Entrevista Ismail Xavier

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    E N T R E V I S T A

    Entrevista com Ismail Xavier

    Interview with Ismail Xavier

    Concedida a Mnica Almeida Kornise Eduardo Morettin

    Rio de Janeiro, 12 de novembro de 2012

    Ismail Xavier um dos mais importantes tericos no campo dos estudoscinematogrficos. Sinal dessa importncia o verbete a ele dedicado no recente

    Dictionnaire de la pense du cinma (Paris: PUF, 2012), organizado por Antoine deBaecque e Philippe Chevalier. Discpulo de Antonio Cndido e de Paulo EmlioSalles Gomes, priorizou em sua extensa e rigorosa produo acadmica a anliseflmica, tomando-a como ponto de partida para entender a sociedade e a histria,perspectiva que confere ao seu trabalho uma dimenso original e produtiva naabordagem das relaes entre arte e poltica.Serto Mar: Glauber Rocha e a estticada fome (1 ed. 1983; 2 ed. So Paulo: Cosac & Na ify, 2007; traduzido para o fran -cs em 2009) eAlegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo, cinemamarginal (1 ed. 1993; 2 ed. So Paulo: Co sac & Na ify, 2012) cons tituem momen -tos luminosos desse mtodo, obras que tambm so fundamentais para entendera cultura brasileira dos anos 1960. O exame meticuloso dos filmes, outra vez en-cetado em O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Nova, Nelson Rodrigues(So Paulo: Cosac & Naify, 2003), convive em seu percurso com trabalhos que

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    delineiam o quadro mais geral do pensamento cinematogrfico e de sua histria,como o caso de O discurso cinematogrfico: a opacidade e a transferncia (4 ed. Riode Janeiro: Paz e Terra, 2008; tra du zido para o espanhol em 2009) e O cinema bra-sileiro moderno (3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006), alm dos livros organiza-

    dosA experincia do cinema (2 ed. Rio de Ja neiro: Graal, 1991) e O cinema no scu-lo (Rio de Janeiro: Imago, 1996). Em sua vastssima obra, cabe destacar tambmuma de suas primeiras publicaes,Stima arte: um culto moderno (So Pau lo:Perspectiva, 1978), que se debrua sobre as teorias de cinema das vanguardas ar-tsticas dos anos 1910 e 1920 e o contexto brasileiro do mesmo perodo, leituraainda atual para aqueles interessados nos estudos a respeito da modernidade, domodernismo e do cinema silencioso brasileiros. Ismail Xavier publicou mais de70 artigos em diferentes lnguas, fato indicativo de sua insero internacional.Muitos deles ainda no foram reunidos em livro, como o caso dos importantesestudos realizados para a revistaLiteratura e Sociedade sobreSo Bernardo (1972),

    de Leon Hirszman, e para a revistaEstudos de Cinema acerca da alegoria e da mo-numentalizao emIntolerncia (1916), de David Griffith, autor central para Xa-vier. Professor da Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Pau-lo, at hoje responsvel pela formao de vrias geraes de pesquisadores e es-tudiosos dos mais diversos temas, diversidade que atesta o gesto do intelectualsempre aberto ao debate e ao enfrentamento do novo nos campos da teoria e dahistria do cinema.

    *

    Para comear, poderia nos falar sobre sua formao, nos anos 1960?

    Tive um percurso de cinfilo que era o clssico naquele momento falo de 1965-66: um interesse que partia da frequncia Cinemateca, foco de exi -bio de filmes e de ciclos especiais, e do cineclubismo, nesse caso dentro da uni-versidade. Naquela poca, no movimento estudantil, todos os centros acadmi-cos tinham muito interesse em vincular poltica e cultura, e ento havia shows demsica, pe as de teatro e ciclos de filmes. Como cineclubista dentro da faculda-de, a Escola Politcnica da USP, tive minha iniciao nesse terreno, quando voccomea a ler livros sobre cinema, acompanhar a crtica na imprensa. Eu e amigosde diversas faculdades tivemos essa sociabilidade de cinfilos e um primeirocontato com crticos de jornais como Rogrio Sganzerla, Antnio Lima e Paulo

    Ramos. Depois veio a abertura da Escola de Comunicaes e Artes da USP, aECA, e o vestibular no final de 1966 para o Curso de Cinema. L, os pri meirosprofessores que tive foram Rud de Andrade e Jean-Claude Bernardet, em 1967;depois veio o Paulo Emlio Salles Gomes, em 1968, e tambm Maurice Capovillae Roberto Santos, que eram dois cineastas j bastante conhecidos. Depois aindavieram outros, como o Jorge Bodansky, que foi professor de fotografia.

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    Tradicionalmente, os pontos de reflexo sobre cinema ao longo do scu -lo XX foram o cineclubismo, as cinematecas e as universidades, nessa ordem. Oscineclubes deram origem primeira vanguarda l dos anos 1910-1920, e criaramo contexto dentro do qual, em 1911, Ricciotto Canudo lanou em Paris oMani-

    festo das sete artes, em que ele montou um sistema esttico no qual batizou o cine-ma de stima arte. At o final dos anos 1920, a relao entre cineclubismo evanguarda foi muito forte. A partir dos anos 1930 comea a haver a questo dahistria do cinema, e algumas cinematecas so fundadas. Elas vieram se somaraos ci neclu bes como foco de exibio e refle xo sobre cinema. Nos anos 1960, asuniversidades entram de maneira mais intensa no campo, e novas geraes, apartir do final da dcada, comeam a ter a primeira experincia de cinfilos jvinculada universidade.

    Como aluno de Jean-Cla ude e Paulo Emlio, defini um perfil de quemtendia mais para o campo da reflexo, da crtica, mais para uma profissionaliza-

    o como professor do que como cineasta. A experincia prtica mais sistemticaque eu che guei a ter enquanto aluno da graduao, alm de exer ccios de direo,foi a da montagem. Com esse trabalho em alguns curtas-metragens, tive expe-rincia razovel como montador. At hoje tenho o olhar de montador. Isso mu i-to ntido. Porque ele d a voc a experincia direta do momento de estruturao,do momento em que o filme se cons tri e so tomadas as decises em relao ar -ticulao entre os planos e sua durao. Voc est ali na moviola hoje, diantedo computador com o diretor do fil me, e um momento de debate muito inte-ressante, muito formador, inclusive. Essa experincia coincidiu com o momentoem que, j formado, fui fazer ps-graduao em Teoria Literria. Paulo Emlio

    dava aula na Letras, FFLCH-USP, que tinha sido o primeiro vnculo dele com aUSP depois da experincia docente na Universidade de Braslia, e, a convite deAntonio Candido, orientou teses a partir do final dos anos 1960. Eu entrei naps-graduao em Teoria Literria na USP em agos to de 1971 e terminei o mes -trado em 1975 e o doutorado em 1980. E a tive a experincia paralela em NovaYork, entre o mestrado e o doutorado na USP, quando comecei um doutorado naNew York Uni ver sity que s terminei em 1982.

    Quando exatamente voc foi para Nova York? Em julho de 1975, logo de pois de termi nar o mestrado. Eu tinha sido

    aprovado na bol sa Fulbright, que foi o fator que definiu o meu caminho, que, na-quele momento, tambm poderia ter sido a Frana. Em Nova York encontreicondies extraordinrias, pude estudar muito e, entre setembro de 1975 e se -tembro de 1976, escrever O discurso cinematogrfico, que foi pu blicado em 1977.Minha tese de mestrado tinha sido uma anlise da histria da crtica, na Frana eno Brasil, nos anos 1920, e resultou no livroStima arte: um culto moderno, publi-

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    cado em 1978. Sa do Brasil, portanto, com um mapeamento do campo terico jfeito. E como profes sor iniciante, entre 1971 e 1975, eu tinha vivido aquele mo-mento de apogeu do estruturalismo, na Teoria do Cinema (com a semiologiafrancesa, Christian Metz), na Teoria Literria de ins pirao lingustica (lembre-

    mos Ferdinand de Saussure), e na Antropologia (com Claude Levi-Strauss).Eram focos de irradiao de um pensamento sobre as cincias humanas quemarcou a ECA, mas que foi examinado de um ponto de vista crtico nos cursos deAntonio Candido e outros professores de Teoria Literria da USP, no momentoem que eu fiz o mestra do. Em Nova York, tive contato com outro terreno de refle -xo so bre cinema, que era totalmente diferente do contexto francs. Tudo issogerou uma acumu la o de dados e de ideias que esto presentes nos meus doisprimeiros livros.

    No final de 1977, volto dos Estados Unidos com tudo cum prido no dou -torado, ex ceto a tese. Foi uma experincia fantstica, porque a NYU no Village,

    no sul da ilha, e o Departamento de Cinema era for ma do por um conjun to deprofessores bastante variado, com um ncleo muito forte ligado produo dounderground de Nova York, produo do cinema experimental americano liga-do s artes plsticas. O conjunto daquela experincia de vanguarda gerou oAnthology Film Archive, dirigido pelo Jonas Mekas, que era um dos lderesdesse movimento. Se voc quisesse assistir vanguarda americana de 1947,quando Maya De ren co meou a fazer seus filmes, at os anos 1970, voc ti nhatudo l. E eles tinham a melhor biblioteca de cinema da cidade. A universidadetinha uma boa biblioteca, o Museu de Arte Moderna tinha uma boa biblioteca,mas a biblioteca do Anthology no s era excelente, como era muito bem organi-

    zada e facilitava a pesquisa. Foi isso que tornou possvel O discurso cinematogrfi-co, escrito em um ano, dada a encomenda j existente quando eu sa daqui, feitapela Editora Paz e Terra, numa coleo dirigida pelo Jean-Claude. Cumpri oacordo de fazer o livro, num momento em que, digamos, algum poderia dizer:No, agora que ele no vai fazer. Jean-Claude insistiu, e depo is as condiesde Nova York me permitiram. Nada como ser bolsista...

    Voltando ao momento anterior sua sa da do Brasil, qual foi a importnciade Paulo Emlio e Antonio Candido na sua vida intelectual e no seu pensamento?

    Paulo Emlio era a maior referncia, podemos dizer, da crtica no Bra-

    sil, poo de erudio, inteligncia e sagacidade poltica. Um privilgio t-locomo orientador e amigo. Minha tese de mestrado dependeu da biblioteca deledepositada na Cinemateca Brasileira, mais do que tudo para o estudo dos france-ses ele tinha morado na Frana muito tempo e trouxera o que eu precisava. Eu otive com orientador no perodo de transio em que ele ingressou no que ironica-mente chamava de fase jacobina, ntida a partir de 1972, quando ficou clebre a

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    sua opo pela pesquisa exclusiva do cinema brasileiro. Quando comecei em1971, ele aceitou at que eu fizesse essa pesquisa em torno da teoria na Frana;depois que, gradativamente, entrou a parte brasileira. Ele foi muito sagaz namaneira de ir me despertando interesse e mostrando a importncia da discusso

    da crtica brasileira dos anos 1920. Devo ao dilo go com ele esse deslocamentoque se tornou decisivo na elaborao da tese. Alm disso, o contato direto comele tinha uma dimenso poltica muito clara, dado que a poltica era a matriz fun-damental das suas preocupaes. Isso entrava perfeitamente dentro do espritode quem tinha estudado nos anos 1960 e cuja cinefilia tinha sido, desde o incio,vinculada poltica. O dilogo com ele foi extraordinrio.

    Ao mesmo tempo, a ps-graduao em Teoria Literria me trouxe a opor-tunidade de assistir aos cursos do Antonio Candido e de outros professores, que fo-ram fundamentais de todos os pontos de vista. As pessoas tm uma ideia, meio distncia, de que o Antonio Cndido seria avesso teoria, dado o seu estilo de ensa-

    sta que no ostenta a sua formao terica extraordinria. Pois bem, os dois cursosque fiz com ele foram de Teoria Literria no sentido mais pleno da palavra. Um so-bre a ca tegoria do pon to de vista ou do foco narra tivo, que funda mental em todo omeu trabalho e marcou profundamente a minha formao, tanto que est l noSerto Mar, est l noAlegorias e est nas minhas anlises de filmes em muitos arti-gos. O foco narrativo uma categoria central na construo da forma cinematogr-fica ou literria, em se tratando de narrativa. O outro curso foi uma histria da Teo-ria Literria no sculo XX,comeando pelos formalistas russos e chegando a Jac-ques Derrida. E o fundamental foi aprender a colocar a teoria como um instru-mento que se mobiliza a partir de uma certa problemtica trazida pelo filme em

    questo, em funo das demandas trazidas pela anlise, e no como um movimen-to de aplicar mecanicamente ou fazer da obra uma ilustrao de um ponto de vistaterico. A gerao da revista Clima, o pessoal que tinha fundado a revista l no in-cio dos anos 1940, quando ainda eram estudantes da Faculdade de Filosofia daUSP, eles todos tinham em comum um trao, que era o da produo de um ensas-mo em que no havia ansiedade de exibir referncias tericas como pura citao, svezes ornamental. Vale a prtica da discrio conceitual numa argumentao quedeve se impor pela pertinncia e coerncia na anlise do problema em pauta, sendoque a sua sintaxe e a maneira de voc condu zir o tra ba lho que deve definir afi nalde contas o que h de re levan te conceitualmente, e o que cabe citar, sem o fetichedos grandes no mes ou conceitos da moda. Isso eu tra go comigo at hoje e ponhoem prtica na conversa com meus orientandos. Na universidade, h incontveisteses que comeam com introdues tericas em que h aquela ansiedade de mos -trar o que se leu; e depois, quando se vai para a argumentao, a gente v que aqueledebate terico no tem importncia, porque a pessoa ou no assimilou, ou, efetiva-mente, aquilo era, como eu disse, uma coisa meio ornamental.

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    Enfim, no meu caso houve essa formao muito forte de ambos, cada uma seu modo, por que no so dois pensamentos idnticos, Antonio Candido ePaulo Emlio. Eles tm muita diferena, mas tm em comum essa postura de tercomo trao fundamental a ideia do ensaio que explora uma problemtica que

    voc define e que vai se cons tru indo atravs de um jogo de in ter rogaes, quepode passar por conceitos que so fundamentais, mas desde que esses conceitosse mostrem efetivamente produtivos na lida com aquilo. Quem l Antonio Can-dido v isso com toda clare za. O prprio clssicoFormao da literatura brasileiraformula o conceito de sistema literrio, que fundamental, mas em nenhum mo-mento aquilo vem como uma priori a ser ostentado a cada captulo. Pelo contr-rio. Quer dizer, existe todo um processo de construir. A maneira como ele enten-de a formao da literatura brasileira, a maneira como ele entende a noo de for-mao, o que sistema literrio, qual a ideia do dilogo entre autores, obras epblico, como que isso se deu entre o sculo XVIII e o fim do sculo XIX no

    Brasil, em corre la o com a histria do pas e com experincias literrias de pro-cedncias distintas. medida que voc v a coisa em movi mento, se fazendo, que voc entende efetivamente o que est em pauta ali, como que ele est pen -sando. E ele tinha uma coisa fundamental, que era assim, metafrica a ideiade que ns, a crtica de arte, de cinema, de literatura, somos como artesos queelaboram seus ensaios a partir de inspiraes tericas diversas, articuladas den-tro de um princpio de coerncia e pertinn cia na lida com a problemtica quevoc escolhe, na busca de resposta para as perguntas estas so decisivas que asua relao com a obra capaz de gerar. Toda teoria tem de ser testada na lida como objeto, sua potncia de explicao tem de ser demonstrada na anlise. A purainscrio do seu trabalho numa metodologia no garante nada. Claro que a teoria fundamental, mas as intuies tambm so, pois esto presentes na construode hipteses, na per cepo do objeto e na interao com ele.

    No caso de Paulo Emlio, a formao que voc teve passava pelas aulas dele, masdevia passar tambm pelos tex tos que ele es crevia no Suplemento Literrio doEstado de S. Paulo. E o grande livro dele nesse sentido, que talvez fosse umaexposio de mtodos, o Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte, ttulo com quefoi publicada em 1974 a tese que ele defendeu em 1972...

    Eu era orientando dele e li a tese sobre Humberto Mauro na poca dadefesa, em 1972. Acompanhei o processo. Ele brincava muito comigo, dizia:No, esse negcio de semiologia no interessa. Vocs, tericos, e tal... Eu eraoterico. Mas des de o final dos anos 1960 eu lia os tex tos dele. No que tivesseacesso aos artigos mais antigos noSuplemento Literrio, pois no estavam compi-lados. Mas tinha acesso a muitos textos, em especial aos que estavam sendo pro-duzidos naquele perodo. Alm do mais, ele tinha uma presena muito forte nas

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    situaes de aula e de conferncia, que tinham uma influncia muito grande. Euvivi o impacto do ensaio Cinema: trajetria no subdesenvolvimento.

    No mais, ficou tambm muito clara a importncia da minha passagempela FFLCH como um todo. Foi fundamental, naquele perodo, sair do contexto

    de Cine ma e Comunicao e entrar num curso de Letras. Isso me deu tambmuma ponte para outros departamentos da faculdade, como Histria, como Filo -sofia. Entre 1971 e 1974, por exem plo, eu assisti a um curso por ano da MarilenaChau, como ouvinte. Eu conheci Marilena e tive contato com toda uma srie dereflexes crticas sobre aque le momento estruturalista (que me formara naComunicao), a partir da Histria da Filosofia. Sem querer dizer que tenho do -mnio sobre os percursos que ela fazia em aula, o pensamento dela me ajudou apensar as teorias do cinema.

    Voltando ao Antonio Candido, seus cursos tiveram uma incidnciaenorme na minha lida com uma bibliografia que me acompanharia nos meus tra-

    balhos futuros. No curso de histria da Teoria Literria, passvamos pela estils-tica e por Erich Auerbach, um autor pelo qual ele tem enorme admirao. Todosns lemos oMimesis e alguns outros ensaios, que esto em outros contextos. E aleitura do Auerbach foi fundamental, porque foi ela que me estabeleceu umaponte para pensar o Glauber, e tambm para ir formulando um pensamento so-bre determinado tipo de viso da Histria construda a partir de um esquemaalegrico, que o que o Auerbach demonstra muito bem quando analisa a noodefigura e a ide ia de tempo histrico que foi trazida pelo cristianismo em opo si -o, digamos assim, ao mundo clssico, que tinha ou tra no o do tempo e ou tranoo da alegoria. Auerbach faz essa anlise a partir do estudo das figuras de lin-

    guagem (a retrica) e em conexo tambm com a leitura crtica que os filsofos fi-zeram da mitologia. A mitologia perde a condio de verdade factual referida aopassado. Afirma-se a postura de tratar as suas narrativas como elaboraes queguardam um sa ber, no o da verdade literal do fato narrado, mas um saber que seconstitui a partir da interpretao do que est posto pela narrativa. Em geral, essainterpretao leva a um conceito. Prevalece assim a ideia de que a narrativa trazsubjacente um conceito fundamental, de que ela traz ensinamentos que a tradi -o nos lega e que definem uma matriz da cultura que se assimila desde que sesaiba interpretar.

    No cristi anismo, posta a relao entre a Bblia judaica e os Evangelhos,

    pensa-se numa verdade histrica, ou numa concepo da lgica que marca o movi-mento da Histria, que se constri ao se estabelecer uma relao entre dois fatoshistricos, os quais, apesar de estarem separados por uma certa distncia no tempoe de no estarem unidos por uma relao causal, esto vinculados porque um fatoprefigura o outro, que vir para complet-lo, para cumprir aquele anncio feito.Quer dizer, a relao tem um aspecto proftico. Por uma determinada semelhana,

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    voc tem a relao entre dois fatos que so histricos, no deixam de ser histricos,e que so conectados por uma lgica, ou por um plano. Assim, podemos ver a ma-neira como o cristianismo insere a vida de Cristo como realizao de uma profeciaprefigurada na Bblia judaica: trabalhando com essa ideia de que fenmenos his-

    tricos estabelecem uma lgica do tempo atravs de um jogo de analogias (sim,porque a alegoria tem um substrato analgico), que se define que a experincia hu-mana no tempo tem sentido e caminha em direo ao telos, salvao. Essa teleolo-gia histrica vai se fazendo atravs dessas relaes, de tal modo que a alegoria no mais uma relao entre uma narrao e um conceito digamos abstrato, um concei-to atemporal, como na interpretao que os filsofos gregos fizeram, no sculo Va.C., de que a figura de Saturno comendo seus prprios filhos era uma alegoria dotempo; no se trata mais de pas sar de uma histria e cair num conceito, e sim de fi-car na histria e estabelecer uma relao entre os fatos. Essa viso crist se afasta daideia do tempo circular e postula que h uma direo que leva a um final, a salva-

    o. uma viso mtica que teve o seu papel na instituio de uma noo do tempovetorizado, como o desdobrar de um ca minho que leva a algum lu gar, noo essaque os historiadores sabem que tem a ver com o processo pelo qual a ideia de hist-ria se desenvolveu na cultura ocidental.

    Fao essa referncia rpida passagem do conceito de alegoria da tradi-o clssica para o conceito do figural cristo porque essa formulao teveenorme presena em meus trabalhos, ao lado da formulao do problema daalegoria feita por Walter Benjamin a partir da anlise do drama barroco. Estaltima que na verdade estava muito mais em pauta naquele momento que es-tva mos vi vendo, por que foi a partir de 1968, 69 que os textos do Ben jamin co-

    mearam a ser traduzidos no Brasil liga-se a uma noo do tempo histricodistinta da do cristianismo. Ela privilegia a ideia da histria como um movi-mento de construo e destruio cujo sentido depende da posio que vococupa no processo, sendo clssica a formulao de que a histria narrada a dosvencedores. Para os vencedores, a vitria faz sentido, corresponde a um pro-gresso numa experincia do tempo tomada como um caminho em direo aomelhor; para os vencidos, a histria uma catstrofe, colapso de uma cultura,de seus valores, e dos humanos que os encarnam. Da a crtica de Benjamin noo de progresso e ideia de continuidade linear na histria; referida met -fora do trem, essa ideia de uma marcha para a frente levou Benjamin a dizer quea ruptura fundamental feita por quem puxa o freio, gera a descontinuidade, eno por quem pensa a revoluo a partir de uma acelerao de processos emcurso. A formulao dele tem como corolrio o pensamento de que o impulsorevolucionrio se liga ao salto no passado, recuperao da memria do que foiabortado, das aspiraes sufocadas pela consolidao do processo que vingouna constru o do presen te que se com bate.

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    Estou resumindo de forma esquemtica, mas essa noo da catstrofe edo desencanto barroco como um sentimento paradigmtico que se repe na his -tria foi uma referncia fundamental, embora no exclusiva, que inspirou a mi-nha anlise de Terra em transe no primeiro captulo deAlegorias do subdesenvolvi-

    mento, onde tra to das diferentes formas de figurao do tempo como catstrofepresentes nos filmes do final da dcada de 1960.

    Seu livro Alegorias do subdesenvolvimento: Cinema Novo, tropicalismo,cinema marginal,de 1993, um desdobramento da tese Allegories ofunderdeveloppment: from the aesthetics of hunger to the aesthetics ofgarbage, que voc apresentou New York University em 1982?

    Sim. Minha tese para o doutorado em Nova York, terminada cincoanos depois de eu ter voltado para c, a matriz doAlegorias do subdesenvolvimen -to. L j aparece, claramente, essa convivncia entre duas noes do tempo: o

    tempo te leolgico proftico, que o tempo do caminho da salvao, e o tempo ca-tastrfico do drama barroco, que a matriz da construo do conceito de alegoriaque o Benjamin faz a partir da anlise dos dramas do fim do sculo XVI e do s-cu lo XVII, do te atro ale mo e de referncias a Shakespeare e Caldern. Taisobras de tea tro cons troem uma viso do po der e da temporalidade da experinciahistrica como pautados por um caminho em direo ao colapso de projetos, dedinastias, de reinados. No h processo teleolgico construtivo de um futuromelhor, tal como observado pelos vencedores, que veem na histria a confirma-o dos valores de que eles prprios so os portadores.

    O problema do Benjamin escovar a histria a contrapelo, com a ideia de

    recuperar aquilo que foi submerso pela teleologia construda pelos vencedores;recuperar na experincia passada os momen tos em que houve um embate quedeve ser retomado. Fazer isso inter vir no tempo presen te. A revolu o no ,dentro da continuidade, produzir o futuro. A h implicaes polticas, porqueele vai fazer a crtica da social-democracia como uma tentativa de fazer esse tipode projeto de revoluo, pautado pela ideia de continuidade, de alguma coisa quevai se acumulando e engata num certo fluxo. No. Para ele, a revoluo um mo-mento de descontinuidade radical. Como ele diz, o recuo em face do presente, ano a identificao com ele, que faz voc dar o salto para flagrar um momentopassado em que voc reconhece configuraes que tm sua semelhana com o

    que voc conhece da sua prpria poca. Da por que o Barroco s revalorizado apartir de um certo momento, a partir dos sculos XIX e XX, quando a ideia decrise da cultura e crise de uma srie de valores est presente. H algo na configu -rao atual que faz as pessoas enxergarem o que antes no era possvel ver naque-le passado. Por outro lado, ele lana outra luz na interpretao da experinciaatual, apesar de aparentemente distante, uma vez que h uma conexo entre os

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    dois momentos que se expressa na imagem dialtica feita do cotejo entre doistempos: passado e presente. Essa imagem produtiva para pensar transforma-es. Ento, estando no presente, para entender o sculo XVII, voc no tem querefazer passo a passo o caminho que o leva continuamente do sculo XVII ao s -

    culo XX. Voc pode dar o sal to direto perfurando esse intervalo de tempo nummovimento produtivo, por que no baseado na ideia de continuidade, de suces-so passo a passo. Para ele, o princpio por excelncia o da descontinuidade, dosalto.

    Na hora em que eu vou para oAlegorias, eu estou com essas duas matri-zes, a matriz do conceito de figu ra, de tipologia crist, e a da catstrofe, ou seja, ado mecanismo proftico do caminho rumo salvao e a do drama barroco. E eutive de acrescentar outras referncias, para dar conta da alegoria da Pop Art e daalegoria de obras desconstrutivas de teor catastrfico na forma. No livro, eu dei-xo explcito vrias ve zes que o importante saber que o conceito de alegoria tem

    uma histria, que antiga e requer um exame mais aprofundado. No que ns te-nhamos que alcanar um nvel de erudio capaz de abarcar milnios de histriapara explicar o conceito de alegoria; o essencial termos, minimamente, umanoo dos pon tos-chave, ao longo desses sculos todos, em que a noo de alego-ria foi retrabalhada e transformada, at o nosso tem po. Por exemplo, a ideia dedescontinuidade pode se manifestar num princpio de colagem, tpico do sculoXX, pelo qual determinado tipo de obra contempornea a ns pode ser trabalha-da a partir do conceito de alegoria; mas no porque seja alegoria crist ou seja ale-goria do drama barroco, e sim porque uma alegoria baseada no fato de que vocentende a totalidade como coleo, e no como organicidade. A ideia de quevoc tem um con jun to dis creto de ele men tos que formam uma cole o, ou, sevoc quiser, uma constelao, que tem que ser pensada a partir da descontinuida-de presen te na re la o entre eles. Tan to que o pr prio Benjamin faz essa ponte,porque ele mesmo trabalha com a ideia da coleo, esprito de coleo, como do -tado de uma dimenso alegrica fundamental, que permite trabalhar a colagem emuitas formas de instalao, algo fundamental na arte moderna. E mesmo o pro -blema do cubismo pode en gendrar tais re la es a partir dessa questo da descon-tinuidade. Toda a crise do sujeito orgnico e a ideia do sujeito como estilhaadoou como dotado de descontinuidades internas e contradies, tudo isso passa aser um dos aspectos para se pensar a relao entre o conceito de alegoria e aexperincia contempornea do sculo XX.

    NoAlegorias do subdesenvolvimento voc tem tudo isso, enquanto que noSerto Mar prevalece o Glauber deDeus e o Diabo na terra do sol, que Auerbachpuro: teleologia da histria, relaes apoiadas na noo de figura e no alegorismocristo. Ento vem aquela questo, que eu digo l no texto: havia um pensamentodominante que dizia queDeus e o Diabo era um filme marxista, porque era uma

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    crtica da religio. Mas no isso. mais complicado. Porque o Glauber faz ca-minhos cruzados, de tal maneira que a crtica feita a um determinado momentoda conscincia, seja do cangaceiro, seja do messianismo, na histria do serto,implica uma postura crtica em relao a essas figuras, mas no uma postura cr-

    tica em nome de um materialismo que definiria um processo de desalienao ge-rador de uma lucidez materialista revolucionria. No isso. A lgica da histrianoDeus e o Diabo na terra do sol pautada por essa matriz crist, sem a qual ela nofunciona. Todo o esforo da minha anlise do Deus e o Diabo este: mostrarcomo, no Glauber, lutas de classes e referncias marxistas convivem com essealegorismo figural. por isso que a tese se chamavaNarrao contraditria. Por-que o Glauber sempre viveu dessas contradies, que eu acho que so muito pro-dutivas no trabalho dele como cineasta. Esse lado da luta de classes, do poder,est pre sente e convive com um grande esquema que ele tem do tem po, que pautado pela teleologia e pela profecia:o serto vai virar mar, o mar vai virar ser to.E isso tudo mediado por um dilogo com a cultura popular. Porque um dos pon-tos de vista do filme, um dos aspectos da narrao, o do cantador do cordel. Masno o ni co, pois convive com a msica de Villa-Lobos, com o traba lho da c-mera e outros recursos estticos que se tensionam na produo de um efeito final.

    Eu vejo o cinema como lugar onde h um conflito entre diferentes pers -pectivas que vo conviver ali. E acho que um dos artistas brasileiros que mais in-tensificaram essa idia de que a criao realmente um processo pelo qual vocfaz convergir diferentes referenciais, que vo en trar em convvio e con flito, oGlauber. O mesmo ocor re com Terra em transe, que j uma obra que tem comoreferncia maior o drama barroco, tal como estudado por Walter Benjamin, nosentido pleno da palavra, onde encontramos as figuras do caminho em direo catstrofe. Ao mesmo tempo, o filme tem alguns aspectos de anlise da questodo gol pe de Esta do, a partir de luta de classes, que define o lado, digamos, mate-rialista do Glauber. Ento, o Glauber leitor da Bblia e o Glauber barroco convi-vem com essas matrizes de carter poltico mais contemporneo e com a presen-a do marxismo. Vemos essas convergncias atA idade da terra, que tambmmistura a questo mtica com a questo de uma anlise do momento, a partir decondies muito claras.

    Para resumir, o fundamental no ser apressado e no simplesmente verBenjamin em qualquer trabalho que se analisa a partir da noo de alegoria. Ele fundamental numa determinada formulao desse conceito, e foi assim umgran de mo mento de abertura de todo um con tinen te para pensar a arte moderna.Mas a histria da alegoria milenar. E ne cessrio ver diferentes tipos de pro -postas de cineastas, a partir do que os fil mes mesmo solicitam do analista. Eu noposso, por exemplo, pegar o Tonacci e trabalhar com o conceito benjaminiano de

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    alegoria. No isso. outro conceito. Eu no posso pegar o Sganzer la, que pop,que essa colagem, que a constituio da narrativa a partir de citaes, a partirda constelao de referncias usadas com muita ironia antropofgica na figura -o do abismo, e dizer que barro co como o Terra em transe.

    importante aqui lembrar Fredric Jameson, que tem um texto muitointeressante sobre o que fazer histria literria. Est l noMarxismo e forma, naparte final, depois dos captulos sobre Sartre, Lukcs, Adorno, Ernst Bloch,Benjamin, enfim vrios pensadores do sculo XX. Ele faz ali uma reflexo pr-pria sobre a anlise dialtica e diz o seguinte: fazer histria pegar uma categoriaformal (a a centralidade da forma) e ver como, ao trabalhar aquela categorianuma srie de obras, as transformaes formais das obras vo ao mesmo tempoevidenciando as transformaes que podem ser pensadas a partir daquela cate-goria e caracterizando a relao entre cada obra e sua conjuntura histrica, demodo a se lar o nexo entre o mo vimento histri co na for ma e o mo vi mento da his -

    tria social. Jameson faz isso, por exemplo, na literatura francesa, de Balzac aZola. Voc tem Balzac, Stendhal, Flaubert e Zola. Voc tem a a categoria do rea-lismo, que vai mudando de sentido, porque o realismo de Zola no a mesmacoisa que o do Flaubert, nem o do Stendhal nem o do Bal zac. Ento voc pegauma categoria e v como as diferentes dimenses que essa categoria vai adquirin-do esto relacionadas e interagindo diretamente com o processo histrico maior.

    H a questo do melodrama tambm, que ou tro ponto central dentro do seutrabalho.

    . O melodrama exatamente a mesma coisa. uma categoria (gnero

    dramtico) que tambm tem uma histria, desde o momen to em que se ins tituiuno teatro francs, depois da Revoluo Francesa. Os italianos chamam a pera demelodrama, tambm. Na Itlia, essa referncia especfica pera convive com oconceito de melodrama que a gente usa, que quase todo mundo usa, referido tradio teatral de dilogos em prosa e em fala cotidiana construda naFrana, na Inglaterra, na Alemanha e em outros pases como um gnero que seconstitui na modernidade, portanto um gnero que distinto de todas as outrasexperincias teatrais anteriores, seja a tragdia grega, sejam as formas do teatromedieval, do drama barroco, do teatro clssico francs. Nos ltimos 200 anos, omelodrama tem uma histria que chega at ns com muitas variantes. E um dos

    momentos-chave de sua gnese se deu ainda no sculo XVIII, no trabalho de au-tores como Diderot, na Frana, Lessing, na Alemanha, e Lillo, na Inglaterra. Olivro do Peter Szondi, Teoria do drama burgus, nos mostra de que maneira se ins -titui, no sculo XVIII, a noo do drama burgus, com suas premissas de valori-zao do mundo privado da famlia, que vo se desdobrar, em sua verso popular,no melodrama teatral. No sculo XX, entram nesse jogo o cinema, o rdio e a TV,

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    setores de uma indstria cultural que, em ver dade, come a no teatro deboulevardfrancs, que tinha um mercado muito vigoroso e se desenvolvia segundo concei-tos que voc, depois, vai encontrar na Broadway, em Nova York, ou na televiso.Cla ro que no se pode dizer que o melodrama do Pixrcourt, que o autor can-

    nico do melodrama de 1800, igual ao melodrama da novela da Globo. No. Socoisas completamente distintas, embora tenham uma srie de premissas co-muns. Como tambm no se pode dizer que, em Hollywood, Griffith no inciodo sculo igual aos melodramas dos anos 1950 do Douglas Sirk, do Minnelli oude outros cineastas americanos. Hollywood tambm tem na sua histria cone-xes a partir das quais voc pode, pegando a categoria do melodrama, fazer umahistria do cinema industrial e das conexes dele com a histria americana e comtodo o de bate pol tico que em cada mo men to se conectou com o cinema.

    Ento, seja a alegoria, seja o melodrama, voc tem categorias muito am-plas que tm de ser pensadas como categorias dinmicas, que se transformam

    historicamente. E essas transformaes histricas fazem o elo entre o pla no for -mal da construo da arte, do teatro, do cinema, da literatura, com os mo men toshistricos vividos. Jameson explicita isto claramente no que chama deconstructodialtico, sendo a ideia deconstructo emprestada Weber. Voc cria um conceito ouincorpora um conceito que est dado a e, no seu ensaio, voc trabalha uma anli-se desse conceito, acoplada anlise das diferentes manifestaes que ocorremnuma determinada srie, e a consegue construir a conexo entre a histria for -mal das obras enquanto resposta a determinada conjuntura histrica. Essa formatem um sentido e tem que ser interpretada; no fun do, um enunciado de cartersocial e poltico, claro.

    H uma ques to, que j est expli ci ta da na sua re fle xo sobre esses conceitos e ahistria das formas, que aparece nos seus dois livros, o Serto Mar e o Alegorias dosubdesenvolvimento, que me parece muito importante para um pblico leitor quevem das cincias humanas e que no tem a mesma experincia e o mes mo repertrio.Eu me lembro, particularmente no Serto Mar, de uma frase que, salvo engano, mais ou menos assim: O que im porta o que bate na tela. um pon to de par ti dametodolgico em relao aos filmes. Para o historiador essa afir mao muitoimportante, porque dialoga com a pr pria concepo que ele tem do filme como fonte.No seu tra balho, a his tria sem pre est presen te de diferentes maneiras e em diferentes

    momentos, com Jay Leyda ou com Paulo Emlio, no livro Stima Arte: um cultomodernoou nos dois livros que acabei de citar. E eu acho que existe um pressuposto,uma dimenso histrica nesse sentido, que a anlise que voc prope em relao aosfilmes. Eu queria que voc falasse um pouco sobre isso.

    Voc citou Jay Leyda, que tambm foi outro grande dilogo formadorpara mim. Ele era da mesma gerao do Paulo Emlio. At tiveram uma relao

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    de convvio na Frana, num determinado momento. Era um historiador descon -fiado da teoria, como o ou tro. Para ele, a questo da obra era a sua relao com oautor, com o projeto que a engendrava. Por isso escreveu o livroEisenstein atwork, quer dizer, Eisenstein trabalhando. Ele escreveu tambm biografias de

    grandes figuras da literatura americana Herman Melvillle e Emily Dickinsonso dois exem plos e escreveu oKino: histria do cinema russo e sovitico, que erauma histria dentro de um padro de quem realmente, tal como Paulo Emlio, ti-nha constitudo seu pensamento antes daquele teoricismo que se constituiu nosanos 1960, 70, do qual eu era um pouco filhote, antes dos dilogos que foram es -senciais para me colocar numa crise produtiva. J observei que Marilena Chautinha sido muito forte nessa direo, pois virou ao avesso minha formao no in -cio dos anos 1970, trazendo outra maneira de pensar os problemas da fenomeno-logia e da his tria. Todas essas influncias somadas, restou uma certa maneira depensar a arte, a literatura, o cinema, com pri vil gio para o contato com os objetos,

    a interao direta que desafia as grandes sistematizaes tericas, no para des-cartar a teoria mas para coloc-la em movimento, pois a teoria essencial. O va-lor que isso tem para mim est expresso em Odiscurso cinematogrfico, curiosa-mente um livro de apresentao de teorias. No h ali anlise de filme nenhum. uma apre sen tao dos conceitos e a rela o que houve, den tro de um de termi -nado perodo no sculo XX, entre diferentes maneiras de conceituar a experin-cia do cinema. O decisivo tentar um equilbrio entre esses movimentos, o doconceito e o da sensibilidade gerada na interao direta com a obra.

    Em termos da relao entre cinema e histria, voc toma, por exem plo, otrabalho de Marc Ferro e mostra como a idia de contra-histria s possvel sevoc enxergar na tela aquilo que no est previamente construdo por toda a eru-dio histrica, pela acumulao de um conhecimento historiogrfico e suas ten-dncias hegemnicas num dado momento. O valor do documento, a imagemcomo documento no para confirmar ou ilustrar um pensamento, mas paragerar um desafio para o olhar, que deve ser capaz de detectar ali, naquele docu-mento, evidncias de uma outra coisa que no estava posta de antemo. Algocontrrio, s vezes, ao que se poderia supor. A rela o com o ob je to vai muitoalm da formao terica, vai muito alm de uma ciranda de conceitos; ela passapela forma como cada um de ns internaliza tudo isso e se pe inteiro diante doobjeto, para poder fazer um diagnstico, mobilizando toda a sua formao con-ceitual e sensibilidade, intuio. Deparar-se com um filme, uma obra literria,

    um quadro, uma pea, e mesmo com a prpria conjuntura social vivida, enfren -tar o desafio de perceber certas particularidades e formular as perguntas que per-mitem desenvolver uma anlise a partir de um convvio que tem aspectos que ul-trapassam os guias que a teoria te d. E nesse sentido o Paulo Emlio fundamen-tal. A famosa frase extrada daquele artigo Cinema, amor e revoluo umexemplo extraordinrio. Ele comea falando em teorias que respeita e admira,

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    lembrando que posso me apoiar na teoria de Stendhal para pensar a questo doamor, me apoiar na teoria marxista para pensar a revoluo, e usar todo o ar ca-bouo de teorias do cinema para pensar os filmes. Mas isso no tudo nem o de -cisivo, pois diante de um fato novo, dian te do pre sente, di an te da minha conjun -

    tura, eu vou ter que responder aos de sa fios do amor, do cinema e da revo luo apartir de solues que eu for capaz de inventar, pois cada conjuntura gera desafi-os que, ao invs de serem lugares de aplicao de teorias, so lugares de proble-matizao. E nessa interao entre a conjuntura e a tradio terica que voc vaiinventar uma forma de equacionar que esteja altura dessa situao vivida, sejano pla no da esttica, seja no plano do pen samento pol tico, seja no plano enfimda filosofia. Eu acho que esse artigo dele muito bom nesse sentido porque, naverdade, ele est falando da relao entre vida, arte e poltica. So os trs polos.Na vida, na poltica e na relao com a arte, essa dimenso de ter sensibilidadepara, internalizando toda uma tradio terica, no ficar preso a ela dogmatica-mente, no ficar cego para os aspectos novos que esto sendo vividos e ser capazde saber que voc est sempre apostando e arriscando. E voltando quela ideia doarteso, do Antonio Candido, tudo converge, no ? Pois se trata de saber esco-lher quais so os recursos do pensamento que voc deve usar para cada nova si-tuao. Claro que dentro de um princpio de coerncia e dentro de uma proble-mtica que se define porque voc tem perguntas que orientam a sua pesquisa. Asperguntas tm valores por trs delas. No existe pergunta que voc faa que notenha uma valorao implcita.

    Em seu tra balho voc produz an li ses que acabam sempre tecen do al gum tipo deconsiderao, que levam a um certo diagnstico. Isso ocorre tanto no Serto Mar, em

    relao ao momento em que aquelas obras foram fei tas, como em outros textos seus,como na anlise que voc faz do O que isso, companheiro?.Mesmo no prefciodo Alegorias, que aca bou de ser relanado, voc tem sempre esse movimento de tentarpensar um pouco o quadro geral da produo cinematogrfica a partir das anlisesque so dedicadas a uma outra ou ou tra obra; h sempre um esfor o de bus car essasintonia com a conjuntura. Isso ocorre sobretudo nos grandes painis que voc fezsobre cinema moderno, sobre o cinema dos anos 1990 e so bre a produo dedocumentrios brasileiros, publicado este ano na New Left Review.

    Os painis so sempre uma zona de risco muito grande, porque, justa-mente pelo fato de serem pa inis, eles tm uma dimenso de passar por cima de

    muitas particularidades da situao, que so mais complexas do que aquilo queeles podem mostrar. E a voc tem um imperativo de levar em conta o gnero detexto. Anlise de filme um gnero de trabalho que tem as suas exigncias, temas suas premissas, tem a sua produtividade. Quando voc se dispe a fazer um pa-norama capaz de definir linhas de fora que esto presentes num determinadoperodo histrico, como me aconteceu seja no meu livro O cinema brasileiro mo-

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    derno, que voltado para o perodo da ditadura, fala dos filmes e organiza umcampo, seja no O discurso cinematogrfico,que tem aquela introduo pedaggicade toda uma s rie enorme de teorias, o que eu acho fundamental deixar claropara o leitor qual a escolha que voc fez ao conduzir aquele painel; porque voc

    sabe que fez uma escolha que tem pontos cegos, pontos de que ela no d conta,nem poderia mes mo dar. Agora, o importante que o leitor perceba quais so osprincpios que norteiam a escolha feita e as perguntas feitas. Idem com relao anlise de filme.

    Ento, digamos assim, o grande ideal, o grande desejo conseguir, res-peitando as diferentes dimenses, faz-las con viver, no no mesmo texto, masnum percurso mais amplo que a gente faz, que a relao en tre a teo ria, a crtica ea histria. Elas formam trs polos, se voc quiser, um tringulo que cada um dens enfrenta. Queira ou no, se voc quiser fazer crtica, ela ter premissas hist-ricas e tericas; queira ou no, se voc quiser fazer teoria, estar respondendo a

    problemas trazidos pelos filmes, proble mas que s podem ser de tectados e perce-bidos por quem tem uma forma o cr tica e tem ex perincia de detectar nos fil -mes o que, estando ali, foco de uma indagao, de uma reflexo. Resumindo, ho quadro conceitual, h a intera o com o objeto no sentido de uma res posta va -lorativa, pois a crtica implica juzo, e, ao mesmo tempo, h a histria como, diga -mos assim, o solo a partir do qual tudo se faz. Porque a histria, para mim, a pre-missa. No sou historiador, mas, para mim, a histria o solo a partir do qualvoc pode pensar as coisas. Uma ex perin cia se d no tempo e den tro de um pro -cesso que tem um dinamismo, com o qual voc tem de li dar num trabalho sobrearte. Crtica, teoria e histria so trs dimenses que vo se combinar, com pesos

    distintos, conforme eu esteja fazendo anlise de filme ou um panorama. Se eu es -tou fazendo uma apresentao de grandes questes tericas, eu posso, nesse casoespecfico, usar os filmes como um campo de experimentao das teorias. Em ou -tro contexto, seria um problema fazer uma anlise de filme s para transform-loem campo de ilustrao de uma teoria. Quan do digo que um filme um bom ob-jeto para que, a partir da, se pense determinadas questes tericas, isso no es go-ta o filme. Voc pode trabalhar o mesmo filme em outra direo. Cada perspecti-va de anlise tem de construir as mediaes que lhe so prprias para articular aanlise textual com esquemas interpretativos que privilegiam um recorte entreoutros. A anlise histrica de obras, se no construir mediaes que permi tamdar conta da estrutura especfica, ou seja, do que prprio materialidade (nocaso do filme, imagem e som) e s opes estilsticas daquele gnero de discurso(no caso do fil me, as opes demise-en-scne, montagem e outros componentes daforma que implicam escolhas), se torna algo que com grande probabilidade pro -duzir uma viso redutora, no dando conta do objeto. A dimenso histrica daobra resulta da forma como tudo nela se constri.

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    Seria bom voc falar sobre a neces sidade de educar o olhar, que fun damental. A h uma premissa fundamental. Voc no pode fazer filoso fia da ma-

    temtica ou histria da matemtica sem conhe cer matemtica. Em relao s ar-tes, a mesma coisa. Quer dizer, voc tem ali uma experincia acumulada do olhar

    que, para o observador de hoje, um ponto de partida para a apreciao dasobras, para a cons truo de pa r metros de des crio e de an lise formal e percep-o de estilos. Isso interage com a elaborao conceitual e com as teorias que en-gendram mtodos de pesquisa. S para esquematizar, posso falar de dois polos deformao, sabendo estar criando um esquema que exagera na oposio entre ca -minhos que na prtica esto mais embaralha dos. H quem entre nesse cam popelo caminho da aquisio de re pertrio atra vs do con tato com as obras, contatoque forma uma sensibilidade, uma capacidade de discernimento tpica de quemconhece muitas variantes. H quem tenha na formao uma carga maior de lei-tura e empenho em sistematizar, classificar, ter um domnio conceitual das for-

    mas. H quem tenha olhar de perito e per ceba o de talhe e h quem tenha maisolho para a composio, a estrutura. A questo combinar da melhor maneirapossvel esses recursos, o que, se pensarmos em termos de teoria, diz respeito relao entre anlises estruturais e anlises estilsticas. O olho estrutural critica anfase ao estilo dizendo que a estilstica se detm em particularida des e, a partirdelas, promove o salto mortal para falar de uma obra em sua totalidade. Salto semmediaes, da pouco consis tente, porque quem que diz que cada detalhe con -tm o prin cpio de uma obra in teira, e quem recusa o fato de que o significado deum trao particular depende de sua posio no conjunto? As pessoas mais aten-tas ao estilo podem responder que a ateno estrutura corre o risco de s nos dar

    acesso a generalidades, ao que as obras tm em comum, e perder o essencial, a di-ferena que marca uma obra. Da porque nos cursos, e em nosso prprio traba-lho, preciso evidenciar as virtudes da combinao desses dois caminhos o qued nfase fatura em seu detalhe, e o que d nfase composio.

    Em termos do cinema narrativo-dramtico, poder-se-ia dizer que inte-ressa articular a anlise da estrutura (dramaturgia, narrativa) e a anlise do estilo.O que, em termos didticos, ns chamamos de macroanlise (primeira segmen-tao que identifica as partes e sua relao com o todo) e microanlise (que iden-tifica detalhes formais decisivos em cada segmento). Isso fica mais vi svel quan-do pensamos na anlise da relao entre um filme e um romance. H categorias

    gerais da narratologia e da dramaturgia que so comuns a cinema e literatura.Posso me apoiar em categorias gerais que me ajudam a elucidar o princpio decomposio de uma obra liter ria e o prin cpio de com posio de um filme, comoas questes ligadas maneira como se traba lha o espao, a maneira como se tra -balha o tempo, a ma neira como est definido o foco narrativo ou, de modo geral,a lgica das aes e seus motivos, bem como o ponto de vista segundo o qual se

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    olha para tudo e a partir do qual se narra; porque narrar inventar um mundoimaginrio e no mes mo ges to inventar uma maneira de narrar esse mun do. Euposso falar de certos tipos de narraes que se manifestam seja na literatura, nahistria em quadrinhos ou no cinema ou mesmo numa pea de teatro. Por outro

    lado, existe um pon to que es pecfico, que o nvel estils tico. Se eu quiser falardo estilo de um filme, eu tenho que falar daquilo que diz respeito aos recursos es-pecficos usados por um cineasta para construir aquele objeto; e esses recursosespecficos esto fundados na tcnica, na materialidade do processo. Ento, falarde cinema estilisticamente falar de cmera, falar de certos modos de comporimagem, falar de montagem e de encenao; ou seja, falar daquilo que dependefundamentalmente da linguagem suporte, que est ancorada numa materialida-de e numa tcnica. Da mesma forma, para fazer uma anlise estilstica de umaobra literria, eu vou ter que trabalhar com a sintaxe, com o vo cabu l rio e comformas de definir determinado tipo de figura de linguagem. Ento, o nvel esti-

    ls tico de anli se o que contempla a matria especfica de que se faz o discurso,tcnicas bem definidas. O que no impede que existam ma neiras de voc fazercorrelaes entre estilos no co tejo entre uma obra literria e um filme.

    Passando a outro aspecto do problema, falar de estilo falar de um modode fazer que implica uma escolha. E quando eu falo em escolha, no falo em de ci-so necessariamente consciente, inteno expressa. Falo de um trabalho que,uma vez feito, torna claro que aquela uma maneira de fazer, no a maneira. Hestilo onde h pluralidade de opes. No caso do cinema, essa pluralidade se evi -dencia na alternativa entre um plano longo e um plano curto, na oposio entreum primeiro plano e um plano geral, entre formas de montagem ou recusa damontagem. Isso um dado estilstico. A relao imagem e som tambm umdado estilstico que define como, a cada momento, est se dando a relao entre atrilha sonora e a imagem. Amise-en-scne, que os franceses tanto exaltam comoum ncleo decisivo, uma maneira de compor a cena, com ator, com uma sriede coisas que vo definindo um estilo; algo que para ser descrito precisa de umareferncia direta aparncia construda atravs de recursos materiais. diferen-te de conceitos como gnero, como alegoria. De qualquer modo, os gneros dra-mticos e as figuras de retrica, sendo gerais, devem encontrar um modo deefetivao mediado pela matria prpria a cada fazer artstico.

    Essa arti cula o toda pas sa tam bm por ou tro ponto de parti da, que nunca percebera obra, mesmo a clssica, como algo que se conforma a uma determinada estrutu ra,sem qualquer possibilidade de tenso entre eventuais canais, en tre os campos daimagem e do som. Esse um ponto de partida importante, que a todo momento vocressalta, como na anlise de So Bernardo, fil me de 1972 de Leon Hirs zman,publicada na revista Literatura e Sociedadecom o ttulo O olhar e a voz: a

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    narrao multifocal do cinema e a cifra da Histria em So Bernardo. No cinemamoderno, essa pluralidade de canais se manifesta com intensidade, porque um registrovai para um lado, outro vai para outro, e essas tenses so evidenciadas. Isso no querdizer que no cinema clssico isso tambm no acontea, mas acontece de uma outra

    maneira. Voc tem ra zo. improdutivo ver todos os filmes clssicos industriaisfeitos em Hollywood como seguindo os mesmos princpios e fazendo sempre amesma coisa, ou seja, mais do mesmo. No. Voc pode encontrar na que les queso mais interessantes contradies que mostram que ali h um jogo de forasque tensiona, digamos, o sistema da obra. Diferentes dimenses da fatura e dife-rentes canais de comunicao (e o filme tem vrios) trazendo cada qual o seuaporte. O fato de voc ter essa pluralidade de figuras presentes na produo e essapluralidade de dimenses, o que ine ren te composio de um fil me, gera suascontradies. No cinema, a pluralidade de canais derivada da matria mesma do

    cinema d mais ensejo a movimentos conflitantes, mas isso algo que tambmexiste na obra literria, de outra maneira. Inclusive, eu me lembro que um livroque teve in fluncia na mi nha gerao Teoria da produo literria, de Pierre Ma-cherey falava exatamente da relao tensa entre projeto e fatura. Algo que cu -riosamente est muito presente noseu trabalho, Eduardo. Quer dizer, existe umprojeto das ditas narrativas de fundao, que so grandes projetos, monumen-tais, que em outros pases levaram a filmes comoNascimento de uma Nao, Into -lerncia,Napoleo, etc., e esse projeto pode at alimentar a realizao de um filme,como no caso dos filmes do Humberto Mauro que voc estudou, mostrando queentre projeto e fatura h uma distncia. Ali, isso ocorre por certos motivos. Ago -

    ra, em qualquer filme voc vai ter essa mes ma di a ltica, como tambm nas obrasliterrias, pois a pura inteno de um escritor apenas um ponto de par tida quepassa por uma srie de transformaes, algumas inconscientes, de modo que a fa -tura no confirma e no realiza o projeto tal e qual era desejado.

    Macherey faz anlise de obras literrias exatamente a partir da. Ele diz:existem determinados modelos de referncia que incidem sobre o trabalho doescritor; um determinado escritor tem um proje to de in ter ven o no seu mo -mento, mas, ao buscar essa interveno, ele tem disponveis determinados mo-delos oferecidos pela tradio, modelos que entram em contradio com o proje-to, que terminam gerando uma outra coisa. Ele diz isso do Julio Verne. E a gentepode dizer isso tambm, muito depois, da fico cientfica do cinema no sculoXX. Quer dizer, voc tem de ter mina da inteno que vem da indstria, mas omodo como as pessoas se inscrevem dentro dela pode mudar a direo do traba-lho. E os modelos mobilizados, que vm de uma tradio j dada, tambm po-dem alterar tudo. Por outro lado, voc tem isso claramente no cinema militante.Algum faz um filme com propsito de interveno poltica, e essa interveno

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    Entrevista com Ismail Xavier

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    poltica, que tem determinados pressupostos e tem um desejo que vai numa dire-o, recebe novas inflexes, porque o modelo esttico de que o cineasta dis pe eque ele mobiliza pode gerar um resultado que est muito distante do desejado.Em todos os casos preciso examinar a relao entre projeto e fatura, para ver o

    que efetivamente est na tela. Por isso, a entrevista com um cineasta um docu -mento parte. No estou dizendo que os cineastas no devem ser lidos nas suasentrevistas. Mas so entrevistas de algum que est falando de uma obra que nose confunde com as in tenes nem com a maneira como ele v seu prpriotrabalho.

    Gostaria que nos contasse sobre o seminrio realizado em 2011 na Frana em tor nodo seu trabalho.

    Ali foi o seguinte: fui para desenvolver um seminrio de doutorado naUniversidade de Paris III durante um ms, seminrio de trs sesses em torno da

    relao entre alegoria e histria, a partir de determinados trabalhos que, na ver -dade, no incluam o cinema brasileiro, pois eu estava concentrado em Griffith,Eisenstein, Pastrone, Gance, Irmos Taviani e Manoel de Oliveira, e queria fazerum cotejo entre os clssicos e os modernos na lida com a figurao da histria emfilmes monumentais na forma. Tomando os modernos, h oNon, a v glria demandar, do Manoel de Oliveira, que tem um dilogo direto comIntolerncia, talcomo os irmos Taviani, que emBom dia, Babilnia tomam o fil me de Griffithcomo objeto central. Fassbinder, no Casamento de Maria Braun, tambm faz umareflexo sobre essa tradio alem de pensar a histria da Alemanha em alego-rias, que no tempo clssico eram mais monumentais e, num cinema como o dele,

    so tratadas com ironia. O contexto do seminrio era esse. Alm disso, perto daminha partida para a Frana, o CRECI (Centre de Recherche en Esth tique duCinema e des Images), dirigido por Philippe Dubois e Nicole Brnez, ambos deParis IV, fez a proposta de haver um dia inteiro, que eles chamam dejourne dtu-des, de discusso em torno do meu trabalho, convidando pessoas que abordariamdiferentes tpicos num dilogo direto comigo.

    O nome geral da Jornada foi Allgorie au cinema: entre lhistoire et la tho-rie. De manh, houve a abertura com uma palestra minha, com o tema Alegoriae teatralidade no cinema de Glauber Rocha. A falei de Brasil, de alegoria e dateatralidade, que assunto da minha pesquisa no momento. Por exemplo, noprefcio para a nova edi o doAlegorias do subdesenvolvimento apresento uma s-rie de interrogaes que definem a posio do cineasta diante da sua conjuntura,que eram pensadas nos anos 1960-70 a partir das alegorias e agora o so a partirdo documentrio. Pois bem, dentro da anlise do documentrio, me interessa oproblema da teatralidade, como um dado fundamental da cultura contempor-nea que a se manifesta. No caso daquela conferncia valeu a discusso da teatra-

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    lidade no Glauber, que era outro problema, mas tem o mesmo campo conceitualda discusso sobre teatralidade hoje.

    Ampliando o horizonte do debate, veio a fala de quatro pesquisadoresque fizeram uma espcie de arguio sobre tpicos diversos do meu trabalho,

    cada qual com um recorte. Eu at brinquei na hora da minha resposta que esta-va me sentindo numa defesa de tese, embora sem formalidades. Foi muito en-graado. Cada um fez um diagnstico, comeando por Mateus Arajo e LuciaMonteiro, que so brasileiros. Mateus tem doutorado em filosofia, uma co-tu-tela Sorbonne-UFMG, e Lucia Monteiro est terminando o doutorado naFrana, numa co-tutela tambm, mas com a USP; naquele momento, os doisestavam radicados na Frana. Marcos Uzal veio para discutir Hitchcock, umaespecialidade dele como crtico j bem inserido no campo tem livros e dirigeuma coleo de livros para a Yellow Now , e o quarto arguidor foi o DarioMarchiori, que italiano, mas tem todo o trabalho dele desenvolvido na Fran-

    a. No perodo da tarde hou ve qua tro dilogos com ou tro formato. Foi o mo-mento dos pesquisadores com mais quilometragem. Tive um dilogo sobreManoel de Oliveira (porque eu tinha o meu texto sobre o Manoel de Oliveira lno seminrio) com Mathias Lavin, que tem o melhor livro escrito na Franasobre Manoel de Oliveira. Extraordinrio, o livro dele. Depois, tive o dilogocom a Laura Mulvey, e j a o eixo era a questo da cinefilia e as transformaesque ocorreram a partir das novas tecnologias, com nfase para a nova teoria doespectador diante do DVD. Ela falou da cinefilia no momento da formao delana Ingla terra dos anos 1960 e so bre o que significava en to o dilogo com aFrana para os ingleses, e eu falei da minha formao no Brasil, e sobre o que

    significava, nos anos 1970, a nossa relao com esse campo da cinefilia francesae da teoria francesa. Depois teve o di logo com o Ro bert Stam. A foi sobre oBrasil. Foi o nico dilogo sobre o Brasil, direto sobre o cinema brasileiro, poisele era o nico brasilianista entre meus interlocutores.

    O ltimo debate foi com a Nicole Brenez, e foi o mais po lmico de todos,porque era uma anlise comparativa do Fredric Jameson e do David James, doismarxistas americanos que tm pontos em comum, mas dirigem seus trabalhos,no caso do cinema, para objetos bem distintos. David James um terico quetem um trabalho extraordinrio, feito em torno do cinema e tambm, s vezes, damsica. professor da University of Southern Califrnia, a USC, em Los Ange-les. Tal como a Nicole o defende, seu grande mrito redefinir o cnone, sendoconstrutor de novos objetos, aten to a um cinema que est fora da vista, na maio-ria das vezes por motivos polticos. Ele sai fora dos objetos usuais da universida-de para ir para os objetos mais invisveis. Um dos seus livros nos traz de volta aoalegrico, pois seu ttulo Alegorias do cinema. um livro sobre todo o trajeto docinema experimental americano, esse mesmo cinema com o qual eu tive um con -

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    tato enorme a par tir do pes soal de Nova York. E ele tem um dilogo forte com oJameson, com a Annette Michelson, que foi minha orientadora, e com P. AdamsSitney, que foi meu professor na NYU. Ento o cotejo era entre o James, comoparadigma de postura de um terico de esquerda diante do cinema, e o Jameson,

    que ela criticou porque preso a obras cannicas, seja prpria indstria hollywo-odiana, seja aos grandes nomes, como Godard e outros autores europeus e asiti-cos. Havia uma polmica implcita, porque o pressuposto da Nicole era privile-giar David James e ter uma postura crtica em relao ao Jameson, me jo gando naposio de advogado deste. E eu fiquei numa posio de buscar outro lugar, queera bem diferente do dela, e sem assumir essa posio de advogado de Jameson,embora mostrando o quanto James nele se apoiou para construir seu mtodo detrabalho. No debate, houve uma explicitao de uma srie de coisas que os doistm em comum ou em conflito, forma de atravessar vrias questes tericas pre-sentes na anlise dos filme contemporneos. Foi superprodutivo e ajudou muito.

    Essa jornada se realizou em Paris III? Foi um evento da Paris III, mas o CRECI pro mo ve essas jornadas no

    Instituto Nacional de His tria da Arte, INHA, e por um acaso surreal tudo sepassou na Sala Walter Benjamim! Digo acaso porque era a sala onde normalmen-te as jornadas acontecem, e s esta teve a alegoria como tema da palestra de aber-tura e de alguns debates. O interessante que me gerou um desafio, ainda maiscom a fa la o que du rou o dia todo, com variaes, momentos de um dilogomais convergente e momentos mais conflitantes.

    Outra forma de interveno sua no debate atual a coordenao editorial da coleoCinema, Teatro e Modernidadeno que diz respeito a cinema, a partir dolanamento de uma s rie de livros que so emblemticos para pensar essa rela o coma histria, com as questes ligadas visualidade no sentido mais amplo. Eu queriaque voc falasse um pouco sobre esse trabalho.

    O convite do Charles Cosac aconteceu em 2001, exatamente quando euestava terminando os textos que depois foram reunidos em O olhar e a cena e esta -va, portanto, totalmente mergulhado nessa relao entre o cinema e a histria doteatro, a partir do dito drama burgus do sculo XVIII e do desenvolvimento dedeterminados gneros como o melodrama, potencializador da visualidade noteatro.

    Diderot, no sculo XVIII, reclamava da Comdie Franaise, dizia: Issono teatro, declamao de poesia. Em vez de fazer umamise-en-scne, em vezde construir uma ao no palco, cada ator vem e fala um tex to. Isso no teatro.Diderot queria o ilusionismo no palco, queria a encenao capaz de gerar uma re-lao com o pblico, em que a visu alidade da cena e a composio das aparncias

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    do mun do fos sem fundamentais. Tanto que ele foi o inven tor da no o de quar-ta parede. Reclamava porque os nobres assistiam s encenaes sentados em ple-no no pal co, ali per to dos atores. Era distintivo. E era totalmente anti-ilusionista,se voc assim quiser. Da a ideia da quarta parede: l o palco, a plateia tem que

    estar do lado de c, e tem de haver uma fronteira clara entre a plateia cuja pre-sena no deveria ser reconhecida pelos atores e a cena te atral. Tambm Voltai-re reclamava desse teatro, tal como era encenado na po ca, onde valia a ideia doprima do da poesia do texto, da grande poesia da tragdia grega ou da grande poe-sia do Racine ou do Corneille, mas com pouca elaborao da cena propriamentedita. Com Diderot temos um des ses momentos de de fesa da encenao como umdado essencial do teatro, princpio que deu muito mais valor experincia visualdo espetculo. E Diderot falou do paradoxo do comediante, que a ideia de que aatuao tem que gerar no pblico a reao emocional, mas o ator tem que ter a suatcnica. O ator aquele que, paradoxalmente, constri tudo para que o pblico

    viva intensa mente um pa pel, mas isso no significa que ele tem que necessa ria -mente viv-lo. Isso iria dar uma discusso longa: Stanislavski, por exemplo, vaimontar outra teoria do ator, onde o mtodo se apoia justamente na ideia de queele representa a emoo da personagem, trazendo, pela memria afetiva, emo-es semelhantes tiradas de sua prpria experincia. Mas em termos de quartaparede os pressupostos do realismo russo eram os iguais ao de Diderot. J no ci-nema, a separao dos espaos mais radical, e a posio da cmera define o espa-o cnico, que tam bm no reconhe ce a plateia (no cinema clssico, o ator nodeve olhar para cmera; atua para ela, mas finge que ela no existe).

    Esses so alguns exemplos de problemas comuns a teatro e cinema, e a

    ideia foi montar uma coleo na qual fosse examinada essa conexo na moderni-dade (esta entendida como o perodo ps-Revoluo Industrial, porque moder-nidade, conforme o critrio, muda de coordenadas). Como interagem esses doistipos de es petculo, de que for ma o teatro participa da construo de um tipo decultura visual que depois seria retomada e potencializada pelo cinema? A mesmapergunta pode ser feita para a questo do drama, e se estender para a relao entrecinema e artes visuais, design e projetos mais totalizantes de cons truo de umanova relao entre arte e ambiente, como analisado no livro do Franois AlberasobreEisenstein e o construtivismo, ou no de Jacques Aumont, O olho interminvel:cinema e pintura.

    O livro de abertura da co leo foi O cine ma e a inveno da vida moderna,que o que mais teve recepo nos cursos de his tria. um livro muito amplo,nessa ideia de como se constitui uma experincia do olhar no sculo XIX, que anterior ao cinema e es tabele ce o cam po visu al dentro do qual o cinema emergepara se tornar o maior ca talisa dor do proces so a partir de 1900. Nos livros de tea-tro publicados na coleo, h um debate terico central que tem como figura fun-

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    damental Peter Szondi, que discute a crise do drama no final do sculo XIX e asdiferentes formas como os dramaturgos lidaram com essa cri se, at a emer gnciado teatro pico de Brecht. Debatendo com ele, h os autores que o homenageiam,mas buscam outro enfoque para pensar os desdobramentos do teatro contempo-

    rneo, como Jean-Pierre Sarrazac, que foi orientando do Bernard Dort quandoeste era o grande terico brechtniano na Frana, junto com Roland Barthes, nosanos 1950.Lxico do drama moderno e contemporneo, do Sarrazac, um livro queparte de Teoria do drama moderno,do Szondi, escrito nos anos 1950, mas constrioutro caminho para pensar a superao da crise do drama moderno. O livro deThies Lehmann, O teatro ps-dramtico, faz um panorama de experincias degrupo teatrais que ao longo dos ltimos 30, 40 anos se pautaram por esse acentodado ao espetculo teatral, performance enquanto tal, com uma minimizaodo texto. Da por que ps-dramtico. Claro que polmica essa noo deps-dramtico, porque implica a constituio de uma teatralidade que no est

    mais dialogando com a dramaturgia dos grandes autores. Sua publicao gerouuma boa polmica aqui, envolvendo vrios grupos de teatro. Mas, justamente, aidia da coleo construir uma coisa meio prismtica em torno de determina-das problemticas, e no ficar apenas numa nica linha de reflexo; e tambmfazer com que haja um cotejo entre diferentes livros sobre cinema e sobre teatro.

    O cinema e a inveno da vida moderna, organizado por Leo Charney eVanessa R. Schwarz, com pre fcio seu, de certa for ma remete a um outro momento dasua trajetria, que o do contato com o grupo que Leyda coordenou nos anos 1970,momento em que toda uma gerao de historiadores iniciava suas pesquisas.

    Tom Gunning, em especial.

    Exato. Eu queria que voc falasse um pouco sobre aquele momento, que foiemblemtico, porque chamou muito a ateno para a problemtica histrica. Voc jtrazia isso, como bem mostrou aqui, e isso seria trabalha do por voc de uma outramaneira. Mas acho curioso que o primeiro livro da coleo da Cosac seja justamentealgo que remeta a esse momento da sua vida intelectual.

    Em 1975, quan do eu cheguei a Nova York, havia o grupo coordenadopor Jay Leyda no Grif fith Project, que foi a pesquisa monumental que eles fize-ram em torno dos filmes do Grif fith realizados entre 1908 e 1913. Na poca, o pa -

    dro era o filme de um s rolo, que durava 10, 12 minutos. Participei desse grupoem 1976 e 1977, no momento em que Tom Gunning estava escrevendo a tese quegerou o livro sobre o Griffith. Mas nesse caminho se constituiu o conceito do ci-nema de atraes, principal noo nessa rede finio dos critrios de anlise docinema do incio do sculo, quando se descartou aquela teleologia que fazia do ci-nema narrativo a meta e se reduzia o cinema anterior a primitivo, atribuin-

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    do-lhe como ni co papel pre parar o caminho da conquista da narrao e da con-solidao do cinema narrativo clssico. Havia uma certa influncia do pensa-mento de Walter Benjamin nesse grupo, uma vez que a ideia era fazer a histriado vencido, recuperar um tempo esquecido em sua dimenso prpria, que era o

    do cinema de atraes, que entre 1895 e 1907 teve uma importncia enorme eno se reduz a um cinema narrativo precrio, como passou a ser visto depois.Aquele grupo de historiadores, que incluiu tambm Andr Gaudreault, de Mon-treal, construiu uma outra temporalidade histrica, baseada no fato de que exis-tia um gnero de filmes cuja questo no era narrar, mas trabalhar com efeitosproduzidos pela tecnologia do cinema e fazer desses efeitos o seu prprio objeto.Ao contrrio de serem filmes ilusionistas, que constroem o imaginrio, no qual atecnologia se esconde ou se minimiza para o espectador ficar ligado na transpa-rncia da narrao, eram filmes exibicionistas, no sentido de que voc exibia atcnica, e a partir da voc criava determinados efeitos. Ento o essencial no era

    contar a histria, mas produzir efeitos, atraes, que iam ressaltar aquilo que prprio ao cinema.Curiosamente, esse cinema de atraes, que nessa nova historiografia

    passou a ter sua qualidade prpria e seu universo prprio, em verda de, tem a vercom aquele momento da histria, no s do cinema, da passagem do sculo XIXpara o XX. No por acaso, ele foi uma referncia para aqueles que, j nos anos1920, de fendiam um cinema de vanguarda e queriam se afastar da indstria e donarrativo clssico. O cinema experimental dos anos 1920, na sua postura anti-narrativa, empenhada em fazer do cinema uma forma de arte que dialogasse coma tradio das artes plsticas ou da msica, fez o primeiro elogio do cinema de

    atraes (inclusive a Germaine Dulac tem um texto, do final dos anos 1920, que explcito nessa direo), elogio que iria ser recuperado mais adiante, naquelecontexto nova-iorquino do cinema experimental americano, que tinha muita in-cidncia na Universidade de Nova Iorque. O cinema de Stan Brakhage, de HollisFrampton, Michael Snow, Andy Warhol, entre outros. Voc tem, assim, na cons -truo do conceito de cinema de atraes uma nova postura do historiador queredefiniu a periodizao da histria do cinema. Ao mesmo tempo, esse conceitoseria afinado a essas posturas, que, ao longo da histria do cinema, definiram al-ternativas ou at recusas radicais dessa tradio narrativa clssica.

    interessante ressaltar que, tendo participado desse grupo ali naqueleperodo, numa experincia que resultou em alguns trabalhos meus artigos so-bre Griffith e, mais tarde, o livrinho da coleoEncanto Radical, da Brasiliense ,terminei por no mais engatar minha pesquisa na deles. Vim para o Brasil e fi-quei centrado no cinema moderno brasileiro. Quando voltei para Nova York em1982, o quadro j era outro, mas em 1986 recuperei, em nova temporada l, a pes -quisa sobre o melodrama que eu havia comeado no Griffith Project. Foi nos

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    anos 1970-80 que se cons tituiu a nova historiografia. E eu a acompanhei de modointermitente, mantendo relao mais prxima apenas com Tom Gunning. Mas interessante ver recorrncias dessa mesma questo do espetculo teatral e do ci -nematogrfico, dois campos ligados. A relao entre cinema e teatro muito

    mais complexa e muito mais interessante do que aquele senso comum que foiproduzido desde o incio do sculo XX, de que o cinema tem que superar as suasrazes teatrais, para no se reduzir a teatro filmado. Essa preocupao, que da-quela poca, gerou na crtica cinematogrfica esse gesto de atacar um filme di-zendo que teatro filmado. Isso se liga ideia antiga de uma especificidade do ci-nema que seria construda a partir do momento em que ele conseguisse se liber-tar de determinadas influncias ou origens. Eu acho que no por a; a coisa mais complexa, vai se processando numa via de mo dupla. O cinema tambmmudou o teatro. Certas discusses que so feitas hoje no teatro ou nas artes plsti-cas no existiri am sem o cinema, e vice-versa. A interao desautoriza essa ideia

    de pureza. O problema fundamental esse: no confundir a existncia de especi -ficida des com o fato de que essas especificidades so o ni co valor e que res pei-t-las ou radicaliz-las atingir uma pureza desejvel. Essa uma postura redu-tora. Acho que voc pode at fazer uma grande obra a partir desse pressuposto.Mas uma obra entre outras obras que vo ter outras lgicas e outras maneiras deentender esse problema. Agora, voc transformar isso num princpio terico um desastre. E a ns temos de novo o mestre Andr Bazin, que j cunhou o con-ceito de cinema como arte impura. Uma impureza inclusive reconhecida por al -gum como Adorno, com certo desconforto. Uma das questes que est muitopresente na relao do Adorno com o cinema que, ao contrrio da msica, emque o Adorno v um princpio formal inerente e imanente sonoridade da tradi -o musical, sem referente externo, o cinema est muito contaminado pelo mun-do, por causa da base fotogrfica da imagem; h uma contaminao e uma impu-reza presente no cinema que im pede de se pensar o cinema como msica. Embo-ra no esteja excluda a realizao de um cinema que se quer msica, isso nopode ser tomado como princpio geral do cinema, nica via de legitim-lo esteti-camente. Pelo contrrio. Estou mais interessado no problema das contamina-es recprocas, no cruzamento das artes e dos estilos, e o que vejo minha volta uma constelao de espetculos em que no se pode mais separar teatro, cinema,

    performance, instalao. o mundo da cena, da imagem e da palavra sem fron-teiras.

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