Entrevista com fotojornalista Flavio Damm

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Entrevista com Falvio Damm, fotojornalista consagrado em trabalhos no jornal O Globo e revista O Cruzeiro, e fundador da agência Image. Realizada por alunos da ECO/UFRJ em 2007.

Citation preview

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Entrevista com Flavio Damm Realizada por: Felipe Mussa, Gabriel Esteves, Rodrigo Mello e Vinicius Carvalhosa Data: 10/2007 Qual o seu nome completo? Qual a sua data de nascimento? Meu nome Flavio Silveira Damm. Nasci em Porto Alegre em 1928, no Rio Grande do Sul. Eu me criei e tive minha formao pr-universitria em Porto Alegre. Depois, na condio, ainda de estudante pr-universitrio, eu comecei a fazer fotografia como amador. Eu me preparei em um curso para o vestibular, mas felizmente no fiz vestibular, porque j estava tomado pelo esprito do fotojornalismo. Em 1944, eu publiquei a minha primeira fotografia como amador, um aventureiro no fotojornalismo. Foi na Revista do Globo, onde eu publiquei algumas reportagens, influenciado por um companheiro de estudo no antigo curso Clssico [equivalente ao atual ensino mdio] que, posteriormente, se transformou em um autor de mais de sessenta livros sobre regionalismo do Rio Grande, Luis Carlos Barbosa Lessa. O Lessa tinha uma boa entrada na Revista do Globo, uma revista j tradicional no Rio Grande do Sul, modesta, mas era o que havia na poca. E, sabendo ele que eu fazia fotografia mesmo na condio de amador, com todas as limitaes de ordem tcnica que eu tinha, porque, na verdade, eu no tinha maiores recursos para comprar equipamento sofisticado comeamos a fazer algumas coisas em Porto Alegre. Depois, viajamos para o interior e, numa dessas viagens, eu fiz uma reportagem sobre os gachos e sobre carreteiros (assuntos tpicos do regionalismo) e a Revista do Globo publicou. Ento, a nossa primeira reportagem foi em 1944. Essa a data da primeira publicao de uma foto minha, com assinatura e com crdito do meu trabalho. Posteriormente, em 1946, eu fui admitido na Revista do Globo como auxiliar de laboratrio. Eu sempre digo que comecei a minha carreira como fotojornalista com a vassoura na mo, porque, para trabalhar no laboratrio do estdio da revista (eu no tinha uma experincia maior de laboratrio), eu fui contratado como auxiliar. E o auxiliar no podia fazer outra coisa seno varrer e organizar a iluminao para a realizao das fotos pelo titular do estdio, que era o fotgrafo alemo Ed Keffel. Tive um aprendizado razoavelmente rpido de laboratrio e acompanhei (tive boas instrues, boa informao) esse fotgrafo. Mais ou menos, em meados de 1947, na

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ segunda metade do ano, eu assumi o cargo de fotgrafo titular da Revista do Globo, porque o Keffel se transferiu para O Cruzeiro. Voc tinha menos de 20 anos nessa poca, n? . Isso foi em 1947. Eu tinha 19 anos. Permaneci na Revista do Globo at 1949. Fiz muitas reportagens, e uma delas marcou a minha passagem pela revista. Em outubro de 1948, fiz a primeira srie de fotografias de Getlio Vargas no auto-exlio na Fazenda do Itu, municpio de So Borja, no Rio Grande do Sul. Voc pode contar um pouquinho dessa histria? Posso. Eu era amigo pessoal do Jango, Joo Goulart, que depois veio a ser presidente da Repblica, e do Manuel Vargas, o Maneco Vargas, filho de Getlio. ramos amigos de boemia em Porto Alegre. Jango no exercia nenhum cargo poltico. No tinha nenhuma alis, nunca teve vocao poltica. Na verdade, as condies em que ele chegou a presidncia da Repblica foram absolutamente acidentais para o Brasil e, especialmente, para ele, pela sua personalidade. Como eu o conheci, ele era o homem menos interessado em chegar presidncia da Repblica nesse pas. Jango, que tinha uma presena muito forte dentro do PTB [Partido Trabalhista Brasileiro], foi o portador de um convite, feito a mim e a um reprter, redator da Revista do Globo, Rubens Vidal, de entrevistarmos fotograficamente Getlio Vargas. Quando eu digo fotograficamente, porque Getlio Vargas foi para o Itu por efeito do golpe de 1945, quando ele foi obrigado a renunciar. Ele se auto-exilou na Fazenda do Itu. Recebeu jornalistas de todas as partes do mundo, e reprteres brasileiros como Joel Silveira, Edmar Morel, Josu Guimares, Samuel Wainer, mas sempre com a condio de que esses jornalistas no levassem fotgrafos, porque ele no permitia ser fotografado. Nenhum fotgrafo esteve na Fazenda do Itu desde o incio do auto-exlio at a data em que eu, levado pelo Jango e pelo Maneco, fiz essas fotografias. Por qu? Porque o PTB tinha decidido lanar a candidatura de Getlio Vargas presidncia da Republica nas eleies de outubro de 1950. Fui para o Itu na poca eu tinha 19 anos, alis, ia fazer 20 anos e fiz essas fotografias, que mereceram por parte da Revista do Globo uma matria que ilustrou seis pginas e teve um ttulo sintomtico: A Longa Viagem de Volta. Ali, se prenunciava a eleio de Getlio presidncia da Repblica.

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Depois de uma ditadura de 15 anos, ele chegaria ao governo na condio de candidato democraticamente eleito. Eu fiz as fotografias, a revista publicou a reportagem. E, como no havia outras fotografias de Getlio (pelo fato dele no permitir que elas fossem feitas), essas fotos foram vendidas pela Revista do Globo aos jornais e revistas do mundo inteiro. Ento, com 19 para 20 anos de idade, eu tive as minhas primeiras fotografias publicadas em jornais do mundo inteiro. Eu me lembro da negociao que revista fez com o Pravda de Moscou, o New York Times, Le Monde da Frana e The Guardian de Londres. Todos publicaram minhas fotografias de Getlio Vargas, que foi a vedete das eleies de 1950. O processo resultou na posse dele. Depois, em 1954, no suicdio, pelas circunstncias que foram criadas dali para diante, no por culpa dele. Mas isso um assunto poltico no qual eu no entro, porque no me diz respeito. Essa reportagem foi um sucesso to grande que eu saturei o espao pela minha idade e para a mobilidade e a importncia que a Revista do Globo tinha. Criou-se para mim um impasse profissional, porque o horizonte era muito limitado. Naquele momento, ns, fotgrafos jovens, estvamos muito motivados pela forma como a revista O Cruzeiro dava espao para a fotografia. A vontade de todo e qualquer fotgrafo brasileiro era de participar da equipe da revista O Cruzeiro, e eu era um deles. Ento, eu fui muito estimulado e influenciado por jornalistas meus amigos, pessoas mais maduras, mais experientes, mais experimentadas, na aventura de ir para o Rio de Janeiro tentar trabalhar na revista O Cruzeiro. Vim para o Rio de Janeiro. Consegui uma passagem gratuita da FAB [Fora Area Brasileira] pela mo do meu amigo Fortunato Cmara de Oliveira, major da FAB. Foi ele, alis, quem criou o smbolo da FAB na 2 Guerra Mundial, na Itlia, aquele avestruz com duas pistolas na mo dando tiro. Fortunato me estimulou muito, ramos bons amigos, e ele me deu uma passagem pela FAB. Eu desembarquei no Rio de Janeiro no dia 2 de dezembro de 1949. No dia 3, eu fui a revista O Cruzeiro, na Rua do Livramento, pedi um emprego ao diretor da revista, Leo Gondim de Oliveira. Ele me perguntou que bagagem eu tinha e eu mostrei algumas reportagens da Revista do Globo, entre elas, a de Getlio Vargas, que eles j conheciam. Ele me perguntou se eu tinha equipamento prprio. Eu disse que sim e ele me props uma viagem experimental. Eu sa de Porto Alegre no dia 2, no dia 3 eu pedi emprego e, no dia 6, eu estava em Campina Grande, na Paraba, fotografando a inaugurao da Rdio Borborema, acompanhando o doutor Assis Chateaubriand. Era, realmente, um desafio e um risco at de

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ ser queimado naquele instante porque fotografar um evento com a presena do doutor Assis Chateaubriand era uma responsabilidade muito grande. Era um risco, pois se qualquer coisa no desse certo, voc ficava no meio do caminho (no sentido profissional). Mas, eu tive sorte. Fotografei, meus filmes foram trazidos pelo secretrio do doutor Assis para O Cruzeiro, foram revelados e o fotgrafo Jos Medeiros foi chamado pela direo da revista para fazer uma avaliao do meu trabalho. O Z examinou meus negativos e apresentou para a revista um depoimento de que o meu trabalho era perfeito, muito bem feito, correto. A revista passou, ento, imediatamente um telegrama para Recife, onde eu estava, no Dirio de Pernambuco [jornal dos Dirios Associados], determinando que l eu permanecesse aguardando ordens. Essas ordens chegaram logo em seguida com uma carga de filmes, lmpadas e uma ordem para que eu permanecesse no Dirio de Pernambuco e fotografasse um roteiro de locais histricos de Recife para um livro de Gilberto Freire. Ento, entre os dias 2 e 10 de dezembro, eu estava saindo de Porto Alegre e trabalhando com o grande socilogo brasileiro Gilberto Freire. Foi um incio de carreira muito rpido. Isso a eu devo muito ao fator sorte. Claro, eu tinha uma qualidade fotogrfica aceitvel, tanto que a revista me contratou. O curioso que, quando eu sa do Rio de Janeiro, a revista me props um salrio de 1500 cruzeiros, e eu aceitei. Esse salrio nunca me foi pago, porque quando eu cheguei ao Rio de volta do roteiro, do trabalho com o doutor Gilberto Freire, O Cruzeiro me pagou o primeiro salrio de 3000 cruzeiros. Dobraram o seu salrio? Dobraram. Meu salrio de 1500 nunca existiu. Eu j recebi o primeiro dobrado, porque eles avaliaram que o meu trabalho justificava esse valor. A, eu iniciei minha carreira na revista O Cruzeiro, que durou 10 anos. Eu fiz, pela minha estimativa, cerca de 420 reportagens em 10 anos. O que a revista O Cruzeiro representou para o fotojornalismo brasileiro? A revista O Cruzeiro estava naquela poca, nos anos 1946, 1948, experimentando uma transformao no fotojornalismo brasileiro. Como? O fotografo francs Jean Manzon chegou da Europa em 1942 e foi trabalhar no DIP, Departamento de Imprensa e Propaganda, rgo oficial do governo. Ele trouxe uma qualidade fotogrfica de alto nvel.

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Ele era um fotgrafo europeu que convivia com outros fotgrafos na Frana, trabalhava com equipamento sofisticado, formato 6X6, enquanto os fotgrafos no Brasil ainda trabalhavam com formato 9X12, formatos de cmeras pesadas, como a Speed Graphic, com muita limitao no tocante disponibilidade de filmes mais sensveis e lentes de maior luminosidade. O formato, em si, era ingrato. E o Manzon trouxe para o Brasil o formato 6X6, que se popularizou na revista O Cruzeiro com a entrada de Eugenio Silva, Jos Medeiros, fotgrafos que comearam a trabalhar na mesma poca que o Manzon. Quando eu cheguei, em 1949, j encontrei na revista O Cruzeiro outros bons fotgrafos operando o equipamento que eu usava em Porto Alegre, que era o formato 6X6. Com isso, a revista dinamizou. Houve uma dinamizao atravs da mobilidade que este formato fornecia aos fotgrafos e O Cruzeiro se transformou numa revista mais fotogrfica do que j era. A revista j praticava uma fotografia plural: reportagens com grandes nmeros de fotos, reportagens de seis, oito pginas. Isso era muito raro na imprensa brasileira, que, na verdade, tinha como exemplos os jornais Correio da Manh, o Dirio de Noticias, O Globo, jornais limitados a uma ou duas fotografias na primeira pgina. Se voc pegar uma coleo de jornais daquela poca, voc vai ver que os jornais no publicavam mais do que oito ou dez fotografias em toda uma edio. O Cruzeiro publicava 40, 50 fotografias em uma edio, especialmente nas reportagens de abertura e encerramento. Alm disso, Manzon trouxe uma nova aceitao ao profissional de reportagem. Sob o ponto de vista de salrio, de respeito ao profissional, o fotgrafo era muito pouco aceito socialmente. Havia um preconceito muito grande com fotgrafos, porque eles eram pessoas muito mal pagas, humildes e que se apresentavam nos lugares para trabalhar em condies de indumentria precrias. J O Cruzeiro nos obrigava a usar gravata, sapato engraxado, cabelo muito bem cortado. Era todo um comportamento que fez com que os seus fotgrafos fossem reconhecidos como profissionais de uma nova gerao de fotojornalistas. Na sua opinio, ento, foi em O Cruzeiro que o fotojornalismo brasileiro se desenvolveu? H uma outra realidade, como eu j enfatizei, com a utilizao de equipamento de mais mobilidade, que era o 6X6. Logo depois, comeamos a introduzir eu mesmo j usava o 35mm, que no era um formato aceito por O Cruzeiro. Mas como sempre tive laboratrio

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ prprio, eu operava o 35mm para o meu arquivo, que hoje conta, graas a isso, com 60 mil negativos. Ao lado da pauta que eu cobria para O Cruzeiro, pesada a ponto de eu ter calculado cerca de 420 a 430 reportagens publicadas na revista nesses dez anos, eu fotografava para mim com 35mm. Esse 35mm depois, pela minha mo, de Henri Ballot e de Jos Medeiros, se transformou em um equipamento com formato aceitvel, dando muito mais mobilidade fotografia, ao fotojornalismo brasileiro, revista O Cruzeiro e s outras revistas. Quando o jornal ltima Hora comeou a ser editado, ele j oficializou a utilizao do formato 35 mm. Ento, esse foi o caminho do fotojornalismo na virada dos anos cinqenta, que adentrou pela dcada e do qual eu participei at 1959, quando eu sa da revista O Cruzeiro. Voc poderia falar um pouco das personalidade com os quais voc conviveu? A revista O Cruzeiro nos deu uma mobilidade muito grande no tocante a convivncia com personalidades. Ns ramos pautados para reportagens no interior do Brasil, expedies s tribos de ndios... Eu viajei muito pelo Rio So Francisco, conheci os estados brasileiros Bahia, Paraba, Pernambuco, Maranho de forma bastante aprofundada. Ao lado disso, ns tambm freqentvamos os melhores ambientes, que eram locais onde Chateaubriand se encontrava com personalidades brasileiras e internacionais. Com isso, a gente teve a oportunidade de conviver com presidentes da Repblica, ministros de Estado e personalidade internacionais nas viagens que fizemos. Eu, por exemplo, tive a oportunidade de fotografar a coroao da rainha da Inglaterra. Fui o nico fotgrafo brasileiro que fotografou a coroao. Depois, acompanhei a visita da rainha ao Canad e Estados Unidos. Tive a oportunidade de uma convivncia muito curiosa com um presidente norteamericano. Eu estava cobrindo a viagem da rainha Elizabeth a Washington e, em um dia de muita chuva eu estava desprevenido, sem guarda-chuva , meu carro estava estacionado no estacionamento do Congresso americano. Na sada de uma solenidade, eu fiquei preso na porta do Congresso. Em certo momento, um cidado se aproximou de mim. Ele me viu com o equipamento, cmera, bolsa e perguntou de onde eu era. Respondi: sou fotgrafo da revista O Cruzeiro, do Brasil. Disse o nmero de exemplares que a gente vendia, porque era uma prtica nos Estados Unidos voc se caracterizar por nmeros. Ele perguntou por que eu estava ali. Eu disse: Estou aqui porque meu carro est no estacionamento e no

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ consigo ir para l. No tenho chapu, nem guarda-chuva. E ele me disse: Eu tenho guarda-chuva. Acompanhado de um cidado que, com certeza, era seu guarda-costas , ele me levou at o meu carro. Na porta do carro, ele se apresentou desnecessariamente, porque eu j sabia quem era. Era o senador e depois presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. Tive a oportunidade de entrevistar Pern e Eva Pern. Participei da revoluo do Paes Estensoro na Bolvia. Cobri vrias revolues. Uma no Paraguai e outra na Bolvia. Teve uma revolta no Maranho em 1951, que desencadeou um tiroteio com envolvimento do governador. Ele foi impedido e estava voltando. Esse tiroteio resultou em 22 mortos. Estive em Cuba em 1958 e no tive a sorte de ir a Sierra Maestra. Tentei, mas as coisas eram muito complicadas. As pessoas que tentavam te levar a Sierra Maestra eram perseguidas pela polcia do Fulgncio Batista e isso criava um risco muito grande. Eu tentei, mas os que pretenderam me levar desistiram na metade do caminho e, com isso, eu perdi a oportunidade de ir aonde eu queria. Mas foi uma vida! Foram anos de uma atividade muito grande, no s em O Cruzeiro, pois depois eu continuei com fotojornalismo, ininterruptamente durante 26 anos. Eu trabalhei para duas agncias internacionais: a Black Star e a Globe Photos de Nova York. Pelas minhas contas, fiz 930 viagens pelo Brasil. Isso me deu uma bagagem muito grande de boas relaes, principalmente com meu equipamento e com a forma de eu ver os acontecimentos, de como praticar essa convivncia com os acontecimentos, com a responsabilidade do fotojornalista, que entender, desde o primeiro momento, sua misso de ver por milhares (s vezes milhes) de pessoas. O fotgrafo aquele que est no lugar do leitor. Ele tem que ter conscincia de, em primeiro lugar, ser verdadeiro. No pode distorcer o acontecimento e no tem o direito de mudar a tica. Tem a necessidade, a obrigao, de fotografar, de ver o acontecimento, mas no para ele. Ele ali se despersonaliza, tem que se sentir leitor. Esse o trabalho do fotojornalista: um leitor do outro lado, um segundo visualizador da imagem. Ele tem que ser absolutamente coerente, srio e verdadeiro. Quando me perguntam o que a fotografia representa para mim, eu sempre respondo: falar a verdade. Para mim, a fotografia no admite mentiras, nenhuma tortuosidade, tanto que eu, hoje, me preocupo e participo de debates sobre as facilidades da fotografia digital que eu nunca pratiquei e no vou praticar. Eu sou um fotgrafo de fotografia analgica, de filme e de preto e branco, porque neles est a minha verdade. Quanto fotografia digital, eu respeito sua utilizao,

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ mas prego que ela seja to honesta quanto aquela que a gente praticava, sem os recursos de mexer no contedo. Essa possibilidade do facilitrio que convive com a foto digital preocupante, porque atravs dos recursos como Photoshop e outros tantos possvel que a foto seja alterada, mudada em relao tica do primeiro momento, do momento decisivo. Entre o momento de fazer a foto e public-la em uma revista, h, hoje, uma passagem pelo facilitrio dos recursos de Photoshop. Ento, deve ser necessrio que este Photoshop, caso seja necessrio o seu uso para melhorar a imagem, para criar uma melhor nitidez e condio de impresso eu concordo com sua utilizao seja praticado pelo fotgrafo e no por um diretor de arte, pelo editor de fotografia ou, se for publicidade, por um publicitrio que mexa e jogue uma imagem diferente da original. Em publicidade, voc at entende, porque a publicidade tem essa caracterstica de vender o produto e para vendlo fazem mgicas, fazem coisas incrveis. A fotografia analgica no permite isso. E eu me dou por muito feliz por ter trabalhado durante esses 63 anos sem alterar a verdade das minhas fotos. Como voc descreveria Assis Chateaubriand? Voc o conhecia pessoalmente? Muito. Eu acompanhei o doutor Assis em muitas viagens, como na coroao da rainha. Ele no era embaixador, ainda. Fiz dezenas de viagens com ele. Inclusive, eu fui destacado por O Cruzeiro, pela minha disciplina, para acompanhar o doutor Assis Chateaubriand, com quem eu sempre tive uma convivncia muito boa. Ele era muito exigente em questo de horrio, indumentria, disciplina. E eu o acompanhei em duas campanhas eleitorais: a da Paraba, quando ele se elegeu senador, e depois na campanha do Maranho, quando ele se elegeu senador mais uma vez. Alm disso, eu fiz viagens ao exterior com ele, o encontrei em vrias partes do mundo. No Brasil, o acompanhei em viagens Paraba, Pernambuco, Bahia, So Paulo. Guardo dele a imagem de um patriota, um homem que tinha os seus momentos e as suas atitudes discutveis, pelos mtodos que usava para construir coisas altamente positivas. Por exemplo, Chateaubriand construiu o Museu de Arte de So Paulo [MASP], criou uma campanha de aviao, implantou uma campanha de aleitamento materno, uma campanha de conscientizao de futuras mes, criou postos de puericultura no Brasil inteiro, com dinheiro dos outros, nunca com o dele. Ento, ele tinha essa capacidade de insinuao, de ligar para empresrios como Euvaldo Lodi, Baby Pignatari e

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Matarazzo e obter deles o dinheiro para comprar um Degas para o Museu ou quatro, cinco, seis (ou quantos fossem) avies para a campanha de aviao. Para mim, Chateaubriand foi um dos homens mais importantes do Brasil, um patriota. Agora, ele tinha os mtodos dele. Era considerado por muitos um chantagista, um aventureiro. Eu no discutido, no entro nesse aspecto, at porque eu vejo nele uma personalidade mpar e tenho uma admirao muito grande. Posso contar uma histria para ilustrar o comportamento do doutor Assis Chateaubriand. Ns estvamos na campanha eleitoral para o senado na Paraba e fomos a Conceio do Pianc, que na poca tinha uma rua de terra, uma capela, ao final, casas direita e esquerda e um calor de mais de 40 graus. Chateaubriand se vestiu com uma roupa de couro sobre o traje de linho, que era uma caracterstica de indumentria dele, para fazer um comcio na sede do Partido Social Democrata, PSD, pelo qual ele era candidato. Reuniu ali 60 ou 80 pessoas para fazer um discurso. O contedo desse discurso, que eu assisti e para mim foi inesquecvel, se baseou no poder naval. Ento, para um grupo de pessoas bastante simples, eleitores dele de Conceio do Pianc, Chateaubriand discursou com um bacamarte na mo, roupa de cangaceiro, sobre uma caixa de cerveja. Ele no quis usar o palanque do PSD, porque disse: no Hide Park, os discursos so feitos sobre caixas de sabo. uma tradio inglesa. Tragam uma caixa de sabo. Como no devia nem haver sabo, trouxeram uma caixa de cerveja. E ele fez um discurso sobre o poder naval, no qual incluiu passagens sobre almirante Nelson, Wellington, batalha de Trafalgar. E, no final do comcio, ele prometeu que, se fosse eleito, naquela rua principal de Conceio do Pianc, ele estenderia um tapete vermelho para produzir ali um desfile de moda de Jacques Fath. Mais doido no existia. Era um homem fantstico, um visionrio, uma pessoal realmente admirvel. Como voc o descreveria como jornalista? Tem um episdio muito curioso que contavam, no folclore, sobre ele: estava noite em seu escritrio em O Jornal, quando permitiram a entrada de um candidato a reprter que foi pedir um emprego nos Dirios Associados. Chateaubriand conversou um pouco com ele. O reprter no tinha experincia, ento disse: meu filho Chateaubriand tratava todo mundo por meu filho e senhor, nunca por tu , estamos perto da Semana Santa, voc v conversar com o cardeal e me traga uma reportagem sobre Jesus Cristo. O reprter saiu, caminhou

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ 10 passos, voltou e perguntou: Doutor Assis, voc quer uma matria pr ou contra?, porque j sabia que Chateaubriand era muito radical. Outro foi pedir emprego, conversaram, e ele gostou do reprter. O reprter perguntou: Doutor Assis, ser que o senhor podia autorizar a caixa a me dar um vale porque eu estou sem dinheiro?. Chateaubriand respondeu: Meu filho, voc est contratado. Jornalista que pede vale um bom jornalista. Essa uma caracterstica de jornalista, est sempre sem dinheiro. Passe na caixa e apanhe o que voc precisa. E como era outras figuras como, por exemplo, o Jean Manzon? Manzon era um francs nada contra os franceses , que trazia um rano de civilizado, dos que tm atrs de si um milnio. Ento, ele trazia uma empfia do supercivilizado, o que no era o caso, pois ele apenas tinha nascido em um pas adiantado, um pas como a Frana que tem uma histria, um pas de alto nvel cultural. Agora, ele no era isso tudo. Era um homem bastante grosseiro. Era um bom fotgrafo e tinha uma caracterstica que ns rompemos depois. Manzon fazia fotografia posada, no fotografava o instantneo. Tinha uma qualidade excepcional, era um excelente fotgrafo, trabalhava com um assistente, mas fazia fotografias sempre muito estticas. Usava duas lmpadas Flash e para usar duas lmpadas Flash voc tem que ficar parado diante do seu motivo at acertar a iluminao e fazer a foto. Ento, foi isso o que, em O Cruzeiro, marcou as caractersticas da revista: eram fotografias de alta qualidade, muito bem iluminadas, muito ntidas, mas fotografias posadas, sem dinmica. Com a entrada de fotgrafos jovens como Jos Medeiros, Eugnio Silva e eu chegou sangue novo. E trabalhar com duas lmpadas, com foto posada, era algo que no estava na nossa cultura, nem no nosso temperamento. Ns queramos fazer fotos com cmeras de mo, algo mvel. E isso fez com que O Cruzeiro descobrisse no nosso trabalho uma nova linguagem. Essa linguagem prevaleceu de tal maneira que morreu a linguagem do Manzon. Ento, o Manzon foi fazer cinema, cinema comercial, e deixou a fotografia. Ele no fez mais fotografia, porque O Cruzeiro j convivia com a fotografia dinmica do Jos Medeiros, a fotografia de alta qualidade, de momento decisivo. Essa era a fotografia do Eugnio Silva, do Roberto Maia, que no teve uma projeo muito grande, mas foi um excelente fotgrafo. Assim, criou-se uma mentalidade nova no fotojornalismo, com equipamentos muito mais dinmicos. O fotgrafo passou a se

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ vestir de uma maneira mais apresentvel. Mudou muito tudo aquilo a que o fotojornalista era ligado, tudo a sua volta. Alguns passaram a entrar na carreira com mais instruo, com nvel melhor, at falando outras lnguas, seno fluentes pelo menos o suficiente para poderem viajar. Isso mudou o perfil do fotojornalista brasileiro, daquele fotojornalista dos anos 1940, logo na entrada dos anos 1950. Hoje, os fotgrafos tm formao universitria. Eu fiz um levantamento do nvel cultural dos fotgrafos europeus. Peguei fotgrafos ingleses, franceses, alemes, grandes fotgrafos, e verifiquei que 95% dos fotgrafos da gerao dos anos 1930 at anos 1960 chegaram na fotografia com bagagem universitria completa. Tinham curso de pintura ou arquitetura etc. No Brasil, voc pode hoje encontrar pessoas que vo chegar ao fotojornalismo com um nvel cultural muito bom, universitrio, at devido aos recursos da tecnologia, Internet e informao que temos. Mas, na minha gerao, no. Alguns, como eu, chegaram pr-universitrios. No cheguei a fazer vestibular. Eu ia fazer Direito e, ainda bem, que no fiz, seno seria advogado e no fotgrafo, minha nica profisso nesses 63 anos de atividade. Na sua poca, j havia fotojornalistas com curso universitrio? Que eu me lembre, no. No havia mesmo. O Jos Medeiros tinha um curso pruniversitrio interrompido. Como voc avalia a linguagem atual do fotojornalismo? Na sua opinio, vive-se hoje uma nova ruptura? Eu acho que a nova ruptura est se dando atravs no dos fotgrafos, mas dos recursos fotogrficos que eles esto usando. Ns tnhamos, at ento, a foto analgica, que praticamente morreu h uns dois ou trs anos. No existe nenhum jornal com laboratrio fotogrfico. O Globo teve laboratrio at dois anos atrs. Hoje, s existe fotojornalismo praticado com cmera digital. Ns fizemos parte de uma etapa que veio at certo ponto e no continuou. Ns trouxemos a valorizao da fotografia, do profissional e influenciamos muitos profissionais. Encontro muitos fotgrafos que se inspiraram no nosso trabalho, assim como, no final dos anos 1940, eu senti a influncia do Manzon. Ento, hoje, se encontra novos fotojornalistas que esto praticando essa forma. Ns trouxemos um novo fotojornalismo e essa nova gerao est partindo para uma nova etapa, com a utilizao de equipamentos com outra dinmica. No h mais laboratrio. Eles vo fazer seu trabalho em

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ qualquer lugar e, assim que terminam de fotografar, j vo para seus laptops e transmitem as fotos para a redao do jornal. Ento, se voc est na Sucia ou no interior da Bahia, no precisa voltar para a redao para entregar as fotos, no precisa de laboratrio e seus problemas. Se a foto no tiver boa, ele v na hora e tira outra fotografia. Hoje, a tica outra, os equipamentos so outros. Outro dia, encontrei um amigo fotgrafo e vi o equipamento dele. Fiquei assustado com o peso da cmera dele: devia pesar uns 4 kg. Mudou completamente a dinmica da fotografia. O fotgrafo faz a foto e, minutos depois, j tem as fotos na mo. No nosso tempo, se voc estivesse no interior e precisasse falar com a redao, tinha que acordar cedo e ligar para a telefonista e dava o nmero desejado. A demora era de seis a oito horas. Eu ia praia, ia fazer qualquer coisa. Voltava para o hotel l pelas 4h da tarde para conseguir falar com o Rio de Janeiro l pelas 6 ou 7h da noite. A comunicao e o transporte eram completamente diferentes naquela poca. Um avio do Rio para Salvador levava seis horas de viagem, com quatro paradas. Hoje, voc vai em pouco mais de uma hora para l. Tudo mudou. As dificuldades eram imensas. s vezes, voc tinha dinheiro no bolso e no tinha o que comer porque estava no serto. Batia na casa de algum e pedia comida. Voc viajava muito. Conta um pouco como eram essas viagens. A gente viajava em condies muito precrias. Eu me lembro de uma travessia do Rio So Francisco. Eu estava fazendo uma matria sobre esse assunto que se eterniza no Brasil, que a distribuio das guas do So Francisco para outros lugares do Nordeste. A indstria da seca no permite que isso acontea. Fui a Corips e Cura, duas localidades l perto, uma na Bahia e outra em Pernambuco. Eu estava passando de Pernambuco para a Bahia e contratei um barqueiro. Em Corips, o calor era uma coisa fantstica, era terrvel. Eu lembro que lavava minha roupa, estendia e, duas horas depois, a roupa estava seca e passada. O vento quente era a melhor lavanderia possvel. A gente s podia tomar banho de manh cedo ou tarde da noite, porque a gua esquentava tanto na caixa que era impossvel durante o dia. Ento, na travessia de Corips para Cura, eu tomei um barco. Era uma travessia sem nenhum cuidado, nem se pensava em colete salva-vidas. Entrei na canoa com o remador e, ao invs de atravessar o rio em linha reta de uma cidade para outra, ele remou pela margem na subida do rio, contra a mar, por uns 200 metros, para a sim dirigir a

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ canoa para a outra margem. Ele usou o remo apenas do leme, porque a correnteza muito forte nos levava para o outro lado. Ento, sem remar, acabamos chegando precisamente onde queramos, exatamente na outra margem, na direo do local de onde tnhamos sado. Quando chegamos l, ele me disse uma coisa pattica: que no podia ficar doente. Eu perguntei o por qu. Ele disse que uma vez ficou doente e o enfermeiro quis lhe dar uma injeo. Mas no conseguia porque, como ele era remador, a pele dele era to dura que a injeo no entrava. Esse era um remador brasileiro do Rio So Francisco. Tem tambm a histria da dona Francelina Pereira. Foi o seguinte: ns recebamos muitas cartas na redao. Essas cartas traziam dicas de assuntos que poderamos cobrir em diversas localidades do pas. Ento ns amos at o local e fazamos a matria. Mas alguns reprteres no gostavam de viajar pelo interior. Era muito cmodo ficar em casa com mame e papai, com namoradas e no queriam se meter no serto. Assim, eu tive a oportunidade de viajar muitas vezes e, dessas viagens pelo interior do pas, trouxe trs malrias: so minhas condecoraes [risos]. Ento, essas cartas que chegavam do serto eram empurradas, e eu era de certa forma o dono dessas cartas. O que eu queria era ir para o serto. Ento, fui atrs de uma dica, de uma informao sobre uma mulher no interior da Bahia, dona Francelina Pereira, que tinha casado 13 vezes e 12 dos maridos tinham morrido. Nessas viagens, eu ia sozinho, porque O Cruzeiro criou uma gerao de fotgrafos que tinham melhor nvel de instruo e que, alm de fotografar, podiam tambm escrever a matria. Assim, ficava mais fcil para a revista tambm, j que a passagem de avio, a hospedagem, a comida, era tudo para uma pessoa s. E isso tambm criava a possibilidade de uma reportagem mais compacta. Porque, quando voc tem redator e fotgrafo, h uma tendncia natural de uma pessoa ver um acontecimento por um lado e a outra ver por outro enfoque. Com isso, O Cruzeiro criou um melhor nvel salarial para ns e nos deu liberdade. E isso me deu a possibilidade de ser correspondente nos Estados Unidos, porque eu fotografava e escrevia. Era muito difcil eles mandarem duas pessoas para o exterior, um redator e um fotgrafo. Ento, fui atrs da dona Francelina Pereira, achei que ali teria uma boa histria. Sa do Rio e fui at Salvador em um avio comercial. De l, peguei um txi areo para uma cidade chamada Rui Barbosa. De Rui Barbosa, peguei um jipe e fui at Piritiba. De Piritiba, tive que ir at Piritiba do Mundo Novo, s que esse caminho tive que fazer a p, porque no havia estrada. Finalmente, localizei a Dona

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Francelina Pereira. Encontrei-a em Piritiba do Mundo Novo, um lugar impensvel. O banho custava 2 cruzeiros. Voc entrava no lugar, tirava a roupa, vinha uma pessoa por cima e jogava gua em uma lata que era toda furada de prego para fazer o chuveiro. A comida era difcil, dormir tambm, tudo era muito complicado. Ento, falei com Dona Francelina: A senhora tem uma histria de treze maridos, doze dos quais esto enterrados. Ela disse que, depois que casavam, os maridos ficavam fracos. Teve um que se suicidou. Outro morreu tuberculoso. Mas ela no tinha culpa. J tinham at desenterrado trs ou quatro, acharam que ela os tinha envenenado. Mas ela nunca tinha envenenado ningum. Enfim, ela contou toda a histria dela. Ento, perguntei sobre o dcimo-terceiro marido. Ela disse que esse tinha casado com ela havia uns trs meses. Era rapaz novo. Depois, desistiu e foi para o Sul. Ela me disse o nome dele e eu procurei saber na localidade alguma informao sobre esse rapaz. Algum me deu a informao de que ele tinha ido para Santos. Deram-me o nome do rapaz e disseram que ele tinha um irmo que tocava saxofone em um cabar de Santos. A nica referncia que eu tinha era essa: um baiano de Piritiba do Mundo Novo que tocava saxofone em um cabar de Santos. Passei nove dias em Santos, dormindo de dia e passando as noites entrando e saindo de cabars. Eram dezenas de cabars no cais de Santos. Eu entrava e perguntava se o saxofonista era baiano. At que encontrei o que eu queria. Ele me disse que o irmo morava no Morro da Rosa, no lugar tal, me disse tudo. Fui atrs do rapaz. Ele era forte, trabalhava no cais do porto, tinha no mximo 30 anos. Era casado e tinha uma filha. Ele me contou, ento, que a Dona Francelina era uma mulher que tinha uma fome de sexo fora do comum e acabava, com isso, matando os maridos. O cara que comeava a falhar com a Dona Francelina caa logo na boca do povo. A, um se suicidou. Outro morreu tuberculoso. E esse chegou concluso de que estava indo no mesmo caminho, ento, se mandou [risos]. Como O Cruzeiro na poca era uma revista muito conservadora, sofria uma presso grande da Igreja, eu escrevi essa reportagem e at entrevistei um mdico e ele disse que, na verdade, a Dona Francelina sofria de furor uterino. Essa palavra era proibida na poca. Ento, essa reportagem, que me custou uns 20 dias de trabalho na Bahia e em Santos, no valeu de nada, porque O Cruzeiro no publicou. Tem tambm outras histrias pitorescas. Por exemplo, como fazamos fotografia area. No havia helicptero, havia avio monomotor. E havia na Avenida Brasil o Aeroclube do Rio de Janeiro. Dali, a gente saa de avio, o avio tirava a porta da direita para podermos

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ fotografar. Em uma ocasio, fui cobrir um evento qualquer que precisava de fotografia area. Tinha um piloto chamado Paulo Lugo. Ele no era muito bom da cabea. Era um bom piloto, mas para ser bom piloto no pode ser muito bom da cabea. Eu j tinha voado com ele mais de uma vez, fui fazer outro vo com ele. Quando a gente decolou, logo depois, ele levantou e, l pelas tantas, desligou o motor. Eu achei que o avio ia cair, o motor parou. Ele ligou o motor de novo. Ligou e desligou trs vezes. A, perguntei desesperado o que estava acontecendo. Ele respondeu calmamente que estava s avisando a mulher dele que no iria almoar em casa. O cdigo dele era desligar o motor trs vezes. Era tudo uma aventura. Eu me lembro que as camas das penses pelo interior do pas eram camas freqentadas por caminhoneiros, gente muito simples, era tudo muito complicado. Ento, eu passei a viajar levando um lenol e uma fronha de plstico que minha mulher fez. Eu forrava os travesseiros das penses, que eram muito sujos, com essa fronha de plstico, o que era muito desagradvel. Mas era o que a gente realmente dispunha. Era muito difcil. Vivamos muitas aventuras, riscos. Os avies eram muito problemticos. Eu lembro que fiz uma viagem de Porto Alegre para Chapec. Tinha havido um crime em Chapec. Sa de Porto Alegre de txi areo junto com o reprter de polcia, o tempo fechou, o vento estava forte, e o avio teve que pousar em um campo. Tnhamos que abastecer, mas no tinha onde. Ento, viajvamos com as latas de gasolina do nosso lado, porque no tinha onde abastecer. Pousei em praias e outros lugares para abastecer. A gente foi fazer uma viagem, uma expedio do Orlando Villas Boas. Foi quando encontraram os ossos de um explorador ingls. Eu estava nessa expedio, que saiu do Rio at Goinia. Em Goinia, tomamos um txi areo, voamos para Aragara e, de l, tomamos um avio da FAB para ir at a aldeia indgena onde estavam os ossos. S era possvel entrar em aldeias com avio da FAB. No eram permitidos outros avies, para proteger os ndios. Ento, fomos pela FAB e o avio ficou l pela tribo. Ficamos l uns dois dias, fizemos a matria e desenterraram os ossos do explorador. Voltamos para o avio da FAB e, depois, at o avio de cada jornalista. Durante a viagem, Orlando Villas Boas disse que tinham uns bejus indgenas para quem tivesse fome comer. Todos estavam com fome. L, a comida no era fcil. Tinha uma lata de querosene cheia de bejus. L, a comida no era fcil. Tinha uma lata de querosene cheia de bejus. E todos comemos bejus durante o vo. O beju acabou, e o Orlando perguntou o que tnhamos achado dos bejus. Todo mundo respondeu que estavam bons, quebraram um

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ galho. A, ele perguntou se tnhamos visto uns pontinhos pretos nos bejus e disse que aquilo no era sujeira. Explicou o que era. Quando a ndia rala a mandioca, ela ao mesmo tempo cata piolho na cabea do filho. Esse piolho ela no mata na unha. Ela bota entre a gengiva superior, faz presso e mata o piolho sufocando. Depois, ela cospe no beju. Esse beju era beju de cuspe de piolho de ndia. Assim eram nossas viagens: arriscadas, engraadas, difceis. Mas ramos bem remunerados, no tnhamos do que reclamar. Eu me lembro que dois reprteres foram para Los Angeles para acompanhar uma Miss Brasil. Era uma matria sobre o concurso de Miss Universo. Foram para l, fizeram a matria, no havia avio direto para c, ento, a revista fretou um avio para trazer as fotos de l para c. A revista pagou um avio s para trazer as fotos, para poder publicar logo a matria. O Cruzeiro tinha muito dinheiro.

Chateuabriand tinha fama de mau pagador. verdade? Eu nunca tive esse problema. O salrio que O Cruzeiro pagava fez com que os empregados da revista fossem apelidados de Prncipes da Imprensa Brasileira. O salrio era muito bom e jamais atrasou. Lembro que, quando estive nos Estados Unidos, meu salrio inteiro ficou depositado aqui, durante quatro meses. Quando eu voltei, tinha um monte de envelopes para mim. O dinheiro estava todo l. Chat nunca pagou em cheque. O salrio era semanal. Todos os sbados, os empregados iam redao e recebiam um envelope com o dinheiro. Ento, quando voltei de viagem, tinha cerca de vinte envelopes com meu salrio. Minha mulher no precisava de dinheiro, porque ela tambm trabalhava. Ento, ela no pegava o meu salrio. Outra fama que o Chat tinha era de ser grosseiro com jornalistas. Olha, eu no tenho do que reclamar. Sempre o vi tratar cordialmente seus funcionrios, nunca o vi maltratar ningum. Nunca vi, absolutamente. Viajei dezenas de vezes com ele. Estive com ele na coroao da Rainha da Inglaterra. Estive com ele na Frana, nos Estados Unidos, em Portugal e em muitos lugares do Brasil. Sempre o vi tratando muito civilizadamente as pessoas. E ele sempre foi bom pagador, como falvamos antes. Nos Estados Unidos, eu tinha uma diria de 31 dlares que a revista me pagava, alm de um carro que eles alugaram para mim. Ento, no tenho o que reclamar dele. Com o dinheiro

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ que economizei de salrio e das dirias, comprei um apartamento aqui. Consegui economizar l porque, quase diariamente, eu era chamado para almoar no escritrio da revista em Nova Iorque. Ento, quase no gastava dinheiro com comida. Alm de, vrias vezes, ter recebido gratificaes l. Eu morei o tempo todo em um mesmo hotel pago pela revista. No tenho o que reclamar de Assis Chateaubriand. Voc trabalhou em outro veculo dos Dirios Associados? No, inclusive havia uma poltica que impedia que quem trabalhasse em um rgo dos Dirios Associados passasse para outro rgo dos mesmo grupo. Muitos tinham vontade de sair dos Dirios por isso. Trouxe um amigo da Bahia para a Manchete, porque ele trabalhava em um jornal dos Dirios l e queria vir para o Rio, mas no poderia trabalhar aqui em outro veculo dos Associados. Ele tentou trabalhar em O Cruzeiro, mas a revista no aceitou, porque tinha esse acordo determinado pelo prprio Chateaubriand. Ento, eu e Jos Medeiros trouxemos esse amigo para a Manchete, onde ele trabalhou por muitos anos. Havia, de fato, esse acordo: quem fosse de O Cruzeiro no ia para jornal associado e quem fosse de jornal associado no vinha para O Cruzeiro. Por que voc saiu de O Cruzeiro, depois de trabalhar dez anos na revista? Eu sa porque me insurgi. O Cruzeiro tinha duas caractersticas: era fcil de entrar l e difcil de sair. Eu entrei com facilidade em um dia, eu pedi emprego e, praticamente dois dias depois, eu j estava viajando, conforme relatei aqui. E, quanto a sair, eu fui o primeiro caso de toda histria de O Cruzeiro de demisso. Eu fui demitido, me deram um caminho de dinheiro. Meu salrio na poca, em 1959, era alto, de 30 mil cruzeiros. Consegui agregar a isso o direito de receber o valor de todas as dirias relativas s viagens internacionais, que tinham moedas diferentes, como o dlar e o franco. A, eles fizeram um clculo, me deram um caminho de dinheiro e me mandaram embora. Num determinado momento, todos os reprteres da minha gerao eu, Z Medeiros, Eugnio andvamos pelo Serto, nas condies mais difceis, batalhando para ter o direito a uma reportagem de abertura, que qualquer fotgrafo poderia fazer, ou de encerramento. A revista abria e fechava com grandes reportagens: ela tinha uma abertura de seis a oito pginas e uma de fechamento tambm de seis a oito pginas. No meio tinha arquivo, artigos, moda, cinema, mas o forte

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ eram aquelas reportagens. No entanto, esses espaos comearam a ser ocupados por reportagens de futilidades. O Cruzeiro contratou um colunista social e comeou a prestigiar as reportagens de 10 mais: os dez mais elegantes, as dez mais elegantes... E quem era esse colunista social? Era o Manuel Bernardez Mller, o Maneco Mller, que era at nosso amigo na poca. S que O Cruzeiro abria a reportagem com retrato do Maneco Miller de pijama listrado, com cachorrinho pequins no colo e um cachimbo na boca s depois vinha a reportagem. A marca era ele, um colunista social num traje de pijamas, algo absolutamente imbecil, na minha tica. Enquanto isso, eu estava no Serto pegando Malria. Ento, comecei um movimento de reao que resultou na queda do secretrio da revista, que se deu em funo da minha iniciativa e dos que me seguiram. Quem te seguiu? O Jos Medeiros, o Jorge Ferreira, de So Paulo, o Barreto, enfim, um grupo comeou a fazer isso. S que eles no confrontaram e eu sou um radical. Meu pai dizia que eu sou um radical e sou radical, me dou muito bem com o radicalismo. A, me botaram de frias. Quando voltei, senti que o clima no estava muito bom para mim. Apareci na redao de gravata preta, o que no era normal, pois ningum usava gravata preta a no ser em luto. As pessoas estranharam e me perguntaram: Voc est de luto? O que houve? Algum morreu?. Eu respondi: No, eu estou de luto pela burrice do Leo Gondim, que era o diretor da revista. Algum ouviu e foi contar para ele. Dias depois, fui mandado para o departamento de pessoal, para conversar com o Leo Gondim, o mesmo que me deu o emprego na revista dez anos antes, e a demisso estava na cara. S que a minha mulher estava grvida de seis meses e, alm disso, e eu j tinha trabalhado muito por dez anos na revista no se demite algum numa situao dessas. Mas, como eles me deram um caminho de dinheiro, uma quantidade que eu nunca tinha visto na vida, quantia que tinha direito, alis, aceitei a demisso. Fui embora e, em menos de 24 horas, Mauro Sales me telefonou e disse: Vem aqui que O Globo est querendo contratar voc. Em gentileza ao Mauro Sales, fui l e conversei com o Rogrio Marinho, irmo do Roberto Marinho, e ele me ofereceu um salrio semelhante ao que eu recebia em O Cruzeiro, uma chefia de

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ reportagem fotogrfica, uma srie de coisas bastante tentadoras. Eu agradeci, mas havia decidido que nunca mais iria ter patro. Eu sou o mais antigo desempregado voluntrio do Brasil [risos]. Voc no voltou mais a trabalhar em jornal e criou uma agncia. Foi isto? , eu fundei a agncia chamada Image, a primeira agncia de fotografia do Brasil. Como foi? No foi de imediato. Eu sa de O Cruzeiro em agosto de 1959. Ia completar dez anos de trabalho l. Na poca, tinha uma lei que proibia demisso com mais de dez anos de trabalho. Depois desse perodo, a pessoa ganhava estabilidade. E eles me demitiram com nove anos e oito meses de casa. Para mim, foi timo. Achei uma maravilha. Eu tomei nojo desse esquema de patro, chefe de reportagem de te darem ordens, muitas vezes sem saber que ordens esto dando. Inclusive, tem uma histria de chefe de reportagem que eu contarei mais adiante. Ento, eu procurei um amigo diretor da Petrobras e passei dois anos fotografando para l. Eu no era fotgrafo da Petrobras. Eu fotografava para a Petrobras. Tambm trabalhei com o Oscar Niemeyer, fotografando por dois anos a construo de Braslia. Nesse meio tempo, fiz como freelancer algo de publicidade mas eu tenho nojo de publicitrio, eu no gosto dessa gente [risos]. Publicitrio o cara que no conseguiu vender carro usado no Largo do Machado, no deu certo e, ento, foi ser publicitrio [risos]. Nesse freelancer de publicidade, os caras pediam coisas impossveis. E, comigo, no tem teatro, sou radical. Fiz fotografia industrial, fotografei para a Petrobras e fotografei com o Oscar Niemeyer, a melhor figura humana que conheci. Tambm dei uma assistncia na reformulao de uma revista de So Paulo chamada Casa e Jardim. Ia para l de quinze em quinze dias, mas no morava em So Paulo, porque no sou louco [risos]. No tenho nada contra a cidade. Inclusive, fiquei l por quatro meses, quando trabalhava em O Cruzeiro. Fiz uma reportagem no interior de So Paulo. Mas eu percebi que ser autnomo eu era freelancer, fazia laboratrio, atendia o cliente e fotografava era arriscado. Eu no poderia quebrar uma perna ou ficar doente, no poderia acontecer nada comigo, caso contrrio minha famlia morreria de fome. Foi a que resolvi montar uma empresa de fotografia. Juntei dois ou trs amigos e fundamos a Agncia Jornalstica Image.

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Quem eram esses amigos? Um era ex-chefe de reportagem de O Cruzeiro, que foi meu scio durante catorze anos: Jos Medeiros. Outro era o Jorge, fotgrafo de O Cruzeiro em So Paulo. E reuni uns amigos que tinham dinheiro, porque ns no tnhamos. Ento, fizemos um grupo de capitalistas e um grupo de trabalho. Os capitalistas tambm eram scios da empresa e tinham os seus prprios grupos. Fizemos certo sucesso, porque alugamos uma casa na Urca em dezembro de 1960, onde fizemos um laboratrio. Trabalhamos para a prpria Petrobras, para o governo do Estado. J em janeiro de 1962, compramos um prdio de quatro andares, a antiga Sinagoga de Botafogo. Reformamos a casa, fizemos cinco laboratrios, estdio, carpintaria. Enfim, isso foi a Image, na qual fiquei por catorze anos. Tnhamos uma editora com produtos livres e chegamos a ter 28 empregados. Nessa poca, voc viveu indiretamente do fotojornalismo ou participava das equipes de fotgrafos? Eu era gerente tcnico, administrava os laboratrios e uma equipe de fotgrafos o Paulo Garcez era meu fotgrafo , mas eu tambm fotografava. Eu s fotografava para o DER, Departamento de Estradas e Rodagem, porque o diretor de l gostava do meu trabalho. Eu largava o que estava fazendo, pegava o helicptero e ia fazer fotografias para l em geral eram fotografias de helicptero. Continuei tambm fotografando o acompanhamento de obras para a Petrobras, que j era meu cliente. Fora isso os fotgrafos faziam os outros trabalhos, e eu administrava a parte de laboratrio. Quando voc juntou a agncia com a editora, pensou na idia de fazer uma revista novamente? No, revista exige um flego financeiro muito grande, e isso nunca me passou pela cabea. Mas, na editora, publicamos muitos ttulos como um livro chamado Bahia, Boa Terra Bahia, com texto do Jorge Amado, para o qual eu passei cinco meses na Bahia. Fiz 12 mil fotografias para o livro, que, hoje, tem edio esgotada. Eu j tinha publicado um outro livro com o Jorge, em 1958, o Bahia de Todos os Santos. Mas, como prometido, contarei a histria do chefe de reportagem. Eu estava em Nova York em um hotel, quando o telefone

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ tocou. Eu atendi e disseram que um cara iria subir para falar comigo. Eu perguntei quem era e o funcionrio respondeu ser um agente do FBI. Ele subiu, pediu meus documentos, eu mostrei uma credencial da Casa Branca, que eu tenho at hoje, a credencial da revista O Cruzeiro e meu passaporte. Ele disse: Eu tenho aqui uma cpia de um telegrama que voc recebeu e queria saber qual a providncia voc tomou a respeito. O telegrama era do chefe de reportagem de O Cruzeiro e dizia o seguinte: Tente entrar base White Saints de qualquer maneira. Aquilo era western. Os telegramas passavam, visivelmente, pelo crivo do FBI e o agente queria saber o que eu iria fazer em White Saints, j que o prprio presidente dos EUA, Eisenhower, tinha que pedir permisso para ir l [risos]. Era l que estava o ncleo principal de toda a pesquisa nuclear dos EUA e, apesar de a bomba ter sido j lanada h 12 anos (falamos de 1957), era tempo de Guerra Fria. Eu, obviamente, disse que no tinha tomado providncia nenhuma. Pedi licena e telefonei para o representante comercial de O Cruzeiro em Nova York, Herculano Siqueira, que tinha vivncia e falava ingls muito melhor que eu. Chamei-o para esclarecer melhor a situao. Quer dizer, o chefe de reportagem era to imbecil que passa um telegrama desses. Em primeiro lugar, se ele lesse jornal e fosse preparado para pautar reportagem, ele deveria saber que nem o presidente entrava em White Saints sem licena de algum. Eu cobri o primeiro foguete americano a ser lanado, no dia 7 de dezembro de 1957, coincidentemente o mesmo dia do ataque a Pearl Harbor na Segunda Guerra Mundial. Deve ser uma data para fracassos americanos [risos]. Os russos haviam lanado o Sputinik em outubro e os americanos, que no haviam lanado nada, decidiram lanar um foguete em dezembro. Eu fiz a seqncia toda da exploso do foguete. O Cruzeiro publicou oito pginas em primeirssima mo. Isso aconteceu numa sexta-feira, eu peguei meu carro, fui at Orlando, de l peguei, um avio para Nova York. Escrevi a matria e, noite, botei na Varig os filmes e o texto, que chegaram domingo de manh no Brasil. Nessa poca, filmes e texto sempre iam por avio? Sim, o avio da Varig levava em 22 horas de l at aqui. No domingo de manh, O Cruzeiro tinha um laboratrio de planto e, na tera, a revista j abriu com oito pginas com exploso do foguete.

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Voc tem idia de quantas matrias de abertura ou encerramento j fez? Bom, eu calculo ter feito 420 ou 430 matrias mesmo, mas a tinha bal, tinha almoo do Chateaubriand, viagem ao Rio So Francisco, coroao da rainha. Tinha de tudo. Voltando ao caso do foguete, o interessante que, para escrever a matria, eu comprei um livro infantil sobre o satlite chamado American Satellite. Nada melhor que um livro infantil para traduzir o tema para o pblico. No adianta entrevistar um cientista que te dar uma poro de informaes complicadas, com clculos, at porque eu no ia entender. E, para escrever sobre o que eu no conhecia, seria mais difcil. Eu tenho at hoje esse livro. Voc poderia falar dos diferentes momentos polticos que o Brasil viveu ao longo de sua trajetria no fotojornalismo? Eu no peguei o Estado Novo. Mas, como j contei, fiz uma das primeiras fotografias de Getlio Vargas quando ele era ex-presidente deposto, no exlio de So Borja. Tambm tive uma convivncia com o Dutra, num episdio curioso, quando O Cruzeiro me pautou para fotografar 24 horas da vida do presidente da Repblica. Na ocasio, falei ao presidente: Ento, presidente, vossa excelncia j est de acordo com a matria Dutra era amigo de Chateaubriand e eu gostaria de vir para c no incio do expediente e cobrir o seu dia inteiro, todas as suas atividades, visitas que o senhor faa, visitantes que venham lhe visitar, ministros que vm despachar. Ele concordou, e eu perguntei: A que horas eu posso vir? Ele marcou para trs ou quatro dias depois s 4h. Eu respondi: Presidente, 4h j de tarde. Eu quero pegar desde o incio do expediente at o final. Ele insistiu: Venha s 4h que est bom. Eu achei que ele no estivesse me entendendo. Ento, ele disse: Voc vem s 4h porque eu, normalmente, acordo s 3h. A, vem o barbeiro, faz a minha barba. Depois, eu tomo banho, me arrumo. E voc vem porque eu j estou pronto para comear o expediente, que comea s 4h da manh [risos]. E o expediente terminava a que horas? s 8h ou 10h da noite. Enfim, foi um presidente com que tive uma convivncia. Depois disso, convivi muito bem com Juscelino Kubitschek, uma pessoa extremamente democrtica, fcil, a ponto de ter gerado aquela foto dele com asas. Ele era o presidente voador. Em 1958, com a construo de Braslia, ele era considerado o presidente voador,

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ porque a mobilidade dele exigia um avio. Como ele tinha que se deslocar do Palcio do Catete e ir para o Galeo para pegar um avio para Braslia ou para outro lugar, ele perdia um tempo muito grande. Ento, criaram um heliporto no Palcio do Catete. O palcio tem uma cobertura, no tem telhado. uma chapa de concreto e ali tem oito guias, tambm de concreto, sendo uma em cada canto e uma no meio de cada um dos lados. Um dia, fui pautado por O Cruzeiro, cheguei l cedo e subi. J conhecia o Juscelino. Ele subiu, mas o helicptero no tinha chegado. Ficamos conversando um pouco at chegar o helicptero. Eu disse a ele: Presidente, aproveitando que o helicptero ainda no chegou, gostaria de fazer umas fotos. Eu j tinha percebido a guia. S faltava empurrar o homem at a frente da guia, cobrir o corpo da guia com o corpo dele e eu teria o presidente com asas, o presidente voador. Eu senti que ele entendeu na hora, mas eu vibrei com as fotos. Tomamos o helicptero para um vo inaugural. Fiz umas fotos dele vendo o Rio de dentro do helicptero. Depois, desembarcamos no Palcio das Laranjeiras, onde tinha um carro estava esperando para me levar redao. Chegando l, mandei revelar o filme. Para paginar, veio o Leo Bondinho, que participava de momentos mais importantes, e disse: Juscelino de asas? Respondi: , Juscelino de asas. Ningum mais fez isso. Era o presidente voador, tinha at uma msica do Juca Chaves sobre isso. E o Leo disse: melhor no publicar essa foto que o Juscelino no vai gostar. A, eu broxei: Pxa, ningum fez o presidente voador, tem msica popular falando que ele o presidente voador e a gente no publica a foto?. Como eles no iriam usar, recolhi o negativo. H uns dois anos, a Maristela, filha do Juscelino, hoje minha amiga, veio me procurar e me pediu uma ampliao assinada para botar no memorial do JK em Braslia. A, uma revista, feita por uns idiotas, chamada Nossa Histria, ao saber dessa foto no memorial, me telefonou pedindo o direito para public-la. Forneci a cpia e, quando fui ver, eles publicaram a foto com a asa direita aparecendo e a asa esquerda pela metade. A eu fiz uma carta irrespondvel para o editor da revista dizendo que era um desrespeito eles me procurarem para pedir a minha foto e depois fazerem uma coisa daquelas. Disse que tenho um arquivo de 70 mil negativos e que nenhum deles jamais estar disposio da Nova Histria. Esculhambei. Ora, a fotografia aquilo. S um imbecil, um paginador qualquer, no capaz de entender que, na foto do presidente voador, o importante so as asas.

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ E o perodo na ditadura militar, como foi? Eu no tive essa experincia, porque nessa poca eu estava com a Image. Ns atendamos somente a pedidos e reportagens solicitadas, que no entraram naquela coisa de correria de rua, de UNE [Unio Nacional de Estudantes], no houve essa coisa poltica. Houve mais trabalhos para governo de estado, para secretarias de sade, de educao. Sofremos, claro, como todo mundo. Havia um cuidado muito grande. Uma vez, eu estava em Recife, fotografando para um livro chamado Pernambuco Sim. E eu levei uma teleobjetiva para fazer umas fotos especiais. Prximo a um forte, que no me lembro o nome, apareceu um soldado e me pediu para comparecer ao quartel. Era prximo, eu estava fotografando por cima do quartel, minha viso era por cima. Coincidentemente, o ponto de vista que eu queria era prximo desse quartel. Quando cheguei l, o tenente pediu para eu me identificar, eu me identifiquei e ele perguntou se eu estava tirando fotos do quartel. Eu respondi que no, estava tirando fotos de Recife para um livro: Estou usando uma teleobjetiva e fazendo fotografias de uma regio de Recife que eu tenho que fotografar. Ele insistiu que, pela minha posio, eu estava tirando fotografias do forte que no eram permitidas. Eu respondi: Como eu estou fazendo o trabalho para o governo do estado, eu vou telefonar para o chefe de gabinete do governador, Marcos Vinicius Vilaa. Eu liguei e disse: Olha Vilaa, eu estou aqui cobrindo a minha pauta e estou com um oficial que est me interpelando sobre o trabalho que eu estou fazendo em Recife. Ento, acabou que o Vilaa chegou l, falou com o oficial e no teve problema. Em termos de fotojornalismo e jornalismo brasileiro, qual a sua avaliao desse perodo da ditadura militar e da censura? A censura foi inspiradora da msica popular, foi inspiradora dos escritores e foi inspiradora dos fotgrafos tambm, porque a proibio uma ferramenta de desafio. E o fotojornalista um sujeito que vive, mesmo sem estar em perigo, diante de uma realidade que desafiadora. Voc est na rua, cobrindo um acontecimento e um desafio. Antes de 1968, todo dia, ao meio dia comeava um au na frente do Jornal do Brasil na Avenida Rio Branco. Todo dia, nesse horrio, os estudantes cortavam a Avenida Rio Branco com faixas e protestos. E, claro, os fotgrafos sabiam que ali iria rolar cavalaria da polcia, jipe do exrcito. Ento, era um desafio bom conseguir fazer as fotografias, que o jornal publicava

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ ou no. O problema no era tanto o fotojornalista conseguir a foto, era o jornal publicar ou no. Era O Estado de S. Paulo publicar uma receita de bolo na primeira pgina no lugar de uma matria censurada. Ento, o fotojornalista estava na primeira linha fotografando, buscando e cumprindo os desafios que lhe eram impostos. Qual a sensao de estar presenciando a histria, em determinados momentos, atravs da lente da sua cmera? o que eu j tinha dito no incio da entrevista. Sempre quando me perguntam o que a fotografia para mim, eu respondo: falar a verdade. Voc sente, ento, estar contribuindo para a verdade? Claro, voc est gerando um documento, e esse documento irrespondvel, ele fala sozinho. Depende do fotgrafo ter maturidade, ter o que eu chamo de trip: talento, sorte e pacincia, os trs elementos bsicos. preciso ter a conscincia de que voc est vendo um acontecimento por milhares ou milhes de pessoas. O meu primeiro momento de fotojornalismo comeou aos 11 anos de idade. Quando o meu pai lia os jornais, eu perguntei a ele quem tirava as fotos, por exemplo, da invaso da Polnia pelo exrcito alemo, se eram os prprios soldados que fotografavam. Ele me respondeu: No soldado, no, absolutamente. Quem tira as fotos so jornalistas, fotgrafos que vo para a guerra, mas que no vo matar ningum e esperam no ser mortos e vo uniformizados. Esses fotgrafos fotografam para pessoas que no vo guerra, que no vo Polnia, que no esto no acontecimento, possam ver. O fotojornalista est ali, na hora do acontecimento, para o olho dele ver por milhes de olhos. Voc pode ver na 1 pgina de O Globo o massacre em Bourman, o assassinato dos monges que protestam contra a ditadura, mas voc no est l. O fotgrafo presenciou e viu por voc. A responsabilidade do fotgrafo exatamente essa: ver o acontecimento por milhares de pessoas. As minhas fotografias so feitas com a mesma idia: milhares de pessoas viram as minhas fotos, mas nunca estiveram onde eu estive, ento, coube a mim fotografar essa verdade. Nesses momentos, eu fotografei pensando que eu estava gerando uma pea de informao para ser mostrada da maneira mais autntica, mais verdadeira como ela . Aquilo ali era assim assim, as pessoas que no tiveram oportunidade de ver, vem o que o fotojornalista tem a

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ oportunidade de ver por elas. A responsabilidade do fotgrafo essa: ver o acontecimento por outras pessoas. As fotografias que esto na minha exposio foram feitas com a mesma idia. Milhares de pessoas j viram essas fotos, mas nunca estiveram no lugar onde eu estive. Coube a mim transmitir essa verdade para elas. Eu fotografei pensando que estava, naquele momento, fazendo uma imagem assim como ela , para que outras pessoas pudessem tambm ver o que eu vi. Voc acha que se tornou o reprter do qual seu pai lhe falou quando tinha 11 anos? Com 11 anos, eu senti esse estalo. Nunca tive outra profisso na minha vida. Logo depois com 14 anos, eu ganhei uma pequena cmera. Tinha sempre dificuldades financeiras com relao revelao dos filmes. Mas, desde essa idade, eu tinha a vontade de fotografar presente. Quais foram suas principais influncias na fotografia? Quando vim para o Rio de Janeiro, com Jos Medeiros, comprvamos muitas revistas Life e Paris Match em preto e branco. Ali, ns tivemos contato com fotgrafos como Robert Capra, Cartier Bresson, David Douglas Duncan. A presena deles era um desafio. Dava uma vontade de fazer o mesmo, depois do empurro de Jean Manzon na revista O Cruzeiro. Todos esses fotgrafos participaram das guerras e passaram essa linguagem de uma maneira muito forte. Voc foi da Black Star? Trabalhei para l, mas nunca fui correspondente. Inclusive, sempre que ia a Nova York, levava meus trabalhos na agncia para tentar uma contratao e ficar em stand by. Voc no participou de nenhuma guerra? No. Mas tive uma oportunidade, quando a revista O Cruzeiro quis enviar um fotgrafo para a Guerra da Coria. Na ocasio, nos apresentamos Jos Medeiros, Luciano Carneiro e eu. Jos Medeiros e eu ramos casados, e Luciano, solteiro. Por isso, ele foi. O fotojornalismo e a guerra sempre tiveram uma ligao muito forte?

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ Sim, claro. Mas, por exemplo, em uma guerra dos EUA como a do Iraque, as fotos mais fortes viro de fotgrafos europeus possivelmente. A Guerra do Vietn j no foi na minha poca, mas eu gostaria de ter ido para a Coria. Qual o balano que voc faz da sua carreira? Quais foram os momentos decisivos? E, se voc pudesse mostrar apenas um trabalho para a sociedade para representar sua obra, qual seria? A revoluo da Bolvia, onde tiveram enterros acompanhados de orquestra, assim como o retorno do impedimento de Eugenio Barros, governador do Maranho. Um nibus com os seguranas foi atacado ao passar em frente da sede do partido rival. Eles estavam armados e algum da janela do partido disse um palavro, a, foi um fogo cruzado que durou 10 minutos, resultando em 12 pessoas mortas. Eugenio era do mesmo partido de Chato. Eu tinha sido designado para cobrir a volta do governador que teve seu impedimento anulado. Vi um padre ser cortado na minha frente. Eu usava uma cmera rolleiflex, mais complicada, e, por isso, tinha que ficar de p. Um soldado gritava para que eu deitasse e como eu no o obedecia me derrubou espalhando todas as lmpadas da minha bolsa. Fiquei com o traseiro doendo um ms e temporariamente surdo pelo reboco da parede que entrou no meu ouvido. Voc destacaria mais alguma cobertura? Uma outra boa oportunidade de cobertura que eu tive foi o coroamento da Rainha da Inglaterra. O pas ainda passava por uma recesso de alimentos e tinha muitas reas no recuperadas. uma sensao de estar em um momento nico na histria, j que at agora no aconteceu de novo. Ali, houve o desfile naval de Portmouth com 419 navios, o maior da histria. Eu estava no Almirante Barroso, navio brasileiro em que viajei. Ns chegamos dois dias antes, mas no ltimo dia antes do evento, faltava entrar o cruzador russo, que quando chegou, freou muito rapidamente surpreendendo a todos. Por isso, havia uma curiosidade muito grande a respeito do navio. Um mergulhador da marinha inglesa foi mandado para o fundo do mar verificar o casco do navio em segredo, mas ele nunca foi achado, apesar de o tal canal ser conhecido por sempre devolver os corpos das vtimas que nele se afogam. Algum tempo depois, os russos apresentaram um prisioneiro como o

Memria do Jornalismo Brasileiro ECO/UFRJ mergulhador Lionel, mas nada foi comprovado. Por isso, eu publiquei uma matria em O Cruzeiro com entrevista dos oficiais do Almirante Barroso sobre esse evento, que comprometeu a imagem da Inglaterra como boa hospitaleira. Como foi para voc conciliar a foto artstica com a jornalstica? No houve nenhum preparo. Eu sempre me interessei por arte, como a dos impressionistas. Freqentava museus e gostava muito de esculturas. Tive uma coleo imensa de livros de fotografia. Como diz Oscar Niemayer, ningum faz nada de original. Depois de Da Vinci, ningum inventou mais nada. No entanto, preciso estar atento e com olhos abertos para poder seguir os trabalhos dos seus antecessores. claro que, para esse tipo de foto artstica, eu me apoiei no trip de modstia a parte talento, sorte e pacincia, em que me firmo. Atravs desse trabalho, eu j publiquei 16 livros e estou trabalhando em mais dois. Voc tem idia de quantas vezes j apertou o boto para tirar uma foto? Bom, em um trabalho na Bahia, eu fiz 12 mil fotos em cinco meses. Em Lisboa, com quatro meses, fiz quatro mil fotos. Mas, nesse meio, h muita porcaria, fotos ruins. Como voc v o futuro da fotografia? De uma maneira muito especial. Acho que vai haver uma valorizao da fotografia analgica e preto & branco pela banalizao e democracia da foto amadora. Claro que, se sair um Duncan de cada milho de amadores, a fotografia est feita. altamente positiva a tecnologia digital. Mas acho que acontecer um amadurecimento dos fotgrafos e uma volta para o analgico. E como voc enxerga o futuro fotojornalismo? O fotojornalista vai ter que aprimorar muito sua qualidade, porque muito mais fcil fazer fotografia hoje. No h mais desculpa. Ele vai ter que batalhar muito mais do que no meu tempo. Vai ter que ter uma mobilidade, uma tica mais apurada e ser mais exigente em relao ao seu trabalho. H muito menos tempo e no d mais para ler uma revista como O Cruzeiro. O texto tambm ter que ser mais sucinto.