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Epistemologia das redes e teoria das paixões em Hume

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Epistemologia das redes sociais, analisando a influência das paixões no comportamento online segundo a teoria de David Hume.

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  • Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

  • Comit Cientfico da Srie Filosofia e Interdisciplinaridade:

    1. Agnaldo Cuoco Portugal, UNB, Brasil

    2. Alexandre Franco S, Universidade de Coimbra, Portugal

    3. Christian Iber, Alemanha

    4. Claudio Goncalves de Almeida, PUCRS, Brasil

    5. Danilo Marcondes Souza Filho, PUCRJ, Brasil

    6. Danilo Vaz C. R. M. Costa (UNICAP)

    7. Delamar Jos Volpato Dutra, UFSC, Brasil

    8. Draiton Gonzaga de Souza, PUCRS, Brasil

    9. Eduardo Luft, PUCRS, Brasil

    10. Ernildo Jacob Stein, PUCRS, Brasil

    11. Felipe de Matos Muller, PUCRS, Brasil

    12. Jean-Fraois Kervgan, Universit Paris I, Frana

    13. Joo F. Hobuss, UFPEL, Brasil

    14. Jos Pinheiro Pertille, UFRGS, Brasil

    15. Karl Heinz Efken, UNICAP/PE, Brasil

    16. Konrad Utz, UFC, Brasil

    17. Lauro Valentim Stoll Nardi, UFRGS, Brasil

    18. Michael Quante, Westflische Wilhelms-Universitt, Alemanha

    19. Migule Giusti, PUC Lima, Peru

    20. Norman Roland Madarasz, PUCRS, Brasil

    21. Nythamar H. F. de Oliveira Jr., PUCRS, Brasil

    22. Reynner Franco, Universidade de Salamanca, Espanha

    23. Ricardo Timm De Souza, PUCRS, Brasil

    24. Robert Brandom, University of Pittsburgh, EUA

    25. Roberto Hofmeister Pich, PUCRS, Brasil

    26. Tarclio Ciotta, UNIOESTE, Brasil

    27. Thadeu Weber, PUCRS, Brasil

  • Srie Filosofia e Interdisciplinaridade - 8

    Tiago Porto

    EPISTEMOLOGIA DAS REDES E A TEORIA DAS

    PAIXES EM HUME

    Porto Alegre

    2014

  • Direo editorial: Agemir Bavaresco

    Diagramao e capa: Lucas Fontella Margoni

    Imagem da capa: The Fortune Teller (1849) de

    Francois Joseph Navez

    Srie Filosofia e Interdisciplinaridade - 8

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

    PORTO, Tiago

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume [recurso

    eletrnico] / Tiago Porto -- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2014.

    107 p.

    ISBN - 978-85-66923-21-6

    Disponvel em: http://www.editorafi.org

    1. Hume, David. 2. Epistemologia. 3. Teoria das Paixes. 4. Axel

    Honneth 5. Reconhecimento I. Ttulo. II. Srie.

    CDD-120

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Epistemologia 120

  • Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

  • Dedico este trabalho a Mariana Figueira, irm e amiga;

    a Mariana Benevit, meu porto seguro;

    e, principalmente, a Mirian Porto:

    me, esta vitria tambm tua!

  • A sociedade em rede no o futuro que devemos alcanar como o prximo estgio do progresso humano, ao adotarmos o paradigma das novas tecnologias. a nossa sociedade, em diferentes graus, e com diferentes formas dependendo dos pases e das culturas. Qualquer poltica, estratgia, projeto humano, tem que partir desta base. No o nosso destino, mas o nosso ponto de partida para qualquer que seja o nosso caminho, seja o cu, o inferno ou, apenas, uma casa remodelada. (CASTELLS, 2005, p. 26)

  • SUMRIO

    1. INTRODUO ..................................................................... 13

    2 EPISTEMOLOGIA DAS REDES E REDES SOCIAIS

    NA INTERNET ........................................................................ 16

    2.1 ONTOLOGIA RELACIONAL E A EPISTEMOLOGIA DAS

    REDES ............................................................................................. 17

    2.1.1 Sociedade em rede .................................................................... 18

    2.1.2 Conhecimento em rede .............................................................. 23

    2.2 REDES SOCIAIS ONLINE ......................................................... 34

    3 TEORIA DAS PAIXES E AS REDES SOCIAIS ....... 39

    3.1 DAVID HUME E A FORA DAS PAIXES ............................... 41

    3.1.1 Paixes indiretas e o agrupamento nas redes sociais ................... 43

    3.1.2 Vontade e paixes diretas nos movimentos sociais ..................... 60

    3.2 A FORA DAS PAIXES NAS REDES SOCIAIS ........................ 73

    4 APLICAO EMPRICA: RECONHECIMENTO E

    INSURREIES ....................................................................... 76

    4.1 TEORIA DO RECONHECIMENTO DE AXEL HONNETH ..... 77

    4.1.1 Autorrelaes positivas ............................................................. 78

    4.1.2 As formas de desrespeito e o sentimento de injustia .................. 82

    4.2 PAIXES E INTERNET NAS INSURREIES

    CONTEMPORNEAS ...................................................................... 88

    5 CONSIDERAES FINAIS .............................................. 98

    6 REFERNCIAS .................................................................... 102

  • 13

    Tiago Porto

    1. INTRODUO

    Escolhemos o tema aps os resultados obtidos nas

    reunies e debates no nosso grupo de pesquisas, onde

    estudamos a relao entre o sentimento de injustia e as

    insurreies contemporneas organizadas pelas redes

    sociais da Internet. Visto a atualidade e efervescncia do

    assunto, buscamos aprofundar nosso trabalho no formato

    do presente estudo. A escolha do filsofo David Hume nos

    mostrou ser acertada para nos proporcionar um referencial

    terico importantssimo, ainda sendo um pensador que

    dialoga com os nossos dias. Tal caracterstica define, sem

    sobra de dvidas, a importncia de textos que no

    envelhecem com a passagem dos tempos, nos fazendo

    considerar o motivo que at hoje objeto de estudos em

    diversos campos da filosofia. Conforme avanamos no

    nosso trabalho, acompanhamos como as paixes exercem

    uma influncia inestimvel na vida do ser humano. Assim,

    nem todas nossas decises so tomadas de forma fria e

    puramente racional, visto que o impulso dos afetos pode

    direcionar as aes para fins diferentes daqueles que eram

    esperados. Por isso no decorrer desta monografia,

    trabalharemos a fim de explicitar este problema: Como os

  • 14

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    indivduos podem obter conhecimento na Internet e em que medida

    as paixes determinam as relaes em rede e as insurreies?.

    Desde o seu nascimento, o ser humano encontra-se

    incluso em uma rede: seja de forma primordial, em uma

    famlia, ou em uma configurao mais complexa, como no

    Estado, vivemos conectados outras pessoas. Na interao

    do dia a dia, as redes comunicam-se entre si na medida que

    transitamos entre elas, estabelecendo contato com nossos

    semelhantes no mundo fsico e no mundo online.

    Considerando que o ser humano um animal gregrio,

    criamos redes sociais onde podemos interagir com outros

    indivduos, seja visando instruo ou apenas

    entretenimento. Com o advento da Internet, as fronteiras

    comunicacionais foram derrubadas, dando a essas redes

    sociais um carter internacional. Assim, quando o

    panorama sociopoltico no corresponde s expectativas

    dos habitantes de determinada localidade, a rede

    internacional de computadores oferece um ambiente

    privilegiado para a denncia de abusos, organizao de

    manifestaes e insurreies populares.

    No primeiro captulo do nosso estudo, iremos

    tratar de uma epistemologia das redes e redes sociais da

    Internet visando responder nossa primeira pergunta. Na

    subseo inicial, elaboraremos uma ontologia das redes a

    fim de reconstruir a evoluo social at a sociedade em rede

    que caracteriza os dias atuais; em seguida, nos

    debruaremos sobre a forma com que os indivduos

    conectados rede internacional de computadores podem

    construir seu conhecimento utilizando as informaes nela

    disponveis. Na subseo seguinte, iremos nos ocupar de

    que forma os indivduos se agrupam nas redes sociais online,

  • 15

    Tiago Porto

    ferramenta essa que possui um papel importante na

    organizao de movimentos sociais nos dias de hoje.

    Aps analisarmos os preceitos da sociedade em

    rede, no segundo captulo do presente trabalho iremos nos

    aprofundar na Teoria das Paixes desenvolvida pelo

    filsofo escocs David Hume, tendo sempre em vista a

    estruturao da resposta para a nossa segunda pergunta.

    Inicialmente, iremos analisar os pontos mais importantes da

    sua investigao sobre as paixes indiretas, diretas e a

    questo da vontade, sempre relacionando nossa anlise

    com as caractersticas encontradas nas redes sociais online e,

    posteriormente, nos movimentos sociais organizados

    sobretudo nesse ambiente virtual.

    No terceiro captulo do nosso estudo, utilizaremos

    a Teoria do Reconhecimento construda por Axel Honneth

    para estipular um vis emprico para a demonstrao dos

    efeitos das paixes nas lutas por reconhecimento, visto que

    estas partem de um sentimento de desrespeito. Assim, no

    incio do captulo, faremos uma breve reconstruo da

    filosofia prtica de Honneth, focando no desrespeito como

    impulso moral para as insurreies; em seguida,

    analisaremos trs movimentos insurgentes Primavera

    rabe, Occupy Wall Street e Movimento Passe Livre,

    apontando a normatividade neles presentes e o efeito das

    paixes.

    Finalmente, a guisa de concluso, iremos retomar

    os pontos anteriormente abordados a fim de assinalar a

    importncia das paixes na sociedade em rede,

    estabelecendo paralelos entre as filosofias de Hume e

    Honneth e, portanto, sua coerente aplicabilidade nessa

    nova configurao social.

  • 16

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    2 EPISTEMOLOGIA DAS

    REDES E REDES SOCIAIS NA

    INTERNET

    A epistemologia o campo da filosofia que estuda

    as origens do conhecimento, assim como seus mtodos,

    estruturas e formas de valid-lo; mas tambm possui outros

    significados, inclusive o estudo da cincia, sendo

    confundido eventualmente com o campo da Filosofia da

    Cincia. Japiass e Marcondes a definem como

    [...] uma disciplina proteiforme que, segundo as

    necessidades, se faz 'lgica', 'filosofia do conhecimento',

    'sociologia', 'psicologia', 'histria' etc. Seu problema

    central, e que define seu estatuto geral, consiste em

    estabelecer se o conhecimento poder ser reduzido a um

    puro registro, pelo sujeito, dos dados j anteriormente

    organizados independentemente dele no mundo

    exterior, ou se o sujeito poder intervir ativamente no

    conhecimento dos objetos. (JAPIASS;

    MARCONDES, 2008, p. 88)

  • 17

    Tiago Porto

    Para o nosso trabalho, utilizaremos o termo

    epistemologia para estudar de que maneira os indivduos

    conectados rede internacional de computadores

    conseguem obter conhecimento, ou seja, como se d o

    processo de obteno de conhecimento pelo indivduo

    vinculado s redes sociais e informacionais. Para tanto,

    abordaremos inicialmente o que compreendemos como

    ontologia relacional e os nveis de aprendizado que a

    Internet nos proporciona; em seguida, analisaremos como

    se d a aglutinao de indivduos dentro das redes sociais

    online.

    2.1 Ontologia relacional e a Epistemologia das

    Redes

    Quando imaginamos uma sociedade em rede,

    pensamos sobretudo em uma cadeia relacional que, mesmo

    possuindo polos especficos, se comunica com os demais.

    Assim, se analisarmos a sociedade contempornea,

    conseguimos visualizar a interdependncia entre as

    inmeras formas de comunicao em rede. Dessa forma,

    iremos expor os tipos mais comuns dessas ligaes, a fim

    de descrever uma ontologia1 relacional; em seguida,

    abordaremos uma epistemologia das redes, dissertando de

    que maneira os indivduos podem acessar as informaes

    disponveis sobretudo na Internet.

    1 Utilizaremos no presente trabalho o termo ontologia no sentido de uma teoria do ser em geral, da essncia do real, conforme o verbete encontrado em JAPIASS, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionrio Bsico de Filosofia, 2008.

  • 18

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    2.1.1 Sociedade em rede

    O ser humano, desde o seu nascimento, participa de

    uma comunidade que se interliga com diversas outras. A

    sua famlia relaciona-se com seu bairro, que por sua vez se

    relaciona com sua cidade, que se insere dentro de um

    Estado. Dentro desse panorama, observamos que h uma

    rede relacional nos nveis micro a famlia na qual

    nascemos e macro o Estado que nos abriga. Isso nos

    permite dizer que dentro de uma grande rede estabelecida,

    encontramos ns diferenciados a partir do seu contexto.

    Para o presente trabalho, nos interessa saber como que a

    Internet se posiciona dentro desse panorama: seus efeitos e

    influncia nos mais distintos conglomerados sociais. Iremos

    agora investigar como estas micro redes se constituem

    dentro da Era da Informao2.

    Mas o que entendemos quando falamos em rede?

    No livro A Galxia Internet (2003), o pesquisador espanhol

    Manuel Castells a define da seguinte forma:

    Uma rede um conjunto de ns interconectados. A

    formao de redes uma prtica humana muito antiga,

    mas as redes ganharam vida nova em nosso tempo

    transformando-se em redes de informao energizadas

    pela Internet. As redes tm vantagens extraordinrias

    como ferramentas de organizao em virtude de sua

    flexibilidade e adaptabilidade inerentes, caractersticas

    2 Com o advento da Internet, os avanos tecnolgicos e o barateamento de equipamentos que facilitam a conexo rede, vivemos em uma era onde a informao facilitada. Assim, pesquisadores como Manuel Castells, entre outros, referem-se contemporaneidade como Era da informao.

  • 19

    Tiago Porto

    essenciais para se sobreviver e prosperar num ambiente

    em rpida mutao. (CASTELLS, 2003, p. 7)

    Esse conjunto de ns, lcito dizer, reflete-se em

    diversos campos da sociedade: segurana, comunicao,

    informao, finanas, e comrcio, por exemplo. Cada um

    desses distintos setores so autnomos, o que no significa

    que no estejam inter-relacionados ou que no influenciem

    uns aos outros: comrcio e finanas possuem estreita

    ligao, assim como informao e comunicao andam

    juntas. O que entendemos por rede de segurana o

    conjunto constitudo pelas foras armadas (exrcito,

    aeronutica e marinha), a polcia e demais instituies

    incumbidas de assegurar a proteo dos indivduos ou da

    nao frente a aes criminosas ou hostis; a rede de

    comunicao, engloba os principais veculos comunicativos

    subsumidos no termo mdia: televiso, jornal, rdio e demais

    meios encontrados pela Internet, tais como stios de

    notcias ou blogs, por exemplo; como redes informacionais,

    entendemos os meios que propiciam a obteno e uso

    crtico e criativo de novas informaes pelos indivduos3; as

    redes comerciais englobam os ncleos de empresas

    mercantes, nacionais ou internacionais; e, finalmente, as

    redes financeiras representam as bolsas de valores e bancos

    que gerenciam as finanas de determinado local. Essas

    formas de redes possuem uma caracterstica cosmopolita,

    visto que esto presentes em praticamente todas as culturas.

    3 Cf. MOURA, Maria Aparecida. Cultura informacional, redes sociais e lideranas comunitrias: uma parceria necessria. Disponvel em .

  • 20

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    Com o crescente uso da Internet, o alcance dessas

    redes tambm aumentou, ultrapassando as fronteiras dos

    pases onde situavam-se. Assim, acompanhamos o

    surgimento de uma nova sociedade: a sociedade em rede. Mas

    ser que essa nova configurao apenas um reflexo do

    mundo fsico no virtual? Castells (2005) discorda. Segundo

    ele, nos primeiros anos do sculo XXI, a sociedade em

    rede no a sociedade emergente da Era da Informao:

    ela j configura o ncleo das nossas sociedades4. Posto de

    outra forma, ela no apenas um espelhamento social na

    Internet, mas a prpria sociedade, evoluda juntamente com

    suas ferramentas. Em suma, podemos dizer que a sociedade

    em rede [...] uma estrutura baseada em redes operadas

    por tecnologias de comunicao e informao

    fundamentadas na microeletrnica e em redes digitais de

    computadores que geram, processam e distribuem

    informao a partir de conhecimento acumulado nos ns

    dessas redes5.

    Vale observar que a sociedade em rede possui

    caractersticas importantes quanto ao espao e tempo. Ela

    ao mesmo tempo local, pois situa-se fisicamente em

    determinado territrio onde existe uma rede cabeada ou

    wireless; e global, pois seu contedo pode acessar ou ser

    acessado de qualquer localidade no mundo. Quanto ao

    tempo, ela vive o que Castells (2009) chama de timeless time:

    o instantneo, tudo ocorre em tempo real. Assim,

    possvel saber o que ocorre em um pas distante apenas

    4 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: do conhecimento poltica. In: CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (org.). A sociedade em rede: do conhecimento aco poltica. Belm: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2005 p. 19. 5 Idem, p. 20.

  • 21

    Tiago Porto

    acessando um stio que transmite eventos ao vivo, por

    exemplo.

    importante ressaltar que h uma estreita relao

    entre sociedade em rede e poder. De acordo com o seu

    livro Communication Power (2009), Castells defende que as

    relaes de poder so os verdadeiros constituintes das

    sociedades, visto que aqueles que o possuem configuram as

    instituies de acordo com os seus interesses. A coero

    assegura o poder, assim como a manipulao simblica e a

    criao de significados que se estabelecero nas mentes dos

    indivduos: o sujeito recebe uma fantasia pronta do que

    melhor para si, sendo sugestionado a aceit-lo

    passivamente. Apesar dessas estruturas de poder serem

    encontradas em todas as instituies sociais, sobretudo no

    Estado, elas no so aceitas de maneira unnime: dentro

    das relaes de poder encontramos tambm o contrapoder,

    que desempenha o seu contraponto. De acordo com

    Bavaresco (2013), [...] os atores sociais reivindicam seus

    valores e interesses opostos e plurais, isto , h uma disputa

    pela criao da rede de significados no imaginrio das

    pessoas6.

    Contudo, segundo Castells, a rede em si no detm

    poder: este est nas mos de atores com finalidades

    bastante especficas. Primeiramente, temos os programmers,

    indivduos ou grupos que configuram/reconfiguram os

    objetivos das redes, decidem o que possvel fazer dentro

    de cada uma delas e demandam instrues aos seus

    subordinados. Cada programmer possui caractersticas

    6 BAVARESCO, Agemir. Epistemologia das redes sociais, opinio pblica e teoria da agenda. In SOUZA, Draiton Gonzaga de; BAVARESCO, Agemir. Direito e Filosofia I. Porto Alegre: Letra & Vida, 2013. No Prelo.

  • 22

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    prprias que se refletem nas redes: por exemplo, uma rede

    militar no responde mesma configurao de uma rede

    financeira. Em segundo lugar, temos os switchers, que so

    responsveis pelos pontos de conexo entre diferentes e

    estratgicas redes. Em outras palavras, so indivduos ou

    grupos que organizam a sinergia entre diferentes redes que

    podem assegurar um resultado comum: uma guerra

    melhor justificada quando a rede de segurana age em

    consonncia com a rede de comunicao, que por sua vez

    ir apresentar os fatos que amparam o conflito, por

    exemplo. Sobre esses dois tipos de controladores do

    poder, diz Castells (2009): programmers and switchers are

    those actors and networks of actors who, because of their

    position in the social structure, hold network-making power,

    the paramount form of power in the network society7. H,

    tambm, um terceiro grupo bastante importante: os

    gatekeepers. Estes so responsveis de filtrar as informaes

    que entram ou saem das redes, o que interfere diretamente

    no que os indivduos podem vir a conhecer, como veremos

    mais adiante.

    Tendo em vista as informaes expostas at aqui,

    surgem importantes questes: como que essas redes, to

    diversas em seus objetivos, agem quando buscam a

    ampliao do seu poder? Qual o seu objetivo ltimo?

    Bavaresco (2013) observa que

    Essas redes elaboram estratgias de parceria e

    competio, formando redes em torno de projetos

    particulares ou globais. Elas tm, porm, um interesse

    7 CASTELLS, Manuel. Communication power. New York: Oxford University, c2009, p. 47, grifo do autor.

  • 23

    Tiago Porto

    comum: controlar as regras da sociedade e a tomada de

    decises, atravs de um sistema poltico que corresponda

    aos seus interesses e valores. A disputa , de fato, entre

    as vrias redes com a finalidade de regular o Estado em

    funo de seus interesses especficos. (BAVARESCO,

    2013, no prelo)

    Em outras palavras, as redes podem trabalhar em

    conjunto em prol de um objetivo comum: estabelecer

    polticas internas e/ou estatais que proporcionem maiores

    vantagens para aqueles que as controlam, sejam elas locais

    ou at mesmo globais, visto que a Internet proporciona

    uma sensvel diminuio das distncias entre os indivduos.

    Acompanhamos at o momento como que se d

    uma ontologia relacional que desemboca em uma sociedade

    em rede, que detm a Internet como espinha dorsal. Vimos,

    tambm que h uma relao estreita entre poder e essa

    nova configurao social, que articulada por programmers,

    switchers e gatekeepers. Contudo, apesar do controle desses

    indivduos ou grupos, as pessoas imersas na rede

    internacional de computadores encontram as mais diversas

    informaes e, portanto, constroem conhecimento. Agora,

    o foco do nosso trabalho ser como essas pessoas

    encontram essas informaes, de que maneira elas esto

    acessveis na web para aqueles que buscam instruo.

    2.1.2 Conhecimento em rede

    Apesar de haverem inmeras teorias que se ocupam

    do problema do conhecimento, no nosso trabalho no

    iremos dissertar respeito dessas correntes tericas. Nosso

    foco aqui ser expor as formas com que os indivduos

  • 24

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    conectados Internet podem obter informaes e, dessa

    forma, adequar e/ou construir o seu conhecimento de

    acordo com os contedos por eles encontrados. Assim, no

    nosso trabalho realizaremos uma descrio fenomenolgica

    da forma com que os indivduos imersos na rede

    internacional de computadores a utilizam como uma fonte

    para a sua autoinstruo.

    Entre as formas atuais de comunicao social, a

    Internet tem se mostrado uma ferramenta bastante eficaz.

    Com a sua expanso, as oportunidades de obteno de

    conhecimento por essa via multiplicaram-se,

    transformando o acesso a diversos contedos facilitado.

    No errado, portanto, falar de uma democratizao do

    conhecimento. Devido a isso, corriqueiro o acesso a

    informaes noticiadas em qualquer parte do mundo sem

    sair de casa, bastando apenas alguns poucos clicks. Se h a

    necessidade de esclarecimento acadmico, basta a inscrio

    em algum curso online ou procurar algum vdeo explicativo

    sobre a matria a qual se deseja obter instruo.

    Encontramos na rede inmeras revistas cientficas que

    disponibilizam seus artigos para leitura, alm de material

    que abrange a todas as reas de conhecimento. Seja para o

    lazer ou para o estudo, o indivduo encontra de tudo na

    Internet. Assim, inegvel a influncia e a potencialidade

    que a rede internacional de computadores possui. Contudo,

    algumas perguntas so bastante pertinentes: como os

    indivduos conectados rede podem se instruir? Quais so

    os nveis de conhecimento dispostos na Internet? Podemos

    utilizar a Internet como instrumento para reformas

    polticas? Veremos seguir como essas questes podem ser

    adequadamente respondidas.

  • 25

    Tiago Porto

    Podemos afirmar que atravs da interao com

    outros usurios ou com stios especficos, os usurios

    estabelecem contato com os mais diversos temas,

    focalizando naquilo que mais os interessam. Assim, de

    acordo com a orientao do usurio, possvel obter uma

    grande gama de conhecimento, seja ele prtico ou

    acadmico. Partindo do interesse do usurio conectado

    rede por determinado assunto, seu conhecimento comea a

    se construir mediante uma relao dialtica: o indivduo

    apresenta interesse por um tema, entra em contato com ele

    pela rede e o sintetiza em conhecimento.

    O carter multifacetado proporcionado pela

    Internet oferece um amplo horizonte para a formao do

    indivduo nela imerso. Contanto que saiba onde e como

    encontrar a informao que se deseja, no h limites para o

    desenvolvimento do sujeito. Encontramos na rede

    internacional de computadores as mesmas instituies que

    temos no mundo fsico, porm com um alcance ainda

    maior, visto o seu carter global. Aqui, tambm existe a

    mediao de programmers, switchers e gatekeepers: em

    determinadas redes, o controle maior; noutras,

    praticamente inexistente. No que tange o aprendizado

    propriamente dito, podemos dizer que a Internet a dispe

    em diferentes nveis. Assim, optamos por focar em trs,

    dos quais acreditamos serem os mais relevantes: a) tcnico,

    b) comunicacional e c) poltico.

    a) Nvel tcnico

    Observamos que a web 2.0 nos oferece uma nova

    configurao da rede, proporcionando um modelo

    colaborativo entre os indivduos a ela conectados no

  • 26

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    processo comunicacional. Dessa forma, a hegemonia das

    chamadas mdias tradicionais8 ou velha mdia (televiso, rdio e

    jornais impressos) acabou sendo abalada, visto que o

    sistema de comunicao vertical baseado em poucos

    transmissores e muitos receptores est gradativamente

    sendo substituda por um sistema horizontalizado e mais

    democrtico. Os indivduos no necessitam aguardar pela

    prxima edio do jornal para se atualizar quanto aos

    acontecimentos do mundo, basta conectar-se Internet que

    as notcias so facilmente encontradas. Outro fator que

    influi diretamente nessa alterao do paradigma

    informacional a velocidade: na web vive-se o tempo do

    agora, os fatos so noticiados em tempo real.

    Alm desses fatores, o desenvolvimento

    tecnolgico e o barateamento de equipamentos que

    propiciam o acesso rede contribui diretamente na

    incluso de indivduos nas mdias independentes: os fatos

    podem ser divulgados seja pelo meio de blogs, redes sociais

    ou uploads de vdeos de forma crua, sem edio ou alguma

    imposio de filtros preestabelecidos por empresas de

    comunicao social. Dentro desse novo cenrio pluralista,

    qualquer indivduo pode tornar-se um produtor de

    informao, criticar ou relatar sua verso dos fatos.

    Conforme observa Bavaresco (2013),

    Com essa mudana de contexto tecnolgico, e at

    econmico, com o barateamento dessas tecnologias, a

    mdia independente passa a ser vivel e autossustentvel,

    tendo visibilidade para influir na formao e

    8 Para fins metodolgicos, iremos trabalhar com esta nomenclatura quando nos referirmos aos meios de comunicaes tradicionais.

  • 27

    Tiago Porto

    diversificao da opinio pblica, posicionando-se

    criticamente face grande empresa jornalstica.

    (BAVARESCO, 2013, no prelo)

    Frente a essa nova configurao no fluxo de

    informaes, as grandes empresas de mdia tradicional

    tiveram de se modernizar, articulando suas orientaes s

    novas mdias de vrias formas possveis. Atualmente, todas

    as empresas do ramo jornalstico possuem stios na Internet

    e postam informaes rapidamente, seguindo a normativa

    da rede, conforme veremos a seguir.

    Na Internet tambm encontramos outras formas de

    informao tcnica, direcionada a tarefas especficas. Nos

    chamados FAQs9 e em tutorias, so disponibilizadas

    informaes respeito de praticamente qualquer assunto:

    desde como trocar uma resistncia de chuveiro at como

    fabricar bombas caseiras. Esta espcie de material pode ser

    encontrada em diversos formatos, seja ele textual ou em

    vdeo por exemplo, ficando ao gosto do indivduo

    interessado pela informao decidir o qual melhor o agrada.

    Nesse mesmo aspecto, tambm corriqueiro encontrar

    aulas das mais variadas disciplinas, o que pode influenciar

    diretamente no aumento do nvel de educao do sujeito

    que procura expandir seus conhecimentos em

    determinados campos do saber.

    9 Sigla proveniente do ingls Frequently Asked Questions, abarca questes comumente perguntadas quanto ao funcionamento de determinado item. Essas FAQs geralmente so encontradas em sites de equipamentos ou de softwares, mas no se limitam a eles.

  • 28

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    b) Nvel comunicacional

    O advento da Internet causou uma grande mudana

    no campo comunicacional, mudando a estrutura

    verticalizada de comunicao que era estruturada no fluxo

    de poucos emissores para vrios receptores (modelo este

    amplamente utilizado pelas mdias tradicionais) para uma

    horizontalizada, onde temos vrios emissores para vrios

    receptores em interao constante. Alm disso, as

    informaes difundidas nessa forma pluralizada no

    recebem os filtros que os grandes grupos da mdia utilizam

    quando selecionam o que pertinente ser comunicado.

    Essa nova configurao, caracterizada pela troca de

    mensagens em tempo real de muitos para muitos o que

    Castells (2009) chama de mass self-communication:

    It is mass communication because it can potentially

    reach a global audience []. At same time, it is self-

    communication because the production of the message

    is self-generated, the definition of the potential

    receiver(s) is self-directed, and the retrieval of specific

    messages or content from the World Wide Web and

    eletronic communication networks is self-selected.

    (CASTELLS, 2009, p. 55)

    Assim, a Internet proporcionou um terreno onde a

    mdia independente pudesse surgir e difundir-se. Por mais

    que as mdias tradicionais ainda detenham poder na

    formao de opinio, cada vez mais os independentes

    ganham espao, fortalecendo sua capacidade de influenciar

    os indivduos que neles buscam uma fonte de informao

    alternativa. Portanto, lcito dizer que existe uma

  • 29

    Tiago Porto

    democratizao da mdia online, trazendo na vanguarda a

    diversidade e a multidimensionalidade da informao.

    Podemos dizer, ento, que a mdia independente

    responsvel por uma contradio no discurso estabelecido

    pelas mdias tradicionais. Bavaresco (2013) observa que h

    a produo de um contradiscurso, que surge nos blogs, nas

    listas de e-mails, dos sites, da mdia independente,

    implementando a contradio na opinio pblica. Difunde-

    se uma contrainformao com uma rapidez muito grande,

    o que seria impossvel se no houvesse a Internet10.

    Com essa mudana de paradigma provocado pela

    rede internacional de computadores, o conceito de

    jornalismo teve de ser repensado11. Antigamente, o

    jornalista fazia a sua investigao e preparava a sua matria,

    seguindo os interesses do seu jornal; tudo aquilo que no se

    adequasse ao perfil ideolgico da empresa, era rapidamente

    descartado da pauta, configurando uma atitude excludente.

    Contudo, com a possibilidade de um acesso

    horizontalizado pela Internet, onde os indivduos podem

    no somente buscar as informaes que os jornais no

    cobrem, mas tambm checar se as fontes so confiveis ou

    se a leitura dos fatos no tendenciosa, essa atitude teve de

    ser revista. Com a divulgao da notcia na rede, o leitor j

    pode interagir com o jornalista, expondo a sua opinio

    10 BAVARESCO, Agemir. Epistemologia das redes sociais, opinio pblica e teoria da agenda. In SOUZA, Draiton Gonzaga de; BAVARESCO, Agemir. Direito e Filosofia I. Porto Alegre: Letra & Vida, 2013. No Prelo. 11 Existem posies a favor e contra uma suposta mudana na forma com que o jornalismo feito aps o advento da Internet. Para os fins deste trabalho, que no pretende aprofundar esse debate, assumiremos como verdadeira essa mudana.

  • 30

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    quanto ao fato abordado. Dessa forma, o jornalismo passa

    para uma configurao inclusiva, onde o papel do leitor,

    que antes era passivo, passa a ser interativo e considerado

    frente as polticas do jornal. Alm disso, h uma gama de

    jornalistas em interface com as redes sociais, designados

    pelas empresas para monitorar o que ocorre nelas,

    mantendo assim um contato com o que est sendo

    discutido no momento.

    importante ressaltar que a Internet quebrou a

    hegemonia da informao das mdias tradicionais,

    transformando todo indivduo conectado rede em uma

    fonte informativa em potencial. Seja por e-mails, blogs,

    fruns ou redes sociais, cada sujeito online pode noticiar

    fatos ocorridos na sua localidade ou em qualquer lugar do

    mundo, de forma bruta e sem edio, focalizando

    diretamente no seu pblico-alvo. Seguindo esse raciocnio,

    Bavaresco (2013) ressalta que o ecossistema de mdia est

    em mutao, pois se o anterior era baseado na escassez de

    informaes, o novo baseia-se na abundncia e no

    pluralismo12.

    c) Nvel poltico

    No nvel poltico, a rede internacional de

    computadores tem servido como campo de denncias

    contra abusos governamentais, militares ou corporativos,

    pondo em cheque a maneira com que se faz poltica.

    Grupos como o Wikileaks se especializam em vazar

    informaes de interesse pblico, denunciando inmeras

    irregularidades at ento confidenciais. Uma vez expostos

    12 Idem.

  • 31

    Tiago Porto

    estes dados, o debate em esfera pblica se expande,

    levando os indivduos a questionar, entre outras coisas, a

    validade dos sistemas de representao poltica em vigor.

    No podemos, claro, por a culpa dessa crise de

    representatividade nos grupos que trazem tona esses

    tpicos, visto que essas informaes no so forjadas: o

    problema reside nas atividades desempenhadas pelos

    representantes do poder. Dessa forma, a Internet se torna

    tambm uma ferramenta de oposio contra as decises

    unilaterais dos governantes, uma vez que alm de possuir

    um carter comunicacional, tambm detm o poder de

    agregar os indivduos sob um mesmo objetivo.

    Leonardo Sakamoto (2013) observa que os polticos

    tradicionais tm uma grande dificuldade em assimilar como

    os movimentos sociais podem se articular pela Internet,

    sobretudo pelas redes sociais, pois estes as veem apenas

    como um terreno para marketing pessoal ou um meio de

    fluir informao e, assim, influenciar seus eleitores13.

    Existem tambm os polticos que acreditam que as redes

    sociais so entidades fechadas em si mesmas e no

    plataformas de construo polticas, uma vez que no so

    mediadas pelos meios tradicionais de comunicao. Tendo

    isso em vista, o jornalista argumenta que

    Essas tecnologias de comunicao no so apenas

    ferramentas de descrio, mas sim de construo e

    reconstruo da realidade. Quando algum atua atravs

    de uma dessas redes, no est simplesmente reportando,

    mas tambm inventando, articulando, mudando. Isto,

    13 Cf. SAKAMOTO, Leonardo. Em So Paulo, o Facebook e o Twitter foram s ruas. In Cidades Rebeldes. So Paulo: Boitempo: Carta Maior, 2013, p. 95.

  • 32

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    aos poucos, altera tambm a maneira de se fazer poltica

    e as formas de participao social. (SAKAMOTO, 2013,

    p. 95)

    Portanto, a Internet deixa de ter apenas as supostas

    dimenses do entretenimento e da comunicao, passando

    a exercer tambm uma influncia poltica. Pelas redes

    sociais e fruns online, os indivduos descontentes com as

    aes governamentais organizam protestos e manifestaes,

    decidindo a pauta das reivindicaes a serem feitas. Se o

    nmero de participantes expressivo e o objetivo

    universalizvel, o objetivo desses grupos acaba

    influenciando a opinio pblica e fora uma mudana por

    parte dos governantes. inegvel, portanto, o poder que a

    Internet possui se bem empregada.

    Com esse panorama poltico estabelecido, vemos

    gradativamente emergir da rede internacional de

    computadores uma nova alternativa democrtica: a e-

    democracy. Esta nova modalidade poltica representa um

    controle maior por parte dos cidados e uma participao

    mais ativa nas decises governamentais e na criao de

    novas leis. Considerando o seu carter global, j que ela

    supe uma maior interao entre cidados e governantes

    mediada pela Internet, podemos dizer que sua

    aplicabilidade possvel em pequenas comunidades,

    estados, naes e at mesmo em um panorama mundial.

    Com a interferncia direta dos indivduos, a e-democracy

    proporciona um horizonte onde uma experincia de

    democracia direta seria possvel14. Para citar um exemplo,

    14 Cf. verbete disponvel em .

  • 33

    Tiago Porto

    podemos falar sobre a Islndia: aps a crise de 2008, o pas

    passou por uma grande reformulao poltica. Aps

    elegerem 25 representantes sem vnculos com partidos

    polticos, estes ficaram responsveis de reescrever a Carta

    Magna do pas, que depois de pronta seria revista pelo

    poder judicirio. As assembleias e a confeco do

    documento foram transmitidas ao vivo pela Internet, que

    tambm permitiu que os demais habitantes islandeses

    pudessem opinar nas decises dos seus representantes.

    The CAC15 sought the participation of all citizens via the

    Internet. Facebook was the primary platform for debate.

    Twitter was the channel to report on the work in

    progress and to respond to queries from citizens.

    YouTube and Flickr were used to set up direct

    communication between citizens and the council

    members, as well as to participate in debates taking place

    throughout Iceland. (CASTELLS, 2012, p. 39)

    Dessa forma, o grupo responsvel pela nova

    constituio recebeu um nmero aproximado de 16.000

    sugestes e comentrios online e offline, debatidas

    amplamente nas redes sociais. Como resultado, foram

    escritas 15 verses do documento, levando em

    considerao a amplido dos seus resultados16. Assim,

    pode-se dizer que o documento final foi, literalmente,

    produzido atravs de um processo de crowdsourcing17.

    15 Constitutional Assembly Council, nome dado ao grupo de pessoas sem vnculos polticos eleitas pelos habitantes para trabalharem na elaborao de uma nova constituio. 16 Ibidem. 17 Processo colaborativo entre pessoas conectadas Internet.

  • 34

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    2.2 Redes sociais online

    Entre as caractersticas da rede internacional de

    computadores, hoje em dia uma das mais importantes a

    sua capacidade de agrupar os mais diferentes indivduos nas

    chamadas redes sociais18: sites de relacionamento que

    recebem usurios das mais diversas nacionalidades, credos

    ou etnias. Uma vez inserido nessas redes, o sujeito

    consegue estabelecer contato direto com pessoas

    localizadas nos pontos mais remotos, contando apenas que

    haja um ponto de conexo rede. Nelas, o fluxo de

    informaes horizontalizado, permitindo com que cada

    pessoa seja ao mesmo tempo receptor e transmissor de

    novos dados. Manuel Castells afirma que

    [] the most important activity on the Internet

    nowadays goes through social networking sites (SNS),

    and SNS have become platforms for all kinds of

    activities, not just for personal friendships or chatting

    but for marketing, e-commerce, education, cultural

    creativity, media and entertainment distribution, health

    applications, and, yes, socio-political activism. [] The

    key to the success of an SNS is not anonymity, but on

    the contrary, self-presentation of a real person

    connecting to real persons. People build networks to be

    with others, and to be with others they want to be with,

    on the basis criteria that include those people who they

    18 Utilizaremos o termo rede social para designar uma rede de computadores, cabeada ou no, que conecta uma rede de pessoas, grupos ou organizaes, conforme , acesso em outubro de 2013.

  • 35

    Tiago Porto

    already know or those they like to know. (CASTELLS,

    2012, p. 232)

    Dentre essas redes, atualmente as mais acessadas

    so o Facebook e o Twitter. Visto seu carter social, esses

    stios de relacionamento tm sido muito utilizados na

    organizao de eventos, assim como na articulao de

    protestos e manifestaes pblicas. Nas redes de

    relacionamento da internet encontramos inseridos atores

    sociais com grande carisma e influncia, formadores de

    opinio habilidosos. Estes ditam aos seus seguidores o que

    correto pensar, consumir ou experienciar. Porm, essas

    caractersticas dos novos atores no sinal de necessria

    futilidade: aqueles engajados em causas sociais conseguem

    ser ouvidos com maior facilidade e agregam rapidamente

    indivduos descontentes com determinados panoramas s

    suas lutas por reconhecimento.

    Nas redes sociais, o fluxo de novas informaes

    constante. De posse delas e visto a possibilidade de

    interao com inmeros indivduos, a capacidade de

    articulao gil de movimentos insurgentes contra

    desrespeitos sofridos se torna uma realidade. Em tempos

    passados, as insurreies populares contavam com a

    articulao de atores histricos envolvidos nas lutas sociais,

    representados pelo movimento sindical ou por grupos anti-

    racismo, por exemplo. Tais associaes desempenhavam o

    papel de agregar luta os indivduos da comunidade,

    evidenciar a matriz moral de suas lutas sociais e tornar

    coesas as reivindicaes dos movimentos aos quais estavam

    vinculados. Hoje em dia, inegvel que as redes sociais da

    Internet desempenham esse mesmo papel; tal caracterstica

    a torna, atualmente, um ator histrico poderosssimo. Se

  • 36

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    analisarmos suas vicissitudes, veremos que ela centraliza

    vrias caractersticas importantes para um movimento

    social: agilidade no fluxo de informaes, capacidade de

    agregar novos indivduos, internacionalidade, visibilidade,

    facilidade na articulao estratgica e instruo.

    Alm disso, Manuel Castells (2012) observa que

    fazer parte de uma rede social cria um sentimento de unio

    entre os sujeitos, ponto central para a superao de medos

    e na descoberta da esperana19. Isso ressalta a influncia

    exercida pelas paixes nas decises tomadas pelos

    indivduos imersos nas redes sociais, visto que o

    sentimento de unio ajuda a combater o medo opressor

    que a solido traz consigo e, ao compartilhar sentimentos e

    vivncias, um novo horizonte se abre proporcionando a

    esperana de que determinados fatos mudem. Assim,

    nascem movimentos sociais dentro e fora da rede

    internacional de computadores. Quanto ao poder das

    emoes em principiar esses movimentos, o socilogo

    espanhol Manuel Castells afirma no seu livro Networks of

    Outrage and Hope (2012) que os movimentos sociais so

    sobretudo emocionais, visto que para a ecloso dos

    mesmos ocorre aps a passagem da emoo para a ao.

    [] social movements are emotional movements.

    Insurgency does not start with a program or political

    strategy. This may come later, as leadership emerges,

    from inside or from outside the movement, to foster

    political, ideological and personal agendas that may or

    may not relate to the origins and motivations of the

    participants in the movement. But the big bang of a

    19 Cf. CASTELLS, Manuel. Networks of outrage and hope. Malden: Polity, 2012, p. 225.

  • 37

    Tiago Porto

    social movement starts with the transformation of

    emotion into action. (CASTELLS, 2012, p. 13)

    Segundo suas observaes, as emoes mais

    relevantes para uma mobilizao social e comportamento

    poltico so o medo e o entusiasmo, que causam efeitos

    negativos e positivos consecutivamente ligados a dois

    sistemas motivacionais bsicos: a aproximao e a

    evitao20. O primeiro sistema est ligado busca por

    satisfao de metas que podem trazer experincias

    compensativas ao indivduo. Dessa forma, os indivduos

    sentem-se entusiasmados ao compartilhar de um objetivo

    que traria um bem comum todos. Da notamos uma

    estreita ligao entre o entusiasmo e o sentimento de

    esperana. Contudo, para que o entusiasmo e esperana

    possam se fortalecer, necessrio que a ansiedade, fruto do

    sistema de evitao, seja superada. A ansiedade uma

    resposta a uma ameaa externa que oprime o indivduo. Ela

    est ligada diretamente ao medo paralisante que impede a

    ao. Porm, a superao da ansiedade pode eventualmente

    provocar outro sentimento negativo: a raiva. Esta pode

    aumentar com a percepo de aes injustas e a

    identificao dos autores desses atos21.

    Com os argumentos apresentados, conclumos esse

    captulos descrevendo de que forma os indivduos

    conectados rede internacional de computadores podem

    construir seu conhecimento, respondendo assim primeira

    pergunta que norteia o nosso trabalho. Nos voltando para a

    20 Para o presente trabalho, optamos em traduzir os termos approach e avoidance como aproximao e evitao. 21 Cf. CASTELLS, Manuel. Networks of outrage and hope. Malden: Polity, 2012, p. 14.

  • 38

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    segunda questo, observamos que conforme os resultados

    dos estudos de Castells assinalam, podemos afirmar que as

    paixes esto fundamentalmente presentes nos

    movimentos sociais. Assim, o estudo da Teoria das Paixes

    desenvolvida por David Hume parece uma seara profcua

    para compreendermos a influncia dos afetos nas decises

    tomadas pelos indivduos imersos nas redes sociais online na

    Era da Informao. Portanto, iremos a seguir analisar os

    pontos mais importantes desta teoria, buscando assinalar a

    sua influncia nas decises dos indivduos imersos nas

    redes sociais online e nas insurreies organizadas nesse

    territrio virtual.

  • 39

    Tiago Porto

    3 TEORIA DAS PAIXES E

    AS REDES SOCIAIS

    O escocs David Hume viveu no sculo XVIII e

    desenvolveu um sistema filosfico baseado na empiria. Os

    alicerces do seu pensamento so estabelecidos no Tratado da

    Natureza Humana, publicado por ele aos 26 anos; contudo,

    o escrito obteve uma recepo fraca, aqum de suas

    expectativas, fazendo com que Hume alegasse

    posteriormente que sua obra nascera natimorta. Alm

    disso, por duas vezes a ele foi negada ctedra de filosofia na

    Universidade de Edimburgo. Aps esses eventos, deixou a

    produo filosfica de lado momentaneamente,

    trabalhando como preceptor de um jovem nobre e

    posteriormente como secretrio do general Saint Claire;

    finalmente, ocupou o cargo de guarda livros da biblioteca

    da faculdade de advocacia de Edimburgo. O sucesso no o

    alcanou devido a sua produo filosfica, mas aps a

    publicao do grande estudo histrico The History of

    England, que levou aproximadamente quinze anos para ser

    concludo; ainda hoje, historiadores defendem ser uma das

    melhores obras sobre a histria britnica.

  • 40

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    No campo da filosofia, Hume escreveu sobre

    diversos temas: epistemologia, esttica, moral, poltica e

    religio. Entre seus livros publicados de maior relevncia,

    podemos citar alm do Tratado, Investigao sobre o

    Entendimento Humano, Investigao sobre os Princpios da Moral,

    Dissertao sobre as Paixes22 e Histria Natural da Religio.

    Quanto a sua maior obra, David Hume dividiu o Tratado

    em trs livros: o primeiro refere-se a uma epistemologia

    empirista, ou seja, uma teoria do conhecimento calcada no

    que podemos conhecer da realidade atravs dos dados dos

    sentidos; o segundo livro, nosso foco nesse trabalho,

    aborda a fora das paixes e como elas surgem e se

    relacionam, sendo os resultados desse estudo o pilar de

    sustentao para o terceiro e ltimo livro, que trata de

    investigar como a moral est subordinada a teoria das

    paixes.

    Na progresso do presente captulo, analisaremos

    os pontos mais importantes de seu sistema filosfico

    relacionado s paixes, os quais podemos encontrar

    conexes com o desenrolar das associaes de indivduos

    pelas redes sociais, inter-relacionando a teoria do filsofo

    com o atual panorama da sociedade em rede. Dessa forma,

    iremos estudar a fora das paixes segundo David Hume,

    22 Aps a recepo morna recebida pelo Tratado, Hume ocupou-se nos anos seguintes em revisar os trs livros que constituem o corpus da sua obra, impulsionado pela desconfiana de que tal reao poderia se derivar da incompreenso de algumas passagens. Dessa forma, os livros Investigao sobre o Entendimento Humano, Investigao sobre os Princpios da Moral e a Dissertao sobre as Paixes derivam da reviso reflexiva empregada por Hume. Contudo, essas obras no se opem aos escritos no Tratado, apenas trazem novas luzes aos problemas anteriormente constituindo uma clarificao conceitual desse material.

  • 41

    Tiago Porto

    visando a) acompanhar a teoria que define as paixes

    indiretas, verificando sobretudo os efeitos causados pelo

    orgulho, humildade, amor, dio e suas paixes derivadas; b)

    analisar a questo da vontade e a definio humeana das

    paixes diretas; e, finalmente, c) encerraremos o captulo

    traando um paralelo entre a Teoria das Paixes e as redes

    sociais.

    3.1 David Hume e a fora das paixes

    Hume no decorrer do primeiro livro do Tratado

    estabelece uma distino importantssima para a sua

    filosofia entre impresses e ideias. As impresses provm

    diretamente dos dados obtidos atravs dos sentidos,

    marcados com vividez na nossa mente. J as ideias so

    processos mentais que derivam dessas impresses, porm

    de formas no to ntidas, mais apagadas do que as

    impresses originais. Por exemplo, a ma que por ventura

    comemos aps o almoo de hoje nos causa uma impresso

    forte: sua cor rica de matizes avermelhadas, seu sumo

    possui um misto de doura e acidez, sua consistncia

    firme etc. Contudo, daqui a uma semana, a ideia que

    teremos dessa mesma ma ser bastante difusa: no

    lembraremos com exatido da sua cor, das caractersticas

    do seu sumo ou da sua consistncia.

    No segundo livro do Tratado, Hume ocupa-se das

    paixes. Para o estudo destas, o autor ir traar uma

    distino entre as impresses. Segundo a sua teoria, elas

    podem ser de sensao/originais ou reflexivas/secundrias.

    As impresses de sensao provm dos meios empricos,

    como por exemplo os dados dos sentidos, prazeres e dores

  • 42

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    corporais, necessitando diretamente de causas naturais

    fsicas, no sendo o foco do seu trabalho nesta parte do

    livro visto que concernem Filosofia da Natureza. J ao

    grupo das impresses reflexivas pertencem as paixes e

    outras emoes variadas, provenientes das impresses de

    sensao seja de forma imediata ou partir de uma

    interposio de ideias. Este grupo ser o objeto de estudo

    da sua investigao, sofrendo uma nova diviso em duas

    categorias: as calmas e as violentas.

    Do primeiro tipo so o sentimento [sense] do belo e do

    feio nas aes, composies artsticas e objetos externos.

    Do segundo so as paixes de amor e dio, pesar e

    alegria, orgulho e humildade. Essa diviso est longe de

    ser exata. O enlevo potico e musical atinge com

    frequncia grandes alturas, enquanto aquelas outras

    impresses, chamadas propriamente de paixes, podem

    se atenuar at se transformarem em emoes to suaves

    que passam de alguma maneira despercebidas. (HUME,

    2009, p. 310, grifo do autor)

    O autor observa que as paixes podem ser divididas

    em diretas e indiretas. As diretas so as que surgem

    imediatamente da experincia de bem ou mal, da sensao

    de dor ou prazer; j as indiretas seguem a mesma lgica,

    contudo surgem pela conjuno de outras qualidades.

    Segundo sua definio, encontramos entre as paixes do

    primeiro grupo o desejo, a averso, a tristeza e a alegria; no

    segundo grupo, aparecem o orgulho, a humildade, o amor,

    o dio e a inveja, entre outros.

    Partindo da ordenao original do livro, iremos

    primeiramente abordar as paixes indiretas, sobretudo suas

  • 43

    Tiago Porto

    manifestaes mais importantes; em seguida, iremos

    abordar as paixes diretas e a questo da vontade, sempre

    estabelecendo no final de cada exposio terica paralelos

    entre os itens e as redes sociais online.

    3.1.1 Paixes indiretas e o agrupamento nas redes

    sociais

    Principiaremos a exposio referente s paixes

    indiretas pelo orgulho e pela humildade, afetos mais simples

    que no permitem uma grande variao, passando a seguir

    para amor, dio e suas derivaes, considerando tambm as

    paixes que possuem alguma gradao delas na sua

    constituio. Ao final de cada item, investigaremos como

    essas paixes so desenvolvidas dentro dos stios de

    relacionamento da Internet.

    a) Orgulho e humildade

    Hume observa que as paixes orgulho e humildade

    possuem como objeto o eu, ou seja, [...] aquela sucesso de

    ideias e impresses relacionadas, de que temos memria e

    conscincia ntima.23. Contudo, elas so opostas e no

    podem surgir ao mesmo tempo, visto que suas foras

    equivalentes fariam com que se aniquilassem mutuamente.

    Tendo em vista essa disputa de foras, o autor busca definir

    as diferentes razes que as provocam, pois a paixo se situa

    entre as ideias de causa e o seu objeto. Entre as causas do

    orgulho, so descritas as qualidades mentais de valor,

    23 HUME, David. Tratado da natureza humana. 2ed., So Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 311.

  • 44

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    imaginao, juzo, memria ou temperamento (coragem,

    justia, bom-senso, etc), assim como atributos fsicos tais

    como beleza, fora ou habilidades manuais; j os seus

    opostos, esses pertencem s causas da humildade. No

    obstante, essas paixes ainda se estendem a quaisquer

    objetos que tenham relao ou ligao conosco, como pas,

    famlia, amigos ou bens pessoais.

    Conforme a teoria humeana, existem trs

    propriedades distintas que constituem a natureza humana e

    influenciam na gerao das paixes: a associao de ideias, a

    associao de impresses e o duplo impulso. De acordo com o

    estudo, a mente humana no capaz de manter a sua

    ateno voltada a uma nica ideia por muito tempo, nem

    mesmo com muito esforo. Temos, portanto, a

    predisposio de mudar o foco dos nossos pensamentos,

    mas no de maneira catica e desordenada.

    A regra segundo a qual procedem consiste em passar de

    um objeto quele que lhe semelhante ou contguo, ou

    que produzido por ele. Quando uma ideia est

    presente imaginao, qualquer outra ideia unida

    primeira por essas relaes segue-a naturalmente, e

    penetra com mais facilidade em virtude dessa

    introduo. (HUME, 2009, p. 317)

    Dessa forma, notamos como as ideias transitam

    entre si, seja por meio da semelhana ou de derivaes,

    dando origem associao de ideias.

    A associao de impresses nos diz que impresses

    semelhantes se conectam entre si, ou seja, quando uma

    impresso surge outras a acompanhem logo em seguida.

    Assim como no caso anterior, nossa mente no se

  • 45

    Tiago Porto

    comporta de forma constante, logo que uma paixo se faz

    presente ela no consegue se limitar a ela puramente, sem

    passar a uma paixo parecida. Isso demonstra, portanto,

    que existe uma atrao ou uma associao entre as

    impresses, ao modo que h entre as ideias; contudo, h

    uma diferena importante entre os dois tipos: a associao

    entre ideias se d mediante semelhana, causalidade e

    contiguidade, enquanto a associao entre impresses

    ocorre apenas por semelhana.

    Finalmente, o duplo impulso mostra que as duas

    espcies de associao funcionam melhor quando operam

    em conjunto, favorecendo a transio quando elas

    coincidem no mesmo objeto. Quando encontram um

    objeto em comum, as ideias concorrem com os princpios

    que agem sobre as paixes, conferindo conjuntamente um

    duplo impulso mente. Desse novo impulso surge uma nova

    paixo, dotada de uma intensidade maior e capaz de uma

    transio mais fcil e natural da antiga para a corrente.

    Uma vez estabelecidas os princpios geradores das

    paixes, Hume investiga as causas do orgulho e da

    humildade, que segundo ele podem ser abordadas como

    qualidades operantes ou sujeitos onde essas qualidades se

    encontram. Ao estudar essas qualidades, observa-se que

    elas contribuem na produo das sensaes de prazer e dor:

    a beleza de nosso corpo nos provoca orgulho, alm de uma

    sensao prazerosa; j a feiura nos provoca sensaes

    contrrias, sendo elas a humildade e a dor. Baseados no

    princpio de induo24, tomamos por correto pensar que

    24 Hume critica na sua obra o princpio da induo, argumentando que no passa de um efeito dos hbitos sobre a imaginao. Ao nos acostumarmos a ver uma conjuno

  • 46

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    toda a causa de orgulho nos provoca prazer e toda a causa

    de humildade traz consigo sofrimento. Essas qualidades

    podem ou ser parte de ns mesmos ou estarem

    relacionadas conosco de alguma forma. Contudo, se essas

    caractersticas fossem transferidas para determinado sujeito

    ou objeto que no possui nenhuma espcie de ligao

    conosco, no influenciariam nos afetos por no possurem

    relevncia alguma para ns.

    Em suma,

    Comparo, portanto, essas duas propriedades estabelecidas

    das paixes a saber, seu objeto, que o eu, e sua

    sensao, que prazerosa ou dolorosa com as duas

    propriedades supostas das causas sua relao com o eu e

    sua tendncia a produzir dor ou prazer,

    independentemente da paixo [...]. A causa que suscita a

    paixo est relacionada com o objeto que a natureza

    atribuiu paixo; a sensao que a causa produz

    separadamente est relacionada com a sensao da

    paixo. Dessa dupla relao, de ideias e impresses,

    que deriva a paixo. Uma ideia converte-se facilmente

    em sua ideia correlata; e uma impresso, naquela outra

    impresso que se assemelha e corresponde a ela.

    (HUME, 2009, p.321, grifo do autor)

    Antes de prosseguirmos importante ressaltar dois

    pontos. Primeiro, o autor considera que a fisiologia

    humana traz em si uma predisposio a produzir paixes e

    ideias, dado todo o nosso aparato corpreo: o olfato nos

    constante entre objetos ou aes, inferimos dessas observaes uma ligao entre eles ou uma relao de causa-efeito, ainda que no haja nenhum dado proveniente das coisas mesmas que amparem essa inferncia.

  • 47

    Tiago Porto

    leva sensao de fome, que nos faz formar a ideia de um

    determinado alimento; ao sentir o sabor da comida feita

    pela me, o indivduo se orgulha pelos seus dotes

    culinrios. O segundo ponto que a natureza no produz

    paixes de forma direta, necessitando sempre da

    cooperao de outros fatores. Em outras palavras, as

    paixes requerem causas especficas para serem excitadas e

    esvanecem quando no se sustentam. Logo, se surgissem

    da natureza imediatamente, seriam permanentes e

    invariveis, pois no existe uma disposio corporal prpria

    a elas, como no caso da fome ou apetite sexual.

    Relacionando essas paixes iniciais com a sociedade

    em rede, podemos afirmar que estas so bastante presentes

    nas redes sociais online. Tendo em vista, na maior parte das

    vezes, a sua autopromoo, as pessoas que criam um perfil

    nos stios de relacionamento da Internet costumam exibir

    informaes suas de acordo com as caractersticas que

    acreditam serem seus pontos fortes ou que despertam de

    alguma forma o seu orgulho: gostos (refinados ou

    duvidosos), opinies ou bens materiais figuram entre as

    peculiaridades mais comuns expostas publicamente nos

    seus perfis. Baseado nessas caractersticas, o sujeito insere-

    se em grupos de afinidade ou comunidades direcionadas

    discusso de assuntos especficos, mantendo um contato

    constante com outros indivduos que compartilham de

    interesses comuns. Considerando seus traos mais

    marcantes, pessoas que desejam estabelecer um maior

    contato com outros indivduos no se limitam a

    conversaes nos grupos, buscam tambm um vnculo

    maior de amizade. Esta nova ligao pode ser refletida no

    mundo fsico, abarcando as relaes entre amigos offlines, ou

    manter-se to somente na esfera virtual. Assim, mais um

  • 48

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    fator de orgulho entre alguns usurios das redes sociais a

    quantidade de amigos ou seguidores estabelecidos em uma

    micro rede de contatos, ainda que o grau de interao com

    esses demais indivduos possa ser praticamente nulo. Tal

    fenmeno pode ocorrer pelo carisma do sujeito ou pela

    relevncia das informaes por ele disponibilizada,

    podendo ser um indicador de que se trata de um ator social

    com capacidades de formar opinies.

    Por outro lado, a humildade surge como um

    sentimento de vergonha por no possuir requisitos

    abstratos ou materiais necessrios para participar de certas

    associaes ou por fazer parte de algum grupo considerado

    indesejvel pelos demais. Ainda que a Internet proporcione

    uma nova esfera pblica, mais democrtica e

    horizontalizada, alguns problemas do mundo offline se

    refletem tambm no ambiente virtual. Assim, no fato

    raro que pessoas pertencentes classes sociais baixas,

    minorias ou grupos tnicos sofram com o desrespeito ou o

    escrnio de outros indivduos, seja pelo baixo poder

    aquisitivo, linguagem com erros gramaticais ou

    simplesmente por representarem algo diferente. Com o

    desprezo recebido por esses indivduos vem de par a paixo

    da humildade, trazendo consigo a vergonha social e demais

    sentimentos de injustia. So propriamente esses afetos que

    podem impulsionar os movimentos sociais, conforme

    acompanhamos anteriormente no pensamento de Castells e

    veremos com maiores detalhes no prximo captulo.

    b) O amor e o dio

    Segundo Hume, o amor e o dio so paixes

    impossveis de se definir propriamente pois produzem

  • 49

    Tiago Porto

    apenas uma impresso simples, no retendo nenhum tipo

    de mistura ou composio. Em geral, esse par de paixes

    possui um grau elevado de semelhana com o par

    anteriormente analisado o orgulho e a humildade

    sobretudo no efeito que essas paixes nos provocam: por

    um lado o prazer provocado pelo amor e pelo orgulho;

    pelo outro, dor na presena do dio e da humildade.

    Contudo, existem importantes pontos de diferenciao

    entre os dois grupos. Primeiramente, o amor e o dio no

    tm como objeto o eu, mas sim um indivduo ou grupo

    externo a ns. Em segundo lugar, o amor prprio no

    participa dessa definio, pois a sensao produzida pela

    paixo difere da emoo que sentimos por algum prximo

    a ns. Em terceiro lugar, esse indivduo externo que o

    objeto da paixo no pode ser a sua causa, visto que

    possuem direes contrrias. Portanto, as causas do

    surgimento do amor e do dio so plurais: virtude, beleza,

    conhecimento, por exemplo, geram o primeiro; os seus

    opostos, geram o ltimo.

    Dessa explicao conseguimos obter uma nova

    diferenciao entre a qualidade operante e o sujeito onde a

    encontramos. Tomando por exemplo uma celebridade

    conhecida por seu bom gosto, podemos dizer que a

    admirao do povo se d, em primeira instncia, pelas suas

    posses e, em segundo lugar, pela relao de propriedade

    empregada entre a celebridade e seus pertences. Suprimir

    um desses fatores nos leva destruio da paixo, o que

    demonstra a teoria humeana de que a causa dessas paixes

    sempre composta.

    Ao direcionar o foco da sua investigao para o

    afeto pelos parentes ou amigos, o autor ressalta que

    qualquer pessoa que esteja unida a ns por meio de

  • 50

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    alguma conexo pode ter certeza de que receber uma

    parcela de nosso amor, proporcional ao grau da conexo,

    sem que precisemos saber quais so as outras qualidades25.

    Isto significa que o amor se d primeiramente em uma

    relao que parte de ns para com o objeto, sendo seguida

    pelas outras formas de relao. Dessa espcie de relao

    podemos ressaltar dois tipos em especial: a consanguinidade e

    a familiaridade. A primeira ocorre entre ns e nossos

    parentes, estabelecendo um lao extremamente forte entre

    pais e filhos, diluindo-se conforme o grau de parentesco

    diminui. A segunda acontece quando nos acostumamos ou

    nos tornamos ntimos de algum que no possui qualquer

    grau de parentesco conosco. Assim, possumos uma maior

    inclinao a preferir a companhia de uma pessoa com a

    qual convivemos do que um indivduo totalmente estranho

    a ns. Contudo, importante salientar que nossas relaes,

    sobretudo com pessoas que no so nossas parentes, se d

    sobretudo devido a simpatia que nasce entre temperamentos

    similares: geralmente, buscamos a companhia de pessoas

    que pensam ou se comportam de maneira parecida com a

    nossa.

    Cabe, aqui, analisarmos com maior ateno esse

    novo conceito desenvolvido pelo autor. Segundo sua

    definio, a simpatia uma qualidade humana que nos

    permite simpatizar com os outros e a receber por

    comunicao suas inclinaes e sentimentos, por mais

    diferentes ou at contraditrios aos nossos26. Conforme

    seu estudo, no fato raro que uma paixo comunicada

    25 HUME, David. Tratado da natureza humana. 2ed., So Paulo: Editora UNESP, 2009, p. 386. 26 Idem, p. 351.

  • 51

    Tiago Porto

    atravs da simpatia inicialmente como uma ideia converta-

    se em uma impresso, recebendo fora at tornar-se a

    mesma paixo inicialmente transmitida. Contudo, para que

    isso ocorra de forma eficaz, necessrio que a transmisso

    do afeto esteja em conjuno com duas importantes

    relaes: a semelhana e a contiguidade. A semelhana geral

    entre as naturezas dos seres, alm de outras mais especficas

    como linguagem, carter ou comportamento, facilita muito

    a simpatia. Quanto maior o grau de semelhana, mais

    rpido a mente realizar a transio entre a ideia

    proveniente do outro e a que temos em ns mesmos.

    Assim, podemos dizer que essa relao estabelece uma

    conexo entre as ideias e, partindo da propenso natural

    que temos de acessarmos as mesmas impresses que

    observamos nos outros indivduos, auxilia na sua converso

    em impresses. A relao da contiguidade tambm bastante

    importante, visto que as opinies e sentimentos daqueles

    que possuem algum tipo de vnculo consanguneo ou que

    fazem parte do nosso meio social possuem um peso muito

    maior do que os de pessoas que no partilham desses

    vnculos. De acordo com as palavras de Hume, [...] para

    alm da relao de causa e efeito, que nos convence da

    realidade da paixo que simpatizamos, precisamos das

    relaes de semelhana e contiguidade para sentir a

    simpatia em sua plenitude27.

    No decorrer da sua investigao, Hume observa

    que outras paixes seguem-se do amor e do dio. De

    acordo com o seu argumento, essas paixes so sempre

    seguidas pela benevolncia e pela raiva, estando sempre em

    conjuno com estas. Assim, temos a diferenciao entre

    27 Idem, p. 354.

  • 52

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    essas paixes e o orgulho e a humildade, visto que estas no

    nos impulsionam para a ao por no possurem nenhum

    desejo a elas atrelado. Contudo, o amor e o dio no se

    bastam em si mesmos, no permanecendo estanques na

    emoo que produzem, levando a mente cada vez mais

    adiante no fluxo das paixes. Sabemos que a paixo do

    amor nos traz sensaes agradveis e prazerosas, sendo

    essa paixo acompanhada por um forte desejo pela

    felicidade da pessoa amada e repulsa por quaisquer meio

    que possa trazer sua infelicidade; enquanto o dio nos traz

    averso e repulsa, produzindo-nos um desejo pelo

    sofrimento e total averso pela alegria da pessoa por ns

    odiada. Esses desejos aparecem somente quando a

    imaginao nos apresenta a ideia de felicidade ou

    infelicidade do objeto do nosso amor ou dio, mas no so

    em absoluto essenciais para essas paixes: so sentimentos

    naturais a esses afetos, porm no so os nicos, visto que

    podem surgir uma gama imensa de afetos e as paixes de

    amor e dio podem muito bem subsistir por um tempo

    indeterminado sem que tenhamos o desejo de felicidade ou

    infelicidade do objeto do nosso afeto. Isso ressalta que a

    benevolncia e a raiva no so a mesma coisa que o amor e o

    dio, mas efeitos que seguem a eles.

    Dentre as paixes subordinadas ao amor e ao dio,

    figuram piedade, malevolncia e inveja. A piedade uma

    preocupao que temos com a infelicidade ou infortnio

    alheio, no necessariamente ligada a pessoas que possuem

    alguma espcie de ligao conosco. Isso se d devido

    semelhana que os seres humanos partilham entre si,

    porm no para aqui: podemos sentir piedade por animais

    que sofrem, mesmo que esses no partilhem caractersticas

    comuns conosco, pois fato que todos ns temos a

  • 53

    Tiago Porto

    experincia de dor e sofrimento como um referencial a ser

    evitado. Em outras palavras, a dor e a tristeza exercem em

    nossa mente efeitos mais fortes e duradouros que a

    felicidade ou outros prazeres. Por isso, a piedade est

    atrelada a contiguidade, uma vez que trata-se de uma

    derivao da nossa imaginao: se temos uma viso direta

    do indivduo que sofre, mais forte so seus efeitos. Tal

    efeito ocorre sobretudo pela ao da simpatia. Talvez o

    melhor exemplo de como funcionam as paixes causadas

    pela simpatia seja o teatro: quando vamos assistir a uma

    tragdia, pela simpatia nos colocamos no lugar do heri,

    sorrimos e choramos conforme a trama nos apresenta

    reviravoltas, experimentando todas as paixes que so

    insufladas nas nossas mentes: alegria, tristeza, revolta,

    piedade etc. Em suma, [] a piedade depende

    inteiramente da imaginao28. Quanto a malevolncia e inveja,

    seus efeitos imitam os do dio, nos trazendo

    contentamento frente a infelicidade daqueles que

    menosprezamos. Partindo do princpio de comparao da

    grandeza entre objetos, Hume deriva essas duas paixes:

    Ora, como raramente julgamos os objetos por seu valor

    intrnseco; como, ao contrrio, as noes que deles

    formamos resultam de uma comparao com outros

    objetos, segue-se que avaliamos nossa prpria felicidade

    ou infelicidade segundo observemos uma poro maior

    ou menor de felicidade ou infelicidade nos demais, e

    em consequncia disso que sentimos dor ou prazer. A

    infelicidade de outrem nos d uma ideia mais viva de

    nossa prpria felicidade, e sua felicidade, de nossa

    28 Idem, p. 406.

  • 54

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    infelicidade. A primeira, portanto, produz satisfao; e a

    ltima, desprazer. (HUME, 2009, p. 407-408)

    A malevolncia se forma, portanto, como uma

    piedade s avessas: quando a felicidade de outrem parece

    maior que a nossa, sofremos com isso; passamos a desejar

    os infortnios alheios para que a nossa felicidade parea

    superior a dos outros indivduos. Contudo, essa paixo

    tambm pode ser direcionada contra ns mesmos, a fim de

    buscar aflies ou aumentar nosso prprio sofrimento. Isso

    pode ocorrer, segundo o autor, quando algum prximo a

    ns amigo ou familiar sofre com algum infortnio,

    enquanto gozamos algum prazer; ou quando sentimos

    remorso por algum crime cometido contra outra pessoa,

    buscando infligir alguma penitncia para expiar esse mal.

    Finalmente, a inveja causada por uma satisfao que uma

    pessoa prxima sente que, de certa forma, diminui a nossa

    prpria ideia de satisfao privada. Essa satisfao da qual

    nutrimos a inveja geralmente maior do que a nossa,

    trazendo consigo um sentimento de diminuio da nossa

    prpria sensao. Um dado importante que somente

    podemos sentir inveja de algum prximo a ns, pois

    quanto mais distante o objeto mais dissoluto o afeto.

    Outra caracterstica digna de nota que sempre

    encontramos uma mistura de sentimentos positivos como

    amor ou ternura com a piedade e de sentimentos

    negativos como o dio ou raiva com a malevolncia. A

    fim de explicar essa relao, Hume diz que para determinar

    o carter de uma paixo, no devemos considerar apenas a

    sensao de prazer ou dor presente no momento em que

    ela aflora, mas sua inclinao do comeo ao fim. Assim,

    conforme foi dito anteriormente, uma paixo pode se

  • 55

    Tiago Porto

    relacionar com a outra devido a semelhana (por exemplo,

    passar de um descontentamento a raiva, e da raiva ao dio)

    e, tambm, de acordo com a sua direo: passamos de uma

    paixo mais calma para outra mais violenta considerando

    que fazem parte de um mesmo grupo. Contudo, o autor

    ressalva que isso no pode ocorrer com a humildade e com

    o orgulho, visto que essas paixes so puras sensaes,

    desprovidas de direo e tendncias ao.

    Finalizando a anlise das paixes indiretas

    relacionadas ao amor e ao dio, cabe uma investigao do

    respeito e do desprezo. Quando analisamos as caractersticas

    peculiares de cada pessoa, no conseguimos ficar

    impassveis. Ao observar suas boas qualidades por si s

    derivamos uma sensao agradvel, desenvolvendo a paixo

    do amor; se realizamos uma comparao com nossas

    prprias caractersticas e notamos que estas so por ventura

    menos desenvolvidas, desenvolvemos a humildade; se esses

    traos particulares da pessoa nos trazer um misto dessas

    paixes anteriormente citadas, aflora o sentimento do

    respeito. Se partirmos para o outro extremo, para o lado das

    ms qualidades, derivamos sensaes desagradveis,

    desenvolvendo as paixes dio, orgulho ou desprezo

    variando de acordo com o enfoque de nossa anlise.

    Segundo Hume, isso ocorre pelo seguinte:

    O mesmo homem pode causar respeito, amor ou

    desprezo por sua condio e seus talentos, conforme a

    pessoa que o considera passe de seu inferior para o seu

    igual ou superior. Ao mudar o ponto de vista, mesmo

    que o objeto permanea o mesmo, sua proporo

    conosco se altera completamente, e isso que causa a

    alterao nas paixes. Essas paixes, portanto, surgem

  • 56

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    por observarmos a proporo, ou seja, surgem por uma

    comparao. (HUME, 2009, p.424)

    Bem, mas como possvel que um objeto consiga

    provocar duas paixes diferentes em ns? Conforme vimos

    anteriormente, o orgulho e a humildade tem como objeto o

    eu. Assim, quando a qualidade que causa a paixo est em

    ns mesmo, temos as paixes acima citadas; em outra

    pessoa, nos provoca o amor ou o dio, visto que o seu

    objeto sempre externo ao eu. Essas paixes de amor e

    dio causadas pelo outro, quando comparadas com as

    nossas prprias paixes, podem provocar o surgimento de

    um afeto de sentido oposto: orgulho ou humildade. Em

    suma, nenhuma qualidade presente em outra pessoa pode

    nos causar orgulho ou humildade por comparao se no

    for capaz de produzir essas paixes diretamente em ns

    mesmos. Ou seja, determinada qualidade encontrada em

    outra pessoa s poder nos causar humildade por

    comparao caso essa mesma qualidade, encontrada em

    ns mesmos, nos proporcione diretamente orgulho. Dessa

    forma, Hume afirma que a sensao produzida pelos

    objetos atravs da comparao sempre diretamente

    oposta sensao original.

    Contudo, razovel questionar o motivo pelo qual

    em determinados casos as paixes aparecem mistas,

    enquanto em outros aparecem na sua forma pura. O autor

    explica da seguinte forma: quando um objeto que est apto

    a gerar amor mas no apto o suficiente para gerar orgulho

    est em posse de outra pessoa, ele causa diretamente a

    paixo do amor em um grau elevado; porm, origina um

    grau fraco de humildade, considerando o princpio da

    comparao; segue-se a isso que essa ltima paixo mal

  • 57

    Tiago Porto

    percebida no composto criado, dado a sua fraqueza,

    ressaltando a incapacidade de transformar o amor em

    respeito. Segundo o autor, esse o caso da boa ndole, da

    generosidade e da beleza entre outras qualidades, que

    possuem uma aptido prpria em criar amor pelos demais,

    mas no possuem esse mesmo vigor para aflorar o orgulho

    em ns mesmos. Assim, quando essas qualidades aparecem

    nos outros indivduos, elas produzem amor puro, com uma

    mistura muito fraca de humildade e respeito; o mesmo se

    d com as paixes opostas.

    Ao fim dessa anlise, observamos que o amor e suas

    derivaes, como a benevolncia por exemplo, exercem

    grande influncia no comportamento dos sujeitos, o que se

    reflete nas redes sociais online. Conforme vimos

    anteriormente, os indivduos podem se organizar em

    grupos ou comunidades a fim de debater os mais diversos

    assuntos. Partindo da sensao de prazer proveniente

    desses dois afetos, grupos de apoio humanitrio ou

    defensores dos direitos animais ganham espao e voz ativa

    na Internet. Outrossim, aes que buscam trazer maior

    visibilidade causas como a erradicao da misria ou

    contra a escravido infantil, por exemplo, ganham cada vez

    mais adeptos, o que reafirma o poderio que a rede

    internacional de computadores possui em proporcionar um

    cenrio democrtico propcio para a visibilidade de causas

    diversificadas. importante ressaltar que a paixo do amor

    funciona muito bem com o conceito de unio empregado

    por Manuel Castells, visto que o amor facilita a construo

    da confiana e da esperana. De acordo com os

    argumentos elaborados no captulo anterior, os indivduos

    conectados s redes sociais buscam ao unirem-se outros

    um sentimento de coeso para vencer o sentimento

  • 58

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    negativo do medo, que pode paralisar os sujeitos que

    desejam lutar por causas sociais.

    Contudo, o dio e a raiva exercem a influncia

    oposta s paixes acima citadas. Assim como existem

    inmeros grupos que lutam a favor da incluso e em prol

    de avanos humanitrios, o mesmo ocorre quando se trata

    de intolerncia e segregao. Sob a bandeira da democracia

    e da liberdade de expresso, grupos intolerantes utilizam a

    Internet como ferramenta de combate e as redes sociais

    digitais como veculo de propaganda para mensagens de

    dio. Da mesma forma que ocorre com as demais

    organizaes em rede, os intolerantes marcam seus

    encontros e combinam suas aes online. Alm desses

    grupos, existem tambm indivduos que valem-se do

    anonimato que a rede pode proporcionar para atacar outras

    pessoas gratuitamente ou apenas tecer comentrios que

    visam desmoralizar a argumentao de outrem, buscando

    chamar a ateno s vezes de forma ofensiva. Os usurios

    que correspondem ao primeiro grupo so conhecidos

    como haters29, enquanto os do segundo grupo so

    nomeados trolls30. Contudo, a raiva no se vincula apenas a

    esses indivduos, servindo tambm como um motor que

    pode impulsionar os indivduos para atitudes reformistas.

    Conforme vimos anteriormente, o sentimento de revolta

    pode dar lugar raiva, o que ir causar um movimento

    insurgente, por exemplo. Assim, ao compartilhar seus

    29 Cf. matria disponvel em . 30 Cf. matria disponvel em .

  • 59

    Tiago Porto

    sentimentos pelas redes sociais, os indivduos acabam se

    unindo em resposta s causas dessa revolta, visto que a

    Internet oferece um horizonte de possibilidades para a

    organizao de movimentos sociais.

    Outro fator importante de nota que esses afetos

    nem sempre esto marcados de forma clara, havendo

    eventual ambiguidade nessas relaes. Como um exemplo

    disso, podemos citar o comportamento dos trolls: ao

    tecerem comentrios descontextualizados ou ofensivos, o

    indivduo no busca simplesmente ser desagradvel; ao

    contrrio, procura obter uma espcie de reconhecimento

    que pela via argumentativa no receberia, seja pela sua

    ignorncia do tema debatido ou pela sua simples falta de ter

    algo construtivo a ser dito. Assim, esse indivduo vivencia

    uma mistura de paixes, o que reflete-se no seu

    comportamento duvidoso na rede internacional de

    computadores.

    Finalmente, fica claro que o conceito de simpatia

    elaborado por Hume uma pea-chave para

    compreendermos os motivos pelos quais grupos distintos

    formam-se pelas redes sociais da Internet. Como

    analisamos anteriormente, a simpatia uma qualidade

    prpria do ser humano de afeioar-se a outros indivduos e

    receber suas inclinaes e sentimentos. Outrossim, uma

    capacidade de colocar-se no lugar de outra pessoa, visto

    que compartilhamos do conhecimento das sensaes de

    prazer e dor. Dessa forma, podemos dizer que o ser

    humano busca agrupar-se nas redes sociais online conforme

    suas afinidades, de acordo com as paixes transmitidas pela

    simpatia. possvel mensurar a sua fora quando

    movimentos sociais se formam a partir de algum

    desrespeito sofrido por determinados indivduos ou grupos:

  • 60

    Epistemologia das redes e a teoria das paixes em Hume

    ao compartilhar um sentimento de injustia pela Internet

    (seja no formato de documento, vdeo ou depoimento

    propriamente dito), o reconhecimento do afeto negativo

    provoca a reao dos demais indivduos. Isso assinala que,

    independente do sujeito fazer parte do grupo que sofreu

    com o desrespeito, possvel que ele possa ser solidrio e

    defender a legitimidade de dado movimento social por

    ventura proveniente do ocorrido. Isso tambm explica o

    motivo pelo qual o cyber-bullying feito por certos grupos de

    usurios da rede internacional de computadores consegue

    provocar diversos distrbios nos sujeitos que sofrem desse

    ato de dio, tendo em vista a argumentao de Manuel

    Castells de que no existe uma diviso entre mundo fsico e

    mundo virtual, j que a sociedade em rede uma evoluo

    da esfera social.

    3.1.2 Vontade e paixes diretas nos movimentos

    sociais

    A fim de concluir o segundo livro do Tratado,

    Hume disserta sobre a questo da vontade e sobre o que ele

    entende por paixes diretas. Segundo suas observaes, a

    vontade um efeito das sensaes de prazer e dor. Mesmo

    no sendo considerada uma paixo, a sua natureza e suas

    propriedades so importantes