con-servadores. De outro lado, os poucos marxistasexistentes aqui a consideravam uma ciência bur-guesa. Tudo somado, os estudos sociológicos na-quela altura eram algo “progressista”, porquemostravam o caráter relativo e condicionado doEstado, da família, da igreja, da escola etc. Nãosou capaz de reconstituir exatamente o estado deespírito que me fez escolher a então denominadasub-seção de Ciências Sociais e Políticas na Facul-dade de Filosofia. Mas sei que entre os motivosestavam o interesse pelos estudos sobre o Brasil,um certo pendor para o lado social, a vontade deestudar filosofia. A atmosfera do tempo era muito

saturada de política, e por causa disso é bom di-zer uma palavra sobre o integralismo, que erauma das opções da minha geração.

Quando tomamos conhecimento dele, alipor 1933, em Poços de Caldas, meus amigos e euficamos imediatamente contra. Mas eu me interes-sei em saber o que era, inclusive porque gostavados romances de Plínio Salgado. Tive amigos in-tegralistas e cheguei a ir a duas ou três reuniõespúblicas deles, como simples espectador. Em1934, meu amigo José Bonifácio inspirou no giná-sio a fundação de uma academia (12 membros) e

um jornal (Ariel). Aí deu-se o choque, por causado artigo de um amigo nosso elogiando Rousseau.Um colega integralista protestou, a coisa se alas-trou e nosso grupo saiu da academia e do jornal(onde eu tinha publicado o meu primeiro artigo).E assim acabou a tolerância.

Passado muito tempo, procurei voltar men-talmente ao passado e avaliar com a possível isen-

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 9

Page 6: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 6/27

ção os motivos de tantos rapazes integralistas queconheci, e fui percebendo que, se entre eles ha-

 via fascistas configurados, e mesmo uma ala decorte nazista, houve outros que queriam sincera-

mente uma fórmula brasileira para resolver osproblemas sociais. Por isso, muitos deles foramdeixando o integralismo e chegaram a ser militan-tes de esquerda e marxistas intransigentes.4

Isso mostra como o decênio de 1930 foi defermentação e de opções drásticas para a mocida-de, levando-nos a nos politizarmos, não apenasem função do Brasil, mas dos acontecimentos in-ternacionais. Sobretudo a expansão do fascismo, oadvento do nazismo e a atração exercida pelaUnião Soviética. Nessa época, os Estados Unidos,que passaram a ter muita influência no Brasil, ti-

nham setores radicalizados, inclusive no âmbito daliteratura. Vários escritores de esquerda, como

 John Steinbeck, eram lidos aqui. Havia uma ondade radicalização que percorreu todo o decênio de1930 e da qual eu tenho saudade. Muita saudade,mesmo, porque parecia que as coisas iam dar cer-to. Que nós íamos lutar contra o fascismo, íamosderrubá-lo e abrir caminho para o socialismo. Pen-sávamos que o presidente Roosevelt ia quebrar osdedos do capitalismo, que a República Espanholaia ganhar a guerra civil, que os integralistas aquinão iriam prosperar. Mas, ao contrário do espera-

do ou desejado, começou a dar tudo errado. Fran-co ganhou na Espanha, Hitler se consolidou na

 Alemanha, Roosevelt não domesticou o capitalis-mo e, pior do que isto, começou uma coisa ines-perada: a desilusão com a União Soviética por par-te de pequenos grupos de esquerda, a um dosquais acabei me ligando. Para a esquerda daqueletempo, a União Soviética era o modelo e as suasrealizações atraíam setores liberais de classe mé-dia. Havia muitos livros de viagem sobre a Rússiae tudo que saía nessa direção era lido por nós. Atéque de repente começaram a circular notícias so-

bre os infames processos de Moscou, e em 1939estourou a bomba do pacto de Stalin com Hitler.

Heloisa – Professor, essa ligação com a políticaera mais da parte do seu grupo ou era mais geral?

 Antonio Candido – Creio que era mais geral, mastalvez eu esteja vendo as coisas do ângulo das pes-

soas que vieram compor a partir de 1934 os gru-pos políticos aos quais me incorporei. Até entãoeu tinha interesse apenas intelectual pela política,e aliás a política nunca foi preocupação central

para mim. Comecei por um interesse platônicopelo socialismo ali por 1934 e li a literatura corren-te sobre o assunto: resumo de O capital , por Ga-briel Deville,   ABC do comunismo, de Bukarin, Anti-Dühring, de Engels, o citado livro de MaxBeer, que era uma bíblia para a rapaziada. Maistarde li a primeira parte de O capital . Inteiro, nun-ca li e creio que pouca gente lia naquele tempo.

Mas em 1936, quando eu vim para São Pau-lo estudar, esqueci completamente a política. Fi-quei deslumbrado com a cidade grande, viviaatrás de concertos, livrarias, conferências, exposi-ções. Era o tempo em que o Mário de Andrade es-tava transformando a vida cultural por meio doDepartamento de Cultura. Uma fermentação cul-tural incrível! Imaginem uma cidade que até entãosó conhecia as pequenas temporadas de ópera, al-guns concertos de Guiomar Novais ou Brailovski,e de repente passa a ter quartetos e trios instru-mentais, orquestra sinfônica regular, corais, con-certos populares, discoteca – isso, para falar só dosetor musical. Esse movimento renovador me in-teressou tanto, que no 2º. ano da Faculdade, em

1940, curso de Sociologia Estética de Roger Basti-de, fiz uma pesquisa e redigi um pequeno traba-lho sobre a evolução do gosto musical em SãoPaulo, baseado nas fichas da Discoteca, nos pro-gramas de concerto, nas notícias dos jornais, epude verificar a importância da ação do Mário de

 Andrade, pois à medida que passavam os anos ogosto pela ópera descia e subia o gosto pela mú-sica sinfônica e de câmera.

O Departamento de Cultura foi o único gran-de esforço de difundir em nível popular a culturaque São Paulo tinha conhecido até então. Mário

de Andrade criou, por exemplo, as bibliotecasambulantes, furgões com livros que paravam emcertos locais, abriam as portas, punham umas me-sinhas em volta e forneciam livros aos leitores, aoar livre. Criou os parques infantis, onde os meni-nos brincavam, cantavam, recitavam, representa-

 vam sob a direção do pessoal especializado. Osanos de 1930 foram mesmo um período extraor-

10 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 7: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 7/27

dinário na história do Brasil, percorridos pelagrande esperança de renovação e popularizaçãoda cultura. A isso se misturava um vago radicalis-mo que levava o pessoal da direita a considerar

comunistas os renovadores, gente de corte maispara liberal-progressista, como Fernando de Aze-

 vedo, Mário de Andrade, Anísio Teixeira.Nos anos de 30 e 40 houve uma coisa impor-

tante: a aceitação crescente da arte moderna, queantes só atraía grupos reduzidos. Mas havia muitareação contrária, como a que acabou tirando Má-rio de Andrade do Departamento de Cultura. Em1939 fui com um amigo ao 2º. Salão de Maio, noHotel Esplanada. Logo na entrada havia a estátuade barro de uma mulher nua. Entramos, vimos aexposição e quando voltamos encontramos umhomenzinho indignado deblaterando com osguardas perto da estátua que estava sem a cabe-ça. Mais tarde soube que ele era Quirino da Silva,autor da escultura cuja cabeça acabava de ser cor-tada pela bengala de um visitante revoltado natu-ralmente com a sua modernidade. Conto isto para

 vocês verem qual era a atmosfera da época.Modernismo, cultura popular, sociologia,

socialismo, regeneração do Brasil, tensão entre di-reita-esquerda – tudo isso surgiu ligado ao nacio-nalismo e ao profundo interesse pelas coisas

brasileiras. Foi um período extraordinário, e nele vigorou a idéia de institucionalização acadêmicadas ciências sociais, idéia que já vinha amadure-cendo desde os anos de 1920. Quando se criou oMinistério da Educação, em 1930, Francisco Cam-pos, que foi um excelente ministro da Educação,embora de tendências fascistas, criou no papel asFaculdades de Filosofia, Ciências, Letras e Educa-ção, velha aspiração. Em 1933 foi criada em SãoPaulo a Escola Livre de Sociologia e Política e, em1934, a nossa Faculdade de Filosofia, Ciências eLetras da Universidade de São Paulo.

Heloisa – Quando o sr. entrou na faculdade, queestrangeiros estavam lá?

 Antonio Candido – Eu entrei em duas etapas, por-que no meu tempo havia uma instituição muitoboa, à qual eu devo a recomposição do meu cur-so ginasial deficiente: o Colégio Universitário. O

ensino médio se compunha de cinco anos de cur-so ginasial e mais dois de curso complementar. Oscolégios do interior não tinham cursos comple-mentares, que aos poucos foram se organizando

em alguns mais importantes da capital: Rio Bran-co, São Bento etc. O melhor era o oficial, denomi-nado Colégio Universitário, anexo à Universidadede São Paulo, no qual se entrava mediante concur-so de seleção sempre que o número de candida-tos fosse maior do que o número de vagas. Os cur-sos eram dados nas próprias faculdades, distribuí-dos em cinco seções. Eu entrei na 1ª. seção, quefuncionava na Faculdade de Direito e preparavapara direito, filosofia, ciências sociais, geografia ehistória. A 2ª. seção preparava para medicina, vete-rinária, farmácia e odontologia, funcionando juntoàs respectivas faculdades. A 3ª. preparava para en-genharia, matemática, física, química e funcionavana Escola Politécnica. A 4ª. preparava, se não meengano, para agronomia e de certo funcionava emPiracicaba. A 5ª. seção, que surgiu depois, prepara-

  va para letras e funcionava na Faculdade deFilosofia. Infelizmente o Colégio Universitário sódurou cerca de dez anos, se tanto, e acabou coma reforma Capanema de 1943.

Heloisa – O corpo docente era o mesmo da Facul-

dade ou era diferente?

 Antonio Candido – O Colégio Universitário tinhaos seus próprios docentes. Na 1ª. seção tive algunsbons e outros ruins, como é a regra em qualquerlugar, e três ou quatro de alta qualidade, que exer-ceram influência nos meus estudos: Antônio deSales Campos, de Literatura, muito informado eexcelente expositor, que nos orientava para tomarcomo base bons compêndios, a exemplo do de

  Alfred e Maurice Croiset para literatura grega,René Pichon para literatura latina, Gustave Lanson

para literatura francesa, e assim por diante. JoãoBatista Damasco Pena ensinava Psicologia comgrande eficiência; ficou meu amigo e orientou mi-nhas leituras. Graças a ele me familiarizei com osdois grossos volumes do excelente  Manual de fi-

losofia, de Armand Cuvillier. A estes eu poderiajuntar mais dois: o seco e preciso Aroldo de Aze-

  vedo, de Geografia Humana, e o pedante mas

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 11

Page 8: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 8/27

erudito e eficiente monsenhor José de CastroNery, de História da Filosofia. Este indicava ocompêndio de Leonel Franca, mas por minha con-ta li também o velho de Alfred Fouillée e o velhís-

simo de Janet-Séailles.Em compensação tive alguns professores

ruins de Lógica, de Economia Política, de Latim.Incrível era o de Sociologia, matéria que me inte-ressava especialmente e estudei muito por contaprópria, porque as aulas eram uma calamidade,pura retórica vazia que agüentamos por dois anos.

 A mania dele era discorrer incansavelmente sobrea família e o divórcio, dizem que porque tinhamedo que a mulher o largasse... Os livros que eulia eram: Princípios de sociologia, de Fernando de

 Azevedo,   Éléments de sociologie , de Bouglé eRaffault,   As regras do método sociológico, deDurkheim,   Introduction à la Sociologie , de

 Armand Cuvillier e alguns outros, como o peque-no resumo didático de Marcel Déat, socialista queacabou fascista e colaboracionista no tempo daocupação alemã na França.

Heloisa – E o namoro com as letras começou nocolégio?

  Antonio Candido  – Não. Começou antes de eu

nascer!

Heloisa – Professor, mudando de assunto, gosta-ríamos também que o senhor falasse um poucosobre a experiência do Anísio Teixeira na Univer-sidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro.

 Antonio Candido – Quando foi secretário de Edu-cação e Cultura no governo de Pedro Ernesto, noRio de Janeiro, Anísio Teixeira ideou e fundou em1934 a Universidade do Distrito Federal, mas foipreso e destituído em 1935, na onda de repressão

depois do levante comunista. A universidade foi sealterando e em 1939 formou com a Universidadedo Rio de Janeiro, mero nome para indicar as es-colas tradicionais, a Universidade do Brasil. O pla-no de Anísio, completamente alterado, era inova-dor, com ensino superior de Artes, Literatura, His-tória, Antropologia etc. O corpo docente foi com-posto por brasileiros de categoria, como Gilberto

Freyre e Mário de Andrade, ou de grande futuro,como Sérgio Buarque de Holanda, Prudente deMoraes Neto, Afonso Arinos de Melo Franco; e porfranceses, em geral já consagrados, que na maio-

ria ficaram aqui apenas um ano eletivo, como Émi-le Brehier, de Filosofia, Henri Hauser e André Pi-ganiol, de História, Fortunat Strowski, de Literatu-ra Francesa, Pierre Deffontaines, que a seguir veiopara a USP, de Geografia e outros. Creio que entreeles estava também André Ombredanne, que ensi-nou durante a guerra na Universidade do Brasil eteve grande influência em Psicologia e Neurologia.Mas conheço pouco dessa notável experiência eacho que deveria ser estudada. Foi um momentobrilhante, sacrificado pela reação de direita e suaintolerância.

Heloisa – Professor, fale um pouco da sua expe-riência nos estudos literários quando estava noColégio Universitário.

 Antonio Candido – Naquele tempo havia uma ati- vidade muito interessante: os cursos públicos, queprofessores estrangeiros davam além das aulas re-gulares. Se não me engano, era o que se chamavana França cours de soir . Como eu era apaixonadopor literatura, freqüentava o curso livre de literatu-

ra francesa dado por Pierre Hourcade, professordessa matéria na Faculdade. Era às cinco horas datarde, primeiro na Escola Álvares Penteado, aolado da Faculdade de Direito; depois, no InstitutoHistórico, pouco adiante. Eu saía da aula e corriapara lá. Esses foram os únicos cursos monográfi-cos de literatura em nível superior a que eu assis-ti na vida. No primeiro semestre de 1936 o temafoi a obra de Flaubert; no segundo, os poetas par-nasianos. Em 1937 Hourcade anunciou para o 1º.semestre um curso sobre os românticos irregula-res, como introdução ao do 2º. semestre, sobre

Baudelaire. Mas aconteceu que, estando certa ma-nhã dando a sua aula na Faculdade de Filosofia,que então tinha a diretoria e algumas seções fun-cionando na de Medicina, ocorreu um incidentemuito desagradável: em protesto contra o que elesconsideravam intromissão no espaço do seuprédio, estudantes de medicina entraram na salaquebrando ampolas do fétido gás sulfídrico e ex-

12 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 9: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 9/27

pulsaram professor e alunos. Os diretores das duasfaculdades se demitiram indignados, mas a Filoso-fia foi de fato expulsa e se refugiou num prédio darua Consolação, que ia ser demolido para a cons-

trução da Biblioteca Municipal. Traumatizado,Pierre Hourcade infelizmente interrompeu dali apouco o curso que eu seguia e no fim do ano vol-tou para a Europa.

Nesse tempo eu era aluno do Colégio Uni- versitário. Depois fiz dois vestibulares, em 1939, eentrei, ao mesmo tempo, na Faculdade de Direitoe na Faculdade de Filosofia. Eu entrei para a Fa-culdade de Direito a pedido do meu pai. Ele que-ria que eu fosse médico e para atendê-lo presteiexame para a 2ª. seção do Colégio Universitárioem janeiro de 1936, sendo felizmente reprovado.Fiquei num curso preparatório, mas no começode 1937 decidi por conta própria me inscrever naFaculdade de Filosofia, isto é, na 1ª. seção do Co-légio Universitário. Quando comuniquei o fato ameu pai ele concordou sem problemas, mas pe-diu que eu estudasse também Direito, porque na-quele tempo não se sabia bem qual poderia ser odestino profissional dos formados na nova Facul-dade. Achei que devia retribuir a compreensãodele e concordei. O resultado é que, como assis-tia de manhã às aulas de Direito e, à tarde, as da

Faculdade de Filosofia, sobrava pouco tempopara o estudo, ao contrário dos dois anos do Co-légio Universitário, quando eu passava as manhãslendo. Os meus dois cursos superiores foram bas-tante truncados.

No meu exame vestibular para a Faculdadede Filosofia houve episódios pitorescos. Vou con-tar o de sociologia. Como introdução, é preciso di-zer que os professores da sub-seção de CiênciasSociais e Políticas eram todos franceses, salvo umitaliano, e todos davam aulas, examinavam e se di-rigiam aos alunos nas suas línguas. Entendesse

quem pudesse. O presidente da banca era o pro-fessor de Estatística, Luigi Galvani, da Universida-de de Nápoles. À sua direita, Roger Bastide exami-nava os pontos sorteados. Numa mesinha à direitade Bastide, a assistente Rita de Freitas mandava lere explicar um trecho de As regras do método socio-lógico, de Durkheim. A gente começava por ela.Quando passei a Roger Bastide ele perguntou o

que entendi ser o seguinte: “Quelle est la impor-tance sociologique du Nil”. Eu caí das nuvens.Importância sociológica do Nilo? Comecei então afalar que segundo Heródoto o Egito era um pre-

sente do Nilo, pois, de fato, era o seu trasborda-mento nas cheias que fertiliza as terras, o que per-mitia a agricultura e, portanto, a formação decomunidades – e por aí ia indo ante um Bastideimpassível, até que o Galvani me interrompeu,bradando: “Ma non! Il professore à domandatoquale è l’importanza sociologica di ‘une île’,un’isola, come la Sicília o la Sardegna!”. Tratava-se,portanto, da importância do isolamento, que se-grega os grupos, favorece o conservantismo etc.Eu engrenei e fui tocando até ser dispensado, re-cebendo nota suficiente. Bastide ia deixando eume afundar sem a menor retificação, com um apa-rente sadismo que mais tarde me explicou a pro-pósito de outros fatos: quando um aluno começa-

 va a dizer coisas insólitas ele não interrompia, para  ver onde ia parar, porque às vezes resultava emcoisa interessante... Talvez se eu tivesse continua-do a criar uma sociologia do Nilo ele me desse dezpela originalidade...

Heloisa – Como era o curso de Ciências Sociais?

  Antonio Candido  – Naquele tempo havia umacarga bem grande de Filosofia, e duas cadeiras deSociologia. Uma, de Roger Bastide, era mais liga-da a temas concretos. A outra era teórica, a cargode Paul Arbousse-Bastide, o Bastidão, porque eleera alto e robusto, enquanto Bastide, pequeno efranzino, era chamado Bastidinho. Os dois eramprotestantes, do Sul da França, amigos desde aadolescência, mas não parentes, apesar do sobre-nome comum. Arbousse era um professor muitointeligente e sutil, mas chato nas aulas.

Heloisa – Por que ele era chato?

 Antonio Candido – Ele era enorme, tinha as pál-pebras caídas por trás dos óculos grossos, falavacom voz grave e sonolenta. A sua aula era às duasda tarde. A gente chegava do almoço correndo e,como ele tinha o hábito de balançar na ponta dacorrente o relógio de bolso, o professor Cruz Cos-

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 13

Page 10: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 10/27

ta dizia que eram verdadeiras sessões de hipnotis-mo. A maioria da classe começava a dormir logoem seguida. Mas ele foi o único professor que vidistribuir o texto das aulas antes de começar. E

eram apostilas muito boas, algumas notáveis,como as famosas sobre a distinção entre método,processo e técnica, que ele analisava com finura.O Florestan aproveitou muito essa distinção, queme serviu, mais tarde, quando eu já era professorde literatura, para dizer aos alunos: “O estrutura-lismo pode ser muito útil como técnica, mas nãocomo método”.

Com Arbousse tive um curso muito útil dehistória das idéias sociológicas, tendo como textode referência a tradução francesa de um livro queestava na moda: Teorias sociológicas contemporâ-

neas , de Pitirim Sorokin, russo naturalizado ame-ricano. Arbousse era ótimo em análise de textos,e nos explicou no 2º. ano a Divisão social do tra-balho, de Durkheim, devendo cada aluno comen-tar por escrito um capítulo. Na faculdade, naque-le tempo, Durkheim era o mestre por excelênciada sociologia. No 3º. ano Arbousse tinha passadoda cadeira de Sociologia II para a de Política, ten-do como assistente Lourival Gomes Machado, óti-mo expositor, que nos deu um curso de históriadas idéias políticas, enquanto ele analisava o Con-

trato social , de Rousseau, de maneira realmentenotável. Lourival aproveitou muito essas aulas,tanto assim que mais tarde prefaciou e traduziucom sua mulher o livro de Rousseau, cuja teoriada vontade geral foi objeto de sua tese de cátedra.

Heloisa – Como era Roger Bastide como professor?

 Antonio Candido  – Bastide era um homenzinhocom cara de chinês, muito bondoso, generoso,tranqüilo, de uma grande sabedoria e professorexcelente. Ele não tinha preconceitos teóricos e

metodológicos. Durante a lenta elaboração da mi-nha tese de doutorado eu tinha muitas dúvidas,devido ao meu viés literário. Então perguntava aBastide se aquilo era mesmo sociologia, só socio-logia, porque naquele tempo havia uma espéciede obsessão com a especificidade, com a purezainconfundível da disciplina, herança de Durkheim,que precisou proclamar a validade incontaminada

da nova ciência. Bastide, que fora aluno do maisaberto Gaston Richard, em Bordeaux, dizia queera lícito misturar sociologia, história, antropolo-gia, embora fosse cioso do predomínio que a so-

ciologia devia ter nos trabalhos que pertenciam aoseu âmbito. Por isso, quando eu lhe manifestava asminhas dúvidas, ele dizia: “O importante não éque a tese seja ou não sociológica, mas que sejaboa”. Apesar disso, quando defendi a tese, en-quanto todos os examinadores me deram dez, eledeu nove, ou nove e meio, não lembro, alegandoque era mais antropológica do que sociológica...5

Um espírito muito curioso.Ele era um grande professor e um homem

adorável, que dava cursos atraentes e imaginativos,embora o que nos deu no meu primeiro ano de fa-culdade pareça perdido. Foi sobre o método mono-gráfico, baseado no orçamento familiar, segundo aEscola de Le Play, carregado de minúcias cacetes.Mas nos trabalhos práticos orientou a mim e a umcolega para pesquisar no Arquivo do Estado a mor-talidade infantil entre os negros do Vale do Paraíba,no século XVIII. Fomos lá muitas vezes debulhar apapelada, tabulamos, aprendemos a fazer gráficos edemos o material a Bastide, que costumava aprovei-tar os dados colhidos assim nos seus trabalhos. Nosegundo ano do meu curso, em 1940, deu um cur-

so interessantíssimo de sociologia estética. No pri-meiro semestre, a parte teórica, usando a bibliogra-fia que está no livro que mais tarde publicou sobreo assunto. No segundo, analisou o barroco, expon-do primeiro as teorias gerais (Weisbach, EugenioD’Ors, Hannah Levy); depois, concentrando-se nocaso brasileiro. Fomos ver o convento do Embu em

 vias de restauração, fomos a São Miguel e Carapicuí-ba, estudamos com ele grandes fotografias de OuroPreto que ia pedir emprestadas no Serviço do Patri-mônio, que estava em plena fase de revalorizaçãodo nosso barroco. No terceiro ano, 1941, deu um

belo curso, a meu pedido (vejam como era atencio-so), sobre sociologia dos mitos, debulhando uma

 vasta bibliografia e usando exemplos brasileiros.Bastide atendia os alunos com solicitude e

delicadeza, dava orientação bibliográfica por es-crito e até emprestava as notas de aula. Nas aulascomeçava sempre comentando a bibliografia arespeito do assunto, depois passava à crítica e

14 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 11: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 11/27

acabava apresentando o seu ponto de vista. Osassistentes dele expunham matéria paralela ou osseus próprios trabalhos. Lembro que LucilaHerrman nos iniciou na sociologia urbana ameri-

cana, aplicando a São Paulo as observações eco-lógicas da Escola de Chicago.

  Além de Sociologia tínhamos três anos deEconomia Política, sendo o terceiro ano dedicadoà História das Doutrinas Econômicas. O professorera Paul Hugon, meticuloso e didático, sempreum pouco distante, do tipo que dá aula e vai em-bora sem tomar conhecimento dos alunos. Oolhar dele pairava sobre o auditório sem fixar nin-guém. Era muito conservador e não poupavacríticas a Marx, sobre quem emitiu certa vez umjuízo impressionante: “Eu e os meu colegas dasuniversidades alemãs escarafunchamos O capital 

durante quatro anos e chegamos à conclusão queesse senhor não tem originalidade, nem profundi-dade, nem força de pensamento”. Segundo ele, oslivros fundamentais, de leitura obrigatória, eram: A riqueza das nações , de Adam Smith, Tratado de 

economia política, de Alfred Marshall e  A econo-mia pura, de León Walras. Mas concordou que eulesse para o trabalho de aproveitamento a primei-ra parte de O capital . Isso se passava em 1941.Hugon nunca perdeu contato com o Brasil, e mes-

mo depois de voltar à França continuou vindoaqui com freqüência. Acabamos nos dando muitobem e cheguei a ver a mudança que o tempo efe-tuou nele. Em 1969 eu o reencontrei lá nos barra-cões da Faculdade de Filosofia na Cidade Univer-sitária e ele comentou com simpatia o movimentoestudantil francês do ano anterior, lamentou anossa situação, com os militares perseguindo osestudantes e conclui para a minha surpresa: “Seeu fosse moço hoje, seria comunista com certeza”.

Outra matéria de três anos estava a cargo deLuigi Galvani, professor notável que dava no pri-

meiro ano Complementos de Matemática, no se-gundo, Estatística Geral e no terceiro, Estatística

 Aplicada, com referência sobretudo à Demografia.Era tão claro e atraente, que até gente completa-mente alheia à matéria, como eu, ficava presa àssuas aulas. Elas eram dadas em italiano e às vezesgeravam confusões pitorescas, como a de uma co-lega que, ouvindo com freqüência, frases “i nume-

ri si combinano fra di loro”, ou “se consideriamofra di loro queste equazioni”, – observou um dia:“Esse frade deve ser um bamba, porque o Galvani

 volta e meia fala nele”. Ela havia transformado a

locução “entre si”, “entre eles” num nome: Fra Di-loro... Isso é dito para sugerir como podíamos terproblemas com as línguas estrangeiras nas aulas.

Fiz com grande proveito dois anos de Geo-grafia Humana, a cargo de Pierre Monbeig, inclu-sive porque me interessei pela matéria e li bastan-te alguns autores que tiveram influência no meutrabalho de pesquisa e interpretação para a tesede doutorado: Vidal de La Blache, Jean Brunhes,Max Sorre, Pierre Gourou e outros. Eu estudavabastante e fazia o possível nas provas, mas só ti-rava 4 ou no máximo 5, as notas mínimas, porqueMonbeig implicou comigo desde o exame vesti-bular, em que fui mal, e por causa de uma piadasem graça que fiz logo a seguir, conversando comele e com o professor Jean Maugüé. Depois deformado fiquei amigo dele, nos demos muito beme eu sempre o admirei. Quando eu aludia às no-tas que ele me dera, ele dizia assim: “Ah, não mefale nisso”. Era um grande professor e um profun-do conhecedor do Brasil, sendo, dos estrangeiros,o que falava melhor português. Tinha sempre noslábios um cigarro caipira de palha e fumo de rolo.

Mas realmente a grande influência que eu emeus amigos sofremos foi a do referido Maugüé,que ensinava Filosofia e foi o maior professor quejá vi.6

Heloisa – Por quê?

 Antonio Candido – Por quê? Pergunte ao céu porque ele é azul... Era um gênio didático, um expo-sitor elegante, expressivo e penetrante, tinha umainteligência original, pronta e luminosa, completa-da pela imaginação fora do comum e o mais in-

crível senso do auditório. Não fez carreira univer-sitária no seu país, em grande parte porque nãoquis. Não terminou a tese de “doctorat d’État”, nãorespeitava as convenções acadêmicas, era irreve-rente, meio preguiçoso, e apesar disso era admi-rado pelos colegas, não apenas por nós. Certa

 vez, muito mais tarde, o professor Cruz Costa, es-tando em Paris, foi visitar Merleau-Ponty, amigo

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 15

Page 12: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 12/27

de Maugüé, que lhe disse mais ou menos: “OMaugüé é professor de liceu, não fez nem fará odoutorado, mas quero ver se, assim mesmo, arran-jo uma nomeação para ele no Collège de France,

pois quero que as pessoas o escutem”. Mas issonão foi avante e ele se aposentou como professorde liceu.

Heloisa – Mas como esse homem influiu tantosem ter propriamente uma obra?

 Antonio Candido – Maugüé não fazia questão depublicar nem de “fazer currículo”, que, como vo-cês sabem, é muitas vezes uma operação farisai-ca. Ele estava interessado em compreender a vida,as obras, as pessoas, e despertar nos alunos umaatitude semelhante. Nesse sentido era de tipo so-crático e se realizava falando, não escrevendo.Como disse, era meio preguiçoso, acordava tarde,almoçava tarde e tinha um leve toque de snobis-mo. Gostava de relações granfinas e com o passardo tempo foi ficando elegante, vestindo-se comsobriedade e bom gosto. Era alto, robusto, lourode olhos azuis, bonitão. Despertava bastante en-tusiasmo nas mulheres, inclusive algumas ouvin-tes que freqüentavam as suas aulas. Teve paixõesinfelizes por umas moças agranfinadas e nesses

casos se comportava com bastante ingenuidade. A aula dele era geralmente das cinco às sete

da tarde, mas ele costumava prorrogá-las. Chega- va, ia à sala, punha a pasta na mesa e voltava aocorredor, sempre acompanhado pelo seu assisten-te e fiel amigo Cruz Costa. Alguns alunos que iamchegando se aproximavam e ele falava de váriosassuntos, que continuava a tratar no começo daaula. Geralmente algum filme da semana, aconte-cimentos, livros. Lembro do dia em que nos disse:“Vocês precisam ler um livro muito bom do meucolega Sartre que acaba de aparecer: Le mur ”.

 A sua sala de aula estava sempre cheia, comtrês tipos de ouvintes: os aluno regulares, antigosalunos que não conseguiam se desprender do seufascínio e ouvintes curiosos, alguns muito cons-tantes. Ele começava geralmente como se estives-se hesitando, tateava e de repente engrenava e sepunha a expor com uma clareza, uma elegância euma competência incríveis, tornando interessante

qualquer matéria. Não era propriamente filósofo,mas um excelente professor de filosofia, o quenão deixou de ser bom para uma Faculdade jo-

 vem, povoada por alunos de formação secundária

modesta, num país de pouca cultura. E como osseus interesses eram amplos, tocava em literatura,arte, política, cinema, música, tornando a reflexãofilosófica uma verdadeira iniciação ao entendi-mento da vida e da cultura. A sua formação era

  vasta, pois deu cursos sobre Platão, Descartes,Spinoza, William James, Augusto Comte, Pascal.

No meu primeiro ano, em 1939, deu um cur-so sobre Teoria das emoções. No primeiro semes-tre, Freud, que encarava de uma maneira muitoespecial. Contestava a eficiência da psicanálisecomo terapia de validade universal, argumentan-do com o tipo de complexo que se forma entre ostrobriandeses por causa do sistema matrilinear;dizia que a psicanálise tem valor sobretudo filosó-fico, e como terapêutica se adequava aos proble-mas específicos da burguesia vienense do come-ço do século XX. Aí aparecia o seu marxismoaberto e flexível. Nesse curso expunha também ospontos de vista de Pierre Janet, analisando a dia-lética do amor e do ódio.

No segundo semestre expôs o pensamento deMax Scheler, tendo como texto de referência o li-

 vro deste, Natureza e formas de simpatia, e recor-rendo sempre aos exemplos literários, inclusivetomados a um livro então em voga, O amor e o Oci-dente , onde Denis de Rougemant estuda a paixãoamorosa como uma espécie de heresia medieval,partindo do mito de Tristão e Isolda. Aliás, na pri-meira aula do ano Maugüé nos tinha dito: “Quemnão leu Hamlet , de Shakespeare, e Crime e castigo,de Dostoievski, não deve seguir este curso”.

No segundo ano, em 1940, deu dois cursosnotáveis para a minha turma. No primeiro semes-tre tratou do problema da “coisa-em-si” nas filoso-

fias de Kant e Schopenhauer. A parte sobre este,sobretudo, foi uma beleza, porque ele se concen-trou na sua filosofia da arte como expressão da“vontade”. O segundo semestre foi sobreNietzsche, motivo de aulas onde abordou de ma-neira muito livre alguns temas centrais da obra,destacando sobretudo aspectos de cunho político,com referência à configuração do líder.

16 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 13: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 13/27

No terceiro ano, em 1941, deu Hegel nosdois semestres, recomendando que lêssemos,além de suas obras, O capital , nos dezesseis volu-mes da edição Costes, e usando os Cadernos so-

bre a dialética de Hegel , de Lenine, além da obrade Jean Wahl sobre a “consciência infeliz”. Foinesse curso que tirei o único dez com Maugüé,que, apesar de ser meu amigo, só me dava notasmedianas. Nessas aulas ficava mais clara do quenunca sua simpatia pelo comunismo, adubadacom histórias que relatava sobre as atividades dopartido em Paris, inclusive certo comício onde foicom um operário que, vendo-o se dirigir daquelelado, disse simplesmente: “Vamos?” E foram nomesmo táxi...

É curioso registrar que Maugüé era um mar-xista muito aberto, coisa raríssima naquele tempode stalinismo cerrado, mas na política era de umaortodoxia estrita. Aprovava tudo o que a UniãoSoviética fizesse, como em 1939 o Pacto Germa-no-Russo. Em 1968 me escreveu dizendo que a in-tervenção na Primavera de Praga era necessária ecorreta...

Heloisa – Quanto tempo Maugüé ficou no Brasil,lecionando na Faculdade de Filosofia?

 Antonio Candido  – Chegou aqui em 1936 e foiembora em 1943. Era tenente de infantaria da re-serva e se alistou nas forças da França Livre, noNorte da África. Fez toda a campanha com o exér-cito do general De Lattre de Tassigny, depois in-tegrou as forças de ocupação da Alemanha, teveuma orelha gelada que quase foi preciso amputar,recebeu condecorações e foi promovido. Umabela folha de serviços, que lhe permitiu solicitaradmissão ao corpo diplomático. Não gostava da

 vida universitária e com isso pôde escapar dela.Mas não para sempre. Era um diplomata pouco

diplomático, e quando conselheiro na Embaixadada França no Canadá ofendeu o embaixador e foiexcluído, voltando a ensinar no secundário. Gra-ças à sua atuação na guerra, ficou em Paris, no fa-moso Liceu Carnot, onde se aposentou.

Conta-se que quando era secretário de em-baixada na Argentina, queixaram-se ao embaixa-dor que ele andava desfazendo do país e gaban-

do o Brasil. O embaixador mandou chamá-lo efez ver a inconveniência desse procedimento.Dado o sabão, perguntou-lhe que vantagem viano Brasil, pois para ele, embaixador, ambos os

países eram a mesma droga. Maugüé contestou epediu que ele respirasse profundamente. Surpre-so o embaixador fez o que pedia. Maugüé entãoperguntou: “O sr. sentiu alguma coisa?” “Não, nãosenti nada”. E ele: “Esta é a diferença; no Brasil,se o sr. respirar fundo, sentirá alguma coisa...”Será verdade?

É preciso salientar que a influência dele aquinão se exerceu apenas sobre o nosso grupo deamigos. Pessoas tão diferentes quanto Azis Simão,Egon Schaden, Florestan Fernandes também a so-freram. O seu maior amigo, todos os dias e todosos momentos, foi o professor João Cruz Costa, for-mado na primeira turma, seu assistente e depoisseu substituto junto com o professor Lívio Teixei-ra. Ambos seguiam sempre os seus cursos pelosanos afora.

Heloisa – O que o senhor acha do livro de memó-rias que ele publicou,  Les dents agacés ?

  Antonio Candido  – É um livro admiravelmentebem escrito, cuja primeira metade é magistral.

Nele sentimos bem o Maugüé capaz de percebero significado da sua vida e do seu tempo. Mas aparte do Brasil é marcada por puerilidades incrí-

 veis, como quando diz que havia em São Pauloum grande caderno onde as famílias escreviam osnomes dos rapazes de fortuna, aptos para casarcom suas filhas. Ou que, visitando a fazenda deum Prado, viu certo armário cheio de espingardase soube que era para controlar os colonos que serebelavam. Conversando a respeito com o profes-sor Arbousse-Bastide, numa de suas vindas aoBrasil, ele deu a explicação: eram gozações, ca-

nulards , que um engenheiro francês radicadoaqui metia na cabeça de Maugüé para se divertir,e ele acreditava... Por aí se vê como esse homemarguto funcionava bem sobretudo no domínio dainteligência, mas tinha no domínio da vida candu-ras bem singulares.

Heloisa – É um livro patético.

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 17

Page 14: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 14/27

 Antonio Candido – Sob este aspecto sim. E tam-bém porque dá por vezes a impressão de alguémque está querendo justificar tudo aquilo que nãofoi, em parte porque não soube ser. Mas é um

belo livro. Maugüé adorava o Brasil, e em certomomento chegou a se arrepender de não ter fica-do aqui. No entanto, ao escrever o livro mostrouerros de visão e fez referências maldosas sobrepessoas que o tratavam como amigo.

Depois dele a Filosofia se tornou algo maisespecífico, mais sólido na Faculdade. Vieram ou-tros franceses que eram realmente filósofos, jovensbrasileiros se aperfeiçoaram na França e Maüguéfoi ficando apenas uma lembrança para os antigosalunos. Gilda e eu procuramos, então, testemu-nhar sobre o papel importante que ele desempe-nhou no começo da Faculdade. Eu falei dele emartigos e entrevistas, ela escreveu um ensaio com-parando a visão que tinham da arte ele, Bastide eLévi-Strauss.7 Mandamos isso a ele, que ficou mui-to satisfeito, e conseguimos despertar o interessedos jovens de agora, como Paulo Eduardo Arantes,que foi procurá-lo em Paris e levou para ele umcapítulo do livro que estava escrevendo sobre a fi-losofia na USP.8 Ele ficou emocionado e disse:“Você não sabe o bem que está me fazendo”.

Essas informações dão a vocês uma idéia do

que foi o meu curso de Ciências Sociais e Políti-cas, e serve para preveni-los contra a romantiza-ção do passado. Nós pertencemos a uma faseheróica da Faculdade, que foi a implantação doscursos pelos professores estrangeiros. Era o come-ço daquele tipo de estudos, havia ainda muito di-letantismo, nós transitávamos da arte para afilosofia, da sociologia para a literatura. Mas aonosso lado havia rapazes e moças que já se orien-tavam pelas exigências da especialização. Pensoem gente como Lucila Herrman, Gioconda Musso-lini, Dorival Teixeira Vieira, José Francisco de Ca-

margo, Eduardo d’Oliveira França, Egon Schadene outros, alguns dos quais professores primárioscomissionados. Vocês hoje têm formação muitomais sólida e são obrigados a trabalhar com maisintensidade para se formarem como especialistas.No nosso grupo, que sofreu mais do que qualqueroutro a influência de Maügué, nós fundamos clu-bes de cinema e revistas de cultura, fizemos críti-

ca de artes, de literatura, de teatro, embora licen-ciados em filosofia e ciências sociais. Fomos ummomento ao qual o versátil Maugüé se ajustoubem e pôde ser útil.

De fato, pense um pouco em nosso destino.Décio de Almeida Prado começou como assisten-te de lógica, passou ao ensino secundário de filo-sofia enquanto fazia crítica teatral e acabou profes-sor de literatura na Faculdade. Paulo Emílio, for-mado em filosofia, se dedicou ao cinema, criou omovimento das cinematecas, tornou-se um grandecrítico e professor de cinema. Gilda, formada emfilosofia, dedicou-se à sociologia e história da arte,escreveu ficção e praticou o ensaísmo em váriosrumos: artes plásticas, cinema, literatura. Eu, for-mado em Ciências Sociais, fui simultaneamente as-sistente de sociologia e crítico literário e acabeiprofessor de literatura. O Lourival ficou sempreprofessor de política, mas era ao mesmo tempocrítico de arte, organizador de eventos, jornalistapolítico; mas creio que teria sido melhor para elese tivesse passado inteiramente para a crítica. Ocaso de Ruy Coelho é mais complicado. Ele era omais informado e culto entre nós, fez crítica de ci-nema regularmente, aplicou-se a estudos muito va-riados, da sociologia à teoria do conhecimento,passando sobretudo pelos estudos de personalida-

de e cultura com base no teste de Roscharch. Po-deria se quisesse ser crítico de literatura, de teatro,de música ou de artes plásticas, e sempre mante-

  ve os seus interesses abastecidos por um saberatualizado, pois tinha uma capacidade incrível deleitura e assimilação; inclusive porque passava amadrugada lendo. Ia dormir às cinco ou seis dasmanhã e acordava depois do meio dia. Digo tudoisso para acentuar mais uma vez como o tipo deorientação heterodoxa que recebemos de Maugüése ajustou ao nosso modo de ser e ao momento vi-

 vido pela Faculdade.

Esse resto de diletantismo de meu grupo foiestimulado pela revista que fundamos em 1941,Clima. Foi ela que fixou a atividade paralela decada um, atividade que para muitos acabou se tor-nando central. De certo modo a revista definiu odestino intelectual de todos nós.9

Quem teve a idéia de fundá-la foi AlfredoMesquita, rapaz mais velho que freqüentava al-

18 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 15: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 15/27

guns cursos na Faculdade, já era escritor e se li-gou ao nosso grupo. Nós estávamos quase todosfora de São Paulo, nas férias de 1940-1941. Ele co-municou sua idéia a Lourival e ambos definiram e

traçaram o plano, atribuindo as seções, escolhen-do os encarregados e colaboradores etc. Nós ou-tros fomos apenas informados. Pouco depois foiLourival, diretor responsável, que escolheu onome, desenhou a capa e fez o projeto gráfico. Euestava na casa de meus pais em Poços de Caldas.

 Ambos me escreveram em janeiro de 1941 comu-nicando e me atribuindo a seção de livros. Res-pondi assustado que não poderia aceitar, pois na

 verdade só tinha publicado em 1934 um artigo na-quele jornalzinho de ginásio do qual falei há pou-co. Eles insistiram e disseram que pelas minhascartas viam que eu seria capaz. E assim me tornei,sem querer e sem saber, crítico literário, quandoera aluno do 3º. ano de Ciências Sociais. Devo di-zer que tempos atrás li quase toda a coleção darevista, 16 números de abril de 1941 a novembrode 1944 e achei que ela era muito boa, sobretudoa partir do número 12, quando ganhou mais flexi-bilidade na estrutura e começou a se politizar. Foinessa revista que assumimos tarefas que marca-riam o nosso futuro intelectual: na ordem, eu fi-quei com os Livros, Décio com Teatro, Paulo Emí-

lio com Cinema, Lourival com Artes Plásticas, An-tonio Branco Lefèvre com Música, Roberto Pintode Souza com Economia e Direito. Pode-se dizerque só os dois últimos não se desviaram da suaformação. Lefèvre foi crítico musical apenas na-quele momento, concentrando-se o resto da vidana neuropediatria. Roberto sempre cuidou de eco-nomia política como professor e pesquisador naUSP, de modo que não estava se desviando.

Heloisa – Além da Faculdade, o que vocês faziam nacidade? Iam aos concertos, às livrarias, à biblioteca?

 Antonio Candido – Nós levávamos uma vida mui-to divertida. Quase todos tinham pouco dinheiro,que não permitia compras nem despesas maiores,mas naquele tempo ainda não se tinha instalado oconsumismo desenfreado de hoje e as necessida-des eram bem mais modestas. A gente andava debonde ou ônibus, ia ao cinema, comprava alguns

livros, se reunia na Confeitaria Vienense para to-mar chá e refrescos, freqüentava concertos e tea-tro, sendo que a certa altura esteve uns tempospor aqui a companhia de Louis Jouvet, presa pela

guerra. Vinham troupes de ballet, como o deMonte Carlo, o Original Ballet Russe, restos dagrande empresa de Diaghilev. Coisas assim. Pau-lo Emílio costumava localizar filmes importantesem cinemas pequenos ou afastados, e então ía-mos incorporados vê-los. Certa vez passaram Os cavaleiros de ferro, de Einsenstein, num pulguei-ro da Praça da Sé. Eu fui todos os dias da sema-na em que esteve em cartaz. Os rapazes costuma-

  vam freqüentar os bares de tipo alemão, comchope e alguns com orquestra: o Pingüim, na es-quina da ladeira de São João com a Praça do Cor-reio, o Franciscano e o Brahma, na rua Líbero Ba-daró, o Hungária, depois Harmonia, na Xavier deToledo, o Rütli, na Barão de Itapetininga. Líamosmuito e discutíamos nossas leituras, brasileiras eestrangeiras. Certos autores despertavam grandeentusiasmo, como Aldous Huxley, SomersetMaugham, Charles Morgan, Lawrence, sem falar deGide e Proust. Quanto aos brasileiros, líamos maisos prosadores do que os poetas, porque as edi-ções desses eram quase esotéricas – limitadas e di-fíceis de encontrar. Era o tempo de Graciliano Ra-

mos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado, José Linsdo Rego, Érico Veríssimo. Lembro a alegria quetive quando pude comprar a primeira edição aces-sível de Manuel Bandeira, ali por 1940, Poesias es-

colhidas , editada pela Civilização Brasileira. Nosfins de semana às vezes íamos a Santo Amaro ouà chácara da família de uma colega. Mas isso erararo. Houve um tempo, 1941, 1942, em que Rober-to Pinto de Souza arranjou de maneira muito agra-dável umas peças no porão habitável da casa deseu pai, na Barra Funda, e esse foi um ponto deencontro onde nos reunimos muito. Éramos ale-

gres, engraçados e ríamos com prazer.

Heloisa – Como era a presença de Mário de An-drade na cidade e, indiretamente, na universidade?

 Antonio Candido – Já falei da importância da atua-ção dele no Departamento de Cultura. Antes de euentrar para o curso de bacharelado, sei que teve

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 19

Page 16: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 16/27

muito contato com Lévi-Strauss e sobretudo suamulher, Dina. Juntos fundaram e animaram a So-ciedade de Etnografia e Folclore, importante cen-tro de pesquisas, que publicava resultados na  Re-

vista do Arquivo Municipal , dirigida, se não meengano, por Sérgio Milliet no quadro do Departa-mento. Estudantes da Faculdade colaboravam nes-ses trabalhos, como um dos mais inteligentes ecultos que havia então, Mário Wagner Vieira daCunha, que publicou em colaboração com Márioum estudo sobre o samba rural paulista. Márioconseguiu reunir uma equipe eficiente para as di-

  versas tarefas do Departamento: Sérgio Milliet narevista, Rubens Borba de Moraes na Biblioteca,Oneyda Alvarenga na Discoteca, Nuto Santana no

 Arquivo, Paulo de Magalhães no Teatro Municipal,Nicanor Miranda nos Parques Infantis. Mas desper-tou não apenas ciúmes, mas franca animosidadepor parte dos elementos mais conservadores da

 vida artística, com os quais polemizou, ou que ata-cou vigorosamente, como se pode ler nas suascrônicas reunidas sob a rubrica “Música de panca-daria” no livro Música, doce música . Com o adven-to da ditadura, no fim de 1937, esse pessoal con-seguiu derrubá-lo, inclusive porque a mulher donovo prefeito, Prestes Maia, ligada à ópera e aocanto tradicionais, partidária do conservador maes-

tro Armando Belardi, inimigo de Mário, atuou nes-se sentido. Creio que se chamava Maria de Lour-des e era cantora. Mário ficou muito aborrecido eaceitou o trabalho no Rio, mudando-se para lá e lá

 vivendo uns três anos.Quando eu já era aluno da Faculdade, e de-

pois recém-formado, lembro que alguns professo-res franceses tinham grande respeito por Mário de

 Andrade. Sem falar de Hourcade, que conhecia asua obra e a citava naquelas aulas a que me refe-ri, Roger Bastide manteve com ele certo diálogointelectual, sobretudo no setor dos estudos sobre

cultura popular.

Heloisa – E a Escola Livre de Sociologia e Políti-ca? O senhor foi ligado a ela?

 Antonio Candido – Sei pouco a respeito dela, massei que se deve a ela uma orientação mais práticada sociologia, por obra dos primeiros professores

americanos Horace Davies e Samuel Lowrie, sen-do que este realizou uma pesquisa importante eprecursora sobre as condições de vida dos lixeirosde São Paulo. Depois veio Donald Pierson, que fi-

cou aqui muito tempo e fez discípulos, introdu-zindo a visão da Escola de Chicago e as normasde pesquisa da Smithsonian Institution. A parte deantropologia era lá muito viva e precedeu a da Fa-culdade, graças a Herbert Baldus, alemão radica-do aqui, homem original e de cultura variada, quefez pesquisas de qualidade sobre indígenas brasi-leiros e foi um mestre decisivo na carreira de Flo-restan Fernandes, cuja dissertação de mestradoorientou: o notável Organização social dos Tupi-nambá. Florestan foi dos que fizeram pós-gradua-ção lá. Outros foram Gioconda Mussolini e LucilaHerrman. Emílio Willems, alemão radicado noBrasil, que se doutorara em Berlim com RichardThurnwald, era professor nas duas escolas e tevepapel importante em ambas. Ele começou comoprofessor em Santa Catarina, onde fez pesquisassobre o que ainda não se chamava “aculturação”,mas “assimilação” dos colonos alemães. Fernandode Azevedo publicou o seu livro na Brasiliana e oconvidou para ser seu assistente na cadeira de So-ciologia Educacional do Instituto de Educação.(Este foi suprimido em 1938 pelo interventor

 Adhemar de Barros e transformado em Seção dePedagogia da Faculdade.) Willems era um profes-sor claro, objetivo e muito informado. Fui seu alu-no no chamado “cursinho”, o Curso de Didáticaque constituía o 4º. ano e dava o título de licen-ciado aos bacharéis. Em 1942, ele passou a regera recém-criada disciplina de Antropologia e eu osubstitui como assistente de Fernando de Azeve-do. O assistente dele foi Egon Schaden. Em 1942e 1943 freqüentei o seu seminário de doutorado,pois havia escolhido antropologia como uma dasduas matérias subsidiárias do antigo curso de dou-

torado. Foi um momento importante na minhaformação. Éramos quatro candidatos: GiocondaMussolini, Egon Schaden, José Francisco de Ca-margo e eu. Nós nos reuníamos uma vez por se-mana das 5 às 7 e fazíamos relatórios de leitura,comentados muito bem por Willems, a quemdevo a iniciação num tipo de bibliografia que foia que mais me inspirou no domínio dos estudos

20 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 17: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 17/27

sociais e teve influência decisiva na minha tese.Como pressuposto, ele recomendava a leitura deO homem (The study of man), de Ralph Linton.Com ele lemos Redfield, Melville Herskovits, Ir-

 ving Hallowell, Raymond Firth, Malinowski, EvansPritchard, Radcliffe-Brown. Naquele tempo esteainda não tinha publicado nada além do clássicoThe Andaman Islanders , e Willems nos trazia osartigos dele em separatas de revistas inglesas eamericanas... Fiquei marcado pelo funcionalismo,me apeguei ao conceito de estrutura, que depoistranspus da antropologia para a crítica literária. Oseminário de Willems foi decisivo para nós qua-tro. Nos anos 50 ele foi para os Estados Unidoscomo professor da Universidade de Vanderbilt epor lá ficou.

É oportuno informar que Radcliffe-Brownesteve em São Paulo em 1942 e 1943, como repre-sentante do Conselho Britânico, naturalmente emserviço de guerra. Lecionou na Escola de Sociolo-gia e Política, onde era professor um discípulodele, Antonio Rubbo Müller, e fez parte da bancaexaminadora de doutorado de Lourival GomesMachado, com beca de Oxford e monóculo. Eraum homem muito alto, esticado, com ar severo.Em 1943 desenvolvi grande interesse pela poesiainglesa e quis ler o que havia na biblioteca da Cul-

tura Inglesa. Para isso, era preciso obter licençaespecial, depois de uma entrevista com o chefe,que era Radcliffe-Brown. Ele me olhou severa-mente, perguntou se falava inglês, qual o meu in-teresse na cultura inglesa, se satisfez com a minharesposta, autorizou e eu pude inclusive levar paracasa coisas importantes como o primeiro dos Four quartets , de Elliot, “East Cocker”, ainda não incor-porado em volume.

Heloisa – Nessa época a sua relação com a políti-ca era remota?

 Antonio Candido – Como contei, chegando a SãoPaulo me desinteressei inteiramente de política enem li mais livros a respeito. Estava de namorocom as oportunidades culturais e de convívio dacidade grande. Na Faculdade de Filosofia não sefalava de política, com um corpo docente forma-do quase apenas por estrangeiros, uma ditadura

de arrocho no país e a norma que estrangeiro nãose manifestava sobre assuntos políticos locais. Osprofessores italianos eram na maioria fascistas, noentanto mantinham reserva total. Os franceses se

dividiam, mas nós apenas indiretamente ficáva-mos sabendo qual era a posição ideológica deles.

 Apenas Maugüé não escondia o seu pensamento.Sabíamos que Roger Bastide pertencera na moci-dade ao Partido Socialista Francês, do qual Lévi-Strauss teria sido simpatizante. Monbeig eraprovavelmente um republicano radical, “radical-socialista” na terminologia do seu país. Mas, repi-to, o único cuja posição era conhecida, porqueele não a escondia, era Maugüé, simpatizante doPartido Comunista e marxista a seu modo. Osestudantes, em maioria mulheres, eram despoliti-zados ao extremo, salvo algumas simpatias platô-nicas pela esquerda.

 Já na Faculdade de Direito, tradicionalmentepolitizada, fornecedora de presidentes, ministros,deputados durante o Império e a República, a coi-sa era outra, e foi lá que comecei a assumir posi-ções de cunho político, a partir de 1939, em opo-sição à ditadura do Estado Novo. Foi meu colega,amigo e correligionário um dos mais ativos e des-temidos líderes estudantis que conheci, GerminalFeijó. Entre os liberais, um que me levou a parti-

cipar foi Luís Arrobas Martins, mais tarde secretá-rio de Estado e líder católico progressista. Mas sócomecei mesmo a ter atividade creio que no co-meço de 1943, por influência de Paulo Emílio,que tinha uma acentuada vocação política, aocontrário de mim.

Ligado à juventude comunista, foi preso emdezembro de 1935, depois do levante comunista eficou catorze meses detido, até que em fevereirode 1937 fugiu com alguns companheiros por meiode um túnel que cavaram. Foi então para a Fran-ça e lá modificou a sua orientação em contato

com dissidentes anti-stalinistas e grupos que pro-curavam fórmulas de socialismo com democracia.

  Voltou com a anistia no fim de 1939, quando oconheci. Ele era amigo fraterno do Décio, seu co-lega no Colégio Rio Branco, e ante o nosso desin-teresse, costumava se irritar e dizer que era me-lhor ser integralista do que alienado, como nós...Quando o Brasil entrou na guerra ele atuou no

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 21

Page 18: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 18/27

sentido de politizar Clima. Foi o autor de um ma-nifesto assinado por todos e, a seguir, de um “Co-mentário” que, posso dizer, foi a base de minhaorientação ideológica. A partir de então a revista

ficou mais “participante”, como se dizia, mesmoporque a ditadura tinha sido obrigada a entrar naguerra contra o Eixo. Mas a politização foi maisdas pessoas do que da revista.

Em 1941, em parte por causa do curso deMaugüé, comecei a ler muito a literatura socialis-ta. Li Lenine, li Bukarin, li Plekanov, mas sobretu-do Trotski, que me fascinou pela força da sua in-teligência e pela beleza do seu estilo. Li sobre aRevolução Russa e lembro que conversava muitoa respeito com Paulo Emílio ali por 1942. No fimdesse ano, ou no começo do seguinte, ele já tinhame doutrinado e estava me levando para a ação.Foi então que reuniu um grupo de seis rapazespara discutir temas políticos, fazer documentos epraticar alguns atos contra a ditadura. Meio debrincadeira, demos a ele o nome pomposo doGrupo Radical de Ação Popular, GRAP, que sereunia todos os domingos de manhã na casa ondeeu morava, de um tio. Para mim foi uma escola.Nós distribuíamos panfletos batidos à máquina ecerta vez um de nós chegou a ser preso e passarquinze dias na cadeia: Paulo Zingg, ex-integralis-

ta que acabou na direita, prócer do golpe de 1964. Além dele, de mim e do Paulo, havia um operáriolitógrafo austríaco, Eric Czaskes, que tinha mora-do em menino na Rússia e mais tarde fundaria aPOLOP. E dois estudantes de Direito muito aguer-ridos: Germinal Feijó e seu cunhado Antonio Cos-ta Correia, que abandonara o Partido Comunistapor ocasião do pacto Hitler-Stalin em 1939.

 Aprendi muito com esses companheiros.Em 1943 nos ligamos a um grupo combativo

de estudantes ou jovens formados em Direito, unsliberais, outros socialistas, e organizamos com eles

a Frente de Resistência.

Heloisa – Quem eram eles?

 Antonio Candido – Creio que o aglutinador dessegrupo na Faculdade de Direito foi um rapaz exce-lente, Francisco Morato de Oliveira, da turma de1942, infelizmente afastado por doença quando a

Frente se configurou. O nascedouro foi o PartidoLibertador, organizado ali por 1939 ou 40 em opo-sição à ditadura, cujo documento de fundação as-sinei (nada a ver com o famoso partido gaúcho do

mesmo nome, dirigido por Raul Pilla. Dos rapazesliberais, alguns chegaram mais tarde a posições ele-

 vadas, como Roberto de Abreu Sodré, que foi go- vernador do Estado e ministro do Exterior, ou Luís Arrobas Martins, meu amigo, que foi secretário deEstado. Outros vieram aos poucos para a esquerda,como Cory Porto Fernandes, Celso Galvão, HiramMayr Cerqueira, Renato Sampaio Coelho. GerminalFeijó e Wilson Rahal eram mais decididamente es-querdistas e ambos foram deputados mais tarde.De esquerda era indiscutivelmente o nosso GRAP,que entrou para a Frente com exceção de Eric, quenada queria com alianças liberais. A Frente seempenhou pela participação efetiva do Brasil naguerra e efetuou muitas atividades de oposição, in-clusive a publicação do jornalzinho clandestino Resistência, que tirou uns quatro números sob onariz das autoridades. Nele escrevi uma nota dirigi-da aos operários, porque numa reunião tinha criti-cado o fato de não estarem eles sendo levados emconsideração. Com o fim da censura em fevereirode 1945 pudemos lançar um manifesto, redigidopor Paulo Emílio, de teor bastante radical, aceito

não obstante por todos, o que mostrava como anossa presença tinha influído na ideologia do gru-po. Mas isso durou pouco. Como sabem, em tem-po de fechamento as esquerdas e os liberais seunem; em tempo de abertura dá-se a decantação.No nosso caso, o traço de união era a oposição àditadura do Estado Novo. Quando ela começou a

 vacilar as divergências essenciais vieram à tona e aFrente se dissolveu. Os rapazes liberais foram paraa União Democrática Nacional, UDN, nome dadopor Caio Prado Júnior, empenhado com outros empolítica de frente única. Nós socialistas formamos

por inspiração de Paulo Emílio a União Democráti-ca Socialista, UDS, composta pelo antigo GRAP,muitos rapazes da Frente, que se radicalizaram esaíram conosco, e antigos militantes de outras or-ganizações, inclusive ex-trotskistas, ex-stalinistas emembros do Partido Socialista de 1933.

Quero aludir a um fato pouco conhecido: em1944, por iniciativa de Paulo Emílio, nós mantive-

22 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 19: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 19/27

mos contatos com um grupo de comunistas quediscordavam do apoio de seu partido a Getúlio

 Vargas sob alegação de que era aliado na guerra àUnião Soviética. Desses comunistas dissidentes fa-

ziam parte Caio Prado Júnior, Artur Neves, MárioSchemberg, Agnaldo Costa, Heitor Ferreira Lima eoutros em São Paulo. No Rio, sei apenas de Astro-jildo Pereira. As reuniões foram em casa de Caio,tendo como participantes apenas ele, Mário e Ne-

 ves de um lado, Paulo Emílio, Germinal Feijó e eude outro. Mas a coisa não foi por diante, emboratenha tido certa repercussão. Tanto assim que uma

  vez Carlos Lacerda, que ainda era de esquerda, veio do Rio a São Paulo ver se costurava a uniãodos dois lados. Mas alguma coisa de positivo ficou,pois os nossos grupos colaboraram juntos na orga-nização do 1º. Congresso Brasileiro de Escritores,realizado em São Paulo no fim de janeiro de 1945,e que foi uma tomada de posição contra a ditadu-ra. A nossa declaração de princípios não pôde serpublicada nos jornais, mas foi lida triunfalmente nasessão de encerramento, no Teatro Municipal, edistribuída amplamente em volantes.

Devo dizer honestamente que nisso tudosempre fui seguidor de amigos, sobretudo PauloEmílio, porque sou desprovido de cabeça política.Tenho convicção e princípios, mas não sei trans-

formá-los em ação. Além disso, tenho um fundode tolerância e ceticismo que atrapalha os ímpe-tos da militância. Numa das nossas reuniões finais,já quase à beira da ruptura da Frente de Resistên-cia, que Arrobas estava visivelmente procurandoliquidar para se recolher com os amigos liberaisao aprisco mais congenial da UDN, eu não con-cordei com os louvores que faziam a políticosconvencionais, sobretudo Armando de Salles Oli-

 veira, que tinha voltado muito doente do exílio.Roberto Sodré se irritou e me qualificou de “socia-lista gravatinha de borboleta”, que de fato eu usa-

 va muito. Achei graça e lembrei o que dizia Mau-güé quando eu brincava que ele estava cuidandomuito da roupa e da aparência: “Je veux le comu-nisme avec la lavande!”

O socialismo tinha se tornado aos poucospara mim a convicção arraigada de que é o me-lhor sistema para organizar a sociedade de manei-ra mais humana; dessa convicção nasceu o senti-

mento de que se assim é, cada um deve fazer al-guma coisa por ele na medida das suas forças.Paulo Emílio foi decisivo para me levar à militân-cia; outros amigos, para me confirmar nela. Mas

nunca me considerei capaz de ser outra coisaalém de seguidor. Por isso, um dos maiores sus-tos que tive na vida foi um dia em que Caio Pra-do Júnior me disse que o nosso grupo deveria seestruturar melhor e eu deveria ser o líder! Penseique estivesse brincando, mas vi que falava sério,inclusive porque havia mais gente na sala. Per-guntei o porquê daquela opinião insólita e ele ex-plicou: “já por duas vezes estivemos a ponto deromper uns com os outros, e nas duas vezes vocêapaziguou os ânimos e restabeleceu a harmonia”.É verdade que tenho temperamento conciliador enão gosto de conflitos, mas daí a ter capacidadepolítica de direção... A coisa ficou por isso mesmoe logo depois os contatos cessaram. Para mim,restou de positivo o convívio com Caio, que maistarde se tornou uma sólida amizade, apesar demomentos agudos de divergência política.

 A UDS, que se reunia quase sempre na casade Paulo Emílio, foi um pequeno grupo de consti-tuição heterogênea, como disse, mas que tinha emcomum o anti-stalinismo, o desejo de definir umaforma democrática e combativa para o socialismo

e a atenção voltada para as condições próprias doBrasil. O manifesto que lançamos, da autoria dePaulo Emílio, retomava em sentido radical o daFrente de Resistência, e eu o considero um bomdocumento político. Além dos que mencionei, épreciso dizer que se juntaram a nós grupos muitointeressantes de intelectuais e operários negros,como o jornalista Geraldo Campos de Oliveira, asprofessoras Dona Sofia e Aparecida, o bombeiroLaponésio Batista, o metalúrgico Antonio Candidode Mello, os dois últimos da mesma cidade queeu. Ex-trotskistas eram Febus Gikovate, que exer-

ceu grande influência sobre mim, e Fúlvio Abra-mo. Arnaldo Pedroso d’Horta era ex-stalinista, e

  Azis Simão, ex-membro do Partido Socialista de1933. Enquanto isso, formou-se no Rio a EsquerdaDemocrática, integrada por pessoas que não se de-ram bem na UDN, antigos comunistas e tenentis-tas. Paulo Emílio e Germinal participaram da fun-dação e assinaram o manifesto. O mesmo fizemos

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 23

Page 20: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 20/27

em São Paulo, Paulo Zingg e eu. Pouco depois aUDS se dissolveu e nós entramos para a EsquerdaDemocrática, para onde vieram dois amigos deClima, Décio Almeida Prado e Lourival Gomes

Machado, que teve atuação importante na configu-ração do novo partido. Lourival tinha, ele sim,grande vocação de líder. Em 1947 a Esquerda De-mocrática mudou o nome para Partido SocialistaBrasileiro, como queria o meu grupo.

Heloisa – Professor, como e quando o senhor co-meçou a escrever?

 Antonio Candido – Nunca pensei que fosse publi-car alguma coisa. A minha vocação foi sempre deleitor e desde os nove anos li muito, de maneiradispersiva e variada, de modo que acumulei des-de cedo muita informação, mas não sei nada afundo nem tenho temperamento de especialista.Meu pai me criou para ser médico, como ele,como meu avô materno, como vários tios e tios-avós, dos dois lados. Se dependesse dele, meus ir-mãos também seriam médicos. Por isso, eu acha-

 va que meu futuro estava traçado.

Heloisa – Seus irmãos foram médicos?

 Antonio Candido – Não. Um deles já estava na Fa-culdade de Medicina e outro na de Direito quan-do meu pai morreu, aos 56 anos. Era um médicode muita clínica e nossa vida era folgada, mascom a morte dele passamos a enfrentar grandesdificuldades. Eu já estava formado e nomeado as-sistente na Faculdade de Filosofia. Meus irmãos ti-

 veram de interromper os estudos. Isso foi em 1942e eu já estava escrevendo em Clima, que foi oque me levou a publicar de maneira seguida. An-tes disso tinha publicado apenas um artigo sobrehistória alemã no jornalzinho Ariel do nosso giná-

sio, do qual já falei. Posso dizer que foram Alfre-do Mesquita e Lourival Gomes Machado que melevaram a publicar. Por isso dediquei a eles o meulivro Brigada ligeira, em 1945. Foi também Louri-

 val que me levou à grande imprensa. Em 1942 umamigo dele, Jorge Martins Rodrigues, foi chamadopara ser superintendente da empresa Folha daManhã, que desejava passar por uma moderniza-

ção radical. Ele convidou Lourival para fazer críti-ca de arte, e queriam também estabelecer o roda-pé crítico semanal. Consultado, Lourival, que eraafoito, disse ao secretário da redação, Hermínio

Sacchetta, que tinha para isso um amigo em con-dições, e me indicou. Fiquei amedrontado com aresponsabilidade, mas a perspectiva de ganharmais algum dinheiro me decidiu, e foi assim queem janeiro de 1943 publiquei o primeiro artigo,sob a rubrica permanente de “Notas de Crítica Li-terária”. Eu era assistente de tempo parcial, davaaulas de português e história num ginásio (tam-bém por iniciativa de Lourival) e ainda fazia algu-mas traduções, pois precisava ajudar a família,como filho mais velho. Eu ganhava 100 mil réispor rodapé, o que dava 400 mil réis por mês.

 A seguir fui aumentado para 150, o que medeu um total de 600 mil réis por mês, metade doque eu ganhava como assistente de tempo parcial.

Heloisa – Como o senhor se tornou assistente?

 Antonio Candido – Eu me formei no dia 31 de ja-neiro de 1942 e meu pai morreu no dia 31 de mar-ço, depois de uma longa doença. Eu precisava ur-gentemente de emprego. Sabendo que uma vagade professor de Filosofia na 5ª. seção do Colégio

Universitário tinha sido prometida a um rapaz quenão era licenciado, e nós lutávamos naquele tem-po para que os professores do secundário fossemformados pela Faculdade, resolvi criar um peque-no caso e procurei o diretor, Fernando de Azeve-do, para apresentar a minha candidatura. Ele meouviu, informou que a vaga estava preenchida e,quando eu perguntei se era por um licenciado,respondeu: “Não importa. Quer ser meu assisten-te?” Surpreso, aceitei imediatamente, porque na-quela conjuntura aceitaria qualquer coisa. Foi as-sim que entrei para o corpo docente sem vontade

de ser sociólogo, como tinha começado a escre- ver sem vontade de ser escritor. Mais tarde, pen-sando, vi que a escolha de Fernando de Azevedonão havia sido por acaso. Com certeza ele gosta-ra do meu discurso e tinha ouvido falar bem demim por Lourival, que estimava muito e cuja mu-lher era sua auxiliar técnica. Lembro que quandoentrei na sala para falar com ele Maugüé estava

24 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 21: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 21/27

saindo e disse coisas elogiosas a meu respeito.Tudo isso junto, e mais a necessidade de preen-cher com urgência a vaga de Emílio Willems, que,como contei, passara a ser professor de Antropo-

logia; e também a pouca concorrência daqueletempo, me tornaram assistente. Mas logo sentique o meu rumo certo se dirigia à literatura e em1944 resolvi concorrer à cadeira de Literatura Bra-sileira como escapatória possível.

Heloisa – Como foi isso?

 Antonio Candido – A Faculdade estava ainda seorganizando, sem congregação autônoma, semquadros suficientes em muitas matérias, de modoque foi permitido que qualquer portador de diplo-ma superior pudesse se candidatar. Aí vi a minhachance: se aprovado, mesmo que não tirasse a ca-deira receberia o título de livre-docente, que tra-zia embutido o grau de doutor em letras, isto é,um eventual passaporte para carreira futura. Meusamigos me estimularam, sobretudo Cícero Cristia-no de Souza, formado em medicina e filosofia, co-laborador de Clima e membro do nosso grupo.Eu tinha 26 anos e resolvi arriscar. Escolhi para as-sunto de tese um que conhecia bem e entre junhode 1944 e fevereiro de 1945 redigi cento e poucas

páginas sobre Sílvio Romero, trabalhando brutal-mente, sem interromper o rodapé semanal, semdeixar de colaborar em Clima nem de participardo movimento do congresso de escritores. Masnão tive forças para escrever uma conclusão, equando pus o ponto final no último capítulo, demadrugada, desmaiei. Os primeiros capítulos jáestavam sendo compostos na gráfica.10

Heloisa – Como foi o concurso e quem concor-reu? Houve empate?

 Antonio Candido – Concorreram seis candidatos:o regente interino da cadeira, Mário de SouzaLima, versado em gramática e homem de muitaleitura; Antonio de Salles Campos, que já mencio-nei como meu professor de literatura no ColégioUniversitário; Oswald de Andrade, do qual não épreciso falar; Jamil Almansur Haddad, poeta e es-critor, médico que não exercia a medicina; Manoel

Cerqueira Leite, assistente da cadeira, único licen-ciado em Letras e eu, o caçula (fiz 27 anos no diaem que começou o concurso). No fim tive cinco

 votos, Souza Lima dois e Oswald um, isto é, eu ti-

nha empatado duas vezes com Souza Lima e umacom Oswald. Os examinadores desempataramcontra mim, de modo que fiquei empatado comSouza Lima. A questão subiu ao Conselho Univer-sitário, que também desempatou contra mim, demodo que fiquei em segundo lugar, apesar de tertirado a maior média das notas. Houve revolta deamigos e muita gente, mas eu confesso que nãofiquei abalado demais, pois nunca esperei sair

 vencedor e tinha obtido o que queria, a livre-do-cência, que me punha dentro das letras. Trezeanos depois, foi o que me permitiu deixar a socio-logia e passar para o ensino universitário de lite-ratura. Tenho senso das minhas limitações e sabiaque naquele momento eu não estava preparadopara a responsabilidade de uma cátedra.

Heloisa – Foi aí que nasceu a idéia de escrever atese sobre os parceiros?

 Antonio Candido – Foi pouco depois, mas é preci-so dizer que antes eu pensei em fazer coisa dife-rente. Inscrito para doutorado em 1942, pensei pri-

meiro em estudar os norte-americanos que vieramdepois da guerra de Secessão e fundaram a cidadede Americana. Depois Willems me sugeriu os ale-mães da região de Santo Amaro, ambos os temasdentro dos processos de aculturação, que estavamentão em grande voga por aqui. Mas a coisa não ianem vinha quando Roger Bastide me pediu para ircom Gilda e uns alunos a Piracicaba recolher da-dos sobre a cururu, dança e canto dos caipiras, esobre os “língua de fogo”, nome dado aos pente-costais. Gostei muito da experiência e decidi esco-lher novo assunto, mais próximo do meu conheci-

mento e da minha experiência de vida: relação docururu com a urbanização. Fui muitas vezes a Pira-cicaba e sua zona rural, algumas delas com Gilda,recolhi material e cheguei a escrever cem páginas,a partir de 1946. A tese se chamaria  Poesia popular 

e mudança social , mas acabei percebendo quesem conhecer música seria impossível estudar di-reito uma manifestação essencialmente musical.

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 25

Page 22: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 22/27

Então resolvi, creio que ali por 1950, pôr de lado ocururu e aproveitar noutro sentido o material reco-lhido, de modo que o que deveria ser a parte ini-cial da tese, uma vista geral sobre a cultura caipira,

se tornou a própria tese, baseada sobretudo no tra-balho de campo na zona rural de Bofete, com doismomentos principais: cerca de um mês no começode 1948 e mais de um mês no começo de 1954,quando já estava em trabalho de redação. A tese fi-cou pronta no começo do segundo semestre e foidefendida em outubro. José Olympio se ofereceuimediatamente para publicá-la na coleção Docu-mentos Brasileiros e eu não quis, achando que erafraca e precisava ser muito retocada. Foi uma toli-ce. Saiu em 1964 sem alteração ponderável, a nãoser simplificação de linguagem e coisas menores,quando a sociologia já tinha avançado muito aquie ela deixara de ter o impacto que poderia ter tidoem 1954 ou 1955.

 A propósito quero contar o seguinte: os as-sistentes deveriam apresentar tese dentro de umcerto prazo, se não perderiam o cargo. A Congre-gação decidiu que eu não precisaria fazer issoporque já era doutor em letras, mas não aceitei.Entendi que estava moralmente obrigado a darprova de competência na matéria que ensinava efiz Os parceiros .

Heloisa – E os estudos literários?

 Antonio Candido – Fui crítico literário do Diário de 

São Paulo até entrar no regime de tempo integralno começo de 1947. A partir de 1946 comecei a tra-balhar no que seria a  Formação da literatura bra- sileira, de modo que preparei e escrevi os dois li- vros ao mesmo tempo, ora me concentrando num,ora noutro: de 1946 a 1954,  Parceiros ; de 1946 a1956, Formação. A história deste é curiosa. Ali por1944 o editor José de Barros Martins convidou Má-

rio de Andrade para escrever uma história agradá- vel da literatura brasileira, tipo da que Albert Thi-baudet havia feito para a francesa. Mário não quise sugeriu o meu nome, creio que apoiado por Má-rio da Silva Brito, excelente escritor, meu colega deturma na Faculdade de Direito, que trabalhava naMartins. Depois do meu concurso Martins fez oconvite e eu aceitei, por motivos financeiros, pois

ele me pagaria um conto de réis por mês durantedois anos e eu lhe daria dois volumes. O resultadofoi que alterei completamente o plano no decorrerdo longo trabalho e só dez anos depois entreguei

os originais de uma obra diferente, concentrada na Arcádia e no Romantismo como momentos decisi-  vos na formação do “sistema literário”, conceitoque a certa altura passou a condicionar o meu tra-balho. Foi um período duro, pois havia ainda a ati-

 vidade política, as aulas, durante algum tempo osrodapés, os encargos de família.

Heloisa – Quando o senhor começou a trabalharna cadeira de sociologia, o cargo de assistente eraconcorrido?

 Antonio Candido – Não. Os cargos estavam sen-do criados e os candidatos eram poucos. Já lhescontei como fui nomeado de maneira inesperada,e como tudo dependia da escolha pessoal do ca-tedrático. Pelo regimento da Faculdade, o assis-tente era cargo de confiança, demissível ad nu-

tum, isto é, segundo a mera vontade do professor.Não tinha estabilidade, não tinha aposentadoria,era rigorosamente dependente do seu chefe. Na-quele momento foi definido regularmente o qua-dro da Faculdade e por isso havia muitos lugares

disponíveis, de 1º., 2º. e 3º. assistente. Eu fui 1º. e omeu colega José Francisco de Camargo, mais tar-de diretor da Faculdade de Ciências Econômicas,2º.. A seguir ele passou para o ensino normal, an-tes de voltar à USP, e foi nomeado para substituí-lo Florestan Fernandes. Não lembro quando o as-sistente passou a ter carreira regular. Creio que foina segunda metade do decênio de 1950, devido àluta da Associação dos Auxiliares de Ensino daUSP, na qual foram ativos, entre outros, AlbertoCarvalho da Silva, de Medicina, e Fernando Hen-rique Cardoso. Se não me engano, foi então que

se estabeleceu que um assistente que tivesse dou-torado e dez anos de casa teria estabilidade. Masnão lembro direito.

Heloisa – O que um assistente fazia?

 Antonio Candido – Variava conforme a matéria eo professor. Fernando de Azevedo era autoritário

26 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 23: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 23/27

e imperioso, dando para fora a impressão de ser ti-rânico, mas não era. Extremamente afetuoso comos amigos e necessitando muito de convívio, esta-

  va sempre trocando idéias e deixava a rotina da

cadeira a nosso cargo, além de nos confiar cursos.Tratava-nos como amigos e costumava dizer quetinha orgulho dos seus auxiliares, entre os quaisenumerava Hermes Lima, Emílio Willems e nós.Mais tarde se ligou igualmente aos que foram seincorporando à equipe: Maria Isaura Pereira deQueiroz, Azis Simão, Frank Goldman, Ruy Coelho.Eu, pessoalmente, me interessava em facilitar o tra-balho dos alunos, e a certa altura inventei uns “co-lóquios”, com grupos de seis estudantes para rela-tar leituras. Florestan aderiu e nós fazíamos issopela manhã, algumas vezes por semana.

Heloisa – Como foi montado o Departamento deCiências Sociais?

 Antonio Candido – Quem teve a idéia foi GeorgesGurvitch, que esteve aqui um ano em 1947 e tal-

 vez (não lembro), também em 48, como professor visitante de Política, regida então por Lourival Go-mes Machado, que tinha tido a idéia de convidá-lo. Gurvitch ensinara nos Estados Unidos e seconvenceu da importância da organização depar-

tamental, sobretudo para sistematizar os cursos.Fernando de Azevedo gostou da idéia e se tornouo chefe do Departamento de Sociologia e Antropo-logia, cargo que sempre exerceu enquanto estevena Faculdade. Assim, se reuniram as quatro cadei-ras: Sociologia I, regida por Roger Bastide; Socio-logia II, por Fernando de Azevedo; Política, porGurvitch e Lourival; Antropologia, por Emílio Wil-lems. A partir daí os cursos eram combinados pre-

 viamente depois de reuniões e começamos e pu-blicar os programas em folhetos. Gurvitch sugeriutambém a formação do Seminário de Sociologia e

 Antropologia, uma sessão por semana, na qual al-guém expunha um tema que era a seguir debati-do. Lembro que foi nele que apresentei, em 1948,os primeiros resultados da minha pesquisa decampo sobre o caipira. Do Seminário participavamnão apenas os docentes do departamento, mas deoutros setores da Faculdade e de fora. Lembro deexposições de Fernand Braudel, que estava de vol-

ta por um tempo como visitante, e de Donald Pier-son. Mas depois que Gurvitch foi embora o Semi-nário acabou. É preciso dizer que naquela alturaestava havendo uma espécie de tendência para

reunir em departamentos as cadeiras até então in-dependentes. Foi influência do modelo norte-ame-ricano e começou nas ciências, passando depois àsdisciplinas humanas. Foi um progresso na medidaem que houve maior coordenação dos cursos, in-clusive com valorização dos introdutórios, que osprofessores franceses tendiam a pôr de lado embenefício dos monográficos. Naquela altura, aliás,estavam chegando à maturidade os jovens brasilei-ros, que iam substituindo os mestres franceses. As-sim, quando Roger Bastide voltou definitivamentepara a França em 1954, foi substituído por Flores-tan Fernandes, que já tinha sido por ele convida-do para assistente alguns anos antes, justamentecom essa finalidade. Foi substituído na cadeira deSociologia II por Ruy Coelho, que chegava de umalonga ausência no exterior, onde se doutorou.Gurvitch era apenas visitante e Lourival ficou defi-nitivamente como professor de Política. Willemsfoi para os Estados Unidos e Egon Schaden ficouno seu lugar. Eu, que Fernando Azevedo desejavapara sucessor, comuniquei-lhe logo depois da de-fesa da tese que pretendia largar da sociologia

para cuidar apenas de literatura, pois nunca meconsiderei sociólogo, mas apenas docente de so-ciologia, o que é outra coisa. Creio que pensaramentão que eu estava magoado porque meus com-panheiros já eram professores e eu não. Provavel-mente por iniciativa de Fernando de Azevedo re-solveram propor para mim a criação de uma novacadeira, Sociologia da Educação, matéria que meinteressava, mas isso só serviu para apressar a mi-nha decisão. Resolvi que o ano de 1956 seria o úl-timo como assistente de sociologia e, por isso, meafastei do departamento, passando 1957 em licen-

ça-prêmio. Não sabia bem o que iria fazer. Penseiem voltar à crítica literária nos jornais e cheguei aesboçar um plano com Antonio Olavo Pereira, daEditora José Olympio, que sugeriu a distribuiçãodos rodapés por vários jornais do país, de modo amultiplicar o lucro. Pensei também em associar aisto o ensino de literatura no curso colegial. A úni-ca certeza é que não voltaria a ensinar sociologia.

ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO 27

Page 24: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 24/27

Foi quando um amigo meu, José Querino Ri-beiro, a par dos meus problemas, sugeriu a Anto-nio Soares Amora que me convidasse para ensinarliteratura brasileira na Faculdade que este ia diri-

gir em Assis, uma das três que o Governo do Es-tado estava criando no interior. Amora me convi-dou no fim de 1957, eu aceitei e comecei a parti-cipar no primeiro semestre de 1958 das sessões deorganização da nova Faculdade, no Instituto deEstudos Portugueses. Ela começaria a funcionarem 1959, mas se instalaria em 58, com alguns pro-fessores que dariam cursos preparatórios para o

 vestibular.Mas aconteceu que eu havia inventado um

curso de Organização Social para o 2º. ano, forte-mente apoiado na realidade brasileira, e ninguémse dispôs a dá-lo. Assim, voltei à Faculdade paraministrá-lo e só fui para Assis no 2º. semestre. Foibom, inclusive porque tive naquele 2º. ano umaturma de muita qualidade, na qual estavam Rober-to Schwarz, Michel Loewy, Gabriel Bolaffi,Heleieth Saffiotti, Francisco Weffort e outros.

Devo dizer que nunca me arrependi de terfeito o curso de Ciências Sociais, nem de ter sidoassistente de Sociologia. Pelo contrário. Isso foi acoluna vertebral da minha visão do mundo, nãosó pelos cursos recebidos e dados, mas pelos co-

legas e amigos que me enriqueceram. Eu perten-ço a um grupo e a uma fase muito misturada,como lhes disse, mas pude ver a constituição daSociologia e da Antropologia como disciplinasque requerem especialização a sério. Credito mui-to disso a Florestan Fernandes, um verdadeirogigante intelectual, que acabou conseguindo, atra-

 vés do que chama “sociologia crítica”, ligar o co-nhecimento universitário à ação político-social.Como o objetivo desta entrevista é o história daSociologia em São Paulo, é preciso destacar o pa-pel decisivo que ele teve, porque é não apenas

um grande intelectual, mas um grande homem,talvez o único de minha geração. É preciso tam-bém destacar a atuação de Egon Schaden, mas,neste caso, apenas no campo estritamente univer-sitário. Schaden completou a obra de Willems, im-plantou cientificamente a Antropologia, criandoum padrão rigoroso de trabalho. Foi um privilégioconviver com esses colegas, sem falar do inteli-

gentíssimo Lourival Gomes Machado, que é paramim sobretudo companheiro de Clima.

Meus amigos, a conversa está ótima, mas jáé hora de encerrá-la.

Heloisa – Nossa, professor, a entrevista foi tão boaque nem precisamos usar o roteiro que elaboramos.

 Antonio Candido – Agora vocês estão começandoa mitologia! Se eu viver mais uns vinte anos – eeu pretendo viver, pois quero ver a passagem doséculo – vou poder ver a mitologia a respeito daminha época, completamente formada. Talvez da-qui a alguns anos, um de vocês resolva escreverum livro intitulado “O começo da sociologia naUniversidade de São Paulo e a mentalidade do de-cênio de 1930”, para mostrar que as pessoas, nes-sa época, eram realmente de um nível mental ex-traordinário! O professor Antonio Candido, porexemplo, se caracterizava pela capacidade de es-pecialização e pela profundidade. Quando elepegava um assunto, ia fundo! Perguntado sobreassuntos paralelos, austeramente ele não respon-dia”. O mito começa assim!

Quando eu escuto o que se conta sobre aminha época, entendo melhor como se constrói ahistória. Outro dia, fui fazer uma palestra para o

PT (Partido dos Trabalhadores) lá em Penápolis, eencontrei um ex-aluno que precisava do certifica-do de participação com a minha assinatura. Quan-do eu estava assinando, alguém perguntou: “Porque o senhor só assina Antonio Candido e nãopõe o seu sobrenome?” Respondi: “É para simpli-ficar, é nome literário”. Aí o meu ex-aluno fez umaparte: “Professor, o senhor me desculpe, mas ofato de o senhor só assinar Antonio Candido nãoé por causa daquela conversa telefônica que o se-nhor teve com Gilberto Freyre?” – “Eu nunca con-

 versei com o Gilberto Freyre pelo telefone. Aliás,

eu o vi poucas vezes na vida!” – “Ah, professor,mas o que corre por aí é que o senhor ligou paraele e disse”: – “Aqui quem fala é o Antonio Can-dido de Mello e Souza”. E ele perguntou: – “Mel-lo com dois l  e Souza com z ”? Indignado, o se-nhor bateu o telefone e decidiu: – “Daqui prafrente, só vou assinar Antonio Candido!”. Depoisque ele terminou de falar, eu fiz a seguinte obser-

28 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 25: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 25/27

Page 26: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 26/27

Candido, “Clima”, publicado originalmente na revis-ta  Discurso, em 1978, e reproduzido no livro Tere- sina etc. (op. cit .). Para uma análise dessa publica-ção, ver Maria Neuma Cavalcanti, Clima: contribui-ção para o estudo do modernismo (Dissertação de

mestrado, FFLCH, USP, 1978), Andréa Alves, Socio-logia e Clima: dois caminhos, um debate  (op.cit .) eHeloisa Pontes, Destinos mistos: os críticos do GrupoClima em São Paulo, 1940-68  (São Paulo, Compa-nhia das Letras, 1998).

10 Referência ao trabalho “Introdução ao método críti-co de Sílvio Romero”, publicado primeiro pela Revis-ta dos Tribunais , em 1945, e republicado em 1988pela Edusp, com o título O método crítico de Sílvio Romero. Foi apresentado originalmente como teseao concurso para provimento da cadeira de literatu-ra brasileira, em 1945, quando Antonio Candido jáera assistente de sociologia na cadeira de sociologia

II (regida por Fernando de Azevedo) e crítico literá-rio de rodapé do jornal  A Folha da Manhã . Apesarde ter obtido o segundo lugar no concurso (o pri-meiro coube a Mário de Souza Lima) e o título de li- vre-docente em literatura, Antonio Candido teve depermanecer na cadeira de sociologia (entre 1942 e1958), pois não havia, ainda, espaço institucionalpara abrigá-lo no curso de letras da Universidade deSão Paulo. O que só viria a acontecer em 1961,quando ele se tornou professor da cadeira de teorialiterária e de literatura comparada, da qual se tornoutitular, por concurso, em 1974.

30 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 16 Nº. 47

Page 27: Entrevista com Antonio Candido

8/7/2019 Entrevista com Antonio Candido

http://slidepdf.com/reader/full/entrevista-com-antonio-candido 27/27

ENTREVISTA COM ANTONIO

CANDIDO

Heloisa Pontes

Concedida em agosto de 1987, revis-ta pelo autor em julho de 2001, estaentrevista aborda dimensões rele- vantes da trajetória intelectual de An-tonio Candido. Por meio do rastrea-mento do impacto da revolução de1930 na cultura brasileira e do papeldecisivo que a fundação da Faculda-de de Filosofia da Universidade deSão Paulo teve na implantação deum novo padrão de trabalho intelec-tual, Antonio Candido arma o con-

texto necessário para entendermosos desafios culturais e políticos per-seguidos por ele e por figuras deponta de sua geração, como Flores-tan Fernandes e vários dos integran-tes do Grupo Clima. O resultado éuma imagem vívida e palpitante docaldo de cultura que permeou o pro-cesso de institucionalização dasCiências Sociais em São Paulo.

INTERVIEW WITH ANTONIO

CANDIDO

Heloisa Pontes

Given in August 1987 and reviewedby the author in July 2001, this inter-  view deals with important dimen-sions of Antonio Candido’s intellec-tual trajectory. By tracing the impactof the 1930 revolution within Brazi-lian culture and the decisive role of the foundation of  Faculdade de Filo-

 sofia (Philosophy Department) of University of São Paulo for the im-plementation of a new pattern of in-tellectual work, Antonio Candido

sets up the necessary context in or-der to understand cultural and poli-tical challenges pursued by him andothers of his generation, such asFlorestan Fernandes and many othermembers of Grupo Clima. The resultis a vivid and thrilling image of theculture that permeated the processof institutionalization of SocialSciences in São Paulo.

L’INTERVIEW AVEC ANTONIO

CANDIDO

Heloisa Pontes

Concédée en août 1987 et revue parl’auteur en juillet 2001, cette inter-  view aborde des aspects relevantsde la trajectoire intellectuelle d’An-tonio Candido. En retraçant l’impactde la révolution de 1930 sur la cul-ture brésilienne et le rôle décisif dela fondation de la Faculté de Philo-sophie de l’Université de São Paulosur l’implantation d’un nouveau mo-dèle de travail intellectuel, AntonioCandido déploie le contexte néces-

saire pour que l’on comprenne lesdéfis culturels et politiques poursui- vis par lui et par des personnages depointe de sa génération, commeFlorestan Fernandes et plusieurs in-tégrants du Grupo Clima. Le résultatest une image vive et palpitante dubouillon de culture qui traversa leprocessus d’institutionalisation desSciences Sociales à São Paulo.

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS 177