Entrevista Dejours

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    Entrevista com Christophe Dejours

    "Um suicdio no trabalho uma mensagem brutal"

    01.02.2010 - 10:14 Por Ana Gerschenfeld

    Nos ltimos anos, trs ferramentas de gesto estiveram na base de umatransformao radical da maneira como trabalhamos: a avaliao individual dodesempenho, a exigncia de qualidade total e o outsourcing . O fenmeno geroudoenas mentais ligadas ao trabalho. Christophe Dejours, especialista na matria,desmonta a espiral de solido e de desespero que pode levar ao suicdio.

    Christophe Dejours (EnricVives-Rubio)

    Psiquiatra, psicanalista e professor no ConservatoireNationaldesArtsetMtiers, emParis, Christophe Dejours dirige ali o Laboratrio de Psicologia do Trabalho e da

    Aco uma das raras equipas no mundo que estuda a relao entre trabalho e

    doena mental. Esteve h dias em Lisboa, onde, de gravata amarela, cabeleira Beethoven e olhos risonhos a espreitar por detrs de pequenos culos de massaredondos, falou do sofrimento no trabalho. No apenas do sofrimento enquantogerador de patologias mentais ou de esgotamentos, mas sobretudo enquanto basepara a realizao pessoal. No h trabalho vivo sem sofrimento, sem afecto, semenvolvimento pessoal, explicou. o sofrimento que mobiliza a inteligncia e guia aintuio no trabalho, que permite chegar soluo que se procura.

    Claro que no outro extremo da escala, nas condies de injustia ou de assdio quehoje em dia se vivem por vezes nas empresas, h um tipo de sofrimento no trabalhoque conduz ao isolamento, ao desespero, depresso. No seu ltimo livro, publicadoh uns meses em Frana e intitulado S uicide etTravail: Que Faire? , Dejours abordaespecificamente a questo do suicdio no trabalho, que se tornou muito meditica coma vaga de suicdios que se verificou recentemente na France Tlcom.

    Depois da conferncia, o mdico e cientista falou com o P2 sobre as causas laboraisdesses gestos extremos, trgicos e irreversveis. Mais geralmente, explicou-nos comoa destruio pelos gestores dos elos sociais no trabalho nos fragiliza a todos perante adoena mental.

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    repen te ue as pessoas com uem traba lh amos h anos so cobardes , ue se recusam a tes temunhar , ue nos ev itam , ue no uerem f a lar connosco . A ue se torna difcil sa ir do poo , sobre tudo para os ue os tam do seu traba lho , para os ma is envo lvidos pro fiss iona lmen te . uitas vezes , a empresa ped iu- lhes sacr ifcios impor tan tes , em termos de sobrecarga de traba lho , de r itmo de traba lho , de ob jec tivos a a ting ir . E a t lhes pode ter ped ido (o ue a lgo de re la tivamen te novo) para f azerem co isas ue vo con tra a sua tica de traba lho , ue mora lme n te desaprovam .

    Qu a l fil das ssoas que so a l o d e assd io ?

    S o jus tamen te pessoas ue acred itam no seu traba lho , ue es to envo lvidas e ue ,uando comeam a ser censuradas de f orma in jus ta , so mu ito vu lnerve is . Por ou tro

    lado , so f requen temen te pessoas mu ito hones tas e a lgo ingnuas . Por tan to , quando lhes pedem co isas que vo con tra as regras da pro fisso , con tra a le i e os regu lamen tos , con tra o cd igo do traba lho , recusam -se a f az- las . Por exemp lo ,recusam-se a ass inar um ba lano con tab ilis ta man ipu lado . E em vez de ficarem ca ladas , dizem-no bem a lto. Os co legas no dizem nada , j perceberam h mu ito tempo como as co isas f unc ionam na empresa , j h mu ito que desv iaram o olhar .

    oda a gen te cmp lice . as o tipo empenhado , hones to e a lgo ing nuo con tinua a

    f a lar . No dev ia ter ins is tido . E como f a lou f ren te de todos , torna -se um a lvo . O che f e va i mos trar a todos quo impensve l dizer aber tamen te co isas que no devem aparecer nos re la tr ios de ac tividade .

    Um n ico caso de assd io tem um e f e ito ex tremamen te po ten te sobre toda a comun idade de uma empresa . Uma mu lher es t a ser assed iada e va i ser des truda ,uma s ituao de uma tota l in jus tia ; ningum se mexe , mas todos ficam a inda com ma is medo do que an tes . O medo ins ta la-se . om um n ico assd io, consegue-se dom inar o co lec tivo de traba lho todo . Por isso , impor tan te , ao con trr io do que se diz, que o assd io se ja bem vis ve l para todos . H tcn icas que so ens inadas , que f azem par te da f ormao em ma tr ia de assd io, com ps ic logos a f aze r essa f ormao .

    m a f or m ao ara o assd io ?

    Exac tamen te . H es tg ios para aprenderem essas tcn icas . Posso con tar , por exemp lo, o caso de um es tg io de f ormao em rana em que , no incio, cada um dos 5 par ticipan tes , todos e les quadros super iores , r ecebeu um ga tinho . O es tg io durou uma semana e , duran te essa semana , cada par ticipan te tinha de tomar con ta do seu ga tinho . omo bv io , as pessoas af e ioaram -se ao seu ga to , cada um f a lava do seu ga to duran te as reun i es , e tc .. E, no fim do es tg io, o d irec tor do es tg io deu a todos a ordem de ma tar o seu ga to.

    Est a de scr eve r u m c en r io tota lm en te naz i...

    S que aqu i ningum es tava a apon tar uma esp ingarda cabea de ningum para o obr igar a ma tar o ga to. S e ja como f or , um dos par ticipan tes , uma mu lh er , adoeceu .

    eve uma descompensao aguda e eu tive de tra t -la f oi ass im que soube do caso .as os ou tros ma taram os seus ga tos . O es tg io era para aprender a ser

    imp iedoso , uma aprend izagem do assd io.

    Penso que h bas tan tes empresas que recorrem a es te tipo de f ormao mu itas empresas cu jos quadros , responsve is de recursos humanos , e tc ., so ens inados a compor tar-se dessa mane ira .

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    Vo lta n do ao e r fil do ass e d iado, e r i oso acr e d itar r e a lm en te n o s eu traba l o ?. O que vemos que , ho je em dia , envo lver-se demas iado no seu traba lho represen ta um verdade iro per igo . as , ao mesmo tempo , no pode haver inte lignc ia no traba lho sem envo lvimen to pessoa l sem um envo lvimen to tota l.

    Isso gera , a lis , um dilema terr ve l, nomeadamen te em re lao aos nos sos filhos . As pessoas su icidam-se no traba lho , por tan to no podemos dizer aos nossos filhos , como os nossos pa is nos disseram a ns , que graas ao traba lho que nos podemos emanc ipar e rea lizar-nos pessoa lmen te . Ho je , vemo-nos obr igados a dizer aos nosso s filhos que prec iso traba lhar , mas no mu ito . uma mensagem tota lmen te con trad itr ia .

    E os s in d icatos ?

    Penso que os s ind ica tos f oram em par te des tru dos pe la evo luo da organ izao do traba lho . No se opuseram introduo dos novos m todos de ava lia o . esmo os traba lhadores s ind ica lizados viram -se presos numa dinm ica em que ace itaram comprom issos com a direco . Em rana , a s ind ica lizao diminu iu imenso as pessoas j no acred itam nos s ind ica tos porque conhecem as suas pr ticas des lea is .

    o m o d ist ingu ir u m s u ic d io ligado ao traba l o d e u m s u ic d io d ev ido a o u tras ca usas ?

    uma pergun ta qua l nem sempre poss ve l responder . Ho je em dia , no somos capazes de esc larecer todos os su icdios no traba lho . as h casos em que ind iscu tve l que o que es t em causa o traba lho . Quando as pessoas se ma tam no loca l de traba lho , no h dv ida de que o traba lho es t em causa . Quando o su icdio acon tece f ora do loca l de traba lho e a pessoa de ixa car tas , um dir io, onde exp lica por que se su icida , tambm no h dv idas so documen tos a terradores . as quando as pessoas se su icidam f ora do loca l do traba lho e no de ixam uma no ta , mu ito comp licado f azer a dis tino . Porm , s vezes poss ve l. Um caso recen te e uma das minhas vitr ias pessoa is f oi julgado an tes do Na ta l, em Par is . oi um processo bas tan te longo con tra a Renau lt por causa do su icdio de vr ios engenhe iros e cien tis tas a ltamen te qua lificados que traba lhavam na concepo dos ve cu los , num cen tro de pesqu isas da empresa em uyancour t, per t o de Par is .

    Qu a n do q ue isso aco n te c eu ?

    Em 6-2007 . Houve cinco su icdios consecu tivos ; qua tro a tiraram -se do topo de umas escadas inter iores , do qu into andar , f ren te dos co legas , num loca l com mu ita passagem hora do a lmoo . as um de les a lis de or igem por tuguesa no se su icidou no loca l do traba lho . Era mu itss imo utilizado pe la Renau lt nas discusses e negoc iaes sobre novos mode los e produo de peas no Bras il. oi utilizado ,exp lorado de f orma a terradora . Ped iam - lhe cons tan temen te para ir ao Bras il e o homem es tava exaus to por causa da dif erena horr ia . Era uma pessoa tota lmen te ded icada , tinha mesmo f e ito co isas sem ningum lhe ped ir , como traduz ir documen tos tcn icos para por tugus , para ten tar ganhar o mercado bras ile iro para a empresa . Adada a ltura , teve uma depresso bas tan te grave e acabou por se su icidar .

    A viva processou a Renau lt, que em ezembro acabou por ser condenada por f a lta imperdove l do empregador [conce ito do dire ito da segurana soc ia l em rana] , por no ter tomado as dev idas precaues .

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    F oi um acon tec imen to impor tan te porque , pe la pr ime ira vez , uma grande mu ltinac iona lf oi condenada em vir tude das suas pr ticas inadm iss ve is . Os advogados do traba lho apo iaram-se mu ito nos resu ltados cien tficos do meu labora tr io. O acrdo do tr ibuna ltinha 25 pg inas e as provas f oram cons ideradas esmagadoras . Hav ia e -ma ils onde o engenhe iro dizia que j no aguen tava ma is e que a empresa f ez desaparecer limpando o disco r gido do seu compu tador . as e le tinha cp ias dos documen t os no seu compu tador de casa . Aargumen tao f oi imparve l.

    Me s m o ass im , as e m r e sas co n tinu a m a d ize r q ue os s u ic d ios dos s eu s f un c io n r ios t m a ve r co m a vida r ivada e n o co m o traba l o .

    oda a gen te tem prob lemas pessoa is . Por tan to, quando a lgum d iz que uma pessoa se su icidou por razes pessoa is , no es t tota lmen te errado . S e procurarmos bem ,vamos acabar por encon trar , na ma ior ia dos casos , s ina is precursores , s ina is de f rag ilidade . H quem j tenha es tado doen te , h quem tenha tido ep isd ios depress ivos no passado . prec iso f azer uma inves tigao mu ito apro f undada .

    as se a empresa pre tender provar que a cr ise depress iva de uma pessoa se deve a prob lemas pessoa is , va i ter de exp licar por que que , duran te 0, 5, 20 anos , essa pessoa , apesar das suas f rag ilidades , f unc ionou bem no traba lho e no adoeceu .

    Mas co m o q ue o traba l o od e co n d u zir ao s u ic d io ? S aco n te c e a e ssoas co m d e te r mi n ada vu lne rab ilidad e ?

    S mu ito recen temen te que perceb i que uma pessoa pod ia ser levada ao su icdio sem que tivesse a t a li apresen tado qua lquer s ina l de vu lnerab ilidade ps icopa tolg ica .F ique i ex tremamen te surpreend ido com um caso em espec ia l, do qua l no posso f a lar mu ito aqu i, porque a inda no f oi julgado , de uma mu lher que se su icidou na sequnc ia de um assd io no traba lho .

    A Polcia Jud icir ia [f rancesa] tinha interrogado os seus co legas de traba lho e , como a ordem vinha de um juiz, as pessoas f a laram . F oram 0 depo imen tos que descrev iam a mane ira como essa mu lher tinha s ido tra tada pe lo pa tro (apenas u ma con trad iz as res tan tes 39). E o que emerge que , dev ido ao assd io , e la ca iu num es tado ps icopa tolg ico mu ito parec ido com um acesso de me lanco lia .

    Ora , o que ma is me espan tou , quando procure i s ina is precursores , que no encon tre i abso lutamen te nada . E, pe la pr ime ira vez , comece i a pensar que , em cer tas s ituaes , quando uma pessoa que no me lanc lica esco lhida como a lvo de assd io, poss ve l f abr icar , desencadear , uma verdade ira depresso em tudo igua lme lanco lia . Quando essa pessoa se va i aba ixo , tem uma depresso , au todesva lor iza -se , torna-se pess imis ta , pensa que no va le nada , que merece rea lmen te morrer .

    Era uma mu lher hiperbr ilhan te , mu itss imo aprec iada , mu ito envo lvida , imag ina tiva ,produ tiva . inha duas cr ianas p timas e um mar ido excepc iona l. F a le i com os seus am igos , o mar ido , a me . No encon tre i nenhum s ina l precursor , nem sequer na sua inf nc ia .

    Aco n te c eu s e m r-a viso ?

    Houve um per odo cr tico que ter durado um ms . As pessoas sua vo lta deram por isso . Viram que e la es tava mu ito ma l, o md ico do traba lho f oi av isado e obr igou -a a parar de traba lhar e ped iu a a lgum que a levasse para casa . as e la no quer ia parar , ins is tia que quer ia f azer o que tinha a f azer . A f am lia tambm percebeu que a lgo es tava a acon tecer , e la consu ltou um ps iqu ia tra , mas imposs ve l travar es te tipo

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    de descompensao . F oi para casa da me , mas quando pensaram que es tava a me lhorar um pouco , re laxaram a vigilnc ia e e la a tirou -se pe la jane la .

    Nos tes temunhos reco lhidos pe la po lcia , v -se claramen te que ningum se a treveu a a jud- la ; todos dizem que tinham medo . inham medo do pa tro , que era um tirano .

    ambm assed iava sexua lmen te as mu lheres e es ta mu lher era mu ito bon ita . No consegu i saber se tinha hav ido assd io sexua l, mas vr ias pessoas evocam no seu depo imen to que e la ter ca do em desgraa porque se tinha recusado a f azer o que e le quer ia .

    O caso da Fra n c e T lco m f o i m u ito m e d it ico, co m 25 s u ic d ios . O s u ic d io m a is f r e q uen te nas g ra n de s e m r esas ?

    No . Nas grandes empresas pode ser ma is vis ve l, mas h tambm mu itas pequenas empresas onde as co isas correm mu ito ma l, onde os cr itr ios so incr ive lmen te arb itrr ios e onde o assd io po de ser pior . Nas grandes empresas , subs is te por vezes uma presena s ind ica l que f az com que os casos venham a pb lico . F oi ass im na F rance lcom . as no acred ito que a des truio ac tua l do mundo do traba lho es te ja a acon tecer apenas na lgumas grandes mu l tinac iona is . E impor tan te sa lien tar

    que tambm h mu ltinac iona is onde as co isas correm bem .Qu a n tas e ssoas s e s u ic ida m or a n o, e m F ra n a e n o u tros a s e s ?No h es ta ts ticas do su icdio no traba lho . Em F rana , f oi cons tituda uma com isso minis ter ia l onde pe la pr ime ira vez f oi dito claramen te que urgen te ap licar f erramen tas que perm itam ana lisar a re lao en tre su icdio e traba lho . as , por enquan to, isso no ex is te . Nem na B lgica , nem no anad , nem nos Es tados Unidos , no ex is te em s tio nenhum .

    Na S uc ia , por exemp lo , h provave lmen te tan tos su icdios no traba lho como em F rana . as no h deba te . Em mu itos pa ses no h deba te , porque no ex is te esse espao clnico , essa nova med icina do traba lho que es tamos a desenvo lver em F rana . e f ac to , a F rana dos s tios onde ma is se f a la do assun to . O deba te f rancs interessa mu ita gen te , mas tambm me te mu ito medo .

    Em F rana , f oi f e ito um n ico inqur ito, h qua tro anos , pe la Inspeco d ica do raba lho , em trs depar tamen tos [divises adm inis tra tivas] , passando pe los md icos

    do traba lho , e chegaram a um tota l de 50 su icdios em cinco anos . provave lmen te um va lor subes timado , mas , ex trapo lando -o a todos os depar tamen tos , d en tre 300 e

    00 su icdios no traba lho por ano .

    Fa lo u de q u a lidad e tota l. O q ue ex acta m en te ?

    uma segunda med ida que f oi introduz ida na sequnc ia da ava liao ind ividua l. Acon tece que , quando se f az a ava liao ind ividua l do desempenho , es t -se a querer ava liar a lgo , o traba lho , que no poss ve l ava liar de f orma quan tita ti va , ob jec tiva ,a travs de med ies . Por tan to, o que es t a ser med ido na ava liao no o traba lho .No me lhor dos casos , es t-se a med ir o resu ltado do traba lho . as isso no a mesma co isa . No ex is te uma re lao de proporc iona lidade en tre o traba lho e o resu ltado do traba lho .

    como se em vez de olhar para o con tedo dos ar tigos de um jorna lis ta , apenas se con tasse o nmero de ar tigos que esse jorna lis ta escreveu . H quem escreva ar tigos todos os dias , mas en fim ... para con tar que houve um ac iden te de viao ou ou tra co isa qua lquer . Uma n ica en trev is ta , como es ta por exemp lo, demora mu ito ma is

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    tempo a escrever e , para f azer as co isas ser iamen te , va i imp licar que o jorna lis ta escreva en tre tan to menos ar tigos . Ho je em dia , julga -se os cien tis tas pe lo nmero de ar tigos que pub licam . as isso no re flec te o traba lho do cien tis ta , que ta lvez es te ja a f azer um traba lho difcil e no tenha pub licado duran te vr ios anos porque no consegu iu ob ter resu ltados .

    Passados uns tempos , surgem que ixas a dizer que a qu a lidade [da produo ou do serv io] es t a degradar-se . Ento , para a lm das ava liaes , os ges tores comeam a con trolar a qua lidade e dec laram como ob jec tivo a qua lidade tota l . No conhecem os ofcios , mas vo de finir pon tos de con trolo da qua lidade . verdade iramen te a luc inan te .

    Para a lm de que dec larar a qua lidade tota l ca tas trfico , jus tamen te porque a qua lidade tota l um idea l. impor tan te ter o idea l da qua lidade tota l, ter o idea l do zero-de f e itos , do zero-ac iden tes , mas apenas como idea l .

    Em diabe tolog ia , por exemp lo , os ges tores introduz iram a obr igao de os md icos f azerem , para cada um dos seus doen tes , ao longo de trs meses , a md ia dos nve is de hemog lob ina glicos ilada A c [r i -se] , que um ind icador da concen trao de acar

    no sangue . A segu ir , comparam en tre s i os grupos de doen tes de cada md ico ass im que con trolam a qua lidade dos cu idados md icos . [r i -se] .

    S que , na rea lidade , quando tra tamos um doen te , s vezes o tra tamen to no f unc iona e temos de perceber porqu . E fin a lmen te , o doen te acaba por nos con f essar que no consegue respe itar o reg ime a limen tar que lhe prescrevemos , porque inc luilegumes e no f cu las e que os legumes so ma is caros ... em trs filhos e no tem dinhe iro para legumes . E en to , vamos ter de enco n trar um comprom isso .

    a mesma f orma , se um doen te diab tico engenhe iro e tem de via jar f requen temen te para ou tros f usos horr ios , torna -se mu ito difcil con trolar a sua glicem ia com insu lina . a is uma vez , va i ser prec iso encon trar um me io -termo . E isso difcil.

    esmo uma cen tra l nuc lear nunca f unc iona como prev is to. Nunca . Por isso que prec isamos de traba lho vivo . A qua lidade tota l um con tra -senso porque a rea lidade se encarrega de f azer com que as co isas no f unc ionem de f orma idea l. as o ges t or no quer ouv ir f a lar disso .

    Ora , quando o idea l se trans f orma na cond io para ob ter uma cer tificao , o que acon tece que se es t a obr igar toda a gen te a diss imu lar o que rea lmen te se passa no traba lho . e ixa de ser poss ve l f a lar do que no f unc iona , das dificu ldades encon tradas . Quando h um inc iden te numa cen tra l nuc lear , o me lhor no dizer nada .

    Isso ex tr e m a m en te g ra ve .

    . E em med icina passa-se a mesma co isa . F az-se ba tota . Ho je , ex is tem nos hosp ita is as chamadas con f ernc ias de consenso acho que ex is tem em toda a Europa onde so f e itas recomendaes prec isas para o tra tamen to de ta l ou ta l doena . Equando um md ico recebe um doen te , tem de tec lar no compu tador para ver o que f oies tabe lec ido pe la con f ernc ia de consenso . O md ico , que tem o doen te sua f ren te ,pensa que essa no a boa abordagem porque sabe que o doen te tem prob lemas com a mu lher , com os filhos e no va i consegu ir f azer o tra tamen to recomendado . as sabe tambm que se no fizer o que es t l escr ito, e se por acaso as co isas derem

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    para o tor to, poder haver um inqur ito, a ped ido da f am lia ou de um ges tor , e vo dizer que f oi o md ico que no f ez o que dev ia . O prob lema da qua lidade tota l que obr iga mu itos de ns a viver essa exper inc ia a troz que cons is te em f az er o nosso traba lho de uma f orma que nos envergonha .

    H m u itos s u ic d ios en tr e os m d icos ?

    C ada vez ma is . H espec ia lidades com ma is su icdios do que ou tras nomeadamen te en tre os md icos rean imadores . Em F rana uma verdade ira heca tombe : sab ido que a pro fisso de anes tes is ta-rean imador das que tm ma ior taxa de su icdios .Nes ta espec ia lidade , os r iscos de ser-se a tacado em tr ibuna l porque a lgum morreu so to e levados que os md icos se pro tegem segu indo as ins trues . esmo que tenham a ntima conv ico de que no era isso que dever iam f azer . C hegmos a esse pon to.

    uma s ituao insupor tve l e h md icos que no aguen tam ver um doen te morrer porque tiveram medo de que isso se virasse con tra e les . F iz o que es tava escr ito e o doen te morreu . a te i o doen te . H cada vez ma is rean imadores que se con f ron tam com es ta s ituao . Ainda por cima os cirurg ies a tiram sempre as dificu ldades que

    encon tram nas operaes para cima do rean imador . S empre . C ada vez que acon tece qua lquer co isa , porque o anes tes is t a no adormeceu bem o doen te , ou no o acordou correc tamen te , ou no soube res tabe lecer a presso ar ter ia l. O cirurg io nunca adm itir que f a lhou nas su turas e que por isso o doen te se esva iu em sangue .

    Os m d icos s e m r e f ora m co n s id e rados u m a c lass e m u it o so lidr ia F oram . J no so . Eu traba lhe i anos nos hosp ita is , e adorava traba lhar l , porque ex is tia um esp r ito de equ ipa f an ts tico . ramos f e lizes no nosso traba lho . Ho je , as pessoas no querem traba lhar nos hosp ita is , no querem f azer bancos , ten ta m sa f ar-se . S o todos con tra todos . Bas taram uns anos para des truir a so lidar iedade no hosp ita l. O que acon teceu a terrador .

    O que impor tan te perceber que a des truio dos e los soc ia is no traba lho pe los ges tores nos f rag iliza a todos peran te a doena men ta l. E por isso que as pessoas se su icidam . No quer dizer que o so f r imen to se ja ma ior do que no passado ; so as nossas de f esas que de ixaram de f unc ionar .

    P orta n to, as f e rra m en tas d e ge sto so n a r e a lidad e f e rra m en tas d e r ep r e sso, d e do mi n ao pe lo m e do .

    S im , o termo exac to dom inao ; so tcn icas de dom inao .

    En to, p r e c iso acabar co m e ssas p rt icas ?

    Eu no dir ia que prec iso acabar com tudo . Acho que no devemos renunc iar

    ava liao , inc luindo a ind ividua l. as prec iso renunc iar a cer tas t cn icas . Em par ticu lar , tudo o que quan tita tivo e ob jec tivo f a lso e prec iso acabar com isso .as h ava liaes que no so quan tita tivas e ob jec tivas a ava liao dos pares , da

    co lec tividade , a ava liao da be leza , da e legnc ia de um traba lho , do f a c to de ser con f orme s regras pro fiss iona is . ra ta-se de ava liaes assen tes na qua lidade e no desempenho do ofcio . esmo a en trev is ta de ava liao pode ser interessan te e as pessoas no so con tra .

    as sobre tudo , a ava liao no deve ser apenas ind ividua l. ex tremamen te impor tan te comear a concen trar os es f oros na ava liao do traba lho co lec tivo e

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    nomeadamen te da cooperao , do con tr ibu to de cada um . as como no sabemos ana lisar a cooperao , ana lisa -se somen te o desempenho ind ividua l.

    O resu ltado desas troso . No verdade que a qua lidade da produo me lhorou . Aenera l otors f oi obr igada a a ler tar o mundo da m qua lidade dos seus pneus ; a oyo ta teve de trocar um milho de ve cu los por ve cu los novos ou reembo lsar os

    clien tes porque descobr iu um de f e ito de f abr ico . essa a qua lidade tota l japonesa?

    Ho je , nos hosp ita is em F rana , a qua lidade do traba lho no aumen tou diminu i. O desempenho supos tamen te me lhorou , mas isso no verdade , porque no se toma em con ta o que es t a acon tecer do lado do t raba lho co lec tivo .

    emos de aprender a pensar o traba lho co lec tivo , de desenvo lver m todos para o ana lisar , ava liar para o cu ltivar . A r iqueza do traba lho es t a , no traba lho co lec tivo como cooperao , como mane ira de viver jun tos . S e consegu irmos sa lva r isso no traba lho , ficamos com o me lhor , aprendemos a respe itar os ou tros , a ev itar a violnc ia ,aprendemos a f a lar , a de f ender o nosso pon to de vis ta e a ouv ir o dos ou tros .

    N o a ve r p or d e trs d e sta n o va or g a n izao do traba l o ob je ct ivos d e

    co n tro lo das pe ssoas, d e r e d u o da libe rdad e in d ivid u a l, q ue ex tra vasa m o m b ito e m p r e sar ia l?

    uma ques to difcil. Acho que qua lquer m todo de organ izao do traba lho ao mesmo tempo um m todo de dom inao . No poss ve l dissoc iar as duas co isas . H

    0 anos que os soc ilogos traba lham nis to . odos os m todos de organ izao do traba lho visam uma diviso das tare f as , por razes tcn icas , de rac iona lidade , de ges to . as no h nenhuma diviso tcn ica do traba lho que no venha acompanhada de um s is tema de con tro lo, em vir tude do qua l as pessoas vo cumpr ir as ordens .

    H tecno log ias da dom inao . O s is tema de ay lor , ou tay lor ismo , essenc ia lmen te um m todo de dom inao e no um m todo de traba lho . O m todo de F ord um m todo de traba lho .C on tudo , no penso que a inteno do pa trona to (f rancs , em par ticu lar) , nem dos homens de Es tado se ja ins taurar o tota litar ismo . as indub itve l que introduzem m todos de dom inao , a travs da organ izao do traba lho que , de f ac to , des troem o mundo soc ia l.

    Qu a l a d if e r en a en tr e tay lor is m o e f ord is m o ?

    ay lor inven tou a diviso das tare f as en tre as pessoas e a interpos io , en tre cada tare f a , de uma interveno da direco , a travs de um capa taz . H cons tan temen te a lgum a vigiar e a ex igir obed inc ia ao traba lhador . A pa lavr a-chave obed inc ia .

    Quando eu disser para parar de traba lhar e ir comer qua lquer co isa , voc va iobedecer . S e concordar , ser pago ma is 50 cn timos pe la sua obed inc ia . A n ica co isa que impor ta a obed inc ia . O ob jec tivo acabar com o c io , os tempo s mor tos .

    S mu ito ma is tarde que F ord introduz iu uma nova tcn ica , a linha de mon tagem ,que uma ap licao do tay lor ismo . Na rea lidade , no o progresso tecno lg ico que de term ina a trans f ormao das re laes soc ia is , mas a trans f ormao das re laes d e dom inao que abre o cam inho a novas tecno log ias .

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    O toyo tismo [ou S is tema oyo ta de Produo] utiliza um ou tro m todo de dom inao ,o ohn ismo [inven tado por a iich iOhno ( 9 2 -1 990)], dif eren te do tay lor ismo . um m todo par ticu lar que ex tra i a inte lignc ia das pessoas de uma f orma mu ito ma is sub tilque o tay lor ismo , que apenas es tipu la que h pessoas que tm de obedecer e ou tras que mandam .

    No ohn ismo , tra ta-se de f azer com que pessoas bene ficiem a empresa of erecendo a sua inte lignc ia e os conhec imen tos adqu ir idos a travs da exper inc ia . Para o f azer ,nos anos 1980, introduz iu-se a lgo de tota lmen te novo : os chamados crcu los de qua lidade .

    O s is tema japons f oi rea lmen te uma nov idade em re lao ao tay lor ismo , porque ens inou as pessoas a co laborar sem as obr igar a obedecer dando- lhes prm ios , pe lo con trr io. Quando uma suges to de uma pessoa d lucro , a empresa f az o c lcu lo do dinhe iro que a empresa ganhou com a ide ia e rever te para o traba lhador uma par te desse lucro . ra ta-se de prm ios subs tanc ia is .

    as h uma ba tota : os crcu los de qua lidade pod iam durar horas , todos os dias ,reun indo as pessoas a segu ir ao traba lho para a limen tar a ca ixinha das ide ias . odos

    se envo lviam porque , por um lado , uma ide ia que perm itisse me lhorar a produo va lia- lhes chorudos prm ios , mas tambm porque quem par ticipava ne les tinha um emprego vita lcio garan tido na empresa .

    O s is tema f oi expor tado para a Europa , os EUA, e tc . porque duran te uns tempos , a qua lidade me lhorou de f ac to. as a dada a ltura , as pessoas no Japo traba lhavam tan to que comeou a haver mor tes por ka r sh i [litera lmen te mor te por excesso de traba lho] .

    O q ue o kar shi ?

    uma mor te sb ita , gera lmen te por hemorrag ia cerebra l (AVC ), de pessoas novas que no apresen tam qua lquer f ac tor de r isco card iovascu lar . No so obesos , no so f rem de hiper tenso , no tm nve is de co les tero l e levados , no so diab tic os , no f umam , no so a lco licos , no tem uma his tr ia f am iliar de AVC . Nada . A n ico f ac tor que poss ve l de tec tar o excesso de traba lho . Es tas pessoas traba lham ma is de 70 horas por semana , sem con tar as horas passadas nos crcu los de qua lidade . Ou se ja ,so pessoas que es to litera lmen te sempre a traba lhar . a l param de traba lhar , vo dorm ir . As descr ies de co legas que f oram f azer inqur itos no Japo so a terror izadoras .

    O mundo do traba lho no Japo a luc inan te . H rapar igas que en tram nas f br ica s de e lec trn ica , por exemp lo , e que so utilizadas en tre os 18 e os 21 anos porque aos 21 anos , j no conseguem aguen tar as cadnc ias de traba lho .

    As f am lias con fiam-nas s empresas por esses trs anos , duran te os qua is e las se en tregam de corpo e a lm a ao traba lho . E na lguns casos , a empresa comprome te -se a casar a rapar iga no fim dos trs anos . mesmo um s is tema tota litr io. E ma is : essas jovens traba lham 12 a 14 horas por dia e depo is vo para uns dorm itr ios onde h uma sr ie de gave tes cada um com cama e um co lcho , de itam-se na cama e f echa-se o gave to . ormem ass im , emp ilhadas em gave tes . rs anos em gave tes prec iso ver para crer .

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    Mas u m a co isa de stas no a p lic ve l n a Eu ro p a :

    No , pe lo menos em F rana nunca f unc ionar ia . Ainda no c hegmos l , disso tenho a cer teza .

    Mas acha q ue p od e r ia aco n te c e r ?

    S im , acho que poder amos l chegar . udo poss ve l. as ao con trr io do que se diz,no h uma f a ta lidade , no a mund ia lizao que de term ina as co isas , no a guerra econm ica . per f e i tamen te poss ve l, no con tex to ac tua l, traba lhar de ou tra mane ira , e h empresas que o f azem , com uma verdade ira preocupao de preservar o viver jun tos , para ten tar encon trar a lterna tivas abordagem puramen te de ges to . O que no impede que a tendnc ia se ja para a deses truturao um pouco por todo o lado . difcil res is tir- lhe .

    m a e m p r e sa q ue de f en de ss e os pr in c p ios da lib e rdad e , da igu a ldad e e da f rat e r n idad e co n s egu ir ia sobr ev ive r n o act ua l co n tex to de m e rcado ?

    Ho je , es tou em cond ies de responder pe la afirma tiva , porque tenho traba lhado com a lgumas empresas ass im . Ao con trr io do que se pensa , cer tas empresas e a lguns pa tres no par ticipam do cinismo gera l e pensam que a empresa no s uma mqu ina de produz ir e de ganhar dinhe iro, mas tambm que h qua lquer co isa de nobre na produo , que no pode ser pos ta de lado . Um exemp lo f c il de perceber so os serv ios pb licos , cu ja tica perm itir que os pobres se jam to bem serv idos como os r icos que tenham aquec imen to, te le f one , e lec tr icidade . po ss ve l, por tan to ,traba lhar no sen tido da igua ldade .

    H tambm mu ita gen te que acha que produz co isas boas os av ies , por exemp lo ,so co isas be las , so um sucesso tecno lg ico , podem progred ir no sen tido da pro teco do amb ien te . O lucro no a n ica pr eocupao des tas pessoas

    E, en tre os empresr ios , h pessoas ass im no mu itas , mas h . Pessoas mu ito ins trudas que respe itam esse aspec to nobre . E, na sequnc ia das his tr ias de su icdios , a lguns desses empresr ios vieram ter com igo porque quer iam repen sar a ava liao do desempenho . C omece i a traba lhar com e les e es t a dar resu ltados pos itivos .

    O q ue fize ra m?

    Abandonaram a ava liao ind ividua l a lis , esses pa tres es tavam tota lmen te f ar tos de la . uran te um encon tro que tive com o pres iden te de uma da s empresas , e le con f essou-me , aps um longo momen to de re flexo , que o que ma is od iava no seu traba lho era ter de f azer a ava liao dos seus subord inados e que essa era a a ltura ma is inf erna l do ano . S urpreenden te , no? E a razo que me deu f oi que a ava li ao

    ind ividua l no a juda a reso lver os prob lemas da empresa . Pe lo con trr io , agrava as co isas .

    Nes te caso , tra ta-se de uma pequena empresa pr ivada que se preocupa com a qua lidade da sua produo e no apenas por razes mone tr ias , mas por ques tes de bem-es tar e conv ivia lidade do consum idor fina l. O resu ltado que pensar em termos de conv ivia lidade f az me lhorar a qua lidade da produo e f ar com que a empresa se ja esco lhida pe los clien tes f ace a ou tras do mesmo ramo .

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    Para o consegu ir , f oi prec iso que ex is tisse cooperao den tro da empresa , s inerg ias en tre as pessoas e que os pon tos de vis ta con trad itr ios pudessem ser discu tidos . Eisso s poss ve l num amb ien te de con fiana m tua , de lea ldade , onde ningum tem medo de arr iscar f a lar a lto.

    S e consegu irmos mos trar cien tificamen te , numa ou duas empresas com grande vis ibilidade , que es te tipo de organ izao do traba lho f unc iona , teremos dado um grande passo em f ren te .